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TESE DE DOUTORADO
RESUMO
A presente tese tem como objetivo principal estudar as estratégias sociais e econômicas das mais ricas
famílias dos proprietários das charqueadas de Pelotas, no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX. O
charque (carne-seca) constituiu-se em alimento fundamental na dieta dos escravos das plantations
açucareiras e cafeeiras e das populações pobres das cidades litorâneas do Brasil. Portanto, trata-se da
análise de um grupo de empresários escravistas cuja produção era destinada principalmente ao
abastecimento do mercado interno. Os proprietários das charqueadas, que também tinham nos couros, nos
sebos e nas graxas importantes gêneros de exportação, foram os empresários mais ricos do sul do Brasil.
A tese também estuda os mercados do gado, a expansão dos charqueadores em busca de fazendas de
criação na fronteira rio-grandense e no próprio lado uruguaio, a sua participação nas guerras do Brasil
com as repúblicas platinas e a sua atuação no comércio marítimo de longo curso. Tanto na primeira
metade do oitocentos, quanto na segunda metade do mesmo, um grupo de famílias tendeu a reunir os
principais recursos materiais e imateriais naquele contexto socioeconômico, vindo a aumentar o seu
prestígio e compor, juntamente com outras famílias, a elite regional ou provincial. Esta elite
charqueadora concentrava riqueza, poder político e status social e alguns de seus membros também
alcançaram reconhecimento nacional. Neste sentido, ao dar este salto, estas poucas famílias tinham entre
os seus parentes alguns indivíduos que podiam tornar-se mediadores conectando a esfera de atuação local
com o mundo exterior, seja economicamente, seja politicamente falando. Contudo, os charqueadores
escravistas de Pelotas, reconhecidos na época como a aristocracia do sebo, não conseguiram resistir ao
fim da escravidão, vivendo um período de auge de pouco mais de duas décadas, para sofrer uma
derradeira crise nos anos 1880. Portanto, esta tese busca oferecer um modelo de análise das elites locais e
provinciais que possa incentivar novos estudos regionais e que auxilie a compreender melhor os sistemas
econômico e político no Brasil oitocentista.
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS................................................................................................. 6
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10
CV – Coleção Varela
5
LISTA DE TABELAS
Tabela 4.2 – Perfil do patrimônio dos inventariados em Pelotas (1850-1890) (%) .... 140
Tabela 4.5 – Perfil dos patrimônios inventariados por faixas de fortuna em libras
esterlinas (%) ............................................................................................................ 162
Tabela 5.1 – Número de escravos e razão de sexo por período (1831-1885) .............. 190
Tabela 5.2 – Faixa etária e sexo dos escravos dos charqueadores (1831-1885) .......... 191
Tabela 5.3 – Africanidade e sexo nos plantéis dos charqueadores (1831-1885).......... 192
Tabela 5.4 – Africanidade e sexo entre escravos adultos e idosos (1831-1885) .......... 193
Tabela 5.6 – Escravos negociados por escritura em Pelotas (1850-1884) ................... 199
6
Tabela 8.1 - Gado bovino abatido nas charqueadas e saladeros da América do Sul
(1857-1862) .............................................................................................................. 296
Tabela 9.1 - Análise das fortunas dos charqueadores (em libras esterlinas)
por períodos (359) ..................................................................................................... 331
Tabela 9.4 – Estimativa média de rendimentos em uma safra com abate de 20 mil
novilhos (década de 1860) ........................................................................................ 352
7
LISTA DE GRÁFICOS E DIAGRAMAS
Gráfico 4.2 – Preço dos escravos entre 15 e 40 anos (1850-1885) – em mil réis ....... 145
Gráfico 5.1 – Preço dos escravos adultos (de 15 a 50 anos) e sadios nas charqueadas
de Pelotas (1831-1885) (em libras esterlinas) ........................................................... 189
Gráfico 7.1 – Número de reses abatidas nas charqueadas de Pelotas (1862-1890) …..250
Gráfico 8.1 – Charque exportado pelo Rio Grande do Sul entre 1837 e 1890
(em arrobas) .............................................................................................................. 301
Gráfico 8.2 - Preço da arroba de charque exportado em réis ($) ................................. 294
Gráfico 8.4 – Unidades de couro e arrobas de charque exportadas pelo Rio Grande
do Sul (1845-1889) ................................................................................................... 307
Gráfico 8.5 – Preços de couro no porto de Rio Grande (1845-1890) .......................... 308
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 4.1 – Mapa da Província do Rio Grande do Sul (1875) .................................. 141
Figura 8.1 – Litoral sul e fronteira fluvial entre Brasil e Uruguai ............................... 291
9
INTRODUÇÃO
Nas províncias do Norte jorrou o sangue com profusão, e nada menos era de esperar-se
com a muito bem pensada reforma eleitoral, que nulificando influências legítimas,
entregou esse tão melindroso assunto à polícia e à Guarda Nacional para criar
caciquinhos locais, dividir e o Governo audaz nomear comissários ad hoc com o
pomposo título de representantes da Nação: tudo corre as mil maravilhas.2
A Lei eleitoral de 1855, também conhecida como a “lei dos círculos”, foi responsável
por implementar o voto distrital, eliminando o antigo sistema de candidatos em lista, o que
acabou favorecendo a eleição de líderes paroquiais em detrimento de indivíduos com influência
política de âmbito mais regional. 3 No entanto, para Domingos, os “caciquinhos locais” que
agora possuíam maiores chances de se elegerem deveriam reservar-se ao seu espaço de atuação
municipal e não se envolver em assuntos reservados às “influências legítimas” da província.
Domingos já havia sido deputado provincial em 1835. Chefe liberal em Pelotas, a leitura de sua
correspondência revela que ele mantinha profundo contato com outros deputados provinciais e
gerais, além dos presidentes de província, demonstrando que era um líder político conhecido e
influente.4 Numa carta escrita a outro amigo, em setembro de 1859, Domingos rememorava o
seu apoio à proclamação da Independência, “que com penosos sacrifícios ajudei a conquistar
1
FREITAS, Bruno C. N. Pedras no Telhado: Política e Sociedade nas eleições distritais de 1860. In: Anais do XXV
Encontro Nacional de História. Fortaleza: Anpuh, 2009.
2
Carta de Domingos J. de Almeida para Manuel Antunes da Porciúncula, 30.10.1860 (AHRS. Anais do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 3, 1978, CV-751). Grifos meus.
3
De fato, grandes políticos foram derrubados de suas posições de prestígio ao perderem as eleições nos seus
respectivos distritos para líderes locais sem grande expressão. Em 1860, uma nova reforma eleitoral diminuiu o
número de distritos criando círculos eleitorais com três deputados ao invés de apenas um (CARVALHO, José
Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 176-180).
4
A coleção de cartas (pertencentes à Coleção Varela) foi publicada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
e reúne missivas escritas entre as décadas de 1830 e 1860. A grande maioria delas abarca o período da Revolta
Farroupilha (1835-1845), quando Domingos ocupou importantes cargos políticos na República Rio-grandense
(Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 3, 1978).
10
em 1822 para nossa Pátria”.5 Portanto, na lógica de Domingos, quando o Império quisesse
negociar o apoio das elites no sul do país, seja para a realização de algum projeto político e
econômico, seja para combater alguma revolta ou vencer eleições, era a homens como ele que
deveria se dirigir e não às notabilidades de aldeia.
5
Carta de Domingos para Bernardo Pires. Pelotas 17.09.1859 (Anais do AHRS, v. 3, 1978, CV-673).
6
MARQUES, Letícia R. Domingos José de Almeida e José Mariano de Matos: A questão dos negros e mulatos na
Revolução Farroupilha (1835-1845). Anais do XXVI Encontro Nacional de História. São Paulo, USP, p. 1-15. Na
realidade não existe um consenso entre os autores a respeito da cor da pele de Domingos. Para considerações sobre
a mesma questão e uma posição mais inclinada a considerar que o charqueador era mulato, ver o mencionado texto
de MARQUES, Letícia. Op.cit.
7
Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão. Pelotas, 07.12.1859. (Anais
do AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, CV-686).
8
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Dissertação de Mestrado em
História, UFRGS, 2009.
9
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre senhores de
engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997, p. 177-186.
10
DOLHNIKOFF, Miriam. Elites regionais e a construção do Estado Nacional. In: In: JANCSÓ, István. Brasil: a
construção do Estado e da Nação. São Paulo/ Ijuí: Hucitec/ Unijuí, 2003; VARGAS, Jonas M. Entre a paróquia e
a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria:
UFSM/Anpuh-RS, 2010.
11
os indivíduos e famílias que compartilhavam de uma postura semelhante viam-se como os mais
capazes em intermediar as relações entre o governo central e a província, incluindo no interior
desta última os inúmeros chefes locais. Contudo, tais negociações eram bastante complexas e
estavam permeadas por uma relação de cooperação e conflito, uma vez que os líderes
provinciais (elite regional) precisavam dos chefes municipais (elites locais) para fortalecer suas
redes sociais e clientelares e vencer as eleições para os seus partidos políticos.11
No Rio Grande do Sul, as primeiras fábricas de charque foram instaladas nos fins do
século XVIII, inserindo-se numa conjuntura econômica muito mais ampla e que caracterizou o
espaço atlântico durante o período colonial tardio.12 A notável ampliação do número de
plantations açucareiras tanto no sudeste e no nordeste brasileiro, quanto no Caribe, provocou a
entrada de centenas de milhares de escravos africanos nas mencionadas plantações criando uma
elevada demanda por alimentos. Neste contexto, não apenas Pelotas como também Montevideu
e Buenos Aires, destacaram-se como os principais núcleos produtores de carne seca e salgada
da América do Sul. 13 Portanto, a formação de tais complexos fabris (Pelotas e Montevideu, nos
11
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997; VARGAS,
Jonas. Op. cit.
12
Para uma análise da economia rio-grandense neste período ver OSÓRIO, Helen. O império português no sul da
fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Uma outra interpretação a
respeito do mesmo período pode ser vista em MENZ, Maximiliano. Entre impérios: formação do Rio Grande na
crise do sistema colonial português (1777-1822). São Paulo: Alameda, 2009.
13
Desde já é importante considerar que na maioria das fontes, “carne-seca”, “charque” e “tasajo” (este último na
região do rio da Prata) são tratados como sinônimos, enquanto a “carne salgada” era um termo destinado para as
12
anos 1780, e Buenos Aires, depois de 1810) fez parte de um mesmo processo onde o tráfico
atlântico, coordenado principalmente pelos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, foi
estruturalmente importante.
Fonte: BELL, Stephen. Early industrialization in the South Atlantic: political influences on the charqueadas of
Rio Grande do Sul before 1860. In: Journal of Historical Geography, 19, 4 (1993), p. 400.
É neste sentido que Pelotas inseria-se no tasajo trail atlântico estudado por Andrew
Sluyter.14 Para o autor, esta rota mercantil de charque que ligava o Rio da Prata à Cuba
conectava duas regiões e duas atividades produtivas na qual a escravidão era fundamental,
criando um circuito mercantil lucrativo no qual a mercadoria principal, o tasajo, era fabricado
“por” e “para” trabalhadores cativos. Além disso, Bertie Mandelblatt insistiu para que se deixe
de ver os escravos no mundo atlântico somente como trabalhadores e como mercadorias,
carnes preparadas e conservadas em barris com salmoura – técnica desenvolvida pelos irlandeses e que será
explicitada no capítulo 2.
14
SLUYTER, Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 2010,
p. 98-120. Como será visto ao longo desta tese, Pelotas foi o principal polo charqueador da província, o que não
significa que o charque não fosse fabricado em outras localidades do Rio Grande do Sul. Se antes da Guerra dos
Farrapos as charqueadas de Porto Alegre e das margens do Rio Jacuí deviam fabricar pouco mais de 25% ou 30%
do charque rio-grandense, é provável que nos anos 1860 e 1870 Pelotas respondesse por quase 90% do charque
fabricado na província. Para uma análise das outras regiões charqueadoras ver MARQUES, Alvarino da Fontoura.
Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987.
13
passando a pensá-los também como consumidores.15 Seguindo estas premissas, pode-se
perceber a ligação do charque com a manutenção do tráfico atlântico e da escravidão a partir de
uma tripla relação. Ao mesmo tempo em que a mão de obra cativa foi essencial para a
montagem das charqueadas e saladeros no Rio da Prata e em Pelotas (aumentando a demanda
por escravos na região), estas fábricas abasteciam as plantations atlânticas com um alimento
rico em proteínas e de baixo preço. Além disso, o produto também acompanhava as tripulações
dos negreiros que cruzavam o Atlântico garantindo os suprimentos dos escravos no retorno de
suas viagens. Neste sentido, Sluyter afirmou que o tasajo trail ajudou a sustentar os mais
proeminentes fluxos mercantis de açúcar e escravos que definiram a própria compreensão do
mundo atlântico.16
Portanto, este circuito comercial fez surgir distintas elites mercantis e agrárias nas
diferentes regiões do Brasil. No Rio Grande do Sul, junto aos comerciantes de grosso trato e aos
estancieiros da região da campanha, os charqueadores pelotenses ocuparam o topo da hierarquia
social. 21 No entanto, se comparado ao número de criadores de gado e ao de comerciantes
existentes na província, os charqueadores pelotenses formavam um diminuto grupo. Ao longo
do século XIX, o número de charqueadas a funcionar em Pelotas, não ao mesmo tempo, foi de
43 estabelecimentos.22 Se em 1822, havia 22 charqueadas no município, em 1850, este número
atingia a casa dos 30, em 1873, chegava a 35 e em 1880, 38. As 11 charqueadas de 1900
indicam que o declínio do setor coincidiu com o fim da escravidão e a queda da monarquia –
cujos charqueadores, nesta época uma aristocracia nobilitada e que, como se verá, concentrava
significativo poder político e econômico, também funcionaram como uma espécie de
sustentáculo do Império luso-brasileiro na fronteira sul.
20
FRAGOSO, João L. R.. Op. cit. 1998, p. 143-177.
21
Sobre os comerciantes ver BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro:
negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011.
Sobre os estancieiros ver FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária
na fronteira meridional do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010. Para ambos os grupos no período colonial ver
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
22
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Op. cit., p. 99-102.
23
Ver, por exemplo, LINHARES, Maria Yedda. História do Abastecimento: uma problemática em questão (1530-
1918). Brasília: Binagre, 1979; LINHARES, Maria Yedda. Subsistência e sistemas agrários na Colônia: uma
discussão. In: Estudos Econômicos. N. 13, 1983, p. 745-762; CARDOSO, Ciro F. O trabalho na Colônia. In:
LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 69-88. CARDOSO,
Ciro F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
15
da economia de abastecimento e do próprio mercado interno tanto no século XVIII quanto no
XIX.24 Utilizando-se de uma metodologia serial e assentados sobre vasta gama de fontes
primárias manuscritas, estes estudos inspiravam-se na história regional francesa, que tinha
como expoentes Ernest Labrousse, Pierre Goubert e Emmanuel Le Roy Ladurie, por exemplo.25
Tais estudos demonstraram, entre outros aspectos, a importância das produções destinadas ao
mercado interno, a disseminação da escravidão para muito além da agroexportação, a
diversidade dos grupos sociais existentes em espaços fora das plantations, a existência de uma
elite de comerciantes de grosso trato no Rio de Janeiro e a reiteração de uma hierarquia social
excludente nas mais distintas realidades históricas.
Desde que estas pesquisas tiveram início nos anos 1970, não existe um trabalho que
tenha investigado de maneira mais aprofundada e nos quados de uma história social o papel dos
charqueadores e de suas famílias dentro deste circuito mercantil de acumulação endógena e das
transformações sofridas por esta elite ao longo do oitocentos. Para além dos conhecidos relatos
de viajantes e das histórias da cidade de Pelotas escritas na passagem do século XIX para o XX,
a obra de Fernando Henrique Cardoso, anterior às mencionadas pesquisas indicadas
anteriormente, surgiu como uma primeira incursão mais sistemática ao estudo da sociedade e da
economia da província, apresentando uma atenção especial às charqueadas pelotenses.26 A
principal contribuição do autor foi demonstrar o equívoco das interpretações até então vigentes
sobre a pouca importância da escravidão na sociedade rio-grandense, assim como a ideia de
“democracia racial” que vigoraria nas relações sociais entre senhores e cativos. Inaugurando um
debate acadêmico, sob a inspiração dos relatos de Louis Couty (1881), Cardoso defendeu que as
charqueadas entraram em crise devido à irracionalidade econômica dos charqueadores que
mantiveram o trabalho escravo em seus estabelecimentos enquanto os saladeiristas platinos se
24
Como, por exemplo, FRAGOSO, João. Op. cit.; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da
carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro:
IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992; MOTTA, Márcia M. M.. Pelas Bandas d’Além: fronteira fechada e
arrendatários-escravistas em uma região policultora (1800-1888). Niterói: ICHF/UFF, 1989; SAMPAIO, Antônio
C. Jucá. Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução econômica na produção de alimentos (1850-
1888). Rio de Janeiro: UFF, Dissertação de Mestrado, 1994; CASTRO, Hebe M. da C. Mattos de. A Margem da
História: homens livres pobres e pequena produção na crise do trabalho escravo. Niterói: ICFH/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1985; FARIA, Sheila de Castro. Terra e trabalho em Campos dos Goitacazes (1850-1920). Niterói:
ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1986.
25
Nos anos 1970, o diálogo com a historiografia francesa também teve importante contribuição na área da
demografia histórica, o que favoreceu um maior conhecimento das estruturas econômicas internas. Ver, por
exemplo, MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo:
Pioneira/USP, 1973. Para um balanço historiográfico ver BACELLAR, Carlos; BASSANEZI, Maria Sílvia;
SCOTT, Ana Sílvia V. Quarenta anos de demografia histórica. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São
Paulo, v. 22, n. 2, jul./ dez., 2005, p. 339-350.
26
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
16
utilizavam de trabalhadores assalariados. Desta forma, a análise da escravidão nas charqueadas
serviu para sustentar parte de suas teses.
Contemporânea a Corsetti, a obra de Mário Maestri Filho dialoga menos com Cardoso,
mas mantém a mesma preocupação voltada em demonstrar a significativa importância do
trabalho escravo na economia rio-grandense. Pesquisando principalmente fontes impressas,
Maestri busca investigar os diferentes tipos de resistência escrava e as violências a que os
mesmos estavam sujeitos no trabalho das charqueadas.28 Nos anos 1990, o autor orientou outras
importantes pesquisas que buscaram aprofundar o uso da mão de obra cativa nos mesmos
estabelecimentos. Destes trabalhos, o de Ester Gutierrez foi o que abrangeu interesses mais
amplos. Seguindo métodos e fontes documentais utilizados por Corsetti, a autora reconstituiu o
complexo espacial e a distribuição geográfica das charqueadas, buscando traçar uma história
dos estabelecimentos ao longo do período, assim como da importância da escravidão nos
mesmos.29 Mais recentemente, Denise Ognibeni deu continuidade à pesquisa sobre as
charqueadas, dedicando um espaço para analisar os charqueadores enquanto grupo social,
27
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983.
28
MAESTRI FILHO, Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo
gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984.
29
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001. Na mesma época, ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Porto
Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995.
17
observando seu cotidiano, o mundo do trabalho e escapando de uma análise exclusiva do
processo de produção e comercialização do charque.30
30
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre:
PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005.
31
SLUYTER, Andrew. Op. cit.; MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.; RIXSON, Derrick. The history of meat
trading. Nottingham: University Press, 2000; PERREN, Richard. The meat trade in Birtain (1840-1914). London:
Routledge & Kegan Paul, 1978; PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the
International Meat Industry since 1840. Aldershot: Ashgate, 2006. A exceção é Stephen Bell (BELL, Stephen.
Early industrialization in the South Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before
1860. In: Journal of Historical Geography, 19, 4 (1993); BELL, Stephen. Innovacón, desarollo y medio local.
Dimenciones sociales y espaciales de la innovación. Revista Scripta Nova. Barcelona. N. 69 (84), 2000. Os autores
uruguaios e argentinos que trataram da história dos saladeiros, analisados ao longo desta tese, também referem-se
ao complexo charqueador pelotense.
32
Para um balanço geral, assim como as contribuições de Robert Fogel e Stanley Engerman, ver GRAHAM,
Richard. Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Sul dos Estados Unidos no século XIX. In: Estudos
18
como o pecado original das charqueadas e a sua extinção como uma explicação exclusiva de
sua crise final. Desta forma, esta tese não pretendeu continuar investigando a história das
charqueadas enfatizando-as como estabelecimentos decadentes e arcaicos, fatalmente
condenados a extinção. Ora, mesmo com todos os reveses apontados por Cardoso e outros
historiadores, mesmo com todos os problemas infraestruturais, os charqueadores pertenceram a
elite mais rica, poderosa e prestigiosa do extremo sul da América luso-brasileira e ocuparam o
topo da hierarquia social por agregarem recursos materiais e imateriais valorizados na sua
realidade histórica. Portanto, aquela sociedade deve ser entendida nos seus próprios termos e
não se deve exigir da sua elite um comportamento a-histórico. É importante frisar isto, porque
muitos trabalhos, ao privilegiarem a ideia de uma crise inevitável e de uma fatalidade
anunciada, acabaram permeando as suas conclusões neste sentido, o que resultam em análises
teleológicas onde os charqueadores foram apenas espectadores da ascensão capitalista que
irreversivelmente os fez desaparecer enquanto elite.33
A ausência de uma pesquisa mais aprofundada sobre quem eram e como agiam os
charqueadores pelotenses inviabiliza um entendimento mais complexo dos circuitos mercantis
que vinculavam diferentes regiões do centro-sul do Império, (mas também do mercado
marítimo de cabotagem que conectava o Rio Grande ao nordeste brasileiro), uma vez que não
permite conhecer melhor as elites que se constituíram a partir destas atividades. Penso que
compreender como as hierarquias sociais reproduziam-se nas margens mais “periféricas” do
Império e como as elites afastadas dos centros decisórios desenvolviam estratégias para obter
ganhos dentro deste sistema, auxilia na compreensão do próprio sistema econômico e político
brasileiro no oitocentos. Portanto, esta tese não almeja contribuir somente com o estudo da elite
charqueadora pelotense. Com as questões e hipóteses levantadas ao longo dos capítulos
objetivo oferecer um quadro analítico mais amplo e que estimule um olhar mais atencioso para
outras elites locais e regionais brasileiras, além de buscar entender como elas integravam-se nos
distintos mercados internos e externos que marcaram o período.
Econômicos, n. 13, 1983, p. 223-257. Ver também LIBBY, Douglas. Trabalho escravo e capital estrangeiro no
Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984; MONASTÉRIO, Leonardo. Op. cit.
33
Esta visão é muito comum entre os historiadores que trabalharam com o processo de industrialização e a
consolidação da república no Rio Grande do Sul. Neste sentido, a monarquia aparece como um estágio a ser
superado pela república e a economia escravista como uma etapa a ser ultrapassada pelo capitalismo. Ver, por
exemplo, PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha: frigoríficos, charqueadas, criadores. Porto Alegre:
Movimento/IEL, 1980; LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense & o Sistema Financeiro Regional. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1985.
19
No Brasil, cada vez mais tem sido aceito o papel das elites regionais no processo de
independência e da formação do Estado imperial brasileiro.34 A partir destes novos estudos já
não é mais possível pensar nas elites regionais como passivas diante do processo de
consolidação do estado monárquico ou como forças centrífugas prontas a impedir o mesmo.
Além disso, as novas pesquisas compartilham, por meio de contribuições distintas, do princípio
da negociação entre o governo central e as elites regionais, da mediação política entre ambos os
níveis de poder e da convergência de interesses entre os diversos proprietários de terra
espalhados pelo Brasil, como fatores importantes no mencionado processo. Neste sentido, parto
da premissa de que as elites regionais também devam ser compreendidas nas suas estruturas
socioeconômicas internas e na sua interação social com os sistemas econômicos e políticos
mais amplos, na qual as suas atividades se inseriam, uma vez que poucas são as pesquisas que
buscam estabelecer um diálogo entre uma abordagem econômica com outra mais política.
É na esteira destas novas pesquisas que a presente tese se insere. A escolha das famílias
charqueadoras deu-se pelo fato das mesmas ocuparem o topo da elite econômica da província.
No entanto, as suas relações sociais e políticas com outros setores da sociedade e as diferentes
esferas de ocupação em que os membros das mesmas estavam inseridos também auxiliavam na
manutenção da sua própria posição na hierarquia social. Daí a importância de investigar que
tipo de relações os charqueadores mantinham com comerciantes, estancieiros e políticos, isto
quando os mesmos não pertenciam as suas famílias. Portanto, o presente estudo oferece uma
análise especial dos charqueadores pelotenses que, assim como o mencionado Domingos José
de Almeida, não se viam mais como simples “caciquinhos locais”, pois sua influência em
termos políticos e econômicos estava um patamar acima destes, os colocando como membros
das elites regionais.
34
Ver, por exemplo, GOUVÊA, Maria de Fátima. Política provincial na formação da monarquia constitucional
brasileira: Rio de Janeiro (1820-1850). Almanack Braziliense, n. 7, mai-2008, p. 119-137; DOLHNIKOFF,
Miriam. O pacto imperial: origens no federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005; MARTINS,
Maria Fernanda V. “A velha arte de governar”: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado
(1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007; GRAHAM, Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit.,
2010; FARINATTI, Luís A. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Das racionalidades da História: o Império do
Brasil em perspectiva teórica. Almanack, n. 4, 2º sem. 2012, p. 53-61; SODRÉ, Elaine L. A disputa pelo monopólio
de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871).
Tese de Doutorado. PUC-RS, 2009; ANDRADE, Marcos F. de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial
brasileiro: Minas Gerais - Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008;
RIBEIRO, José Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos
militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de Doutorado. PPGHIS-UFRJ, 2009;
KLAFKE, Álvaro. O Império na Província: construção do Estado nacional nas páginas de O Propagador da
Indústria Rio-grandense (1833-1834). Dissertação de mestrado, UFRGS, 2006; MELLO, Evaldo C. de. A outra
independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2004; PIMENTA, João Paulo
G.; SLEMIAN, Andréa. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de
Janeiro: DP&A, 2003; COSTA, Wilma P.; OLIVEIRA, Cecília H. de S. (Org.). De um império a outro: estudos
sobre a formação do Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: FAPESP, 2007.
20
O critério inicial utilizado para a seleção destas famílias foi a riqueza. Contudo,
investigando profundamente a vida das famílias charqueadoras mais afortunadas verificou-se
que as mesmas também concentravam os principais cargos políticos, a maior parte dos títulos
de nobreza e foram as que mais investiram na educação superior de membros do grupo. Neste
sentido, o leitor verificará que tanto na primeira metade do oitocentos, quanto na segunda
metade, um grupo com cerca de 8 a 10 grandes famílias ocupava o topo da hierarquia social
local, apresentando um alto grau de parentesco entre si. Neste sentido, as principais famílias de
charqueadores aqui investigadas ocuparam o topo da hierarquia social pela notável forma como
concentraram os recursos materiais e imateriais não apenas da sociedade em que viveram como
também no interior do próprio grupo de charqueadores.
No que diz respeito ao seu patrimônio econômico, foi possível verificar que estas
principais famílias não se reservavam aos seus negócios na charqueada, destacando-se tanto no
comércio marítimo de longo curso, quanto na criação de gado em grandes estâncias na região
da campanha ou no norte do Uruguai. Além disso, muitas delas também atuaram no
prestamismo local vindo a tornar-se credoras de outros pequenos proprietários. Tal incremento
de atividades econômicas e a diversidade de investimentos assemelhavam-se com as práticas
dos comerciantes de grosso trato estudadas por Fernand Braudel na Europa dos séculos XVI ao
XIX e que caracterizou o perfil daquela elite mercantil. 35 No caso dos charqueadores, o
investimento em grandes estâncias e embarcações marítimas tinha como objetivo aumentar os
seus lucros nos três níveis econômicos no qual o charque estava inserido, ou seja, na criação, na
produção e no comércio. Portanto, os charqueadores mais ricos ao apresentarem uma maior
capacidade de aproximação dos mercados de gado e dos mercados marítimos potencializavam a
sua capacidade de acumular riqueza, diminuíam os riscos advindos destes negócios e
reproduziam a desigualdade de recursos no interior do grupo.
A concentração de poder, riqueza e status social contribuía para que estas famílias
adquirissem uma “consciência de elite” que foi amadurecendo ao longo do oitocentos,
atingindo seu ápice na segunda metade do século. Tal fenômeno social conferia um sentimento
de superioridade às mesmas, o que se refletia no seu estilo de vida, nos casamentos de seus
filhos e na sua política sucessória. A engenharia matrimonial praticada pelas mesmas
combinava uma endogamia envolvendo membros do próprio grupo com uma exogamia que
buscava genros europeus ou de elites de outras províncias. Além disso, uma preocupação com a
35
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
21
educação dos filhos e com os seus matrimônios refletia-se numa política sucessória distinta dos
demais charqueadores de menor fortuna no que diz respeito à transmissão da charqueada e a
escolha dos primogênitos enquanto sucessores da função empresarial do pai. Favorecidos por
uma grande presença de estrangeiros na cidade, os charqueadores também passaram a
compartilhar de uma cultura europeizada e de um estilo de vida mais urbano, onde
demonstraram interesse pelas artes, pelos espaços de sociabilidade e pela caridade. Foi a partir
destes fatores que as mesmas foram vistas pelos seus contemporâneos como uma espécie de
aristocracia da terra, devido a sua posição social e o estilo de vida que levavam no final da
monarquia.
36
STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641). Madrid: Alianza Editorial, 1985; MONTEIRO,
Nuno G. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa: ICS, 2012; MONTEIRO, Nuno G. O
crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1998; MONTEIRO, Nuno. G. Casamento, celibato e reprodução social: a aristocracia
portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa, Análise Social, v. 28, 1993, p. 921-950; MONTEIRO, Nuno G. 17
th and 18 th century Portuguese Nobilities in the European Context: a historiographical overview. E-JPH, v. 1, n.1,
summer 2003, p. 1-15.
37
MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
38
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, 2011, p. 115-137 [tradução].
Sobre outras considerações teórica e aplicações práticas do método ver também HEINZ, Flávio M. (org.). Por uma
outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
22
compreender os diferentes investimentos realizados por esta elite, que tipo de interesses elas
perseguiam, qual a importância que davam à educação, em que patamar encontravam-se suas
riquezas e níveis de poder, qual o seu estilo de vida e se a mesma apresentou um ethos
próprio.39
Além dos mencionados autores e de suas contribuições no que dizem respeito ao tipo de
questionamentos que se deve fazer quando se estuda as elites das sociedades agrárias e pré-
industriais, encontrei outro ponto de partida teórico e metodológico no programa de pesquisa
oferecido por Edoardo Grendi, nos anos 1970.40 Considerados como os primeiros textos que
inspiraram a experiência historiográfica da microanálise social, os escritos de Grendi
constituíram-se em um ponto de encontro de diferentes contribuições interdisciplinares que
marcaram os anos 1960 e 1970.41 No geral, estas referências vinham opor-se ao funcionalismo e
ao estruturalismo marcante nos estudos das sociedades antigas, assim como a leitura
neoclássica acerca da economia das mesmas sociedades agrárias. Da aproximação com a
antropologia econômica, do diálogo com os estudos mais culturais de E. P. Thompson42, da
releitura da obra de Karl Polanyi43 e das interlocuções com Giovanni Levi acerca do mercado
de terras no Antigo Regime europeu44, além de muitas outras referências, Grendi começou a
formular um programa de pesquisa que via na microanálise das relações sociais um
procedimento teórico e metodológico capaz de auxiliar na resolução dos problemas de pesquisa
que lhe interessavam e superar os rígidos esquemas macro-estruturais em voga na época.45
39
STONE, Lawrence. Op. cit., 1985.
40
GRENDI, Edoardo. La micro-analisi: fra antropologia e storia. In: Polanyi: dall’antropologia economica alla
microanalisi storica. Milão: Etas Libri, 1978.
41
Para uma análise dos mesmo ver LIMA FILHO, Henrique Espada. A Micro-história italiana: escalas, indícios e
singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
42
Ver, por exemplo, THOMSPON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Cia. das Letras, 1998.
43
Ver, por exemplo, POLANYI, Karl. A Grande Transformação. As origens da nossa época. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1980.
44
LEVI, Giovanni. Economia camponesa e mercado de terra no Piemonte do Antigo Regime. In: OLIVEIRA,
Mônica R. de; ALMEIDA, Carla (Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009.
45
LIMA FILHO, Henrique Espada. Op. cit. Conforme o próprio Grendi, outras referências teóricas foram
importantes para os seus escritos, como os modelos generativos propostos por Fredrik Barth, o interacionismo de
Norbert Elias e o método da Network Analisys (GRENDI, Edoardo. Il Cervo e la repubblica: il modello ligure di
antico regime. Torino: Eunaudi, 1993, p. VII). Neste sentido, o estudo das sociedades camponesas realizado por
Eric Wolf e Sidney Mintz também contribuiu bastante para as suas reflexões (GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978).
23
historiador poderia observar os códigos culturais dos sistemas sociais mais amplos buscando
compreender as regularidades que regiam as ações e os comportamentos dos homens nestes
mesmos agregados sociais maiores. Os resultados desta imersão no nível micro deviam ser
comparáveis com outros contextos históricos. Neste sentido, Grendi defendia uma média
generalização das hipóteses de trabalho do historiador. Para ele, as sociedades agrárias e pré-
industriais apresentavam-se como um cenário propenso às experiências microanalíticas e à
generalização dos resultados, pois as sociedades camponesas constituíam-se no grande
fenômeno social geral da história. Portanto, para uma compreensão mais complexa dos
agregados sociais locais, os historiadores deveriam tentar investigar todas as relações sociais
dos agentes envolvidos.46 Foi isto que Levi buscou empregar no seu estudo sobre Santena no
século XVII.47 Esta abordagem holística tinha nítida inspiração no diálogo de Grendi com a
antropologia social. 48
46
GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978.
47
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
48
LIMA FILHO, Henrique Espada. Op. cit, p. 151-223.
49
GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978.
50
GRENDI, Edoardo. Microanálise e História Social. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla
(Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009, p. 27-30.
51
LEVI, Giovanni. Op. cit., p. 51.
24
da sua “aldeia” e que, por conta disto, vinculavam a sua comunidade com o mundo exterior,
defendendo interesses ligados à sua facção, mas que, indiretamente, beneficiavam outras
famílias da localidade. O mediador possuía as chaves de acesso aos poderosos do centro
decisório de um sistema maior e o poder de realizar esta conexão transformava-o num
potentado local e/ou regional. Os mediadores estão presentes em todas as sociedades agrárias e
pré-industriais onde um centro político com fins centralizadores incorpora outras localidades
outrora autônomas ou independentes – as chamadas “periferias” de um sistema. 52
É neste sentido que deve-se atentar para as estruturas internas das localidades e
compreender os fatores que condicionavam as suas hierarquias socioeconômicas, pois era a
partir da concentração dos recursos materiais e imateriais mais valorizados em determinados
contextos que as suas elites emergiam alcançando espaços de atuação mais amplos. Daí a
importância da antropologia econômica e da obra de Witold Kula nas reflexões de Grendi, pois
se cada sistema econômico possuía as suas racionalidades próprias é nos seus pontos de
contato, nas suas intersecções, que a elite-broker (os mediadores) atuava com distinção,
colocando os dois espaços econômicos em contato, intermediando as relações de troca entre
ambos e provocando alterações na visão de mundo e nos valores culturais dos habitantes do
meio agrário. De tudo isto resulta um universo social com uma variedade de elites e hierarquias
sociais locais e regionais que se relacionavam social, política e economicamente umas com as
outras em relações de cooperação e conflito, onde sempre abriam-se canais de mediação
ocupados pelos mais “aptos”.
52
Com relação ao uso do conceito de mediador ver IMIZCOZ, José M. Patronos y mediadores. Redes Familiares
en la Monarquia y patronazgo en la aldea: la hegemonia de las elites baztanesas en el siglo XVIII. In: Redes
familiares y patronazgo: aproximación al entramado social del País Vasco y Navarra em el Antiguo Régimen
(siglos XV-XIX). Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001; SILVERMAN, Sydel F. Patronage and community-
nation relationships in central Italy. In: SCHMIDT, S. W. (ed.). Friends, Followers and factions: a Reader in
Political Clientelism. Berkeley: University of Califórnia, 1977. As importantes contribuições de Eric Wolf neste
sentido podem ser vistas em FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder:
contribuições de Eric R. Wolf. Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Ed. Unicamp, 2003; VARGAS, Jonas. Op. cit.
53
Neste sentido, ver GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op.
cit., 2010.
25
Grendi54, segui as premissas de Giovanni Levi que buscou despi-lo de significados tão rígidos,
considerando-o e reafirmando-o como um comportamento que, apesar de racional, era limitado
e seletivo.55 Esta racionalidade limitada obedecia, portanto, aos condicionantes estruturais e
conjunturais na qual a família agia e interagia, contribuindo para romper ou reforçar os próprios
traços desta estrutura social. A política sucessória constituiu-se em outro fator de distinção entre
as famílias charqueadoras mais ricas das menos ricas, conformando uma prática de elite que
buscava a reprodução social de sua posição.
Portanto, numa definição abrangente, pode-se pensar nas elites como grupos formados
por indivíduos e famílias que concentravam os recursos materiais e imateriais mais valorizados
54
GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da
microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 253.
55
LEVI, Giovanni. Op. Cit., 2000.
56
Para Martins, “o uso mais genérico dessa noção torna-se particularmente útil para estudos de casos como o
Brasil, diante da indefinição de papéis sociais, naturalmente não no que se refere à hierarquia, mas basicamente
quanto às suas funções”. Este tipo de definição “permite a compreensão do grupo tendo em vista o que seria seu
caráter mais peculiar, ou seja, a pluralidade de atividades e funções a que se dedicam seus membros”, uma vez que
“os indivíduos que alcançavam os altos postos da administração poderiam ser, e muitas vezes o eram,
simultaneamente, políticos, capitalistas, negociantes, proprietários ou intelectuais”. Soma-se a isto, o fato de que a
estrutura social brasileira no Oitocentos acabava vinculando a identidade individual “às relações familiares e às
redes sociais as quais se encontravam associados, o que fazia com que, com freqüência, antes de serem homens
públicos, fossem os representantes dos interesses e negócios dos grupos e famílias que os aproximaram do poder”
(MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit., p. 5-7).
57
CERUTTI, Simona. Processo e experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século XVII. in:
REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998, p.
182-183.
26
no contexto histórico em que viviam e que, na maioria das sociedades, envolviam critérios de
riqueza, poder e status. Neste sentido, as elites reuniam as melhores condições para negociar e
impor os seus projetos, influindo, desta forma, decisivamente nos rumos da sociedade na qual
ocupavam o topo da hierarquia. Estes mesmos grupos eram legitimamente reconhecidos como
as elites tanto pelos habitantes de seus territórios, quanto pelas elites dos territórios vizinhos e
grandes centros políticos nos quais estavam inseridos. Por fim, as elites deviam apresentar uma
“consciência de elite”, refletida nos seus estilos de vida, nas políticas de sucessão familiar e nas
engenharias matrimoniais. Quanto mais um grupo concentrava estes fatores e quanto mais
pessoas eles eram capazes de incluir no direcionamento dos seus projetos, mais no topo da
hierarquia social os indivíduos e famílias deveriam se encontrar.
As elites locais, por sua vez, seriam as autoridades públicas paroquiais (militares,
oficiais da Guarda Nacional, delegados, juízes de paz, padres, vereadores, tabeliães), parte dos
comerciantes, dos médios fazendeiros, entre outros. Portanto, o “poder local” ou “poder
paroquial” dizia respeito a estes indivíduos e famílias. Eles se caracterizariam por apresentarem
uma esfera de influência reduzida ao próprio município ou arredores e dificilmente alguns deles
conseguiam romper esta barreira (ao fazê-lo, podiam ascender à condição de elite regional). A
58
Uma significativa amostragem de uma elite provincial poderia ser obtida na análise coletiva dos indivíduos
nobilitados da mesma. Tal estudo prosopográfico será realizado no capítulo terceiro com o objetivo de conhecer
um pouco mais destas famílias rio-grandenses.
27
maior parte dos charqueadores não conseguia impor projetos ou exercer influência para além de
Pelotas, por exemplo. No entanto, como as escalas provincial e a local possuíam limites um
tanto tênues, as elites regionais também podiam absorver alguns dos mais notáveis membros
das consideradas elites locais, via casamento ou por intermédio dos diferentes vínculos sociais
estabelecidos pelas mesmas.
Sobre estes termos ainda é preciso considerar que ambos estão nitidamente relacionados
à escala de observação do historiador. Geralmente refere-se à elite local na sua relação com a
capital da província. Neste mesmo sentido, a noção de elite regional/provincial (que, como eu
já disse, podia reunir importantes membros da elite local em estágio de ascensão ou que
ocupavam o papel de mediador) é um instrumento de análise que serve para ser utilizado na
relação entre o Rio Grande do Sul (ou de outra província qualquer) e o governo central.
Portanto, estas definições não devem ser vistas de maneira um tanto rígidas. As suas fronteiras
espaciais e seus recortes regionais dependiam muito do poder de influência e da mobilidade dos
indivíduos e de suas redes de relações. Alguns poucos eram capazes de ocupar todos estes
espaços, fazendo parte destas duas elites (ou três se pensarmos na elite nacional/imperial).
Neste sentido, os mediadores ajudavam a tornar as fronteiras regionais e locais mais flexíveis,
unindo sociedades e populações com culturas diversas. Algumas famílias também podiam
distribuir seus membros pelos mesmos espaços, funcionando como um elo de aproximação por
onde circulavam informações e recursos diversos.59
A compreensão dos critérios descritos acima ficará mais evidente ao longo da tese. O
texto está dividido em 10 capítulos. Tendo em vista a abordagem relacional proposta, as
divisões dos mesmos em campos de investigação, como o político, o social, o econômico, o
cultural, entre outros, seria inadequado. Neste sentido, os capítulos são profundamente
interdependentes e a leitura de um, ajuda a explicar os eventos e as análises dos outros.
Contudo, é possível realizar um esforço para delimitar alguns temas específicos. Os três
primeiros capítulos, por exemplo, são homogêneos no que diz respeito à conjuntura histórica: o
colonial tardio e as décadas que antecederam a Revolução Farroupilha, ou seja, o período entre
1780 e 1835. Neles eu busquei compreender quem eram os charqueadores que compuseram a
primeira geração de empresários escravistas de Pelotas, as relações sociais estabelecidas com
outros grupos sociais e a sociedade que os mesmos ajudaram a construir no extremo sul da
59
Antes de passar para descrição dos capítulos, gostaria de comentar outras duas questões. É sabido que, no século
XIX, a região “nordeste” do Brasil era chamada de região “norte”. Para facilitar a narrativa e evitar confusões,
cometi o pecado de utilizar o termo “nordeste” para denominar a mencionada região ao longo do texto. Além
disso, os termos “rio-grandense” e “sul-rio-grandense” dizem respeito aos naturais da província do Rio Grande do
Sul, enquanto o “rio-grandino” referia-se ao nascido na cidade de Rio Grande.
28
América portuguesa. Além disso, analiso a conjuntura econômica que favoreceu a formação do
complexo charqueador escravista pelotense em sintonia com os saladeiros do Rio da Prata.
29
1. A INSERÇÃO ECONÔMICA DAS CHARQUEADAS DE PELOTAS NO
MERCADO INTERNO BRASILEIRO (1780-1835)
1
RAWLS, James; ORSI, Richard (Org.). A golden state: mining and economic development in gold rush
California. University of California Press, 1999, p. ix; ST. CLAIR, David. The gold rush and the beginnings of
California Industry. In: RAWLS, James; ORSI, Richard. Op. cit., p. 194-197; HOBSBAWM, Eric. A Era do
Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 97.
30
cidades australianas. Contudo, não demorou muito e, com a ampliação das fazendas e o
estímulo de comerciantes ingleses, a Austrália ingressou de vez no mercado internacional das
carnes, tornando-se uma das grandes abastecedoras da Inglaterra que, na segunda metade do
oitocentos, foi a maior importadora de carnes do mundo.2
Do primeiro relato do achado de jazidas de ouro, em Rio das Velhas, no ano de 1695,
até as descobertas que se seguiram em diferentes localidades, uma multidão de pessoas
aventurou-se por aquelas paragens enfrentando riscos naturais de todo o tipo, além das tribos
indígenas hostis. 4 Durante o golden rush tupiniquim, a região das Minas Gerais foi desde o
início o principal ponto de atração. Os migrantes “ocorreram de todos os modos de vida, das
mais diversas origens sociais e de todos os tipos de lugar”. Eles vinham das regiões costeiras do
Brasil, do Reino e das ilhas portuguesas. Os sempre presentes aventureiros ingleses, irlandeses,
holandeses e franceses também estiveram presentes. Frades deixaram seus mosteiros no Brasil e
em Portugal e soldados desertaram de suas guarnições costeiras, enquanto negros livres e
cativos (fugidos ou despachados pelos seus próprios senhores), paulistas com seus índios
escravos, comerciantes, agricultores e “pessoas com laivo de nobreza” também tomaram o
mesmo rumo. Em suma, “todos foram infectados pela febre do ouro”.5
2
PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the International Meat Industry since 1840.
Aldershot: Ashgate, 2006. O mercado mundial das carnes entre 1840 e 1900 será analisado no capítulo 8.
3
RUSSEL-WOOD, A. J. R. O Brasil Colonial: o ciclo do ouro (1690-1750). In: BETHELL, Leslie (Org.). História
da América Latina. São Paulo: EDUSP, v. 3, 1999, p. 474; 521.
4
Conforme Russel-Wood, a atividade dos bandeirantes no devassamento do sertão continuou durante todo o
século. Mas as novas descobertas serviram apenas para confirmar o que a Coroa, em 1754, já havia considerado
como “áreas de mineração”: Minas Gerais, Cuiabá, Goiás, Mato Grosso, São Paulo e as comarcas de Jacobina, Rio
das Contas e Minas Novas de Araçuaí, na Bahia (RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 471-472).
5
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit, p. 482.
31
Em poucos anos, a população das diversas regiões mineradoras cresceu de forma
impressionante. Os dados são esparsos, mas o aumento do número de cativos oferece uma
estimativa a respeito do mencionado fenômeno. Em 1695, por exemplo, as Minas Gerais
compreendiam alguns “grupos sortidos de bandeirantes, ocasionais fazendeiros de gado, um
punhado de missionários, alguns especuladores e os índios”, mas aparentemente nenhum
escravo de origem africana. No entanto, duas décadas depois, a presença desses cativos na
região saltou de zero para 30 mil. Outro exemplo pode ser dado a partir da descoberta de ouro
em Minas Novas. Passados três anos dos primeiros achados, essa localidade já apresentava uma
população de cerca de 40 mil pessoas, somando brancos e escravos negros.6 Como
consequência desse desenvolvimento econômico, Minas Gerais tornou-se a capitania mais
populosa da América portuguesa, reunindo quase 320 mil habitantes, em 1776.7
6
Ibid., p. 494-495.
7
ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia (1750-1808). In: BETHELL, Leslie. Op. cit., p. 529.
8
CARRARA, Ângelo A. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1997; FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do
comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 197-216.
9
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit, p. 502.
10
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas
no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 85.
32
crescente população em ambas as capitanias também marcou a conjuntura econômica do Rio de
Janeiro na primeira metade do setecentos, fazendo surgir importantes fortunas em todas as
etapas desta mencionada rede de comércio.11
(…) as minas atuaram como estímulos não só para a agricultura da Bahia, mas também
para a do Rio de Janeiro e de São Paulo. A indústria do gado da Bahia, do Piauí, do
Ceará, de Pernambuco e do Maranhão responderam ao aumento da procura em Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso com o crescimento da produção. Os criadores de gado do
Sul, de Curitiba a São Pedro do Rio Grande, forneceram gado para as minas por
intermédio dos paulistas. O ouro criou, portanto, novos centros de produção e de
consumo, ao mesmo tempo em que estimulou a produtividade das regiões mais
tradicionais de oferta.13
11
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op. cit.
12
Conforme as estatísticas históricas do IBGE, a população total da colônia em 1800 teria sido de 3,6 milhões. No
entanto, segundo Dauril Alden, por volta daquele ano ela não teria atingido os 3 milhões. (IBGE. Estatísticas
históricas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1990, 2ª. ed., p. 30; ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 536).
13
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 523.
33
eram capazes tanto de aliar-se quanto de engalfinhar-se em disputas por gado, território e
motivos diversos. Conforme Hameister, suas relações eram de tal forma emaranhadas que é
difícil dizer o que era o Rio Grande e o que era a Banda Oriental naquela época.14
14
HAMEISTER, Martha D. Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a
partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006, p.
58-71; HAMEISTER, Martha D. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e
suas mercadorias semoventes (c. 1727 – c. 1763). Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2002, p. 244.
15
Idem, 2002, p. 18.
16
HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2002, 2006; GIL, Tiago. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios do
Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009; OSÓRIO, Helen. O império português no sul
da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007; KUHN, Fábio. Gente da
Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. Tese de Doutorado, UFF,
2006.
34
agropecuária no centro-sul da Colônia tivesse ocorrido durante o período.17 Como demonstrou
Tiago Gil, na passagem do século XVIII para o XIX, os negócios envolvendo as tropas de
animais entre os caminhos de Viamão, Curitiba e Sorocaba, ainda mantinham importância. No
entanto, os mesmos estavam se tornando claramente menos rentáveis se comparados aos
galpões de charquear e ao comércio marítimo, pois ambos vinham entrando em uma nova fase
de desenvolvimento nas últimas décadas do setecentos.18
A ideia de que o chamado “ciclo do ouro” nas Minas Gerais havia deslocado braços e
capitais ao ponto de diminuir profundamente a produção agrícola da colônia e de que, com a
posterior crise da mineração, a capitania teria entrado em uma franca decadência econômica já
foi superada há muitos anos pela historiografia. 19 Na segunda metade do setencentos, Minas,
que já possuía uma vigorosa rede de abastecimento interna, teria reorientado mais ainda a sua
economia para o comércio de alimentos, tornando-se a grande fornecedora destes gêneros ao
Rio de Janeiro.20 Portanto, não teria ocorrido uma crise na capitania, como defendeu Celso
17
Conforme Petrone, entre 1750 e 1780, passaram cerca de 5 mil cabeças de gado anualmente no Registro de
Sorocaba. Entre 1780 e 1820, esta média dobrou para 10 mil e no início dos anos 1820, ela já era de quase 30 mil.
PETRONE, Maria Thereza S. O Barão de Iguape. São Paulo, 1976, p. 20-24.
18
GIL, Tiago. Op. cit., p. 354. Segundo Hameister, o advento das charqueadas litorâneas não encerrou o comércio
de tropas para Sorocaba. É demasiado simplista achar que houve um “ciclo” das tropas substituído por um “ciclo”
do charque. Ambos os espaços de troca, um terrestre e o outro marítimo, existiram de forma concomitante,
constituindo-se em circuitos mercantis distintos. (HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2002, p. 209).
19
Ver, por exemplo, CARRARA, Ângelo A. Minas e Currais: produção rural e mercado interno em Minas
Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2007; FURTADO, Júnia F. Op. cit.; ALMEIDA, Carla M. C.
Alterações nas unidades produtivas mineiras. Mariana (1750-1780). Dissertação de Mestrado, UFF, 1994.
20
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação (o abastecimento da Corte na formação política do Brasil – 1808-
1842). Rio de Janeiro: SMC, 1993; FRAGOSO, João L. R.. Homens de grossa aventura – Acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
35
Furtado.21 Um dos indícios mais fortes do mencionado desenvolvimento econômico foi o fato
de que a população mineira manteve índices de crescimento bastante altos na segunda metade
do século XVIII. Entre 1776 e 1821, por exemplo, ela aumentou 60% (de 319.769 para 514.104
habitantes). A comarca do Rio das Mortes, onde a agropecuária voltada para o abastecimento
interno era o principal setor econômico, houve um crescimento de 82.781 para 213.617 pessoas.
Como resultado deste vigoroso comércio, e tendo em vista que a lavoura de gêneros era
genuinamente escravista, Minas tornou-se a capitania com o maior número de escravos no
início do oitocentos.22
21
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1998.
22
MARTINS, Roberto Borges. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. In: SZMRECANYI,
Tamás; LAPA, José Roberto Amaral (Org.). História econômica da Independência e do Império. São Paulo:
Hucitec, 1996, p. 99-130; FRAGOSO, João. Op. cit.
23
PESAVENTO, Fábio. O colonial tardio e a economia do Rio de Janeiro na segunda metade dos Setecentos
(1750-1790). In: Estudos Econômicos, v. 42, n. 3, 2012, p. 581-614.
24
Conforme Sampaio, se houve uma crise no setor açucareiro fluminense na primeira metade do setecentos, esta
foi compensada pelo rápido aumento da agricultura alimentar. “Logo, a recuperação do setor açucareiro na
segunda metade do século XVIII deve ser colocada em perspectiva. A sua expansão não somente não se deu sobre
uma ‘terra arrasada’, como também não representou a retração da produção de alimentos, que, mesmo com a
decadência dos circuítos auríferos, continuou encontrando um importante mercado para seus produtos na nova
capital da colônia” (SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op. cit., p. 133).
36
das exportações em todas as regiões do Brasil. Em outras palavras, a agricultura de alimentos
continuou sendo praticada, mas ampliou-se de forma notável nas últimas décadas do setecentos.
Nesta mesma época, aumentaram as exportações de diversos produtos e, com os incentivos
políticos do Reino, ocorreu uma importante diversificação da pauta dos produtos cultivados.
A Revolução Industrial, que tinha nas fábricas de têxteis o seu carro-chefe, fez aumentar
a demanda do produto estimulando a sua plantação não apenas no Maranhão, como também em
outras localidades do Atlântico. Neste processo, o sul dos Estados Unidos foi o principal
cenário da expansão da lavoura algodoeira. “Embora estivessem em sua infância, as plantations
de algodão dos Estados Unidos elevaram sua produção de 2 milhões de libras-peso para 48
milhões durante a década de 1790”. Tal incremento das exportações deu-se sobre uma notável
estrutura agrário-escravista colocando as plantations norte-americanas numa posição de
destaque da economia internacional. 26 Além disso, a industrialização britânica foi igualmente
favorável aos couros, que também alimentavam os setores artesanais e fabris europeus como
matéria-prima e ainda eram utilizados como correia nos maquinários. Entre 1804 e 1807, em
plena fase de aceleração do processo de montagem das charqueadas pelotenses, os couros foram
responsáveis por 32,6% do total das exportações brasileiras para Portugal, perdendo somente
25
Conforme Hobsbawm, a expansão da indústria algodoeira foi tão forte que acabou dominando os movimentos da
economia britânica. A quantidade de algodão em bruto importada pela Grã-Bretanha aumentou de 11 milhões de
libras (peso) em 1785 para 588 milhões em 1850, enquanto a produção de tecidos saltou de 40 milhões para 2
bilhões de jardas, no mesmo período (HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa (1789-1848). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2009, p. 64).
26
Em 1790, havia 658 mil escravos nos estados do sul, quase o dobro de duas décadas antes. Em 1810, o número
de escravos na mesma região já havia chegado a 1.164.000 cativos, ou seja, continou crescendo no mesmo ritmo e
no mesmo intervalo de tempo (BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco
ao Moderno (1492-1800). Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 585-586).
37
para o açúcar.27 Pode-se dizer que os couros provinham de diferentes regiões da Colônia, mas
grande parte deles era produzida no Rio Grande do Sul, onde os rebanhos bovinos abundavam e
a matança acentuou-se ainda mais com a instalação das primeiras charqueadas.
27
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo
Regime português. Porto: Afrontamente, 1993, p. 42. Nos outros anos, apesar de não ser o segundo produto, eles
sempre ocuparam uma posição privilegiada.
28
Contudo, somente no ano de 1790 o couro teve um valor exportado superior ao do charque. Nos anos
posteriores, até 1820, o charque sempre apresentou maiores valores, chegando a 44% dos totais exportados em
1808 e 63,2%, em 1819. OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 190-195.
29
OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 202-205.
30
ARRUDA, José Jobson. A abertura dos portos e a ruptura do sistema colonial luso-brasileiro. In: COUTO,
Jorge. Rio de Janeiro: capital do Império português (1808-1821). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 ,
p. 105.
38
que incluiu os couros rio-grandenses no comércio atlântico, incorporou estes mesmos produtos
exportados por Montevidéu e Buenos Aires, como se verá nos capítulos posteriores.
Açúcar e café, por sua vez, formavam uma combinação que vinha se popularizando
entre os consumidores das margens do Atlântico, chegando cada vez mais às mesas das classes
trabalhadoras européias e norte-americana. Ambos os produtos tiveram sua demanda
aumentada não apenas pelo crescimento da população nas grandes cidades, mas também pelo
estímulo dos patrões e autoridades públicas com fins de substituir o consumo de bebidas
alcoólicas – condenadas pela nova ordenação moral que vinha enquadrando os trabalhadores
das fábricas. 31 Outro fator que pesou de forma significativa no aumento das exportações de
ambos os produtos foi a grande revolta escrava na colônia francesa de Santo Domingo, em
1791. A rebelião acabou por tornar-se um movimento de independência que durou cerca de 10
anos. A ilha antilhana, que era a maior produtora mundial de açúcar e café da década de 1780,
foi praticamente eliminada como exportadora destes produtos. Conforme Schwartz, tal
acontecimento favoreceu o surgimento de uma imensa demanda que estimulou não apenas o
setor açucareiro no Brasil, como também em outras áreas do Atlântico, como Cuba, Porto Rico
e Luisiana, “produtores até então relativamente secundários”. 32
Assim sendo, para entender melhor como a expansão das áreas de agro-exportação
brasileiras acabou favorecendo a formação do complexo charqueador escravista pelotense é
necessário examinar o desempenho dos principais produtos exportados na época, além da
relação entre o comércio de abastecimento e a agroexportação no período. Começo pelo
algodão. Ainda que nativo do Brasil e já conhecido pelos indígenas, foi somente em 1760,
quando a Companhia do Maranhão começou a realizar pequenas aquisições, que o mesmo
passou a ser cultivado com propósitos comerciais. Na década de 1770, seu plantio alcançou o
Pará, o Ceará e o Pernambuco, concentrando-se nas terras litorâneas entre os dois últimos. Nos
anos 1780, a cultura do algodão deslocou-se da costa para o sertão, onde expandiu-se para o
interior da Bahia e do Pernambuco, Piauí, Goiás, chegando até Minas Gerais. No entanto, nesta
fase inicial, a expansão algodoeira escravista animou mais os produtores das capitanias do
nordeste, com destaque para o Maranhão, o Ceará e o Pernambuco. Um dos principais motivos
31
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano: La expansión
ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003, p. 146. A “peste da embriaguez” foi um dos grandes
problemas das classes trabalhadoras durante o processo de industrialização e o aumento populacional nas cidades
fabris que marcou as primeiras décadas da Revolução Industrial na Inglaterra. A hostilidade a tal fenômeno social
era compartilhado não apenas pelos patrões como também pelos movimentos trabalhistas ingleses (HOBSBAWM,
Eric. Op. cit., 2009, p. 282-283).
32
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p . 343.
39
foi o apoio governamental dado aos produtores destas regiões, por meio da formação das
companhias monopolistas, da introdução de escravos africanos, do acesso ao crédito e a
melhores técnicas agrícolas, o que favoreceu o desenvolvimento do setor.33
No entanto, o desenvolvimento algodoeiro também foi estimulado pela alta dos preços
do produto no mercado europeu. A rápida expansão da indústria têxtil, especialmente na
Inglaterra e na França, possibilitada por uma revolução tecnológica sem precedentes, fez
crescer a demanda por fibras de alta qualidade para a fabricação de tecidos finos. Embora a
maior parte do algodão brasileiro fosse de baixa qualidade, parte do cultivo em Pernambuco e
na Paraíba estava entre os melhores do mercado e Portugal os remetia para os seus principais
clientes. A guerra de independência dos Estados Unidos (1776-1783), cujas exportações de
algodão para a Inglaterra correspondiam a 70% do equivalente exportado pelo Brasil, e a
consequente paralização do seu setor algodoeiro, também contribuíram com o aumento das
exportações.34 Entre 1776 e 1807, 55,4% do algodão brasileiro teve como destino a Inglaterra e
31,2% a França. Depois disso, o algodão teve mais duas décadas de florescimento, mas nos
anos 1820 iniciou seu declínio diante da concorrência norte-americana, cuja tecnologia era mais
avançada.35
33
O arranque inicial foi surpreendente. Entre 1760 e 1771, as exportações de algodão no Maranhão passaram de
651 para 25.473 arrobas. Até a década de 1820, o algodão foi responsável por 73% a 82% das exportações
maranhenses (BARBOSA, Francisco B. da Costa. Relações de produção na agricultura: algodão no Maranhão
(1760 a 1888) e café em São Paulo (1886 a 1929). In: Agricultura em São Paulo, v. 52. N. 2, 2005, p. 18-19).
34
BARBOSA, Francisco. Op. cit., p. 18.
35
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 569.
36
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 560; FRAGOSO, João. Op. cit.
37
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 557-558.
40
século, atingindo outras áreas para além do Recôncavo e, em 1820, já contava com 500
unidades produtivas. Segundo Schwartz, entre 1817 e 1828, foram instalados 110 novos
engenhos e, na década de 1830, entraram em operação mais 220. Mesmo que muitos deles
tenham parado de funcionar, o crescimento foi notável e, em 1836, Bahia e Sergipe juntas
possuíam 603 unidades. No entanto, em Pernambuco o desenvolvimento do setor foi ainda
maior, apresentando cerca de 500 engenhos em 1818 e 712 em 1844. 38
Em São Paulo, a expansão açucareira aconteceu mais tardiamente, tendo se iniciado nos
anos 1780 e ganhado força na década seguinte. Antes disso, a produção paulista era destinada
principalmente para o consumo local, onde servia para a fabricação de melaço, aguardente e
rapadura.39 Com a conjuntura favorável (preços atraentes e a construção do caminho do mar), a
capitania inseriu-se de vez nos mercados internacionais, entrando numa nova fase de
desenvolvimento econômico. A população paulista cresceu 150% entre 1765 e 1808 e, no
período de 1797 a 1826, as suas exportações de açúcar aumentaram mais de 5 vezes. 40 As duas
principais áreas de cultivo eram a costa norte de Santos e o quadrilátero definido pelas vilas de
Sorocaba, Piracicaba, Mogiguaçu e Jundiaí. O açúcar tornou-se o líder das exportações
paulistas até 1850-1851, quando foi ultrapassado pelo café.41
O café, por sua vez, ingressou numa fase de aceleração e expansão agrária na passagem
do século XVIII para o XIX. O produto atingiu níveis de exportação extraordinários a partir dos
anos 1830, quando ultrapassou o açúcar na condição de principal mercadoria exportada pelo
Brasil. Durante este processo de ampliação da lavoura cafeeira, apesar da Bahia também
exportar quantidades consideráveis, o vale do Paraíba (fluminense e paulista) constituiu-se na
principal área produtora. No Rio de Janeiro, teve localidades que cresceram enormemente em
poucos anos, como a freguesia de São Pedro e São Paulo, depois vila de Paraíba do Sul, que em
1789 contava com 292 habitantes e cerca de meio século depois chegou a 14 mil. 42 Em São
Paulo, a lavoura cafeeira começou a se expandir a partir do meado da década de 1810. O
município de Areias, no Vale do Paraíba, foi o principal centro produtor, seguido por Lorena,
Guaratinguetá e Bananal, localidades que foram se desmembrando da primeira. Em 1836, cerca
de 2/3 da produção cafeeira paulista provinha do Vale do Paraíba. Em 1854, a Província
38
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 343-346; EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria
açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 147.
39
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia escravista de São Paulo, de 1750 a
1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 55-56.
40
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 135.
41
ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 560).
42
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 365-366.
41
possuía 2.600 fazendas de café com 54 mil escravos – muito mais que os 10 mil cativos nas
unidades cafeicultoras de 1829.43
Na mesma época, a Bahia recebeu 395.138 escravos africanos. Pernambuco, por sua
vez, importou, entre 1790 e 1830, cerca de 242.150 escravos no tráfico atlântico. Conforme
Matthias Assunção, o Maranhão teria recebido, por intermédio da Companhia Geral de
Comércio, 12 mil escravos africanos, entre 1755 e 1778. Contudo, após esta data, devido ao
boom do algodão, teriam entrado mais 100 mil escravos na região, o que tornou-a, em 1819, a
capitania com o maior percentual de cativos com relação a sua população total. 46 Observe-se
que a soma das entradas de escravos nestas três capitanias do nordeste ultrapassa os cerca de
700 mil cativos que teriam desembarcado no porto do Rio, na mesma época.
É necessário afirmar que nem todos os escravos desembarcados nos portos acima
mencionados eram destinados para as regiões de plantations e muitos eram reexportados para
outras capitanias vizinhas. Não tenho dados para estas negociações no nordeste, mas a análise
do mesmo fenômeno no centro-sul ajuda a exemplificar estas transações. Segundo a estimativa
de Fábio Pinheiro, numa amostra de 231.808 escravos redistribuídos pelo porto do Rio entre
1809 e 1830, cerca de 40% dos mesmos tinham como destino Minas Gerais, 36% o Rio de
Janeiro, 15,5% São Paulo e 8,5% o Rio Grande do Sul. 47
Portanto, as dezenas de milhares de africanos que desembarcaram pelo porto do Rio não
abasteceram somente a província fluminense, mas toda a região centro-sul, e não apenas as suas
43
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit., p. 84-88.
44
FRAGOSO, João L. R.; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (c. 1750 – c. 1840). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p. 93.
45
Ibid., p. 95.
46
ASSUNÇÃO, Matthias. A memória do tempo de cativeiro no Maranhão. Revista Tempo, v 15, n 29, 2010, p. 69.
47
PINHEIRO, Fábio. O tráfico atlântico de escravos na formação dos plantéis mineiros, Zona da Mata (c.1809-
c.1830). Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2007, p. 79; PINHEIRO, Fábio. Os condutores de almas africanas:
concentração e famílias no tráfico de escravos para Minas Gerais. C. 1809-C. 1830. In: XIII Anais do XIII
Seminário sobre a Economia Mineira, 2008, p. 2.
42
plantations, mas também as lavouras de gêneros alimentícios, as regiões de criação de gado e as
suas principais vilas e cidades. É importante fazer esta ressalva, pois durante muito tempo se
acreditou que o tráfico atlântico atendia somente às necessidades das plantations coloniais. Nas
últimas décadas, a historiografia brasileira tem demonstrado que as áreas voltadas para o
abastecimento de alimentos concentravam uma grande fatia da mão de obra cativa. Em São
Paulo, por exemplo, 81% dos proprietários de escravos arrolados nas listas de habitantes da
primeira década do oitocentos eram lavradores não ligados à agroexportação. 48 No geral, entre
1798 e 1828, somente 2,5% dos chefes de domicílio paulistas eram senhores de engenho e mais
de 60% deles eram lavradores e/ou criadores que destinavam grande parte da sua produção ao
mercado interno.49
Nesta mesma época, o Paraná (que ainda pertencia ao território paulista) também
constituiu-se numa importante área de pecuária, reunindo pequenos, médios e grandes
criadores, com notável uso de mão de obra cativa.50 Além disso, como as tropas de gado que
seguiam do Rio Grande do Sul para São Paulo precisavam parar ao longo do trajeto para
recuperar o peso perdido, os campos paranaenses tornaram-se importantes espaços de
invernada, gerando lucros aos proprietários da região. Orbitando os campos de criação, havia
centenas de sítios que cultivavam milho, feijão, arroz e trigo, remetendo seus excedentes para
os mercados paulistas e fluminenses.51
A produção rio-grandense será tratada mais adiante, mas não custa lembrar que no
período analisado ela foi a maior produtora de charque da colônia, destacando-se também nas
exportações de trigo.52 Santa Catarina, por sua vez, também apresentou uma importante
pecuária, embora tenha se destacado mais na produção de farinha de mandioca. As entradas
deste produto no porto do Rio, apresentaram um aumento de 307% para o período entre 1799 e
1822. Entre 1799 e 1811, as receitas provenientes das entradas de naus com charque e farinha
48
Os principais gêneros cultivados e comercializados eram o milho, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca e o
toucinho. Conforme Luna e Klein, “em 1804, o elevado porcentual de 86% dos agricultores proprietários de
escravos dedicava-se à produção de “alimentos”; tais produtores controlavam 70% dos escravos pertencentes aos
agricultores. Em 1829, aproximadamente três quartos dos proprietários de cativos ocupados na agricultura
declararam esses produtos, e seus escravos compunham cerca da metade da força de trabalho cativa empregada na
agricultura. Nesse mesmo ano, se incluirmos todos os proprietários de escravos, mesmo os que não se dedicavam à
agricultura, os que produziam ‘alimentos’ ainda compunham metade do total de senhores e controlavam 40% dos
escravos” (LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbet. Escravidão africana na produção de alimentos. São Paulo no
século XIX. In: Estudos Econômicos, v. 40, n. 2, 2010, p. 297).
49
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 135-137.
50
GUTIÉRREZ, Horácio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topói, v. 5, jul-dez, 2004, p. 102-127.
51
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 144-146.
52
Como já demonstraram OSÓRIO, Helen. Op. cit.; SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do
Rio Grande do Sul, século XVIII. São Paulo, Editora Nacional, 1984; CORSETTI, Berenice. Estudo da
charqueada escravista gaúcha no século XIX. Dissertação de Mestrado, UFF, 1983.
43
cresceram, respectivamente, 4% e 10% anualmente. 53 O charque e a farinha, como é sabido,
eram componentes básicos da dieta das camadas populares livres e dos escravos.
O mesmo ocorreu com o tráfico atlântico, que após a abertura dos portos, em 1810, viu
as suas entradas praticamente dobrarem. Entre 1799 e 1821, a população da Corte aumentou em
160% e, em 1830, cerca de 16.807 escravos perfaziam 43% da população urbana. 55 Portanto, o
Rio de Janeiro havia se tornado um mercado com enorme capacidade de consumo de alimentos,
estimulando a produção e o comércio de abastecimento não apenas nos municípios fluminenses,
como também das capitanias vizinhas e até mesmo de outros países. Nesta época, mas
sobretudo no meado do oitocentos, argentinos e uruguaios, também grandes produtores de
charque, disputaram de forma acirrada com os sul-rio-grandenses o mercado consumidor
fluminense, como demonstrarei em capítulos posteriores.
Foi neste contexto envolvendo o crescimento populacional fluminense que Minas Gerais
se consolidou como uma das grandes produtoras de alimentos do centro-sul. Desde os escritos
de Alcir Lenharo, passando por outros importantes historiadores, a imagem de Minas Gerais
como uma economia decadente, no intervalo entre a crise da mineração e a expansão cafeeira,
foi sendo substituída por um outro quadro economicamente mais complexo e dinâmico. 56 As
principais contribuições destes autores foi demonstrar que uma economia não exportadora,
baseada no comércio de alimentos para o mercado interno, tanto no interior de Minas, quanto
para outras localidades, como a Corte, também podia possibilitar uma notável acumulação
53
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 95-96; 111.
54
LENHARO, Alcir. Op. cit.
55
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 93-95.
56
MARTINS, Roberto. Op. cit.; ALMEIDA, Carla. Op. cit.; CARRARA, Ângelo. Op. cit.; SLENES, Robert. Os
múltiplos de porcos e diamantes: E economia Escrava de Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos. São
Paulo. V. 18, n. 3. p. 449- 495. Set.-dez. 1988; PAIVA, Clotilde. População e economias Minas Gerais do século
XIX. Tese doutorado. USP,1996; LIBBY, Douglas. Transformação e Trabalho em uma economia escravista.
Minas Gerais século XIX. São Paulo. Brasiliense: 1988; GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste
e o Mito da decadência de Minas Gerais. São João Del Rei (1831-1888). Editora Annablume. São Paulo. 2002.
44
mercantil que favoreceu o tráfico de escravos para a região, tornando-a a província com o maior
número de cativos no Império.57 Além da cultura do milho, Minas destacou-se bastante pela sua
exportação de toucinho. O incremento de sua economia no colonial tardio possibilitou o
surgimento de uma elite regional ligada ao comércio de abastecimento e que teve importante
proeminência política e econômica ao longo do oitocentos.58
Como foi mencionado, este mosaico também envolvia o Rio Grande do Sul, que, por
conta das remessas de couros e charque e do crescente consumo de bens manufaturados,
constituiu-se num dos maiores parceiros comerciais do Rio de Janeiro. “Somente a soma das
reexportações de tecidos do Rio para o Rio Grande do Sul em 1810, 1811 e 1812
(1:602:984$910 réis) correspondia a 52% de tudo que se importou de Portugal ao longo destes
três anos”. As divisas deste comércio provinham das crescentes quantias de trigo, couros e
charque que o Rio Grande vinha exportando desde os fins do setecentos. Entre 1799 e 1822, por
exemplo, as exportações de charque do Rio Grande para o Rio cresceram 249%.60
57
Uma revisão mais aprofundada da contribuição destes e de outros autores pode ser vista em ANDRADE,
Leandro Braga. A formação econômica de Minas Gerais e a perspectiva regional: encontros e desencontros da
historiografia sobre os séculos XVIII e XIX. Caderno Caminhos da História, v. 6, p. 1-19, 2010.
58
Ver, por exemplo, LENHARO, Alcir. Op. cit.; ANDRADE, Marcos F. de. Elites regionais e formação do
Estado imperial brasileiro: Minas Gerais, Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2007; RESENDE, Edna. Ecos do Liberalismo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção
do Estado Imperial, Barbacena (1831-1840). Tese de Doutorado PPG-História da UFMG, 2008.
59
FRAGOSO, João L. R. Algumas notas sobre a noção de “colonial tardio” no Rio de Janeiro: um ensaio sobre a
economia colonial. Locus - Revista de História, Juiz de Fora, v. 6, n. 10, 2000.
60
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 95-96.
45
colônia, pesquisas posteriores ao modelo oferecido por Fragoso colocaram o comércio do Rio
Grande do Sul numa posição menos circunscrita ao mercado consumidor fluminense, no que
diz respeito, ao menos, às exportações de charque. Conforme Helen Osório, entre 1802 e 1819,
a Bahia foi a maior compradora do charque sulino, tendo sido ultrapassada pelo Rio em 1820-
1821. No entanto, somadas as exportações para a Bahia e o Pernambuco nestes dois últimos
anos, constata-se que o Rio não foi responsável pela maior parte do charque exportado.
Portanto, neste período os portos do nordeste sempre foram os compradores da maior parte do
charque fabricado no Rio Grande.61
Examinando outros dados estatísticos para as décadas 1820 e 1840, verifiquei que esta
tendência se manteve ao longo do período, ou seja, mesmo com o café ultrapassando o açúcar
na pauta das exportações brasileiras, o charque rio-grandense continuou tendo seu principal
mercado consumidor nas plantations açucareiras do nordeste.62 Tais índices, no entanto, apesar
de demonstrarem uma maior autonomia da economia charqueadora em relação ao Rio de
Janeiro, não desatam o Rio Grande dos mecanismos de acumulação internos e das redes de
abastecimento do centro-sul. Se as exportações de charque não tiveram o Rio como principal
mercado, as remessas de couro foram quase que exclusivamente direcionadas para o sudeste e
as importações rio-grandenses, de manufaturados, mas, principalmente de escravos, tinham na
praça carioca o seu principal centro de fornecimento.63 Portanto, o Rio era e continuou sendo o
principal parceiro comercial do Rio Grande, mas quando se tratava de negócios envolvendo o
charque outras regiões se apresentavam como as principais compradoras do produto. Esta
constatação é de grande importância para a análise da formação e da decadência do complexo
charqueador escravista pelotense, mas, por enquanto, observarei a primeira etapa mencionada.
61
OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 200.
62
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Fundo Fazenda, m. 482.
63
Como demonstraram OSÓRIO, Helen. Op. cit.; BERUTE, Gabriel S. Dos escravos que partem para os portos
do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790- c. 1825. Dissertação de
Mestrado. PPG-História da UFRGS, 2006.
46
Pernambuco, por exemplo, constituíram-se em produtoras de alimentos tanto para as vilas e
cidades próximas, quanto para as grandes unidades escravistas açucareiras.
64
BARICKMAN, Bert. Op. cit., p. 301-303.
65
VERSIANI, Flávio; VERGOLINO, José Raimundo. Riqueza no Agreste e Sertão de Pernambuco (1777-1887).
Estudos econômicos, São Paulo, v. 33, n. 2, abr-jun, 2003, p. 353-393.
47
mercado internacional sem deixar de ser uma grande produtora de alimentos, esboçando uma
estrutura agrária mais equilibrada com relação a isto.66
Tendo em vista que os grandes plantadores paulistas não abriram mão da produção de
gêneros para o abastecimento, pode-se deduzir que as suas áreas reservadas para o plantio da
cana também possuíam dimensões menores. Isto pode ajudar a explicar os ritmos de produção
de ambos os setores agroexportadores. De acordo com Schwartz, a produção açucareira de São
Paulo era minúscula se comparada à nordestina. Em 1808, por exemplo, a Bahia exportou 20
mil caixas de açúcar, Pernambuco 14 mil, o Rio 9 mil e São Paulo apenas 1 mil. 71 O número
levemente superior de engenhos e a maior média de cativos por unidade induz a pensar que as
capitanias do nordeste possuíam uma maior proporção de escravos nas áreas açucareiras do que
as do sudeste.72 Soma-se a isso o fato de que mesmo com o boom do tráfico na década de 1810,
a população cativa do sudeste não superou a do nordeste no período. De acordo com a Tabela
1.1, enquanto o nordeste (incluindo a Bahia) concentrava 51,2% dos escravos, o sudeste detinha
66
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit. 2010, p. 312.
67
Idem., 2005, p. 63-67.
68
EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 169.
69
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988.
70
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
71
No entanto, o açúcar compunha a metade das exportações paulistas (SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 347).
72
Além disso, no Rio de Janeiro as fazendas de café já estavam se proliferando pelo Vale do Paraíba, atraindo
muitas levas de escravos, inclusive dos engenhos.
48
37,2% dos mesmos. Conforme Fragoso, este perfil demográfico só se alternaria na passagem da
primeira para a segunda metade do século XIX.73
73
FRAGOSO, João Luis. O Império escravista e a República dos plantadores: a economia brasileira no século
XIX: mais do que uma plantation escravista exportadora. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do
Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
74
Ver, para isso, REIS, João José; AGUIAR, Márcia G. D. de. “Carne sem osso e farinha sem caroço”: o motim de
1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História, São Paulo, n. 135, 2º sem., 1996, p. 133-160; SOUSA,
Avanete Pereira. Poder local, crises de subsistência e autonomia camarária (Salvador, século XVIII). Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, 2011, p. 1-10; SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988.
49
fundamental importância para a compreensão do presente objeto de pesquisa, pois abriu um
espaço de consumo notável para o charque sul-rio-grandense.
Até a década de 1780, as unidades açucareiras do nordeste contaram com uma pujante
rede mercantil que as abastecia de carne-seca. Não custa lembrar que este produto constituia-se
na principal proteína na dieta dos escravos e que as unidades açucareiras nordestinas, onde
praticamente não se produzia alimentos e concentravam-se as maiores escravarias da colônia,
formavam um espaço econômico cujo potencial de consumo era notável. Durante todo o século
XVII e as primeiras décadas do XVIII, o abastecimento de carne tanto das vilas litorâneas
quanto dos engenhos de açúcar era realizado quase que exclusivamente por meio do comércio
de tropas que atravessavam o sertão em direção às regiões de consumo, complementando a
produção local. Nesta rota terrestre, Goiás, Piauí, Ceará e o interior da Bahia e de Pernambuco
foram os principais espaços pecuaristas fornecedores de gado.75
75
GIRÃO, Valdelice C. As charqueadas. Revista do Instituto do Ceará, 1996, p. 71-92; ROLIM, Leonardo.
“Tempo das carnes”: no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa
Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012; REGO, Júnia Napoleão do. Dos
sertões aos mares: história do comércio e dos comerciantes de Parnaíba (1700-1950). Tese de Doutorado, UFF,
2010; BARICKMAN, Bert. Op. cit., p. 90.
76
No Ceará, o Vale do Jaguaribe tornou-se o principal núcleo de fabricação de carne-seca, envolvendo as
localidades de Icó, Granja, Sobral, Camocim e Aracati. No Piauí, destacou-se a vila de Parnaíba, como a principal
produtora. Para ela eram encaminhados os numerosos rebanhos da capitania, além de tropas vindas do Maranhão.
No Rio Grande do Norte, Assú e Mossoró também tiveram suas oficinas, mas destacaram-se muito mais como
fornecedoras de sal do que de carne-seca (ROLIM, Leonardo. Op. cit.; GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; REGO, Júnia
do. Op. cit). Conforme Rolim, o surgimento das oficinas no sertão não excluiu a permanência do comércio de
tropas para o litoral (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 68).
77
CARRARA, Ângelo. Op. cit.
50
beneficiou todos os setores econômicos desde a criação dos animais até os consumidores.78
Com o surgimento das oficinas, os fazendeiros não precisavam mais encaminhar seus rebanhos
em custosas viagens que duravam dias e que eram danosas demais para os animais. Além disso,
o ritmo de abate das oficinas garantia a regularidade da demanda e bons preços pagos pelo
gado. Os proprietários das charqueadas, por sua vez, tinham um acesso facilitado tanto aos
rebanhos, quanto às vias fluviais, além de poderem contar com um mercado consumidor
estável. Os comerciantes, dentre os quais estavam muitos dos próprios charqueadores,
garantiam o fornecimento de mão de obra cativa, de sal (vindo, principalmente, do Rio Grande
do Norte) e expandiam seus negócios cada vez mais, levando os carregamentos, inclusive, até o
Rio de Janeiro. Na ponta final da cadeia, os senhores de engenho alimentavam a sua escravaria
com um produto barato, pronto para o consumo e com melhores condições de conservar-se
estocado. Além disso, as populações mais pobres também eram atendidas pelo produto. Estes
complexos charqueadores nordestinos funcionaram bem por cerca de 50 anos, trazendo grande
prosperidade para as suas regiões de produção.79
Valdelice Girão considera que não foram somente as secas as responsáveis pela
decadência da indústria de carne-seca cearense. Quando os reveses causados pelas secas foram
78
Conforme Leonardo Rolim, é provável que nas primeiras décadas de funcionamento das oficinas a mão de obra
utilizada fosse a indígena. Com a proibição da escravização do indios, em 1759, e o consequente auge das
exportações de carne-seca, grandes levas de escravos teriam sido remetidas para o Ceará fazendo com que a sua
população ultrapassasse a do Rio Grande do Norte e a da Paraíba, entre as décadas de 1760 e 1770. A mão de obra
escrava era combinada com o uso de trabalhadores livres (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 129-133).
79
Sobre a ostentação de riqueza dos proprietários ver GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; REGO, Júnia do. Op. cit.
80
Além dos baixos preços pagos pelo charque no Rio, os comerciantes rio-grandenses reclamavam do monopólio
praticado pelos cariocas e da precária distribuição na cidade e nos seus subúrbios, fazendo com que o produto se
acumulasse nos armazéns (OSÓRIO, Helen. Op. cit.).
51
superados, um outro processo de expansão agrícola já havia se iniciado naquelas paragens. A
febre do algodão nas terras ao norte da colônia, motivada pelos altos preços alcançados pelo
produto no mercado europeu (eles chegaram a dobrar, entre 1770 e 1800), despertou o
interesse de muitos fazendeiros. Por conta disso, os lucros com o cultivo do algodão passaram a
ser maiores do que os obtidos com o açúcar, fazendo com que muitos plantadores migrassem de
cultura.81 No Ceará, o mesmo teria ocorrido com relação à pecuária, pois o cultivo do algodão
começou a tomar o espaço dos antigos currais. Somado aos altos preços do algodão, tem-se
ainda o fato de que os investimentos nesta lavoura exigiam baixos custos e uma menor mão de
obra se comparados ao açúcar. Além do mais, o algodão convivia muito bem com o plantio de
outros gêneros alimentícios, o que não comprometia em demasia a subsistência local. Com a
expansão das fazendas de algodão e a consequente diminuição das áreas de pastagens, teria
havido uma queda da oferta de gado para o comércio, ao ponto de desestimular novos
investimentos e inviabilizar a recuperação da já arruinada indústria da carne-seca.82
81
RIBEIRO JR., José Ribeiro. A economia algodoeira em Pernambuco: da Colônia à Independência. Revista
Brasileira de História. São Paulo, set. 1981, p. 235-242. Tal fenômeno fez com que, em Pernambuco, o valor das
exportações algodoeiras chegassem a ultrapassar os altos índices atingidos pelo açúcar (ALDEN, Dauril. Op. cit.,
p. 564-568). A expansão algodoeira em Pernambuco e nas capitanias vizinhas fez aumentar a demanda por carne-
seca. Mas antes disso, teve um efeito perverso, pois braços e terras antes destinados à lavoura de gêneros, entraram
no ciclo do algodão provocando crises alimentares na região (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 182-183).
82
GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 179-180.
83
Conforme Júnia do Rego, na década de 1780, as regiões que concentravam a produção do charque no Ceará
abatiam uma média anual de 50 mil cabeças de gado, enquanto Parnaíba, no Piauí, destinava 40 mil reses para o
mesmo fim (REGO, Júnia do. Op. cit). Um atento observador declarou que o gado na Ilha de Marajó rendia 3
52
sobre a expansão do setor no colonial tardio, “excluído o rush do ouro, não se assistira ainda na
colônia a tamanho desdobramento de atividades”. 84 Além disso, o circuíto mercantil Rio
Grande do Sul – Bahia – Pernambuco era estimulado pelos próprios comerciantes dos portos de
Salvador e Recife, que aproveitavam as embarcações vindas do Sul para carregá-las de açúcar,
fumo, aguardente, escravos e sal, com destino ao Rio Grande 85 – o que provavelmente lhes
forneciam lucros maiores do que os ganhos no comércio com o Ceará e o Piauí, por exemplo.
arrobas de charque (Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792).
Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Contudo, no Rio Grande do Sul ele
podia render de 4 a 4,5 arrobas. Caso cada animal rendesse em média 4 arrobas de carne-seca, o Piauí e o Ceará
juntos teriam fabricado algo entre 350 e 400 mil arrobas anuais de carne-seca. No entanto, parte deste charque
ficava para o consumo local e outra parcela era exportada para o Maranhão, o Pará, o Rio de Janeiro, além de
capitanias menores. Tendo em vista as sempre existentes oscilações, é possível considerar que na passagem do
século XVIII para o XIX, o Rio Grande já era capaz de suprir os montantes exportados pelas oficinas do sertão,
pois remeteu, anualmente, algo entre 400 a 500 mil arrobas para a Bahia e o Pernambuco.
84
PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 103.
85
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
53
obra empregada (ou da produção por escravo).86 Esta ampliação, ao mesmo tempo em que era
favorecida pela notável oferta de alimentos, constituía-se num estímulo ao crescimento da
produção destes mesmos gêneros. A reprodução socioeconômica das plantations em áreas de
fronteira dependia do contínuo fluxo de escravos, financiado pelo capital mercantil atlântico, e
do comércio de alimentos, oriundos de unidades produtivas com grande presença de escravos.
Os baixos custos da terra, da mão de obra e dos alimentos possibilitaram esta ampliação.87
Neste sentido, os gastos para o sustento dos escravos constituía-se numa preocupação
central para os proprietários de plantations. Segundo Fragoso, por volta de 1830, cerca de ¼
das despesas dos grandes cafezais do vale do Paraíba do Sul se constituía em gêneros para os
escravos. No século XVIII, nas plantações beneditinas da Bahia, tal índice chegava a 30%. 88
Assim sendo, os senhores de engenho podiam não conhecer as teorias econômicas mais
elementares, mas sabiam muito bem que seus trabalhadores precisavam se alimentar e que a
ampliação de sua empresa dependia de um regular abastecimento a baixos custos. Em 1796, por
exemplo, comerciantes baianos realizaram uma representação à Coroa portuguesa solicitando
que fossem cessados os encargos que o contratador dos tabacos vinha impondo sobre o charque
trazido do Rio Grande do Sul. No documento, eles argumentavam que:
(…) o fomento dado à exportação das carnes do Rio Grande por esta Praça e pelas
mais deste Continente em que se empregam acima de 140 sumacas de muitas mil
arrobas, tem feito baratear pelo seu concurso a subsistência dos pobres escravos. Do
quê resulta a ampliação da cultura do tabaco e açúcar, cujos fazendeiros, animados
pela barateza das carnes, quase único mantimento dos cativos, cada dia se multiplicam
e prosperam, diminuindo-se-lhe os custos da mantensa, que dantes os forçavam a uma
injúria e iniquidade de faltar àqueles desgraçados com o sustento não só abundante,
senão às vezes necessário, servindo tudo para o Régio Erário perceber tão crescidas
vantagens e não menos no Rio Grande, onde além do Dízimo, que se paga do gado em
pé, há o bem sabido tributo do quinto dos couros (…).89
A partir da leitura desta representação fica nítido que o estímulo aos plantadores não
provinha somente dos preços no mercado internacional. A oferta de alimentos baratos (que
viabilizava a montagem dos engenhos e a ampliação das áreas de plantio) era entendida pelos
contemporâneos como um fator primordial para a ampliação, a multiplicação e a prosperidade
86
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. Em São Paulo, a média dos cativos nas fazendas de café
expandiu-se a partir dos finais da década de 1820 (LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit., 2005, p. 88).
Este fenômeno deu-se justamente numa época em que os preços do café estavam em baixa. “Há quem afirme que a
queda das cotações externas dos produtos exportados era compensada pela desvalorização cambial, permitindo aos
fazendeiros deter parcela expressiva de moeda nacional. Contudo, mesmo em mil-réis, o café, por exemplo,
registrou uma queda anual de 2% entre 1821 e 1833, e de 1,4% entre este último ano e 1849. O que de fato ocorria
é que a empresa escravista exportadora enfrentava a queda dos preços internacionais pela multiplicação da
produção” (FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 125).
87
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
88
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 180.
89
AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, D. 318 (Projeto Resgate). Grifos meus.
54
– termos utilizados pelos comerciantes –, das unidades açucareiras e da própria economia
colonial. Os fazendeiros e senhores de engenhos animavam-se com a barateza das carnes. Além
disso, se por um lado a representação dos comerciantes baianos foi assinada em uma conjuntura
de aumento da demanda internacional do açúcar, a produção estava sendo ameaçada pela
drástica queda na oferta da carne-seca do nordeste. Ora, foi nesta conjuntura (1791-1805) que
as exportações do charque rio-grandense cresceram quase 250%, substituindo as remessas do
Ceará e Piauí e trazendo ânimo aos produtores. A ampliação das unidades escravistas baianas e
pernambucanas, abastecidas pelo charque pelotense, colocou o Brasil na posição de maior
produtor de açúcar do mundo.
90
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988, p. 347-349.
91
Idem, p. 347-349. Sobre as Reformas Pombalinas ver FALCON, Francisco Calazans. Pombal e o Brasil. In:
MATTOSO, José; TENGARRINHA, José. História de Portugal. Bauru/Lisboa: EDUSC/Instituto Camões, 2001,
p. 227-244. Para um impacto na economia fluminense, ver PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a
economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Tese de Doutorado, UFF, 2009.
92
AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 296 (Projeto Resgate).
55
remetido para Salvador, os mesmos receberam um parecer favorável, beneficiando a produção e
o seu comércio. As queixas contra o estanco do sal e os altos valores do produto e de suas taxas
marcou a década de 1790 e evitou que a produção de charque crescesse mais ainda. As
reclamações foram se sucendendo, mas, no ano de 1805, os ventos do liberalismo econômico
sopraram naquelas terras, quando findou o monopólio do produto. Com esta medida, as
exportações de charque seguiram crescendo e aumentaram mais ainda na década de 1810,
quando a política expansionista na fronteira com região do Prata, colocada em prática pelo Rei
D. João VI, favoreceu os rio-grandenses no comércio das carnes.93
93
Ver, por exemplo, MIRANDA, Márcia E. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e
fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009. Esta conjuntura política será tratada
nos capítulos seguintes.
94
Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho,
Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
56
Portanto, a carne salgada estava sendo fabricada, mas ainda não em uma grande fábrica nas
proporções desejadas por ele. Conforme Siméia Lopes, no comércio entre o Pará e o Marajó, as
carnes de moura ou salgadas aparecem com frequência como um produto negociado, o que
indica que sua fabricação continuou acontecendo no meado do oitocentos. No entanto, a autora
também traz referências sobre as transações envolvendo a carne seca, ou seja, apesar da
avaliação negativa do Governador Coutinho sobre a péssima qualidade da mercadoria, ela
continuou sendo produzida e remetida para o Pará, no século XIX adentro, demonstrando que
os objetivos do Governador não obtiveram um pleno sucesso.95
Portanto, projetos políticos e econômicos para o período não faltaram. Alguns obtiveram
sucesso, mas outros facassaram. Neste sentido, o governo português buscava interferir da forma
que acreditava ser a melhor para o desenvolvimento das diferentes regiões e para o benefício
dos cofres da Coroa, mas barrava em diversos obstáculos. Um dos principais empecilhos dizia
respeito à própria autonomia das elites coloniais que comportavam-se de acordo com os seus
interesses, sempre tentando jogar com as normatizações vindas do Reino. Elas realizavam seus
próprios cálculos a respeito de quais atividades econômicas seriam as mais propícias e a partir
de quais métodos, práticas e escolhas levariam a cabo as mesmas.
Concluindo este capítulo, podería-se pensar que se não fosse a vigorosa base produtiva
de alimentos que caracterizou a estrutura agrária colonial, a ampliação das plantations teria seu
desenvolvimento fortemente comprometido. Soma-se a isto o fato de que a incorporação de
novas terras para culturas de alimentos e criação de gado tinha no crescimento populacional e
no aumento do número de plantations a garantia de sua manutenção e ampliação, mas não o seu
único fim. É neste sentido que o mercado interno e o externo pareciam se complementar, sendo
que a percepção de onde um favorecia a ampliação do outro é bastante complexa e variável. É
certo que o comércio de importação e exportação (incluindo o tráfico atlântico) era mais
rentável que o setor de abastecimento e que aquele, pode-se dizer, era a principal mola do
crescimento econômico alcançado no colonial tardio. Mas isto não torna o segundo um setor
exclusivamente subsidiário, pobre e dependente das flutuações externas, ou seja, sem nenhuma
autonomia econômica. Ele se alimentou do desenvolvimento da agroexportação, que fez
95
LOPES, Siméia Nazaré. O comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840 e
1855. Dissertação de Mestrado, UFPA, 2002. Talvez a resposta para isto esteje no próprio Relatório do
Governador. Segundo ele, a economia da Ilha era dominada por grandes fazendeiros possuidores de muitos
escravos e que, por conta disto, roubavam o gado dos pequenos criadores e ditavam as normas costumeiras da
região. Logo, a produção da carne seca lhes beneficiava diretamente, pois eles concentravam grande parcela das
terras, do gado vacum e da mão de obra local. Portanto, a suposta criação de uma fábrica que organizasse todo o
processo desde a produção até o seu comércio e tirasse os lucros daqueles grandes fazendeiros lhes representava
uma ameaça e corria um grande risco de não dar certo (Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo
e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
57
surgirem mercados do nada nas mais distantes hinterlands, ao mesmo tempo que literalmente
alimentou este setor. Portanto, ele também possuía flutuações próprias, uma vez que dado o
arranque inicial agroexportador, fosse em tempos de crise no agro, de dificuldades climáticas
ou de desmontes de engenhos, as pessoas precisavam comer e este era o sentido mais elementar
da produção de alimentos. Assim sendo, a grande capacidade dos colonos do interior em montar
fazendas e lavouras de cultivos de gêneros a baixos custos foi fator fundamental para a
ampliação da agroexportação.
96
Quase um século antes, acontecia o inverso. A Bahia é quem abastecia as Minas Gerais com significativas
remessas de mercadorias, envolvendo escravos e gado do sertão nordestino (CARRARA, Ângelo. Op. cit.). Antes
do surgimento das charqueadas rio-grandenses, na década de 1770, o nordeste forneceu elevadas cargas de charque
para as tropas militares estacionadas em Sacramento (ROLIM, Leonardo. Op. cit.).
58
2. A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS ESCRAVISTAS EM
PELOTAS E NO RIO DA PRATA A PARTIR DAS REDES SOCIAIS E
MERCANTIS ATLÂNTICAS
James Joyce
Muito antes do surgimento das oficinas de carne seca no nordeste brasileiro e das
charqueadas em Pelotas, o comércio atlântico de carnes preparadas já movimentava centenas de
embarcações e viabilizava, por exemplo, o abastecimento das plantations caribenhas e das
tripulações dos navios europeus. A partir de meados do século XVII, a Irlanda destacou-se na
fabricação e no comércio destes gêneros, dominando o mercado atlântico durante boa parte do
século posterior. No amplo circuíto mercantil do qual os comerciantes irlandeses faziam parte,
o porto de Cork tornou-se o principal pólo fabril de carne salgada dos séculos XVII e XVIII,
desenvolvendo o único sistema bancário considerável na Irlanda. Neste tempo, sua população
multiplicou-se várias vezes, tornando a cidade uma das mais cosmopolitas da Europa.1 Uma
análise rápida do funcionamento deste circuíto mercantil, desde a sua formação até a sua
decadência, é de fundamental importância para compreender o surgimento dos complexos
charqueadores no extremo sul da América, tanto em Pelotas, quanto nas margens do Rio da
Prata – em Buenos Aires e Montevidéu.
Região de vastas pastagens, a Irlanda já remetia seus rebanhos vacuns e barris de carne
salgada para a Inglaterra, mesmo antes da montagem das plantations açucareiras no Caribe.
Enquanto o gado era destinado para o abastecimento da população, as carnes preparadas tinham
na Marinha inglesa a sua principal consumidora. Entre 1663 e 1664, por exemplo, a pequena
ilha exportou mais de 76 mil cabeças de gado para a Inglaterra. Contudo, a crescente
importação de bovinos irlandeses, que caracterizou o conturbado período em que Cromwell
esteve no poder, não vinha agradando os pecuaristas do norte da Inglaterra. Organizados, estes
fizeram intensa pressão sobre o Parlamento britânico e conseguiram que o mesmo promulgasse
leis para interromper a entrada do gado irlandês no Reino. Foram os Cattle Acts, sendo o
primeiro de 1663 (que teve um caráter experimental de seis meses) e o segundo de 1667 (que
1
MANDELBLATT, Bertie. A Transatlantic Commodity: Irish Salt Beef in the French Atlantic World. History
Workshop Journal, n. 63, 2007, p. 26.
59
decidiu pela proibição definitiva das importações). Estas medidas provocaram a baixa dos
preços do gado na Irlanda, o que favoreceu o acesso dos pequenos comerciantes no ramo e a
consequente ampliação do número de fábricas de carne salgada em Cork, Belfast e Dublin 2 –
esta última, cidade natal do escritor James Joyce e onde seu pai também foi comerciante.
2
IOMAIRE, Máirtín Mac Con; GALLAGHER, Pádraic Óg. Irish Corned Beef: a Culinary History. Dublin
Institute of Technology, Articles, 2011, p. 7. Seguindo o vocabulário da época, sempre que me referir às “carnes
salgadas” estarei falando das carnes em barris, também chamadas de carnes de moura ou em salmoura. O charque
ou tasajo (como era chamado no Rio da Prata) diz respeito à carne-seca. Esta também era tratada com o uso do sal,
mas tinha na desitratatação e no seu secamento ao sol as suas formas de conservação.
3
Medidas políticas tomadas pelos irlandeses fizeram com que os mesmos pagassem baixos impostos pelo sal
importado (cerca de 10% do que os ingleses pagavam, por exemplo). Os vínculos mercantis entre Irlanda e
Portugal mantiveram-se fortes ao longo do século XIX. As salinas de Setúbal abasteceram não somente a produção
de carne salgada, como também a fabricação da manteiga irlandesa – produto conhecido em todo o Atlântico
(HORTA, José. O comércio do sal português com a Irlanda no século XIX: uma leitura geográfica. In: Anais do I
Seminário internacional sobre o sal português. Porto: IHM da Univ. do Porto, 2005, p. 297-310).
4
TRUXES, Thomas M. Irish-American Trade (1660-1783). Cambridge University Press, 1988, p. 26-27.
5
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 26. Conforme Robin Blackburn, a “explosão” do comércio colonial foi
possibilitada por um crescimento anterior das importações de escravos pelas ilhas inglesas. Este incremento
totalizou 263.000 escravos negociados, cuja metade foi remetida para Barbados, secundada pela Jamaica e as Ilhas
60
disso, a disponibilidade de grandes extensões de pastagens férteis e próximas das principais
cidades portuárias irlandesas e a existência de uma rede de transportes interna bem
desenvolvida foram fundamentais para baixar os custos da produção da carne salgada.
Conforme Mandelblatt, a razão para o sucesso da carne irlandesa no mercado caribenho era o
seu baixo custo em relação a outras fontes de abastecimento.6
Outro fator que favoreceu o desenvolvimento econômico da Irlanda neste período foi a
liberdade comercial que os ingleses ofereciam às suas colônias dentro dos portos que
Leeward. “A população negra das Índias Ocidentais inglesas cresceu de 42% do total em 1660 para 81% em 1700”
(BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco ao Moderno (1492-1800). Rio
de Janeiro: Record, 2003, p. 325).
6
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 26.
7
Dentre as ilhas caribenhas francesas, Santo Domingo superava Guadalupe e Martinica como a principal
consumidora das carnes irlandesas. No seu auge, entre 1763 e 1791, a “pérola das Antilhas” produziu mais lucros
do que qualquer outra colônia caribenha, tornando-se a maior produtora de açúcar do mundo. Com uma enorme
população escrava, Santo Domingo possuía um habitante branco para cada dez negros em seu território
(MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 22).
8
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 36.
9
Além dos navios mercantis, que negociavam escravos, gêneros alimentícios, tabaco, açúcar e uma série de outras
mercadorias, a frota militar também ampliou-se de forma notável. Na França, quando Colbert foi indicado para
supervisionar as colônias, a França possuía somente duas dezenas de embarcações em alto-mar. Mas em 1683, a
Marinha de Guerra francesa já contava com 117 navios de linha, 30 galeões e 80 fragatas corsárias, totalizando
1.200 oficiais e 53.000 marinheiros (BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 354). Ou seja, um notável aumento de
potenciais consumidores de carne em barris.
10
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 29. Em 1685, Luís XIV decretou um código especial visando
regulamentar a escravidão nas colônias francesas. O Code Noir, como ficou conhecido, mandava que cada escravo
recebesse, além de 1,2 Kg de mandioca, cerca de 900 gramas de carne salgada ou 1,4 Kg de peixe salgado por
semana, o que também contribuiu para a manutenção das importações de carne salgada. BLACKBURN, Robin.
Op. cit., p. 251-253; MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.
61
pertenciam ao “primeiro Império Britânico”.11 Como demonstrou Truxes, uma vigorosa rede
mercantil conectava os comerciantes estabelecidos nos portos ingleses e irlandeses com os das
colônias do Caribe e da América do Norte. Em New York, Boston e Philadelphia, por exemplo,
verdadeiras comunidades de comerciantes irlandeses, ligados por vínculos parentais e religiosos
com outros grupos de mercadores estabelecidos em distintos portos, atuavam fortemente nos
negócios transatlânticos.12 Conforme Mandelblatt, qualquer grande comerciante em atividade
no Atlântico daqueles tempos conhecia a fama das carnes irlandesas. 13 Estudando os
negociantes franceses Jean e Pierre Pellet, Fernand Braudel destacou a fortuna adquirida pelos
irmãos numa rede mercantil constituída na primeira metade do setecentos e que alcançou
notável amplitude, envolvendo uma série de comissionistas e “capitães gerentes” de seus
navios. Sobre a atuação de Jean, Braudel escreveu:
A quantidade de suas relações de negócios e de seus negócios é simplesmente
espantosa: ei-lo armador, negociante, financista em certas ocasiões, proprietário
fundiário, produtor e mercador de vinhos, possuidor de rendimentos; ei-lo ligado à
Martinica, a São Domingos, a Caracas, a Cádiz, à Biscaia, a Bayonne, a Toulouse, a
Marselha, a Nantes, a Rouen, a Dieppe, a Londres, a Amsterdam, a Middelburgo, a
Hamburgo, à Irlanda (para comprar carne bovina salgada), à Bretanha (para comprar
tecido) e não digo tudo… E naturalmente aos banqueiros de Paris, de Genebra, de
Rouen.14
Passada a época de ouro da carne salgada irlandesa, outros rivais começaram a tomar os
mercados consumidores do produto. As colônias inglesas na América sempre foram as maiores
concorrentes dos irlandeses e ingressaram no mercado das carnes favorecidas pelos conflitos
políticos internos que afetaram a Irlanda após a Revolução Gloriosa (1688-1689).15 Na década
de 1720, os irlandeses perderam a posição de maiores abastecedores das antilhas inglesas
exatamente para estas colônias (muito embora não tenham deixado de ser os maiores
exportadores de carnes).16 Além da pesca, o trunfo destas colônias era a agricultura,
destacando-se o cultivo do trigo, do arroz, do milho, entre outros.17
11
TRUXES, Thomas. Op. cit.; BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 362.
12
Neste circuíto que envolvia o caribe inglês, as ilhas britânicas e as colônias do norte da América, era muito
comum a prática do comércio triangular, como o circuíto Boston – Cork – Jamaica – Boston. Das colônias
americanas saiam embarcações com madeiras, linhaça e rum para a Irlanda, daonde seguiam para as ilhas
caribenhas com carnes salgadas e manufaturas, direcionando-se posteriormente para Boston com mais melaço e
rum. Além deste comércio, a América do Norte também remetia trigo e farinha diretamente para o caribe inglês.
Na segunda metade do XVIII, estas exportações também atingiram Lisboa, Cadiz e outras partes do Mediterrâneo,
trazendo no retorno manufaturas européias (TUXTER, Thomas. Op. cit., p. 111-117).
13
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.
14
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, p. 125-127 (grifos meus).
15
Nesta época, Pensilvânia, New York, Virgínia e Maryland passaram a exportar suas carnes para o Caribe,
quebrando assim o monopólio prático dos irlandeses (TRUXES, Thomas. Op. cit., p. 26-7).
16
No meado do século XVIII, estas colônias também começaram a exportar significativas quantias de peixe
salgado para Santo Domingo. No entanto, este mercado jogava com as oscilações e aberturas da política colonial
francesa, sem abrir mão do contínuo contrabando. Santo Domingo importava peixe salgado, legumes e grãos
62
Com o desencadear da Revolução Americana, em 1776, a Irlanda começou a perder os
privilégios que lhe beneficiavam por fazer parte do sistema comercial no interior do Império
Britânico, já que mantinha intensa e lucrativa transação mercantil com os portos da América do
Norte. Por mais que os ingleses tentassem impedir, a jovem nação estadonidense expandiu sua
rede de abastecimento para todo o Caribe e ampliou as suas exportações de alimentos para a
Europa nas décadas que sucederam a sua Independência. 18 A Revolução em Santo Domingo
interrompeu momentaneamente o mercado caribenho francês trazendo prejuízos aos
comerciantes e provocando uma queda nas exportações de carne salgada irlandesa. 19 Em 1800,
a união dos Reinos da Irlanda e da Grã-Bretanha, colocou os primeiros sob a hegemonia do
Parlamento inglês, retirando parte da sua autonomia política e econômica. No início do século
XIX, a Irlanda continuou exportando carne salgada, mas jamais recuperou os índices
setecentistas. Em 1815, por exemplo, as remessas do produto eram quatro vezes inferiores ao
que havia sido negociado na década de 1770, e em 1840, os números não chegavam a 3% do
que o país havia exportado nos anos 1780. 20 A decadência econômica da pequena ilha foi
marcada pela Grande Fome (1845-1849) que ceifou cerca de 1,5 milhões de vidas. Apesar
disso, o “legado” irlandês na economia atlântica havia fincado raízes…
americanos, exportando rum, melaço e outros produtos tropicais (TREUDLEY, Mary. The United States and Santo
Domingo (1789-1866). The Journal of Race Development, v. 7, n. 1, jul., 1916, p. 83-145).
17
BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 559-563.
18
Conforme Gary Walton, o papel abastecedor das colônias no norte da América já era notável mesmo antes da
Independência. Entre os anos 1760 e 1770, elas já exportavam grandes quantias de carnes salgadas (bovina e
suína), milho, farinha e trigo para o Caribe e o Sul da Europa. (WALTON, Gary M. The economic rise of early
America. Cambridge University Press, 1979, p. 81-82; 193).
19
MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 20.
20
IOMAIRE, Máirtín Mac Con; GALLAGHER, Pádraic Óg. Op. cit.
21
Observador perspicaz, o ministro Colbert tentou imitar o sucesso dos fabricantes irlandeses patrocinando a
formação de um complexo fabril de carne salgada na própria França. No entanto, devido às guerras, aos grandes
custos de produção, aos tributos sobre o sal e à concorrência irlandesa, Colbert deu-se por vencido e abriu de vez o
comércio dos portos franceses às carnes irlandesas (MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 25-30).
63
as suas tripulações marítimas aproximou bastante os comerciantes portugueses e espanhóis do
circuíto mercantil intra-europeu do qual os irlandeses faziam parte.22 Os comerciantes ibero-
americanos nunca estiveram indiferentes às rotas atlânticas das carnes. Portanto, durante o
colonial tardio, foi comum comerciantes luso-brasileiros e hispano-platinos interessados nos
negócios com as carnes fazerem referência aos irlandeses.
Com exceção da entrada de cativos africanos para o Rio Grande do Sul, os demais
objetivos não vingaram. A produção de carnes salgadas em barris nesta capitania, embora tenha
rendido seus lucros para alguns fabricantes, nunca atingiu índices semelhantes aos das
exportação de charque. No início dos negócios das charqueadas sulinas não foram raras as
reclamações a respeito da qualidade da carne em barris ali produzida. Em setembro de 1789,
por exemplo, alguns comerciantes reinóis disseram que as carnes salgadas trazidas do Rio
22
Ver, por exemplo, os destinos das exportações de carnes irlandesas ao longo do século XVIII. Por diversos anos,
Espanha e Portugal foram a terceira maior compradora atrás do Caribe inglês e francês que, somados, sempre
ocupavam mais da metade das remessas (TRUXES, Thomas. Op. cit., p. 262-263).
23
Segundo Alfredo Montoya, as carnes cortadas permaneciam numa tina com salmoura por cerca de um mês, para
depois serem colocadas em barris com camadas alternadas de sal (MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros
argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 25-26). Segundo Anibal Barrios Pintos, no Uruguai, cada barril
suportava 4 arrobas (cerca de 60 kg) de carne (PINTOS, Anibal Barrios. Historia de la ganedería en el Uruguay
(1574-1971). Montevidéu: Biblioteca Nacional, 1973, p. 148). Mandelblatt, por sua vez, considerou que cada
barril, na Irlanda do século XVIII, carregava cerca de 90 kg (MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 20).
24
Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 237 e 238 (Projeto Resgate).
64
Grande por Manoel Pinto da Silva não estavam em perfeito estado e que, em Lisboa, ninguém
as queria comprar. Os mesmos acrescentavam que a culpa não era das carnes e sim dos métodos
usados pelos fabricantes.25 Anos mais tarde, o capitão de um outro navio ordenou que a
tripulação jogasse uma carga inteira de carne salgada em alto mar por ela haver se
deteriorado.26 No início do século XIX, o Governador da Capitania ainda se ressentia do
insucesso das carnes em barris e o Vice-Rei compartilhou com ele os mesmos anseios:
É certo que a primeira amostra da tentativa que se fez das carnes salgadas não
correspondeu aos bons desejos que tanto eu como V. Ex.ª teríamos de ver o feliz êxito
de tão eficazes diligências (…), mas além do que com o tempo e com trabalho que
promete para o futuro grandes lucros é que se [aperfeiçoe] semelhantes fábricas. Penso
que a assistência desses homens que vieram do Reino para instruírem sobre o modo de
fazer as salgas, ter-se-á adquirido outro melhor conhecimento e mais seguro método; e
por [consequência], pôr em giro o comércio das carnes, ainda que por ora, se aplique
toda a que se puder beneficiar para o consumo da Esquadra, enquanto aquele não tem
maior extensão.27
25
Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 237 (Projeto Resgate).
26
Carta do Conde de Resende para o Governador da Capitania do RS (20.11.1800) apud MONQUELAT, A. F.;
MARCOLLA, V. Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800). Pelotas, Diário da
Manhã, 23.08.2010.
27
Conde de Resende para o Governador da Capitania do RS apud MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. Op.
cit.
28
Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 238 (Projeto Resgate).
65
amostra de carnes em barris “o qual encarregou da dita salga, a dois irlandeses que daqui
mandou ir”, com o objetivo de prover o Arsenal Real da Marinha. 29 Pereira de Almeida, que era
um dos mais ricos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, havia construído uma fábrica
de salgar carnes no Rio Grande do Sul. Anos antes, ele socilitou instrumentos de trabalho para
os irlandeses João Seechy (mestre), Pedro O’Donnel (salgador) e Diogo Sheehy (curtidor).30
Em 1805, Pereira de Almeida, oferecendo-se para abastecer a Marinha lusa, propôs um contrato
de fornecimento de barris de carne, “cuja salga é feita por mestres irlandeses que ali tem, e
como a de Irlanda da melhor qualidade”. 31 Em 1808, Pereira de Almeida ainda possuía a sua
fábrica de carnes na capitania sul-rio-grandense. Conforme o relato de um contemporâneo sobre
o seu “grande e interessante estabelecimento”, ele possuía “grandes ordenados e despesas”, pois
mandara “vir a sua custa mestres da Irlanda”. 32
29
Requerimento de 07.08.1801, AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, Doc. 394 (Projeto Resgate).
30
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001, p. 121.
31
Requerimento de 23.10.1805, AHU-ACL-CU-019, Cx. 10, Doc. 605. Pereira de Almeida recebeu parecer
negativo pois o período de 9 anos de contrato foi considerado muito arriscado. Os pareceristas argumentaram que
era possível conseguir carne irlandesa de melhor qualidade por um preço mais em conta. Nesta época, conforme os
pareceritas, além da Irlanda, Portugal também recebia carnes salgadas da “América” e da Dinamarca.
32
MAGALHÃES, Manoel Antônio de. Almanack da Vila de Porto Alegre. In: FREITAS, Décio. O capitalismo
pastoril. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980, p. 88. Interessante observar
como um negociante de grosso trato do Rio investiu capitais no sul da América com claros fins de obter lucros
mercantis, ao contrário, por exemplo, de outros comerciantes que tornaram-se senhores de engenho e de grandes
escravarias buscando uma atividade agrária com fins não apenas econômicos, mas, também, motivados por
critérios de status social e poder local (FRAGOSO, João L. R.. Homensde grossa aventura – Acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998).
33
MONQUELAT, A. F. Desfazendo mitos (notas à história do Continente de São Pedro). Pelotas: Ed. Livraria
Mundial, 2012, p. 80.
34
Para Nicolás, Medina “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições
inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do norte”. O segredo, segundo ele, nada mais
era do que “la salmuera del barril com una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 80).
66
primeiramente, “hacer venir de Irlanda de 80 a 100 maestros en salar carnes” e “fundar una
Compañía Marítima que tuviera a su cargo el transporte de los barriles a la península”.35
Quando não era possível trazer irlandeses ou ingleses, os investidores mais exigentes aceitavam
os ibéricos, desde que fossem talentosos nesta atividade. Em 1778, por exemplo, o projeto de
implantação de uma fábrica de carnes salgadas enviado à Coroa espanhola pelo Cabildo de
Buenos Aires solicitava que viessem da Espanha vários toneleros e quatro sujeitos inteligentes
que conhecessem das carnes salgadas.36 Portanto, o know-how trazido por estes indivíduos foi
de extrema importância no início desta fase empresarial. Nos anos 1780, por exemplo, Miguel
Ryan, espanhol de ascendência irlandesa, instalou-se na Banda Oriental trazendo antiga
experiência com salga de carnes no Chile. 37
35
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 29-30.
36
MONTOYA, Alfredo. Op. cit.
37
MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed.
Universitária/UFPel, 2010. Contudo, na fase inicial desta indústria, além da mão de obra e da orientação técnica
qualificada também havia outros problemas. Conforme Aníbal Pintos, a ausência de toneleros constituía-se num
obstáculo para a ampliação dos negócios. No fim do século XVIII, só existiam 8 destes especialistas em
Montevidéu e os mesmos não davam conta da demanda por barris. A solução, segundo o autor, foi agregar com
frequência cerca de 5 ou 6 ingleses que haviam chegado no Prata para caçar baleias e que conheciam das técnicas
irlandesas (PINTOS, Anibal B. Op. cit., p. 150).
38
Na realidade, como demonstrou Montoya, estas carnes pareciam estar sendo exportadas desde o século XVII,
mas em quantidades muito pequenas, ainda em caráter experimental e com grandes intervalos de tempo
(MONTOYA, Alfredo. Op. cit.).
39
PINTOS, Anibal B. Op. cit., p. 147-148.
40
CASTELLANOS, Alfredo. Breve historia de la ganadería en el Uruguay. Montevidéu: Banco de Crédito, 1971,
p. 31. Medina teria investido também na pesca da baleia, em 1784.
41
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 25.
67
de carnes salgadas, tasajo e sebo, tornando-se um dos mais ricos saladeiristas da região. O
sucesso de ambos motivou o estabelecimento de outros empresários. Em 1801, havia cerca de
30 saladeros na parte oriental do Rio da Prata, abatendo anualmente 120 mil reses e
empregando mais de 1.000 trabalhadores – livres e escravos – em suas fábricas.42
48
Anibal Pintos faz referência a vários deles: Stanley Black & Cia, Tomas Tomkinson, Henrique Jones, Pablo
Duplessis, Buther & Martin, Juan Jackson, Hipólito Doinnel, Juan Hall e o Sr. Young, entre outros (PINTOS,
Anibal Barrios. Montevideo: Los Barrios (I). Montevideo: Ed. Nuestra Tierra, 1971).
49
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit.
50
MONTOYA, Alfredo. Op. cit.
51
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 116-118; 134-141. Em 1808, Antônio de Magalhães disse
que existiam somente duas fábricas no Rio Grande que fabricavam barris de carne salgada, exportando 3 mil deles
por ano (MAGALHÃES, Antônio. Op. cit., p. 88).
69
disso, conforme Andrew Sluyter, o charque tinha algumas vantagens sobre as carnes em barris.
Sua prepação era mais simples, ele ocupava bem menos espaço nos navios, podia ser colocado
em qualquer canto dos porões e não passava por uma rigorosa vistoria, como as carnes salgadas
remetidas para as Armadas.52 Portanto, acredito que as poucas quantidades de carnes em barris
exportadas pelo Rio Grande do Sul também foram resultado de uma escolha dos comerciantes
envolvidos em uma rede mercantil cujo objetivo era abastecer a escravaria das plantations e não
as Armadas europeias (algo que fugia, em parte, dos planos da Coroa lusa). Neste sentido,
apesar das dificuldades em acertar o “ponto” das carnes em barris, as poucas remessas rio-
grandenses não se tratavam apenas da sua incapacidade técnica. Nas palavras de um próprio
charqueador de Pelotas, escritas entre 1817 e 1822, isto fica claro: “a carne salgada em barris é,
sim, toda ela fabricada em Porto Alegre: no Rio Grande [o que incluía Pelotas] não se fabrica
carne em barris, ainda que se podia fabricar quanta se quisesse”. 53
Portanto, no Império português a produção de carne salgada era mais para suprir uma
demanda estimulada pelo Reino, que queria substituir as compras das carnes irlandesas para a
Marinha lusitana, do que um investimento destinado a outros mercados consumidores.54 Não
era comum pensar nas carnes em barris para alimentar os escravos das plantations luso-
brasileiras, por exemplo. Além disso, a produção das carnes salgadas também era estimulada
por autoridades estrangeiras que mantinham contato com os burocratas portugueses. Nos anos
1790, Donald Campbell, oficial britânico encarregado do comando de uma Esquadra na
América, recomendou à Armada portuguesa que empregasse outros métodos para salgar as suas
carnes, pois utilizando meios muito primitivos, elas não estavam sendo satisfatórias no
abastecimento da tripulação lusa. 55 É provável que Campbell preferisse as carnes em barris ao
invés das mantas de charque. Esta também foi a queixa do Governador do Pará, quando buscou
estimular a fabricação de carnes salgadas na Ilha de Marajó, pois estas eram muito mais
higiênicas e saborosas do que as carnes secas que lá se fabricavam e que colocavam em risco a
52
Conforme Sluyter, o produto final tinha várias características vantajosas em relação a outras formas de carne
conservadas. A maior secura do charque com relação à carne salgada reduziu tanto o peso e o volume a menores
custos de transporte. A maior secura também permitiu o carregamento a granel em porões de navios e a
preservação do produto para muitos meses após a sua fabricação, mesmo em climas tropicais (SLUYTER,
Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 2010, p. 106).
53
CHAVES, Antônio J. Gonçalves. Op. cit., p. 141. Portanto, toda a carne em barris exportado pelo Rio Grande do
Sul era fabricada pelos estabelecimentos do vale do Jacuí e de Porto Alegre e não pelos de Pelotas.
54
Em 1778, um funcionário da Coroa portuguesa recomendou a produção das “carnes salgadas que devem ser
exportadas a este reino em lugar das que vem da Irlanda”, e o cultivo do linho cânhamo, que substituiria as
importações da Rússia (GUTIERREZ, Ester. Op. cit., 53).
55
XAVIER, Paulo. Salgas de carne. In: Correio do Povo. Porto alegre, edição de 15.03.1974, p. 9.
70
saúde da população consumidora.56 Portanto, nos diferentes “projetos” relativos à fabricação de
carnes no Rio Grande do Sul, o charque acabou vencendo a carne salgada.
O aumento das exportações de Montevidéu e Buenos Aires também foi estimulado por
uma série de medidas políticas tomadas pelos Bourbons. Em 1776, a Coroa decretou o livre
comércio dos portos espanhóis com Buenos Aires, substituindo o exclusivismo de Cadiz. Em
1777, foi criado o Vice-Reinado do Rio da Prata, oferecendo uma maior autonomia
administrativa à região. Como resultado destas medidas, o comércio portenho dinamizou-se e
uma poderosa classe de negociantes marítimos constituiu-se a partir destas trocas.58 Entretanto,
conforme Montoya, o objetivo inicial dos saladeiristas não era fabricar o tasajo. Por atenderem
os anseios vindos de Madrid, muitos deles queriam produzir as carnes irlandesas para a
Marinha espanhola.59 No entanto, diante do boom açucareiro em Cuba e o crescimento daquele
mercado provocado pela entrada de milhares de escravos, a ampliação da fabricação do tasajo
56
Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho,
Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
57
BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 602-604.
58
SOCOLOW, Susan. Op. cit.
59
MONTOYA, Alfredo. Op. cit.
71
foi tentadora e a carne salgada foi lentamente sendo substuída por este (produto mais simples),
cujas remessas se multiplicaram ao longo do oitocentos.60
60
SLUYTER, Andrew. Op. cit.
61
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987; ROLIM,
Leonardo. “Tempo das carnes”: no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila
de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012.
72
protagonismo das elites coloniais e por uma intensa negociação destas com as Coroas ibéricas,
além da participação de comerciantes europeus de fala inglesa e francesa, que interagiam
profundamente num emaranhado de relações sociais e econômicas com os mesmos. 62
Comparando censos do período colonial tardio, Prado percebeu que Montevidéu era
mais aberta à participação de luso-brasileiros e comerciantes britânicos nos seus negócios do
que Buenos Aires. 64 Portanto, mesmo que esta última cidade apresentasse uma notável presença
de luso-brasileiros em seu território 65, Montevidéu constituiu-se na principal zona de interação
trans-imperial do conesul americano. Uma zona de interação, segundo Prado, era uma região
colonial madura onde as elites eram formadas principalmente por europeus ou os seus
descendentes, e os mesmos interagiam profundamente com agentes de diferentes origens
geográficas e imperiais. Na zona de interação, os indivíduos confrontavam-se com as diferenças
do “outro”, ao mesmo tempo em que compartilhavam dos seus valores, códigos culturais e
visões de mundo. Neste contexto, os estrangeiros ou agentes imperias que se casavam com as
mulheres locais, criavam raízes e estabeleciam-se na região, transmitindo códigos
62
Ver, por exemplo, PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity
in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009; MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes Personales
y Autoridad Colonial. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, mai-juin, 1992; FRAGOSO, João; BICALHO,
Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
63
PRADO, Fabrício. Op. cit.
64
Conforme Prado, entre os anos de 1781 e 1786, 74 navios portugueses aportaram em Montevidéu, sendo que 43
destes declararam seu destino para outros portos portugueses no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina no
momento da partida. Entre os capitães que faziam essa rota frequentemente estavam pilotos portugueses
encarregados de navios portugueses e espanhóis (PRADO, Fabrício. Op. cit.).
65
TEJERINA, Marcela. Luso-brasileños en el Buenos Aires Virreinal: trabajo, negocios e intereses en la plaza
naviera y comercial. Bahía Blanca: Ediuns, 2004.
73
comportamentais exteriores, contribuíndo para que os nativos compartilhassem do vocabulário
social imperial. 66
Além das condições políticas e econômicas apontadas até aqui, os complexos fabris
platinos e pelotense também compartilhavam de outros fatores estruturais. Primeiramente,
ambos não tinham grandes concorrentes no Atlântico Sul para além deles próprios. A disputa
entre estes dois pólos fabris marcou todo o século XIX, com os pelotenses frequentemente
queixando-se da “desleal” concorrência e da falta de proteção das autoridades políticas luso-
brasileiras. Além disso, tanto na capitania do Rio Grande de São Pedro, quanto no Vice-
Reinado do Prata, as terras, o gado e a mão de obra constituíam-se em mercadorias bastante
acessíveis. Horacio Giberti acrescentou mais outros dois fatores: os mercados consumidores de
tasajo (da época) eram seguros e tinham possibilidade clara de ampliação e, no caso dos
platinos, o sal importado da Patagônia possuía um preço bastante atrativo.68
66
PRADO, Fabrício. Op. cit.
67
Idem.
68
GIBERTI, Horacio. Op. cit., p. 83-84. Giberti estava correto no que diz respeito ao colonial tardio, uma vez
quem na segunda metade do oitocentos, um dos grande problemas dessa indústria foi a ausência de mercados
consumidores para além de Cuba e o Brasil.
69
Esta questão foi tratada por Gabriel Aladren que analisou a forma como as guerras estiveram relacionadas à
escravidão na fronteira aqui estudada (ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra
na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado.
PPG-História UFF, 2012).
74
Em outubro de 1796, por exemplo, negociantes rio-grandenses queixaram-se à Coroa que as
carnes de Montevidéu estavam sendo ilegalmente carregadas em grandes quantidades para a
Bahia e Pernambuco – capitaniais que as “recebem e acoitam”. Estas embarcações ao
retornarem cometiam a “transgressão de trazerem avultadas porções de escravos”, o que não
apenas prejudicava a produção rio-grandense, como também aumentava o preço dos escravos
nesta praça.70 Dois anos depois, um número maior de comerciantes, estancieiros e pelo menos
outros 12 charqueadores assinaram um requerimento ainda mais contundente contra o comércio
platino nos portos brasileiros, cujo número de navios empregados nestas transações era,
segundo os mesmos, “escandaloso”. Os assinantes solicitavam:
A própria distinção entre práticas legais e clandestinas parece ser anacrônica, se nós
considerarmos o universo social em relação às representações jurídicas, com suas
regras bem estabelecidas e aceitas. Assim, as práticas (…) podem revelar uma lógica
social global partilhada pelos meios que somente nosso olhar contemporâneo dissocia.
No mundo português setecentista, os contrabandistas seriam empreendedores que
pertenciam ao sistema, com boas conexões com as elites governantes. O comércio
ilegal tolerado era um comércio controlado, permitido pelas mesmas pessoas cujas
funções oficiais pressupunham exatamente combatê-lo.73
Como Kuhn alertou, isto não significa dizer que a Coroa não se importava com a
ilegalidade destas trocas. Como lembra o autor, as tentativas de repressão existiam, mas,
70
Requerimento de 01.10.1796, AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, Doc. 317 (Projeto Resgate).
71
Ofício de 24.11.1800, AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, Doc. 373 (Projeto Resgate).
72
KÜHN, Fábio. Clandestino e ilegal: o contrabando de escravos na Colônia do Sacramento (1740-1777). In:
XAVIER, Regina (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo:
Alameda, 2012, p. 179-206.
73
KÜHN, Fábio. Op. cit., p. 195.
75
segundo Ernest Pijning, elas eram direcionadas principalmente contra os excessos.74 Além do
mais, o seu alcance era precário e dependia do empenho das autoridades locais envolvidas e das
suas redes de relações.75 Portanto, deve-se atentar para o grau de tolerância (e do próprio
envolvimento) dos administradores coloniais, pois eram eles, em última instância, que
representavam os interesses da Coroa nas localidades. O grande problema talvez seja a
interpretação que se dá acerca desta relação, uma vez que, em boa parte das vezes, os interesses
das elites locais não eram antagônicos aos do Reino. Conforme Fabrício Prado, as Coroas
espanhola e portuguesa tinham conhecimento deste vultoso comércio ilícito realizado no
Atlântico sul. No entanto, eram estas transações que ajudavam a garantir a manutenção das
sociedades ali constituídas. As economias coloniais naquelas regiões dependiam destas redes
mercantis para se reproduzirem e os próprios agentes envolvidos nestas transações enriqueciam
o seu patrimônio e o da Coroa agindo no interior das mesmas. 76
A prova de como o tráfico ilícito de cativos tinha atingido enormes proporções pode ser
dada na comparação entre o número de escravos entrados no Rio Grande do Sul e no Prata.
Conforme Alex Borucki, pelo menos 70 mil escravos, vindos de portos brasileiros e africanos,
foram desembarcados no Rio da Prata, entre 1777 e 1812. 77 Em contrapartida, conforme os
dados compilados por Gabriel Aladrén (que estão um pouco subestimados, conforme o próprio
autor), o Rio Grande do Sul teria recebido aproximadamente 35 mil escravos entre 1788 e 1833,
ou seja, a metade dos cativos remetidos para o Prata e num espaço de tempo maior.78 Portanto,
mesmo que o problema dos sub-registros apontados por Aladren fosse resolvido, creio ser
possível afirmar que o Rio da Prata recebeu muito mais escravos que o Rio Grande durante o
período em que o tráfico esteve vigente naquela região. Tal comércio era prejudicial aos
charqueadores, pois os altos preços pagos pelos platinos estimulavam os traficantes a
desembarcarem os cativos no porto oriental, ao menos que os rio-grandenses cobrissem a oferta
dos saladeiristas.
74
PIJNING, Ernest. Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 21, n. 42, 2001, p. 397-414. O autor também destacou o contrabando no Rio
da Prata considerando: “a idéia de que o comércio ilegal era imoral e errado era vista com perplexidade. Se o
comércio ilegal era por vezes estimulado pela Coroa portuguesa, como no caso do comércio com o rio da Prata,
como poderia ser considerado imoral?” (PJNING, Ernest. Op. cit., p. 407).
75
Ver, por exemplo, GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio
Grande e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
76
PRADO, Fabrício. Op. cit.; GIL, Tiago Luís. Op. cit.
77
BORUCKI, Alex. From shipmates to soldiers: emerging black identities in Montevideo, 1770-1850. PhD
Dissertation. Atlanta: Emory University, 2011 apud ALADREN, Gabriel. Op. cit., p. 56.
78
ALADREN, Gabriel. Op. cit., p. 53-55.
76
Os negócios ilícitos com o Rio da Prata eram muito lucrativos para os comerciantes
luso-brasileiros e os mesmos buscavam atender a grande demanda dos hispano-platinos por
mão de obra escrava. Segundo alguns autores, os saladeiristas pareciam preferir mais a mão de
obra cativa do que o trabalhador assalariado. Em 1777, por exemplo, para montar as fábricas
saladeris da região, o Cabildo de Buenos Aires solicitou à Coroa espanhola que facilitasse o
“envío de negros, ya sea de asiento o de cualquier outro modo, porque ya demasiadamente se
nota la falta que hai en estas Províncias de ellos”. De acordo com os requerentes, o trabalho dos
peões livres era repleto de problemas e não correspondia aos custos com salário e manutenção
com os mesmos. Em 1799, o administrador de uma estância na Banda Oriental, aconselhava aos
seus contemporâneos a substituírem os seus peões pelos escravos, porque além dos menores
gastos, num breve tempo o produto do seu trabalho recuperava o valor investido.79
79
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 17-19.
80
Após a abolição definitiva da escravidão uruguaia (1846), a entrada de escravos brasileiros nas estâncias
orientais como peões contratados continuou a ocorrer de forma constante (BORUCKI, A., CHAGAS, K.,
STALLA, N. Esclavitud y trabajo: Un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya, 1835-1855.
Montevideo, Ed. Pulmón, 2004, p. 21-23). Tratarei mais deste tema no capítulo 7.
81
MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed.
Universitária/UFPel, 2010.
82
THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha. Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira meridional
do Brasil (1845-1889). Tese de Doutorado em História, PUCRS, 2012., p.196-202. Portanto, a comparação
clássica realizada por Fernando H. Cardoso entre as charqueadas rio-grandenses escravistas e os saladeros com
mão de obra assalariada deve ser relativizada, servindo principalmente para a segunda metade do século XIX
(CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977).
77
mencionado anteriormente, Francisco Maciel era um dos maiores saladeristas de Montevidéu.
Contudo, suas redes de relações com comerciantes cariocas também lhe colocaram na posição
de um dos maiores traficantes platinos.83 Nesta condição, Maciel deve ter abastecido com mão
de obra africana muitos saladeros, incluindo o de Francisco de Medina – outro rico fabricante
de tasajo. Conforme Monquelat, Medina teria empregado cerca de 200 trabalhadores nas suas
diferentes unidades produtivas, sendo que mais de 100 eram escravos.84 Estudando a produção
do tasajo em Buenos Aires, Andrew Sluyter também teceu as mesmas considerações e
acrescentou que era possível que parte significativa da mão de obra nos saladeros platinos fosse
realizada por escravos, libertos ou descendentes de escravos nascidos livres.85
Portanto, os complexos fabris aqui estudados dificilmente teriam sido montados sem a
existência da escravidão africana. Escrevo isto não apenas pensando no seu uso como mão de
obra, mas numa interpretação mais abrangente. O tráfico atlântico imprimia um triplo fator
sobre a economia das fábricas de carne platinas e pelotenses. Ao mesmo tempo em que traziam
escravos para o sul da América (possibilitando a ampliação da produção) e para as plantations
brasileiras e cubanas (aumentando o número de consumidores), os negreiros necessitavam de
um grande volume de mantimentos para cruzar o Atlântico e lá se manterem por semanas até o
fechamento de todos os negócios com os intermediários africanos. Analisando uma amostra de
50 navios que realizaram este comércio a partir do porto do Rio, entre 1827 e 1830, Manolo
Florentino percebeu que 97% deles carregavam charque. As quantidades eram suficientes para
garantir a alimentação dos africanos na viagem de volta, podendo, cada embarcação, carregar
quase 2 toneladas de carne-seca em seus porões. Um planejado suprimento dos navios era
fundamental no sucesso do empreendimento dos traficantes, podendo reduzir a taxa de
mortalidade e aumentar os lucros dos mesmos.86 Além do mais, pode-se dizer que, depois de
muitas semanas de viagem, os escravos desembarcavam no Brasil já acostumados com uma das
refeições que faria parte de suas vidas, talvez para sempre.
83
PRADO, Fabrício. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no rio da Prata do século XVIII.
Topói, v. 13, n. 25, jul./dez., 2012, p. 175.
84
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010.
85
Conforme Sluyter, em 1810, a população escrava e seus descendentes formavam 1/3 da população de Buenos
Aires (SLUYTER, Andrew. Op. cit., p. 103-105).
86
Em épocas de alta demanda, os navios ancorados nos portos africanos demoravam de 4,5 a 5,5 meses para lotar
os negreiros. O retorno do Congo-Angola para o Rio de Janeiro durava, em média, 68 dias. Tudo deia ser calculado
pelo traficante. Um exemplo concreto pode ser dado no caso do fretamento da nau Arsênia. Ela partiu para
Cabinda e levava para a manutenção da tripulação e dos escravos 8 sacas de feijão, 13 de arroz, 110 de farinha, 130
arrobas de charque, 8 pipas de aguardente e 160 alqueires de sal. Em sua viagem anterior ela havia trazido 272
escravos para o Rio de Janeiro (FLORENTINO, Manolo. Op. cit, p. 122-125; 174).
78
Sluyter chamou de tasajo trail esta rota mercantil de carnes que ligava os portos platinos
à Cuba e que manteve-se forte ao longo de todo o século XIX. Além disso, segundo o autor, ao
mesmo tempo em que os principais consumidores do tasajo platino eram os escravos cubanos, a
mão de obra utilizada na fabricação do produto, pelo menos nas primeiras décadas de seu
funcionamento, também era cativa. Portanto, como já se disse, o tasajo era fabricado “por” e
“para” escravos. Neste sentido, a rede mercantil estabelecida entre o Rio Grande do Sul e os
portos brasileiros do sudeste e do nordeste possuía uma conformação semelhante. O charque
pelotense também era fabricado “por” e “para” escravos, embora não fosse consumido
exclusivamente por estes. Contudo, este comércio não se dava somente no interior de ambas as
rotas intra-imperiais. Enquanto os platinos também exportavam suas carnes para os portos
brasileiros, o Rio Grande do Sul, principalmente na primeira metade do oitocentos, remeteu
porções significativas de charque para Havana. 87 Portanto, esta transversalidade comercial
originada nos finais do setencentos, e viabilizada pelos comerciantes situados no interior das
redes trans-imperiais, tiveram significativa importância no processo de formação dos
complexos fabris. Elas garantiram a entrada de escravos africanos no Rio da Prata e o acesso
aos mercados consumidores trans-imperiais para ambos os produtores.
Muitas vezes, estas interações sociais eram estimuladas pelos próprios administradores
ilustrados que ocuparam os seus cargos durante o colonial tardio. O Vice-Rei Juan José de
Vértiz, por exemplo, “hombre activo y progresista”, logo que assumiu seu cargo, em 1778, fez
chegar ao Cabildo de Buenos Aires uma Dissertación de la Sociedad de Sevilla, sobre el
método, reglas y ventajas de la salazón de carnes. No mesmo ano, o Cabildo fez uma proposta
de instalação de uma fábrica, mas ela era repleta de exigências e a Coroa não a aceitou. O
sucessor de Vértiz no Vice-Reinado, o Marquês de Loreto (1784-1789), voltou a incentivar os
investidores, mas desta vez defendeu que os saladeiristas deviam agir por conta própria e sem
subsídios do Estado. Foi nesta época que os saladeros se desenvolveram em Montevidéu.
Conforme Montoya, “la industria de carnes saladas surgió en el Río de la Plata por la sola
iniciativa de algunos particulares que afrontaron por su cuenta y riesgo todas las dificultades
que ofrecía la empresa”. Mas segundo ele, “justo es reconecer que sus esfuerzos siempre
87
Segundo Helen Osório, os anos de maior pico foram 1814, 1816 e 1818, quando os cubanos receberam 9,7%,
6,5% e 13,1% do volume total exportado pelo Rio Grande do Sul (OSÓRIO, Helen. O império português no sul da
fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p. 198). Na década de 1840, este
mesmo índice atingiu, em alguns anos, cerca de 10% (BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio
Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História
da UFRGS, 2011, p. 73).
79
contaron com la adhesión y estímulo de las autoridades del Virreinato y de los Ministros de la
Corona”.88
As muitas décadas de convivência em uma fronteira não muito definida colocava luso-
brasileiros e hispano-platinos numa relação conflituosa, mas que, dependendo das conjunturas e
dos fatores e recursos que estavam em jogo, podia ser utilizada positivamente. Com relação a
isto é possível oferecer mais exemplos. Conforme o depoimento de um padre, conhecido de
Francisco Maciel, este saladeirista, que já fabricava carnes em barris, decidiu produzir charque
e toucinhos “ao estilo dos portugueses do Brasil”. Para tal intento, em 1786, o saladeirista
“mandou trazer expressamente do Brasil homens inteligentes no ramo”.90 As trocas de
experiências também podiam se dar por intermédio de cartas e anotações diversas. O
saladeirista Francisco de Medina possuía entre os seus bens inventariados diversos livros de
economia e ciências, entre outros, assim como papéis onde constavam cópias de um método
para fazer tasajo, um volume contendo apontamentos sobre a salga de carnes e o
aproveitamento das graxas e sebos, além de uma carta escrita em português por um tal José
Arouche sobre os mesmos métodos fabris. 91 O próprio Medina, no início dos seus
88
Essa negociação com as autoridades rendia medidas políticas importantes, como as Ordens Reais de 10.04.1793
e 20.12.1802, onde as carnes salgadas estiveram livres de todo o direito de introdução, extração e comércio
(MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 17-21).
89
Ao analisar as pessoas que faziam parte da rede de Cipriano, Prado ofereceu um modelo do tipo de relações
estabelecidas pelos saladeiristas platinos, demonstrando que os mesmos podiam apresentar íntimas conexões com
comerciantes luso-brasileiros e autoridades coloniais de prestígio (PRADO, Fabrício. Op. cit., 2012).
90
CASTELLANOS, Alfredo. Op. cit., p. 31-32.
91
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 24; MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010.
80
empreendimentos na indústria pesqueira, contou com o auxílio de “arponeros” ingleses e
portugueses.92 Tratam-se de indicações de que salgadores e comerciantes luso-brasileiros
mantinham próximo contato com os saladeros de Montevidéu, ou correspondiam-se com os
seus proprietários, transmitindo conhecimentos técnicos e trazendo outros que poderiam ser
levados para o Rio Grande. Tais conexões revelam a circulação de pessoas em ambos os lados
da fronteira num processo de mútua influência.
Como tenho dito, estas experiências não significavam que as relações entre os grupos
que interagiam tanto na fronteira terrestre quanto nos portos marítimos fossem necessariamente
de cooperação. Em 1801, luso-brasileiros e hispano-americanos engalfinharam-se em uma nova
guerra, desta vez pela conquista das Missões. Não foi o primeiro e nem seria o último conflito
belicoso entre ambos e tal contenda militar não cessou o comércio realizado entre os portos
atlânticos ao sul. Tanto que em 1803, os charqueadores, os estancieiros e os comerciantes rio-
grandeses voltaram a reclamar com o governo central – prática em que eles eram muito
talentosos e que faria escola ao longo do século XIX. O comércio entre Montevidéu e os portos
brasileiros continuava afetando negativamente a economia do Rio Grande e desta vez foi o
próprio Governador da Capitania, Paulo Gama, que reclamou com Lisboa.93
92
MONQUELAT, A. F. Notas à margem da escravidão. Pelotas: Ed. da UFPel, 2009, p. 80.
93
Ofícios de 25.07.1803 – A.1.01 (Arquivo Histórico do RS).
81
compadrio, ou seja, as relações mais afetivas, conviviam junto com relações de negócios e
alianças militares e políticas, configurando uma complexa interação social característica de uma
sociedade de fronteira.94
Um exemplo destas conexões pode ser dado pelo próprio comportamento de alguns
charqueadores nos meses iniciais da Revolta Farroupilha (1835-1845). Com medo de terem
seus negócios prejudicados, pelo menos 4 charqueadores migraram para Montevidéu levando
seus escravos e capitais, vindo a erguer outros saladeros no país vizinho. Entre os mesmos
estavam Antônio José Gonçalves Chaves e o seu sogro Joaquim José da Cruz Secco. É
interessante notar que sua migração foi facilitada pelo fato dos mesmos pertencerem a uma rede
de mercadores com conexões na Banda Oriental. Chaves chegou em Montevidéu dizendo à
polícia uruguaia que iria morar na casa de Diego Martínez. Talvez este cidadão fosse parente de
Francisco Martínez Nieto. Em 1836, este saladeirista, que provavelmente já conhecia Chaves de
muito antes, alugou os escravos deste para trabalharem em sua fábrica.95
Francisco Nieto possuía certo destaque entre os saladeiristas uruguaios, pois foi ele o
primeiro a utilizar caldeiras a vapor nas graxeiras. A primeira caldeira deste tipo que se tem
notícia foi importada da Inglaterra e chegou em Montevidéu no ano de 1831.96 Não demorou
muito e a ideia foi levada para Pelotas pelo charqueador Domingos José de Almeida (conforme
ele próprio).97 Ora, Almeida era sócio e grande amigo de Chaves e acredito que ambos, assim
como outros charqueadores, estavam muito bem sintonizados com as inovações que
desembarcavam em Buenos Aires e Montevidéu, por meio destas redes de relações sociais e
mercantis em que estavam inseridos. Um exemplo inverso desta troca entre charqueadres e
saladeiristas pode ser dado no saladero de Juan Hall, em Montevidéu. Em 1841, conforme
Anibal Pintos, Hall “incorporó algunos adelantos (…) como se acostumbraba a utilizar en el
Brasil”. Pintos se referia à cancha, espaço com piso liso onde o animal era esfolado e carneado
e cujas extremidades apresentavam um declive para que o sangue escorresse em canaletas até o
rio, e o torno, que estava acoplado ao guindaste utilizado para erguer e transportar o bovino
94
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de
Extradição e de Limites. Porto Alegre: PPG-História da UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2002; SOUZA, Susana
B. e PRADO, Fabrício. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX. In: GRIJÓ, Luiz
A.; KUHN, Fábio; GUAZZELLI, César; NEUMANN, Eduardo. Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: EDUFRGS, 2004; MIRANDA, Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime,
fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009; THOMPSON FLORES,
Mariana F. da C.; FARINATTI, Luis A. A fronteira manejada: apontamentos para uma história social da
fronteira meridional do Brasil (século XIX). In: HEINZ, Flávio (Org.). Experiências Nacionais, temas
transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009, p. 145-177.
95
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010; 2012.
96
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 172.
97
Carta de Domingos para Manoel L. do Nascimento, 15.11.1862. CV – 792, in: Anais do AHRS, v. 3, 1978.
82
abatido e laçado até a cancha.98 De fato, tanto o “guindaste” quanto a “cancha” já existiam em
Pelotas desde a década de 1820, como deixou registrado Nicolau Dreys. 99
Estas trocas devem ter se estreitado mais ainda durante a Guerra dos Farrapos, pois,
como demonstrou César Guazzelli, o porto de Montevidéu foi seguidamente utilizado pelos
rebeldes durante o conflito.100 No meado do século, o número de brasileiros com saladeros no
Uruguai, nas margens fluviais que faziam fronteira com o Rio Grande do Sul, já chegava a mais
de 10 proprietários. Dentre eles estavam Delfino Lorena de Souza, João Jacintho de Mendonça,
Honório Luís da Silva e João Vinhas, entre outros.101 Vinhas, que também possuía uma
charqueada em Pelotas, havia comprado o terreno (onde construiu o seu saladero) de Samuel
Lafone, comerciante inglês nascido em Liverpool, e um dos principais saladeiristas do
Uruguai.102 Lafone trouxe mudanças no que diz respeito à higiene dos estabelecimentos, sendo
imitado por outros empresários. 103 Imigrantes trazendo capitais não foram raros no Rio da
Prata, sendo que os mesmos agiam por meio de uma cadeia de informações que ligava as
colônias às praças mercantis ibéricas. Em 1779, por exemplo, Manuel Melián informou-se de
que a Coroa espanhola procurava abastecer a Real Armada com carnes salgadas fabricadas na
América. Foi até Cadiz, onde reuniu todas as informações sobre o processamento de carnes e
depois embarcou para o Prata com o fim de arriscar-se nos negócios.104 As trajetórias de Lafone
e Melián são elucidativas de como os estrangeiros (muitos deles anglo-franceses) chegavam da
Europa com significativos recursos financeiros, algo que parece não ter ocorrido em Pelotas
com a mesma desenvoltura.105
98
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 173.
99
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961, p. 134.
100
GUAZZELLI, César A. B. A República Rio-grandense e a praça de Montevideo (1836-1842). In: HEINZ,
Flávio; HERRLEIN JR., Ronaldo. Histórias regionais do Conesul. Santa Cruz: Edunisc, 2003, p. 147-166.
101
Relação das charqueadas existentes na fronteira do Rio Grande do Sul, s/d. (Coleção de manuscritos. Fundo Rio
Grande do Sul. BN do Rio de Janeiro).
102
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2012, p. 129.
103
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 173.
104
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 147-148.
105
Um outro comerciante revelou em suas memórias que havia chegado no rio da Prata, em 1790, munido de
grandes capitais para investir em saladeros e, segundo ele, baixo a sua direção, teriam surgido 11 estabelecimentos,
entre grandes e pequenos. (BARRIOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 148-149).
83
comumente incorporadas tanto por parceiros de negócios como por concorrentes. Neste sentido,
no interior destas redes de relações, o sucesso de um empreendimento era imitado pelos demais,
enquanto o fracasso devia ser evitado. Daí que, numa realidade agrária, pré-industrial e com
uma diminuta comunidade mercantil e fabirl, além de um contexto de profunda interação entre
os diversos agentes nela envolvidos, as ações individuais tomavam proporções mais decisivas.
Um contemporâneo, em 1794, dizia ter conhecido os catalães Don Miguel Ryan e Don Manuel
Solsona, que tomando o exemplo de sucesso de Francisco Medina, resolveram remeter carnes
para Espanha, “y à imitación de estos van inclinándose algunos otros”. 106 Neste sentido, não se
tratava apenas de um espaço aberto às inovações de caráter econômico, mas igualmente de
transformações de ordem sociocultural.107
106
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 148.
107
BARTH, Fredrik. Process and form in social life. London: Oxford, 1981. Em especial o Capítulo 6.
108
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins,
1942, p. 122; BERUTE, Gabriel. Op. cit., p. 74.
109
PINTOS, Anibal B. Op. cit.,1971 , p. 169. O percentual da população em Montevidéu (18%) é confirmada por
BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Op. cit., p. 7.
84
criolla” da cidade oriental, durante o colonial tardio, alcançou aproximadamente 25% do
total110, em Pelotas, no início dos anos 1830, os 5.623 escravos e os 1.137 libertos somados
ultrapassavam os 62% da população.111 Desnecessário lembrar que se tratava de uma população
considerada fixa e que tais estatísticas não dão conta dos agentes que se locomoviam no
cotidiano de ambas as localidades. Contudo, a partir dos dados enunciados, é possível supor que
enquanto os charqueadores pelotenses estavam mais rodeados de escravos e libertos, os
comerciantes e saladeiristas de Montevidéu, pelo próprio caráter portuário da cidade, tinham
um maior contato com os europeus. Tais características sociais devem ter deixado significativas
marcas socioculturais em ditos grupos de empresários. 112
No entanto, como já mencionei, isto não significa que estrangeiros não tenham buscado
investir nas charqueadas sul-rio-grandenses. Certamente o caso mais ilustrativo envolve o
francês Jean Baptista Roux – provavelmente um dos pioneiros em empregar mão de obra
assalariada nas charqueadas pelotenses. Instalando-se primeiramente em Triunfo, Roux passou
por Porto Alegre, Rio Pardo e Rio Grande até que, em 1846, arrendou a charqueada do
Visconde de Jaguari, em Pelotas. Neste estabelecimento, ele empregou trabalhadores de
diferentes nacionalidades juntamente com 30 escravos alugados, num empreendimento que, em
sociedade com Eugène Salgues, durou pouco mais de cinco anos.113 Décadas mais tarde, a filha
de Roux deixou registrado as lembranças da charqueada do pai:
“Tinha uma casa grande, com jardim, uma quinta com laranjeiras e outras
frutas. Perto um grande terreno, onde matavam os animais, beneficiavam as carnes e
couros, tinha centenas de trabalhadores entre bascos, franceses, espanhóis, argentinos,
correntinos, paraguaios, orientais e africanos. Para morar, tinham cabanas, muitos
tinham família. O trabalho era de quatro horas da manhã ao meio dia. (...). Depois os
homens iam se lavar na beira do rio e se divertiam cada qual a sua maneira. Os bascos
jogavam bola, os argentinos e correntinos cartas, que acabavam as vezes por
disputas”.114
Talvez nenhum charqueador tenha sido tão bem relacionado com estes comerciantes
estrangeiros como Antônio José Gonçalves Chaves. Além das suas próprias relações com
110
BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Op. cit., p. 19.
111
Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. Biblioteca Pública de
Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas:
Armazém literário, 1994, p. 98).
112
Com relação aos charqueadores pelotenses, tais fatores serão analisados no capítulo posterior. Na segunda
metade do século, Pelotas viu esta situação se inverter e um grande número de estrangeiros tomou conta das ruas
da cidade, como demonstro no capítulo 4.
113
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Tese de
Doutorado em História, PUCRS, 2005, p. 115-116. De fato, Roux aparece com frequência nas escrituras públicas
dos cartórios de Pelotas no período (APERS).
114
LEITE, José A. Mazza. “Xarqueadas” de Danúbio Gonçalves: memória de um trabalho através da arte social.
Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2003. A memória parece ter sido escrita no final do século XIX e é
provável que haja um exagero quanto à quantidade de trabalhadores estrangeiros que, certamente, não eram vistos
às “centenas”.
85
Montevidéu, seu filhos circularam o mundo de forma tão diversificada que pareciam estar
inspirados pelo cosmopolitismo do pai. Em 1836, seu filho Tito encontrava-se nos Estados
Unidos, provavelmente em negócios, conforme o próprio relato do irmão. Quase na mesma
época, o primogênito, que administrava a charqueada do pai em Montevidéu, era Vice-Cônsul
brasileiro no Uruguai. Uma das filhas de Chaves casou-se com o comerciante inglês Robert
Barker e outro dos seus filhos formou-se médico, em Paris. Não causa surpresa que Saint-
Hilaire tenha deixado escrito o seguinte trecho sobre o charqueador: “O Sr. Chaves é um
homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito
bem”, em suma, “um dos homens mais esclarecidos da região”.115 Todo este conhecimento de
Chaves, assim como suas opiniões sobre política e economia, bastante liberais para a época,
foram transpostas para o papel entre os anos de 1817 e 1822, sendo impressos num único
volume.116
A impressão que se fica é que homens como Chaves procuravam manter relações
mercantis e pessoais com indivíduos de visão de mundo e interesses semelhantes e que
pertenciam a um restrito círculo de relações. O sogro de Chaves, Joaquim José da Cruz Secco,
numa das viagens para Montevidéu, foi acompanhado do comerciante francês Júlio Paulet,
proprietário de um brigue no porto de Montevidéu. Secco também possuía livros entre seus
bens inventariados, indicando que mantinha o gosto pelas letras.117 Um dos seus sócios, o
charqueador Domingos José de Almeida, foi o principal mentor intelectual da Revolta
Farroupilha, citando um repertório variado de pensadores e escritores da época nos muitos
artigos que escreveu na imprensa. Talvez o projeto mais ambicioso de ambos tenha sido a
construção do primeiro navio a vapor da região sul. As peças do mesmo foram trazidas dos
Estados Unidos (onde o filho de Chaves residia) e o projeto contou com o apoio do charqueador
José Vieira Vianna e do mercador José Marques Canarim – um súdito da Coroa portuguesa que,
conforme Fernando Osório, era nascido na Kanara, sudoeste da Índia. 118 A demonstração de
mais exempos das relações sociais mantidas pelos charquadores pelotenses com indivíduos de
outras regiões seria demasiado cansativo, mas os mesmos serão mencionados ao longo dos
capítulos.
Portanto, apesar dos irlandeses, franceses e ingleses não estarem tão presentes no
complexo charqueador escravista pelotense, seja como trabalhadores e mestres, seja como
115
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 103.
116
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978.
117
Inventário de Thereza Angélica de Sá, n. 126, m. 10, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedoria. 1828 (APERS).
118
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 1, 1997, p. 68.
86
proprietários, não resta dúvida de que parte significativa dos charqueadores interagiram
bastante com os estrangeiros, sobretudo, no porto de Rio Grande. De ambos os lados da
fronteira – as margens do Atlântico foram cenário de forte interação social entre hispano-
platinos, luso-brasileiros, norte-americanos e europeus de nacionalidades diversas. Diante de tal
cenário, não causa surpresa que se pudesse encontrar num jornal de Montevidéu o seguite
anúncio a respeito de um escravo fugido:
Um negro
Fugiu na tarde de 27 do corrente, de nome João, veste uma jaqueta tecido azul, muito
esfarrapada, calças de cor, muito sujas, é natural do Rio de Janeiro, fala portugês,
espanhol e genovês, lhe falta um pouco de cabelo na parte da frente da cabeça, de cor
muito negra (…) Quem o entregar na rua São Carlos (…) será bem gratificado.119
É possível concluir este capítulo reafirmando que, ao mesmo tempo em que os saladeros
competiam com as charqueadas pelos mercados consumidores e o acesso a certas mercadorias,
a interação social portuária e urbana representava uma substancial troca de culturas e ideias,
alimentada pela crescente circulação de burocratas, mercadores e mestres de salga pelas
margens do Atlântico, entre os muitos portos que compunham a rota desde Buenos Aires até
Recife, passando por Havana, Cadiz, Lisboa e Cork, entre outros. As conexões mercantis
estabelecidas no período colonial no interior das redes intra-imperiais acabaram condicionando
os mercados do tasajo e do charque na primeira metade do século XIX. Enquanto os pelotenses
tinham nos portos brasileiros os principais consumidores do charque, os platinos tinham em
Cuba sua principal compradora. Entretanto, isto não significa que o comércio não tomasse sua
forma transversal. Ainda no período colonial, o Rio Grande do Sul remeteu grandes
quantidades de charque para Cuba, enquanto as exportações platinas para o Rio, a Bahia e o
Pernambuco, sempre constituíram-se numa das grandes dores de cabeça dos charqueadores
pelotenses. Tanto no que diz respeito às exportações de charque, quanto às de carne salgada, a
concorrência platina foi lentamente corroendo o complexo charqueador pelotenses, como
demonstrarei adiante.
Portanto, não creio ser possível compreender a história da formação destes três pólos
fabris de forma separada, visto que eles estavam inseridos numa mesma conjuntura mercantil
atlântica que caracterizou o colonial tardio na América do Sul. Esta conjuntura envolvia um
espetacular aumento do tráfico atlântico de escravos num momento de expansão das plantations
açucareiras e cafeeiras nas Américas. Não fossem estas ligações que caracterizaram o colonial
119
Jornal El Nacional, edição de 30.09.1841 apud MONQUELAT, A. F. Charqueadores, Saladeristas y
Esclavistas. Pelotas: UFPel, 2010, p. 97 (tradução de Monquelat, grifos meus).
87
tardio, dificilmente as charqueadas e os saladeros teriam sido montados com tamanho sucesso
no período. Por outro lado, as redes de relações sociais entre comerciantes e autoridades
administrativas garantiram o abastecimento de escravos, o fornecimento de capitais, o
conhecimento técnico, além de favores políticos e informações preciosas sobre os mercados.
Neste contexto, é difícil destrinchar as malhas de mútua influência entre os dois complexos
fabris escravistas surgidos quase na mesma época. Se por um lado a competição entre hispano-
pltinos e luso-brasileiros fornecia um tempero adicional aos fabricantes de carne, por outro, a
interação cooperativa entre indivíduos pertencentes a impérios distintos também era praticada,
apresentando-se como a outra face da mesma moeda.
88
3. UMA ALDEIA ESCRAVISTA: A PRIMEIRA GERAÇÃO DE
CHARQUEADORES E A SUA ELITE (1790-1835)
1
Conforme Vieira Júnior, em 1787, quando o Rio Grande do Sul já exportava grandes quantidades de charque para
o Rio de Janeiro, Pinto Martins ainda residia em Recife (VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. De Família,
Charque e Inquisição se fez a trajetória dos Pinto Martins (1749-1824). In: Revista Anos 90. Porto Alegre, v. 16. N.
30, 2009, p. 187-214.
89
(…) a parte mais importante de sua viagem foi restabelecer a rota de comércio entre o
Rio de Janeiro e o Rio da Prata. Maciel garantiu que navios portugueses seriam bem-
vindos a Montevidéu, especialmente alegando necessidade de aportar para reparos,
sendo esta uma garantia apresentada pelo segundo comandante Cipriano de Melo.
Apesar da estratégia suspeita, o Vice-rei recebeu garantia de don Brás Carneiro Leão,
mercador de “boa reputação e grande crédito” no Rio de Janeiro, dando testemunho da
confiabilidade das autoridades e dos mercadores de Montevidéu e garantindo a
segurança dos navios.2
2
PRADO, Fabrício. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no rio da Prata do século XVIII.
Topói, v. 13, n. 25, jul./dez., 2012, p. 174.
3
Sobre este grupo de comerciantes, ver FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto:
mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 -
c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
4
MONQUELAT, A. F. Diário da Manhã. Pelotas, 22 de novembro de 2010.
5
MONQUELAT, A. F. Desfazendo mitos (notas à história do Continente de São Pedro). Pelotas: Ed. Livraria
Mundial, 2012, p. 63-67. Alexandre dizia encontrar-se em Lisboa por quase um ano e meio.
6
Ofício de 14.02.1795. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 296 (Projeto Resgate).
90
empreitada pareceu trabalhar em parceria com João R. Pereira de Almeida, um dos mais ricos
comerciantes de grosso trato do Rio e que também remetia carnes para Lisboa, como mencionei
no capítulo anterior.7 Em seus requerimentos, era comum Alexandre argumentar no sentido de
querer o melhor para o comércio de todas as capitanias e o desenvolvimento do Reino,
reproduzindo uma retórica imperial provavelmente compartilhada por outras elites coloniais.8
7
Ofício de 07.08.1801. AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, doc. 394 (Projeto Resgate).
8
Em 1795, comerciantes do Rio Grande pediam para que suas embarcações retornassem da Bahia e Pernambuco
com sal, ao invés de terem de improvisar lastro de areia. Segundo eles, este comércio servia “a todas as capitanias
de Portugal especialmente a de Pernambuco e Rio Grande, que ambas exportam os gêneros que tem de sobras nos
seus países e recebem o que precisam como Pernambuco que agradece as porções de carnes e mais mantimentos
que vão do Rio Grande pela esterilidade em que se acha (…) e pode exportar para o Rio Grande o sal que sobra nas
suas oficinas”. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 296 (Projeto Resgate).
9
Como o Rio Grande do Sul não produzia sal, a sua importação sempre foi essencial para o funcionamento regular
das charqueadas. Portanto, a montagem do complexo charqueador nos fins do século XVIII e início do século XIX,
dependeu dos fluxos deste produto para o sul da América lusitana e da produção das salinas brasileiras. Como o
consumo do produto cresceu bastante ao longo dos setecentos, em meados do mesmo século, Portugal estabeleceu
uma legislação especial para o comércio de sal no Brasil. Ao mesmo tempo em que visava o aumento da
arrecadação tributária com os contratos de comércio, a legislação proibia a ampliação das salinas de Pernambuco,
Cabo Frio e Rio Grande do Norte. Portanto, entre 1755 e 1801 vigorou o regime de monopólio sobre as transações
envolvendo o sal e seu abastecimento não podia ser feito pelos rio-grandenses através de importações diretas,
tornando-se necessária a sua importação pelos chamados “portos do Estanco”, ou seja, na Bahia, Rio de Janeiro,
Santos ou Recife. Em 1801, a extinção deste monopólio possibilitou a livre comercialização do sal e a ampliação
da produção nas salinas brasileiras. O fim da antiga prática deve ter sido mais um dos fatores que favoreceram o
desenvolvimento do complexo charqueador no período (CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista
gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983, p. 109-112; 201).
10
Ofício de 09.06.1795. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 298 (Projeto Resgate).
11
HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir
dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006, p. 163.
91
um poderoso grupo da elite local e ele, assim como outros de seus parentes, constituiu-se num
importante mediador entre a capitania e Lisboa.12
Figura 3.1 – Sesmaria do Monte Bonito e Sesmaria de Pelotas (início do século XIX)
12
Uma vez que os membros da família atuaram em diferentes atividades econômicas e ocuparam distintos cargos,
ela também foi estudada por outros historiadores que analisaram as elites sul-rio-grandenses no século XVIII. Ver,
por exemplo, KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa -
século XVIII. Tese de Doutorado. Niterói: PPG em História da UFF, 2006; COMISSOLI, Adriano. Os “homens
bons” e a Câmara municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre: Gráfica da UFRGS, 2008; MARQUES,
Rachel dos Santos. Por cima da carne seca: hierarquia e estratégias sociais no Rio Grande do Sul (c. 1750-1820).
Dissertação de Mestrado, UFPR, 2011. Os maridos das irmãs Silveira são comumente referidos pelos mesmos
como o “bando dos cunhados”.
92
sesmarias eram propriedade das irmãs Silveira e Alexandre era filho de uma delas: a dona
Maria Antônia.13
A colônia do Rio Grande, que tem nos seus vastos campos um manancial inexaurível
de riquezas em pães e gados, e porventura de outros gêneros que o tempo, a cultura, o
aumento e a facilidade de meios industriosos descobrirão, jazia inerte e pobre, fazendo
um pequeno e pouco animado comércio de meras permutações. Nós, Senhora, a
tiramos daquele desalento, enviando lá, anualmente, mais de 30 embarcações, além do
dobrado número que vai do Rio de Janeiro e Pernambuco, fazendo algumas duas e três
viagens no ano, e que lhes levam meios de mais cômoda subsistência e de ampliar a
cultura dos campos, onde se veem já os Povos multiplicados, fartos, contentes e
aplicados – com energia indizível a reproduzir as verdadeiras e mais certas riquezas
dos Estados.14
Um dos primeiros a assinar este documento foi exatamente Pinto Martins, revelando que
pertencia à rede mercantil mencionada. O trecho não poderia ser mais eloquente. Os mesmos
comerciantes, sem nenhuma modéstia, afirmavam que eles retiraram a capitania sul-rio-
grandense do marasmo econômico em que se encontrava, substituindo uma época em que ela
vivia de “meras permutações” por outra de prosperidade, onde os povos encontravam-se
“fartos” e “contentes”. A abertura dos mercados consumidores do nordeste da colônia foi a
responsável por esta “nova carreira” ou o “novo comércio”, como os próprios negociantes
argumentavam. E de fato, como demonstrou Helen Osório, as primeiras remessas do charque
rio-grandense para o nordeste ocorreram entre 1789 e 1790, o que respalda as afirmações dos
mesmos. A “conquista” do mercado consumidor nordestino fez as exportações de charque rio-
13
Para uma detalhada descrição das mesmas ver GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um
estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001.
14
Ofício de 01.10.1796. AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, doc. 318.
93
grandense mais do que quadruplicarem entre 1787 e 1797.15 Ou seja, para aqueles que viveram
próximo às margens dos rios Pelotas e São Gonçalo e puderam presenciar este boom, realmente
tratou-se de uma transformação sem precedentes.
Portanto, o feito narrado pelos comerciantes que assinaram o requerimento, e dentre os
quais estava o próprio Pinto Martins, parecia não ser exagero. Este negociante pertencia a uma
importante rede mercantil com agentes estabelecidos em Salvador e Recife e os mesmos,
associados a outros negociantes de Rio Grande e do Rio de Janeiro, projetaram ampliar a
produção do charque rio-grandense para exportá-lo aos portos do nordeste, já que, antes disso,
os mesmos eram remetidos somente para a capitania fluminense. As secas do início da década
de 1790 tornaram este novo comércio ainda mais fundamental, pois fez aumentar bastante a
demanda por carne-seca nos engenhos nordestinos, uma vez que as oficinas do sertão
encontravam-se em grandes dificuldades. Nas palavras dos mesmos comerciantes que
assinaram o requerimento:
Grande parte da costa e sertão do Brasil padece por seis ou sete meses falta de carnes,
não descendo as boiadas pelas chuvas e inundações do inverno ou pelas secas do estio.
Então as carnes curadas são o único alimento dos pobres mesmo das cidades e todo o
ano o são das escravaturas nas ditas povoações, por maior barateza, por indispensável
necessidade dos engenhos, afastados da borda d’água, aos que não chega nenhum
gênero de pescado, geralmente caro onde o há.16
15
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto
Alegre: UFRGS, 2007.
16
Ofício de 01.10.1796. AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, D. 318 (Projeto Resgate).
94
margens do arroio Pelotas, onde ergueu a sua charqueada, deve ter tido a assistência da família
Silveira e permaneceu ali até o fim de sua vida. 17
Como atestam diferentes historiadores, a família de Pinto Martins era uma das mais
notáveis na produção e no comércio das carnes no norte e nordeste da colônia. Portanto, sua
migração não resultou em uma ascensão social, pois Martins já era membro das elites da
capitania cearense. 18 Tal posição social pode ter facilitado o seu contato com Alexandre e
legitimado a sua aproximação com os Silveira. Além do mais, Pinto Martins não migrou
sozinho, pois o seu irmão Antônio, que negociava sal no nordeste da colônia, residia com ele na
charqueada. A fonte de prestígio dos irmãos certamente decorria do fato deles conhecerem as
principais rotas mercantis do nordeste da colônia, incluindo os seus principais comerciantes e as
limitações e possibilidades daqueles mercados. O presente capítulo busca analisar esta nova
sociedade surgida nas margens do São Gonçalo e do Pelotas durante a Era de Pinto Martins.
Nos primeiros anos de funcionamento das charqueadas, Pelotas não era nada mais do
que um mero povoado sob a jurisdição da vila de Rio Grande. No entanto, no início do século
XIX, as margens dos rios São Gonçalo e Pelotas já estavam pontilhadas por rústicos galpões de
charquear rodeados de ranchos, estâncias e vendas de beira de estrada. Nas primeiras
17
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2012, p. 123-125. Conforme o autor, nesta época foi comum os charqueadores
erguerem seus galpões em terrenos de terceiros, arranchando-se em terras de familiares, por exemplo.
18
VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Op. cit.; ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes”: no Siará Grande:
dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802).
Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012; OLIVEIRA, Almir L. de. O comércio de carnes secas do Ceará na segunda
metade do século XVIII: as dinâmicas do mercado colonial. In: MOURA, Denise; LOPES, Maria; CARVALHO,
Margarida (Org.). Consumo e abastecimento na história. São Paulo: Alameda, 2011, p. 167-188.
95
estatísticas do início do século XIX, organizadas em 1805, já era possível perceber que aquela
aldeia havia crescido, contribuindo para que a freguesia de Rio Grande, da qual ela fazia parte,
compusesse quase ¼ da população total da capitania.19 Esta freguesia reunia 10.168 habitantes,
dos quais 3.295 eram escravos, 351 eram libertos e 57 eram índios. A população classificada
como branca reunia 3.497 homens e 3.008 mulheres, totalizando 64% das pessoas. 20 Não é
possível saber o percentual de moradores livres e escravos que pertenciam tanto à vila de Rio
Grande quanto ao povoado de Pelotas, mas é muito provável que boa parte daquela escravaria
(ela somava 23,9 % dos cativos de toda a capitania) estivesse trabalhando nas charqueadas.21
19
Ofício de 30.09.1806. AHU-ACL-CU-019, Cx. 11, Doc. 669 (Projeto Resgate). A capitania era composta por 14
freguesias. Sua população total era de 41.023 pessoas, das quais 13.800 eram escravos e 2.502 libertos.
20
Os recém-nascidos somavam 556 e os mortos 183. Ambos os grupos não foram contabilizados entre o “Total da
Povoação”.
21
Os escravos estavam divididos em 125 pardos, 94 pardas, 2.280 pretos e 796 pretas. Os libertos em 127 pardos,
131 pardas, 31 pretos e 62 pretas.
22
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 41-50. No período de expansão do tráfico
(1809-1824), Berute verificou um índice de 95% de africanos importados, sendo 19% ladinos (BERUTE, Gabriel.
Dos escravos que partem para os portos do sul: caracerísticas do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do
Sul, c. 1790- c. 1825. Dissertação de Mestrado, PPG-História da UFRGS, 2006, p. 51).
23
A guerra paralisou a cidade de Pelotas e obrigou muitas famílias a migrarem para Montevidéu, Rio Grande e a
Corte. Além do mais, o fim do tráfico atlântico (1850) contribuiu para a diminuir o crescimento da população
escrava, embora ela tenha continuado aumentando até a década de 1870, como analisarei em capítulo posterior.
96
mestiços que podem ter ascendido socialmente. 24 Cerca de 52% desta população branca residia
na vila, apresentando um significativo índice de urbanidade que discutirei no capítulo posterior,
assim como a presença estrangeira em Pelotas, algo que, em 1833, ainda estava em sua fase
incipiente. O interesse maior neste momento é o percentual cativo das estatísticas. A Tabela 3.2
mostra que dos 5.623 escravos recenseados em Pelotas, 67,4% eram africanos. Este índice era
consequência de anos de tráfico atlântico e do maior poder aquisitivo dos charqueadores se
comparado aos criadores do interior do Rio Grande do Sul. Além disso, outras pesquisas
demonstraram que a Lei de 1831 não foi capaz de inibir o tráfico de africanos para Pelotas.25
Com relação às cores da população cativa tem-se 5.169 qualificados como pretos
(somando 92% dos escravos, com 3.744 homens e 1.425 mulheres) e 454 como pardos
(compondo 8% do total, com 186 homens e 268 mulheres). Cruzando estes dados com os da
Tabela 3.3, percebe-se que havia tanto crioulos quanto africanos entre os escravos classificados
como pretos, com um percentual maior dos segundos (78% entre os homens e 60,7% entre as
mulheres). Como não foi discriminada em quais faixas etárias os crioulos e os africanos foram
distribuídos, não é possível verificar a quantidade de africanos em idade adulta. Este dado só é
possível de ser verificado entre os escravos pretos e pardos.
No total, 80% da população escrava possuía entre 11 e 50 anos, sendo que destes, 71,5%
eram homens e 28,5% mulheres (razão de sexo de 256 homens para cada 100 mulheres).
Analisando este mesmo índice somente entre os pretos tem-se 80,7% com uma razão de sexo de
285 e entre os pardos de 70,1% com uma razão de sexo de 153. Observa-se, a partir destes
dados, que o desequilíbrio entre os sexos estava presente tanto entre pardos como entre pretos –
denotando o tráfico tanto de africanos como de crioulos para a região.
24
Exemplos de como esta mobilidade era possível podem ser vistos em GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro:
trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, 1798 – 1850). Rio de Janeiro: Mauad X/
FAPERJ, 2008.
25
PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas
(1830-1850). Dissertação de Mestrado. Unisinos, 2012; COUTO, Mateus. A pia e a cruz: a demografia dos
trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859). Passo Fundo: Ed. da UPF, 2011.
97
Tabela 3.2 - Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833
Escravos
Pardos Pardas Crioulos Crioulas Africanos Africanas Total
186 268 819 559 2925 866 5623
Fonte: Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 98).
98
Tabela 3.3 – Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. População dividida por nacionalidade, cor, condição
jurídica, freguesia, distritos e fogos (1833)
População divida pelos fogos e Estrangeiros Brasileiros Índios Libertos Escravos Total
freguesias
N. de Brancos Brancos Pardos Pretos Pardos Pretos
Fogos H M H M H M H M H M H M H M
Freguesia Vila 1º Distrito 257 118 24 386 345 11 10 45 58 11 33 37 76 749 360 2263
de São F. 2º Distrito 366 131 26 514 495 11 26 81 93 35 52 42 34 566 338 2444
de Paula Pelotas 3º Distrito 260 37 7 358 351 9 11 101 107 36 34 40 107 1435 359 2992
Boqueirão 4º Distrito 253 10 1 325 336 15 24 110 105 25 18 34 34 573 229 1839
Buena 5º Distrito 263 20 4 217 228 27 36 70 73 28 22 33 17 421 139 1335
Soma 1.399 316 62 1.800 1.755 73 107 407 436 135 159 186 268 3.744 1.425 10.873
Fonte: Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 98).
99
A partir dos mesmos indicadores também é possível observar um maior contingente de
escravos concentrados no 3º distrito de Pelotas, onde a maioria das charqueadas estava
estabelecida.26 Nele, a população escrava de cor preta era muito superior aos demais distritos e
a razão de sexo era de 316 homens para cada 100 mulheres, evidenciando a concentração de
homens cativos e africanos no universo das charqueadas. O rápido crescimento do número de
escravos e sua concentração numa área pequena passou a preocupar alguns proprietários
pelotenses, sobretudo os charqueadores, que eram os principais senhores escravistas. Em maio
de 1832, por exemplo, temendo alguma ação das classes subalternas em geral, a Câmara de
vereadores escreveu ao Presidente da Província alertando-o:
(...) sendo esta Vila pela sua posição sujeita ao geral trânsito do povo de
toda a fronteira, e onde diariamente aparecem pessoas desconhecidas, e malfeitores,
além de ter em seu distrito numerosa escravatura, e que por isso é indispensável à
autoridade encarregada da polícia ter a sua disposição uma força com que possa
contar para diligências rápidas (...).27
Meses depois, os vereadores escreveram novamente para avisar que não permitiriam que
os Guardas Nacionais do município fossem destacados para a fronteira, com o fim de defendê-la
contra os supostos invasores uruguaios. Os motivos de tal receio eram bem claros:
Portanto, como os uruguaios estavam em guerra civil, o maior temor era das investidas
de chefes militares estrangeiros com o fim de recrutar possíveis aliados e soldados entre os
escravos, com a promessa de liberdade. Dois anos depois, por motivos semelhantes, o Juiz de
Paz escreveu ao Presidente reclamando da ida dos Guardas Nacionais para outro município,
quando os mesmos:
26
ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994.
27
Correspondência da Câmara Municipal de Pelotas, 11.05.1832, m. 103, AHRS.
28
Correspondência da Câmara Municipal de Pelotas, 06.08.1832, m. 103, AHRS.
100
força que os faça conter em seus delírios, pode resultar então desastrosos e
irremediáveis males.29
A apreensão dos grandes senhores de escravos também se devia pelo simples fato de que
muitas lideranças do quilombo eram ex-escravos de ricos charqueadores que, mesmo fugidos,
continuavam mantendo contato com seus antigos companheiros de cativeiro, obtendo
informações preciosas sobre o que acontecia na casa dos seus senhores. Tendo sido presos
alguns quilombolas envolvidos no episódio, parte de seus planos foram descobertos, sendo o
mais alarmante o fato de eles planejarem saquear a Câmara municipal, os quartéis de Pelotas e
as charqueadas de alguns senhores em busca de mulheres escravas e mantimentos. Uma das
negras detidas confidenciou a uma cativa de um charqueador que “eles sabiam tudo o que
ocorria, fosse na vila, fosse nas charqueadas”. 31
Longe dali, mas na mesma época, estourava a Revolta dos Malês (1835), encerrando um
ciclo de rebeliões escravas que se iniciara na Bahia, em 1807.32 A rebelião em Salvador chegou
até os ouvidos das autoridades no extremo sul do Império, acentuando ainda mais o medo de
que algo parecido ocorresse em Pelotas. Em fevereiro de 1835, os vereadores escreveram
novamente ao Presidente alertando-o de que mesmo com a repressão aos Malês, “podem ainda
os seus efeitos causar danos irreparáveis, porquanto, sendo esta província ordinariamente o
receptáculo dos escravos de má conduta que doutras províncias do Império vêm a vender,
principalmente depois que a do Maranhão deixou de os receber”. O receio dos vereadores
29
Juizado de Paz de Pelotas, 04.07.1834. Justiça, M. 18, Pelotas, AHRS.
30
AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: Polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-
1857). Pelotas: Sebo Içaria, 2008, p. 53. Sobre o mesmo assunto ver também MOREIRA, Paulo; AL-ALAM,
Caiuá; PINTO, Natália. Os calhambolas do General Manoel Padeiro: práticas quilombolas na Serra dos Tapes
(RS, Pelotas, 1835). São Leopoldo: Oikos, 2013.
31
AL-ALAM, Caiuá Cardoso. Op. cit., p. 52-56.
32
REIS, João José. O levante dos malês: uma interpretação política. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo.
Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 99-122.
101
baseava-se nas informações de que uma “porção de escravos nagôs e haussás” seria remetida da
Bahia para o porto de Rio Grande e:
Não há notícias de que tenha ocorrido algo mais sério do que as ameaças do quilombo
de Manuel Padeiro. O fato é que no imaginário social compartilhado por alguns charqueadores
havia um possível perigo de alguma rebelião acontecer, e tal medo parecia se justificar pelo
grande contingente de trabalhadores escravos num espaço territorial bastante diminuto, como já
foi dito.34 Guardadas as devidas proporções, os índices de percentagem de escravos e da
população africana existentes em Pelotas no início da década de 1830 eram bastante próximos
das principais regiões de plantations açucareiras e cafeeiras do Brasil, o que demonstra o
impacto do tráfico atlântico em Pelotas e como a economia charqueadora dependia dele. Na
Tabela 3.4 busquei indicadores semelhantes para as mencionadas regiões de plantations,
privilegiando os períodos aproximados ao ano do censo pelotense de 1833. Como nem todos os
pesquisadores tiveram acesso a estatísticas mais detalhadas e às listas de habitantes, a
comparação tem alguns limites, mas trata-se somente de um exercício analítico.
Os dados elencados podem variar de município para município dentro de uma mesma
província e na mesma região dependendo do ano em que se observa. No entanto, busquei
estatísticas das localidades mais representativas das determinadas regiões e setores econômicos
e as com melhores informações para a comparação. Além disso, o período em recorte não
corresponde ao auge do agro de cada região. Se em Minas, o complexo cafeeiro dava os seus
primeiros passos, em Vassouras ele já começava a entrar no seu período de expansão. O mesmo
serve para o açúcar, que, passado sua época de grande auge, vinha perdendo espaço para o café
no quadro das exportações brasileiras, fenômeno que parece refletir-se nos dados, ao menos
para estes municípios. Talvez estes indicadores ajudem a mostrar que complexos escravistas
mais jovens, como o cafeeiro e o charqueador, necessitavam importar mais mão de obra do que
33
Correspondência da Câmara Municipal de Pelotas, 27.02.1835, m. 103. AHRS.
34
Conforme Jorge E. Assumpção, na mesma época, um outro charqueador alertou a Câmara de que o perigo
propagado por alguns proprietários reserva-se apenas aos escravos minas e que o temor contra aliciadores orientais
era infundado (ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit., p. 269). Tratarei mais da administração dos escravos das
charqueadas no capítulo 6.
102
regiões açucareiras mais estabelecidas, como Campos e Iguape, o que ajudaria a explicar o
menor índice de africanos e a menor razão de sexo destes últimos.
Tabela 3.4 – Comparação da população escrava, razão de africanidade e sexo de Pelotas com
outras regiões de plantations brasileiras (1829-1840)35
Regiões açucareiras
Regiões cafeeiras
Assim como em todas as regiões do Brasil, boa parte da população cativa de Pelotas
estava concentrada nas mãos de poucos senhores. Contabilizando o número de escravos
arrolados nos inventários post-mortem do município entre 1800 e 1835, verifiquei que os
proprietários com 50 ou mais cativos, apesar de representarem somente 5,4% dos inventariados,
eram donos de 33,6% dos escravos. A partir da Tabela 3.5 também é possível perceber que
mais de 40% dos donos de escravos em Pelotas eram senhores de pequenos plantéis (de 1 a 4
35
Para Vassouras consultei SALLES, Ricardo. E o vale era escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos
no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Os dados de Santana da Paraibuna foram
retirados de OLIVEIRA, Mônica R. de. Negócios de famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura
mineira (1780-1870). Bauru/Juiz de Fora: EDUSC/Funalfa, 2005. Para os indicadores de Areal, consultei LUNA,
Francisco Vidal. Areias: posse de escravos e atividades econômicas (1817-1836). Cadernos N. E. H. D, n. 2, 1995;
LUNA, Francisco Vidal. População e atividades econômicas em Areias (1817-1836). Estudos Econômicos, 24(3),
set/dez, 1994, p. 433-463. Iguape era uma “freguesia açucareira tradicional do Recôncavo baiano” localizada na
comarca de Cachoeira. Seus dados foram retirados de BARICKMAN, Bert. E se a casa-grande não fosse tão
grande? Uma freguesia açucareira do Recôncavo Baiano em 1835. Afro-Ásia, n. 29/30, 2003, p. 79-132. Para o
oeste paulista utilizei LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia escravista de São
Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 77. Os números da tabela reúnem dados reunidos pelos
autores nas consideradas “vilas açucareiras”, ou seja, Campinas, Guaratinguetá, Porto Feliz, Itu, Jundiaí, Mogi
Mirim, Pindamonhangaba, São Sebastião e Piracicaba. Para Campos dos Goitacazes utilizei SOARES, Márcio de
S. Presença africana e arranjos matrimoniais entre os escravos em Campos dos Goitacazes (1790-1831). História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 52, 2010, p. 75-90.
103
cativos). Portanto, assim como em outras regiões do Brasil, apesar da concentração verificada, a
posse de cativos estava disseminada por todos os setores da sociedade. A inexistência de listas
de habitantes, como as utilizadas pela historiografia paulista e mineira, impede uma análise
mais abrangente. Tendo em vista as semelhanças apontadas entre Pelotas e as demais regiões
(conforme a Tabela 3.4), não vejo motivos para crer que em Pelotas fosse tão diferente.
Portanto, Pelotas também parece servir como laboratório de análise para se entender as
regiões de grandes plantéis de escravos no Brasil. Seus dados acerca do percentual de cativos
em relação aos homens livres, a razão de sexo e africanidade e os índices de concentração de
36
SALLES, Ricardo. Op. cit., p. 168.
104
escravos são equivalentes ao das regiões de plantations açucareiras e cafeeiras. Isto demonstra
que a sua economia era bastante dependente do tráfico atlântico e ajuda a explicar o apego da
sua elite à escravidão.37 Neste sentido, a posse de cativos pode servir como ponto de partida
para definir a primeira elite charqueadora em Pelotas. Sabe-se que o tamanho do plantel de
escravos no espaço agrário brasileiro do oitocentos estava bastante relacionado com a posição
dos seus proprietários nas hierarquias socioeconômicas locais. 38 Dos 20 maiores escravistas
pelotenses inventariados entre 1800 e 1835 (possuidores de 35 ou mais cativos) pelo menos 15
(75%) eram proprietários de charqueada. Estes 15 charqueadores, apesar de comporem somente
8% de todos os inventariados no período, concentravam 41% dos escravos e apresentaram um
plantel médio de 69 cativos. Dentre os mesmos, José da Costa Santos foi o maior proprietário
com 172 escravos e José Pinto Martins o menor com 35.
37
Mas seria equivocado considerar que estas regiões explicassem por si só a escravidão no Brasil, uma vez que,
nos últimos anos, demonstrou-se que parte substancial dos cativos estavam concentrados nas mãos de pequenos
produtores e em regiões voltadas para o abastecimento de gêneros. Tratarei mais deste tema nos capítulos 5 e 6.
38
LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Op. cit., 2005, p. 138.
39
A listagem foi elaborada a partir de uma relação de charqueadores descrita por João Simões Lopes Neto nos
anos 1920 e reproduzida em MARQUES, Alvarino. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p.
99-102. Busquei complementar a lista localizando todos os proprietários que possuíam charqueadas em seus
inventários post-mortem (em Pelotas). Acrescentei outros nomes a partir das contribuições de outros autores, como
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., OSÓRIO, Helen. Op. cit.; ARRIADA, Eduardo. Op. cit. Muitos tiveram seu
patrimônio inventariado somente depois de 1835 e outros não tiveram seus bens inventariados. Incluí neste grupo
de 62 charqueadores aqueles cujas propriedades estavam instaladas para além das margens do São Gonçalo e do
Pelotas, tanto ao norte, na Estância São Lourenço, quanto ao sul, às margens do rio Piratini. Este grupo é pequeno
(inclui cerca de 10% dos proprietários), mas estes charqueadores e seus familiares tiveram importante destaque na
história de Pelotas e uma análise mais completa da elite charqueadora não poderia deixá-los de fora. Uma listagem
completa de todos os charqueadores em Pelotas no século XIX está reproduzida nos “Anexos” desta tese.
40
As informações foram coletadas nos testamentos, em diferentes genealogias e publicações relacionadas à história
de Pelotas, arroladas na bibliografia final.
41
Ver, por exemplo, PEDREIRA, Jorge. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-
1822): diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Tese de Doutorado. UNL: Lisboa, 1995;
105
locais do Império português e um nascido na Espanha. Trata-se de um perfil um tanto distinto
do complexo saladeril platino, uma vez que nenhum estrangeiro de língua inglesa ou francesa
foi proprietário de uma charqueada pelotense no período.42
ALMEIDA, Carla. Homens ricos, homens bons: Produção e hierarquização social em Minas Colonial: 1750-
1822. Tese de doutorado Niterói. ICHF/UFF. 2001; OSÓRIO, Helen. Op. cit.
42
Alguns poucos estrangeiros de língua inglesa e francesa arrendaram estabelecimentos de charqueada em Pelotas,
principalmente, após a década de 1830, como Jean Batista Roux e Eugene Salgués.
43
FRAGOSO, João. Mercados e negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do Império português
(séculos XVII e XIX). História: Questões & Debates, n. 36, 2002, p. 99-127. Helen Osório percebeu que as
primeiras gerações de comerciantes no Rio Grande eram formadas por mercadores oriundos do Rio Janeiro
(OSÓRIO, Helen. Op. cit.).
44
Para detalhes a respeito da trajetória dos membros da família ver Habilitação de Familiares, maço. 157, doc.
1267. Direção Geral de Arquivos. Torre do Tombo (Lisboa). O primeiro a utilizar tal fonte com propriedade foi
VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Op. cit.
106
demonstra que, além das relações mercantis com Recife, Pinto Martins continuou mantendo
relações de caráter pessoal e afetivo na mesma cidade, para onde havia recentemente enviado
um brigue carregado de charque, conforme uma conta no seu próprio inventário. 45
Outro caso pode ser dado na trajetória de Domingos José de Almeida. Nascido em
Diamantina, na capitania das Minas Gerais, Domingos encontrava-se realizando negócios na
Corte, quando partiu para o Rio Grande onde planejara comprar uma tropa de mulas. No
entanto, acabou estabelecendo-se na capitania. 46 Anos depois, por meio do matrimônio, inseriu-
se numa das famílias de charqueadores mais poderosas de Pelotas, onde, ele próprio erigiu uma
charqueada próxima à fábrica de seu sogro. De acordo com Carla Menegat, quando Domingos
foi vereador na Câmara de Pelotas usava exemplos da administração municipal em Minas
Gerais para defender suas propostas.47 Outro caso pode ser dado na trajetória do espanhol
Domingos Rodrigues que, uma vez estabelecido em Pelotas, ergueu sua charqueada e alcançou
riqueza e prestígio notáveis. Seus dois filhos, nascidos no Rio Grande do Sul, dividiram-se
entre os negócios no Uruguai e no Rio de Janeiro.
Pelo fato do Rio ser o principal porto da América portuguesa, os olhares e projetos
destes comerciantes e charqueadores rio-grandenses estavam sempre atentos aos seus fluxos
mercantis. 48 Com a vinda da família real, em 1808, e o estabelecimento da Corte na mesma
cidade, esta proeminência tomou proporções políticas e administrativas ainda maiores. Os
comerciantes de grosso trato do Rio atuavam em setores-chave da economia colonial, como a
exportação de açúcar e café, o abastecimento de alimentos e o tráfico atlântico, entre outros. Por
não participar diretamente do comércio com os portos da África e, até 1808, nem com outros
portos do Atlântico norte, os comerciantes-charqueadores tiveram que estabelecer relações
mercantis com agentes externos ao porto sulino. Neste sentido, a formação de circuitos
mercantis eivados de relações sociais e de redes de reciprocidade entre agentes de diferentes
regiões foi comum na época e tornou-se fundamental para o funcionamento do mercado
colonial e do desenvolvimento das próprias elites locais no interior do Império português.49
45
Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, Rio Grande, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1832 (APERS).
46
Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão, Pelotas, 07.12.1859. Anais
do AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, p. 154.
47
MENEGAT, Carla. Domingos José de Almeida: o Estadista da República Rio-grandense. Curitiba: Instituto
Memória, 2010.
48
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
49
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
107
de origem, além de investir o capital mercantil na produção, mas sem deixar de desprender-se
das práticas e conexões mercantis externas. No entanto, somente uma minoria conseguia atuar
em ambos os ramos de atividades com sucesso. Uma análise mais profunda das atividades
econômicas realizadas pelos charqueadores desta primeira geração revela uma significativa
presença de alguns deles no alto comércio. Pesquisando os inventários dos 62 charqueadores
atuantes na época, elenquei somente aqueles que tiveram seus bens avaliados antes de 1850,
totalizando 28 documentos. Destes 28, pelo menos 7 possuíam embarcações de longo curso,
como sumacas, bergantins e brigues (alguns em sociedade com outros comerciantes).
Além disso, segundo Berute, Miguel da Cunha Pereira também negociou escravos com
o interior da capitania, entre os anos de 1813 e 1819. Portanto, é provável que fizesse parte de
uma rede de atravessadores constituída desde a chegada dos escravos nos portos do Rio, Recife
e Salvador até a sua negociação em Pelotas e nos municípios do interior e que os charqueadores
envolvidos com o comércio marítimo de mercadorias estivessem inseridos no interior destas
mesmas cadeias de relações.56 Além disso, apesar de a maioria ter recebido cativos por meio de
consignações, alguns charqueadores parecem ter trazido escravos nas viagens de retorno dos
seus próprios navios, quando do desembarque de charque nos portos do Rio, Bahia e
Pernambuco. Em 1839, Domingos José de Almeida, por exemplo, teve o seu Brigue Leal
apreendido “por ser encontrado com pretos africanos a bordo para o comércio de escravos”. 57
54
Códice da Fazenda (F-69). Sizas de Escravos. Rio Grande: 1812-1822 (AHRS). Agradeço novamente a Berute
pela busca e transcrição referentes a este Códice. Dos 24 charqueadores, 11 foram registrados como vendedores.
No entanto, conforme Berute, não fica claro se os compradores vieram a ser os proprietários dos cativos ou se os
revenderiam. A hipótese da revenda é bastante plausível, sobretudo nos casos onde se comprava uma grande leva
de escravos, como a realizada pelo charqueador José da Costa Santos que, em 26 de novembro de 1819, registrou
138 cativos no livro de sizas.
55
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 91-92.
56
Sobre o tráfico atlântico e os traficantes no período ver FLORENTINO, Manolo. Op. cit.; RODRIGUES, Jaime.
De costa a costa. Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio deJaneiro (1780-
1860). São Paulo: Cia das Letras, 2005; REIS, João José; GOMES, Flávio; CARVALHO, Marcus. O alufá Rufino:
tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853). São Paulo: Cia. das Letras, 2010;
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia das
Letras, 2000; RIBEIRO, Alexandre. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos, grupo
mercantil (1750-1800). Tese de Doutorado: PPGHIS/UFRJ, 2009; BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006.
57
MONQUELAT, A. F. Notas à margem da escravidão. Pelotas: Ed. da UFPel, 2009, p. 52.
109
Entre os importadores de sal, além do mencionado José da Costa Santos, foram
localizados na listagem de Berute, Antônio José de Oliveira Castro, Antônio Francisco dos
Anjos e João Simões Lopes.58 Certamente o número devia ser maior, embora não devesse
envolver muitos outros charqueadores além do pequeno grupo citado até aqui. Estes mesmos
comerciantes também deviam estar envolvidos com as exportações de charque e couros, visto
que era comum os mesmos navios que descarregavam sal retornarem com os produtos das
charqueadas. 59 Estas conexões mercantis também podem ser medidas a partir na análise das
procurações passadas em Rio Grande. Pesquisando tais documentos, entre 1811 e 1850, Berute
verificou que, em Rio Grande, foram passadas 7.745 procurações pra 2.181 pessoas diferentes.
Separando somente os outorgantes que eram comerciantes (1.519 procurações ou 17,8% do
grupo) ele constatou que o Rio de Janeiro concentrava 21,2% das mesmas, enquanto Santa
Catarina, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Maranhão somavam 20,6% delas. Portugal foi o
destino de 5,5% das procurações e o Uruguai 0,8% delas. Um dos 10 agentes acionados em
Portugal pelo comerciante Mateus da Cunha Telles foi Manuel Souza Freire & Cia, “um dos
mais importantes negociantes e contratadores de Lisboa”, e que também atuava no tráfico
atlântico com a África e no comércio com Bahia, Pernambuco e Maranhão.60
Cruzando todas estas fontes e listagens mencionadas até aqui, é possível considerar que,
dos 62 charqueadores desta primeira geração, um grupo aproximado de 12 a 15 charqueadores
(19% a 24%, sendo alguns deles aparentados), dependendo dos critérios que se usa, pode ser
analisado de uma forma distinta dos demais, pois tiveram uma relação mais próxima com o
comércio marítimo, seja atuando diretamente nestas atividades por meio de suas embarcações,
seja atuando na exportação e importação consignada a partir do porto de Rio Grande. 61 Mas
nem mesmo este pequeno grupo deve ser visto de forma homogênea. Alguns charqueadores têm
o seu nome mais associado aos negócios marítimos do que outros. Portanto, o comércio de
cabotagem pelas margens do Atlântico sul estava reservado a poucos rio-grandenses –
notadamente a elite econômica na qual comerciantes e charqueadores se destacavam.
58
A listagem dos importadores de sal realizada pelo autor teve como base registros entre 1804-1815 e 1834-1851.
59
SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX.
Monografia de conclusão do curso de História da FURG. Rio Grande, 2006. Os dados de exportação de charque e
couro elencados por Berute são posteriores a 1830. Neles aparecem alguns charqueadores, mas os mesmos fogem
do período de análise tratado neste capítulo.
60
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 242-243.
61
Os principais eram Antônio José de Oliveira Castro, Antônio Francisco dos Anjos, Domingos Rodrigues,
Domingos de Castro Antiqueira, Antônio José Gonçalves Chaves, Boaventura Rodrigues Barcellos e os seus
irmãos, José Pinto Martins, Antônio Soares de Paiva, José da Costa Santos, Joaquim José da Cruz Secco, entre
outros.
110
Poucos charqueadores devem ter se aventurado em viagens mais longas. Talvez o
Comendador Antônio José de Oliveira Castro tenha sido o que maior sucesso obteve nestas
empreitadas. Matriculado como negociante de grosso trato na Corte desde 1816, ele foi o único
charqueador que esteve presente em todas as listagens organizadas por Gabriel Berute. Em
1848, por ocasião da morte de sua esposa, o advogado de Castro justificou a demora da
avaliação dos bens do casal: “como é notório, tem a casa do suplicante muitas e diversas
transações, cuja liquidação depende de notícias e informações de vários pontos não só do
Império, mas ainda da Europa, para onde dirige seus navios”. Tendo em vista o volume de
negócios que praticava, não causa surpresa que a avaliação dos seus bens, em 1848, apresentava
o maior patrimônio e plantel de escravos de Pelotas na primeira metade do oitocentos – prova
de que o capital mercantil estruturava e organizava o capital produtivo, ou seja, as bases do
complexo charqueador escravista pelotense.62 Contudo, os benefícios decorrentes desta posição
superior na hierarquia social não eram exclusivamente econômicos, como demonstro a seguir.
62
Inventário de Francisca A. de Castro, n. 293, m. 21, 1848, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria (APERS).
63
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 239.
64
RODRÍGUEZ, Manuel Bustos. Cádiz en el sistema atlántico: la ciudad, sus comerciantes y la actividad
mercantil (1650-1830). Universidad de Cádiz, 2005, p. 185-230; KICZA, John E. Empresarios coloniales.
Familias y negocios en la ciudad de México durante los Borbones. México, FCE, 1986; SOCOLOW, Susan. Los
mercaderes del Buenos Aires virreinal: familia y comercio. Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 1991. SAMPAIO,
Antônio C. Jucá. Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do
setecentos. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio C. J.; ALMEIDA, Carla (Org.). Conquistadores e
negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 225-264; PEDREIRA, Jorge. Op. cit; OSÓRIO, Helen. Op. cit., FRAGOSO, João;
FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
111
grosso trato no Rio, remetiam escravos para o Rio Grande do Sul. 65 Um destes agentes foi o
capitão Antônio Soares de Paiva, que também teve uma charqueada, mas destacou-se por ser
“negociante de grosso trato no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, e contratador dos
dízimos das carnes e couros do Rio Grande durante vários anos”. Enviando seus navios para o
Rio e o nordeste, o capitão também teve sociedade na arrematação de contratos com
importantes comerciantes cariocas.66
O prestígio social e a riqueza do capitão Paiva possibilitaram bons casamentos aos seus
filhos. Um deles contraiu matrimônio com uma filha do charqueador Domingos de Castro
Antiqueira. Apesar da esposa de Antiqueira ter falecido em 1829, o inventário dos bens do casal
foi aberto somente em 1840. Segundo o seu advogado: “não pode o suplicante proceder
prontamente nos termos do respectivo inventário, em razão de estar embaraçado com a
liquidação de grandes contas que tinha em diferentes praças do Império, de cujo resultado
dependia a fatura do mesmo inventário”.67 Estes negócios devem ter sido importantes e
certamente estavam na base da fortuna deste charqueador. Em 1852, em seu testamento,
Antiqueira, que agora já assinava como Visconde de Jaguari, mandou rezar mil missas no Rio
de Janeiro “por atenção daquelas pessoas com quem tratei negócios”. 68 Além disso, as
procurações passadas em cartório, no ano de 1832, deixam claro quem eram alguns dos seus
parceiros comerciais no interior da província, no Rio e em Pernambuco. No entanto, um dos
mais importantes estava na Bahia. 69 Natural do Rio Grande, Antônio Pedroso de Albuquerque
estabeleceu-se definitivamente em Salvador por conta da Revolta dos Farrapos. Conforme
Pierre Verger, Albuquerque foi um dos comerciantes mais ricos da Bahia. Atuou no tráfico
atlântico no nordeste e no Rio, tendo sido proprietário de 20 navios. Carregava charque para o
nordeste e não causa surpresa que tenha continuado mantendo relações mercantis com sua terra
natal, onde sua família possuía importante prestígio em Rio Pardo.70
65
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p. 143.
66
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do
Globo, 1937, p. 128; OSÓRIO, Helen. Op. cit., 2007, p. 323.
67
Inventário de Maria Joaquina de Castro, n. 74, m. 3, Rio Grande, 1º cartório do cível, 1840 (APERS).
68
Inventário do Visconde de Jaguari, n. 348, m. 25, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1852 (APERS).
69
Procurações, 1º Tabelionato de Pelotas, Fundo 48, Livro 1, 19v (APERS).
70
VERGER, Pierre. Notícias da Bahia (1850). Salvador: Corrupio, 1981, p. 45; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.,
2010, p. 203. O Comendador Antônio Pedroso de Albuquerque diversificou seu capital após o final do tráfico, em
1850, tornando-se “proprietário da fábrica de tecidos Todos os Santos, em Valença, (…) da Companhia de Vapores
Bonfim e Santa Cruz e era um dos diretores da Companhia de Navegação Baiana”. Nesta mesma época, assim
como outros comerciantes, converteu seu capital para a agricultura de exportação: “possuía ainda engenhos em
Itaparica, São Francisco do Conde e Santo Amaro e um total de 560 escravos, conforme seu inventário de 1883”
(VASCONCELLOS, Pedro. Salvador, rainha destronada? (1763-1823). História (São Paulo), v. 30, n. 1, jan/jun,
2011, p. 183-184). Sobre a sua família em Rio Pardo ver LAYTANO, Dante de. Guia histórico de Rio Pardo. Rio
112
Portanto, as margens do Atlântico foram um cenário de intensos fluxos não apenas de
mercadorias, como também de mercadores. Tais movimentos não se davam apenas na direção
do extremo sul, mas, também, no seu sentido oposto. Com relação a isto, Afonso Graça Filho
observou que durante as décadas de 1830 e 1840, o alto comércio de abastecimento na Corte
teve seus principais agentes substituídos por um novo grupo de comerciantes. Segundo o autor,
alguns eram rio-grandenses que migraram para o Rio atraídos por este rentável comércio, como
Militão Máximo de Souza, J. J. Cunha Teles e outros. Como notou Graça Filho, Jean Batiste
Debret teria percebido o início deste processo quando escreveu sobre quem eram estes novos
comerciantes de carne seca na Corte: “todos parentes de correspondentes dos charqueadores”
que “recebem diretamente sua mercadoria nas embarcações que aportam no Rio de Janeiro,
pretexto de que abusam às vezes para aumentar o preço desse gênero quando ocorrem atrasos
nas entregas”.71 O próprio Irineu Evangelista de Souza, posteriormente Visconde de Mauá, foi
um dos jovens rio-grandenses que migraram para a Corte neste período, estabelecendo-se como
caixeiro de João Pereira de Almeida – um dos maiores comerciantes de grosso trato do Rio.
Portanto, tais migrações não representavam uma ruptura com os seus locais de origem.
Comerciantes rio-grandenses que migravam para o Rio ou o nordeste não se desconectavam de
suas redes de relações anteriores e os “forasteiros” que se instalavam em Pelotas pareciam fazer
o mesmo. 72 O pertencimento às redes mercantis nas quais os comerciantes de grosso trato
cariocas estavam inseridos trazia benefícios diversos aos charqueadores, pois, quando bem
manejadas, elas potencializavam a sua posição de elite nas hierarquias sociais locais. Neste
sentido, proponho que as margens do Atlântico sul, sobretudo nas suas cidades portuárias,
sejam vistas também como um espaço de interação social entre negociantes imperiais, repletas
de redes mercantis com conexões as mais diversas, compostas por parentes e parceiros
comerciais 73, e não somente como um espaço de competição entre negociantes de diferentes
Pardo: Prefeitura Municipal de Rio Pardo, 1979. Um dos seus irmãos, Manoel Pedroso de Albuquerque, era
procurador de Antiqueira em Rio Pardo, para onde o charqueador devia remeter escravos e mercadorias diversas.
71
FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de
subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 91; 129.
72
Em 1827, o charqueador José da Costa Santos, natural da freguesia de Santa Rita, na cidade do Rio de Janeiro,
legou em testamento bens para parentes residentes no Rio, mencionando que perdoava a dívida do seu irmão
Serafim para com ele (Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes,
1827 (APERS)).
73
Neste sentido, conforme Fragoso, “era extremamente difícil para uma casa comercial setecentista manter uma
rede de comércio que envolvesse distantes regiões e diferentes produtos – como era o caso do tráfico atlântico de
escravos – sem o recurso, a relações de reciprocidade que podia, inclusive, chegar a casamentos entre famílias de
sócios. As famílias Velho, Carneiro Leão e Pereira de Almeida – residentes no Rio de Janeiro, majoritárias no
comércio de africanos e nas exportações para Portugal, em princípios do oitocentos – mantinham irmãos, primos
e/ou genros em Lisboa e em outras cidades do além-mar. Ao mesmo tempo, o império aparece como espaço de
circulação de famílias empresariais, a exemplo da experiência dos Loureiro, portugueses com estadias e negócios
no Brasil e na Índia” (FRAGOSO, João. Op. cit., 2002, p. 113-114).
113
praças, onde o papel das mais ricas era apenas subordinar as menos ricas aos desígnios do
acúmulo do capital.
Um exemplo disto pode ser dado na trajetória de Antônio Francisco dos Anjos. Natural
da Colônia de Sacramento, ele deve ter migrado para o Rio Grande após a expulsão dos
portugueses daquela localidade, em 1777. Nos anos 1790, instalado em Pelotas, já é possível
encontrá-lo, juntamente com outros proprietários, realizando requerimentos à Coroa. Com o
tempo, o charqueador tornou-se capitão-mor da localidade. Em 1808, necessitando de um
atestado para ter um requerimento aprovado pela Corte do Rio de Janeiro, Anjos recebeu o
auxílio de um grupo de senhores de grande respeito no Império português:
Contudo, outros proprietários e comerciantes dividiam com o Capitão dos Anjos o posto
de membros da elite local. Em 1815, o visitador D. José da Silva Coutinho considerou que os
homens mais ricos da pequena freguesia eram Domingos de Castro Antiqueira, Domingos
Rodrigues, José Tomas da Silva, Manuel Alves de Moraes, José Pinto Martins, Antônio José
Gonçalves Chaves, Joaquim José da Cruz Secco, Cipriano R. Barcellos e demais irmãos,
74
Seção de Manuscritos. Documentos Biográfios (Antônio Francisco dos Anjos) – BN-RJ.
75
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit.
76
Às vezes estas relações mercantis podiam transformar-se em relações de amizade ou até de compadrio, como no
caso de Manuel Fernandes Vieira, importante comerciante e estancieiro, membro das família Silveira descrita
anteriormente, e que tornou-se compadre de Anacleto Elias da Fonseca, um dos mais importante comerciantes de
grosso trato do Rio de Janeiro (HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2006, p. 165-166).
114
Agostinho Nunes e o próprio Antônio Francisco dos Anjos.77 Com exceção de Agostinho, os
demais eram todos charqueadores. Além disso, Domingos Rodrigues, Domingos Antiqueira e
José R. Barcellos estavam entre os cinco mais ricos charqueadores com fortuna inventariada na
primeira metade do XIX, o que confere credibilidade ao relato do Bispo. Todos estes
charqueadores atuavam no comércio marítimo e tinham condições de disputar influência e o
poder local com o Capitão dos Anjos.
Neste sentido, a inserção dos charqueadores pelotenses em redes mercantis atlânticas foi
fator determinante para colocá-los num patamar superior aos charqueadores que não possuíam
cabedais para tanto.82 Quanto maior a inserção do charqueador naquelas redes de comércio
externo maiores eram as chances dele ocupar o topo da hierarquia do grupo, acumulando maior
fortuna, patentes, comendas e ofícios diversos. Neste sentido, os mesmos reuniam elementos
para tornarem-se brokers – no sentido conferido por Edoardo Grendi ao estudar os mercados
em sociedades agrárias e pré-industriais83 – pois eram os mais capacitados para funcionarem
como conectores (mediadores) entre um espaço econômico de trocas mais agrário e não
monetário e um espaço de trocas mais mercantilizado e vinculado ao comércio internacional.
Contudo, esta posição diferencial não precisava ser reconhecida somente pelos “de fora”. A
legitimidade social era uma necessidade entre os seus próprios pares e suas gentes…
82
Gabriel Berute já havia notado este fator ao examinar as ligações dos comerciantes do Rio Grande do Sul com a
praça do Rio de Janeiro: “As trajetórias (…) dos demais comerciantes mencionados acima, sugerem que existiram
mecanismos através dos quais ao menos uma parte dos comerciantes estabelecidos no Rio Grande tiveram
condições de reunir o cabedal e as relações necessárias para serem matriculados como negociante de grosso trato.
Provavelmente, a manutenção de negócios com o Rio de Janeiro cumpriu um papel de grande importância para
uma possível ascensão na hierarquia mercantil” (BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p.145).
83
GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social. In: OLIVEIRA, Mônica; ALMEIDA, Carla (Org.). Exercícios
de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 19-38.
84
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 127-128.
116
índios de uma tribo charrua, tendo se casado com o paraguaio José de Castro Antiqueira. Seu
avô índio era de Salto, na Banda Oriental. Não bastasse ser um nobre de sangue mestiço,
Antiqueira ainda teve um filho ilegítimo com a parda forra Genoveva.85
Esta íntima relação com algumas famílias pertencentes às classes subalternas daquela
sociedade não impediu Antiqueira e outros de ascenderem socialmente e veicular pelos espaços
mais prestigiosos de Pelotas. Entre os bens do seu patrimônio, avaliados em 1829, verificou-se
grande plantel de escravos, imóveis, prataria, jóias e uma carruagem mandada vir diretamente
de Londres. No seu círculo de parentesco, por meio do matrimônio de seus filhos e netos, a
família Antiqueira uniu-se ao capitão Antônio Soares de Paiva, ao marechal Conde de Porto
Alegre, ao Barão de Butuí e aos Silveira Martins. 86 Além disso, ele também foi compadre do
Conde de Piratini e do próprio capitão Paiva. Quando Saint Hilaire esteve na casa deste, em
1822, deixou anotado: “Vários negociantes do Rio Grande e alguns proprietários da vizinhança,
todos muito bem vestidos, estavam reunidos na casa do coletor-geral”.87
85
Genealogia construída por Luiz Antônio Alves. Para maiores detalhes da sua obra “Memorial Açoriano” (que
totaliza 52 volumes de pesquisa genealógica) ver http://www.fuj.com.br/?a=livro (consultado pela última vez em
30.05.2013). Um catálogo mais sintético pode ser consultado em ALVES, Luiz Antônio. Memorial Açoriano:
Genealogia do Século XVIII – Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS: EST Edições. 2005.
86
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 127-128. Estas famílias, na segunda metade do século XIX, estiveram entre
as mais poderosas do Rio Grande do Sul, concentrando riqueza e grandes cargos políticos no Senado e em
Gabinetes ministeriais.
87
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 113.
88
Como demonstraram BOXER, Charles R. O Império colonial português. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002;
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos
Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001;
MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.). Optima Pars: elites ibero-americanas do
Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005.
89
São muitas as pesquisas que evidenciam estas práticas na América portuguesa. Ver, por exemplo, GOMES, José
Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010; STUMPF,
Roberta G.. Cavaleiro do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares nas
Minas setecentistas. Brasília. Tese de Doutorado. PPGHIS/UnB, 2009.
117
no comércio marítimo – e outros 6 possuíam comendas honoríficas, denotando um grande
prestígio social local. 90 Uma vez que a participação nos mercados regionais e as concessões de
crédito eram atividades eivadas por relações pessoais, é possível imaginar, como demonstrou
Tiago Gil, o grau de influência que capitães exerciam em tais operações. 91
Soma-se a isto o fato de que a elite dentro da elite charqueadora estava fortemente
aparentada, formando um núcleo que além dos vínculos sociais com comerciantes de fora da
província também possuía laços de parentesco com os próprios charqueadores. Tal traço, como
diversos autores demonstraram, foi comum nas práticas mercantis do período colonial tardio.92
Dos 62 charqueadores aqui analisados, 36 aparecem como padrinhos dos filhos de outros
charqueadores do mesmo grupo nos registros paroquiais de batismo da paróquia de São
Francisco de Paula (Pelotas), entre 1812 e 1825.93 Somado aos laços de parentesco
matrimoniais (considerei sogros e genros, cunhados e charqueadores cujos filhos e filhas
casaram-se unindo ambas as famílias) e consanguíneos (considerei somente irmãos, pais e
filhos, tios e sobrinhos), a teia de relações parentais apresenta uma nítida concentração (ver
Gráfico 3.1). Portanto, Pelotas já nasceu com uma riqueza, prestígio social e status altamente
concentrados nas mãos de poucas famílias.
Contudo, estes laços parentais não se davam apenas no sentido horizontal e sua
verticalidade não encontrava somente vínculos para cima. Conforme Carvalho, o charqueador
Domingos Antiqueira, neto de índios, possuía uma chácara na Ilha dos Marinheiros, a qual
denominou “Filantropia”, porque “o produto de sua renda contribuía para o bem estar de grande
número de famílias pobres”. Segundo Alves, estas pessoas pobres poderiam ser descendentes da
tribo a qual pertencia o seu avô.96 Difícil avaliar a validade desta hipótese, mas rastreando a
vida de Antiqueira, descobri, em seu inventário, que ele realmente possuía uma Fazenda
chamada “Filantropia” – localizada na Ilha dos Marinheiros. A busca também revelou que, em
95
As representações das redes foram montadas utilizando o software UCINET versão 6 for Windows. Para a
listagem dos charqueadores com suas respectivas siglas ver Anexo 1.
96
Ver nota 80.
119
1820, ele batizou Leopoldino, filho legítimo do índio Joaquim Lencina com Francisca Antônia
– indicando que as afirmações dos autores podem ter um fundo de veracidade. 97
Esta história abre um espaço para se pensar que, assim como outras elites, os
charqueadores também imprimiam sua autoridade local na busca de uma maior legitimação do
exercício de dominação social sobre as camadas mais pobres da sociedade. Sobretudo na época
das safras, os charqueadores e as classes subalternas em geral conviviam e circulavam por
praticamente os mesmos espaços e seria demasiado simples considerar que a sua aproximação
se pautasse exclusivamente em relações de conflito. Não é demais lembrar que, nesta época,
mais da metade da população era escrava e algo próximo de 1/3 era branca. Neste sentido, é
possível perceber que as charqueadas, segundo relatos de contemporâneos, funcionavam como
aldeias aglutinadoras de diferentes setores da sociedade, reunindo grande população de cor,
entre cativos e libertos. Nas palavras do abolicionista Alberto Coelho da Cunha, as charqueadas
possuíam o seu “agregado próprio”:
Uma grande extensão de terra é ali designada pelo nome de charqueadas, sendo
famosa pela sua produção luxuriante e pelo seu gado numeroso e nédio. Vêem-se
casas disseminadas por ali, muitas delas espaçosas, e algumas com certas pretensões
97
Com este exemplo, reforço o fato de que estou analisando somente um grupo de elite. Os charqueadores
batizaram filhos de um grande número de pessoas de diferentes estratos sociais. Mas foge às pretensões desta
pesquisa tratar de todos estes vínculos. Além do mais, eles também casaram seus filhos com famílias de outros
grupos sociais, como criadores e negociantes. O papel das mulheres no interior destas malhas parentais de
compadrio e matrimônio também merece uma pesquisa específica. Para um exemplo de como tal empreitada pode
render bons frutos ver HAMEISTER, Martha. Op. cit.
98
ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 91-93.
120
ao luxo; existem capelas anexas a muitas delas e em volta de uma encontra-se tamanho
número de habitações menores que o conjunto bem mereceria o nome de aldeia.99
Estes trechos não poderiam ser mais eloquentes e destacam, além do caráter
concentrador em termos populacionais, o fator religioso que o espaço charqueador representava
– visto a centralidade de suas capelas e oratórios, algo que destacarei posteriormente. Este
aglomerado de pessoas que rodeavam as charqueadas, fossem familiares, livres pobres,
agregados ou escravos, também pode ser atestado por outros relatos. Conforme Fernando
Osório, a charqueada que Pinto Martins construiu em Pelotas atraiu grande número de pessoas,
algumas das quais empregaram-se por ali, sendo que outras famílias se instalaram em torno do
estabelecimento.101 Nesta ocasião, o próprio Pinto Martins teria se arranchado nas terras da
família Silveira e não estava sozinho, pois daquele mesmo espaço compartilhavam outras
famílias, além de charqueadores, que margeavam os principais rios de Pelotas. 102 Portanto,
neste cenário inicial que marcou o colonial tardio, muitos charqueadores ergueram seus galpões
de charquear em terrenos de terceiros, dividindo-os com um variado número de pessoas de toda
a cor e condição social. Além disso, quando proprietários, os charqueadores podiam permitir
que outras pessoas se arranchassem em suas terras. Conforme Eduardo Arriada, nos terrenos do
charqueador Antônio Pereira da Cruz, por exemplo, estavam estabelecidos Antônio Ferreira das
Fontes, o preto Bartolomeu Correia, Manuel Domingues, Joaquim Silveira e Souza, Manuel do
Nascimento e Manuel Cordova.103
Foi deste “círculo de população especial”, conforme as palavras de Dreys, que também
reunia os agregados, os libertos, os índios e, principalmente os escravos, que Pinto Martins
99
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: USP, 1975, p. 142.
100
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961, p. 117-118.
101
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 1, 1997, p. 54-55.
102
MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 124-125.
103
ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 70. É muito provável que tais relações também reunissem conflitos entre
proprietários e o restante da população que orbitava tais terrenos, mas não tive fôlego para investigá-las de forma
aprofundada.
121
encontrou as mães dos seus herdeiros reconhecidos em testamento. Além dele, que viveu em
estado de solteiro, e Antiqueira, que apesar de ter tido três esposas ao longo da vida, teve filho
com a parda forra Genoveva, o charqueador Ignácio José Bernardes, sócio de Pinto Martins na
charqueada, também teve 3 filhos pardos: José Ignacio Bernardes da Costa, Eugênia Ignacia
dos Prazeres e Ignacia Xavier dos Prazeres. Apesar de não citar o nome da (s) mãe (s), no
mesmo documento o charqueador deixou dois escravos para a parda Domingas Xavier e
mandou descontar os 600$000 que o filho José da Costa gastou na Bahia, sem a sua
autorização, o que pode indicar a sua conexão com os portos do nordeste. O charqueador
também era cirurgião e em seu inventário constam uma série de livros em português e francês,
dos quais falarei em capítulo posterior.104
Estes casos revelam uma abertura, mesmo que ínfima, para a mobilidade social e
geracional de pardos e pretos na sociedade pelotense do período colonial tardio.105 Ao lado do
mulato Domingos José de Almeida e do mestiço de índios Domingos de Castro Antiqueira,
tinha-se, agora, o pardo Liberato Pinto Martins, novo charqueador-herdeiro da comunidade, e
José I. Bernardes da Costa, que herdou a charqueada do pai cirurgião. Ambos eram filhos de
mulheres egressas do cativeiro. Na presente análise, o estudo destas trajetórias torna-se
importante porque ajuda a compreender melhor a heterogeneidade de indivíduos que
compunham a primeira geração de charqueadores. Na segunda metade do oitocentos, por
exemplo, quando a elite charqueadora já estava mais sedimentada social, política e
economicamente, não localizei indivíduos pertencentes às classes subalternas integrando o
mencionado grupo de empresários.
Os casos de charqueadores com filhos ilegítimos talvez não tenham sido raros. O capitão
José Ferreira de Araújo, por exemplo, teve uma exposta batizada em sua casa, filha de pais
incógnitos. Anos depois, o charqueador veio a reconhecer a paternidade da criança. 106 O
charqueador João Duarte Machado, ex-proprietário de uma das mães de um filho de Pinto
Martins, reconheceu em testamento a paternidade de uma “enjeitada” que vivia em sua casa. 107
É bastante provável que outros charqueadores tenham se envolvido e tido filhos com mulheres
pardas, sem que os mesmos tivessem sido reconhecidos em documentos, mas que fossem de
conhecimento dos mais chegados.108 Isto talvez ajude a explicar a indignação do charqueador
104
Inventário de Ignácio J. Bernardes, n. 217, m. 15, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1838 (APERS).
105
Sobre esta questão, ver GUEDES, Roberto. Op. cit., 2008.
106
Livro de batismo de livres, n. 1, 06.11.1818, p. 100v (Arquivo do Bispado de Pelotas).
107
Inventário de João Duarte Machado, n. 123, m. 10, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1828 (APERS).
108
Até porque não foram localizados muitos testamentos dentro do grupo.
122
Antônio José Gonçalves Chaves com relação a estas “íntimas relações” entre proprietários
brancos e mulheres de cor. Em 1822, ele deixou escrito:
109
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 62.
110
Livro de casamentos n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas).
111
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Migrantes portugueses, mestiçagem e alforrias no Rio de
Janeiro imperial. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 367-388.
112
BRETTEL, Caroline; METCALF, Alida. Costumes familiares em Portugal e no Brasil: paralelos
transatlânticos. População e Família, v. 1, n. 1, 1998, p. 127-152.
113
Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas).
123
de libertinagem que aqui se prega com a liberdade do tempo, muito perniciosa à moral
do Evangelho.114
A vida religiosa nas pequenas vilas e freguesias ocupava um espaço central entre as
famílias de elite. Conforme Denise Ognibeni, na década de 1810, os charqueadores, juntamente
com suas esposas, “participavam ativamente nas decisões concernentes aos assuntos religiosos
na nova freguesia, decidindo o local da igreja, patrocinando as obras, realizando procissões com
o santo padroeiro”, além de exercerem cargos e desempenharem papéis de destaque nas
Irmandades e procissões locais. Os padres muitas vezes hospedavam-se nas charqueadas ou
viviam de agregados em algumas propriedades, onde poderiam rezar suas missas nos oratórios
privados dos próprios senhores.116 Por conta disto, na década de 1810, o charqueador José da
Costa Santos, juntamente com sua esposa e suas 4 filhas, solicitaram licença para poder rezar
missa no oratório privado de sua Estância de São Lourenço. O tenente-coronel José Antônio de
Oliveira Guimarães, uma das testemunhas convidadas a depor sobre a idoneidade dos
requerentes, respondeu que o casal vivia “à maneira da nobreza” e que “há na dita Fazenda
114
Visitas Pastorais, Livro VP-21 (1824-1825) - Cúria do Rio de Janeiro.
115
FRAGINALS, Manuel M. O Engenho. São Paulo: Unesp/Hucitec, v. I, 1989, p. 138-139. Schwartz, ao estudar
os engenhos de açúcar do Recôncavo baiano, mencionou que os escravos não iniciavam o trabalho no período da
safra sem antes dos párocos benzerem os estabelecimentos e as máquinas. “Os escravos levavam aquilo tão a sério
quanto os senhores. Recusavam-se a trabalhar se a moenda não fosse abençoada e, durante a cerimônia, muitas
vezes tentavam avançar para receber algumas gotas de água benta no corpo” (SCHWARTZ, Stuart. Segredos
internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 96).
116
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto
Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 86-91.
124
perto de duzentas pessoas que são da família dos impetrantes”. É difícil saber se todos seriam
de fato seus familiares. No entanto, o próprio requerimento oferece uma pista de quem seriam
estas duzentas pessoas. Segundo a vontade do charqueador:
E as missas que nos dias santos e festas de preceitos no dito oratório se celebrarem
poderão ouvir os suplicantes com todos os seus parentes, consanguíneos ou afins,
familiares e criados, que juntamente com eles habitarem nas mesmas casas, como
também seus hóspedes nobres, com declaração que os ditos parentes, familiares e
hóspedes nobres, somente estando presentes à celebração do Santo Sacrifício da Missa
os mencionados impetrantes (…).117
Interessante notar que por duas vezes eles diferenciaram os parentes consanguíneos e
afins dos “familiares”. Além disso, também é considerada a presença dos criados. No total,
Costa Santos possuía 172 escravos espalhados pela sua Fazenda. O testamento do charqueador,
aberto em 1827, ajuda a explicar quem pertencia a este contingente de parentes, familiares e
criados. No documento ele deixa bens para afilhados, compadres, capatazes, agregados, além de
alforriar um grande número de escravos. 118 É provável que além dos indivíduos mencionados
houvesse muitos outros que não mereceram menção especial do falecido, dentre os quais
podiam estar libertos e índios com suas roças e pequenos rebanhos vacuns espalhados pelas
vastas terras do charqueador.119
117
Requerimento de oratório privado de José da C. Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394. Cúria do RJ.
118
Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes, 1827 (APERS).
119
Sou inclinado a pensar nisto pelo grande percentual de libertos na população pelotense recenseada em 1833.
Conforme a Tabela 3.3, eles somavam 1.137 indivíduos (10,5% da população total).
125
dos filhos dos charqueadores e nem acresci nesta análise os batismos de escravos. 120 O
compadrio era o lugar possível para a realização de vínculos parentais entre ricos e pobres, uma
vez que, devido à forte endogamia de classe, o matrimônio não estava aberto aos mesmos. 121
O estudo do compadrio sob uma perspectiva geracional não deve ser excluído da
análise, que também podia envolver a mobilidade social entre compadres de condição inferior.
Quanto a isto, posso oferecer um exemplo recorrendo novamente ao incansável capitão-mor
Antônio Francisco dos Anjos. Em 1815, ele batizou a pequena Benigna, filha de Manuela
Francisca Moreira e Severino Gonçalves, ambos pretos libertos e casados. Em 1821, a mesma
Manuela teve o filho Herculano pardo batizado pelo genro de Francisco dos Anjos, o capitão
João de Souza Mursa. E em 1824, novamente Manuela convidou um filho de Francisco dos
120
Sobre a importância do compadrio nas redes de relações das famílias de elite e do parentesco espiritual com as
classes subalternas ver HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2006; FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz
forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII: uma contribuição
metodológica para a história colonial. Topói, v. 11, n. 21, jul/dez, 2010, p. 74-106; FARINATTI, Luís Augusto. Os
escravos do Marechal e seus compadres: hierarquia social, família e compadrio no Brasil (c.1820-c.1855). In:
XAVIER, Regina (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo:
Alameda, 2012, p. 143-174.
121
Isto não significa que os charqueadores menos ricos e de menor prestígio não possuíssem tais vínculos, pois a
análise centra-se no 1º livro de batismo dos livres entre 1812 e 1825. Uma pesquisa mais abrangente e que
envolvesse os batismos de escravos poderia trazer resultados adicionais, mas não tive fôlego para tanto.
126
Anjos, Antônio Rafael, para batizar outro filho seu, desta vez no oratório da charqueada. Nesta
ocasião, tanto a criança como o seu pai, Zeferino Inácio da Siqueira, foram classificados pelo
padre como “brancos”, enquanto Manuela não teve sua cor mencionada, o que poderia indicar
uma suposta mobilidade social desta preta liberta, ao longo de 10 anos.122 Mas os grandes
trunfos em arrematar compadres e comadres entre as classes subalternas foram o seu outro filho
Domingos e o mencionado genro Mursa. Este era natural do Rio de Janeiro, e batizou duas
crianças pardas e dois índios, todos filhos de casais diferentes. O capitão Domingos dos Anjos,
por sua vez, batizou outras duas crianças pardas, uma filha de índios e também a pequena Ana,
exposta na casa do charqueador José Ferreira da Araújo, que, anos depois, reconheceu-se ser
filha do próprio charqueador.123
Portanto, o capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos, um dos homens mais poderosos
daquela pequena aldeia, reconhecido por visitadores e comerciantes de grosso trato do Rio
enquanto tal, também possuía uma notável malha parental composta por índios, pardos e pretos
forros. Na prática, esta diversificada teia de compadres e parentes, onde brancos ricos com
distinção honorífica ou patentes ocupavam uma posição de destaque, podia ser acessada em
momentos de necessidade, tanto no cotidiano quanto em ocasiões especiais, representando um
pedido ou uma retribuição de algo, como, por exemplo, em situações de recrutamento e guerra,
disputas políticas e territoriais, períodos de safra ou para se obter favores dos mais diversos.
As cartas que o charqueador Domingos José de Almeida enviou para a sua esposa nos
anos de 1835 e 1836 são bastante reveladoras da importância desta malha parental na vivência
de suas famílias. Em junho de 1835, quando Domingos foi a Porto Alegre assumir sua vaga de
deputado provincial, escreveu para a esposa mandando “abraços a nossos filhos e saudações a
teus pais, compadre José Félix, teus irmãos, José Pedro, João da Cunha e a todos de casa”.124
Tendo iniciado a Revolta dos Farrapos, três meses depois, ele tomou parte do lado rebelde.
Nesta ocasião, a dona Bernardina, retirando-se para lugar mais seguro com os filhos do casal,
esteve cercada por esta ampla gama de amigos, parentes e compadres, como fica claro nas
cartas. Domingos sempre as terminava recomendando aos mesmos, para quem pedia favores
diversos. Numa carta em que dava instruções de como agir com os escravos, ele recomenda-a
aos “compadres José Félix, Joaquim, João, Chaves, Chastan, Chevalier e David”. 125 Em outras,
faz referências a mais quatro compadres. Rolino, que também era capataz, Cipriano, Rafael e
122
Conforme o sugerido por GUEDES, Roberto. Op. cit., 2008.
123
Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas).
124
Carta de Domingos para Bernardina, 20.06.1835, CV - 174.
125
Carta de Domingos para Bernardina, 14.03.1836, CV - 195.
127
Belchior, além de muitas outras pessoas, às vezes, denominadas como “amigo”.126 Não
surpreende que, em uma carta de Bernardina para Domingos, ela deixara escapar: “a nossa
família é muita grande”. 127
Com muita atenção, este agregado de dependentes e parentes pode ser verificado em
outras fontes. Em 1821, um escravo do charqueador Gonçalves Chaves matou um parceiro de
cativeiro, vindo a fugir para o mato. Uma das testemunhas, o também charqueador Boaventura
R. Barcellos, disse ter oferecido “o seu capataz e sua gente para procurarem e prenderem a dito
matador e que não sendo preso desta ocasião, o fora depois”.128 Em 1828, por ocasião do
inventário do charqueador João Duarte Machado, foi declarado na avaliação dos bens que um
potreiro fazia divisa com um valo que o charqueador Joaquim José de Assumpção “fez com sua
gente no Banhado”.129 No próprio requerimento do charqueador José da Costa Santos, citado
anteriormente, fica claro que as missas rezadas no seu oratório privado poderiam ser assistidas
por ele, sua esposa, suas filhas, “com todos os seus parentes, consanguíneos ou afins, familiares
e criados, que juntamente com eles habitarem nas mesmas casas”, ou seja, a sua gente. Neste
sentido, se por um lado alguns charqueadores temiam uma rebelião escrava naquelas paragens,
outros estabeleceram alianças espirituais com indivíduos das classes subalternas, num
emaranhado de complexas relações e comportamentos sociais que merecem maiores estudos.
Portanto, creio que este agregado populacional que orbitava às charqueadas devia
manter distintos vínculos com esta elite, desde o parentesco espiritual até as relações de
trabalho, de negócios eventuais ou as abastecendo com gêneros alimentícios produzidos em
suas pequenas roças. Esta convivência podia ser mais ou menos harmônica, mas andava lado a
lado com a dependência econômica e certamente combinava-se com a existência de muitos
embates e conflitos no seu cotidiano. Tal estrutura social, mais característica da fase inicial da
montagem das charqueadas, ou seja, do colonial tardio, possuía alguns traços muito
semelhantes com o que João Fragoso verificou nas unidades açucareiras fluminenses dos
séculos XVII e XVIII. Segundo o autor, aquela paisagem agrária, enquanto espaço econômico
de interação social, reunia verdadeiras aldeias coloniais, onde a nobreza da terra disputava o
poder local aliando-se a outras famílias, relacionando-se com um grupo significativo de
126
Cartas de Domingos para Bernardina, 02.10.1835, 05.01.1836, 23.02.1836, CV - 176, 186 e 191.
127
Carta de Bernardina para Domingos, 19.12.1842, CV – 167. Sobre esta família ver também MENEGAT (2010).
O uso de familiares nas unidades produtivas dos charqueadores será analisado de forma mais detalhada nos
capítulos posteriores.
128
Processo crime n. 119, m. 4, Pelotas, 1821, APERS.
129
Inventário de João Duarte Machado, Pelotas, n. 123, m. 10, 1828, Cartório órfãos e provedoria (APERS).
128
dependentes, parentes e agregados de distintas posições sociais. 130 Portanto, olhando para
Pelotas, me parece que aquele pequeno mundinho construído por charqueadores minhotos,
pernambucanos, mineiros, cariocas e rio-grandenses, no final do setecentos, bebia daqueles
parâmetros socioculturais que caracterizaram àquelas aldeias coloniais, embora a presença de
tais traços estivessem em plena transformação e na segunda metade do século XIX, o
mencionado mundinho já havia se desagregado…
***
Tendo em vista o que foi exposto até aqui, creio ser necessário realizar algumas
considerações finais sobre o espaço de atuação dos comerciantes-charqueadores no interior do
sistema mercantil considerado. Foi possível demonstrar que num total de 62 charqueadores
havia um grupo diminuto, composto por 26 indivíduos que, fortemente aparentados, podiam ser
reduzidos a algo entre 10 ou 13 famílias (dependendo dos critérios que se use), que foi capaz de
destacar-se regionalmente, de receber o reconhecimento de sua posição por parte das elites de
fora da região e de manter relações mercantis com comerciantes de outros portos. Entre os seus
membros mais destacados estavam Antônio Francisco dos Anjos, José da Costa Santos,
Domingos Rodrigues, Domingos de Castro Antiqueira, Antônio José de Oliveira Castro, além
das famílias Rodrigues Barcellos, Gonçalves Chaves, Vieira Braga, Cunha, Soares da Silva,
Azevedo e Souza, Soares de Paiva, seus respectivos parentes, entre outros. Eles concentravam
as maiores fortunas inventariadas e as maiores escravarias entre seus bens. Esta elite dentro da
elite não pode ser vista como os demais charqueadores, comerciantes e estancieiros da
capitania/província que não ocupavam com distinção as esferas sociais e econômicas
anteriormente mencionadas. Eles estavam mais bem posicionados no interior das redes
mercantis com o mercado externo e acumularam mais riquezas, comendas, ofícios e patentes de
ordenanças. Além disso, praticaram uma notável endogamia. Neste sentido, a sua posição
superior na hierarquia regional não passava exclusivamente pela acumulação do patrimônio
material, pois também precisava ser reforçada em outros espaços de atuação e distinção para
além da esfera econômica.131
130
FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro
(1600-1750). In: Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa,
séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 33-120.
131
Os mecanismos de reprodução da economia não passavam somente pela lógica do mercado internacional, mas,
também, na exploração econômica das próprias comunidades locais inseridas numa variada gama de atividades e
com uma limitada possibilidade de influência nos rumos da localidade, embora agissem estrategicamente para
melhorarem suas condições de existência.
129
A compreensão das lógicas que estruturavam a formação desta primeira elite de
comerciantes-charqueadores teve importante contribuição na primordial obra de Helen Osório,
que abriu um notável espaço de pesquisa a cerca das elites coloniais no Rio Grande do Sul. No
entanto, comparando as fortunas e atividades dos comerciantes rio-grandenses com os do Rio
de Janeiro, a autora considerou que “o grupo mercantil sediado no Rio Grande do Sul não
abrigou homens de negócio de grosso trato”. Examinando o patrimônio inventariado de ambos
os grupos, Osório considerou que era “incomparável o grau da acumulação mercantil sediada
no Rio de Janeiro em relação ao do extremo Sul”. Portanto, tal posição de “subalternidade” no
interior do sistema mercantil “sublinha a debilidade dos negociantes riograndenses”. 132 Este
quadro interpretativo foi relativizado por Gabriel Berute. Segundo o autor, a afirmação de
Osório deve ser revista no que diz respeito a não existência de comerciantes de grosso trato na
capitania. Os negociantes envolvidos no comércio marítimo de longo curso possuíam uma boa
margem de atuação no interior do sistema mercantil, sendo considerados tanto pelos seus pares
de outras províncias, quanto pela Real Junta de Comércio sediada na Corte como “negociantes
de grosso trato”.133 No que diz respeito à comparação das fortunas é necessário fazer uma outra
ressalva. Com exceção de Brás Carneiro Leão e João Gomes Barroso – cuja riqueza
surpreendeu, inclusive, Jorge Pedreira134 – as demais faixas de fortuna não eram tão
“incomparáveis” com a dos comerciantes-charqueadores mais ricos, pois uma análise do monte-
mor de ambos os grupos não revela fortunas tão distantes como Osório sugeriu.135
132
OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 262; 265; 289; 318.
133
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p. 145.
134
Sobre a riqueza dos dois negociantes cariocas, inferiores aos mais ricos comerciantes de Lisboa, Pedreira
considerou como sendo “quantias que embora inflacionadas pelo alto nível de preços, eram sem dúvida
impressionantes” (PEDREIRA, Jorge. Op. cit., p. 299-300). No capítulo 9 tratarei mais deste tema.
135
Helen Osório baseou sua afirmação comparando as fortunas de ambos os grupos. “Confrontando
especificamente fortunas de negociantes, vê-se que o maior monte-mor encontrado no extremo sul era de 40.000
libras, enquanto, para o Rio de Janeiro, Fragoso apresenta mais de 20 nomes de negociantes de grosso trato que
ultrapassavam as 50.000 libras” (OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 265). Na realidade, os dados elencados por Fragoso
reúnem 20 fortunas superiores a 50 contos de réis. Sobre estes indicadores, que reúnem as maiores fortunas
mercantis inventariadas entre 1794 e 1846, Fragoso comentou: “a riqueza da elite mercantil (…) que retrata, entre
outras, as fortunas daqueles negociantes listados pelo Conde de Rezende, em geral ultrapassa a cifra de 20 mil
libras, podendo superar 50 mil libras. No intervalo de tempo por nós apreendido, não encontramos nenhuma
fortuna agrário-escravista, sem origem mercantil, que alcançasse a cifra de 50 mil libras, fato que reforça a
preeminência de uma elite de negociantes na hierarquia econômica da sociedade colonial e, portanto, a sua
supremacia econômica sobre a aristocracia escravista” (FRAGOSO, João. Op. cit., p. 315). Dos 29 inventários de
charqueadores que reuni entre 1800 e 1850 (período aproximado ao da tabela formulada por João Fragoso), 15
possuíam fortunas acima de 50 contos de réis, sendo que 2 detinham fortunas acima de 50 mil libras. Dialogando
com a obra de Fragoso, Maria Viveiros Araújo também utilizou a faixa de 50 contos de réis (estipulada pelo autor)
para comparar as fortunas dos comerciantes paulistas com a dos cariocas (ARAÚJO, Maria L. Vieiros. Os
caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 51). Sem
dúvida, os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro eram os mais ricos da América portuguesa e o perfil de
suas fortunas era mais mercantil do que a dos charqueadores, mas creio que a palavra “incomparável” não é
adequada para definir esta relação. A correção dos números utilizados por Osório não afeta a tese da autora, mas
coloca a elite charqueadora e mercantil rio-grandense em uma posição mais importante no interior da hierarquia
130
Contudo, é preciso deixar bem claro que o fato de existirem comerciantes de grosso
trato no Rio Grande do Sul e de suas fortunas não serem tão desprezíveis assim, não significa
que os comerciantes-charqueadores ocupassem uma posição de igualdade com os comerciantes
cariocas. Muito pelo contrário. Estes últimos dominavam o tráfico atlântico de escravos – uma
das chaves da reprodução da sociedade colonial como um todo – e o seu “raio de atuação”,
conforme Fragoso, era muito mais amplo. Além do mais, seus negócios e investimentos eram
muito mais diversificados.136 Portanto, não apenas os charqueadores e fazendeiros, como todos
os setores sociais que necessitavam da mão de obra cativa, dependiam do comércio negreiro e
das redes de relações em que os traficantes estavam inseridos. Tendo em vista que mais de 100
mil escravos foram remetidos para o Rio Grande do Sul e a região do Prata durante o colonial
tardio e as primeiras décadas após a independência do Brasil, o Rio de Janeiro era simplesmente
a “Meca” das elites escravistas e dos negociantes do extremo sul da América. Conforme Berute,
os atravessadores que agiam no interior do tráfico atlântico revendendo “seus escravos a
prestações ou em troca de mercadorias produzidas pelos compradores” tinham a sua
importância “reconhecida pelas autoridades coloniais e, até mesmo, pelos grandes homens de
negócios”. Como a escravidão também foi estrutural na formação do complexo saladeril no Rio
da Prata, é provável que os atravessadores naquela região possuíssem a mesma importância
enquanto elite colonial hispano-americana.137 Neste sentido, manter uma boa relação com os
comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro era fundamental para o bom andamento dos seus
negócios e os charqueadores sabiam muito bem disso.
Como ensinou Fernand Braudel, no interior dos circuitos comerciais de longa distância,
onde a regra era comprar barato e vender caro, ocorria uma transferência dos lucros mercantis
para as mãos dos negociantes mais bem posicionados.138 No entanto, havia espaços suficientes
para que os distintos grupos mercantis, atuantes em diversas regiões dos mencionados Impérios,
mantivessem seus lucros e ocupassem o topo das suas hierarquias sociais locais e regionais
(com seus respectivos limites de atuação, níveis de grandeza e fortuna) sem que
socioeconômica do Atlântico sul e justifica a necessidade de novas pesquisas sobre elites locais e regionais
brasileiras – algo que esta tese buscou contribuir.
136
E neste sentido, o “incomparável” não estava no valor das fortunas acumuladas, mas sim, nas possibilidades e
capacidade de investimentos. Pelotas no início do oitocentos era uma aldeia se comparada à praça mercantil
carioca e não oferecia muitas opções de inversão além de imóveis urbanos, escravos e terras.
137
Como, por exemplo, o saladeirista oriental Francisco de Medina (PRADO, Fabrício. In the shadows of empires:
trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009).
Soma-se a isto, o que Helen Osório notou ao estudar a arrematação de contratos no centro-sul da América
portuguesa. Estes estavam acessíveis somente aos negociantes cariocas e constituíam-se em outra importante fonte
de enriquecimento, expressando um nítido privilégio de um corpo mercantil mais estabelecido e com maior acesso
à Corte portuguesa (OSÓRIO, Helen. Op. cit.).
138
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 357.
131
interrompessem os processos de enriquecimento uns dos outros. Basta ver que qualquer grupo
de elite local ou regional concentra em diferentes proporções os recursos materiais, extorquindo
a riqueza de sua comunidade local.
No caso aqui estudado, ser bem relacionado com um comerciante de grosso trato do Rio
podia representar a compra de sal e escravos por um preço e prazos melhores, evitar que suas
contas fossem liquidadas na ocasião de uma safra ruim ou conseguir favores com fretes e
informações preciosas do mundo dos negócios. Agindo desta forma, os grandes comerciantes e
traficantes cariocas, comendadores e capitães assim como o pequeno grupo de comerciantes-
charqueadores analisado, estariam seguindo a boa e velha tradição do Império português, onde
as grandes autoridades políticas reconheciam, mesmo que de forma hierarquizada, a autonomia
e a importância das elites locais e regionais para o funcionamento do mesmo Império. Esta
dinâmica não subverte a hierarquia política e mercantil que vinha se construindo no Brasil
desde 1808, mas apenas complexifica o processo histórico e oferece um grau de negociação e
de protagonismo às elites locais e regionais maior do que vem sendo aceito por parte da
historiografia.
139
Sobre este fenômeno na América portuguesa, Charles Boxer escreveu: “os grandes proprietários de terras,
fossem senhores de engenho, criadores de gado ou donos de minas de ouro, mostravam-se cada vez mais ávidos de
títulos, honrarias e postos militares, em busca de poder e prestígio”. Neste sentido, “os governadores coloniais
tinham consciência desse fato e muitas vezes lembraram à Coroa que a distribuição judiciosa de postos e títulos
militares era melhor e mais barato meio para assegurar o que, do contrário, somente a lealdade duvidosa dos
poderosos do sertão garantiria” (BOXER, Charles. Op. cit., p. 322).
140
GIL, Tiago L. Infiéis Transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo
(1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
132
Portanto, ao invés de pensar nas elites locais e regionais do período reservadas aos seus
projetos meramente periféricos, proponho, como já enunciei na introdução desta tese, um outro
modelo onde uma pequena parcela das elites locais – uma elite dentro da elite – conseguia
ocupar este espaço exatamente pelo tipo diferencial de relações sociais que mantinha com os
principais centros econômicos e políticos, no caso aqui proposto o Rio de Janeiro, e pelos
recursos materiais e imateriais que concentrava. Ao dar este salto, este estrato social
transformava-se em elite regional, mas sem deixar de desprender-se dos interesses de sua
comunidade, embora, em termos de visão de mundo e poder de influência, ele estivesse muito
acima dela.
133
4. UMA CIDADE ATLÂNTICA: A POPULAÇÃO PELOTENSE, SUA
ESTRATIFICAÇÃO SOCIOECONÔMICA E A IMIGRAÇÃO ESTRANGEIRA
DURANTE O AUGE E A DECADÊNCIA DAS CHARQUEADAS ESCRAVISTAS
(1850-1890)
Alexandre Herculano
A dona Felisbina Antunes da Silva era esposa do coronel Anibal Antunes Maciel, um
dos homens mais ricos e poderosos da Pelotas oitocentista. Quando ela faleceu, em 1871, o
casal teve seu patrimônio avaliado em 1.893:256$602 réis. Proprietários de 159 escravos,
ambos também possuíam casas na cidade, uma charqueada, 3 embarcações de grande porte e 5
estâncias no Uruguai, onde pastavam mais de 34 mil cabeças de gado, além de outros bens.1 A
fortuna da dona Felisbina Antunes da Silva era 7.898 vezes maior que a fortuna, se é que se
pode chamar assim, de Felisbina Francisca Domingues. Pobre Felisbina. Não bastasse possuir
como único bem uma casinha “em ruínas”, ainda tinha uma dívida de 246$600 réis, o que
comprometia em mais de ¾ o seu pequeno patrimônio. Das diversas jóias que a Felisbina rica
possuía, apenas uma já seria o suficiente para saldar este débito. O anel de ouro com pedras de
brilhantes, por exemplo, equivalia a quase cinco vezes o valor das dívidas da Felisbina pobre.
1
Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS).
134
de complexidade que não deve ser desprezada. Entre a Felisbina rica e a Felisbina pobre havia
muitas pessoas de diferentes condições sociais e econômicas.
É certo que a economia pelotense era muito mais que um aglomerado de galpões de
charquear. Entretanto, a cidade, enquanto espaço privilegiado das relações sociais de grande
parte dos pelotenses, só tornara-se uma realidade possível por conta das charqueadas erigidas às
margens dos principais rios do município. 2 Boa parte das atividades econômicas locais tinham
significativas relações com as charqueadas, como a criação de gado, a produção de gêneros
agrícolas, o grande e o pequeno comércio, o artesanato e os demais serviços. A economia
charqueadora gerava impostos para o município e a província, alimentava o tráfico de escravos,
fornecia matéria-prima para as fábricas locais (como sebo, graxa, ossos e couros), empregava
um grande número de marinheiros e trabalhadores eventuais e das famílias charqueadoras saíam
os médicos, os advogados, os juízes e os políticos que, simplesmente, conectavam a cidade com
o mundo exterior.
2
ARRIADA, E. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém literário, 1994.
135
prosseguimento ou não apresentaram a avaliação dos bens de forma completa, restando 256
documentos.3 É sabido que os inventários post-mortem sobre-representam as camadas mais
abastadas da população analisada, pois não oferecem um mesmo tratamento aos mais pobres da
sociedade, cujos bens praticamente não eram passíveis de serem inventariados.
Paradoxalmente, como já evidenciaram João Fragoso e Renato Pitzer, é mais fácil termos
acesso à população escrava da localidade, pois os mesmos eram propriedade dos inventariados
e como tal deviam ser arrolados e avaliados, do que “às camadas mais miseráveis dos homens
livres pobres”. 4
Entretanto, isto não invalida a utilização desta fonte documental para a análise
pretendida. Com ressalvas e cruzando-se com outras fontes documentais ela pode servir para o
estudo dos estratos sociais mais pobres, mas certamente é privilegiada para investigar a elite
econômica de determinada região e os graus de concentração das fortunas. Neste sentido, os
inventários tornam-se uma fonte privilegiada, pelo seu caráter massivo e recorrente. No
primeiro, ele pode revelar a diversidade entre os grupos sociais da região analisada e no
segundo, ele oferece uma visão dinâmica da mesma, com suas mudanças e permanências. 5
3
Esta documentação está sob a guarda do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS.
4
FRAGOSO, João; PITZER, Renato Rocha. Barões, homens livres pobres e escravos - notas sobre uma fonte
múltipla. Os Inventários Post-mortem. In: Revista Arrabaldes, n. 2, 1988, p. 37.
5
FRAGOSO, João; PITZER, Renato. Op. cit. A utilização de inventários post-mortem e o seu tratamento
quantitativo já tornou-se um método mais que consolidado na historiografia brasileira. Sobre esta e outras
possibilidades de pesquisa em História Agrária ver, por exemplo, LINHARES, Maria Yedda. História Agrária. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 165-184. Também recorro a estas fontes pela inexistência de listas de habitantes
para o Rio Grande do Sul, cujos documentos, desde as pesquisas de Marcílio, têm sido muito importante na
historiografia brasileira (MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850.
São Paulo: Pioneira/USP, 1973).
6
Todos os valores em mil réis foram convertidos para libras esterlinas. Tal método, comum entre os historiadores
que realizam este tipo de análise ao estudar a economia brasileira do período, tem em vista diminuir as oscilações
de valores da moeda brasileira e favorecer uma comparação entre períodos diversos, uma vez que a moeda inglesa
era mais estável. A tabela de conversão utilizada foi a de MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1982, Anexos.
136
concentração de riqueza era ainda maior, pois uma ampla gama de pobres e despossuídos não é
contemplada na documentação.
7
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001., p. 172; 175-179.
8
MARCONDES, Renato Leite. A Arte de acumular na gestação da economia cafeeira: formas de enriquecimento
no vale do Paraíba paulista durante o século XIX. Tese de Doutorado em Economia. USP, 1998, p. 129-130.
9
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil
(1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 54.
10
Ver, por exemplo, ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial
brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.;
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: Elites, Fortunas e Hierarquias no Grão-Pará (1850-
1870). Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2004; MATTOSO, Kátia de Q. Bahia: Século XIX
(Uma Província no Império). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; GRAÇA FILHO, Afonso A. A princesa do
Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais. São Paulo: Annablume, 2003.
137
Com relação ao perfil do patrimônio dos inventariados, percebe-se que do total de 256
inventários, 149 possuíam imóveis no espaço mais urbano de Pelotas (58,2%) e 142 possuíam
imóveis rurais (55,4%). Refinando estes dados, tem-se que 88 inventários (34,4%) possuíam
exclusivamente imóveis urbanos e 107 (41,7%) somente rurais. A partir destes índices, é
possível considerar que o número de inventariados que residiam na cidade era ligeiramente
maior do que o indicado, pois em muitos documentos não foi possível verificar se os
proprietários de imóveis urbanos e rurais (61 processos) moravam na cidade, mas é provável
que uma parte dos mais ricos o fizesse. A maioria dos charqueadores possuía casas na cidade e
lá residiam em boa parte do ano, como demonstram diversos documentos cartoriais, como
procurações e escrituras públicas, além da sua presença nas listas de qualificação de votantes da
paróquia mais urbanizada do município. 11
25
20
15
10
0
1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885 1890
A partir do Gráfico 4.1 é possível verificar que, ao longo do período analisado, houve
um aumento dos inventariados que moravam na cidade, o que pode ser um reflexo da crescente
urbanização no município. Neste sentido, é provável que um índice próximo dos 40% ou 50%
de moradores na cidade devesse ser a realidade pelotense entre as décadas de 1850 e 1880.12
Analisando dados compilados pela Câmara Municipal da época, Ester Gutierrez verificou que,
11
Lista de qualificação de votantes de Pelotas, 1865. Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
12
Este índice parece ter sido alcançado em décadas anteriores. Em 1822, por exemplo, um memorialista registrou
que 50% dos 3.400 habitantes da freguesia de São Francisco de Paula (primeiro nome de Pelotas antes de tornar-se
cidade) residiam em 217 prédios urbanos (GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue: mão de obra, arquitetura e
urbanismo em Pelotas (1777-1888). Pelotas: Universitária, 2004, p. 145). O percentual da população urbana
certamente oscilou durante o século XIX. Sabe-se que durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845) muitos
moradores abandonaram Pelotas. Tendo em vista que a própria cidade foi crescendo e incorporando novos espaços
ao seu redor, que as migrações eram intensas e que os limites entre o rural e o urbano eram bastante tênues, estes
dados devem ser entendidos como indicadores aproximados.
138
em 1880, Pelotas possuía 3.348 domicílios na cidade, sem contar os prédios públicos, as casas
comerciais, as fábricas, os hospitais e as escolas.13 Se cada propriedade possuísse, em média,
algo entre 4 ou 5 moradores, a população residente no espaço urbano poderia ser estimada entre
13 mil e 17 mil pessoas, o que comporia 44% a 55% da população pelotense na época. 14
Tal índice de moradores na cidade era alto para o contexto rio-grandense da época.
Farinatti encontrou 11% de inventários com este perfil para Alegrete, entre 1825 e 1865, e
Osório localizou 26% para toda a capitania, entre 1765 e 1825. 15 É importante repetir que esta
urbanização possuía um caráter incipiente e que os limites entre o urbano e o rural não eram
muito claros.16 Neste sentido, este “urbano” deve ser entendido a partir dos parâmetros da época
e num contexto regional. A vida na cidade era compartilhada por boa parte da população se
comparada aos outros municípios da província e talvez só fosse comparável a Porto Alegre e
Rio Grande. Diante do olhar dos viajantes e cronistas que escreveram sobre a província, a
cidade de Pelotas se destacava diante das outras, chamando a atenção, inclusive, de um membro
da família real que a visitou nos anos 1860. Conforme o Conde D’Eu:
Pelotas aparece aos olhos encantados do viajante como uma bela e próspera cidade.
As suas ruas largas e bem alinhadas, as carruagens que as percorrem (fenômeno único
na província), sobretudo os seus edifícios, quase todos de mais de um andar, com as
suas elegantes fachadas, dão idéia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a
cidade predileta do que chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que se pode
empregar a palavra aristocracia falando-se de um país do novo continente. Aqui é que
o estancieiro, o gaúcho cansado de criar bois e matar cavalos no interior da
campanha, vem gozar as onças e os patacões que ajuntou em tal mister. (...) O rápido
desenvolvimento de Pelotas é um fato notável que não encontra análogo na província
e que pressagia a esta cidade um futuro considerável.17
O Conde D’Eu ainda finalizou escrevendo que, ao invés de Porto Alegre, era Pelotas
que deveria ser a capital da província. A ênfase nesta urbanidade não se trata de algo simplório
para os objetivos desta pesquisa. A vida urbana, como demonstrarei posteriormente, teve
fundamental importância nas práticas sociais da elite charqueadora, de como ela se via e de
como gostava de ser vista. No entanto, a Tabela 4.2 demonstra que, apesar da maioria dos
inventários serem urbanos (ou possuírem imóveis exclusivamente urbanos frente aos
13
GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
14
Contudo, a média de moradores por habitação parecia ser maior. Os 14.762 habitantes da paróquia de São F. de
Paula, a mais urbana de Pelotas, residia em 1.829 “casas”, o que rusulta numa média de 8 moradores por habitação.
Não me arrisco a considerar estes índices como equivalentes ao espaço da cidade, porque parte dos moradores da
paróquia residiam nos limites rurais da mesma. Mas caso esta média fosse considerada, o percentual de moradores
na cidade ultrapassaria os 60% (Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br).
15
FARINATTI, Luis Augusto. Op. cit; OSÓRIO, Helen. Op. cit.
16
Ver, por exemplo, ARRIADA, Eduardo. Op. cit.
17
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: USP, 1981, p. 130-131.
139
exclusivamente rurais), o peso dos investimentos em bens agrários era muito maior. Até a
década de 1870, nunca os imóveis rurais, os escravos e os animais formaram menos de 53% do
total dos patrimônios avaliados.18 A diminuição dos seus valores nos anos 1880 e em 1890 era
resultado não apenas do processo de emancipação dos escravos, da sua abolição e da crise das
charqueadas, como também do nítido aumento da urbanização e da valorização dos imóveis
urbanos que mais do que dobraram a sua representatividade no interior dos bens avaliados.
Portanto, a riqueza material do município estava principalmente vinculada às atividades rurais.
Traço distinto podia ser verificado na análise dos inventários post-mortem dos habitantes do
Rio de Janeiro, entre 1797 e 1870. Neste intervalo de tempo, os percentuais em imóveis urbanos
ficaram sempre entre 24% e 38%, as apólices e ações atingiram 13,1% e 18,6% em 1860/70 e
os bens rurais somados aos escravos, em 1870, foram inferiores a 16% – denotando um perfil
muito mais urbano e mercantil do que Pelotas. 19 Portanto, a urbanidade pelotense era
regionalmente considerável, como já argumentei.
1850/55 40,5 11,8 11,6 19,5 0,7 7,9 6,4 0,05 0,8 25
1860/65 30,0 10,5 12,4 9,4 0,4 20,5 9,0 0,3 4,4 41
1870/75 32,4 21,1 6,0 14,4 1,9 10,3 11,1 0,2 2,5 65
1880/85 36,7 22,2 8,6 9,4 6,7 4,5 8,2 0,02 16,6 70
1890 40,3 26,5 7,2 12,1 6,1 - 0,9 0,1 10,2 55
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
18
Em Alegrete, o percentual destes bens formava mais de 80% dos patrimônios inventariados entre 1831 e 1870
(FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 51). Algumas pesquisas vêm demonstrando que após a Lei de Terras, em 1850,
o preço das mesmas sofreu uma grande valorização, o que acabava por se refletir na composição das fortunas dos
inventariados rio-grandenses. Como, por exemplo, GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura
agrária na Campanha Rio-grandense Oitocentista. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPG-História da
UFRGS, 2005. Sobre o mesmo tema ver também CRISTILLINO, Cristiano L. Litígios ao Sul do Império: A Lei de
Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese de Doutorado. Niterói: UFF,
2010.
19
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades
econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In:
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003, p. 144
140
rurais é que a maioria dos proprietários urbanos possuía os seus imóveis na cidade de Pelotas,
enquanto um montante significativo dos imóveis rurais inventariados, e dentre eles os de maior
valor, estavam localizados em outros municípios, como demonstro a seguir.
Fonte: Adaptado de FELIZARDO, Julia Netto (Org.) Evolução administrativa do Estado do Rio Grande do
Sul, IGRA – Divisão de Geografia e cartografia e Fundação de Economia e Estatística de Província de São
Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981.
Inicio pelas propriedades rurais. Apesar de Pelotas também possuir grandes fazendas,
elas não atingiam as dimensões, a quantidade e a qualidade dos pastos das que formavam a
principal zona pecuarista da província. As grandes estâncias de criação da região da campanha,
no oeste e sudoeste do Rio Grande do Sul, formavam o principal espaço econômico da pecuária
rio-grandense e dividiam a paisagem agrária com pequenos e médios proprietários, além dos
141
arrendatários.20 Com pastagens melhores, as terras do norte do Uruguai também eram cobiçadas
por estes grandes proprietários. Dos 256 inventários entre 1850 e 1890, 142 possuíam imóveis
rurais. Destes, 111 tinham estabelecimentos exclusivamente em Pelotas e 14 possuíam imóveis
rurais exclusivamente fora de Pelotas. Além destes, outros 17 detinham terras tanto em Pelotas,
quanto em municípios vizinhos. Destes 17, outros 5 também possuíam campos de criar no
Uruguai. Os 10 maiores investimentos econômicos em propriedades rurais (excluindo as
propriedades localizadas no Uruguai) somavam 199.847 £, de um total de 297.624 £.21 Ou seja,
10 inventários (7% dos 142 inventários com propriedades rurais) detinham 67% dos valores
investidos em imóveis rurais. Trata-se de uma concentração fundiária bastante alta. Entre os 10
inventariantes mencionados, estão 6 charqueadores, 2 filhos de charqueadores e 1 genro de
charqueador. Três deles possuíam propriedades somente em Pelotas e 7 tanto em Pelotas,
quanto em municípios vizinhos. Outros 3 também eram donos de estâncias no Uruguai.
20
Como demonstraram GARCIA, Graciela B. Op. cit; FARINATTI, Luís Augusto. Op. cit.; LEIPNITZ , Guinter
T. Entre contratos, direitos e conflitos: arrendamentos e relações de propriedade na transformação da campanha
rio-grandense: Uruguaiana (1847-1910). Dissertação de Mestrado. PPG-História da UFRGS, 2010.
21
Excluí os bens no Uruguai deste cálculo da concentração porque eles apresentam um valor muito alto, o que iria
distorcer os dados.
22
Em 1858, o governo provincial organizou um mapa estatístico reunindo a quantidade total de animais vacuns por
município. Pelotas, que teve somente os gados vacuns do 3º e 4º distrito recenseados, possuía um rebanho total
estimado em 59.600 reses, ficando entre os últimos municípios em quantidade de animais. As localidades com os
maiores rebanhos eram Alegrete com 762.232 reses e Bagé com 531.640 reses (Mapa numérico das estâncias
existentes dos diferentes municípios da província, de que até agora se tem conhecimento oficial, com declaração
dos animais que possuem e criam, por ano, e do número de pessoas empregadas no seu custeio - Fundo
Estatística, maço 02, AHRS). Agradeço a Leandro Fontella pela digitalização deste documento.
23
Caso a comparação levasse em conta o tamanho das propriedades, provavelmente a diferença se manteria, mas
uma grande parcela dos imóveis não possuía as suas dimensões discriminadas, dificultando este tipo de análise.
142
capital em estâncias de dimensões muito maiores e com uma melhor qualidade de pasto
localizadas fora dos limites do município. Eis aqui uma primeira diferenciação entre os que
eram capazes de realizar esta inversão e os que não possuíam capitais para tanto. Tendo em
vista que os imóveis rurais compunham aproximadamente 40% dos patrimônios inventariados e
que junto com os escravos e os animais eles ultrapassavam os 50%, pode-se concluir que os
charqueadores e seus familiares ocupavam uma posição privilegiada nesta hierarquia
econômica, pois estavam entre os maiores proprietários do município.
24
Esta concentração já vinha de décadas. Em 1822, por exemplo, Gonçalves Chaves estimou os valores das 217
casas da povoação em 342:500$000, destacando que 37 delas correspondiam a 47% deste montante (CHAVES,
Antônio José Gonçalves. Op. cit).
25
Ver, por exemplo, MULLER, Dalila. “Feliz a população que tantas diversões e comodidades goza”: Espaçõs de
sociabilidade em Pelotas (1840-1870). Tese de Doutorado. PPG-História da Unisinos, 2010.
143
engordar o gado. Desnecessário dizer que os pequenos proprietários criavam seus animais em
modestas terras nos distritos rurais do município ou nos campos de terceiros.
A diminuição da oferta dos escravos e o aumento do seu preço contribuiu para ampliar a
concentração dos cativos nas mãos de poucos senhores, como demonstra a Tabela 4.4. Dos 201
inventários post-mortem, entre 1850 e 1885, 81 (40%) não possuíam cativos arrolados entre
seus bens, o que reforça ainda mais a mencionada concentração dos mesmos no interior da
26
Como, por exemplo, BERGAD, Laird W. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais, 720-
1888. Bauru: EDUSC, 2004; SLENES, Robert W. The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-
1888. Tese de Doutorado, Stanford: Stanford University, 1976; CASTRO, Hebe Mattos de. Ao Sul da História:
lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987; SCHEFER, Rafael da C. Tráfico
interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro (1849-1888). Dissertação de Mestrado. PPG-História da
UFSC, 2006.
144
população. Os 120 restantes somavam 1.304 escravos inventariados. No entanto, 13 deles, ou
10,7 %, detinham 54,5% do total da escravaria. Já os proprietários de 5 ou menos escravos, que
compunham 60% dos inventariados, possuíam apenas 14,6% dos cativos. Entre os 13 maiores
proprietários de escravos estavam 7 charqueadores. Eles eram os únicos a possuírem mais de
100 cativos e formavam a metade dos que detinham entre 51 e 100 cativos. Ainda pode-se
enfatizar que o patrimônio acumulado em vida era diretamente proporcional à posse de
escravos. Destes 13 maiores escravistas pelotenses, 8 estavam entre os 10 mais ricos
inventariados. Numa pesquisa mais aprofundada, Bruno Pessi estudou a posse de escravos em
todos os inventários post-mortem de Pelotas entre 1850 e 1884. Reunindo 1.077 processos, o
autor verificou que 712 deles (66,1%) possuíam cativos arrolados entre seus bens e que 42
(5,9%) eram charqueadores. Estes empresários eram responsáveis pela posse de 2.244 escravos,
ou seja, mais de 1/3 de todos os escravos arrolados nos inventários pelotenses (34,6%).27
Gráfico 4.2 – Preço dos escravos entre 15 e 40 anos (1850-1885) – em mil réis
1800
1600
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885
Mulheres Homens
Além disso, os dados apresentados confirmam o que diversos autores identificaram para
outras áreas do Brasil no mesmo período, ou seja, embora houvesse uma nítida concentração de
cativos nas mãos de poucas pessoas, a posse dos mesmos estava disseminada entre vários
setores sociais, incluindo os pequenos proprietários. 28 Entretanto, o fim do tráfico e o aumento
do valor dos cativos ajudou a dificultar o acesso destes ao tráfico inter-provincial e intra-
27
PESSI, Bruno S. Entre o fim do tráfico e a abolição: a manutenção da escravidão em Pelotas, RS, na segunda
metade do século XIX (1850-1884). Dissertação de Mestrado em História, USP, 2012., p. 72.
28
Isto já foi mencionado no capítulo anterior para a primeira metade do século. Para dados relativos às décadas
posteriores à extinção do tráfico atlântico em todo o Brasil ver MARCONDES, Renato L. Desigualdades regionais
brasileiras: comércio marítimo e posse de cativos na década de 1870. Tese de livre-docência. Ribeirão Preto,
USP, 2005.
145
provincial como compradores, reservando-lhes o papel de vendedores. Tal fenômeno trouxe
dificuldades econômicas para parte das famílias mais pobres e, neste processo, os grandes
senhores foram lentamente drenando parte dos escravos dos pequenos. 29 Um dos reflexos deste
processo foi o aumento do número de inventários sem escravos ao longo do período estudado.
Conforme Pessi, os não possuidores de escravos compuseram 6,1% de todos os inventariados
no quinquênio de 1850-1854, 31,6% no de 1865-1869, e 54,8% no de 1880-1884.30
A concentração de bens também era visível no que diz respeito ao dinheiro em moeda e
às dívidas ativas. A quantia total de dinheiro avaliada nos 256 inventários foi de 101.495£, mas
73,6% deste montante estava nas mãos de somente 10 pessoas (3,9% dos inventariados), sendo
que 3 eram charqueadores e outros 3 eram parentes de outros charqueadores. Com relação às
dívidas ativas, o mesmo foi verificado. O valor total destes bens somados era de 153.089£, mas
62% deles pertenciam a 6 indivíduos, ou 2,3% dos inventariados, dentre os quais havia 2
charqueadores. A metade dos maiores credores também estava presente entre os 10 maiores
possuidores de dinheiro. Portanto, um grupo diminuto parecia concentrar a liquidez na
localidade e na ausência de dinheiro, eles eram capazes de possuir uma fatia considerável do
crédito.31 Tal concentração torna-se ainda mais notável quando se percebe que muitos dos
maiores senhores de escravos e animais também surgem no topo da lista dos mais
endinheirados e dos principais proprietários de imóveis rurais e urbanos. Desnecessário dizer
que os charqueadores e seus parentes eram os que mais se destacavam no interior deste grupo.
29
Ver, por exemplo, VARGAS, Jonas M. Das charqueadas para os cafezais? O tráfico inter-provincial de escravos
envolvendo as charqueadas de Pelotas (RS) entre as décadas de 1850 e 1880. In: XAVIER, Regina L. (Org.).
Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012.
30
PESSI, Bruno S. Estrutura da posse e demografia escrava em Pelotas entre 1850 e 1884. In: Anais do V Encontro
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 14
31
Estes números tornam-se mais importantes ainda numa sociedade com pouca moeda em circulação e cujas
instituições bancárias atendiam uma pequena parte da população.
146
Mas entre eles e os trabalhadores escravos havia uma série de categorias socioeconômicas que
ainda é preciso investigar melhor, como demonstro a seguir.
Muito já se escreveu sobre a Pelotas do século XIX, mas ainda se sabe pouco sobre a
sua população e como ela estava estratificada em termos sociais e econômicos. As páginas
anteriores evidenciaram uma profunda concentração dos bens materiais nas mãos de uma elite
privilegiada. No entanto, Pelotas era muito mais do que um núcleo charqueador e não estava
polarizada entre os senhores da carne e seus escravos. No final dos anos 1870, o município
possuía quase 30 mil habitantes e a cidade havia se tornado o cenário de um grande número de
profissionais de diferentes áreas, atingindo um notável grau de desenvolvimento econômico e
cultural para os padrões da província. Mas quem eram as pessoas que compartilhavam daquela
época de auge?
Apesar das já conhecidas limitações que envolvem o Censo imperial de 187232, ele é o
documento mais abrangente no que diz respeito ao total da população da época, já que os seus
indicadores não excluem escravos, mulheres, crianças e idosos.33 No entanto, Pelotas constitui-
se num caso diverso da maioria dos municípios rio-grandenses recenseados na época, uma vez
que uma de suas quatro paróquias não teve os seus dados populacionais arrolados. Por conta
disto, e de sub-registros ocorridos no recenseamento, a população escrava do município foi
bastante subestimada.34 Somando as estatísticas das três paróquias recenseadas tem-se um total
de 21.258 habitantes, sendo que a de São Francisco de Paula, com 14.762 almas, era
responsável por mais de 2/3 deste total. Contudo, apesar dos problemas desta fonte, creio que os
dados contidos no censo são bastante favoráveis para o estudo da mencionada paróquia – que
era a que concentrava todos os habitantes da cidade e de seus subúrbios próximos. Como as
estatísticas referentes aos escravos são consideradas as mais imprecisas, analisarei somente a
32
BOTELHO, Tarcísio R. População e nação no Brasil do século XIX. 1998. Tese de Doutorado em História.
USP, 1998; MONASTERIO, Leonardo. O Rio Grande do Sul de 1872: análise setorial da ocupação nos
municípios. In: Anais do II Encontro de Economia Gaúcha. Porto Alegre, 2004, CD-ROM.
33
Censo Geral de 1872 (disponível em: http//www.ibge.gov.br).
34
De acordo com o Censo de 1872, as três paróquias recenseadas somariam 3.590 escravos. No entanto, o registro de
matriculas de escravos para o ano de 1873 marcou 8.141 cativos, ou seja, mais do que o dobro recenseado (VARGAS,
Jonas M. Op. cit.). Não é possível saber o número de escravos na paróquia de N. S. da Conceição do Boqueirão (a que
não foi recenseada em 1872), mas é certo que ela não possuía um contingente tão grande de cativos ao ponto de
completar o restante que faltava para chegar aos mais de 8 mil escravos. O mais provável é que as outras duas
paróquias rurais também tenham apresentado sub-registros.
147
população livre. Isto vai ao encontro dos objetivos deste capítulo, pois é exatamente a
caracterização dos setores intermédios da sociedade pelotense que estou buscando analisar.35
A paróquia de São Francisco de Paula possuía 12.376 habitantes livres, sendo 6.799
homens e 5.577 mulheres. Deste grupo, 9.021 foram classificados como brancos, 1.347 como
pardos, 1.848 como pretos e 160 como caboclos.36 Comparando estes dados com os do
recenseamento realizado no 1º distrito de Pelotas, cerca de 40 anos antes, percebe-se que a sua
paróquia mais urbana alterou significativamente o seu perfil social. Entre 1833 e 1872, a
população total (livre e escrava) residente na localidade mais urbana de Pelotas aumentou de
4.707 para 14.762 pessoas. Se os dados referentes aos escravos estiverem corretos, o número de
cativos teria aumentado de 2.202 para 2.386. No entanto, como a população livre cresceu
bastante, o percentual de escravos teria caído de 46,8% para 16,2%, mas é provável que a queda
tenha sido um pouco menor, visto o já comentado sub-registro de escravos no censo.
No que diz respeito à cor dos seus habitantes, se em 1833 o percentual da população
classificada como branca e residente na vila era de 43,3%, em 1872, conforme o indicado
acima, ela saltou para 72,7%. Apesar do número de escravos ter continuado crescendo no
município de Pelotas até meados da década de 1870, é notável que a população branca
aumentou em taxas maiores. Um dos motivos deste fenômeno, comum em todo o Brasil, foi a
extinção do tráfico atlântico em 1850. No entanto, este branqueamento urbano, ao menos na
cidade de Pelotas, também se explica pela expressiva entrada de imigrantes europeus na urbe.37
O desenvolvimento econômico da região atraiu pessoas de diversas partes da província, de
outras regiões do Império, mas, sobretudo, de outros países. Se em 1833 somente 6,3% dos
moradores da vila foram identificados como estrangeiros, em 1872 a paróquia urbana contava
com 20,4% do total da população formada pelos mesmos. Calculando estes dados somente
entre a população livre, os mesmos índices teriam aumentado de 11,9% para 24,4%.
Em números absolutos, foi um salto de 299 para 3.009 pessoas estrangeiras em menos
de 40 anos e num intervalo de tempo que ainda contou com uma longa guerra civil (ocasião em
que muitas pessoas retiraram-se da localidade). Contudo, destes 3.009 estrangeiros, 361 eram
africanos livres, diminuindo um pouco a presença dos europeus e americanos brancos no espaço
35
A população escrava no mesmo período será tratada no capítulo posterior.
36
Somados os livres com os escravos, a população classificada como preta era de 3.167 e a parda de 2.404.
Entretanto, como o número de escravos da paróquia está sub-representado, é possível que a população de cor na
mesma ultrapassasse os 6.000 habitantes.
37
Embora a população escrava e a população livre de Pelotas tenham crescido entre os anos 1830 e 1870, o
percentual dos cativos em relação ao total caiu bastante. Em 1833, 51% dos habitantes eram cativos, enquanto que,
em 1858, este índice já havia caído para 37,1% e, em 1872, é provável que tenha ficado entre 30% e 33%.
148
urbano. Mesmo assim, para uma pequena cidade como Pelotas, o aumento do número de
estrangeiros em cerca de 9 vezes num intervalo de 4 décadas deve ter resultado num impacto
significativo em sua urbe. Excetuando as regiões de colonização alemã da Província, o
percentual de estrangeiros entre os habitantes livres da cidade de Pelotas só era inferior à Rio
Grande (28,8%) e Itaqui (25,6%) – ambas cidades mercantis, o que explica esta concentração
de estrangeiros. Na cidade do Rio de Janeiro, em 1890, cerca de 30% da população era
estrangeira (70% destes eram portugueses).38 Nesta época, o índice de estrangeiros era bem
menor nas outras capitais de província.39 Mesmo que em proporções populacionais muito
menores, Pelotas parecia-se mais com a Corte – no que diz respeito à grande presença de
estrangeiros na cidade – do que com as principais capitais do Império.
Portanto, por volta do meado do século, do ponto de vista das migrações em escala
global, Pelotas havia se tornado uma das inúmeras localidades das Américas que receberam
europeus em seu território. Conforme René Remond, a emigração de europeus no século XIX
foi um dos “grandes fatos demográficos do mundo”. Entre 1815 e 1914, a população da Europa
cresceu em altos índices, ultrapassando o seu dobro. Em 1800, por exemplo, ela possuía 187
milhões de pessoas e, em 1900, tinha ultrapassado os 400 milhões. As consequências sociais
deste crescimento demográfico associado a momentos de crise econômica e política foram o
pauperismo, o desemprego crônico e a baixa dos salários, levando parte de sua população a
migrar para terras que prometiam uma vida melhor. O grosso da emigração europeia, portanto,
foi constituído principalmente “de camponeses sem terra, de operários sem trabalho e de
burgueses arruinados” e os países que contribuíram mais com este fluxo foram os mais
atingidos pela falta de trabalho e pela miséria. 40
Segundo David Eltis, a partir de 1820, as migrações por todas as partes do mundo
tomaram um perfil cada vez mais voluntário, substituindo a era das migrações forçadas. 41 No
Brasil, ao mesmo tempo em que se intensificava o processo de imigração europeia, sob
38
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 79.
39
Nas paróquias urbanas de São Paulo (Sé, Santa Efigênia e Consolação) este índice era de 11,8% entre os
habitantes livres. Em Recife, era de 6%, em São Luis, no Maranhão, era de 6,8%, em Salvador, era 5,8% e em
Ouro Preto era 3,3% (Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br).
40
Calcula-se em cerca de 13 milhões o número de europeus que se expatriaram entre 1840 e 1880. A mesma cifra
voltou a emigrar num intervalo de tempo menor (1880 a 1900). A partir de 1900, o índice atingiu 1 milhão de
pessoas por ano dos que partiam somente para os Estados Unidos. No total, não é exagero afirmar que cerca de 60
milhões deixaram a Europa para estabelecer-se em outros continentes além-mar. Mais da metade foi para os
Estados Unidos e cerca de 8 milhões migraram para a América do Sul (REMOND, René. O século XIX (1815-
1914). São Paulo: Cultrix, 1990, p. 197-199).
41
ELTIS, David. Migração e estratégia na História Global. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda
(Org.). Ensaios sobre a escravidão (1). Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 13-35. Eltis reconhece a singularidade
brasileira no que diz respeito ao fluxo voluntário que marcou a colonização portuguesa na América, antes do
século XIX.
149
incentivo das autoridades administrativas, a longa história da entrada de cativos africanos
estava com seus dias contados. Tratavam-se de dois grandes ciclos migratórios distintos (o
primeiro forçado e o segundo voluntário) que caracterizaram a formação do mundo atlântico
entre os séculos XVI e XIX. Pelotas participou de ambos os fluxos migratórios, recebendo um
grande número de africanos na primeira metade do século XIX e um significativo contingente
de europeus não lusófonos em todo o oitocentos, mas, sobretudo, a partir dos anos 1850. Neste
sentido, estudar a imigração para Pelotas é estudar os fluxos migratórios que caracterizaram o
período em diferentes partes do mundo Atlântico, oferecendo um exemplo de como se deu a
interação social entre nativos e estrangeiros numa escala microanalítica.
Para se ter uma maior dimensão desta entrada de estrangeiros em Pelotas seria
necessário saber qual o perfil desta população flutuante que chegava anualmente na cidade,
vindo a estabelecer-se nela ou não. Uma das documentações mais eloquentes com relação à
migração para Pelotas são os passaportes policiais emitidos aos estrangeiros entrados na cidade.
A lista mais completa que localizei com relação aos mesmos reúne todos os que entraram na
cidade ao longo do ano de 1855. Este documento apresenta o nome de 481 pessoas e arrola a
sua nacionalidade, idade, estado civil, profissão e local de procedência. 42 Entretanto, esta fonte
apresenta uma sub-representação do fluxo de pessoas, pois entre os listados não há nenhuma
mulher (apesar de 18,2% dos indivíduos fichados serem casados). Outro problema do
documento é que ele não revela o motivo pelo qual os recém-chegados estavam na cidade, não
sendo possível saber se vinham provisoriamente, se estavam de passagem para outro município
ou se desejavam estabelecer-se em Pelotas. É provável que todos estes, além de outros,
fizessem parte do repertório de motivos do grupo listado.
42
Lista de estrangeiros que receberam passaporte policial (1855). Fundo Polícia, Pelotas, Maço 15, AHRS.
43
Para alguns lugares como Espanha e Uruguai são citadas as cidades de onde o listado nasceu e não o país. O
mesmo é percebido para Alemanha e Itália, que ainda não possuíam um estado nacional unificado.
150
(6%) e italianos (5,2%). O restante reunia ingleses, norte-americanos, irlandeses,
dinamarqueses, suíços, suecos, argentinos, paraguaios e austríacos.
Outro item importante é o que se refere à procedência dos indivíduos. A grande maioria
destes estrangeiros (77,5%) vinha de Rio Grande, o que não causa surpresa, pois o porto
marítimo localizava-se nesta cidade. O interessante talvez seja que 22,5% chegava em Pelotas
partindo de outras localidades, o que evidencia que este deslocamento não se dava somente pela
via marítima, mas também pela navegação fluvial e pelas precárias estradas que levavam até o
polo charqueador. Assim, encontram-se entre os locais de procedência o Uruguai (8,5%) e a
Argentina (0,5%), além de estrangeiros vindos da região da campanha (4,2%), da vizinha
Jaguarão (3,8%), de outros municípios próximos como Piratini, Canguçu e Camaquã, e dos
próprios distritos rurais de Pelotas.
A faixa etária dos estrangeiros variava, abarcando crianças de 10 anos até idosos de 63
anos. Cerca de 58,5% dos estrangeiros possuía entre 16 e 30 anos, demonstrando que este fluxo
era majoritariamente de pessoas jovens. O grupo mais representativo era formado pelos
caixeiros portugueses entre 10 e 20 anos, provenientes de Rio Grande. Eles perfaziam 14% dos
listados. Conforme Ana Sílvia Scott, foi comum a vinda de caixeiros para o Brasil integrados a
44
A lista é longa e reunia trabalhadores ligados ao ramo das navegações (armeiro (1), calafate (1), marinheiro (2),
veleiro (2)), aos ofícios artesanais envolvendo couro, madeira, metais e outros materiais (abridor (2), alfaiate (22),
cadeireiro (2), carpinteiro (22), chapeleiro (6), charuteiro (3), correeiro (4), ferreiro (19), marceneiro (13), ourives
(12), afiador (1), curtidor (3), saboneiro (4), penteeiro (1), sapateiro (25), tanoeiro (6)), aos serviços nas
charqueadas ou estâncias (campeiro (3), capataz (1), descarnador (1), graxeiro (2), peão (4)), aos serviços na
lavoura (lavrador (14), roceiro (2), chacareiro (1), serrador (2)), aos ofícios ligados à construção civil (oleiro (2),
pedreiro (6), pintor (1), vitrificador (1)), ao setor de transportes de cargas (carreteiro (9), carretilheiro (1)), às
profissões liberais (cirurgião (1), música (3), violeiro (1), escritor (1)) e à prestação de serviços diversos
(açougueiro (3), aguadeiro (1), barbeiro (4), cozinheiro (6), figurista (1), padeiro (5), taberneiro (1)), entre outros.
45
SERRÃO, Joel. Conspecto histórico da emigração portuguesa. Análise Social, Ano 8, n. 32, 1970, p. 597-617.
151
redes mercantis e de parentesco transatlântica.46 Além disso, os dados da lista de 1855
combinam com o perfil da população estrangeira recenseada em 1872. Descontados os 361
africanos que foram classificados como estrangeiros livres – sem dúvida um número expressivo
– os 2.648 restantes estavam divididos em: 1.495 portugueses, 323 alemães, 256 uruguaios, 201
franceses, 115 espanhóis, 84 italianos e 68 ingleses, apenas para ficar entre os grupos mais
representativos.47 É importante lembrar que estes eram os que residiam no espaço mais urbano
de Pelotas. Os distritos rurais do município também concentravam significativos contingentes
de estrangeiros, sobretudo, europeus.48
46
SCOTT, Ana Sílvia. As duas faces da imigração portuguesa para o Brasil (décadas de 1820-1930). Anales del
Congreso de Historia Económica de Zaragoza, 2001, p. 3. Ver também ROWLAND, Robert. Velhos e novos
Brasis. In: BETHENCOURT, Francisco. História da Expansão Porguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998.
47
O restante era formado por paraguaios (62), argentinos (16), suíços (9), austríacos (7), gregos (3), dinamarqueses
(2), holandeses (2), norte-americanos (2), suecos (2) e boliviano (1).
48
Em 1858, por exemplo, foi fundada a colônia São Lourenço na zona rural de Pelotas. Um dos motivos da
instalação desta colônia foi a excessiva especialização do município na produção das charqueadas e a ausência de
lavouras que suprissem a demanda alimentícia da crescente população. Um ano após a instalação da colônia, a
mesma possuía 206 habitantes. No entanto, cerca de 10 anos depois, a colônia possuía 1.637 almas divididas em
340 famílias, sendo 1.277 protestantes e 360 católicas. Os mesmos cultivavam trigo, centeio, cevada, milho, feijão
e batatas, destinadas ao consumo das cidades de Rio Grande e Pelotas (CAMARGO, Antônio Eleuthério.
Estatística provincial de 1868, Fundo Estatística, AHRS, p. 93).
152
crianças terem sido incluídas neste grupo.49 No caso de Pelotas, a população com 15 anos ou
menos somava 3.513 habitantes. Talvez uma parte dos indivíduos entre 16 e 20 anos, e que
somavam 1.299 moradores, também tenha sido qualificada no grupo citado por não exercer
funções que se enquadrassem nas outras categorias do censo. Contudo, entre os “sem profissão”
estão 1.136 pessoas casadas ou viúvas, o que indica que eram adultas. Destas, 994 eram
mulheres. Portanto, é possível que muitas delas deviam ser “donas de casa”, o que aos olhos
dos censores poderia fazer parte do grupo “sem profissão”. A parcela restante dos “sem
profissão” parecia incluir os considerados “inválidos”, os muito pobres e uma parte dos que
viviam de suas agências.50
A análise que se segue inclui, portanto, os 6.313 habitantes livres e adultos que
possuíam alguma profissão reconhecida pelo censo (4.435 homens e 1.878 mulheres). As
mulheres pelotenses exerciam um número bem menor de atividades econômicas e profissionais
se comparadas aos homens. As principais ocupações femininas eram a de “serviço doméstico”,
que contava com 882 mulheres, e a de “costureira”, que reunia 668 delas. Portanto, cerca de
82,5% das mulheres livres com profissão foram classificadas como costureiras ou serviços
domésticos. Destas, ¾ eram solteiras. Desconheço se outras atividades foram condensadas na
categoria “costureira” (visto o seu alto índice de 35,5% das mulheres com profissão). É um
contingente enorme de trabalhadoras que permanece invisível esperando por algum estudo
específico. As outras mulheres foram classificadas como capitalistas e proprietárias (91),
comerciantes (70), artistas (34) e professoras (14). A única categoria em que as mulheres
estrangeiras conseguiram superar as brasileiras foi na de “artistas”.
49
MONASTERIO, Leonardo; ZELL, Davi. O Rio Grande do Sul de 1872: análise setorial da ocupação nos
municípios. Anais do II Encontro de Economia Gaúcha. Porto Alegre, 20 e 21 de maio de 2004.
50
Segundo o próprio censo, a paróquia possuía 18 cegos, 14 surdo-mudos, 42 aleijados, 10 dementes e 8 alienados.
51
Este índice converge com o encontrado para o total da categoria “comércio” na lista dos estrangeiros entrados na
cidade de Pelotas em 1855 (28%) e da lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1865 (23%).
153
grupo dos “manufatores e fabricantes” compunha 250 homens. A grande maioria, ou 87,3%
deles, eram estrangeiros. É possível que muitos fossem patrões dos operários citados.
Segundo Osório, entre 1835 e 1912, podia-se contar em torno de 6 mil firmas que
apareceram e giraram na cidade. Em 1910, existiam 188 fábricas, 278 oficinas e 822 casas de
negócio diversas. No entanto, foi a partir dos anos 1870 que as indústrias e companhias fabris
começaram a se proliferaram por Pelotas. Marcos dos Anjos verificou um grande número de
novas fábricas de fumo, de sabão e velas, de cerveja, de chapéus, de curtição e de massas, entre
outras. Das 38 que foram registradas na Junta Comercial, mais de 52% pertenciam a
estrangeiros e 26% possuíam um dos sócios estrangeiro.52 Estes dados vão ao encontro dos
percentuais do Censo de 1872, uma vez que entre os fabricantes, os operários especializados, os
manufatores e os artistas, a maior parte era composta por estrangeiros. Somados aos índices dos
comerciantes, é possível inferir que estas eram as ocupações econômicas mais acessadas pelos
mesmos. Estes estrangeiros eram na sua maioria homens de setores médios e subalternos,
destacando-se socialmente pela sua inventividade e iniciativa nestes setores econômicos. Uma
pequena parte deles chegou a possuir riqueza e prestígio social considerável. 53
Conforme Anjos, que realizou uma rigorosa pesquisa nos periódicos pelotenses da
época, estes estrangeiros, sobretudo os europeus, colaboraram profundamente com a
modernização da cidade de Pelotas. Entre os mesmos, uma série de engenheiros e arquitetos
contribuíram com projetos na área da urbanização, iluminação, redes de esgoto e abastecimento
de água, entre outros. Datam do início dos anos 1870, a formação da Companhia Hidráulica
Pelotense, o início do trânsito de carros de passageiros realizado pela Companhia Ferro Carril e
Cais de Pelotas e a construção da estação férrea. Além disso, um outro grande número de
europeus também formava um contingente que permanecia por algumas temporadas atuando
em diferentes áreas, para depois seguir viagem por outras cidades da América. Na área cultural
e artística, por exemplo, diversas companhias teatrais, pintores e fotógrafos estrangeiros
enchiam as páginas dos jornais da cidade de anúncios e arrebatavam importante clientela.
52
ANJOS, Marcos H. dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX.
Dissertação de Mestrado. PUCRS, 1996, p. 62-67. A descrição de algumas indústrias existentes em Pelotas neste
período ajuda a colorir os números apresentados. Conforme Osório, em 1845, o francês Carlos Ruelle fundou a
primeira fábrica de seges e carros, que, em 1865, recebeu a visita do Imperador D. Pedro II. Também em 1845,
João Barcellos fundou uma chapelaria e 3 anos depois, Antônio Lopes dos Santos abriu sua loja de ourivesaria. Em
1855, Diogo Higgins fundou uma oficina para consertar instrumentos musicais. Em 1860, José Gonçalves
estabeleceu uma Latoaria e, em 1864, Frederico Lang fundou uma fábrica de sabão. O autor ainda cita outros
estabelecimentos como olarias, fábricas de anil, de papel, de louças e carnes em conserva (OSÓRIO, Fernando. A
cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 2, p. 141-142).
53
ANJOS, Marcos Hallal dos. Op. cit.
154
Professores de piano, de línguas, de etiquetas e empregados em escolas particulares também
tinham um importante espaço.54
Neste sentido, Pelotas apenas acompanhava uma tendência das principais cidades do
mundo ocidental. Com o maior desenvolvimento do capitalismo, a vida das pessoas foi
gradualmente sendo deslocada para as cidades. No início do século XIX, gigantes como
Londres e Paris possuíam respectivamente 1 milhão e 500 mil habitantes. Contudo, estas eram
dimensões excepcionais para a época, pois, na Europa, somente estas duas cidades
ultrapassavam os 500 mil habitantes. No entanto, cerca de 100 anos depois, em 1913, este
número já havia chegado a 149.55 Esta maior urbanização colaborou com a disseminação do
estilo de vida burguês, a ampliação dos meios de comunicação e transportes, a circulação de
novas ideias sobre ciência e progresso e tudo isso afetou consideravelmente a vida nas grandes
cidades europeias e americanas. Mas apesar deste novo protagonismo das cidades, a grande
maioria da população mundial ainda era rural. Na própria Europa, em 1913, somente 15% dos
europeus moravam em cidades.56 Neste contexto, se Pelotas possuía uma população urbana
importante ao comparar-se com a grande maioria das cidades do Império (chegando a 15 mil
nos anos 1870), diante das grandes capitais ela era uma pequena vila, pois, nesta época, a
cidade do Rio de Janeiro possuía 275 mil habitantes, Salvador 130 mil e Recife mais de 115
mil. Num patamar inferior, apresentavam-se, entre outras, São Paulo com pouco mais de 30 mil
e Porto Alegre com cerca de 25 mil.57
Na medida em que as cidades cresciam juntamente com a sua população, a demanda por
gêneros alimentícios também aumentava. A partir da segunda metade do século, os distritos
rurais de Pelotas foram alvo de intensa especulação e mais de 60 colônias agrícolas foram
fundadas entre os anos 1860 e 1890. As elites possuidoras de terras na Serra dos Tapes foram as
que mais investiram nestes negócios e os charqueadores e seus familiares tiveram um papel de
destaque neste processo. Em 1869, por exemplo, Custódio Gonçalves Belchior, fundou a
54
ANJOS, Marcos Hallal dos. Op. cit., p. 36-37, 84-95, 102-103. Os italianos dominavam o ramo da hotelaria e, na
Santa Casa e em clínicas particulares, vários médicos europeus exerceram a sua profissão. Para uma análise da
imigração italiana em Pelotas ver POMATTI, Angela B. Italianos na cidade de Pelotas: doenças e práticas de
cura (1890-1930). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2011.
55
REMOND, René. Op. cit., p. 137.
56
REMOND, René. Op. cit., p. 137.
57
Neste sentido, é necessário mencionar que o último quartel do século não marcou somente o início da
modernização e o processo de ampliação da urbanização pelotense. Em São Paulo, conforme Zélia C. de Mello, os
anos 1870 representariam a “segunda fundação” da cidade, quando ela se tornou, segundo contemporâneos da
modernização paulista, a “capital dos fazendeiros” e deu seus primeiros passos para tornar-se a “metrópole do
café” (MELLO, Zélia C. de. Op. cit., p. 84). Estudando os padrões de riqueza em Juiz de Fora na passagem do
século XIX para o XX, Rita Almico percebeu que o mesmo período marcou o impulso modernizador e a
urbanização da localidade, refletida na valorização dos imóveis da cidade – processo viabilizado pelo crescente
comércio e riqueza da cafeicultura da Zona da Mata mineira (ALMICO, Rita. Op. cit.).
155
colônia Santa Silvana e, em 1889, Heleodoro de Azevedo e Souza deu o nome de Santa Eulália
à colônia que criou. Os colonos possuíam origens diversas. Em 1848, a colônia D. Pedro II,
cujo maior acionista era o charqueador Antônio Rafael dos Anjos, era formada por irlandeses e
ingleses. Anos mais tarde, a colônia São Feliciano, teve nos franceses os seus primeiros
imigrantes. A colônia São Lourenço, a mais conhecida de todas, era formada por famílias
germânicas.58
No entanto, uma parte da elite pelotense entendia que a vinda de colonos para o trabalho
agrícola não era suficiente para o desenvolvimento da cidade. Em 1861, um charqueador
escreveu ao presidente da Província, esboçando que desejava também a “vinda de outros
colonos senão científicos, inteligentes, como até com capitais, na certeza de que na Pátria a
adotarem deparariam com meios infalíveis de felicitarem suas proles”. 59 Neste sentido,
conforme Anjos, alguns pelotenses defendiam, por intermédio da imprensa, a ideia de que os
europeus deveriam trazer a sua inteligência para além do trabalho agrícola, exercendo os seus
ofícios e saberes como se estivessem nos seus países de origem. Para isso, era preciso criar
indústrias e oferecer o suporte necessário para que eles executassem as suas atividades. 60 E, de
fato, aproveitando-se deste estímulo local, os estrangeiros passaram a participar cada vez mais
da vida urbana pelotense, onde pareciam sentir-se muito à vontade, visto que não eram poucos:
58
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 44-49; 60. Outros investidores seguiram o exemplo, como os herdeiros do
charqueador Domingos de Castro Antiqueira (Colônia São Domingos, 1875), José Bento de Campos (Colônia
Santo Bento, 1899), Manoel Batista Teixeira (Colônia Santa Áurea, 1893), Pedro Nunes Batista (Colônia São
Pedro), Epaminondas Piratinino de Almeida (Colônia Santa Bernardina e Colônia São Domingos).
59
Carta de Domingos José de Almeida ao presidente da Província do Rio Grande do Sul. Pelotas, 04.10.1861.
Anais do Arquivo Histórico do RS, CV-686, p. 154.
60
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 52-53.
61
Idem, p. 89.
156
sentido, seus laços com sua terra natal jamais eram desfeitos e os acontecimentos políticos do
velho continente eram acompanhados mesmo do outro lado do Atlântico. 62 Não demorou muito,
também surgiram jornais em sua própria língua, como o italiano “Il Venti Setembro”, de Carlos
Cantaluppi, e o alemão “Deutsche Presse”. 63 Isto também ajuda a explicar a grande importância
que os jornalistas pelotenses davam à cultura, economia e política internacional nas primeiras
páginas de seus periódicos. Não é difícil imaginar que a elite pelotense devia compartilhar de
parte destas informações e debates com os estrangeiros mais notáveis nos clubes, bailes, cafés,
jantares e nas praças da cidade.
62
“Apesar de distantes de seus países de origem, os estrangeiros continuavam ligados a eles por fortes laços de
subordinação, veneração e por afetos familiares. Através das entidades coletivas organizadas, o contato com a
pátria mãe e a atuação frente a episódios de repercussão internacional tornava-se mais fácil, propiciando, àqueles
estrangeiros envolvidos, um reforço positivo no íntimo de suas cidadanias enfraquecidas. Assim, em 1878, a
comunidade francesa compadeceu-se pela morte de Thiers; em 1883, a comunidade alemã da cidade uniu-se na
tentativa de amenizar o sofrimento das vítimas das inundações e do inverno cruel que abalara a Alemanha naqueles
anos; em 1890, os portugueses em Pelotas fizeram subscrições e angariaram fundos para serem remetidos a
Portugal, caso houvesse um conflito com a Inglaterra (questão da Zambesia); e, durante o ano de 1898, a ‘colônia
espanhola’ mobilizou-se na formação de uma ‘Liga Patriótica’ para angariar donativos a serem enviados ao
governo da Espanha, que se encontrava em guerra com os Estados Unidos” (ANJOS, Marcos. Op. cit., p. 90).
63
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 89; 112.
64
A grande presença de estrangeiros era reconhecida pela própria população. Na edição de 20 de julho de 1884, o
Correio Mercantil de Pelotas iniciava uma matéria sobre as Sociedades de Socorros Mútuos da seguinte forma:
“Em todas as cidades populosas como a nossa, onde avulta o elemento estrangeiro, este deve congregar-se (…)”
(apud ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 89).
65
Os dados do Censo de 1872 contribuem novamente para esta questão. Se entre os brasileiros o número de
mulheres era maior que o de homens, entre os estrangeiros, para cada mulher havia 4 homens. Dos 2.443
estrangeiros do sexo masculino, 935 eram casados, e das 566 mulheres estrangeiras, 187 eram casadas. Portanto
havia um grande número de estrangeiros casados para um pequeno número de mulheres estrangeiras casadas. Estes
dados além de revelarem que os homens migravam muito mais, demonstram que vários deles tendiam a contrair
matrimônio com as mulheres da terra.
157
proprietários” contidos no Censo de 1872 reuniam 97 homens, mas somente 20% eram
estrangeiros. Outro exemplo pode ser dado no grupo dos criadores e lavradores dos subúrbios
da cidade, que somavam 216 pessoas e também apresentavam 80% de brasileiros. Portanto,
ainda era possível vislumbrar um grupo de “estabelecidos” na cidade, notadamente, uma parte
significativa de sua elite. Os estrangeiros, com exceção dos portugueses na primeira metade do
século, praticamente não tiveram acesso ao restrito círculo das fábricas de charque. Cada vez
mais a elite charqueadora fechava-se diante de investidores vindos de fora – algo
completamente distinto do que ocorria no Rio da Prata na mesma época, onde ingleses,
franceses e espanhóis continuavam com entrada franca na indústria da carne, no comércio e na
pecuária, já em moldes capitalistas. 66 Em Pelotas, a única porta aberta aos mesmos era o
matrimônio, visto que alguns ricos charqueadores estabeleceram tais alianças com europeus,
como tratarei num capítulo posterior. Portanto, no final do período aqui estudado, os
estrangeiros ocuparam principalmente os estratos intermédios da sociedade pelotense. Tal
constatação pode indicar que as mencionadas alianças matrimoniais com os charqueadores era
do interesse de ambas as partes, uma vez que inserir-se numa família da elite estabelecida
oferecia um leque de possibilidades aos candidatos a genro estranhos àquela localidade.
Mas ainda é necessário realizar uma última consideração sobre a estratificação social em
Pelotas. Para isso tomarei uso novamente dos inventários post-mortem, acrescendo outras
fontes, como demonstro a seguir.
67
Lista de qualificação de votantes de Pelotas, 1865 (Fundo Eleições, maço 2, Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul). Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense - transcrição
gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva).
68
Ambos os documentos oferecem uma amostra significativa dos homens livres maiores de 21 anos e com renda
anual superior a 200$000, ou seja, os qualificáveis. Ao contrário do que se defendeu durante muito tempo, uma
parcela significativa da população masculina participava das eleições imperiais, uma vez que a renda não era um
grande empecilho. De acordo com Richard Graham, 50,6% de todos os homens brasileiros livres maiores de 21
anos votaram nas eleições do início da década de 1870 (GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do
Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 147). Tendo em vista o grande número de estrangeiros em Pelotas, que
segundo às leis da época só podiam votar caso fossem naturalizados, é provável que os indivíduos arrolados nas
listas de votantes correspondessem a mais da metade da população masculina.
159
alto índice de analfabetismo e a baixa burocratização da sociedade da época. Juntos, eles
reuniam 65 indivíduos, ou seja, 9% dos qualificados como votantes. Merecem destaque os
médicos (8) e os advogados (4) que possuíam um forte prestígio social. Os empregados
públicos somam 27 pessoas, distribuídas em diferentes setores que a lista não discrimina.
Outros grupos importantes são os professores (12) e os militares (5). 69 Um terceiro grupo da
lista que merece menção pertence a estratos médios e baixos da sociedade. Ao todo considerei
373 indivíduos como pertencentes a este grupo, ou seja, 52% do total dos votantes.70 Entre eles
é possível vislumbrar a presença de carpinteiros (37), alfaiates (31), marítimos (22), carreteiros
(19), jornaleiros (19), tropeiros (19), capatazes (8), marceneiros (8), pedreiros (7), lombilheiros
(5), boleeiros (5), pescadores (3), cortadores (3), campeiros (3), entre outros.
Como já foi dito, a lista de votantes de 1880 apresenta o mesmo perfil da anterior,
trazendo somente algumas ocupações profissionais novas, como o surgimento de um repórter,
um redator e dois telegrafistas – indicando que os meios de comunicação haviam atingido um
maior nível de desenvolvimento. Os dois maquinistas presentes nesta lista, por outro lado,
revelam que os meios de transporte haviam entrado na era das ferrovias. Dois gerentes e três
administradores também demonstram uma especialização profissional na condução dos
negócios de indústrias ou empresas. Um dos gerentes qualificados, por exemplo, era Vicente
Lopes dos Santos Filho, cujo pai possuía uma charqueada. A presença de um despachante
também é novidade e talvez sua aparição seja consequência da burocratização do Estado na
segunda metade do século XIX. O fato de haver um cabeleireiro na lista também merece
destaque e indica que as senhoras da elite pelotense estavam demandando não apenas artigos de
luxo, mas também serviços mais sofisticados.
A análise das ocupações econômicas sugere que muitos deles estavam vinculados direta
ou indiretamente ao processo de produção das charqueadas, assim como das atividades ligadas
às mesmas, como a criação de gado e os transportes terrestres e fluviais. Além disso, também
69
Seria um equívoco analítico considerar os membros do grupo profissão/burocracia descolados do grupo das
ocupações econômicas. Uma abordagem que privilegie a investigação das famílias ao invés dos indivíduos,
perceberá que 3 dos 4 advogados mencionados são filhos de charqueadores. O mesmo ocorre para 4 dos 8
médicos. Ou seja, dentro dos setores ocupacionais e profissionais dos extratos médios e ricos da sociedade podia
haver um entrelaçamento parental que caracteriza a própria estratégia das famílias da elite e que podiam reunir
comerciantes, criadores, burocratas, advogados e charqueadores numa mesma parentela. Nos próximos capítulos
esta relação será tratada com maior profundidade.
70
O significado que davam ao exercício do voto não é o mais importante para esta análise, muito embora o
documento tenha sido produzido com fins eleitorais. E é muito provável que a maioria exercesse tal função com
interesse em manterem-se vinculados a uma rede clientelar local, uma vez que era o significado mais imediato que
poderiam dar a tal ato. Para uma análise destas questões ver VARGAS, Jonas M. Entre a paróquia e a Corte: os
mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: Ed. da UFSM/Anpuh-
RS, 2010.
160
havia todos os ofícios que dependiam do couro, do sebo, das carnes e dos chifres e que eram
empregados em setores de transporte terrestre, fluvial e marítimo. Neste círculo de profissionais
que podemos verificar na lista de 1880, estão os açougueiros (2), armadores (3), calafates (2),
capatazes (25), fazendeiros (30), criadores (26), lombilheiros (4), correeiros (3), seleiros (3),
chapeleiros (2), curtidores (2), colchoeiro (1), sirgueiros (2), estafeta (1), marinheiros (81),
sapateiros (53), carreteiros (33), tamanqueiros (3), carneadores (2), trançador (1) e graxeiro (1).
Somados aos 29 charqueadores da lista tem-se que 23% dos qualificados exerciam atividades
que deviam manter relações próximas com as charqueadas ou compartilhavam de interesses
econômicos comuns. Mas este índice é bem maior, uma vez que não adicionei os comerciantes
(313), os proprietários (126) e os que viviam de suas agências (128), pois não é possível saber
em que ramo de atividades os mesmos estavam inseridos.
161
Tabela 4.5 – Perfil dos patrimônios inventariados por faixas de fortuna em libras esterlinas (%)71
Fortunas Imóveis Imóveis Dinheiro Dívidas Ações Escravos Animais Embarc./ Dívidas M.U. M.R. Mist. Total
Inventariadas rurais urbanos Ativas carros Passivas % % % Invent.
n %
A + de 50 mil 40,2 8,2 8,1 18,4 0,3 378 9,5 12,4 0,8 0,02 - - 100 5
B De 20 a 50 mil 44,7 18,8 9,0 7,6 2,4 264 8,2 7,1 1,2 4,5 - 12,5 87,5 8
C De 10 a 20 mil 25,6 16,9 14,5 13,2 4,3 116 10,4 12,6 0,5 3,6 11,2 11,2 77,6 9
D De 5 a 10 mil 18,1 30,5 7,3 12,2 5,4 140 11,2 3,8 0,2 13,4 38,8 16,6 38,8 18
E De 2 a 5 mil 40,1 19,5 10,6 12,8 7,4 132 11,1 1,2 1,1 15,4 33,3 29,6 29,6 27
F De 1 a 2 mil 14,6 42,7 7,0 15,0 3,4 100 9,8 1,6 0,5 11,2 53,5 20,9 18,6 43
G De 500 a 1 mil 26,5 34,1 3,8 7,5 - 88 19,0 4,0 - 18,8 28,2 38,5 28,2 39
H De 100 a 500 25,5 33,0 5,7 5,0 - 77 23,3 3,7 1,2 17,4 39,2 37,8 9,4 74
I Menos de 100 39,5 25,3 4,6 7,7 - 01 - 6,6 - 28,6 24,3 48,4 3,1 33
Total 34,5 17,9 8,9 13,5 2,3 1.296 9,9 8,4 0,8 5,6 34,4 41,7 23,8 256
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
Embora o interesse principal desta tese seja estudar os charqueadores, não é possível
falar da elite econômica pelotense sem reconhecer que a mesma também era formada por ricos
fazendeiros e comerciantes atacadistas. Estas três atividades podiam ser exercidas por um
mesmo indivíduo, mas, no geral, não o eram. Em 1852, por exemplo, 35 comerciantes de
Pelotas, notadamente a elite mercantil da cidade, remeteram um requerimento para a Corte
exigindo uma fiscalização mais eficaz contra o contrabando na fronteira com o Uruguai. 72
Tratavam-se de importadores e exportadores que também fretavam carretas de mercadorias para
a região da campanha. O grupo, que contava com alguns estrangeiros, possuía somente três
indivíduos que vieram a tornar-se charqueadores anos mais tarde, demonstrando tratar-se de um
grupo mercantil que possuía certa autonomia com relação aos negócios envolvendo a
manufatura dos couros e charque. Com relação aos fazendeiros do município, consultei a
relação dos principais criadores de gado do 3º e do 4º distrito de Pelotas, elaborada pelas
autoridades locais em 1858. Num total de 46 proprietários, somente um era charqueador e
nenhum deles estava na lista dos comerciantes de 1852.73
Portanto, tratavam-se de esferas econômicas cuja maioria dos agentes envolvidos
formavam grupos de atuação distintos, embora interagissem social e economicamente. Mas esta
separação deve ser relativizada. Se ela serve para a maioria dos comerciantes, charqueadores e
71
A sigla M.R. significa proprietários que possuíam imóveis exclusivamente rurais e que, por conta disto,
classifiquei como “moradores rurais”. Neste mesmo sentido, M.U. correspondia aos “moradores urbanos” e Mist.
significa “Mistos”, ou seja, o inventariado possuía casas na cidade e no meio rural. Nem todos os índices de M.R,
M.U e Mistos somam 100% porque alguns inventariados não possuíam nenhum imóvel.
72
Requerimento dos comerciantes de Pelotas. Seção dos Manuscritos. Coleção Rio Grande do Sul (Biblioteca
Nacional do RJ).
73
Anexos dos ofícios de 24.03.1858 e 09.04.1858. Fundo Autoridades municipais, Pelotas, AHRS. É possível
verificar em ambas as listas que havia comerciantes e fazendeiros que eram parentes de charqueadores, algo que
irei tratar melhor nos capítulos posteriores.
162
estancieiros, ela não é suficiente para compreender as atividades econômicas da minoria: a elite
dentro da elite econômica. Os mais ricos comerciantes raramente reservavam-se as suas
atividades mercantis, assim como os maiores fazendeiros não ficavam presos à terra. Portanto, o
topo mais rico desta pirâmide socioeconômica costumava diversificar as suas atividades e
investimentos, lembrando o modelo verificado por Fernand Braudel no interior da hierarquia
mercantil europeia entre os séculos XVI e XIX. 74 Tal modelo também se verifica entre os
charqueadores, uma vez que os mais ricos não se reservavam aos negócios com o charque,
atuando na pecuária, no comércio e no prestamismo, como analisarei nos capítulos posteriores.
Um primeiro exemplo pode ser oferecido por Ambrósio Gabino Crespo. Com fortuna
situada na faixa A e um dos assinantes do requerimento dos comerciantes pelotenses de 1852,
ele pertencia à elite mercantil da cidade. Seu patrimônio, inventariado em 1875, estava
constituído de campos no Uruguai com um vasto rebanho e diversas casas espalhadas por
municípios da campanha, como Bagé, Cangussú, D. Pedrito, Lavras e São Gabriel. Na cidade,
Crespo era proprietário de 8 casas e 4 armazéns. Além disso, também possuía ações e mais de
100 contos de réis em ativos pertencentes a sua casa comercial, além de 320 contos de réis em
dívidas ativas.75 Crespo também era sogro do Dr. João Chaves Campello, que foi deputado
provincial e Presidente da Província.
74
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
75
Inventário de Ambrósio Gabino Crespo, n. 84, m. 3, 1875, 1º cartório do cível e crime, Pelotas, APERS.
163
hectares de terra em Bagé, mostrando que a elite política e a elite econômica da província
estavam intimamente conectadas.76
Seguindo na análise da Tabela 4.5, percebe-se que a partir da faixa D até a faixa G, que
reuniam 49.5% dos inventariados, ocorrem algumas alterações na estrutura das fortunas
elencadas. As mais representativas demonstram a ocorrência de uma maior urbanização (nas
faixas D, E e F), acompanhada de uma significativa diminuição dos percentuais em dinheiro e,
em menor medida, das dívidas ativas. Tal urbanização também é acompanhada pela redução do
percentual dos valores investidos em animais. Mas o fator que mais impressiona é o aumento da
representatividade das dívidas passivas com relação aos mais ricos, caracterizando-o como um
grupo mais urbano e endividado. Os inventariados desta faixa também são os com maiores bens
investidos em apólices e ações. Alguns diriam que parte dos indivíduos destas faixas seria
representativa de uma embrionária classe média, mas talvez seja cedo para se enxergar tais
traços naquela sociedade.
Cruzando estes dados com os dos censos e listas de qualificação é possível considerar
que este setor intermediário era formado por profissionais liberais, empregados públicos
diversos, comerciantes e criadores de fortuna mediana, pequenos fabricantes e artesãos, idosos
e viúvas que viviam de rendas, além de trabalhadores diversos. São exemplos deste grupo não
apenas o carpinteiro André Landart, o mercador David Davis, o coronel Francisco Vieira Braga,
o fabricante de chapéus Ricardo Moreira e o negociante de sal Francisco da Costa e Silva, como
também Daniel Olsen, que possuía uma venda no meio da colônia Santa Silvana, Fortunato
Faria, proprietário de uma olaria e Francisco M. Leite, dono de uma fábrica de sabão e velas. A
diversidade dos bens avaliados e as histórias que se pode contar a partir dos próprios
inventários é muito rica.
É também em Pelotas que, ao pé dos ricaços que estão a descansar, florescem em todo
o seu esplendor as indústrias que alimentam o verdadeiro luxo rio-grandense, o dos
arreios. Essas indústrias, como se sabe, são duas: a dos couros lavrados, cinzelados,
coloridos, bordados de mil maneiras, e a das peças de prata, não menos artisticamente
trabalhadas. As diferentes classes da população estão, porém, bem separadas: em
76
Inventário de João Antônio Martins. N. 317, maço 22, Cartório de órfãos e provedoria de Pelotas, APERS;
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da
Livraria do Globo, 1937, p. 265; Inventário de Gaspar Silveira Martins. Processo 289, maço 7, Ano 1901, 1º
Cartório do Cível e Crime de Bagé, APERS.
164
certas ruas as residências ricas; noutras, as lojas. Especialmente na rua do Comércio e
na rua S. Miguel se vê uma fila contínua dessas lojas, onde estão expostos estribos,
esporas enormes, peitorais e freios, tudo de prata, ostentando esplendor deslumbrante,
que iguala, não digo já o da Rua do Ouro, de Lisboa, mas até o da “Strada degli
Orefici”, de Gênova.77
Não é raro encontrar os mencionados objetos de prata entre os bens dos inventariados
das faixas de fortuna intermediárias e até nas mais pobres, o que demonstra o amplo consumo
destes artigos. Um exemplo pode ser dado com José da Silva Lisboa, que não possuía
praticamente nenhum bem passível de ser avaliado a não ser seus móveis, entre os quais
estavam 1 bomba de prata, 1 espada, alguns livros e 1 relógio de ouro. Assim como ele, Manoel
Pacheco possuía uma pequena porção de terras na serra da Buena, com 20 cabeças de gado e
outros poucos animais, 2 carretas velhas, 1 enxada, 1 machado, além de 2 bombas e 1 par de
esporas de prata.78 Ambos pertenciam aos setores mais pobres da sociedade, que reuni nas
faixas H e I. Estas faixas compunham 41,8% dos inventariados. Contudo, é importante não
esquecer que os indivíduos pertencentes às mesmas não estavam na pior situação da pirâmide
social, pois abaixo deles havia pessoas miseráveis, cujos bens não eram passíveis de serem
inventariados.
As faixas mais pobres desta pirâmide social estavam ocupadas tanto por artesãos e
trabalhadores, como o pedreiro Sebastião Idiart, o funileiro Antônio Braga e a costureira Ana
Behocaray, quanto por pequenos criadores como George Motz. Uma parte significativa era
formada por pequenos lavradores espalhados pelos distritos rurais do município. Os
sobrenomes estrangeiros reforçam ainda mais o que venho descrevendo até aqui com relação a
sua presença na sociedade pelotense. Eles estavam distribuídos em todas as camadas sociais,
desde pobres lavradores como Pedro Koesgen, que plantava milho e criava porcos na serra dos
Tapes, até médios proprietários como Theodoro Dux e comerciantes bem estabelecidos como
Chistobal de Leon e José Calero.
77
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: USP, 1981.
78
Inventário de Ana Maria Pacheco, n. 391, m. 27, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1855, Pelotas, APERS;
Inventário de José Pereira Lisboa, m. 108, 1880, 1º cartório de órfãoes e ausentes, Pelotas, APERS.
165
despossuída de escravos e altamente endividada se comparada à faixa H. 79 Disto conclui-se que
na medida em que as fortunas vão afastando-se do setor intermédio, tanto para cima da
pirâmide quanto para baixo, elas retomam os maiores percentuais do patrimônio investido em
bens rurais, denotando que tanto pobres quanto ricos vinculavam seu patrimônio aos bens
agrários. Pertenciam, por exemplo, a esta última faixa de fortuna o português Manoel
Guilherme que era ferreiro, Manoel Gonçalves que era alfaiate e Custódio Lima, que era patrão
de um iate e deixou como único bem o dinheiro de seu bolso. A Felisbina pobre, de quem falei
quando iniciei este capítulo, também pertencia a este grupo.
Além destas, outras considerações podem ser realizadas com relação à análise dos
inventários. As últimas três faixas (que somam 146 inventários) não apresentam nenhum
investimento em ações ou apólices e, com exceção de 1 inventário na faixa H, não possuíam
embarcações ou carros. Portanto, a composição de suas fortunas era mais simplificada e alguns
bens eram vedados aos mesmos. Nas faixas G e H, os escravos eram bens que pesavam bastante
nos patrimônios dos mesmos, chegando a perfazer quase ¼ dos valores inventariados na
segunda. Os indivíduos destas faixas eram, na sua grande maioria, pequenos proprietários de
escravos, apresentando uma média de 2,6 cativos, sendo que somente um deles possuía mais de
10 escravos. Seus poucos cativos representavam parte fundamental da sua economia doméstica,
podendo alugá-los, por exemplo. Para este grupo, o aumento do preço dos escravos e das terras
e o difícil acesso aos mesmos deve ter sido mais marcante, pois os cativos envelhecidos,
doentes ou falecidos deviam ser substituídos com extrema dificuldade, visto o aumento dos
preços dos mesmos.
Peço ao leitor que retorne à Tabela 4.3 para uma última consideração. A partir dela é
possível verificar que o percentual de dinheiro diminui nas últimas décadas na mesma
proporção em que as dívidas passivas aumentam bastante. Tal fenômeno tem relação direta com
o que foi mencionado anteriormente, visto que foram as camadas sociais menos privilegiadas as
que mais se endividaram. Se os 22 inventários que apresentaram as maiores fortunas
inventariadas (acima de 10.000£) tinham um percentual de dívidas passivas inferior a 3%, os 33
mais pobres (com fortuna inferior a 100£) tinham 28,6% do seu patrimônio comprometido em
dívidas. Somente 1 destes 33 inventariados mais pobres possuía escravos. A grande maioria das
pessoas pertencentes a esta faixa mais pobre concentrou-se exatamente no final do período
analisado, pois 26 dos 33 indivíduos deste grupo foram inventariados em 1880, 1885 e 1890.
79
É bem verdade que 12 inventários são de 1890. Entretanto as outras faixas também possuem inventários desta
data e o número de cativos á bem mais alto. Portanto, a ausência de escravos é mais pela pobreza do que pela
época em que os inventários foram abertos.
166
Portanto, é muito provável que o agravamento as crises nas charqueadas entre os anos 1860 e
1870 e o início de sua decadência nos anos 1880 tenha afetado a economia local, favorecendo o
empobrecimento de muitas famílias de setores médios, colocando-os, anos depois, entre os mais
pobres e endividados. A decadência das charqueadas pode ter afetado muitos dos que
dependiam direta e indiretamente dos bens das mesmas. A diminuição do volume de dinheiro
deve ter diminuído o consumo de muitos artigos, afetando a produção de pequenos alfaiates,
carpinteiros e artesãos em geral, sem contar os setores ligados à pecuária, transporte e
comércio. Com a crise econômica, o fluxo de pessoas endinheiradas na cidade também deve ter
diminuído, prejudicando a economia local e seus negócios. Tal fenômeno deve ter obrigado
muitos a se endividarem. Portanto, a economia das charqueadas foi capaz de gerar grandes
fortunas, mas, com a decadência iniciada nos anos 1880, também trouxe inevitavelmente
grande pobreza, pois cada uma das crises conjunturais era capaz de liquidar, de forma indireta,
a economia dos pequenos, drenando seus escravos e demais recursos econômicos.
Como este é um estudo sobre um grupo de elite tive que resistir à tentação de investigar
mais profundamente a vida dos homens livres pobres, cujas histórias insistiam em aparecer nas
mais variadas fontes. Eram, na sua maioria, trabalhadores que viviam na cidade, colonos
europeus com uma pequena data de terras e um diminuto rebanho e lavradores nacionais e
libertos espalhados pela Serra dos Tapes e em outras localidades rurais do município. Sua mão
de obra era essencialmente familiar, mas eles podiam gabar-se por estar acima de outros mais
miseráveis, que deviam vagar em busca de meios de subsistência ou atividades provisórias na
cidade e nas zonas rurais.
Por mais de duas gerações, algumas famílias da elite pelotense viram a cidade
transformar-se e alterar o seu perfil social diante dos seus próprios olhos. Como foi visto no
capítulo 3, durante o colonial tardio, Pelotas podia ser tratada como uma cidade “negra”, visto a
pequena proporção de habitantes brancos. Passado mais de meio século, sua pretensiosa elite
buscou fazer dela uma cidade “europeia”. Neste duplo movimento, ela jamais deixou de ser
uma cidade atlântica, recebendo um grande número de migrantes forçados e voluntários, das
mais diversas regiões da Europa, da América e da África, desde o início da sua história. Neste
sentido, as transformações ocorridas no mundo atlântico oitocentista podiam ser observadas nas
próprias ruas da cidade, perante uma diversidade de línguas, de cores, de culturas. Era sobre
esta base social extensa e complexa que os charqueadores ocupavam o topo da hierarquia
socioeconômica local. Quando o Conde D’Eu falou dos “ricaços que estavam a descansar” na
cidade diante do comércio que tomava as ruas, era destes empresários que estava falando. Nos
167
anos 1870, os charqueadores, com suas esposas e filhos deviam compor entre 1,5 e 2% da
população total de Pelotas, mas concentravam uma riqueza muito superior.
Contudo, esta elite sofria de uma existência profundamente paradoxal, pois aos olhos de
muitos europeus, Pelotas não representava somente luxo e dinheiro, mas também a barbárie. A
origem de suas fortunas, ou seja, da mencionada riqueza que assegurava o luxo, a educação e o
lazer de suas famílias era fruto de um espetáculo “horrendo”, nas palavras do norte-americano
Herbert Smith. Neste sentido, a escravização de milhares de trabalhadores negros e a matança
desenfreada de milhões de cabeças de gado contrastava com a pretensa civilidade que os
mesmos buscavam demonstrar nos espaços urbanos de sociabilidade. E o cheiro que exalava
dos estabelecimentos e nas margens fluviais causava certa repugnância aos mesmos europeus
que os charqueadores queriam tanto agradar. Para entender melhor esta elite é preciso conhecer
como ela acumulava a sua riqueza, ou seja, é necessário entender o funcionamento das
charqueadas e o espetáculo “horrendo” da matança. Convido o leitor a cerrar as narinas, pois
nas próximas páginas adentraremos no interior destes estabelecimentos…
168
5. “A CONFUSÃO QUE, ENTRETANTO, É ORDEM”: AS UNIDADES
PRODUTIVAS, O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS E O
TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS
Com seu olhar perspicaz, Smith notou que por trás de uma suposta “confusão” aos olhos
do observador comum escondia-se uma verdadeira “ordem” sob a direção do charqueador. Um
aglomerado de instalações com escravos trabalhando desordenadamente não poderia render
lucros tão significativos aos seus senhores.1 Apesar das dificuldades enfrentadas pelos
primeiros charqueadores, ainda no colonial tardio, o nível de organização atingido no último
quartel do século XIX parecia ter se configurado na prática costumeira, depois de décadas de
trabalho no ramo, e sem um maior auxílio de manuais ou de um conhecimento técnico e
científico mais aprimorado. Tratava-se de uma ordem com uma racionalidade própria e que
tinha na organização do trabalhado escravo as suas engrenagens mais profundas. No entanto, ao
menos para os observadores estranhos àquele mundo, ela não era a única ordem possível. A
confusão aos olhos de um estrangeiro decorria do fato de que a mão de obra empregada nas
charqueadas era escrava, ao contrário das demais fábricas na Europa ou em outras partes das
Américas. Neste sentido, os relatos de viajantes e testemunhos da época sempre devem ser
contextualizados e no caso daqueles que deixaram depoimentos sobre a escravidão no Brasil o
perigo parece ser ainda maior. Suas posições, quando à favor ou contra a escravidão no mundo
moderno, geralmente condicionavam as suas opiniões.2
Este capítulo trata do perfil da mão de obra escrava no complexo charqueador pelotense
e de como os cativos estavam distribuídos nas unidades produtivas dos charqueadores. Apesar
do tema já ter sido tratado parcialmente por outros autores, ofereço uma análise mais complexa,
1
Como será tratado no capítulo 9.
2
Ver, por exemplo, SLENES, Robert. Na Senzala uma flor – esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil, sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
169
a partir de outros critérios metodológicos e da proposição de questões ainda não tratadas com
relação a este tema.3 O presente capítulo é melhor compreendido se lido conjuntamente com o
seguinte. Enquanto este oferece um tratamento mais quantitativo acerca do tema, o posterior
trata mais qualitativamente da administração dos trabalhadores nas charqueadas, as tensões
sociais entre estes e os seus senhores/patrões, assim como as formas de viabilizar a existência
do complexo charqueador escravista por quase um século.
Todas as charqueadas ficavam dispostas nas margens fluviais do município, sendo que
quase 90% delas nas do São Gonçalo e do Pelotas. Se os estabelecimentos concentravam-se
mais próximos aos rios, o restante do terreno da charqueada, sobretudo no núcleo fabril,
estendia-se por mais de um quilômetro em direção ao logradouro público, formando extensas
faixas de terra paralelas umas as outras. Este tipo de disposição espacial caracterizava boa parte
dos estabelecimentos sem que o complexo fabril propriamente dito primasse por uma estrita
homogeneidade. Na década de 1880, por exemplo, Louis Couty disse que não havia um modelo
3
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983; GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço
pelotense. Pelotas: UFPel, 2001; ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-
1888). Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995; MAESTRI, Mário. O escravo no Rio
Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984. Mais recentemente,
alguns trabalhos renovaram os seus olhares para este mesmo objeto. Ver, por exemplo, PESSI, Bruno. O Impacto
do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses (c. 1846 – c. 1874). Monografia de Graduação em
História, UFRGS, 2008; PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e
liberdade em Pelotas (1830-1850). Dissertação de Mestrado em História, Unisinos, 2012.
170
de organização espacial bem definido para as charqueadas, apesar de a diferença de tamanho
entre as maiores e as menores não ser tão grande.4
A análise dos inventários post-mortem demonstra que uma charqueada podia ser
composta por diversas benfeitorias e possuir inúmeros equipamentos e utensílios no seu espaço
de trabalho, variando de acordo com a riqueza do seu proprietário. Nas primeiras décadas do
século XIX foi comum os encarregados em arrolar os bens separarem as instalações no
momento da avaliação, destacando a barraca de couros, o galpão de charquear, a graxeira, a
mangueira, a senzala, o forno de secar sal, os varais, as caldeiras, entre outros. Com o tempo, e,
sobretudo na segunda metade do oitocentos, estas mesmas instalações passaram a ser avaliadas
unicamente sob a denominação de “um estabelecimento de charqueada” ou “uma charqueada”,
sem discriminar todas as suas benfeitorias. A organização das mesmas, assim como as técnicas
de preparo do produto e dos subprodutos, como sebo, graxa e couros, nem sempre foram
realizadas da mesma forma, mudando ao longo do tempo.5
4
COUTY, Louis. A erva-mate e o charque. Pelotas: Seiva, 2000, p. 130.
5
Tal fenômeno já foi evidenciado por CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
6
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961; SMITH,
Herbert. Do Rio de Janeiro a Cuiabá, 1922; COUTY, Louis. Op. cit.
7
Outros viajantes deixaram relatos sobre as charqueadas pelotenses e serão devidamente mencionados ao longo
dos capítulos.
8
Uma exposição semelhante foi realizada por CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
Contudo, tanto no presente capítulo, quanto no posterior, trago novos elementos de análise.
171
a) O abate
Após a fase de engorda, quando as reses pastavam nos vastos campos da região da
campanha rio-grandense ou do norte do Uruguai, as tropas de gado eram levadas por terra até
Pelotas, distante muitas léguas daquelas estâncias. De acordo com Nicolau Dreys, nos anos
1820, havia três formas de se abater os novilhos. Duas delas eram bastante semelhantes e
naquela época já vinham entrando em desuso. É necessário descrevê-las para entender o
significado da inovação trazida pela terceira. Na primeira, os peões montados a cavalo
aproximavam-se do animal recolhido a um curral aberto. Um dos peões posicionava-se diante
do boi e agitava um “poncho colorado”, até que o novilho se sentisse atraído e perseguia-o pelo
campo. Instantaneamente, outro peão disparava com uma lança afiada e comprida cortando-lhe
o jarrete e, depois disso, o mesmo se posicionava estrategicamente para abater a próxima rês.
Assim que o animal ferido e ainda vivo caía, um escravo tomava conta do mesmo para sangrá-
lo. Dreys diz que este método era perigoso, mas era tido como uma aventura entre os peões. Na
segunda forma, um peão a cavalo laçava um novilho no curral. Se o boi corresse sobre o
cavaleiro, este disparava fazendo com que o animal o seguisse para o campo aberto onde outro
peão o abatia (assim como na primeira forma). Mas se o animal resistisse, o peão arrastava-o,
dando início a uma briga entre ambos até que o boi fazia força para se livrar do laço. E era neste
momento que outro peão lhe cortava a articulação das pernas fazendo o animal tombar, para
logo desfechar um golpe fatal. 9
Na opinião de Dreys, estes dois métodos eram muito inseguros para os trabalhadores e
muito cruel com os animais. A terceira forma de abate havia se tornado dominante nas
charqueadas e indicava uma melhor organização desta indústria na época se comparado aos
tempos coloniais. O gado cercado no curral era “impelido na direção de dois corredores
9
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
172
separados um do outro por uma espécie de esplanada” que estava erguida a 7 ou 8 palmos do
chão. Quando o boi aparecia num destes corredores estreitos, um peão, de pé sobre a esplanada,
o laçava. A corda usada pelo peão estava atada fora do recinto a uma roda de ferralho (uma
engrenagem, como um torno) manejada por dois escravos. Laçado, o animal era puxado pela
força do torno até encostar a cabeça no cercado onde, do lado de fora, um especialista
(“ordinariamente um capataz”), sobre uma espécie de pedestal, cravava uma faca na nuca do
boi, que logo perdia os seus movimentos.10
Segundo Smith, toda a operação do abate de uma rês levava um minuto e num só dia era
possível abater de 600 a 700 animais, o que não significa que tal capacidade era empregada,
pois se abatia bem menos em um dia de trabalho. Sessenta anos antes, Dreys disse que a
operação de abate poderia levar até dois minutos, mas não mencionou quantos animais podiam
ser abatidos por dia. Dreys também não fez referência à existência de um declive escorregadio,
citado por Smith. É possível que tal dispositivo tenha facilitado o procedimento, economizando
força e tempo de trabalho. Mas tanto o terceiro modo de abate descrito por Dreys quanto a
maneira descrita por Couty e Smith traziam uma nítida racionalização de tempo e mão de obra
se comparada à forma do abate em campo aberto dos fins do setecentos. Tratava-se de uma
reutilização espacial dos terrenos que alterou toda a dinâmica de charquear. Seria esta uma das
10
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 134.
173
inovações trazidas por José Pinto Martins nos fins do século XVIII? Não é possível afirmar,
mas no seu inventário (1827) estava presente tanto a “mangueira” quanto o “guindaste”. 11
b) Da esfolação ao charqueamento
Após a queda de um bovino era necessário retirá-lo do corredor para que a operação
reiniciasse e outro novilho fosse rapidamente abatido. O processo de transporte do boi para a
cancha, ou seja, o espaço externo e contíguo ao local de abate onde as operações seguintes
eram realizadas, foi descrito diferentemente na época de Dreys (década de 1820) e na de Smith
e Couty (década de 1880). Conforme Dreys, após o novilho ter sido abatido, um guindaste,
rodando sobre seu eixo, elevava o animal asfixiado e preso pelo laço para fora do cercado do
curral e o transportava para a cancha.12 Se nos anos 1820 a introdução do guindaste giratório foi
inovadora, nos relatos da década de 1880, ele já não estava mais presente. Smith escreveu que
após o novilho ser abatido, uma porta se abria quase que instantaneamente e o animal, que
ainda urrava e apresentava contrações, caía sobre um carro ou vagão, onde era puxado por
escravos, estando um deles a cavalo.13 Alguns charqueadores, como José Inácio da Cunha e
Tomás José de Campos, apresentaram trilhos instalados no pátio da charqueada, onde o vagão
deslizava carregando os animais abatidos até à cancha. 14
11
Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, 1832, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS).
12
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
13
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 135-142.
14
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 187-188. Inventário de Virgínia Louzada de Campos, n. 335, m. 23, 1851,
Pelotas, 1º cart. órfãos e provedoria (APERS); Inventário de José Inácio da Cunha, n. 600, m. 38, 1865, 1º cart. de
órfãos e ausentes, Pelotas (APERS).
15
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
174
a carne passava a cheirar mal, tomando um aspecto visual nada agradável. Durante esta
operação os cativos ficavam cobertos de sangue e o restante do esfolamento durava poucos
minutos.16 Conforme Dreys, a disposição da cancha e da escoação dos resíduos era tão bem
feita que após as operações quase não se detectava vestígios da matança.17
Durante a charquia era comum os escravos deixarem o galpão para afiarem suas facas
retornando ao serviço em seguida.20
16
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 187-189.
17
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
18
COUTY, Louis. Op. cit., p. 97-112.
19
WEECH, Friedrich Von. A agricultura e o comércio do Brasil no sistema colonial. São Paulo: Martins Fontes,
1992 apud OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e
movimento. Porto Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 132.
20
CUNHA, Alberto C. da. Um episódio de charqueada. In: MOREIRA, Maria Eunice (Org.). Narradores do
Partenon Literário. Porto Alegre: IEL/CORAG, 2002, p. 41-49.
175
c) Do salgamento ao secamento nos varais
De acordo com Dreys, após a retalhação, levavam-se as mantas de carne para outro
galpão chamado “salgadeiro”, que era um “vasto alpendre guarnecido de todos os lados, até
mesmo no chão, de folhas de butiá”. 21 Assim que as mantas eram entregues, alguns escravos
colocavam as mantas sobre mesas côncavas cheias de sal, onde cativos especializados, os
salgadores, as impregnavam com o produto.22 Depois de salgada, a carne era empilhada no
próprio galpão. Conforme Smith, o empilhamento era realizado em camadas, sendo uma de sal,
outra de carne e assim por diante. As pilhas formavam uma espécie de cúpula de base
quadrangular que diminuía no sentido da altura e chegava a muitos metros. Para comprimir a
base da pilha com fim de torná-la o mais horizontal possível e favorecer o restante do
empilhamento recorria-se a mais ou menos cinco cativos que de pé, em cima das pilhas, e
usando as mãos ou outras ferramentas conseguiam o resultado desejado. Uma pilha formada
com as carnes de 200 bois media aproximadamente 5 metros de comprimento e de largura, com
0,8 metros de altura nas pontas e 1,3 metros no centro. O empilhamento possuía um duplo
efeito de impregnar a carne com o sal e de escorrer os líquidos contidos nela por meio da
própria pressão. Este efeito era aumentado reempilhando-se as mesmas carnes no dia seguinte,
de modo que as camadas de cima, tiradas primeiro, formavam a base da nova pilha. Ao longo
desta operação, o sal derretido e supérfluo que escorria das pilhas caía depositado em
reservatórios inferiores conhecidos como tanques. Nestes recipientes eram colocadas,
posteriormente, as costelas, línguas e outras partes que os proprietários achassem conveniente
conservar na salmoura. Em toda esta operação utilizava-se uma média de 10 kg de sal para cada
animal, podendo a quantidade variar conforme o seu tamanho.23 Uma charqueada que abatesse
20 mil reses numa safra, consumiria 200 toneladas de sal na mesma.
21
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134.
22
COUTY, Louis. Op. cit., p. 105.
23
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 189.
176
pilha definitiva e separada em duas qualidades diferentes. 24 Conforme Dreys, cada boi podia
dar, em média, de 4 a 5 arrobas de charque (60 a 75 Kg). 25
O charque era somente um dos produtos fabricados nas charqueadas. Muito antes dele
ter se tornado mercadoria importante, o couro já ocupava um papel de destaque no circuito
mercantil que envolvia o Rio Grande, as capitanias do Brasil e a Europa. O tratamento do couro
nas charqueadas pelotenses também sofreu alterações ao longo do período analisado. Na
primeira metade do oitocentos estacava-se o couro no chão para o seu secamento, dando-lhe um
declívio para deixar correr as águas. Mas na época de Smith e Couty os couros eram banhados
em tanques de salmoura, como se faziam nas charqueadas platinas. Ao sair da fossa, os couros
eram amplamente polvilhados de sal e dobrados em dois, de maneira que os pelos ficassem para
o lado de fora. Depois eram dispostos, um ao lado dos outros, em camadas de couros alternadas
por camadas espessas de sal. Desta forma eram colocados em barracas especiais, onde
formavam pilhas extensas, retangulares ou quadrangulares, e de pouca elevação, contendo de
10 a 15 camadas expostas umas sobre as outras. Uma vez salgado e empilhado, o couro
conservava-se por longo tempo e estava pronto para ser exportado para a Europa, onde se
estimava muito o produto preparado desta forma, conhecido como couro salgado.26
Mudanças na forma do preparo dos sebos e das graxas também aconteceram. Estes dois
produtos constituíam-se nas partes gordurosas do boi, sendo a graxa uma gordura mais fina e o
sebo a mais grosseira. Sua utilidade era industrial, pois eram empregados na fabricação de
sabão, velas e ceras, embora a graxa, muitas vezes, também fosse utilizada para fins
comestíveis. Na época de Dreys, os ossos, a cabeça e as extremidades do animal eram
colocados numa caldeira fervente, servindo, com os miolos e o tutano, à preparação da graxa,
que era, depois, encerrada na bexiga e nos intestinos grossos, para ser comercializada. Chamo
atenção para este momento do preparo do produto, pois conforme Debret, era a única etapa em
que ele viu mulheres escravas trabalhando no interior das charqueadas. Elas eram as
responsáveis por ensacar estes sub-produtos, atividade que não exigia força.27 Ainda de acordo
24
COUTY, Louis. Op. cit.
25
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 142.
26
COUTY, Louis. Op. cit.
27
DEBRET, Jean-Batiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: USP, T. 1, 1972, p. 243. De fato,
examinando todos os plantéis de escravos dos charqueadores, foi somente na graxeira que encontrei mulheres e
somente num inventário, que será tratado no capítulo 9.
177
com Dreys, as partes mais sebáceas eram socadas na mesma caldeira para comporem uns pães
de sebo grosseiro, que também eram vendidos.
A grande inovação com relação à extração destes produtos foi a instalação das graxeiras
a vapor, verificáveis nos inventários post-mortem a partir das décadas de 1840 e 1850.
Conforme o charqueador Domingos José de Almeida, numa carta a outro empresário, ele teria
incentivado a introdução destas instalações em Pelotas.28 As graxeiras a vapor proporcionavam
um melhor aproveitamento de todas as partes do animal, oferecendo sub-produtos de melhor
qualidade e produzidos em menor tempo. De acordo com Couty, para o preparo da graxa eram
lançados cabeças, encéfalos, estômagos, corações e certas vísceras de 150 a 200 animais. O
cozimento, feito a vapor de pressão, durava de 36 a 50 horas. Ao lado da caldeira, os
proprietários colocavam pipas e barricas prontas para serem cheias. Algumas delas chegavam a
medir 4 ou 5 metros de altura. Na elaboração do sebo, entravam os intestinos e as membranas
envolventes do peritônio. O seu período de cozimento era menor que o da graxa. Este era feito
em cubas menores, de madeira grossa, reforçadas com aros de ferro, as quais tinham uma
abertura lateral na parte de baixo, por onde o sebo escorria. 29
Todo o processo descrito até aqui provocava certa repugnância entre os viajantes
estrangeiros. Em 1822, Saint-Hilaire deixou registrado: “Apesar de ter cessado, há meses, a
matança nas charqueadas, ainda nos arredores há um forte cheiro de açougue, donde se pode
fazer ideia do que não será esse odor no tempo da matança”. Na época da safra, concluía ele,
“não se pode aproximar das charqueadas sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa
28
Carta de Domingos para Manoel L. Nascimento, 15.11.1862. CV – 792, in: Anais do AHRS, v. 3, 1978.
29
COUTY, Louis. Op. cit., p. 124-127.
30
COUTY, Louis. Op. cit., p. 121-127; GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 190.
178
multidão de animais decapitados, o sangue a correr em borbotões, a prodigiosa quantidade de
carne exposta nos secadores, vejo que tais lugares devem inspirar contrariedade e pavor”.
Quando passou nas charqueadas do rio Jacuí, próximas de Porto Alegre, Saint Hilaire escreveu:
“Antes de chegarmos, sua situação foi-nos anunciada por nuvens de urubus, que escureciam o
céu”.31 Na mesma época, o visconde de São Leopoldo deixou um registro semelhante: “Seria
útil que se prescrevessem regulamentos coercitivos para a limpeza e asseio das charqueadas,
pois que a demora do sangue, urina e resíduos dos animais, além de ser uma origem de
infecção, torna esses lugares nojentos, e só serve de multiplicar uma praga de moscas e de
daninhos ratos, tão grandes que chegam a intimidar os gatos”.32 Herbert Smith, em 1882,
deixou uma impressão semelhante. Mal chegava ao canal de São Gonçalo e “já os nossos
narizes nos tinham contado outra história, e nuvens de urubus voavam suspeitamente junto a tal
coisa. Era a carne seca ou charque no processo de preparação”.33 Na época, estimou-se que nos
dias de abate cada charqueada largava cerca de 6,5 toneladas de sangue nos rios.
Parafraseando o comentário que o jesuíta André João Antonil fez com relação aos
engenhos de açúcar nos séculos XVII e XVIII, pode-se dizer que os escravos eram as mãos e os
pés do charqueador. Como foi visto até aqui, sem a existência da escravidão africana e o tráfico
atlântico a montagem do complexo charqueador ficaria fortemente comprometida. Mas qual as
características da escravidão nas charqueadas pelotenses? De início, é necessário investigar
melhor como os mesmos estavam divididos nas unidades produtivas destes proprietários. Para
realizar esta análise e chegar o mais perto possível da distribuição de funções dos mesmos
cativos, selecionei, entre os 45 inventários post-mortem de charqueadores (1831-1885),
somente aqueles em que mais de 80% das ocupações dos escravos foram mencionadas no
inventário, resultando em 17 documentos.34 Analisando tais inventários, proponho uma divisão
em quatro grupos de atividade distintos no qual os escravos podiam estar divididos: a) os
ligados diretamente à produção do charque, trabalhando no interior dos estabelecimentos; b) os
31
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. São Paulo: USP, 1974.
32
PINHEIRO, José F. Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
33
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 135-142.
34
No caso dos inventários com plantéis avaliados mais de uma vez (quando os bens do casal eram avaliados na
morte de um cônjuge e, anos depois, o do viúvo) foram mantidos somente aqueles que possuíam informações mais
completas.
179
que eram empregados em atividades acessórias às charqueadas e externas aos estabelecimentos;
c) os artesãos especializados em algum ofício; d) os de serviço doméstico. Esta divisão não era
rígida. É muito provável que em alguns momentos no auge da matança, e conforme as
necessidades do proprietário, os campeiros, marinheiros e artesãos diversos fossem realocados
para as tarefas no interior da charqueada. 35
Com relação ao treinamento é importante dar destaque aos “aprendizes”. Eles estão
ausentes nos inventários das décadas de 1810 a 1830, começando a aparecer somente na década
35
Também é provável que esta divisão fosse menos rígida entre os menores plantéis, podendo os escravos exercer
mais de uma função ao mesmo tempo. Mas o fato de eles serem avaliados nos inventários com uma especialização
e declararem as mesmas quando informantes ou réus em processos-crime significa que havia um grau de
especialização que precisa ser levado em conta. Uma análise neste sentido foi realizada por Berenice Corsetti e
Ester Gutierrez. Contudo, acrescentei outras considerações e diferentes metodologias de tratamento e exposição
dos dados pesquisados.
36
Uma consideração semelhante foi feita por PESSI, Bruno S. A organização do trabalho escravo nas charqueadas
pelotenses na segunda metade do século XIX. Anais da VIII Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre:
CORAG, 2010, p. 97-114.
180
de 1840. Os aprendizes de carneador eram os mais numerosos, visto esta ser uma das atividades
mais difíceis de ser executada na charqueada. Os aprendizes de salgador também estavam
presentes nos plantéis e junto deles há os que somente foram definidos como “aprendiz”. Eles
também poderiam ser aprendizes de graxeiro, pois encontrei dois mestres graxeiros, entre os
escravos. Tal fenômeno revela uma preocupação do proprietário em treinar seu plantel para
otimizar a produção, algo que apresentava traços de uma maior racionalização do trabalho.
Nos inventários das décadas de 1810 a 1840, a maioria dos documentos apresentava
uma precária divisão do trabalho. O plantel menos especializado era o de Domingos Rodrigues
(1818), cujos 42 escravos foram descritos com a ocupação “serviço da casa e da charqueada”. 37
Portanto, não havia uma distinção muito clara sobre as atividades dos cativos. Pode-se
argumentar que foi desleixo do escrivão e dos avaliadores ou que a feitura dos documentos da
época não especificava estas ocupações. Entretanto, estas hipóteses não se verificam nos outros
inventários da mesma época. Em contrapartida, o mais especializado daquele período era o
plantel de José Pinto Martins (1827), aquele que foi visto por muitos como o mito fundador das
charqueadas em Pelotas e que teria inovado na organização fabril do município nos fins do
século XVIII.38 A especialização do seu estabelecimento se comparada aos de sua época é mais
um indício de que seu papel como empreendedor local foi importante.
b) Um outro grupo de escravos importante era formado por aqueles que realizavam
tarefas acessórias à charqueada, sem ser diretamente ligadas à matança e fabricação do charque
e dos sub-produtos. Algumas delas estavam quase integradas ao estabelecimento. Os mais
importantes eram os campeiros, encarregados de tratar das reses nos potreiros da charqueada
antes do abate, e os marinheiros, que trabalhavam no transporte fluvial e marítimo dos produtos
da charqueada. Muitos campeiros também eram empregados nas estâncias dos charqueadores,
geralmente em outros municípios. No serviço do transporte terrestre havia os carreteiros e
carroceiros. E trabalhando nas chácaras e lavouras dedicadas a abastecer a charqueada de
alimentos havia os tafoneiros, roceiros e lavradores.
Mas nem todos os plantéis possuíam escravos deste grupo. Os marinheiros só estavam
presentes entre os que tinham alguma embarcação e os campeiros eram mais comuns entre os
que possuíam estâncias. O mesmo serve para os roceiros, lavradores e tafoneiros com relação às
lavouras e chácaras. Na maioria dos inventários, os escravos deste grupo perfaziam de 10% a
15% dos plantéis, havendo casos com um mínimo de 2% e outros com um máximo de 32%. A
posse de tais cativos também podia indicar uma importante busca de autossuficiência das
unidades produtivas no que diz respeito ao transporte fluvial e marítimo, ao abastecimento de
alimentos para os cativos e de gado para a charqueada.41 Aníbal Antunes Maciel, por exemplo,
era o charqueador com o maior número de escravos campeiros. Eles totalizavam 20 cativos com
este ofício. Analisando seu inventário, percebe-se que o coronel Aníbal era o dono do maior
40
No entanto, esta especialização, que se intensificou a partir de meados dos oitocentos, não foi linear e evolutiva e
nem envolveu todos os escravos e plantéis. Um plantel com aprendizes e descarnadores também era composto de
escravos sem um ofício definido ou escravos com dois ofícios, como alfaiate/salgador ou carpinteiro/carneador.
Algo até certo ponto compreensível para uma empresa que funcionava somente durante seis a sete meses ao ano.
Portanto, é possível que alguns charqueadores tenham especializado o seu plantel servindo de exemplo para outros,
mas tal fenômeno apresentou um processo gradativo e certamente cheio de percalços.
41
Como se verá no capítulo7, a autossuficiência no abastecimento de gado era impossível de ser alcançada.
182
rebanho entre os charqueadores. Ele possuía mais de 34 mil reses de criar pastando nas suas
estâncias. O mesmo serve para a relação entre o número de marinheiros e o de embarcações.42
42
Inventário de Felisbina da S. Antunes, n. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime; Inventário de Anibal A.
Maciel, n. 815, m. 48, 1875, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
43
Como será evidenciado a seguir, existiam crianças escravas classificadas como “campeiras” com idades menores
do que os 12 anos.
183
mucamas, lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, copeiros e serviços domésticos. Também
coloquei neste grupo os boleeiros, visto conduzirem seus senhores diariamente pela cidade.
Como pode-se perceber, é neste grupo que as mulheres se faziam mais representadas. As tarefas
realizadas por este grupo também eram essenciais para o senhor, mas a sua quantidade também
devia revelar um maior status social. É possível que algumas das cozinheiras aqui elencadas
trabalhassem nas charqueadas preparando a comida para os demais cativos e que alguns
serventes colocados no primeiro grupo aqui analisado estivessem presentes neste, conforme se
percebe nos inventários. O trânsito de escravos entre as instalações da charqueada e a casa do
senhor devia ser corrente, mesmo quando este morava na cidade. Apesar dos seus plantéis
apresentarem uma razão de sexo muito alta (os homens perfaziam 82% dos escravos) em mais
de 85% deles havia crianças, o que indica a existência de laços familiares, e, portanto, do
contato entre as distintas senzalas (charqueada, estâncias e chácaras) e a casa do senhor, mas
também, possivelmente, das escravas do charqueador com libertos e homens livres pobres.
A partir da cópia das matrículas de 1872, o plantel de escravos do Barão de Butuí estava
dividido da seguinte forma: residentes na cidade (27), na charqueada (79), na Serra dos Tapes
(3), na Estância de Poncho Verde, localizada no município de Bagé (18), a bordo da Barca
Pombinha (5), do Patacho Moreira (3), do Iate Santa Rita (4) e do Iate Novo São Jerônimo (3).
44
Inventário do Barão e da Baronesa de Butuí. Pelotas, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e provedoria,
Pelotas (APERS).
45
Sobre a legislação que ordenava a feitura dos registros das matrículas dos escravos e as possibilidades de
pesquisa com esta documentação ver SLENES, Robert. O que Rui Barbosa não queimou: Novas Fontes para o
Estudo da Escravidão no Século XIX. Estudos Econômicos, v. 13, n. 1, jan./abr. 1983, pp. 117-149.
184
A partir desta divisão já é possível perceber que 55% do plantel residia na charqueada, 19% na
cidade, onde o Barão possuía dois sobrados e diversas casas e terrenos. Na estância e na chácara
nos Tapes estavam 15% deles e a bordo e alguma embarcação encontravam-se 10%.
46
Não foi possível saber quem eram os pais das crianças. Sobre os limites do uso de inventários post-mortem para
estudo da família escrava em Pelotas ver PESSI, Bruno S. A família escrava em Pelotas na segunda metade do
século XIX a partir de inventários post-mortem. Anais da IX Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre:
CORAG, 2010, p. 245-264. Para o estudo da família escrava em Pelotas na primeira metade do século XIX ver
PINTO, Natália. Op. cit. Sobre o uso de fontes paroquiais e o estudo da escravidão em Pelotas ver COUTO,
Mateus de O. A pia e a cruz: a demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859).
Passo Fundo: UPF, 2011.
185
Portanto, verificam-se crianças na charqueada, na cidade e na estância em Bagé. Creio
tratar-se de três núcleos escravistas distintos, muito embora, como já mencionei, havia trânsito
entre os mesmos. É provável que os pais destas 17 crianças estivessem trabalhando nos mesmos
núcleos, muito embora os filhos da escrava Agostinha, residente na cidade, estivessem na
charqueada. Estes 17 escravos num plantel de 142 significavam que 12% do total do plantel era
renovado com as chamadas “crias de casa”. Analisando somente a charqueada, este valor
mantem-se em 11%. Tratava-se de um índice superior à média total de crianças de 6,9%
apresentada para todas as charqueadas entre os anos 1866 e 1885, que será analisado mais
adiante. Um dos fatores que potencializava a reprodução natural de cativos era a posse de
estâncias, chácaras e a presença de escravas domésticas, uma vez que, como foi demonstrado,
havia somente duas mulheres na charqueada. Portanto, privilegiados eram os escravos que
conseguissem circular para além das charqueadas, para, quem sabe, ir ao encontro de uma das
demais cativas do senhor. O número de mulheres adultas fora da charqueada era 4 vezes
superior ao número de mulheres na charqueada. Contudo, o círculo de relações afetivas dos
escravos não se restringia às senzalas do charqueador, podendo, como demonstrarei no capítulo
posterior, estender-se para fora do cativeiro.
186
Analisando o trabalho cativo nas charqueadas, Fernando H. Cardoso formulou a tese da
“economia de desperdício” nestes estabelecimentos. Tal afirmação sustentava-se no fato de que
a safra nas charqueadas durava em torno de 6 a 7 meses (novembro a maio). Inspirado em Louis
Couty, ele afirmou que numa empresa capitalista, com o término da matança, os empregados
seriam dispensados e recontratados na próxima safra, enquanto que nas charqueadas os
senhores eram obrigados a manter o sustento de seus plantéis improdutivos por mais um
semestre.47 Berenice Corsetti e Ester Gutierrez já refutaram esta afirmação, pois havia uma
série de atividades para além das charqueadas, em que os escravos podiam ser empregados.48
Além da charqueada, muitos empresários também possuíam olarias, algo que não era
privilégio dos charqueadores mais ricos. Somavam-se às mesmas as carpintarias, ferrarias,
fábrica de curtumes, de colas ou estaleiros que podiam compor o patrimônio de outros
charqueadores. Nas chácaras e datas de terras de matos (muito mais comuns do que os
estabelecimentos citados acima) o trabalho cativo também era importante. Dali provinha parte
da alimentação dos cativos, mas também a madeira para o forno das graxeiras à vapor e das
olarias. Estudando um importante charqueador da época, Carla Menegat também constatou que
os extensos pomares presentes nas propriedades permitiam que parte da escravaria tivesse seus
serviços direcionados para a produção de alimentos, as olarias, as fábricas de sebo e velas e as
atafonas. Analisando as cartas escritas pelo charqueador, a autora verificou que o empresário
deixava claro aos capatazes a importância da produção de alimentos, recomendando que fosse
muito bem cuidada e que se vigiasse a escravaria. A plantação de mandioca tinha nas suas
terras a dupla função de manter os escravos ocupados e de prover sua alimentação. Ela era um
apêndice importante da charqueada, além de permitir as negociações do excedente. 49
Ainda é necessário realizar uma análise mais aprofundada do perfil dos plantéis dos
charqueadores pelotenses. A análise de 48 inventários post-mortem de charqueadores (entre
1831 e 1885) que, quando faleceram, ainda possuíam seus estabelecimentos, ajuda a definir
47
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
48
CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
49
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História
UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009, p. 147. Alberto Coelho da Cunha, filho do charqueador José Ignácio da
Cunha, quinta maior fortuna entre estes, escreveu que: “Fazendo concorrência aos modestos agricultores, os
estancieiros e abastados charqueadores se consideravam em dever de também possuírem datas de matos na Serra”.
Cunha refere-se à Serra dos Tapes, que era coberta por uma grande e densa mata, de onde se extraíam as melhores
madeiras. Sobre o aproveitamento daquelas terras, o autor comentou: “A mais extensa cultura de então faziam-na
os charqueadores, quase todos proprietários de datas, que, no intervalo das safras, para continuarem a tirar proveito
do capital, punham a negrada a derrubar matos e a plantar milho e feijão”. Daí entende-se a presença de roceiros,
serradores, marceneiros, lustradores, mas, sobretudo, carpinteiros nos plantéis dos charqueadores (GUTIERREZ,
Ester. Op. cit., p. 123).
187
alguns fatores a este respeito. Os documentos reúnem 2.732 escravos, mas nem todos trazem as
informações de ocupação, idade, naturalidade e preço. No que diz respeito ao sexo dos escravos
tem-se 440 mulheres e 2.290 homens (2 não tiveram a informação identificada), o que resulta
numa alta razão de sexo de 520 homens para cada 100 mulheres. No entanto, este era o índice
referente ao plantel total dos senhores (somando escravos da charqueada com os domésticos,
marinheiros, campeiros, entre outros) e não aos que trabalhavam exclusivamente na
charqueada. Como foi visto anteriormente, o número de homens com relação às mulheres no
trabalho da charqueada era muito maior.
Para analisar o preço dos escravos das charqueadas selecionei somente os escravos
adultos (incluí nesta faixa os cativos entre 15 e 40 anos) e excluí todos aqueles avaliados como
“doentes”, “quebrados” ou com alguma anotação dos avaliadores que fizesse diminuir o seu
valor.50 Também converti os valores anuais para libras esterlinas calculando as médias
quinquenais. 51 A partir do Gráfico 5.1 percebe-se que até 1860 o preço das mulheres
acompanhou o dos homens, para estacionar-se na década de 1860 e sofrer uma queda brusca
após a Lei do Ventre-Livre (1871). Enquanto isto, os preços dos escravos homens mantiveram-
se em ascensão até atingir os 1:600$ em 1861-65, para depois iniciar uma queda. Na década de
1880, quando a escravidão já estava condenada, os valores dos escravos de ambos os sexos
encontravam-se num notável declínio (além disso, neste último período, não havia mulheres
sadias nos inventários com informações do preço e da idade). Os índices também demonstram
que no período em que o tráfico esteve vigente, mesmo que considerado ilegal pela Lei de
1831, os preços dos escravos mantiveram-se relativamente baixos e estáveis.
Para refinar melhor a análise destes dados separei os inventários em três períodos
distintos. O primeiro elenca inventariados antes da Lei Eusébio de Queiroz, o segundo reúne
cativos inventariados durante a fase de grande ascensão dos preços dos escravos adultos nas
charqueadas de Pelotas e o terceiro reúne os inventariados durante a fase da queda dos mesmos
até o fim da escravidão. Analisando a Tabela 5.1 percebe-se que a média de escravos foi
decrescente ao longo de todo o período, enquanto a razão de sexo aumentou, chegando a 850
escravos homens para cada 100 mulheres nos últimos decênios.52 Ester Gutierrez defendeu que
50
Eliminei da análise duas cativas de Inácio Rodrigues Barcellos avaliadas em 1863. Desconheço o motivo, mas os
seus valores em mil réis correspondiam a 1/5 do da grande maioria das mulheres cativas do mesmo período, o que
causaria uma grande distorção na curva “1861-1865” do gráfico.
51
Juntei os anos 1831-35 a 1836-40 porque como o Judiciário esteve paralisado em Pelotas durante a Guerra dos
Farrapos, existem poucos processos para o período.
52
Estabelecendo uma análise de 5 em 5 anos, Bruno Pessi percebeu que entre 1850/54 e 1880/84 a média caiu de
59,5 para 44,3 cativos por charqueador. Contudo, neste meio tempo, elas oscilaram bastante, chegando a 81,2
escravos em 1865/69 e 42,9 escravos em 1870/74 (PESSI, Bruno. Op. cit., 2012, p. 74).
188
não houve redução nos plantéis dos charqueadores ao longo do período, pois a média da década
de 1880 teria sido superior à média de todas as décadas anteriores. 53 No entanto, incorporando
uma quantidade maior de inventários de charqueadores entre 1850 e 1884, Bruno Pessi
demonstrou que, embora os indicadores apresentassem oscilações, houve uma diminuição dos
mesmos.54 De fato, de acordo com os inventários que pesquisei e a ampliação da escala em
longa duração (estabelecendo para isto períodos analíticos de 15 a 20 anos), é possível perceber
que a média dos plantéis dos charqueadores caiu ao longo dos anos. Observando os mesmos
inventários por décadas, percebi que nos anos 1840 a média era de 65 escravos por charqueada.
Na década de 1850, esta média cai bastante, chegando a 51 cativos. Na década de 1860 ela volta
a subir para 59 escravos. Na década de 1870 cai para 55 cativos e entre 1881 e 1885, apresenta
uma média de 42 escravos – a menor de todo o período.
Gráfico 5.1 – Preço dos escravos adultos (de 15 a 40 anos) e sadios nas charqueadas de
Pelotas (1831-1885) (em libras esterlinas)
200
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
Mulheres Homens
Contudo, a queda da média de escravos por plantel precisa ser melhor matizada, pois,
como será visto a seguir, até o meado dos anos 1870 a população cativa em Pelotas manteve-se
em crescimento. No entanto, se os charqueadores estavam sofrendo uma diminuição na média
dos seus plantéis, o maior número de homens escravos em relação às mulheres escravas (em
nítido crescimento) demonstra que enquanto um grupo devia estar comprando novos cativos
homens no tráfico interno um outro grupo não conseguia obter o mesmo sucesso na reposição
dos escravos velhos e doentes. Portanto, não é adequado falar em uma crise geral de braços no
53
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 178.
54
PESSI, Bruno. Op. cit., 2008.
189
setor, mas sim, numa crise que afetou um grupo de charqueadores, mas não afetou outro. 55
Além disso, também é possível verificar que a Lei do Ventre Livre (1871) retirou o interesse
dos charqueadores em repor os seus plantéis com mulheres cativas, colaborando com a maior
diminuição do número de escravas em termos absolutos, se comparadas aos homens.
Inventários 15 19 14 48
Escravos 1.016* 1.022* 694 2.732
Média por inv. 67,7 53,8 49,5 56,9
Homens 830 (81,7%) 839 (82%) 621 (89,4%) 2.290
Mulheres 185 182 73 440
Razão de sexo 448 461 850 520
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)
* Um cativo não teve o sexo identificado
Na Tabela 5.2 separei os cativos em 4 faixas etárias. O foco principal foi definir a
representatividade dos escravos adultos nos plantéis, tendo elencado nesta categoria os escravos
de 15 a 40 anos, como já disse. Decidi separar as crianças em dois grupos, tendo como critério a
primeira idade em que elas foram classificadas com um ofício de trabalho. Como o pequeno
Clemente, de 8 anos, foi arrolado como “campeiro” do charqueador João Simões Lopes escolhi
esta idade como um divisor.56 A Tabela demonstra que a média de escravos adultos entre os
plantéis apresentou uma grande queda, ao mesmo tempo em que a razão de sexo quase dobrou
do primeiro para o segundo período, reforçando o que foi dito acima. O número alto de homens
idosos no primeiro período indica a intensidade do tráfico atlântico na primeira metade do XIX.
Além disso, analisando em conjunto os indicadores de razão de sexo entre os idosos (956 no
primeiro período e 2.476 no último) com a ainda significativa presença de homens adultos entre
1866-1885, pode-se verificar a permanência dos efeitos do tráfico, desta vez juntamente com o
comércio interno, mesmo às vésperas do fim da escravidão. Além disso, o grande aumento da
razão de sexo entre as crianças B no último período indica que as mesmas também estavam
presentes no circuito mercantil interno. Analisando os mesmos dados ainda é possível perceber
55
Mais adiante demonstro que foi exatamente isto o que aconteceu, ou seja, um grupo de charqueadores conseguiu
resistir com algum sucesso ao fim do tráfico atlântico e o aumento do preço dos escravos, às custas de outros
escravistas com menores condições, entre os quais estavam charqueadores arruinados.
56
Pesquisando o perfil dos escravos traficados para o Rio Grande do Sul, Gabriel Berute localizou uma grande
quantidade de crianças e jovens. Para o autor, tal perfil se explica pelo fato de que o ofício de campeiro era
ensinado a escravos bem jovens e que a própria atividade podia ser exercida pelos mesmos, pois não exigia força e
sim destreza com o cavalo (BERUTE, Gabriel Santos. Op. cit., 2006).
190
que no último período os escravos idosos somavam quase a metade do plantel dos senhores,
apresentando, como em outras regiões, um envelhecimento do plantel dos charqueadores.
Tabela 5.2 – Faixa etária e sexo dos escravos dos charqueadores (1831-1885)
Crianças A M 24 21* 12 57
De 1 mês a 7 anos F 21 21 8 50
Crianças B M 28 12 20 60
De 8 a 14 anos F 20 10 8 38
Subtotal 93 (9,1%) 64 (6,2%) 48 (6,9%) 205 (7,4%)
Idade não identificada 153 (15%) 206 (20,1%) 54 (7,8%) 413 (15,1%)
A Tabela 5.3 busca investigar o percentual de africanos nos plantéis dos charqueadores.
Vimos no capítulo 3 que 67,4% dos 5.623 escravos recenseados em Pelotas no ano de 1833
eram africanos, denotando um significativo vínculo da economia local com o tráfico atlântico.
Os dados apresentados confirmam esta tendência nos inventários entre 1831 e 1850, quando
67,8% dos escravos com informações eram africanos. Entre 1851 e 1865, este índice diminui
em 5,6%, vindo a apresentar uma grande queda no último período, como seria de se esperar.
Dos 252 escravos com informações sobre a sua naturalidade entre 1875 e 1885, 101 (40%)
eram africanos. Assim como nas outras tabelas, a razão de sexo também aumenta ao longo de
todo o período atingindo grandes índices entre africanos (4.340) e crioulos (748) nos últimos
anos, parecendo demonstrar que as charqueadas sempre mantiveram-se fortemente vinculadas
primeiro ao tráfico atlântico (até a sua abolição em 1850) e depois ao tráfico interno de escravos
(visto o alto índice de homens adultos nos últimos decênios). Portanto, torna-se ainda mais
191
evidente que o declínio da escravidão foi um dos grandes responsáveis pelas crises sofridas
pelas charqueadas pelotenses.57
57
Como vários autores já haviam indicado, mas que aqui reforço com outros dados o peso deste processo
(MAESTRI, Mário. Op. cit.; CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.; ASSUMPÇÃO, Jorge
E. Op. cit.; PESSI, Bruno. Op. cit.
58
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Famílias e mercado: tipologias parentais de acordo ao grau de
afastamento do mercado de cativos (século XIX). Afro-Ásia, n. 24, 2000, p. 56. Para uma análise mais aprofundada
ver FLORENTINO, Manolo; GOÉS, José R. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de
Janeiro (c.1790 – c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
59
No já citado Censo de Pelotas de 1833, verifica-se que este mesmo percentual no município era de 7,6%.
192
mercado de escravos. Portanto, os plantéis dos charqueadores foram marcados por um notável
desequilíbrio entre os sexos. Isto também se refletia no número de crianças com 7 anos ou
menos (Tabela 5.2). No primeiro período tem-se 4,4% de crianças neste grupo, índice que foi
de 4,1% e 2,8% nos períodos posteriores. Somando as categorias crianças A e B tem-se,
respetivamente, 9,1%, 6,1% e 6,9%. Tratava-se de um baixo índice que pode ser explicado pelo
pequeno número de mulheres nas senzalas do charqueador. Analisando dados referentes às
plantations de café e açúcar no oitocentos, Florentino e Machado verificaram que unidades com
plena inserção no mercado de escravos apresentaram índices entre 15% e 25% de crianças. 60
Com relação à razão de sexo, enquanto nos plantéis analisados por Florentino e
Machado os homens ficavam na casa dos 53% (Engenho Novo da Pavuna (1852)) e 59%
(Fazenda Resgate (1872)), em Pelotas a média era de 82% no período. Portanto, se o plantel da
Fazenda Resgate, em Bananal, durante a década de 1860, conseguia reproduzir-se de forma
natural61, o mesmo não pode ser dito para as charqueadas. Neste sentido, estes estabelecimentos
60
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Op. cit., p. 53.
61
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Op. cit., p. 57.
193
constituíam-se em unidades fabris com um perfil de mão de obra um tanto distinto das
plantations açucareiras e cafeicultoras. A menor presença de mulheres fez aumentar a sua
dependência para com o mercado de escravos, pois elas apresentavam uma baixa reprodução
natural e certamente um menor índice de famílias conjugais, o que não significa que os cativos
não estivessem imersos em malhas parentais na senzala e mantivessem relações fora dela. Mas
num contexto de fechamento do tráfico atlântico pós-1850, tratava-se de um enorme problema a
ser revolvido por estes empresários. Neste sentido, como os charqueadores fizeram para manter
suas fábricas funcionando num contexto de diminuição do número de cativos nos
estabelecimentos? É o que busco entender nas próximas páginas.
62
Ver, por exemplo, FLAUSINO, Camila Carolina. Negócios da Escravidão: tráfico interno de escravos em
Mariana, 1850-1886. PPG em História da UFJF, 2006 (Dissertação de Mestrado); SCHEFFER, Rafael da C.
Tráfico inter-provincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Dissertação de mestrado, UFSC,
2006; ARAÚJO, Thiago L. de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um
contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Dissertação de
mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2008 (Dissertação de Mestrado).
63
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978, p. 351.
194
A obra de Conrad acabou tornando-se referência fundamental sobre o tema e induziu os
historiadores a interpretarem outros dados estatísticos à luz de suas contribuições. Amparando-
se no censo geral de 1872, muitos encontraram estatísticas bastante contundentes para sustentar
a suposta perda de escravos no Rio Grande do Sul, ainda na década de 1860. Em 1872, a
população cativa recenseada na província foi de 67.791 escravos. Já os indicadores de 1863
apresentavam 77.419 cativos, ou seja, num intervalo de 9 anos, o Rio Grande do Sul teria
subtraído quase 10 mil escravos – mais de mil por ano.64 O mesmo vale para a população cativa
de Pelotas. Se em 1858 o município possuía 4.788 escravos, no censo de 1872 apresentava uma
população cativa de 3.575, ou seja, 1.213 a menos.
64
Ver Censo geral de 1872 (disponível em: http//www.ibge.gov.br). Relatório do Presidente da Província do Rio
Grande do Sul Espiridião Eloy de Barros Pimentel, 1864, p. 46.
65
CORSETTI (1983, p. 142-144). Esta tese da “crise de braços” na economia rio-grandense (na década de 1860)
recebeu uma importante crítica de ARAUJO, Thiago. Op. cit.
66
MONASTÉRIO, Leonardo. A decadência das charqueadas gaúchas no século XIX: uma nova explicação. In:
Anais do VIII Encontro Nacional de Economia Política. Florianópolis: SEP, 2003.
67
SLENES, Robert. Op. cit., 1983.
68
Obviamente que uma afirmação sobre o aumento ou a diminuição de escravos entre 1863 e 1873 depende da real
população cativa para o primeiro marco temporal. Mas mesmo que as estatísticas de 1863 possam estar
subestimadas, os dados da matrícula de 1873 ajudam a refutar qualquer idéia acerca da suposta crise de braços.
Neste sentido, ver ARAÚJO, Thiago L. de. Novos dados sobre a escravidão na Província de São Pedro. In: Anais
do V Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011; MATHEUS,
195
DGE – os mesmos estudados por Slenes – verifiquei que, em 1873, Pelotas possuía 8.141
escravos e não 3.575, como o censo de 1872 apontava. 69
Portanto, a grande queda das estatísticas referentes à população cativa rio-grandense foi
posterior a 1873. Na província inteira, entre 1874 e 1884, esta população diminuiu em 15.302
escravos.70 É neste período que se intensificou a saída de cativos para o sudeste cafeeiro.
Segundo Slenes, a segunda metade da década de 1870 marcou o auge das transferências de
cativos para os cafezais do sudeste. Entre 1877 e 1879, de 17% a 25% dos escravos
comercializados em Campinas provinham do Rio Grande do Sul. Para o autor, “o declínio da
produção escravista de charque”, na década de 1870, teria estimulado o fluxo de cativos para a
região.71 De fato, em 1876, Pelotas contava com 7.556 escravos e, em 1884, possuía 5.918.72
Portanto, a diminuição teria se iniciado em 1874, mas se intensificado entre 1877 e 1884.
Contudo, tal afirmação de que houve uma relação direta entre a crise das charqueadas e a saída
de cativos precisa ser verificada empiricamente. Para tanto, é necessário analisar qual foi a
proporção de cativos alforriados e falecidos entre 1874 e 1884 e se as charqueadas de Pelotas
perderam tantos escravos para o tráfico inter-provincial.
Primeiramente, deve-se atentar para um processo ocorrido ao longo do século XIX e que
apresentou uma crescente concentração de riquezas e de escravos entre os charqueadores de
Pelotas. De acordo com a Tabela 5.5, onde elenco somente inventários de charqueadores, é
possível verificar que as maiores fortunas localizadas entre os mesmos situam-se exatamente no
período da mencionada “crise” das charqueadas (a partir da década de 1870, quando as
exportações sofrem diminuições pontuais). As riquezas acima de 100 mil libras só começam a
aparecer nos inventários deste período. No entanto, este enriquecimento foi acompanhado pelo
aumento da desigualdade da distribuição das fortunas, denotando uma maior concentração das
mesmas nas mãos de alguns charqueadores em índices superiores aos das décadas anteriores.
Marcelo. Escravidão, pecuária e liberdade: o Livro de classificação de escravos (Alegrete, década de 1870).
História Unisinos, n. 17, Jan./Abr. 2013, p. 24-36.
69
Relatório da Diretoria Geral de Estatística apresentado ao Ministério do Império pelo Conselheiro Manoel
Francisco Correa. Rio de Janeiro: Tipografia Franco-Americana, 1874, p. 187. Este relatório e os citados doravante
estão disponíveis no site: http://memoria.nemesis.org.br. (Consultados em 10.06.2011).
70
CONRAD, Robert. Op. cit., p. 217.
71
SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio
de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci (org.) Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de
Pesquisas Econômicas, USP, 1986, p. 133.
72
Relatório da Diretoria Geral de Estatística apresentado ao Ministério do Império pelo Conselheiro Manoel
Francisco Corrêa. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878, p. 142; LONER, Beatriz. 1887: A Revolta que
oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. In: História em
Revista, Pelotas, v. 3, 1997, p. 30.
196
Ainda de acordo com a Tabela 5.5, entre 1871 e 1885, 13,3% dos inventários
concentravam 56,6% da riqueza. No período posterior, 25% dos inventariados detinham 74,5%
dos bens. Entre 1871 e 1885, o limbo desta pirâmide econômica compunha 33,2% dos
charqueadores que detinham somente 3,3% da riqueza e no último período 37,5% deles
somavam apenas 2,8% dos montantes. Portanto, tais patrimônios foram acumulados também
em detrimento da ruína econômica de outras famílias charqueadoras. É bem verdade que antes
de 1870 já havia uma desigualdade na distribuição das riquezas, mas os índices de concentração
dos últimos dois períodos e a diferença entre os que ocupavam o topo da hierarquia econômica
e os que estavam na base tornaram-se muito maiores. Tanto entre 1846 e 1855, quanto entre
1856 e 1870, a fortuna do charqueador mais rico era 16 vezes maior que a do charqueador mais
pobre. No entanto, entre 1871 e 1885, o montante do mais rico era 64 vezes maior que o do
mais pobre, e no último período esta diferença atingiu 87 vezes.73
Totais 58 2.004.137
Fonte: Inventários post-mortem dos charqueadores de Pelotas (APERS)
Portanto, o topo da elite charqueadora resistiu muito mais aos problemas relativos à mão
de obra, o que não ocorreu com outros charqueadores menos afortunados. Esta concentração de
riqueza ajudou a condicionar quem vendeu e quem comprou escravos após a extinção do tráfico
atlântico. No entanto, isto não significa dizer que estes charqueadores da base da pirâmide
perderam seus cativos para o sudeste cafeicultor. Conforme mencionei anteriormente, até 1874,
a população cativa da província apresentou índices crescentes. Portanto, foi após esta data que
as estatísticas apontam uma queda do número de escravos e um aumento da saída de cativos
rio-grandenses para o sudeste.
74
Livros de Transmissões e notas, Registros Diversos e Registros Ordinários do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas,
Fundo 48, APERS.
75
Sobre este tipo de transações ver também SLENES, Robert. Op. cit., 1976, p. 155-158.
76
Livros de Procurações do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas e 3º e 4º Distrito de Pelotas, Fundo 48, APERS.
Também existe um número diminuto de procurações deste tipo nos livros de Registros Ordinários, na década de
1860, mas não os incluí na presente análise por privilegiar o período de maior saída de cativos. Além do mais, os
livros específicos de procurações iniciam-se exatamente no ano de 1874 e se estendem até o período republicano.
No entanto, não localizei nenhuma venda por procuração a partir de 1881, daí o marco temporal final de 1880. Tal
fenômeno explica-se pelo fato de que entre 1879 e 1880, as Assembléias Legislativas de São Paulo e Minas Gerais
votaram impostos de 1:000$ a 2:000$ por cada escravo entrado nas suas províncias (BAKOS, Margareth. RS:
Escravidão & Abolição. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1982, p. 67). Tal medida diminuía muito os lucros obtidos
no tráfico, inibindo-o.
198
ser levado em conta. Entretanto, foi na década de 1870, que a população cativa de Pelotas
começou a diminuir. Mesmo com a impossibilidade de trabalhar com os sub-registros e as
lacunas documentais, creio que as escrituras públicas e as procurações aqui analisadas fornecem
uma base aproximada do volume de escravos que Pelotas perdeu para o tráfico inter-
provincial. 77
Analisando estes mesmos documentos para outros municípios do Rio Grande do Sul,
Rafael Scheffer trouxe números importantes sobre o comércio interno na província e que
possibilitam algumas comparações. Se entre 1850 e 1884, Pelotas teve 334 cativos negociados,
Porto Alegre, entre 1854 e 1884, teve 1739 escravos transacionados. Para o mesmo período,
77
Ao contrário do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, no Rio Grande do Sul não vigorou uma taxa fixa
para a cobrança das meias-sisas – imposto de transmissão de escravos. O valor cobrado era de 6% sobre as
transações. A ausência de uma taxa fixa nos impossibilita calcular o número de escravos negociados por município
a partir do total arrecadado nas coletorias, como fez Slenes para o Rio de Janeiro (SLENES, Robert. Op. cit., 1986,
p. 121-124).
78
Transmissões e Notas, Pelotas, 1º Tabelionato, Fundo 48, Livro 9, APERS, p. 105.
199
Rio Grande teve 487, Cruz Alta 549 e Alegrete 139 cativos comercializados. 79 A partir destes
dados percebe-se que os índices da capital são muito altos se comparados aos outros
municípios. Analisando os dados dos Relatórios da DGE percebe-se que Porto Alegre está entre
os municípios que mais perderam cativos na década de 1870, enquanto Pelotas posiciona-se
entre os que menos perderam. 80 Portanto, se os escravistas de Porto Alegre estiveram mais
vulneráveis ao comércio interno, os de Pelotas conseguiram resistir mais a tais transações, seja
para fora do município, seja para fora da Província.
Contudo, isto não significa que os charqueadores não vendessem seus escravos. Das 50
escrituras, 19 apresentaram estes proprietários envolvidos como compradores e 11 como
vendedores, sendo que destas vendas, 10 foram para charqueadores. O total de escravos
negociados entre dois charqueadores ou entre um charqueador e um familiar próximo são de
279 cativos, ou seja, 83,5% dos escravos negociados pertenciam aos charqueadores e, portanto,
foram transferidos de um proprietário para outro. Tal índice revela uma enorme concentração
nestas transações, mas também que alguns destes empresários vinham sentindo as dificuldades
financeiras do período, tendo que repassar parte do seu patrimônio para outros concorrentes.
Portanto, estas transações revelam que a grande maioria destes escravos continuou a
permanecer no município. Cruzando estes dados com os verificados anteriormente sobre a
79
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Comércio de escravos no Rio Grande do Sul (1850-1888): transferências intra e
interprovinciais, perfis de cativos negociados e comerciantes em cinco municípios gaúchos. In: Anais do V
Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 2.
80
Relatório de 1878. Op. cit., p. 142.
200
concentração de renda e de cativos, é possível perceber que os charqueadores compradores
eram exatamente os mais ricos do grupo inventariado ou os seus próprios filhos. Juntos, José
Antônio Moreira, João Simões Lopes, Antônio José da Silva Maia, Dr. Antônio José Gonçalves
Chaves, Aníbal Antunes Maciel, Antônio José de Oliveira Castro, Possidônio Mâncio Cunha e
Cândido Antônio Barcellos, compraram 58,6% de todos os escravos negociados no período ou
70,3% dos escravos negociados somente entre charqueadores. Portanto, os charqueadores mais
pobres tiveram sua escravaria drenada pelos charqueadores mais ricos. Estas transações foram
intensas nas três primeiras décadas e tenderam a cair na última, pois 105 cativos foram
vendidos nos anos 1850, 90 nos anos 1860, 96 na década de 1870 e 43 na de 1880.
Como mencionei anteriormente, para obter uma visão mais privilegiada do tráfico inter-
provincial é necessário analisar as procurações de venda de escravos assinadas em Pelotas para
outras localidades. A partir da leitura das mesmas, localizei 382 escravos sendo negociados por
procuração entre 1874 e 1880.82 Trata-se de um número muito grande de cativos negociados
num curto espaço de tempo e que supera de longe as transações realizadas nas escrituras
públicas analisadas anteriormente. Pouco mais de 90% das procurações analisadas negociam
somente um escravo. As demais envolvem mães com filhos menores ou no máximo dois
escravos. Além do mais, os anos iniciais apresentaram um fluxo de vendas maior que os finais,
demonstrando que no fim da década de 1870 a inserção de Pelotas no tráfico interno vinha se
enfraquecendo.83
81
Processo de Liquidação de Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
82
Na realidade localizei 403 cativos sendo negociados. Entretanto, 21 deles tratavam-se dos mesmos escravos
sendo vendidos outra vez pelo mesmo senhor, o que indica que a primeira transação havia fracassado.
83
Como se pode verificar: em 1874 (42 cativos vendidos), em 1875 (115), em 1876 (116), em 1877 (41), em 1878
(33), em 1879 (31), em 1880 (4). A partir das procurações que pesquisei em Pelotas foi possível localizar 169
indivíduos ou firmas diferentes envolvidas neste comércio. Destes, 104 (61,5%) negociaram somente 1 escravo e
201
Nem todos os negócios analisados envolviam a saída de escravos de Pelotas para o
exterior da província. Dos 382 escravos negociados por procuração, 83 (21,7%) não pertenciam
a senhores de Pelotas. Tratavam-se, na verdade, de proprietários de municípios vizinhos que
foram até Pelotas para venderem seus escravos ou enviaram procuradores para tal fim. 84 Esta
simples informação revela que Pelotas, como núcleo urbano e comercial de destaque na
Província, também era um pólo que reunia muitos compradores de cativos. Portanto, ao invés
de somente adentrarem o interior da província procurando escravos para comprar, creio que os
traficantes também permaneciam em Pelotas e Rio Grande a espera dos mesmos.85
Portanto, dos 382 escravos negociados, 252 (66%) pertenciam a proprietários pelotenses
e foram remetidos por procuração para o sudeste do Brasil. 87 Como estou interessado no tráfico
inter-provincial e na participação do plantel dos charqueadores no mesmo, analisarei somente
não voltaram a aparecer nos registros. Mas no topo deste grupo, 5 comerciantes concentraram 47% dos escravos
transacionados. Só a firma Bastos, Souza & Cia negociou 96 dos 382 cativos ou 25,1% do total. Em seguida,
aparecem Angelino Soveral com 29 escravos negociados, João José Ribeiro Guimarães com 21 cativos, Leivas,
Saraiva & Cia com 20 e Duarte Souza & Cia com 16.
84
Os mais destacados eram Canguçu (22), Piratini (17), Caçapava (7) e Jaguarão (5).
85
Destes 83 escravos que pertenciam a senhores de fora de Pelotas, somente 14 tiveram procurações assinadas para
serem vendidos exclusivamente em Pelotas. Portanto, a maioria era destinada para outros mercados, sobretudo no
sudeste do Império. Destes 83 cativos, 66 tiveram procurações passadas para serem vendidos no sudeste. Estas
podiam aparecer como procurações passadas para o Rio de Janeiro (15 casos) ou “qualquer parte do Império” (51
casos). Cruzando o nome dos agentes envolvidos neste comércio, creio que os escravos encaminhados para “todo o
Império” também eram enviados para o Rio e daí para os cafezais do sudeste. Tal definição devia ser necessária
para não causar empecilho nos casos dos escravos serem vendidos em São Paulo com a mesma procuração.
86
Destes 47 escravos, 6 foram vendidos para Rio Grande, 5 para Porto Alegre, 3 para Alegrete, 2 para Santa
Vitória do Palmar, 1 para Santa Maria, 1 para Bagé, 1 para Canguçu e o restante tiveram procurações para serem
vendidos em qualquer parte da província. Algumas destas transações são realizadas entre parentes.
87
Destas 252 procurações, 249 foram assinadas para o Rio ou Império, 2 para São Paulo ou Rio e 1
exclusivamente para Minas Gerais. Como já mencionei, as procurações enviadas para o Império também
envolviam comerciantes estabelecidos no Rio.
202
este grupo de cativos. É somente nele que encontrei charqueadores vendendo escravos. Destes
252 cativos, 92 eram mulheres e 160 eram homens. Portanto, as mulheres também compuseram
de forma significativa o grupo de escravos remetidos para o sudeste, pois totalizaram 36,5% dos
cativos vendidos. As idades destes escravos vão desde crianças de poucos anos negociadas
juntamente com suas mães até adultos de 52 anos. Separando somente os escravos entre 15 e 40
anos temos 69 mulheres (75% das negociadas) e 120 homens (75% dos negociados).
Quanto à naturalidade dos escravos, verifica-se que somente 10 não apresentaram tais
informações. Do restante, 218 (90%) haviam nascido no Rio Grande do Sul, mas também
existiam crioulos provenientes de outras províncias, como Bahia (6), Pernambuco (4), Mato
Grosso (1), São Paulo (1), Maranhão (1), Minas Gerais (1), Paraná (1) e Santa Catarina (1). Do
grupo total de escravos negociados, somente 7 eram africanos, ou seja, 2,7%. Trata-se de um
índice bastante pequeno para uma localidade onde a presença de africanos nos inventários após
1850 alcançou uma média de 31,8%.88 As fontes não revelam se havia uma preferência dos
comerciantes por escravos crioulos e se os mesmos seriam mais fáceis de serem vendidos aos
cafeicultores, mas outras pesquisas podem contribuir com este ponto.89
O fato é que a análise da naturalidade dos cativos revela que alguns deles, como o
carneador João Baiano, migraram forçosamente para outra região pela segunda vez,
vivenciando uma realidade sócio-econômica e cultural distinta. É possível que João tivesse
trabalhado cortando cana ou plantando fumo na Bahia ou até mesmo em um engenho de açúcar
de algum proprietário empobrecido. Chegando em Pelotas, foi empregado na charqueada de
Junius Brutus de Almeida, onde teve que aprender o ofício de carneador e adaptar-se ao
rigoroso inverno da região. Em 1875, o destino lhe reservara outra viagem sem volta. Desta
vez, João Baiano foi vendido para comerciantes cariocas para provavelmente servir como mão
de obra em alguma fazenda de café, em São Paulo.
88
PESSI, Bruno S. Estrutura da posse e demografia escrava em Pelotas entre 1850 e 1884. In: Anais do V Encontro
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 14
89
Estudando o tráfico interno em Mariana, Camila Flausino localizou 10,9% de africanos sendo negociados na
década de 1860 e 9,3% na década de 1870 (FLAUSINO, Camila. Op. cit., p. 80). Mas estas transações não
envolviam regiões não-cafeicultoras para regiões cafeicultoras, como a totalidade das transações de Pelotas, por
exemplo.
90
Dos que não tiveram a ocupação declarada no documento, 37 eram maiores de 14 anos, 22 tinham 14 anos ou
menos e 6 não tiveram a idade revelada. Dos que foram classificados como “sem ofício”, 13 possuíam 14 anos ou
menos e 3 eram maiores de 14 anos.
203
(8), os serventes (6), os marinheiros (5), os serviçais domésticos (5) e os carpinteiros (4). Entre
as mulheres, as cozinheiras eram as mais vendidas, somando 20 cativas. As mesmas eram
seguidas pelas serviçais domésticas (16), as costureiras (8), as lavadeiras (8), as mucamas (3) e
as engomadeiras (2). É possível verificar que, apesar do número significativo de campeiros,
uma boa parte dos escravos exercia atividades mais vinculadas aos serviços domésticos.
A partir das profissões elencadas acima já é possível extrair conclusões sobre a pouca
participação das charqueadas no tráfico inter-provincial. Para matizar melhor estas informações,
separei todos os senhores dos 252 escravos vendidos em dois grupos: os charqueadores e os
não-charqueadores. Do total de escravos, somente 29 (ou 11,5%) pertenciam ao grupo dos
charqueadores, que reunia 19 proprietários. O empresário que mais vendeu cativos para o
sudeste foi Junius Brutus de Almeida, que remeteu 6 escravos. José Antônio Moreira Júnior
vendeu 3, e mesmo assim foram cativos herdados do seu avô. Outros 3 charqueadores
venderam 2 escravos cada. O restante perdeu somente um escravo para os cafezais do sudeste.
204
Se as charqueadas participaram do tráfico inter-provincial de escravos, certamente não
foram como vendedoras, mas sim como compradoras de cativos. Investigando os dados
referentes à naturalidade dos escravos nos inventários de charqueadores abertos após 1872, é
possível verificar uma significativa parcela de cativos nascidos no nordeste brasileiro nos
plantéis das charqueadas.91 Dentre os 142 escravos do plantel do Barão de Butuí, 18 (12,6%)
eram naturais do nordeste. Tratava-se de 16 cativos baianos, 1 sergipano e 1 cearense. Do
plantel de 120 escravos do coronel Aníbal Antunes Maciel, 7 (6%) eram “nordestinos”, sendo 4
baianos e 3 pernambucanos. Mas não eram somente os charqueadores ricos que participavam
ativamente deste tráfico. No plantel de um charqueador como Domingos Soares Barbosa, que
apresentou uma fortuna mediana de 9 mil libras, este índice foi de 19,5%. Dos seus 83 escravos,
9 eram cearenses, 3 baianos, 3 pernambucanos e 1 paraibano. Portanto, quase 1/5 do seu plantel
havia sido comprado de senhores do nordeste.92 Esta entrada de cativos de outras províncias
para o Rio Grande do Sul também foi verificada por Rafael Scheffer. Ao analisar as escrituras
de notas em Rio Grande, o autor verificou que 25% dos escravos negociados vinham de outras
províncias, sendo o Rio de Janeiro o principal fornecedor de cativos com 13,7%, seguido por
Pernambuco, Santa Catarina e a Bahia. 93 Uma carta enviada pelo comerciante baiano Antônio
Vieira da Silva ao comerciante e charqueador de Pelotas, Manoel das Neves Lobos, ilustra bem
este fluxo de cativos do nordeste para o Rio Grande do Sul:
Bahia, 15 de junho de 1861. Amigo e Sr. Nesta ocasião, segue a nossa Barca
Henriqueta a sua consignação e lastro de sal do Assú e também com alguma carga a
frete levando também 22 escravos para V. Mce. os vender pelo melhor preço que
puder, bem entendido dos preços que vão marcados da lei para cima, sendo que V.
Mce. os não possa vender pelos preços marcados V. Mce. me avisará logo no primeiro
vapor para eu dar as minhas ordens para fazer seguir para o Rio de Janeiro (…).94
Tendo em conta o grande fluxo de navios que retornavam do nordeste para o Rio
Grande do Sul (nos anos 1870, mais de 80% do charque era remetido para Salvador e Recife),
não é difícil concluir que ao invés de perder escravos para os cafezais, como se defendeu, os
charqueadores foram responsáveis, mesmo que em menor medida, pela baixa dos cativos do
91
Como é sabido, deste ano em diante as cópias das matrículas dos escravos deviam ser obrigatoriamente anexadas
aos inventários. Estes documentos trazem informações importantes sobre as profissões, naturalidade, filiação dos
cativos, entre outros. Conforme informado na introdução desta tese, uso o termo “nordeste” para facilitar a
compreensão do leitor, uma vez que o mais adequado para a época, em se tratando daquela região, era chamá-la de
“norte” do país.
92
Inventário do Barão e da Baronesa de Butuí. N. 647, m. 41, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas,
1867/1877 (APERS); Inventário de Aníbal Antunes Maciel, N. 815, m. 48, 1º cartório de órfãos e provedoria,
Pelotas, 1875 (APERS); Inventário de Domingos Soares Barbosa. N. 943, m. 54, 1º cartório de órfãos e
provedoria, Pelotas, 1881 (APERS).
93
SCHEFFER, Rafael. Op. cit., p. 16.
94
Processo de Liquidação de Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
205
nordeste, o que de certa forma inverte as explicações clássicas sobre a relação da mão de obra
escrava, a crise nas charqueadas e sua inserção no tráfico interno. Na década de 1870, Pelotas
ainda era uma grande compradora de cativos. Em 1876, por exemplo, 217 escravos haviam
entrado no município 95, ou seja, muito mais do que os 116 vendidos por procuração para os
cafezais do sudeste naquele mesmo ano. Analisando também a segunda metade da década de
1870, Rafael Scheffer verificou que 29,6% das procurações para venda de escravos passadas
em Alegrete, município rio-grandense da fronteira oeste, autorizavam a negociação dos mesmos
em Pelotas.96 Tal fluxo que tinha como destino Pelotas deve ter se repetido em outros
municípios do interior do Rio Grande do Sul, pois Pelotas foi a localidade da província que
apresentou o maior êxito em retardar a perda de cativos durante o auge do tráfico inter-
provincial. Comparando os dados da população escrava no Rio Grande do Sul entre 1859 e
1884, percebe-se que Pelotas foi um dos dois municípios que não tiveram sua população cativa
diminuída neste intervalo de tempo. 97 Além do mais, em 1884, Pelotas constituía-se no
município com o maior número de escravos na Província, lugar que havia sido ocupado por
Porto Alegre na década precedente.98 Portanto, além de estender seus braços para o exterior da
província, comprando cativos do nordeste, um pequeno grupo de charqueadores parecia estar
drenando parte da escravaria dos municípios vizinhos e da própria população pelotense.99 Isto
tudo ajuda a explicar a permanência da alta razão de sexo entre os plantéis dos charqueadores
dos anos 1860 ao ano 1880.
95
Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142.
96
SCHEFFER, Rafael. Op. cit., p. 6.
97
BAKOS, MArgareth. Op. cit., p. 22-23. O outro município foi Santa Maria.
98
Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142.
99
Este fenômeno não é uma peculiaridade sul-rio-grandense. Em outras províncias, grandes proprietários de terra
conseguiram ter mais sucesso em manter os seus plantéis, em detrimento dos médios e pequenos proprietários.
Mas como já mencionei, em Pelotas nem todos conseguiram participar deste mercado como compradores, pois as
crises que afetaram o setor desde a década de 1850 derrubaram muitas famílias charqueadoras, como será tratado
em capítulos posteriores. Richard Graham e Erivaldo Neves, por exemplo, demonstraram esta tendência para a
Bahia (GRAHAM, Richard. “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil”.
Afro-Ásia, n. 27, 2002, p. 121-160; NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros traficantes: comércio de escravos
do alto sertão da Bahia para o Oeste cafeeiro paulista. In: Afro-Ásia, n. 24, 2000).
206
escravos matriculados e em 1884 contava com 5.918, significa que sofreu uma diminuição de
2.223 cativos no período. Esta diminuição foi resultado dos óbitos, das alforrias e das vendas
para fora da Província. Entre 1874 e 1884, conforme Beatriz Loner, foram arrolados 1.175
óbitos de escravos em Pelotas. 100 Com relação às manumissões, Jorge Euzébio Assumpção
localizou 893 escravos sendo libertados em Pelotas, entre 1874 e 1883. 101 Portanto, somando-se
os óbitos, as alforrias e os escravos negociados, tem-se 2.340 cativos. É um número que supera
os 2.223 cativos mencionados acima, mas apresenta uma margem de erro totalmente aceitável,
uma vez que os censos e estatísticas da época não primavam por uma exatidão. A diferença
também pode ter sido consequência da entrada de cativos em Pelotas que não foram registradas
em cartório. Portanto, estas cifras revelam que as alforrias e os óbitos foram os grandes
responsáveis pela diminuição do número de cativos no município perfazendo 38% e 50% das
perdas no período.102
Assim sendo, não houve uma crise nas charqueadas capaz de provocar um grande
deslocamento dos seus escravos para o sudeste e nem a suposta perda dos escravos das
charqueadas para os cafezais estava na raiz da crise final das charqueadas, como alguns autores
defenderam. Amparado na mencionada tese de Berenice Corsetti, Robert Slenes argumentou
neste sentido ao perceber que entre 1877 e 1879 cerca de 17% a 25% dos escravos
comercializados em Campinas provinham do Rio Grande do Sul. 103 Entretanto, foi exatamente
entre os anos de 1877 e 1879 que a economia charqueadora apresentou um rápido salto
econômico. Além das exportações de charque e dos preços do produto terem aumentado em tal
conjuntura (ver os Gráficos 8.1 e 8.2 no capítulo 8), a safra de 1877/1878 apresentou um
enorme incremento em termos de abate. Se em 1877, foram abatidos 307.837 novilhos, no ano
posterior este índice alcançou os 414.147, ou seja, o maior entre 1875 e 1890 (ver o Gráfico 7.1
no capítulo 7). Portanto, é difícil pensar que os anos entre 1877 e 1879 possam ter sido
desanimadores tanto para os criadores de gado (visto que o número de novilhos remetidos da
região da campanha para Pelotas aumentou bastante) quanto para os charqueadores ao ponto de
configurarem uma crise que os levasse a vender seus escravos para os cafezais do sudeste.
100
LONER, Beatriz. Op. cit., p. 30.
101
ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit., p. 290.
102
É muito provável que tal afirmação também sirva para todo o Rio Grande do Sul, diminuindo o impacto do
tráfico interno na escravaria provincial – defendido por Robert Conrad.
103
SLENES, Robert. Op. cit., 1986, p. 133.
207
com o comércio de gado para Pelotas foram grandes perdedoras de cativos no período.104 O Rio
Grande do Sul, nesta época, era muito mais do que um gigante campo destinado a engordar e
abater bovinos. A economia provincial entre as décadas de 1850 e 1880 apresentou uma
significativa produção de alimentos agrícolas que, além de abastecer o mercado interno na
província e fora dela, não dependia das pulsações da economia charqueadora.105 Portanto, não é
possível relacionar diretamente as substanciais saídas de escravos da província com a crise das
charqueadas pelotenses sem verificar quais eram as regiões e os senhores que estavam perdendo
cativos e quais os escravos do seu plantel estavam sendo vendidos.106 O processo que marcou as
décadas finais da monarquia apresentou uma nítida drenagem de mão de obra dos ricos
charqueadores para com os pequenos e médios. Em se tratando de um estudo sobre elites, é
possível considerar que estes charqueadores mais ricos compunham um importante setor da
elite regional que conseguiu impor-se sobre os demais concorrentes tanto no meio mercantil
quanto no meio agrário. Concentrando riqueza e mão de obra, este charqueadores conseguiram
resistir às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1880 e que serão tratadas nos
capítulos posteriores. Contudo, numa conjuntura em que os plantéis se renovavam
continuamente e na qual o número de mulheres era bastante pequeno, como os charqueadores
administravam seus escravos? Tratarei disto no capítulo posterior.
104
Como, por exemplo, os municípios de Porto Alegre e São Leopoldo, que estão entre os que mais perderam
escravos para o tráfico (Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142). Passo Fundo, Cachoeira do Sul e Triunfo, por
exemplo, também sofreram uma enorme perda entre 1859 e 1884 (BAKOS, Margareth. Op. cit., p. 22-23).
105
Sobre a produção agrícola na Província ver ZARTH, Paulo A. História Agrária do Planalto Gaúcho. Ijuí:
Editora da UNIJUÍ, 1997; ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora
Globo, 1969; FARINATTI, Luis A. Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os lavradores nacionais na província do
Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880). Dissertação de Mestrado. PPGH-PUCRS, 1999. Sobre como as
exportações rio-grandenses de farinha, feijão e milho haviam se intensificado nas décadas de 1850 e 1860,
chegando inclusive, em alguns anos, a superar Minas Gerais no abastecimento da Corte, ver GRAÇA FILHO,
Afonso de A. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte
(1850-1880). Rio de Janeiro: UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 33-34. Para uma análise da importância da
produção agrícola rio-grandense na época ver SOARES, Sebastião Ferreira. Notas estatísticas sobre a produção
agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1977.
106
Camila Flausino chegou a conclusões interessantes ao estudar o tráfico interno em Mariana. Contrariando uma
historiografia tradicional que insistia na perda de cativos das regiões auríferas após a crise mineradora, a autora
demonstrou que as transações de escravos foram, sobretudo, intra-municipais. Cerca de 61% dos cativos vendidos
entre 1850 e 1886 permaneceram em Mariana. A tese de que os municípios cafeicultores drenaram os escravos das
regiões auríferas também foi relativizada, pois somente 6,9% dos negociados tiveram como destino os cafezais
(FLAUSINO, Camila. Op. cit., p. 111-116).
208
6. SENHOR E PATRÃO: OS CHARQUEADORES, A ADMINISTRAÇÃO
DOS ESCRAVOS E O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS
1
Ofício do Presidente da Província para o Ministro do Império, 02.01.1886, SPE-IJJ9 (Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro).
209
por perdas materiais relativas ao fim da escravidão.2 E no caso dos charqueadores que viveram
naqueles tempos finais da monarquia o que não faltaram foram perdas...
Como será visto nos próximos capítulos, as décadas de 1850 e 1870 foram marcadas por
grandes flutuações dos preços dos couros e do charque, por crises de superprodução, perda de
mercados consumidores para os concorrentes platinos e o aumento dos preços do gado. Por
conta disto, um grande número de charqueadores faliu. No terreno legal, a Lei Eusébio de
Queiroz (1850) os obrigou a recorrer ao mercado inter e intra-provincial para abastecer
continuamente os seus plantéis pagando preços cada vez mais elevados. A Lei do Ventre Livre
(1871), que, entre outras questões, regulamentou as manumissões e ofereceu maiores garantias
jurídicas aos escravos contra os seus senhores, trouxe a certeza de que a presença da mão de
obra cativa nos estabelecimentos não duraria mais muito tempo. Se os charqueadores pelotenses
conseguiram resistir às investidas dos comerciantes de escravos prontos para levarem seus
trabalhadores para os cafezais do sudeste do Brasil, eles não encontraram uma solução
definitiva que possibilitasse uma transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado nas
charqueadas. Neste capítulo exercito algumas reflexões a este respeito.
Neste sentido, a história do Barão de Santa Tecla e de sua escravaria está inserida num
contexto maior que caracterizou o mundo das charqueadas na segunda metade do século e que
tem relação não apenas com as expectativas de futuro dos senhores, como também, com as
expectativas de futuro dos próprios escravos (dentro e fora do cativeiro), pois entendo que estes
processos podem ser melhor compreendidos quando analisados conjuntamente. Assim sendo, as
tentativas para escapar da crise de braços que se anunciava afetaram, mesmo que
desigualmente, a vida dos senhores e dos seus escravos.3
Entretanto, algumas das reflexões realizadas neste capítulo talvez não se encaixem
perfeitamente para a grande maioria dos senhores de escravos do Brasil. Hoje, já se tem como
2
CARVALHO, José M. de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política
Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 320-322.
3
Embora já se tenha escrito bastante sobre a escravidão em Pelotas, uma análise mais aprofundada a respeito deste
processo não foi realizada. Ver, por exemplo, CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e escravidão no Brasil
meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977;
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983; MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do
escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984; GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um
estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001; ASSUMPÇÃO, Jorge E. Pelotas: escravidão e
charqueadas (1780-1888). Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995; MONASTÉRIO,
Leonardo M. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil meridional. In: História e Economia Revista
Interdisciplinar da Brazilian Business School. São Paulo: Terra Comunicação Editorial, v.1, n. 1, 2005, p. 13-28;
PESSI, Bruno S. A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIX.
Anais da VIII Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 97-114.
210
algo amplamente aceito, um dos aspectos que caracterizava a escravidão era a preponderância
dos pequenos proprietários de cativos. Além disso, o tipo de trabalho executado nas
charqueadas e a sua alta razão de sexo as tornam mais exceção do que regra. Portanto, o leitor
pode se perguntar: qual a representatividade da presente análise? Respondo que qualquer estudo
das relações entre senhores e escravos é representativa da história desta instituição que marcou
praticamente todas as sociedades do mundo ocidental.4 Quando se aceita a heterogeneidade e a
diversidade de tais sociedades, percebe-se a necessidade de se estudar cada vez mais este
mosaico de formações socioeconômicas surgidas nos quadros do escravismo moderno.5 Isto não
significa que não existam pontos comuns nas mais diferentes sociedades escravistas. De início,
afirmo que um dos principais aspectos (e talvez um dos principais interesses no presente
estudo) é o fator econômico da relação social entre senhores e escravos. Nas charqueadas de
Pelotas, a exploração do trabalho cativo tomou proporções notáveis. Mas, uma vez que estamos
lidando com seres humanos, deve-se pensar que cada senzala possuía os seus caprichos e cada
senhor possuía as suas formas de punir os desobedientes e premiar os bem comportados. Em
relações que alternavam estabilidade e conflito 6, busco contribuir com a compreensão da
maneira na qual o charqueador se comportava enquanto senhor de escravos e enquanto patrão
de uma empresa que visava obter lucros no mercado.7
4
PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social: um estudo comparativo. São Paulo: EDUSP, 2011.
5
BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco ao Moderno (1492-1800). Rio
de Janeiro: Record, 2003.
6
Algo também amplamente aceito pela historiografia brasileira desde os anos 1980. Ver, por exemplo, o clássico
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Cia. das Letras, 1999.
7
Alguns charqueadores também eram absenteístas se pensarmos naqueles que detinham estâncias a dezenas e até
centenas de quilômetros de Pelotas. Mas como esta pesquisa não trata das relações de trabalho nas estâncias, darei
maior atenção ao mundo das charqueadas. Com relação ao trabalho cativo nas estâncias ver OSÓRIO, Helen.
Escravos da Fronteira: trabalho e produção no Rio Grande do Sul, 1765-1825. In: Anales de la XIX Jornada de
História Económica. AAHE, S. M. de los Andes, CD-ROM, 2003; FARINATTI, Luis A. Confins Meridionais:
famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: UFSM, 2010; ARAÚJO,
Thiago L. de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo
agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Dissertação de Mestrado em
História, UFRGS, 2008; MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria
no extremo sul do Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2012.
211
maquinário oferecia um melhor aproveitamento das vísceras e outras partes dos novilhos e
acelerava o seu processo de fabricação. Tal mudança tecnológica, mesmo que limitada,
evidencia algo que outros historiadores já trataram, ou seja, os charqueadores não se
mantiveram inertes com relação às instalações de suas fábricas, mas investiram em inovações
que buscavam aumentar a produtividade e os ganhos da empresa. 8 Estas inversões, na realidade,
faziam parte de um processo muito mais amplo e que envolvia transformações de ordem
econômica e sociocultural. Como resultado da Lei Eusébio de Queiroz (1850) e do processo de
expansão do capitalismo e dos investimentos britânicos no Brasil, a segunda metade do
oitocentos foi marcada por muitos debates a respeito do uso da mão de obra escrava e livre nas
lavouras brasileiras9, pela introdução de mudanças pontuais em equipamentos e técnicas para
desenvolver melhor a produção em diversos setores econômicos 10 e inversões em outras áreas,
como as altas finanças e as sociedades comerciais, demonstrando um espaço aberto para
debates e investimentos de capitais, antes presos ao tráfico atlântico, por exemplo.11
8
CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.
9
Ver, por exemplo, EISENBERG, Peter. A mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878. In:
LAPA, José R. Amaral (Org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 167-194.
10
Para uma análise das mudanças nos engenhos de açúcar e os investimentos em sua modernização ver
EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977. Na Companhia mineradora de Morro Velho, em São João del Rei, Douglas Libby
demonstrou o impacto das máquinas de estilhaçar pedras e da dinamite na economia mineradora (LIBBY, Douglas.
Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 115;
121). Na pecuária, a introdução de raças bovinas e ovinas estrangeiras trouxe um aumento nos rendimentos da
carne por animal e marcou o cenário de inovações do cone sul americano (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión ganadera hasta 1895.
Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI; GARCIA, Graciela. Terra, trabalho e propriedade: a
Estrutura agrária da campanha rio-grandense nas décadas finais do período imperial (1870-1890). Tese de
Doutorado em História: UFF, 2010, p. 78). Para as charqueadas, Corsetti já realizou um inventário a respeito das
principais inovações técnicas do período (as mesmas que descrevi no capítulo anterior) (CORSETTI, 1983, p. 152-
177). Uma análise do mesmo na indústria algodoeira pode ser vista em CANABRAVA, Alice. O algodão em São
Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984. Na cafeicultura, tanto para as inovações quanto para a ausência delas, ver
STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990;
FRAGOSO, João. Sistemas agrários em Paraíba do Sul: um estudo de relações não-capitalistas de produção
(1850-1920). Dissertação de mestrado em História, UFRJ, 1983.
11
Ver, por exemplo, GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da
Sociedade Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997;
GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1973;
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades
econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In:
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003, p. 143-164. Tratarei da forma como os charqueadores se comportaram com relação a estas novas
oportunidades de investimento no capítulo 9.
212
sendo, as inovações tecnológicas e a racionalização da produção tiveram que ser realizadas
dentro dos quadros de uma empresa escravista, o que não poderia deixar de afetar o mundo do
trabalho nas charqueadas, provocando algumas alterações na sua organização e tendo que se
adaptar a outras. Tais transformações envolveram pelo menos três aspectos durante a segunda
metade do oitocentos: o uso da mão de obra livre assalariada em alguns setores dos
estabelecimentos, os incentivos monetários aos cativos como estímulo ao aumento da produção
e a tentativa de uma maior racionalização da produção para compensar a queda da média dos
plantéis nas charqueadas.
Foi na trilha da inovação trazida pelas graxeiras que os assalariados entraram para
dentro dos estabelecimentos da charqueada e se disseminaram pelas fábricas. Em 1862, por
exemplo, quando os deputados provinciais rio-grandenses discutiam aspectos relativos aos
mercados consumidores do charque, às outras formas de conservação das carnes e ao trabalho
escravo, o charqueador Manoel Lourenço do Nascimento, representante de Pelotas, respondeu
ao deputado Felipe Neri:
Não questiono que o braço escravo seja um mal, e é por isso que os charqueadores
tratam de removê-lo, tanto que se o nobre Deputado fosse hoje a um desses
estabelecimentos, veria que já as graxeiras, a salga de couro e outros trabalhos são
feitos por braços livres. Antigamente, em qualquer daqueles estabelecimentos, não se
via homens livres além do capataz e algum patrão de iate (…).12
12
Neri defendia que o uso do trabalho escravo era um dos fatores da crise pela qual as charqueadas vinham
passando. Ver discursos dos dias 02.10.1862 e 04.11.1862 (PICCOLO, Helga. Coletânea de Discursos
parlamentares da Assembléia Legislativa Provincial. Porto Alegre: ALRS, v. 1, 1998). Na realidade, como
demonstrarei nos capítulos posteriores, um dos grandes motivos da crise dos anos 1860 foi a superprodução de
charque que fez baixar os preços do produto. Tanto no Rio Grande do Sul, como em Montevidéu e Buenos Aires, a
década foi marcada pela busca de novos mercados para além das plantations de Cuba e do Brasil.
13
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
14
Ver, por exemplo, processo-crime n. 1176, m. 32, Tribunal do Júri, Pelotas, 1881 (APERS).
15
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre:
PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 117.
213
na liquidação da firma mencionada acima, o patrão do iate cobrou salários referentes aos
últimos 20 anos de trabalho. Suas anotações revelavam que ele era pago eventualmente e que o
charqueador se utilizava tanto de dinheiro quanto de mercadorias e bens diversos para
remunerá-lo. Com os totais que recebeu ao final do processo judicial, o trabalhador comprou
um escravo marinheiro da massa falida dos charqueadores (talvez seu companheiro de trabalho
durante anos) e deve ter dado um importante salto em termos de mobilidade social, podendo
fazer fretes por sua conta.16
16
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
17
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1880].
18
O problema da inconstância dos trabalhadores livres nos saladeros e charqueadas e nas estâncias da campanha e
da região platina não foi incomum. Ver, por exemplo, MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos.
Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 17-19; MONSMA, Karl. Esclavos y trabajadores libres en las estancias del
siglo XIX. Un estudio comparativo de Rio Grande do Sul y Buenos Aires. In: REGUERA, Andrea; HARRES,
Marluza. (Org.). De la región a la nación. Formas históricas en la construcción del Estado: identidad y
representación. Brasil y Argentina en perspectiva comparada (ss. XIX y XX). Tandil: Universidad Nacional del
Centro de la Provincia de Buenos Aires, 2012, p. 83-120; FARINATTI, Luís A. Op. cit.
19
Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime, Pelotas, 1882, APERS; Inventário de José P. Sá Peixoto, n. 276,
m. 19, 1847, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
20
OGNIBENI, Denise. Op. cit., p. 117.
214
Soma-se a isto o fato de que os trabalhadores não estavam descolados do mundo rural
do qual as charqueadas também faziam parte. Sua sazonalidade era motivada por uma vida
social e econômica que devia vinculá-los a outras pessoas de fora da charqueada, sobretudo
seus familiares. Neste sentido, os trabalhadores também possuíam as suas estratégias de
sobrevivência na qual o trabalho na charqueada podia ser somente uma das atividades
realizadas pelos mesmos. 21 Nas firmas mineradoras inglesas instaladas em São João del Rei,
por exemplo, os britânicos encontraram grande dificuldade em lidar com a sazonalidade dos
trabalhadores. Após os feriados e dias santos, muitos não iam trabalhar, fazendo o mesmo nas
épocas de colheitas – o que demonstra seu vínculo familiar com outros setores produtivos e que
o trabalho nas minas era encarado como uma atividade entre outras possíveis. Ou seja, os
patrões tinham que negociar com os trabalhadores livres para garantir sua permanência nas
fábricas. Conforme Libby, este era o principal fator pelo qual os ingleses preferiam a mão de
obra escrava nas minas, pois o controle sobre os mesmos era maior22 (mesmo argumento dos
charqueadores, na visão de Couty). Neste sentido, os trabalhadores assalariados tanto em Minas
quanto em Pelotas não devem ser vistos como operários clássicos. E isto funcionava igualmente
em Montevideu. Conforme Barran e Nahum, o saladeiro era uma empresa rural, com técnicas
de trabalho mais rústicas, realizadas por peões acostumados com a vida campeira. Foi somente
com a chegada dos frigoríficos que o complexo fabril das carnes tornou-se um verdadeiro
espaço de trabalho característico de operários urbanos. 23
Portanto, a dependência pessoal foi fator marcante nas relações de trabalho livre nas
charqueadas e parecia ser um mecanismo utilizado pelos charqueadores para poder contar com
estes trabalhadores eventuais por perto. Mas esta relação devia ser bastante tensa para aqueles
que não se enquadravam na lógica empregada pelo patrão. O próprio Couty, que era um crítico
da escravidão e estimulava o assalariamento do trabalho nas charqueadas, lamentava que “as
condições dessa transformação” do trabalho cativo ao trabalho livre seriam “bem complicadas”,
recomendando aos charqueadores: “será preciso também, e eu insisto neste ponto que poderia
parecer acessório, romper com hábitos seculares e não querer submeter operários livres e
responsáveis (…) à vigilância perpétua e aos procedimentos de direção que são necessários com
os escravos”.24 Indignado, Couty parecia sugerir que os charqueadores tratavam alguns dos seus
21
Um caso semelhante envolvendo os peões de estância no Rio Grande pode ser visto em FARINATTI, Luís A.
Op. cit.
22
LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 100-102.
23
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 101.
24
COUTY, Louis. Op. cit., 2000, p. 153.
215
assalariados como se fossem escravos. Um caso ocorrido em 1881, um ano depois da obra de
Couty, confirma sua afirmação. Num dos interrogatórios relativos ao crime de um escravo na
charqueada de Paulino T. da Costa Leite, o charqueador testemunhou afirmando que o graxeiro
João César de Castro, que ele havia demitido, apareceu em sua casa “dizendo que estava pobre,
sem recursos, desempregado no meio da safra e com família para sustentar”. O graxeiro, que
morava numa peça alugada pelo capataz, reclamou ao charqueador “que vivia num inferno,
porque o capataz até com carne lhe faltava para o seu sustento”.25
Numa sociedade onde as classes subalternas também eram ciosas dos espaços de
autonomia que conseguiam adquirir, morar na charqueada e ser alimentado por um capataz era
quase viver em condições semelhantes a dos próprios escravos, e isto devia incomodar muito os
trabalhadores livres que viviam na charqueada. Neste sentido, é possível compreender a
instabilidade da mão de obra assalariada também a partir do não pagamento corrente dos
salários e do mau tratamento que os mesmos recebiam. Talvez seja este um dos motivos pelo
qual as experiências de trabalho com os mesmos tenham fracassado. Entrevistando um
charqueador, Couty disse que as tentativas de contratarem carneadores assalariados na
charqueada não obtinham o sucesso desejado. Além disso, conforme o autor, a combinação de
homens livres e escravos no espaço de trabalho provocava inúmeros inconvenientes. Conforme
Couty, os charqueadores também não confiavam a operação das graxeiras a vapor aos escravos,
contratando trabalhadores livres para o mesmo serviço.26 Num contrato estabelecido entre os
irmãos Barcellos e Antônio J. de Oliveira Leitão, em 1861, os mesmos estipulavam que o
trabalho na extração dos sebos e graxas deveria ser realizado por um “graxeiro branco”.27
Observe-se que, mais do que a condição jurídica, o contrato estabelecia a cor do graxeiro,
indicando que o ofício deveria ser exercido por homens livres sem raízes no cativeiro, dando a
entender que os charqueadores não confiavam nos escravos e libertos para exercerem certos
tipos de atividade na charqueada.
Tal comportamento era muito diverso da postura dos empresários ingleses em São João
del Rey, por exemplo. De acordo com Libby, os escravos das minas trabalhavam como
maquinistas, eram promovidos para setores de supervisão e operadores de máquinas de
25
O charqueador disse que mandara seu filho “despedi-lo para não ter empregados que em vez de viverem no
trabalho da charqueada se ausentavam preterindo obrigações”. O patrão teria lhe dito que “de fome não havia de
morrer, que continuaria a dar-lhe vencimentos até que encontrasse emprego” e que talvez ele mesmo o empregasse
na sua chácara ou na fábrica de cola, mas na charqueada não mais (Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime,
Pelotas, 1882, APERS).
26
COUTY, Louis. Op. cit., 2000, p. 149-152.
27
Contrato de Sociedade entre os irmãos Luís, Eleutério e Boaventura Teixeira Barcellos e Antônio José de
Oliveira Leitão, Códice JC-20, Fundo Junta Comercial, AHRS.
216
estilhaçar, entre outros. As promoções incluíam as próprias mulheres cativas. 28 Segundo o
autor, tratava-se de um gerenciamento que oferecia certa confiança à capacidade do trabalho
técnico dos escravos. Além disso, os britânicos colocavam lado a lado o trabalho livre e o
cativo em praticamente todas as suas unidades de produção, algo que os charqueadores
preferiam não realizar. E a experiência não deve ter sido “traumática” nem para os escravos e
nem para os britânicos, uma vez que os escravos alforriados voltavam a trabalhar na empresa
como assalariados e a Companhia mineradora foi uma das empresas mais lucrativas do
Império.29 Confiando-se nos depoimentos dos charqueadores dados a Couty é possível verificar
que isto não ocorria em Pelotas, ou seja, os libertos dificilmente voltavam a trabalhar nas
charqueadas dos seus ex-senhores.30 Portanto, se ingleses e pelotenses concordavam a respeito
do emprego dos escravos para superar os problemas da inconstância do trabalho livre, suas
posições com respeito às capacidades dos cativos e dos libertos eram distintas.
28
De todos os inventários de charqueadores consultados encontrei mulheres escravas trabalhando como graxeiras
em somente um deles (Inventário de João S. Lopes, m. 366, m. 26, 1853, Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas).
29
LIBBY, Douglas. Op.cit., p. 31-35; 103.
30
Não localizei documentos que divergissem da informação de Couty. De qualquer forma, esta questão ainda está
em aberto, esperando novas pesquisas.
217
Nos dias de matança a jornada de trabalho começava por volta da meia-noite e estendia-
se até o meio-dia, com pelo menos uma parada no meio do turno.31 As tarefas eram realizadas
sob a máxima capacidade de divisão de trabalho para os padrões das charqueadas32 e os
escravos as realizavam organizados em turmas, sob o ritmo das canções entonadas pelos
mesmos.33 Neste processo, os escravos faziam “marcas” especiais nos couros e nas mantas de
charque. 34 E para quê se usavam tais marcas? Por um outro motivo que envolvia uma alteração
ainda mais importante no processo produtivo. Junto destas mudanças, os charqueadores
também criaram um sistema de gratificação monetária ao número de novilhos carneados além
da cota diária. Conforme Couty, que entrevistou um charqueador a respeito, o sistema teve uma
boa resposta por parte dos escravos. O controle da produção realizava-se na contagem do
número de pares de orelhas que o carneador retirava das reses preparadas por ele, entregando as
mesmas ao capataz no final da jornada. Segundo Couty, os charqueadores costumavam pagar
entre $30 e $35 réis por cada novilho preparado a mais e, por conta deste estímulo, o ritmo de
trabalho dos cativos tornara-se intenso. A média de novilhos antes preparados era de 6 a 8
animais por carneador. Depois do novo dispositivo ela saltou para 12 a 14 animais. 35
Conforme Couty, “vê-se que o escravo pode fazer verdadeiras economias. Alguns
escravos do Sr. da Costa, onde este excelente uso é antigo, já puderam libertar-se”.36 Este novo
sistema podia render mais de 2$ por dia de abate. Contabilizando 20 dias de matança no mês,
31
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 211. Detalhes minuciosos da jornada de trabalho nas charqueadas de Pelotas
foram descritas por Alberto Coelho da Cunha em seu conto “Um episódio de charqueada”, publicado em 1872 na
Revista do Partenon Literário de Porto Alegre. Cunha era filho de um rico charqueador e aderiu ao movimento
abolicionista na década de 1870 (CUNHA, Alberto C. da. Um episódio de charqueada. In: MOREIRA, Maria
Eunice (Org.). Narradores do Partenon Literário. Porto Alegre: IEL/CORAG, 2002, p. 41-49).
32
Conforme Libby, para os padrões da época a divisão de trabalho nas fábricas era um procedimento que fazia
toda a diferença na produção. “Ela é típica de empreendimentos capitalistas do século passado, cujos níveis
tecnológicos não eram muito elevados, mas que conseguiam aumentar a produtividade pela organização racional
da força de trabalho” (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 111). Couty nunca disse que não havia divisão de trabalho nas
charqueadas pelotenses. O que o observador francês afirmou foi que, numa comparação com a divisão do trabalho
nos saladeros platinos, as charqueadas apresentavam uma organização muito incipiente e desordenada nos dias em
que não havia matança. Nestas ocasiões os escravos realizavam tarefas diversas (carregar e descarregar os iates,
por exemplo, exigia um dia inteiro de trabalho) onde eram mobilizados conjuntamente, sem divisão de tarefas
(COUTY, Louis. Op. cit.).
33
Alberto Cunha narrou que o escravo Felipe Maranhão, carneador idoso, já não usava sua afiada faca “como
ontem acompanhada de uma canção alegre” (CUNHA, Alberto C. Op. cit., p. 43). Em março de 1853, o escravo
Nicolau, marinheiro do charqueador Joaquim José de Assumpção, foi castigado por não cantar enquanto içava as
cordas do navio (Processo-crime n. 32, 1853, Tribunal do Júri, Pelotas, APERS).
34
COUTY, Louis. Op. cit., p. 149-150.
35
COUTY, Louis. Op. cit., p. 149-150. O pagamento de prêmios aos escravos também foi estipulado no contrato
de sociedade em uma charqueada mencionado anteriormente (Contrato de Sociedade entre Boaventura Teixeira
Barcellos e Antônio José de Oliveira Leitão, Códice JC-20, Fundo Jundo Comercial, AHRS).
36
COUTY, Louis. Op. cit., p. 150). Em julho de 1879, em meio a uma investigação de uma quadrilha que roubava
charque dos varais dos estabelecimentos, a polícia prendeu os suspeitos e requisitou que os charqueadores
enviassem seus escravos até a delegacia para reconhecerem as suas mantas de charque. E, de fato, os carneadores
as reconheceram devido às marcas que realizavam nas mesmas (Jornal do Comércio de Pelotas de 02.07.1879 e
03.07.1879 (Biblioteca Pública Pelotense)).
218
um cativo acumularia 280$ numa safra – isto sem contar outros ganhos com diferentes
atividades que ele poderia exercer. 37 Portanto, a relação entre o aumento do ritmo de trabalho
com a compra da liberdade era totalmente factível. 38 Mas o dinheiro ganho não servia apenas
para juntar pecúlio. É provável que estes carneadores fossem procurados para ajudar outros
escravos e acabavam se tornando figuras importantes dentro do plantel de uma charqueador.
Contudo, como resultado deste mesmo processo, um grupo de trabalhadores acabava se vendo
em desvantagem. Como notou Alberto da Cunha, os escravos mais velhos, por exemplo, não
conseguiam acompanhar o ritmo acelerado dos mais jovens. 39 Além disso, a grande capacidade
de acumular pecúlio por parte dos carneadores provocou a inflação dos preços pagos pelas
cartas de alforria nas senzalas dos charqueadores. Os valores pagos pelas mesmas, entre os anos
1860 e 1870, estavam entre os mais altos de todo o Rio Grande do Sul. Em 1868, por exemplo,
o carneador Firmino Mina pagou 3:000$ por sua liberdade – cifra muito acima do verificável
em outros municípios da província.40 Com esta quantia, o seu ex-senhor podia comprar de dois
a três escravos no mercado local. Exemplos como este justificavam mais ainda a permanência
da escravidão como uma instituição economicamente rentável para o charqueador, numa
complexa relação compartilhada por senhores e escravos. Por outro lado, o aumento do valor
pago pelas alforrias poderia dificultar o acesso à liberdade para aqueles que não possuíam
condições de acúmulo semelhante aos carneadores mais produtivos ou que não pertencessem ao
círculo de relações dos mesmos. 41
Contudo, nem todos os escravos estavam dispostos a pagar tamanhas quantias ou utilizar
o seu dinheiro somente com a finalidade de se alforriar. A partir das conversas que teve com os
37
Douglas Libby diz que um escravo trabalhador nas minas de São João del Rey podia receber anualmente em
horas-extras até 10% do seu próprio valor (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 99). Tendo em vista que a média mais
alta dos cativos adultos inventariados nas charqueadas de Pelotas foi de 1:500$, percebe-se que o potencial de
acúmulo de pecúlio na charqueada poderia ser bem maior.
38
Neste sentido, os ingleses instalados em Minas perceberam que a ideia de liberdade era tão estimulante no
universo do trabalho cativo que a Companhia mineradora implementou um programa de concessão de alforrias.
Entre 1861 e 1866, por exemplo, 97 escravos foram libertos por meio do mesmo. Contudo, muitos deles
retornavam para o trabalho das minas (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 103).
39
CUNHA, Alberto C. da. Op. cit.
40
Assim como ele, muitos outros cativos de charqueada pagaram valores superiores a 2:000$, cifra menos comum
de se encontrar em outros municípios da província se comparados a Pelotas. O preço de 3:000$ foi o mais alto que
localizei ao pesquisar as alforrias pagas em todos os municípios do Rio Grande do Sul durante o século XIX. Esta
busca só foi possível por conta da publicação das mesmas cartas de liberdade organizadas pelo Arquivo Público do
Rio Grande do Sul. Escravos dos charqueadores Honório Luís da Silva e Manoel Francisco Moreira, e dos
comerciantes de charque Domingos Félix da Costa e família Cardia, também pagaram o valor de 3:000$. Fora
estes, somente um outro senhor recebeu uma quantia igual por ter libertado seu cativo (ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Documentos da escravidão catálogo seletivo de cartas de liberdade
acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, CORAG, v. I e II, 2006).
41
Como se verá a seguir, os carneadores ajudavam outros cativos a se libertarem. Por este motivo, penso que os
valores pagos por outros escravos para se alforriarem tenderiam a aumentar, pois os charqueadores deviam saber
que os carneadores ajudavam alguns de seus companheiros de cativeiro.
219
charqueadores, Couty declarou: “É preciso confessar que, na maioria das vezes, [os
carneadores] fazem de seus ganhos outros usos, pois eles pouco desejam uma liberdade
comprada por trabalho ou privações”. 42 Além disso, penso que eles podiam continuar
trabalhando mais um tempo na charqueada para conseguir melhores condições e preparar-se
para uma condição mais segura em sua vida pós-cativeiro, tanto para si, quanto para seus
familiares. Tratava-se de uma estratégia muito bem traçada e que podia ser potencializada caso
o escravo contasse com outros parentes em situação semelhante ou pessoas que ele tinha
interesse em ajudar.43 Um caso envolvendo um escravo de Joaquim da Silva Tavares
exemplifica bem esta situação. Em novembro de 1861, o preto mina Joaquim, carneador, 28
anos, assassinou a preta liberta Juliana com uma facada, dentro da casa da mesma. Perguntado
do motivo pelo qual cometeu o crime, o réu respondeu: “que vivendo com uma preta Juliana, a
quem ele havia forrado, e recebendo dela ingratidões, apaixonou-se a ponto de a assassinar em
novembro do ano passado, e que hoje está arrependido de cometer esse crime”. 44
Esse não foi o único crime envolvendo carneadores apaixonados por forras e cativas que
viviam distante das charqueadas. Em dezembro de 1868, por exemplo, o preto mina José, 50
anos, escravo marinheiro do charqueador José Antônio Moreira, matou Sofia alegando ter
emprestado mais de 1:000$ para ela se alforriar, mas a vítima teria usado o dinheiro para
libertar um outro escravo com qual vivia.45 Em março de 1871, o cativo Joaquim Angola, 40
anos, cozinheiro e carneador, matou com uma facada um outro preto que estava na casa da preta
Martha, com quem Joaquim “tinha relações”. 46 O número de casos envolvendo carneadores,
salgadores e outros escravos com pretas cativas e forras que viviam na cidade ou na Serra dos
Tapes devia ser muito maior, visto que foram poucos os que perderam a cabeça por ciúmes,
vindo a deixar seus vestígios em processos criminais.
Como o número de mulheres era cada vez menor nas senzalas do charqueador (ver
capítulo 5), ficava difícil para os escravos constituir família ou relacionar-se com outras
escravas dentro do seu próprio plantel ou no dos vizinhos. Neste sentido, é provável que muitos
carneadores insistissem com seus senhores para poderem ter a oportunidade de eventualmente
sair ao encontro de outras pessoas do seu interesse. O charqueador podia, inclusive, negociar tal
autonomia aos escravos mais produtivos durante a jornada semanal, por exemplo. No mesmo
processo criminal mencionado acima é interessante notar que o escravo Joaquim havia recebido
42
COUTY, Louis. Op. cit., p. 150.
43
Ver, por exemplo, MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
44
Processo-crime n. 587, Tribunal do Júri, Pelotas, 1861 (APERS).
45
Processo-crime n. 264, Tribunal do Júri, Pelotas, 1869 (APERS).
46
Processo-crime n. 925, Tribunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS).
220
um recado da preta Martha dizendo que a mesma o esperava em sua casa. Era uma quarta-feira.
Contudo, ele mandou respondê-la que neste dia não poderia e que ela esperasse mais 4 dias. Ou
seja, o escravo marcou o seu encontro para um domingo, sabedor de que era a sua folga e, de
fato, cumpriu o prometido à Martha. Portanto, Joaquim conhecia os seus limites e suas
obrigações para com o charqueador, mesmo porque os mesmos deviam ter sido fixados a partir
de uma negociação entre ele e o seu senhor.47 Neste sentido, é provável que um grupo de
carneadores atingisse uma notável importância dentro da senzala podendo negociar em
melhores condições com os senhores e capatazes.48
Além disso, alguns cativos também estavam em melhores condições de fazer uma boa
leitura do contexto em que se encontravam. A cautela dos escravos carneadores em migrar
instantaneamente para a vida de liberto era ainda mais compreensível no caso de os mesmos
observarem com atenção a forma como alguns trabalhadores assalariados viviam suas vidas
fora da charqueada. A situação dos operários livres das indústrias da carne não era muito digna
nem em Pelotas e nem em outros países. Nos saladeros platinos, por exemplo, Barran e Nahum
afirmaram que a situação dos trabalhadores tendeu a piorar ao longo do século XIX, por conta
das crises enfrentadas pelo setor e da mão de obra mais abundante. Um traço constante era “el
empleo de niños que sólo se encuentra en las formas primeras de la acumulación capitalista”
junto com demais operários que enfrentavam “las grandes jornadas de dieciséis, dieciocho y
aún más horas, señalan el máximo grado de tensión de las fuerzas del trabajador”. Em suma,
tratava-se de “una brutal plusvalía, que sólo la industria europea en los albores de la revolución
industrial presenció”. 49
47
Processo-crime n. 925, Tribunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS).
48
Com relação a isto ver MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
49
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 101.
50
LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 124. Para um retrato contemporâneo das condições de vida dos operários ingleses
ver ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
221
com ele, o saladeirista possuía vantagem sobre o charqueador, porque em situações de baixa ele
“pode, mesmo, fechar seu saladeiro e estará seguro de encontrar, quando ele reabrir, operários
em quantidade suficiente. Esses operários devem aproveitar, como o saladeirista, anos
favoráveis e grandes abates para se prevenir contra o desemprego: eles lutam individualmente
por sua vida”.51
Nos Estados Unidos, a situação dos operários da indústria da carne também era
lastimável, tornando-se mundialmente conhecida através do romance The Jungle (1906), de
Upton Sinclair. O livro atacava as condições de fabricação das carnes e dos trabalhadores nos
frigoríficos de Philipp Armour, o Barão das carnes de Chicago. Liderando diversas greves nos
anos 1880, os operários exigiam uma jornada de trabalho de 8 horas e o direito de sindicalizar-
se, mas eram seguidamente reprimidos de forma violenta por milícias formadas pelos próprios
empresários do setor.52 Conforme James Green, enquanto trabalhadores norte-americanos (com
uma família de 5 membros) recebiam um salário básico de 15,40 dólares por semana, os
trabalhadores dos frigoríficos venciam 9,50 dólares. Convertendo para mil réis, no ano de 1885,
este valor equivalia a quase 24$, o que daria cerca de 100$ mensais e 1:200$ anuais. 53 Em
Montevideu, os saladeiristas pagavam aos seus carneadores, em cada safra, algo entre 1:000$ e
1:600$, dependendo do valor das diárias.54 Era mais de 3 vezes o salário de um peão de
charqueada.55 Contudo, qualquer comparação mais aprofundada com o trabalho nas
charqueadas deve envolver os custos de vida com alimentação e moradia de um trabalhador em
Chicago, Montevidéu e Pelotas, algo que esta pesquisa não pretendeu realizar. 56
51
COUTY, Louis. Op. cit., p. 146.
52
GREEN, James. Death in the Haymarket: a story of Chicago, the first labor movement and the bombing that
divided gilded age America. New York: Pantheon Books, p. 103-104; 158-160.
53
Para a conversão utilizei MOURA FILHO, Heitor P. Taxas Cambiais do Mil-Réis. Exchange rates of the mil-
reis (1795-1913). MPRA Paper N. 5210. Disponível em <http://mpra.ub.uni-muenchen.de/5210/>, 2006.
54
Conforme Couty, os carneadores recebiam de 25 a 40 francos por dia. Tendo em vista a taxa de câmbio
calculada por Couty e a estimativa de que estes trabalhadores carneavam 25 dias por mês, o vencimento em 5
meses podia rondar entre 1:000$ e 1:600$, como foi dito (COUTY, Louis. Op. cit., p. 143).
55
A partir do processo de Liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos foi possível verificar alguns trabalhadores
livres cobrando seus salários referentes à safra que se encerrava. A partir dos mesmos, é possível calcular os
respectivos vencimentos anuais para o capataz (1:536$), o patrão do iate (480$), o graxeiro (384$), o camarada do
iate (320$), o peão da casa (340$) e o rondador (337$). Os empresários não utilizaram carneadores livres. Mas
como os graxeiros exerciam um serviço bastante especializado é provável que um carneador não recebesse mais do
que isto. Os serviços de um escravo carneador, estipulados na mesma fonte, eram calculados em 30$ mensais
(Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
56
Ao comparar o salário dos trabalhadores livres brasileiros com o dos europeus na Companhia mineradora de São
João del Rey, Libby chegou aos mesmos índices, ou seja, os europeus recebiam 3,4 vezes o salário dos brasileiros,
exercendo as mesmas funções. Nos anos 1860, o salário dos broqueiros brasileiros era de 37$500 por mês (pouco
mais que o de um peão de charqueada ou do valor do trabalho de um escravo de charqueada na mesma época, que
ficavam em 30$) (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 104-105). Portanto, o trabalho assalariado exercido por um
brasileiro em comparação com um estrangeiro era muito desvalorizado tanto em Pelotas quanto em São Joao.
222
Portanto, não há como refletir sobre os projetos individuais e coletivos dos trabalhadores
livres e escravos empregados em setores fabris no século XIX e não pensar em suas condições
de trabalho e de vida. Neste sentido, ao ponderarem sobre a sua condição após o cativeiro,
realizando cálculos sociais (como qualquer trabalhador o faz) acerca das suas condições e o que
poderia estar em jogo em cada uma de suas escolhas, os carneadores eram muito mais
inteligentes do que Couty poderia supor. Talvez até mesmo um ex-companheiro de cativeiro
que tenha se alforriado e caído em condições de precariedade podia lhe servir como exemplo.
Neste sentido, alguns escravos possuíam uma noção muito clara do contexto em que se
encontravam e deviam buscar gerenciar os seus recursos de uma forma que sua vida de liberto
não fosse pior que a sua vida de cativo.57
A afirmação feita por Couty de que dificilmente os escravos alforriados retornavam para
trabalhar nas charqueadas pode ser interpretada de várias formas. A primeira delas é que muitos
deles conseguiam uma nova vida na qual não precisavam mais se sujeitar a um serviço
reconhecidamente muito desgastante. A segunda é a de que, mesmo em situação de miséria,
eles não desejavam retornar para a administração do seu ex-senhor. E a terceira é que seus
próprios ex-senhores não desejavam contar com o seu trabalho nas fábricas, visto a
“inconveniência” de misturar livres e cativos na matança. Obviamente que estas escolhas
variavam de senhor para senhor e de escravo para escravo, visto que muitos libertos deviam
continuar mantendo relações com a família senhorial, como outras pesquisas atestam. 58
60
Para uma análise neste sentido ver SILVA, Róger Costa da. Criminalidade e escravidão, Pelotas, segunda
metade do século XIX. In: Anais do 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre:
UFRGS, 2011, p. 1-18.
61
Para um apanhado geral destes conflitos, questões relativas às fugas e a resistência escrava nas charqueadas de
Pelotas ver ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit.
62
Processo-crime n. 788, Tribunal do Júri, Pelotas, 1856 (APERS).
63
Processo-crime n. 668, Tribunal do Júri, Pelotas, 1864 (APERS).
64
Processo-crime n. 965, Tribunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS).
65
Processo-crime n. 1.147, Tribunal do Júri, Pelotas, 1880 (APERS).
224
não apenas para corrigir a sua má conduta como também as falhas decorrentes de seus serviços
na charqueada. Em janeiro de 1879, por exemplo, o escravo Antônio, 40 anos, cozinheiro e
carneador, foi castigado pelo capataz por não conseguir cortar os couros que preparava da
maneira correta, os estragando.66 Em janeiro de 1873, Feliciano matou o capataz por ele o haver
“mandado trepar para cima de uma pilha de carne verde para trabalhar e ele réu lhe dissera não
poder fazê-lo por ter os pés e as mãos ardidas do sal”. 67 O escravo Matheus, citado acima,
também revoltou-se com o capataz pois não queria trabalhar “no valo” que cercava o terreno da
charqueada, alegando estar com os pés rachados.68 O aumento dos ritmos de produção e a
pressa dos escravos em aumentar suas tarefas foi capaz de provocar um infeliz acidente na
charqueada de Manoel Jacintho Lopes. Eram cerca de 4 horas da madrugada quando Manoel,
34 anos, baiano, ao retornar correndo com um grande pedaço de carne para o galpão de
charquear, esbarrou no cativo Joaquim, ferindo-o mortalmente com sua faca. Os demais
carneadores e trabalhadores assalariados confirmaram a versão do réu, alegando que o local de
trabalho estava muito pouco iluminado (a matança era realizada de madrugada sob as luzes de
seis lampiões, sendo que no galpão de charqueada havia somente 2 deles) o que favoreceu o
acidente. Manoel foi absolvido.69
Como foi dito, as queixas contra os excessos de castigos também eram comuns. 70 Talvez
eles estivessem excedendo o nível outrora suportado pelos escravos. Por estarem convivendo
com trabalhadores livres no interior das charqueadas, recebendo dinheiro como pagamento por
seus serviços e vendo alguns parceiros de cativeiro se libertando é provável que os mesmos já
não aceitassem mais o tratamento que lhes era conferido anteriormente. Talvez esta fosse uma
das “inconveniências” reclamadas pelos charqueadores em misturar escravos e assalariados nos
galpões de charquear.71 Os cativos estavam sujeitos a medidas disciplinares que não envolviam
os assalariados, como dormir sob uma senzala trancada e ter seus espaços de autonomia
restringidos pelo senhor. Neste sentido, ao não serem castigados (e caso o fossem, não devia ser
na mesma proporção) os assalariados deviam oferecer exemplos de conduta que podiam ser
internalizados pelos escravos mais zelosos de sua posição na senzala.
66
Processo-crime n. 1.135, Tribunal do Júri, Pelotas, 1879 (APERS).
67
Processo-crime n. 965, Tribunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS).
68
Processo-crime n. 668, Tribunal do Júri, Pelotas, 1864 (APERS).
69
Processo-crime n. 926, Tribunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS).
70
Neste sentido, ver também SILVA, Róger da Costa. Op. cit.
71
COUTY, Louis. Op. cit.
225
A análise dos processos criminais também revela que as charqueadas estavam longe de
se constituírem em “penitenciárias”, como declarou Nicolau Dreys. 72 A mobilidade com que
alguns escravos do serviço das charqueadas circulavam pela cidade era algo notável. 73 Além
daqueles carneadores que saíam ao encontro de libertas com quem mantinham relações afetivas,
encontram-se vários crimes e conflitos praticados por escravos dos charqueadores enquanto
andavam pela cidade, como o preto Joaquim, assassinado a machadadas por não pagar uma
dívida de jogo que contraiu na cidade ou o escravo Porfírio que matou seu companheiro de
cativeiro no caminho da Serra dos Tapes, porque desconfiou que o mesmo o estava roubando.74
O pardo João, em 1855, após cometer um crime em Pelotas, foi até Porto Alegre (distante mais
de 250 Km) pedir proteção ao seu senhor moço, que, na ocasião, era deputado provincial. 75 E,
em 1882, apenas para dar mais um exemplo, o carneador Ulisses, depois de sua jornada de
trabalho, foi dar um passeio na cidade onde consumiu bebida alcoólica em algum bolicho e
depois foi até uma loja comprar ceroulas, ocasião em que foi acusado de furto.76
Entretanto, esta margem de locomoção não devia estar acessível a todos e alguns
escravos, aos olhos do senhor, deviam possuir mais direitos do que outros. Como foi dito
anteriormente, é possível que os carneadores e outros escravos tivessem mais privilégios. Não
surpreende que os casos de crime envolvendo relacionamentos passionais com libertas
envolviam carneadores e marinheiros. Estes últimos deviam conhecer um grande número de
pessoas fora da charqueada. Além disso, por conta de sua circulação e da leitura que faziam do
meio social no qual viviam, alguns escravos também conseguiam tecer uma rede de alianças
mais ampla, envolvendo forros e homens livres, vindo a utilizá-las em caso de necessidade. Em
1879, o escravo carneador Antônio, com medo de ser castigo novamente pelo capataz de sua
charqueada, foi ao encontro de outros charqueadores para procurar “apadrinhar-se”. E, de fato,
o carneador foi protegido e escapou, momentaneamente, de ser castigado na charqueada de seu
72
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961. Esta
constação já havia sido realizada por Caiuá Al Alam ao estudar a escravidão e criminalidade em Pelotas na
primeira metade do século XIX (AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: Polícia, pena de morte e
correção em Pelotas (1830-1857). Pelotas: Sebo Icária/ Edição do autor, 2008, p. 53).
73
Na realidade, isto foi uma constante na vida dos escravos de diversas regiões, pois faz anos que a historiografia
brasileira vem demonstrando a mobilidade dos cativos tanto nas cidades quanto nos meios rurais. Ver, por
exemplo, MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982; REIS, João José.
Domingos Sodré – um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo:
Cia das Letras, 2008; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1990; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os
significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
74
Processo-crime n. 623, Tribunal do Juri, Pelotas, 1862 (APERS).
75
Processo-crime n. 463, Tribunal do Juri, Pelotas, 1855 (APERS).
76
Processo-crime n. 1.200, Tribunal do Juri, Pelotas, 1882 (APERS).
226
senhor.77 Outros escravos, aliados a pequenos mercadores, roubavam charque e couros,
revendendo-os na cidade – empreitada que rendia certos ganhos econômicos, mas também
podia resultar em problemas com a polícia. 78
O fato é que cada charqueada possuía um número muito grande de escravos para que o
senhor os tratasse de forma igual e tivesse um controle rígido sobre os mesmos. Nesta última
tarefa ele devia ser auxiliado pelo capataz, mas não era fácil encontrar trabalhadores de
confiança para tal função. Com o objetivo de acelerar a produção, impor disciplina aos escravos
e não desapontar o charqueador, os capatazes viam-se diante de uma situação bastante delicada,
pois a insatisfação dos cativos e a revolta de alguns deles tinham neles os alvos mais imediatos.
E tendo em vista o aumento do número de mortes e ataques aos capatazes mencionados
anteriormente é certo que estes trabalhadores sabiam da sua condição e do perigo que corriam
quando se excediam nos castigos. Um caso muito interessante ocorrido em janeiro de 1873
pode servir como exemplo. Após o assassinato do capataz Villar, na charqueada de Joaquim J.
de Assumpção, todos os escravos manifestaram que o seu administrador os tratava mal, o que
motivou o crime. Para confirmar as informações dos cativos, as autoridades judiciais mandaram
perguntar sobre a conduta de Villar nos demais lugares em que ele trabalhou. Em maio do
mesmo ano, foram consultados três charqueadores que deram as seguintes respostas:
“Em resposta à carta que V. Sª me dirigiu tenho a responder ao primeiro quesito que
João Paredes Villar durante o tempo em que foi capataz de minha charqueada era
ríspido com os escravos e que muitas vezes tive de contê-lo nos castigos que fazia. É
esta a resposta que tenho a dar a V. S.ª podendo fazer dela o uso que quiser” (João
Maria Chaves).
“Em resposta à carta supra de V. S.ª tenho a dizer-lhe que é verdade que o falecido
João Paredes Villar, há 18 anos, mais ou menos, esteve como capataz na minha
charqueada, e que durante o tempo em que esteve como empregado mostrou sempre
um gênio rigorosíssimo e até bárbaro para com os escravos, castigando-os as vezes tão
imoderadamente que via-me na necessidade de intervir, afim de evitar uma desgraça.
Pode V. S.ª fazer desta o que lhe convier” (José Bento de Campos).
“Respondendo a carta de V. S.ª, quanto ao primeiro quesito declaro que esteve na
administração da charqueada nos anos de 1861 a 1867, quanto ao segundo quesito
declaro que João Paredes Villar é um homem que tinha a mania de dar bordoadas
imoderadamente por simples gosto nos escravos, ao ponto de ter eu por muitas vezes
de sujeitá-lo obrigando-o a reprimir seu gênio extraordinariamente ríspido; na verdade
era nesse sentido um louco. É esta a resposta que tenho a dar-lhe fazend V. S.ª dele o
uso que lhe convier (Major José Quirino Candiota).79
77
Processo-crime n. 1.135, Tribunal do Juri, Pelotas, 1879 (APERS).
78
Processo-crime n. 255, Vara cível e crime, Pelotas, 1876 (APERS).
79
Processo-crime n. 965, Tribunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS).
227
por outro, mesmo achando Villar um louco, o Major Candiota o deixou trabalhando por 6 anos
em sua charqueada. Como demonstrarei adiante, é certo que alguns charqueadores
condenassem os exageros de seus capatazes, até porque não desejavam perder seus escravos por
tamanho descontrole e deixar a senzala em desarmonia, mas, ao que parece, alguns não se
opunham em tolerar feitores rígidos por algum tempo, desde que sua escravaria não lhes
dessem problemas. Em suma, senhores, capatazes e escravos apresentavam uma relação
triangular extremamente complexa. Conforme Eugene Genovese, estudioso da escravidão nas
plantations algodoeiras do sul dos Estados Unidos, os cativos habilmente tentavam jogar o
senhor contra os capatazes e muitas vezes o conseguiam. 80 Os capatazes, em resposta, deviam
jurar vingança aos mesmos. Contudo, é importante que se diga que em outros processos
criminais houve capatazes cuja conduta foi considerada boa pelos cativos.81 Neste sentido, se os
charqueadores e os capatazes classificavam os escravos em desobedientes e obedientes, os
cativos também possuíam suas formas de classificar senhores e capatazes.82
80
GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 33-41.
81
Ver, por exemplo, Processo-crime n. 1.147, Tribunal do Júri, Pelotas, 1880 (APERS).
82
Conforme Genovese, “os escravos tiravam proveito desses conflitos para facilitar as coisas para si, e até mesmo
alguns duros senhores de vez em quando intervinham em favor deles (…). Os senhores demitiam os
administradores por diversos motivos. Despediam os que tratavam os escravos com excessiva leniência ou, com
muito mais frequência, os que demonstravam em relação a eles dureza excessiva (…). Havia limites, que os
escravos conheciam, pois eles mesmos os haviam ajudado a fixar, além dos quais normalmente um administrador
não ousava ir (…). Alguns senhores acusavam seus administradores de se comportarem com demasiada
familiaridade, mas essa acusação poderia significar muitas coisas, desde deitar-se com as negras até se preocupar
demais com o bem-estar dos escravos” (GENOVESE, Eugene. Op. cit., p. 34-43).
83
Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime, Pelotas, 1882, APERS.
228
surras os míseros escravos, como acaba recentemente de praticar um potentado em Pelotas”.84
Nos anos 1880, alguns motins de escravos agitaram Pelotas e na mesma época os
charqueadores começaram a libertar seus cativos em grandes levas, lhes impondo contratos com
cláusulas de trabalho – prática cada vez mais comum naquele contexto e que precisa ser melhor
estudado por outros pesquisadores.85
Portanto, no início dos anos 1880, o fim da escravidão era uma realidade já esperada por
todos, mas os charqueadores não tiveram tanta habilidade para conduzir o processo de transição
do trabalho cativo para o trabalho livre. A partir dos relatos de Couty, e das fontes pesquisadas
e analisadas neste e no capítulo anterior, é possível considerar que os charqueadores
continuaram utilizando a mão de obra cativa nas suas fábricas por três motivos principais. O
primeiro deles é que tal investimento era economicamente rentável. Por volta dos anos 1860 e
1870, um trabalhador assalariado exigia 360$ anuais por serviços de charqueada (e, mesmo que
se argumente que os peões não trabalhassem os 12 meses do ano, foi este o valor que a firma
Viúva Vianna & Filhos teve que pagar aos mesmos). O valor do trabalho de um escravo, na
mesma época, era calculado em 30$ mensais, ou seja, não havia muita diferença com relação ao
custo do trabalho de ambos. Entretanto, o charqueador gastava uma média de 50$ anuais por
escravo com as despesas básicas e mais o valor investido em sua compra. 86 O preço de 1:500$
foi a média dos cativos homens adultos inventariados no meado da década de 1860 (estou
escolhendo o valor mais alto de todo o período). Calculando este investimento inicial de 1:500$
somados aos 250$ relativos a 5 anos de sustento, posso dizer que, com o trabalho do escravo, o
senhor amortizava o investimento inicial e mais as despesas básicas em 5 anos (360$ x 5 anos =
1:800$). Contudo, o retorno do capital investido na compra do escravo podia ser maior ou
menor de acordo com o preço pago pelo mesmo. Em 1866, por exemplo, no leilão dos escravos
da massa falida da Vianna & Filhos, 16 dos 31 escravos arrematados foram comprados por
charqueadores (14 eram homens). Eles pagaram preços muito variados, desde 610$ até 1:750$,
com uma média de 1:230$.87
84
Gazeta da Tarde. 12.05.1881 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
85
Para uma análise das tensões entre charqueadores e escravos nos anos 1880 ver LONER, Beatriz. 1887: A
Revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. In:
História em Revista, Pelotas, v. 3, 1997.
86
A média de 50$ foi declarada pelos relatórios da Companhia mineradora inglesa estudada por Libby e coincidem
com o que calculei para as charqueadas pelotenses, como será tratado no capítulo 9 (LIBBY, Douglas. Op. cit., p.
104). Estes cálculos podem ser refeitos no que diz respeito aos trabalhadores livres das charqueadas, pois não foi
possível saber se o charqueador fornecia alimentos aos mesmos, o que aumentaria os gastos com o trabalho
assalariado e justificaria mais ainda o uso dos cativos dentro da lógica dos rendimentos da empresa.
87
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
229
Portanto, o investimento dos charqueadores em escravos, entre os anos 1850 e 1870,
pareceu-me economicamente racional, ainda mais nos casos em que os carneadores livres
cobravam salários maiores do que o calculado anteriormente e os escravos eram comprados por
preços menores. Se o escravo trabalhasse para o charqueador por cerca de 4 ou 5 anos – algo
bastante plausível e que constituía-se numa média de tempo de serviço que os charqueadores
costumavam exigir nas cartas de alforria com contratos de trabalho realizados nos anos 1880 –
o investimento era viável, ainda mais nos casos em que se pagasse menos de 1:500$ por
escravo. Contudo, se forem levados em conta outros dois fatores alegados pelos charqueadores,
a utilização dos cativos torna-se ainda mais compreensível. Segundo Couty, o Sr. Costa lhe
confidenciou que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre envolvia muitos fatores.
O charqueador tinha plena consciência de que continuar utilizando escravos nas charqueadas
não era uma boa solução se fossem pensar na conjuntura emancipacionista da época, mas ele
dizia que os charqueadores viam-se obrigados a utilizá-los porque os trabalhadores livres eram
muito inconstantes e que não havia colonos europeus disponíveis para substituir todos os
cativos de uma charqueada.88
Contudo, entre os charqueadores não havia um consenso sobre o que ser feito. Couty
alegava que o trabalho dos colonos alemães não era adequado e que os charqueadores não
queriam trazer trabalhadores do Prata. Outros empresários achavam que a utilização dos
escravos ainda estava de bom tamanho e apenas alguns poucos eram mais favoráveis em
investir capitais para financiar a vinda de colonos da Europa. De fato, como os libertos e os
trabalhadores livres da região haviam sido descartados pelos charqueadores de um suposto
processo de transição, a saída, para alguns, seria o incentivo à vinda de colonos europeus ou
trabalhadores da região do Prata. Este, por exemplo, foi um modelo adotado tanto pelos
cafeicultores paulistas quanto pelos saladeiristas platinos.89 Contudo, os charqueadores
88
COUTY, Louis. Op. cit., p. 150-153.
89
Ver, por exemplo, COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo:
UNESP, 1999, p. 195-232; HALL, Michael; STOLCKE, Verena. A introdução do trabalho livre nas fazendas de
café em São Paulo. In: Revista Brasileira de História, n. 6, set., 1983; EISENBERG, Peter. Op. cit., 1980.
Conforme Couty, “no Rio da Prata, não somente são estrangeiros que instalaram a maioria dos saladeros, mas são
também estrangeiros – franceses, italianos, espanhóis – que preparam a carne-seca; e as equipes de operários
contam, sobretudo, com um grande número de bascos franceses e espanhóis. Foram também bascos que se tentou,
há alguns anos, trazer a Pelotas; a tentativa teve resultados muito incompletos e há muito tempo que não mais
permanece nas charqueadas um só dos operários contratados” (COUTY, Louis. Op. cit., p. 152). Barran e Nahum
confirmam a enorme presença de operários europeus nos saladeiros (BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op.
cit., p. 100). Uma visão mais a longo prazo compartilhada por todos os charqueadores talvez os tivessem
condicionado a buscar outras alternativas. Mas isto jamais ocorreu. E aqui tendo a concordar com Bell. A maior
presença de estrangeiros entre os saladeros não apenas motivava os mesmos a trazerem operários europeus para o
Prata como também mobilizavam mais capitais em tais empreitadas (BELL, Stephen. Early industrialization in the
South Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before 1860. In: Journal of Historical
Geography, 19, 4, 1993, p. 399-411.
230
pelotenses pareciam não ter nenhum espírito associativo neste sentido. Em 1862, na Assembleia
Legislativa, um charqueador discursou dizendo ser contra as associações porque isto traria a
política para dentro dos negócios e ele não via com bons olhos estas disputas partidárias.90
Enquanto os saladeiristas platinos conseguiam entrar em consenso para resolver seus
problemas91, os charqueadores não tiveram o mesmo sucesso. Além disso, não há notícias de
que eles tenham enviado representantes para os Congressos Agrícolas ocorridos em Recife e no
Rio de Janeiro (1878) e, nem mesmo em nível provincial, os mesmos pareceram organizar algo
do tipo para discutir o problema da mão de obra. 92
Dentro da perspectiva de uma elite escravista que via-se numa conjuntura desfavorável
com relação à oferta de braços, creio que os charqueadores acertaram em implantar um sistema
de incentivos monetários relacionados à produção escrava. Com isso, eles compensaram a perda
de mão de obra após o fim do tráfico e criaram uma expectativa bastante real de liberdade para
aqueles que ampliassem as suas tarefas diárias. Mas insistindo em tal medida sem promover os
cativos para o assalariamento pleno e melhorar as condições de vida dos trabalhadores livres,
tal medida era mais uma sobrevida para a charqueada escravista do que uma solução para o
setor. Contudo, até mesmo neste simples dispositivo havia empresários que não o aprovavam.
Conforme Couty, alguns charqueadores achavam que os prêmios pagos eram uma despesa
adicional e que na pressa de realizarem suas tarefas os escravos preparavam um produto final
com qualidade inferior. Mas Couty diz que esta era a opinião de um “conhecido” charqueador.
Acredito que talvez fosse um velho charqueador pelotense e, neste sentido, os empresários mais
novos, como o Sr. Costa, deviam ter que encarar o choque de gerações que marcou os anos
1870 e 1880, tendo que convencer os velhos escravistas de que uma mudança era necessária.
Mesmo não tendo sido sua única causa, o fim da escravidão marcou um declínio irrecuperável
para a indústria charqueadora pelotense.
Portanto, não se pode dizer que não havia saída para o complexo charqueador escravista
pelotense. No que diz respeito à mão de obra pode-se inclusive supor que os escravos estavam
internalizando a relação direta entre produtividade e retribuição monetária. Neste sentido, é
possível que eles estivessem se adaptando mais facilmente ao novo mundo capitalista que seria
90
Ver discursos dos dias 02.10.1862 e 04.11.1862 (PICCOLO, Helga. Op. cit.).
91
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
92
Conforme o cálculo realizado por José Murilo de Carvalho, não havia representantes do Rio Grande do Sul no
Congresso do Rio de Janeiro (CARVALHO, José Murilo de. Introdução. In: Congresso agrícola do Rio de Janeiro
(1878). Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, Edição fac-similar, 1988, p. v-ix). Eisenberg também não
menciona a presença de representantes rio-grandenses (EISENBERG, Peter. Op. cit., 1980). Para uma análise do
comportamento dos deputados provinciais do Rio Grande do Sul a respeito da mão de obra escrava e do processo
emancipacionista ver BAKOS, Margaret. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
231
instalado nas charqueadas e frigoríficos no século XX do que os próprios charqueadores.
Portanto, parafraseando Marcelo Matheus, “pode-se dizer que Fernando H. Cardoso acertou
errando”.93 Como afirmou Cardoso, no final dos anos 1870, os charqueadores pareciam não ter
se libertado totalmente da sua visão de mundo senhorial. 94 Contudo, em nossa opinião, o
problema não foi a utilização dos cativos em si, como defendeu o autor.95 Atualmente já está
mais do que aceito que o trabalho escravo era economicamente rentável não somente em
Pelotas como também nos cafezais do sudeste, nas minas de São João, nas fazendas de algodão
dos Estados Unidos e em diversas outras sociedades, por exemplo.96 O problema talvez tenha
sido a descrença por parte dos charqueadores de que os libertos poderiam ser agentes da
mencionada transição, a desvalorização das condições de vida dos trabalhadores livres
assalariados, a incapacidade de associação para patrocinar a entrada de trabalhadores colonos e
o pensamento a curto prazo com relação aos seus investimentos econômicos no período.
93
MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
94
CARDOSO, Fernando H. Op. cit.
95
A postura de Cardoso deveu-se muito ao fato de ele ter aceito as ideias de Couty acriticamente sem pensar que o
viajante francês esteve em Pelotas no início da década de 1880. Nesta época, a escravidão realmente já estava
condenada, o que certamente influiu no seu relato e na comparação com os saladeros platinos.
96
GRAHAM, Richard. Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Sul dos Estados Unidos no século XIX.
In: Estudos Econômicos, n. 13, Jan./Abr., 1983, p. 223-257.
97
CHALHOUB, Sidney. Op. cit.
232
charqueadores mais respeitados da região. O enriquecimento levou-o à política. Em 1828, ele
ocupou uma cadeira no conselho administrativo da Província, em 1832, foi eleito vereador em
Pelotas e, em 1835, tornou-se deputado provincial. 98
Chaves era tido pelos seus contemporâneos como um sujeito bastante inventivo. O seu
projeto mais ambicioso foi a construção do primeiro navio a vapor da região sul, chamado
“Liberal”. A embarcação navegou por águas do atlântico no início da década de 1830. Suas
peças foram trazidas dos Estados Unidos, país para qual se exportava couros secos e se
importava trigo. Os couros salgados eram enviados principalmente para a Inglaterra e a França,
onde constituíam matéria-prima fundamental para as indústrias daquele país. Este comércio foi
tão rotineiro que, no caso de Chaves, as relações mercantis acabaram sendo extrapoladas para a
vida familiar, pois uma das suas filhas casou-se com um comerciante inglês chamado Robert
Barker e outro filho foi enviado para estudar Medicina, em Paris.
Portanto, estas trocas mercantis também favoreciam a circulação de idéias, vindas tanto
da Europa, quanto dos Estados Unidos e dos portos vizinhos do Prata. Quando Saint-Hilaire
esteve hospedado na casa de Chaves, notou tudo isto: “O Sr. Chaves é um homem culto,
sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito bem”, em suma,
“um dos homens mais esclarecidos da região”. 99 Todo este conhecimento de Chaves, assim
como suas opiniões sobre política e economia, foi transposto para o papel entre os anos de 1817
e 1822, sendo impresso num único volume. Seu livro estava dividido em cinco memórias,
sendo a terceira dedicada exclusivamente à escravidão. Nesta, Chaves buscou defender a
extinção do comércio de escravos para o Brasil sob a luz das novas ideias da economia política.
Para ele a escravidão era um mal tanto para a economia do Brasil, quanto para o
desenvolvimento político do Estado.100
98
Dados biográficos sobre Chaves podem ser obtidos em FRANCO, Sérgio da Costa. Livro e seu autor. In:
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto
Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 15-18.
99
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 103.
100
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 53-77.
233
que só fossem considerados libertos os filhos dos cativos nascidos a partir de então (mas apenas
quando completassem 25 anos). Chaves argumentou que a abolição total só seria possível
quando a “nossa força física” exceder a “raça preta”. Uma de suas preocupações era que o
Brasil virasse outro São Domingos, algo manifesto por outras elites senhoriais da época.101
Havendo contratado em meu Saladeiro, pelo tempo de cinco meses, trinta escravos do
Sr. Chaves, estes infelizes adquiriram por mim um certo carinho, talvez consequência
dos bons tratos que lhes dispensei e, ao devolvê-los a seu Amo ao final deste tempo,
alguns deles me suplicaram que os comprasse; porém, crendo que eles não pudessem
ser vendidos, me neguei às suas reiteradas e comoventes solicitações. Sem mais, Sr.
Alcaide, se passou desde então; no entanto, não há uma única semana na qual alguns
deles não venham à minha casa, movidos pelo mesmo intento; acrescente-se a isto,
todavia, as crueldades de que eram vítimas em seus sofrimentos, não somente pelos
castigos que devem infligir-lhes, como também pelo incessante trabalho; e
contrariando a disposição de nossas leis, não têm eles um momento próprio, nem
mesmo o Domingo – diziam alguns, acrescentando que à noite, os encerravam à
chave, o que se há provado pelas circunstâncias de suas fugas; e, para dar a última mão
a este quadro, asseguraram que seu Senhor os obriga a se converterem em verdugos de
seus próprios irmãos, seus companheiros de desgraça, açoitando-se reciprocamente
quando lhes cabia o castigo, até o enterro; pois que, nos últimos dias, deram
quatrocentos açoites em um companheiro, deixando-o por morto.102
Nieto informava ainda que pediu às autoridades que encontrassem um meio legal de
obrigar Chaves a alforriar os escravos. Neste ínterim, Chaves veio a falecer num naufrágio. 103 O
processo não teve desfecho e não se sabe do destino dos escravos, sendo possível que muitos
permaneceram com os herdeiros de Chaves. Também não há como saber se Nieto estava
exagerando nas denúncias. No entanto, a partir de outros indícios que tratarei a seguir, creio que
101
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 72-73). Para uma análise sobre a retórica do perigo do
haitianismo entre as elites brasileiras da época ver MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Revolta Escrava e
política da escravidão: Brasil e Cuba, 1791-1825. Revista de Índias, v. LXXI, n. 251, 2011m p. 20-52.
102
MONQUELAT, A. F. Charqueadores, Saladeristas y Esclavistas. Pelotas: UFPel, 2010, p. 32-33.
103
MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 32-33. Não foi a única vez que um charqueador pelotense, emigrado em
Montevidéu, deu problemas às autoridades uruguaias por conta de seus excessos no tratamento dos cativos. Em
1837, José P. de Sá Peixoto espancou um escravo de sua charqueada até a morte, fazendo com que cerca de 9 de
seus cativos fossem denunciá-lo para a polícia local (MONQUELAT, A. F. Op. cit., 38-39).
234
Chaves era para eles um mau senhor, ao contrário de Nieto. A partir de um acontecimento
ocorrido em 1821, na charqueada que Chaves possuía em Pelotas, é possível crer que não havia
invenção em nada do que Nieto relatou.
A partir deste caso é possível verificar algumas reclamações que lembram muito as dos
escravos de Chaves no Uruguai. O excesso de trabalho imposto aos escravos, a execução de
tarefas aos domingos, os castigos exagerados, a proibição das saídas noturnas, ou seja, uma
rígida disciplina combinada com uma exploração da mão de obra acima do suportável pelos
cativos. Isto fica evidente no juízo que os mesmos fizeram ao escolherem Nieto como um bom
senhor, dentro dos critérios que os próprios escravos possuíam. A forma como Chaves
governava sua escravaria extrapolou a senzala, tornando-se pública. De acordo com Saint-
Hilaire, “ele e sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem
tremer diante dos seus patrões”.105
Se Saint-Hilaire exagerou em suas colocações, outras fontes permitem supor que este
exagero não foi desmedido. Nas Memórias redigidas por Chaves, ele mesmo expõe a sua visão
sobre os escravos, fornecendo pistas sobre a gestão escravista que ele realizava. Sobre a
possibilidade de casamento e constituição de família entre os cativos, Chaves foi claro: “O
senhor não quer que o escravo case porque o incomoda com isso e acontece também não ter
fundos para comprar-lhe mulher, ao mesmo tempo que é inconciliável casá-lo fora de casa”. O
casamento, para Chaves, seria uma forma de atingir a “procriação tardia”, mas a mesma não era
economicamente vantajosa. Em sua opinião, os grandes fazendeiros conseguiam escravos
robustos por preço baixo e, portanto, não investiam da procriação, pois não “vale (segundo a
104
Processo-crime, n. 174, m. 07, Ano 1824, Tribunal do Júri, Porto Alegre, APERS.
105
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 119.
235
frase de muitos) a pena de cuidar de crianças”. Taxativo, Chaves conclui: “É certamente
claríssimo que a procriação desta classe [escrava] é em si mesma inoperável” e “se chegam a
consentir alguns casais, não prestam às ditas crianças os necessários socorros, pelo que morrem
à míngua”. 106 Sobre o tratamento das crianças, cabe aqui citar algo que chamou a atenção de
Saint Hilaire quanto esteve na casa de Chaves:
Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir
chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a prestar pequenos serviços
caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca
sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente,
martirizado pelos filhos do patrão.107
Sobre isto, Chaves esclareceu: “Um menino é desde seus primeiros dias acostumado a
horrorosos castigos feitos aos escravos (com que se encaminha à ferocidade) e palavras pouco
edificantes das suas famílias para com seus domésticos”. 108 Portanto, as opiniões que Chaves
possuía sobre os escravos convergiam com as afirmações de Saint Hilaire e as declarações do
saladeirista Nieto. Ainda sobre o tratamento dos cativos, Chaves afirmou com ênfase não
apenas a sua posição, mas, na opinião dele, a dos luso-brasileiros em geral: “nós tratamos mal
os escravos”, pois eles são nossos “inimigos internos” ou “inimigos domésticos”. Para Chaves,
a excessiva presença destes na população brasileira, algo que segundo ele chegava a ¾ do total,
era uma grave ameaça. Chaves complementou seu raciocínio dizendo “que enquanto não
melhorarmos em proporção de forças físicas, não podem nossas leis outorgar-lhes as
beneficências que sua desgraçada condição tão imperiosamente reclama”. Só quando a classe
livre ultrapassar a classe escrava em número de habitantes “que as leis podem conceder todos
os bens até concluir a sua emancipação”. Para comprovar suas ideias, ele cita o caso da Bahia
que “na imprudência de consentir entre si tão extraordinário número de escravos” vem
constituindo-se num grande foco de revoltas. Daí a necessidade de cessar com o tráfico, pois só
assim, dizia Chaves, “escaparemos ao iminente risco da desastrosa e tremenda catástrofe dos
franceses na Ilha de São Domingos”. 109
O que fica mais claro nos escritos de Chaves é que ele constituía-se em mais um entre os
muitos membros das elites escravistas no Brasil oitocentista atraídos pelas teses da economia
106
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 61. A ampla produção sobre a família escrava no Brasil
demonstra que Chaves estava completamente equivocado no que diz respeito aos demais senhores de grandes
plantéis. Ver, por exemplo, os clássicos FLORENTINO, Manolo; GOÉS, José R. A paz nas senzalas: famílias
escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro (c.1790 – c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997;
SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil.
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
107
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 119-120.
108
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 66.
109
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 62-63; 66; 71.
236
política. Adaptando as mesmas às singularidades brasileiras, ele buscou aplicá-las em seus
estabelecimentos combinando-as com uma rigorosa disciplina. Mas a tarefa era difícil. Na
opinião de Chaves, o emprego de uma racionalidade econômica por meio do uso do trabalho
escravo não era possível. Citando uma frase de Adam Smith, ele afirmava: “o escravo – diz um
economista – consome o mais que pode e trabalha o menos que pode”. Por sua “indigência
corporal e espiritual”, o escravo “jamais pode ter faculdades para dirigir bem o trabalho de que
é encarregado”. Seguindo esta lógica, creio que Chaves também devesse considerar que os
cativos não poderiam ter roças próprias, pois seriam incapazes de gerir as mesmas de forma
autônoma. Ainda sobre esta questão, Chaves afirmou: “Nada pode cooperar mais eficazmente
para os trabalhos produtivos de uma nação do que a subdivisão do mesmo trabalho” e, portanto,
o Brasil estava em condições desvantajosas, pois não poderia haver subdivisão do trabalho no
uso de mão de obra escrava. Por tudo isso, afirmava Chaves: “mais vale um casal de gente livre
do que mil negros cativos”.110
110
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 60-61; 69.
111
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Representando à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império
do Brasil sobre a escravatura. In: Obra política de José Bonifácio. Brasília: Senado Federal, 1973, p. 94-97.
112
GUEDES, Roberto. Autonomia escrava e (des) governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da primeira
metade do século XIX. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos
XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 247.
237
escravos, não via com bons olhos a família escrava e não permitia grandes espaços de
autonomia ao cativeiro. Entre tratar bem dos cativos para aproveitar melhor sua força de
trabalho ou explorá-los economicamente sem conter os exageros, Chaves aproximou-se mais do
segundo comportamento, impondo ritmos de trabalho excessivos aos seus escravos, sob
rigorosa disciplina e castigos em demasia.
Mas nem todos agiam desta forma. João Francisco Vieira Braga parece ter buscado
seguir um outro modelo de administração dos cativos. Filho de um rico comerciante, Vieira
Braga nasceu em Piratini-RS (1793), cresceu entre estancieiros e desde cedo acostumou-se com
o ambiente belicoso da fronteira. Na vida adulta dedicou-se ao comércio no porto de Rio
Grande e também possuiu uma charqueada, tendo, nas décadas de 1810 e 1820, fechado vários
contratos com o Estado, vendendo provisões para os exércitos estacionados na região, de onde
alavancou a sua riqueza. Neste ínterim, Vieira Braga comprou a Estância da Música, em
Piratini, quase fronteira com o Uruguai. No início da década de 1830, ele já não possuía mais a
sua charqueada, mas, além dos seus negócios, gastava boa parte do seu tempo administrando as
propriedades de sua mãe. Como permanecia residindo em Rio Grande, cerca de 150 km distante
da propriedade que comprara, Vieira Braga remetia instruções ao seu capataz de como deveria
administrar o estabelecimento. São estas instruções, escritas em 1832, que utilizarei para
analisar a forma como este senhor governava a sua escravaria. 113
113
“Instruções para o Sr. João Fernandes da Silva, capataz da Estância da Música, escritas por João Francisco
Vieira Braga, 20.07.1832”. In: CÉSAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música:
Administração de um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre/ Caxias do Sul: EST/IEL, 1978. Os dados
biográficos sobre Vieira Braga foram reunidos na mesma publicação.
114
Os postos eram localizados nos limites da estância e estavam providos de casas de moradia, mangueiras e outras
benfeitorias, onde o proprietário colocava um “posteiro” para lhe reparar o gado e as benfeitorias (CÉSAR,
Guilhermino. Op. cit., p. 39).
115
Os escravos também eram empregados no plantio de outros ramos. Uma das ordens de Vieira Braga dizia:
“Plantar-se também muitos pessegueiros, alamos, vimes e salsos, para que venha a haver lenha com fartura, e
aumentar-se o arvoredo de Espinhos na quinta” (Instruções ao capataz..., p. 40).
238
deverá ser feita por um deles, para que cada um [não] se veja na necessidade de ir fazer, do que
resultaria perda de serviço, e andarem mal comidos”. Para complementar a dieta e estimular os
escravos a produzirem, ele permitia que os mesmos possuíssem roças próprias e criassem
animais: “Os escravos podem plantar e criar galinhas tendo milho para as sustentar”. 116
Outra preocupação de Vieira Braga dizia respeito à saúde física e espiritual dos cativos.
Sobre o primeiro, ele recomendou ao capataz “prestar todo o bom tratamento aos escravos e
muito especialmente nas ocasiões em que estejam doentes”. Para isto, disse que o seu afilhado
iria entregá-lo um papel de como se fazer alguns remédios. Com relação ao segundo, Vieira
Braga mandou que ele fizesse “os negros rezarem o terço todas as noites e ensinar a doutrina
aos que a não souberem”. Por fim, ele concedia certas “regalias” aos cativos, mas sempre
pensando em economizar as rendas da estância: “Dar mensalmente aos escravos três palmos de
fumo em quanto o houver no rolo que deixei, pois não se deve comprar pelo alto preço que se
vende. Em dias de muito frio e chuva também se lhes dará um ponche de água quente com
aguardente e açúcar”.118
116
Instruções ao capataz..., p. 42-43.
117
Instruções ao capataz..., p. 46.
118
Instruções ao capataz..., p. 43-46.
239
As Instruções constituem-se num documento com características diferentes, por
exemplo, dos conhecidos Manuais escravistas. Sua intenção não era “educar” os senhores a
realizarem uma boa gestão administrativa do plantel. Nesse sentido, as Instruções revelam mais
uma preocupação da prática cotidiana do que com uma teoria do governo dos escravos, por
exemplo. 119 A análise de outros dois documentos envolvendo a escravaria de Vieira Braga pode
ajudar a compreender melhor a forma como ele governava os seus cativos. No inventário de sua
mãe, e no qual ele era o testamenteiro e inventariante, fica nítida a gestão que ele exercia sobre
os negócios da família.120 Na avaliação do patrimônio, ocorrido em 1847, foram arrolados 136
escravos – o terceiro maior plantel inventariado em Pelotas entre 1800 e 1850. O que deve ser
destacado de início é o grande equilíbrio entre homens e mulheres se comparado aos plantéis
dos grandes escravistas estudados no capítulo anterior. Os 19 inventários (14 de charqueadores
e 5 de estancieiros) que detinham plantéis com 50 cativos ou mais somavam 1.612 escravos,
sendo 1.234 homens. Estes números evidenciam uma razão de sexo de 327 homens para cada
100 mulheres. Este índice elevado de Pelotas deve-se ao caráter fabril das charqueadas, onde os
proprietários adquiriam cativos quase que exclusivamente para os trabalhos nos galpões de
charquear, como já foi dito. Ao se analisar somente os plantéis dos 14 charqueadores do grupo
mencionado, a razão de sexo aumenta de 327 para 403.121
119
Para uma análise destes manuais ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente:
Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas (1660-1860). São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
120
Inventário de Maria Angélica Barbosa, n. 286, m. 20, Ano 1847, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria –
APERS. Trabalhando com as dezenas de cartas trocadas entre Vieira Braga e seus familiares, Karl Monsma
considerou o mesmo (MONSMA, Karl. Repensando a escolha racional e a teoria da agência: fazendeiros de gado e
capatazes no século XIX. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, 2000, p. 83-113).
121
Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS).
240
Conforme Manolo Florentino, os inventários não são as melhores fontes para localizar
as famílias escravas122, mas cruzando o número de homens com o de mulheres adultas verifica-
se um nítido equilíbrio entre os sexos. Entre os homens, tem-se 36 adultos com 18 anos ou mais
(sendo 23 africanos) e com uma média de idade de 41,5 anos. Entre as mulheres, verifica-se 34
adultas com 16 anos ou mais (sendo 14 africanas) e uma média de idade de 33,9 anos. Com 15
anos ou menos, verificou-se 35 escravos (média de 7,4 anos), sendo que somente 2 meninos de
12 anos não eram filhos de escravas do plantel. Portanto, acredito que existiam muitos casais
nas senzalas administradas por Vieira Braga e que, além da vontade dos cativos em formarem
estas famílias, também devia haver um incentivo e empenho por parte do senhor para tal fim,
podendo o mesmo comprar algumas escravas visando o equilíbrio de sexo na senzala. 123
Além do mais, é possível que Rosa Camundá e Florinda, assim como o campeiro
Matheus, fossem especiais aos olhos da família Vieira Braga, o que lhe fez aceitar a oferta da
preta forra. Com relação a esta hierarquia no interior da senzala, ainda é possível fazer outra
referência a partir do inventário. Dos 136 escravos elencados, somente um cativo foi libertado
no testamento passado pela falecida mãe de Vieira Braga. Era a escrava Clara, de cor parda e de
122
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 55.
123
Para uma análise da família escrava em Pelotas e, em particular, deste mesmo plantel ver PINTO, Natália
Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas (1830-1850).
Dissertação de Mestrado. Unisinos, 2012.
124
Livro de Registros Diversos, 2º Tabelionato, Pelotas, 1852, Livro 4, p. 12v.
125
Livro de Registros Diversos, 2º Tabelionato, Pelotas, 1852, Livro 5, p. 32v.
241
35 anos. Das 66 mulheres, Clara foi uma das duas únicas cativas descritas como de “serviço
doméstico”. Portanto, Clara havia recebido a liberdade de sua senhora provavelmente por
serviços prestados ao longo de sua vida e por estar presente em sua casa, muito próxima,
cuidando-a. O mais interessante é que a outra escrava de “serviço doméstico” era a filha de
Clara, aliás, a única filha da cativa, chamada Arminda, parda, de 17 anos. Penso que isto
demonstre que o serviço doméstico realizado por Clara sustentava-se numa relação de plena
confiança da senhora para com a cativa, confiança e lealdade que estava sendo passada para a
filha da cativa por meio de sua própria mãe.
Com tudo o que foi descrito sobre a forma como Vieira Braga governava seus cativos e
os de sua mãe é possível verificar uma administração bastante diversa da analisada no caso de
Chaves. Enquanto este charqueador não oferecia um bom tratamento aos seus escravos adultos
e crianças, exagerava nos castigos, cerceava sua autonomia, inviabilizando a formação de
famílias, Vieira Braga permitia aos seus escravos possuírem roças próprias e criarem animais,
dedicava grande importância à alimentação, às vestimentas e ao cuidado da saúde dos escravos.
Além disso, ele também encorajou a formação de famílias e estimulou a hierarquia entre os
cativos, premiando-os com distinções no uso de roupas, com cartas de alforrias e com
ocupações distintas, como a de escrava doméstica. Uma outra notável medida foi encaminhar os
cativos na prática da religião católica, buscando consolidar a harmonia na senzala. Além de
estar cumprindo as suas obrigações para com a legislação eclesiástica.126
Um outro bom exemplo envolve o charqueador José da Costa Santos. Nascido no Rio de
Janeiro, ele estabeleceu-se com sua charqueada em Pelotas, na Fazenda São Lourenço,
localizada mais ao norte do município. Numa carta escrita por ele ao amigo Vieira Braga (o
mesmo proprietário analisado acima), Santos relatou um episódio ocorrido em sua charqueada.
O seu capataz, crendo que um dos escravos havia roubado três bexigas de graxa do
estabelecimento, o espancou tão violentamente que o mesmo veio a morrer dias depois.
Indignado, Costa Santos escreveu: “foi forte crueldade dar em um escravo velho por valor de 3
bexigas de graxa que não eram suas e sim minhas e depois não mandar tratar deste infeliz que
tanto trabalhou para esta casa (…) e tendo morrido 12 escravos nesta casa não tenho sentido
126
Conforme as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, “os pais, mestres, amos e senhores” tinham o
dever de “ensinar ou fazer ensinar a doutrina cristã aos filhos, discípulos, criados e escravos”. Ver: VIDE,
Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, 2007, Livro 1,
Título 2 (II), pp. 2-3. Com relação a este aspecto ver também GENOVESE, Eugene. Op. cit.; HAMEISTER,
Martha D. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias familiares a partir dos registros batismais da
Vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado em História, UFRJ, 2006.
242
como este pelo triste modo com que fez este maldito dar fim a seus dias”. 127 A partir da leitura
do seu testamento, escrito 5 anos depois, fica evidente que o charqueador estava sendo sincero:
Determino que se digam duas capelas de missas pela alma de meu Pai, duas capelas
pelas de meus irmãos e irmãs, duas capelas pelas do Purgatório, uma capela pelas dos
meus escravos falecidos, uma capela pelas de todos os cativos, uma por tenção de
minha mãe e uma por tenção de meus escravos vivos (…) Deixo libertos desde o dia
do meu falecimento os meus escravos Domingos Velho, João Romão, Joaquim das
Ovelhas, Francisco Monjolo e sua mulher, Antônio casado com a preta Joana, e
Antônio Velho, marinheiro. Desde o dia em que ficar desempenhada a minha fazenda
do que atualmente deve, ficarão forros os escravos seguintes: o pardo Isidoro Santana,
Anastácio e sua mulher, Maria Caffe, Antônio Campeiro, o pardo Agostinho: além
destes ficarão forros mais dez escravos dos mais velhos da fazenda.128
Portanto, no juízo dos escravos, Costa Santos devia ser um senhor muito melhor do que
Chaves. A preocupação dele com a vida religiosa dos cativos, algo que Vieira Braga também
compartilhava, merece ser destacada. No capítulo 3, mencionei que o mesmo Costa Santos
requisitou às autoridades religiosas do Rio o direito de possuir um oratório privado em sua
propriedade. O desejo do charqueador era de que pudessem ouvir as missas, além de sua esposa
e suas filhas, “os seus parentes, consanguíneos ou afins, familiares e criados, que juntamente
com eles habitarem nas mesmas casas, como também seus hóspedes nobres, com declaração
que os ditos parentes, familiares e hóspedes nobres, somente estando presentes à celebração do
Santo Sacrifício da Missa os mencionados impetrantes”.129 Certamente, o oratório serviria para
casar seus escravos e batizar os seus filhos. Estudando os plantéis de escravos em Pelotas, entre
1830 e 1850, Natália Pinto verificou a importância dos sacramentos católicos na vida dos
escravos e senhores. Dentre as contribuições de sua pesquisa, menciono o papel do batismo e
do compadrio entre os cativos dos charqueadores, cuja autora analisou de forma mais
aprofundada. Selecionando o plantel de dois grandes charqueadores do período, os
comendadores João Simões Lopes e Boaventura Rodrigues Barcellos, Pinto percebeu como
alguns escravos constituíam-se em padrinhos e madrinhas de prestígio, concentrando um
grande número de afilhados.130
O crioulo José, por exemplo, batizou 12 africanos adultos e uma criança crioula, filha
legítima de um casal de africanos. Conforme Pinto, ele era o escravo mais antigo da senzala de
Simões Lopes. “Quiçá ele fosse elemento importante no processo de socialização dos escravos
127
José da Costa Santos a João F. Vieira Braga, 05.08.1822, BRG, Lata 25 apud MONSMA, Karl. Escravidão nas
estâncias do Rio Grande do Sul: estratégias de dominação e de resistência. In: Anais do V Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 4.
128
Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes, 1827 (APERS).
129
Requerimento de oratório privado de José da Costa Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394. Cúria do Rio
de Janeiro.
130
PINTO, Natália. Op. cit.
243
adultos recém-chegados na propriedade, ensinando-lhes os ditames e as normas do rotineiro
trabalho nas charqueadas”. Além disso, ele deveria ser um “importante conector entre o mundo
dos escravos e o mundo senhorial, podendo apaziguar os possíveis conflitos e tensões existentes
dentro da comunidade escrava”, negociando “por direitos ou costumes que, possivelmente
trouxessem mais ‘sossego’ ao mundo senzalesco”.131 Segundo a autora, “os escravos também
procuravam estreitar laços de compadrio com pessoas livres, e algumas dessas eram familiares
de seus proprietários”. No caso de Boaventura Barcellos, dois de seus escravos foram batizados
por um casal de filhos seus. Neste sentido:
131
Neste sentido, Pinto também analisou o papel da preta mina Delfina, madrinha-rainha no interior do plantel do
charqueador Boaventura Barcellos. “Pensando, principalmente no caso do apadrinhamento feito pela africana
Delfina, com seus parceiros étnicos, talvez indique que ela fosse uma conexão ou uma ponte de ligação, capaz de
unir em torno de si os africanos recém-chegados, organizando as relações e a convivência social dentro da senzala,
talvez reproduzindo padrões culturais em comum com o novo grupo de parceiros inseridos na comunidade escrava,
e evitando dissabores e rusgas no mundo da senzala do comendador Boaventura” (PINTO, 2012, p. 127-128).
132
PINTO, Natália. Op. cit., p. 131-134.
133
PINTO, Natália. Op. cit., p. 131-134.
244
outro era construída na relação dos charqueadores com os escravos. Conforme Carlos
Engemann “tanto a comunidade modelava o senhor, quanto o senhor definia a comunidade,
ainda que o fizessem em graus e intensidades diferentes”. 134
Estudando as teorias de gestão escravista entre os séculos XVII e XIX, Rafael Marquese
dedicou um espaço importante ao Manual do agricultor brasileiro, cuja primeira edição, escrita
por Carlos Taunay, datava de 1839.135 Neste sentido, é possível verificar nos escritos de Taunay
elementos característicos tanto da forma como Chaves administrava a sua escravaria, quanto da
forma como Costa Santos e Vieira Braga o faziam, e que deviam ser comuns a outros senhores
de grandes plantéis espalhados pelo Brasil. As semelhanças com Chaves se iniciam na não
aceitação do que Rafael Marquese chamou de “tese do bem positivo”, ou seja, a ideia de que a
instituição escravista era essencialmente benéfica para os africanos. Para Taunay, o cativeiro
representava uma “violação do direito natural”. Mas mesmo assim, ele defendia a escravidão,
devido a sua importância econômica para o Império. Embora Chaves não defendesse a
escravidão de forma tão nítida, ambos eram contrários a uma abolição abrupta, pois a mesma
poderia acarretar num novo São Domingos. Outro ponto de contato entre ambos era a
consideração da inferioridade racial do negro. Este era como um adolescente branco, incapaz de
atingir uma maturidade necessária para seu auto-governo.136
Concordando com Adam Smith, como Chaves já o fizera, Taunay considerava que os
negros eram inimigos de toda ocupação regular e trabalho. Para que os objetivos do senhor
fossem alcançados era necessário sujeitar os escravos a uma rigorosa disciplina e mostrar-lhes o
castigo inevitável. “Coação e medo, portanto, conformavam o eixo da administração dos
escravos no entender de Taunay, pois só assim seria possível forcejar os cativos a cumprirem as
determinações laborais do senhor”. Daí Taunay defender uma “vigilância de todos os
momentos”, uma “disciplina semelhante à militar” e “feitores que não o percam de vista um só
minuto”. O meio de se obter a coação e se interiorizar o medo seria a aplicação dos castigos à
vista de toda a escravatura, com a finalidade de ensinar e intimidar os demais negros. Mas
fazendo uma ressalva que se distanciava de Chaves, ele defendia que o excesso de castigo e sua
repetição embrutecia o cativo ao invés de corrigi-lo. Portanto, o senhor deveria ser justo e os
castigos deveriam ser moderados e variados de acordo com a culpa. 137
134
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 149.
135
MARQUESE, Rafael. Op. cit.
136
MARQUESE, Rafael. Paternalismo e governo dos escravos nas sociedades escravistas oitocentistas: Brasil,
Cuba e Estados Unidos. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo
Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003, p. 123-124.
137
MARQUESE, Rafael. Op. cit., 2003, p. 124-125.
245
Conforme Marquese, Taunay reconhecia que o nível de tensão na propriedade se
elevaria a patamares alarmantes caso o senhor fundamentasse seu governo somente na coação e
no medo. Como o cativo era visto como um homem-criança, daí a necessidade de conjugar a
disciplina com o paternalismo e a orientação católica. E é neste ponto que Taunay começa a se
afastar de Chaves e se aproximar de Vieira Braga. Segundo Taunay, um dos principais fatores
para evitar a tensão nas senzalas era “inculcar nos negros a doutrina do catolicismo romano”.
Esta era a melhor forma para conservar a obediência ao senhor, boa ordem e subordinação. O
objetivo da direção religiosa e moral dos escravos era deixá-los parecidos com as propriedades
inacianas do século XVIII.138 Demonstrei anteriormente que Vieira Braga também insistia em
incutir o catolicismo entre os escravos, ao contrário de Chaves, que não guardava nem os
domingos aos cativos.
Para Taunay, saber dosar o paternalismo com a disciplina era a chave da gestão
escravista. A obrigação do catolicismo dominical seria compensada com a liberdade para a
realização dos seus folguedos africanos após o jantar. Nesta ocasião, o senhor deveria atribuir a
cachaça entre os cativos, pois a comunicação dos escravos com as tavernas de beira de estrada
deveria ser rigorosamente proibida, sob pena de severos castigos. Como demonstrei
anteriormente, Vieira Braga também distribuía fumo e ponche com aguardente aos seus
escravos e os cativos que andassem embriagados à noite também deveriam ser punidos. Outro
138
Idem, p. 125.
139
Idem, p. 125-126.
246
ponto de convergência entre o Manual de Taunay e a administração de Vieira Braga diz
respeito à concessão de alforrias para as escravas que contribuíssem com o aumento do plantel
de seu senhor. Taunay aconselhava que as cativas que dessem ao senhor 6 filhos ou mais
deveriam ser libertadas tanto por terem fornecido um grande número de rebentos ao seu senhor,
como para servirem de exemplo às outras companheiras de cativeiro.
Além disso, Vieira Braga demonstrou ser muito diligente com as finanças da estância e
não poupar esforços para defender sua propriedade. Nas instruções ao seu capataz, ele ordenou
não permitir em hipótese alguma que alguém se arranchasse nos campos dele ou tentasse medir
suas terras sem seu consentimento. Com relações aos animais, se alguém lhe roubasse algum
gado era para chamar o filho do Sr. Garcez para “fazer-se tudo o mais que for necessário contra
o ladrão”.140 Portanto, os escritos de Taunay convergiam bastante com as práticas de Vieira
Braga, mesmo porque ele também imprimia certa disciplina aos seus cativos, como as
entrelinhas das fontes que examinei indicam. Neste sentido, o “Manual do Agricultor”, redigido
no final da década de 1830, reproduzia práticas de administração escrava mais antigas e que
deviam ser compartilhadas por grandes senhores em diferentes partes do Brasil (inclusive os
cafeicultores que Taunay conheceu). E acredito que foi a partir da observação destas práticas,
muitas delas certamente costumeiras e realizadas desde o período colonial, que Taunay,
agregando novas ideias características do século XIX, escreveu o seu manual.
Para finalizar o capítulo, gostaria de colocar uma outra questão. Havia uma forma mais
correta de se administrar uma grande escravaria? Seguindo padrões distintos de administração
dos escravos, tanto Vieira Braga, quanto Chaves e Costa Santos atingiram o topo da elite
econômica em Pelotas, revelando que era possível se obter sucesso tratando seus escravos de
formas distintas. No entanto, como explicar tamanha diferença entre os dois modelos de
administração dos escravos? Para além das individualidades dos seus senhores, creio ser
possível buscar elementos de outra ordem. O primeiro a ser apontado era a localidade das
propriedades de Chaves, Costa Santos e Vieira Braga. Enquanto a estância deste estava
localizada há muitos quilômetros do litoral, afastada de outras escravarias, e a charqueada de
Costa Santos também ficava numa grande estância no norte do município de Pelotas, a
charqueada de Chaves estava cravada no núcleo fabril do município, cercada por outras fábricas
que concentravam centenas de escravos.141
140
Instruções ao capataz..., p. 42-43.
141
E isto ajuda a compreender o temor de alguns senhores desta lcalidade com relação a uma revolta escrava no
início dos anos 1830 (ver capítulo 3).
247
Uma outra questão talvez mais importante era a atividade econômica em que os
escravos estavam empregados. A historiografia rio-grandense é enfática em afirmar que o
trabalho nas charqueadas era mais duro do que nas estâncias de criação. Mesmo que se possa
relativizar tal afirmação, creio que o tipo de atividade ajudasse a condicionar a forma do
governo dos escravos, mas não acredito numa determinação dada a priori. Talvez alguns
escravos fossem mais bem tratados na charqueada de José da Costa Santos do que na estância
de algum grande criador, por exemplo. Portanto, outros fatores também influíam sobre este
fenômeno. De acordo com Saint-Hilaire: “Já tenho declarado que nesta capitania os negros são
tratados com brandura e que os brancos com eles se familiarizam mais do que noutros lugares.
Isto é verdadeiro para os escravos das estâncias, que são poucos, mas não o é para os das
charqueadas que, sendo em grande número e cheios de vícios trazidos da capital, devem ser
tratados com mais rigor”.142 Talvez Saint-Hilaire se referisse aos africanos ou aos escravos
ladinos chegados de outras províncias, sobretudo da “capital” (Rio de Janeiro).143 Conforme
Libby, as Companhias mineradoras inglesas também não gostavam de comprar os escravos
vindos do Rio, preferindo os de Minas Gerais.144
142
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 114.
143
E de fato, pela alta razão de sexo e o elevado índice de africanidade, as charqueadas deveriam estar mais
conectadas ao tráfico atlântico do que as estâncias da fronteira.
144
LIBBY, Douglas. Op. cit.
145
MARCONDES, Renato Leite. Desigualdades regionais brasileiras: comércio marítimo e posse de cativos na
década de 1870. Tese de livre-docência. Ribeirão Preto, USP, 2005.
146
GUEDES, Roberto. Op. cit.
248
7. OS MERCADOS DO GADO, A EXPANSÃO AGRÁRIA NA
FRONTEIRA E A GUERRA COMO RECURSO ECONÔMICO
Toda a charqueada necessitava de muitas tropas de novilhos para tocar seus negócios,
mas nem todo o charqueador era um grande criador de gado. Com raras exceções, por maior
que fosse o rebanho de um charqueador, ele não era capaz de suprir nem 5% do número total de
reses abatidas em seu estabelecimento durante uma safra. Conforme Farinatti, a taxa de
reprodução anual do rebanho de um estancieiro da região da campanha devia chegar a 20%.
Mas como somente os machos eram vendidos para o abate nas charqueadas, cerca de 10% do
total das reses eram negociadas anualmente.1 O charqueador de Pelotas com o maior número de
cabeças de gado entre os seus bens possuía mais de 34 mil reses. Portanto, ele poderia abater
anualmente em sua charqueada cerca de 3.400 reses de seu próprio rebanho. Como um grande
charqueador abatia algo entre 20 e 25 mil novilhos numa safra2, ele podia compor de 13 a 17%
da matéria-prima animal a partir do custeio de suas próprias estâncias no Uruguai. Mas tal
situação foi única. Tendo em vista que o segundo charqueador com o maior rebanho
inventariado detinha 13 mil reses e a grande maioria dos mesmos ou não possuía animais de
criar ou era dono de pequenos rebanhos, como demonstrarei a seguir, pode-se concluir que mais
de 95% do gado abatido nas charqueadas era comprado de estancieiros e tropeiros de outras
regiões.3 Portanto, não se pode falar em autoabastecimento de novilhos para nenhum destes
empresários. Todos os charqueadores dependiam totalmente dos mercados de gado.
1
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil
(1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 148.
2
Correio Mercantil. Edição de 20.07.1875 (Biblioteca Pública de Pelotas).
3
Tratarei do tamanho dos rebanhos dos charqueadores a seguir.
4
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 92.
249
1864, o Presidente da Província declarou que o Rio Grande do Sul absorveu mais de 130 mil
reses do país vizinho.5 Portanto, tendo em vista estes números, fica evidente que o gado
uruguaio foi indispensável na manutenção dos altos índices de abate das charqueadas pelotenses
(Gráfico 7.1). É provável que sem as tropas vindas de Cerro Largo e Tacuarembó a economia
charqueadora não teria se desenvolvido da mesma forma, podendo estagnar-se muito cedo.
500.000
450.000
400.000
350.000
300.000
250.000
200.000
150.000
100.000
50.000
0
A análise do gráfico também possibilita perceber que apesar da leve diminuição (sempre
oscilante) dos ritmos de abate na década de 1870, é somente nos anos 1880 que a indústria
charqueadora viu-se numa profunda crise. Este problema será tratado ao longo deste capítulo e
do posterior. No momento interessa compreender melhor as relações dos ritmos de abate com o
mercado de gados. De acordo com o mapa numérico das estâncias da Província e animais que
possuem, contabilizados em 1858, o Rio Grande do Sul tinha cerca de 3,5 milhões de cabeças
de gado vacum distribuídas em 15 municípios. No entanto, este número era bem maior, visto
que nestes locais alguns distritos não tiveram seus rebanhos recenseados e outros 11 municípios
nem sequer remeteram as suas estatísticas para a Presidência da Província. Entre estes últimos,
havia importantes regiões de criação de gado como Uruguaiana, Caçapava, São Gabriel e Cruz
Alta, por exemplo.6 Portanto, não seria exagero considerar que havia mais de 5 milhões de reses
pastando nos campos da província. Apesar da taxa de reprodução dos rebanhos ser considerada
5
Relatório Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Espiridião Eloy de Barros, de 1864, p. 60.
6
Mapa numérico das estâncias… Fundo Estatística, maço 02, AHRS.
250
de 20% pela maioria dos especialistas, o número de animais que criam por ano realizado pelos
recenseadores foi calculado em 15%, o que resulta em 7,5% machos. Portanto, numa população
bovina de 5 milhões de reses, algo entre 375 e 500 mil novilhos estariam disponíveis para
serem negociados anualmente, dependendo da taxa de reprodução que se aceite.
Mas antes que se conclua qualquer questão a respeito destes dados, outros três
importantes fatores devem ser considerados. Primeiramente, conforme Alvarino Marques, foi
somente a partir da década de 1870 que os rebanhos da região norte do Rio Grande do Sul
começaram a ser remetidos para Pelotas. Antes disso, apenas os municípios ao sul do rio Ibicuí,
na região da campanha, e da região central da província, estavam inseridos no espaço
econômico pecuarista que abastecia as charqueadas pelotenses. Em segundo lugar, Pelotas não
era o único polo charqueador do sul da província. Os municípios de Jaguarão e Rio Grande
também recebiam grandes levas de gado. Em 1854 e 1855, por exemplo, as 9 charqueadas
existentes em Jaguarão abateram respectivamente 35.163 e 41.697 reses e as 7 fábricas em Rio
Grande abateram 15.100 e 14.000, nos mesmos anos.7
Terceiro, nem todo o gado criado no Rio Grande do Sul era remetido para as
charqueadas. No ano de 1874, por exemplo, a população pelotense teve 11.538 reses destinadas
para o seu próprio consumo. Na década de 1880, Pelotas e Rio Grande juntas consumiram
anualmente cerca de 30 mil reses. 8 Ora, os habitantes livres de ambas as cidades perfaziam
cerca de 10% da população provincial (realizando o mesmo cálculo com os escravos, o índice
era quase o mesmo). Se a taxa de consumo de carne bovina entre os habitantes dos demais
municípios da província acompanhava os mesmos ritmos destas duas localidades, seria possível
considerar que, na década de 1870, cerca de 200 mil reses foram abatidas anualmente para o
abastecimento da população provincial. Isto daria um consumo per capita de carne bovina em
torno de 90 a 100 kg por ano (calculando-se que uma rês poderia render 180 a 210 kg de carne
com osso).9 Trata-se de uma estimativa bastante plausível. Em 1861, o Uruguai inteiro, cuja
população aproximava-se da do Rio Grande do Sul, consumiu 293 mil reses. 10 Buenos Aires,
por exemplo, apresentou um índice de consumo per capita de 100 a 120 kg, na mesma década.
Com uma população 10 vezes maior que Pelotas, a capital argentina, em 1867, recebeu 468.909
7
MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 123; Ofício de 24.03.1856. Autoridades Municipais de Rio Grande, maço 215-
A. AHRS. A transcrição dos dados de Rio Grande foram gentilmente cedidos por Vinícius Oliveira.
8
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 100.
9
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1882], p. 119. Barran e Nahum dizem que em
Montevideu, na segunda metade do oitocentos, cada bovino podia render 161 kg de carne, osso e gorduras
(BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 162).
10
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 124.
251
ovinos e 578.000 vacuns para alimentação de seus moradores.11 Portanto, mesmo que o Rio
Grande do Sul consumisse menos de 200 mil reses anuais para o abastecimento das cidades, tais
números não podiam ser desconsiderados pelos administradores e charqueadores, pois era um
gado perdido na safra pelotense.12
Neste sentido, a dependência das charqueadas de Pelotas para com o gado criado no
Uruguai era um fator estrutural na economia regional, dependendo da entrada de tropas que
podiam somar mais de 100 mil reses por safra.13 O leitor pode não ter muita dimensão do que
significava este grande contingente de bovinos negociados anualmente nas charqueadas.
Apenas para uma comparação, em 1854 a província de São Paulo inteira possuía 532 fazendas
de criação com 35 mil cabeças de gado.14 No Paraná, por sua vez, havia quase 65 mil reses, em
1825.15 Isto demonstra que os saques, contrabandos e arreadas, cada vez mais comuns na
fronteira, não envolviam interesses econômicos de pouca monta. As dezenas de milhares de
bovinos roubados e contrabandeados traziam vultosos prejuízos aos proprietários, ajudando a
compreender a gravidade dos conflitos que se sucederam na fronteira e porque os estancieiros
incomodavam tanto o Império com tais assuntos. Alguns deles, como José Luís Martins,
declararam ter sofrido um saque de 40 mil reses de seus campos, ou seja, teriam perdido
rebanhos equivalentes aos totais de uma província brasileira!16
17
Para uma análise dos projetos que se sucederam ao processo de independência no Uruguai e também na sua
relação com o Império luso-brasileiro ver FREGA, Ana; ISLAS, Ariadna (Org.). Nuevas miradas en torno al
artiguismo. Montevidéu: Dpto. de Publicaciones de la FHCE, 2001; OSÓRIO, Helen. A revolução artiguista e o
Rio Grande do Sul: alguns entrelaçamentos. In: Cadernos do CHDD. Brasília, Ano 6, 2007, p. 3-32; MIRANDA,
Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São
Pedro (1808-1831). São Paulo: Editora Hucitec, 2009.
18
MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 55. Acompanhando os dados compilados por Marques é possível ver o
impacto desta entrada de animais na paisagem agrária rio-grandense. Se em 1787, a capitania contava com 651.619
reses em seus campos de criação, e em 1811 ela possuía cerca de 1.298 milhões, em 1822, por exemplo, este índice
havia mais que triplicado, chegando a 5 milhões.
253
Grande (1838-1851)19 foi maior que em qualquer outra época. Ao longo do mencionado
conflito, o preço das propriedades declinou, custando 0,60 centésimos de peso por hectare, o
que animou os compradores. Somadas às buscas de gado na época da Cisplatina, este avanço do
capital rio-grandense sobre as terras orientais arruinou a antiga classe latifundiária uruguaia ao
quase destruir a pecuária e a sua indústria saladeril. Em 1850, os brasileiros possuíam 428
estâncias no norte do Uruguai, do qual eram conhecidas as dimensões e o número de cabeças de
gado para 191 delas. Estas terras ocupavam uma superfície de 693 léguas quadradas com
914.000 cabeças de gado vacum. Zabiella estima, a partir de alguns cálculos e considerações, a
possibilidade de que cerca de 2 milhões de reses tenham existido ao mesmo tempo em todas
aquelas 428 estâncias pertencentes aos rio-grandenses. 20
Vejo senhores, que teneis uma idéia muito equivocada do poder e dos recursos do
Império. Vós creeis que ali na linha ou divisa material do Jaguarão vão encontrar um
povo completamente distinto do que se chama Império do Brasil, mas é preciso que
saibais que felizmente não é assim. Ao passar ao outro lado do Jaguarão, senhores, o
traje, o idioma, os costumes, as moedas, os pesos, as medidas, tudo, até a outra banda
do rio Negro, tudo, tudo, senhores, até a terra, é brasileira.21
19
A Guerra Grande (1838-1851) foi um conflito iniciado no Uruguai entre os partidários de Manuel Oribe e
Fructuoso Rivera e que, depois da queda do primeiro, tomou proporções transnacionais, envolvendo caudilhos das
províncias argentinas e autoridades políticas e militares platinas e brasileiras, encerrando-se com a intervenção do
Império brasileiro na região, em 1851.
20
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de
Extradição e de Limites. Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2002, p. 23-25.
21
ZABIELLA, Eliane. Op. cit. p. 25.
22
ZABIELLA, Eliane. Op. cit., p. 25-27.
23
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF,
Dissertação de Mestrado, 1983, p. 55.
254
sentido, pode-se dizer que, em meados do século, aquela região era praticamente um apêndice
econômico e social dos estancieiros rio-grandenses.24
30
25
20
15
10
5
0
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890
Escrituras Inventários
Os investimentos em imóveis rurais tinham uma região-alvo certa (Figura 7.1). Cerca de
2/3 das 106 referências encontradas e indicadas no Gráfico 1 (31 em inventários e 75 em
escrituras públicas) concentraram-se em quatro regiões localizadas exatamente na fronteira
24
SOUZA, Susana B. e PRADO, Fabrício. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX.
In: GRIJÓ, Luiz A.; KUHN, Fábio; GUAZZELLI, César A. B.; NEUMANN, Eduardo. Capítulos de história do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS, 2004.
25
Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) e Inventários de Pelotas (APERS).
26
Também é possível que outras compras tenham sido registradas nos cartórios dos respectivos municípios ou até
no país vizinho, mas não tive fôlego para realizar esta busca. No entanto, o cruzamento com os inventários post-
mortem ajudaram a sanar, em parte, este problema.
255
divisória entre os dois países: em Tacuarembó (27), Cerro Largo (15), Bagé (14) e Jaguarão
(14). No Uruguai, além dos Departamentos de Tacuarembó e Cerro Largo, também encontrei
referências em Salto (4), Paysandu (2), Montevidéu (2), Durazno (1) e outras duas com a
localização imprecisa. Percebe-se aqui que exatamente 50% das referências em inventários
post-mortem e escrituras públicas somadas tratavam-se de investimentos em propriedades rurais
no Uruguai. Ou seja, as terras do país vizinho concentraram os interesses diretos dos
charqueadores pelotenses que realizaram altos investimentos de capital nos mesmos.
Figura 7.1 – Mapa das regiões-alvo dos investimentos realizados pelos charqueadores em estâncias
e campos de criação fora de Pelotas (1810-1900)
Fonte: Inventários post-mortem de Pelotas, 1832-1900 (APERS). Escrituras públicas de compra venda,
1º, 2º, e o 3º Tabelionatos de Pelotas, 1832-1890 (APERS). Os círculos representam referências de
estâncias e campos tanto nos inventários quanto nas escrituras públicas. Os círculos pequenos
correspondem a 1 referência e os círculos grandes representam 10 referências.
Pode-se imaginar que a comercialização de animais vacuns durante a época das safras
das charqueadas tornava a região da campanha sul-rio-grandense um espaço de intenso tráfego
de tropas de gado. Os novilhos abatidos nas charqueadas pelotenses provinham não apenas das
estâncias rio-grandenses, como também das uruguaias, e podiam possuir três distintas origens:
as tropas de desconhecidos que chegavam até Pelotas por intermédio de agentes e negociantes
27
Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) – APERS. Como notou Stephen Bell, algumas
desta transações faziam parte de cobranças de dívidas de grandes fazendeiros para com os charqueadores, o que
não significa que não se constituíssem em altas inversões de capital. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a
brazilian ranching system, 1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998.
257
que as vendiam aos charqueadores; as tropas de criadores mais conhecidos que já possuíam
negócios pré-acordados com os charqueadores (que lhes adiantava dinheiro) e as tropas levadas
até o mercado/feira de gados de Pelotas (a tablada), onde eram compradas pelos próprios
charqueadores sem a presença de tantos intermediários.
Uma vez que a tablada parece ter se constituído em importante espaço de compra e
venda de gados somente nos anos 1870, analisarei ela por último. Antes disso, comumente os
charqueadores adiantavam dinheiro aos seus agentes que partiam para o interior da província ou
cruzavam a fronteira para comprar tropas de gado dos grandes estancieiros, trazendo as mesmas
para as charqueadas durante a época das safras. Mas o contrário também ocorria. Grandes
estancieiros podiam ter parentes e agentes envolvidos com a formação de tropas para remete-las
à Pelotas, tornando este mercado repleto de intermediários. Um processo judicial traz ricos
detalhes sobre estas transações. Em dezembro de 1874, os charqueadores Gonçalves & Lúcio,
por intermédio de um agente, Francisco S. da R. Formiga, compraram uma tropa de novilhos do
capitão Pedro Luís Osório, estancieiro em Bagé. Tendo fechado o negócio, Osório ordenou que
seu capataz, José R. de Almeida, acompanhasse o agente até a sua invernada no Candiotinha “a
fim de entregar àquele Formiga as reses gordas da propriedade do autor e que ele apartasse e
quisesse comprar, a preço de trinta e dois mil réis cada novilho”. Formiga escolheu 115 reses e
o capataz levou-os até Pelotas. Segundo o estancieiro, “não querendo sofrer o risco de perda do
dinheiro conduzido pelo capataz”, disse aos charqueadores que “aceitava uma ordem contra
estes por toda a importância da compra do gado para ser paga na cidade de Pelotas e que neste
sentido escreveu particularmente” aos mesmos. Recebendo a ordem, os charqueadores
negaram-se a pagar, atitude que fez Osório entrar na Justiça contra ambos. 28
Mas a história era muito mais complexa. A partir da leitura das muitas cartas anexadas
ao processo verifica-se que Formiga não era “mandatário” dos charqueadores. Como tropeiro,
ele comprava gados para revender nas charqueadas oferecendo-os a mais de um charqueador.
Tendo fechado um negócio com alguns criadores, ele escreveu para Gonçalves & Lúcio
oferecendo as tropas. Os charqueadores não quiseram. Formiga voltou a insistir, “dizendo que
não queria passar por conversador perante os fazendeiros, pois já tinha os gados tratados e
contava conduzi-los” para as charqueadas. Gonçalves & Lúcio aceitaram, mas exigiram que as
tropas deveriam ser “de gado bem gordo”, “por preço nunca mais de 32$000 cada um novilho”
e que se viessem em tais condições “lhe pagariam a comissão que é de praxe”. Os
charqueadores complementaram: “como é também de praxe fornecer adiantamento de quantias
28
Ordinária de Pedro Osório contra Gonçalves & Lúcio, 1177, m. 42, 1º cartório do cível, Pelotas, 1875 (APERS).
258
por conta das tropas”, mas “receando remetê-las pela diligência, autorizaram a Formiga a sacar
contra eles (…) por intermédio de Manoel Soares da Silva de Bagé, ao qual também pediu que
auxiliasse Formiga nos saques, a fim de que a tropa saísse maior, e que esses saques seriam
religiosamente pagos”. Mas o tropeiro não teria cumprido o trato, trazendo novilhos magros
para a charqueada. Formiga ainda pediu aos charqueadores que cobrissem as despesas do seu
capataz e dos seus peões (que ele chamava de “minha gente”) e numa carta escrita por ele aos
mesmos charqueadores disse que se a sua comissão não fosse de 4$000 por cabeça de gado, ele
poderia levar a tropa para outro charqueador.29
Não foi raro localizar contendas judiciais semelhantes a esta. Em janeiro de 1854, por
exemplo, João Vinhas cobrou a senhora Adriana de Carvalho o valor de 1:634$463 referente ao
dinheiro que lhe entregou para ser pago em gados.30 Em junho de 1857, o mesmo Vinhas,
juntamente com o charqueador José Antônio Moreira, acionou a Justiça para cobrar o valor de
16:000$ referente aos adiantamentos que deram a Joaquim Manoel Teixeira para que lhes
comprassem tropas de gado no Uruguai, o que o réu não fez. 31 Charqueadores e comerciantes
seguidamente associavam-se para comprar tropas ou abater reses em estabelecimentos de
terceiros. Estas parcerias não eram registradas em cartório e apenas são possíveis de se perceber
nas entrelinhas de processos judiciais e recibos anexos em inventários. Tais parcerias e
sociedades tinham prazos curtos, sendo dissolvidas em uma ou duas safras, podendo ser
restabelecidas em outras. O motivo das mesmas era reunir o capital necessário num
empreendimento momentâneo, além de diminuir os prejuízos num negócio mal sucedido com
tropeiros e estancieiros. É provável que muitas das dívidas ativas encontradas em inventários
post-mortem de charqueadores também fosse fruto de negócios envolvendo gado com agentes e
criadores, mas não é possível saber com precisão, visto que a origem das dívidas dificilmente
eram discriminadas.
29
Ordinária de Pedro Osório contra Gonçalves & Lúcio, 1177, m. 42, 1º cartório do cível, Pelotas, 1875 (APERS).
30
Ordinária de João Vinhas contra Adriana de Carvalho, 1011, m. 36, 1º cartório do cível, Pelotas, 1854 (APERS).
31
Ação Ordinária de João Vinhas e José A. Moreira contra Joaquim M. Teixeira, n. 1028, m. 36A, 1º cartório do
cível, Pelotas, 1857 (APERS).
259
lógica de mercado sugerisse que os melhores rebanhos ficassem com quem pagasse mais, na
prática, os criadores que recebiam adiantamentos tinham compromissos com os charqueadores
credores ou seus agentes e, como demonstrarei a seguir, outros vínculos de dependência
acabavam afetando as transações. E terceiro, os negociantes e criadores podiam trocar de
parceiros comerciais ano a ano, tornando o processo de abastecimento de gado ainda mais
instável. Numa ação judicial estudada por Farinatti foi possível verificar que o estancieiro
Manoel José de Carvalho remetia seus gados tanto para Montevidéu, quanto para Pelotas e
Triunfo, ou seja, ele diversificava as suas transações e devia direcioná-las ao sabor dos valores
pagos em cada praça ou das vantagens garantidas por cada charqueador. No caso de Carvalho, o
charqueador pelotense Manoel Batista Teixeira lhe adiantava quantias em dinheiro,
condicionando o criador de gado a comprometer-se com ele na safra seguinte.32
A solução para contornar estes problemas seria diminuir os riscos e tornar todo o
processo o mais seguro possível. Uma safra que se iniciasse com problemas no abastecimento
de gado dificilmente gerava bons lucros. Na cabeça dos charqueadores a melhor forma de
resolver este problema era colocar os seus próprios parentes para tomarem conta destes
negócios. Durante a safra, o charqueador permanecia muito tempo ocupado no trabalho da
charqueada, no fretamento de seus iates e na cidade fechando negócios, para realizar longas
viagens até a região da campanha com o fim de escolher os melhores animais. Neste sentido, é
muito comum encontrar irmãos, sogros, filhos ou genros de charqueadores estabelecidos com
estâncias na fronteira, as vezes administrando as próprias terras do charqueador, as vezes com
seus próprios estabelecimentos pecuários.33 Em dezembro de 1845, o capitão João Jacintho de
Mendonça, charqueador em Pelotas, escreveu uma longa carta ao compadre que administrava a
sua estância no Uruguai. É necessário ler os seus principais trechos, pois eles sintetizam todo o
processo mencionado:
O portador desta é o capataz de campo da charqueada Don Meceno, que segue a essa
com João Benguela e João para ser capataz da tropa que Vossa Mercê deverá fazer na
Estância apartando tourada velha, novilhos e vacas para que seja de mil reses para
cima. Eu quero de pronto aliviar o campo, e não é possível que tive só gado meu
deixando o alheio, por isso deveria Vossa Mercê entender-se com os vizinhos para que
venha todo o gado que houver deles a quem pagarei e aparte todas as marcas que
houverem nos rodeios conhecidos e desconhecidos fazendo uma relação de todas de
que deve deixar nota no Livro da Estância para eu depois justar contas com os donos, e
dos vizinhos que não tiverem encontro [dará] o dinheiro pelas pessoas a quem eles
encarregarem (…). Vossa Mercê justará pelo preço que os mais compram e quando aí
32
FARINATTI, Luís A. Op. cit.
33
Tal fenômeno também ocorreu em outros espaços geo-econômicos do Brasil, como, por exemplo, a presença de
lavradores de cana ao redor dos engenhos de propriedades de seus parentes. Ver, por exemplo, FRAGOSO, João.
Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro,
século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topói, v. 11, n. 21, 2010, p. 74-106.
260
mesmo queiram o dinheiro, aqui o mandará buscar, e se o quiserem no Rio Grande ou
em Pelotas, também lá o mandarei dar (…). Mande-me a conta do gado que aí houver
de Agapito para eu poder lhe pagar o dinheiro do gado que veio nesta tropa lho mandei
por José Antônio a Agapito e outros de quem ele foi Procurador, e até de Joaquim das
Pedras que tem de medir o arrendamento do campo.
A gente que leva o Meceno e a que aí houver podem em quatro ou cinco dias domar
porção de potros ainda que inteiros para os rodeios e fazer depois o serviço da
marcação que deve continuar logo que saia a tropa com a gente da Estância e a mais
que Vossa Mercê juntar e for precisa, assim como os posteiros e todos os vizinhos que
queiram vender seus novilhos e vacas de seus campos.
Rigoroso em suas contas, o charqueador alertava o compadre para que tivesse o mesmo
cuidado:
O seu gado, do Mendonça, e finado José Thomas deverão daí sair registrados e
contados assim como todo o mais gado que vier. José Antônio diz que tinha contado a
tropa no dia da chegada que era de setecentos e oitenta e quatro, destas faltam três
reses não sei se ele se enganou ou se elas fugiram do pastoreio. Não deixe Vossa
Mercê de contar aí a tropa que o mesmo farei eu aqui. (…) Sobre marcação, Vossa
Mercê fará o que lhe parecer justo assim como a de meus filhos, pois se eu me
pretendesse regular pelas marcações que faria de cinco mil e trezentas reses, mais de
trinta mil reses deveria eu ter na Estância.
34
Sobre esta utilização familiar das pastagens e estâncias na região da campanha ver FARINATTI, Luís A. Op. cit.
261
Eu por estes dez dias pretendo mandar outro capataz para fazer outra tropa na Estância
e nos vizinhos e muito lhe recomendo a brevidade desta tropa que vai conduzir o
Meceno para aprontar o carregamento para o iate do Viralolo que em breve espero
com a Florinda e talvez suas filhas a acompanhem terá Vossa Mercê o prazer de as ver
aqui (…) Junto tem carta de suas filhas que estão boas (…) De seu compadre e amigo
João Jacintho de Mendonça.35
36
Inventário de João Jacintho de Mendonça. Processo n. 41, maço n.1, Ano 1862, 2º Cartório do Cível de Pelotas
(APERS). Este entrelaçamento entre parentesco e negócios, comum às sociedades agrárias e pré-industriais,
possuía raízes socioculturais antigas entre as elites da região. Ver, por exemplo, HAMEISTER, Martha D. Para
dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila
do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho:
tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009.
37
Carte de Heleodoro de A. Souza para Boaventura R. Barcello. Fazenda do Palheiro, 06.01.1855. Registros
Diversos de Pelotas, Livro n. 5, Pelotas (APERS).
38
REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Caxias/Poa: UCS/ Martins Livreiro, 1981, p. 19.
39
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História
UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009.
263
de fazendas na fronteira onde estabeleciam-se como grandes compradores de tropas por
intermédio de filhos, irmão, compadres ou genros.
Neste processo de formação das tropas, além dos agregados e pequenos criadores, até
mesmo os escravos campeiros podiam colocar suas poucas reses no mercado. Pesquisando a
escravidão na pecuária da campanha rio-grandense, Marcelo Matheus localizou um recibo de
venda de uma tropa de gados no inventário post-mortem de um estancieiro.43 O documento lista
40
SACCOL, Tassiana P. Um propagandista da República: Política, letras e família na trajetória de Joaquim
Francisco de Assis Brasil (década de 1880). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2013, p. 63.
41
FARINATTI, Luís A. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as
estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: Ed. da UFSM/Anpuh-RS, 2010.
42
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 59-68.
43
O comprador das tropas era o capitão Antônio de Castro Antiqueira, filho do charqueador Domingos de Castro
Antiqueira, o visconde de Jaguari. Este havia falecido em 1852, quando já não fabricava mais charque, arrendando
264
10 criadores que colocaram seus animais para formar a tropa. Entre os mesmos estavam os
escravos Domingos e Manoel Mulato, com 8 e 5 animais respectivamente, a “afilhada” do
senhor, que colocou 3 novilhos, e outros parentes. Cada um deles possuía a sua própria marca
de gado registrada no documento.44 Além de comporem a maior parte dos proprietários da
região da campanha45, a participação de agregados, médios e pequenos criadores era
fundamental na formação das tropas de gado. Pesquisando o mesmo mercado de gado em
Buenos Aires durante o colonial tardio, Juan C. Garavaglia notou que a maior parte dos
rebanhos que chegavam nos 3 grandes currais da capital pertenciam aos menores criadores que
vendiam suas tropas aos introductores, estes sim os que remetiam-nas para os curraleros.46
Tanto charqueadores como saladeiristas dependiam de todo e qualquer gado (de boa qualidade,
obviamente), fosse de grandes invernadores, fosse de criadores pobres. Conforme Montoya, por
exemplo, entre os credores arrolados no inventário post-mortem do saladeirista Francisco de
Medina, estava “el pueblo de índios de Yapeyú” que cobravam 10.074 pesos referentes a
12.895 cabeças de gado que venderam ao empresário.47
a sua fábrica. É provável que Antônio tenha ajudado o pai na aquisição de tropas e continuava neste ramo de
negócios nutrindo-se da rede mercantil e creditício legada pelo Visconde.
44
MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria no extremo sul do
Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2012. A possibilidade de escravos campeiros criarem
seus pequenos rebanhos e juntar seu pecúlio com a venda dos mesmos já foi atestada por outros autores.
45
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense
Oitocentista. Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2005; FARINATTI (2010).
46
GARAVAGLIA, Juan C. Op. cit., p. 81-85.
47
MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 26-27.
265
seus vizinhos ou proprietários nos mesmos distritos onde suas terras estavam distribuídas. No
caso aqui estudado, a estância parecia funcionar como uma base estratégica do charqueador e
de seus agentes fornecedores de gado.
Mas a estância representava mais do que isso. Ser estancieiro no Rio Grande do Sul,
possuir campos que fugiam de vista, muitos escravos a cavalo e animais em milhares, era sinal
de prestígio social, visto a inserção dos grandes proprietários em outros espaços de poder e
notabilidade. Além disso, os grandes estancieiros geralmente eram grandes senhores de
escravos (para os padrões da região)48 e, por conta do seu poder nas localidades, eles
simplesmente influíam de forma determinante no processo eleitoral de seus distritos rurais. No
Rio Grande do Sul, o poder político na fronteira e o poder militar andavam juntos. Mas se nem
todo o grande estancieiro era um militar, praticamente todos possuíam parentes militares ou
oficiais da Guarda Nacional. Isto lhes conferia outro grande poder: o de influir no recrutamento
e na vida das pessoas pobres, controlar o contrabando e a passagem de gado na fronteira, entre
outros. Aqueles mais bem posicionados conheciam muitas pessoas, batizavam filhos de oficiais,
arrumavam cavalos e soldados para as guerras e distribuíam favores diversos. Portanto, ser
proprietário de uma grande estância potencializava os mesmos a concentrarem os mencionados
recursos materiais e imateriais nas mãos de sua família.49
48
FARINATTI, Luís A. Op. cit.
49
A melhor pesquisa a cerca do papel do estancieiro naquela sociedade é o de FARINATTI, Luís A. Op. cit.. Para
o seu papel na política local e regional ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. cit.
50
Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS).
266
chácaras no município. Portanto, nem todos eram grandes criadores de gado. Dos 78 inventários
de charqueadores, somente 13 (16,6%) possuíam rebanhos superiores a 2.000 cabeças de gado,
o que, conforme Farinatti, os qualificariam entre os grandes estancieiros na fronteira.51 Dos 12
charqueadores inventariados com fortunas acima de 50 mil libras, 9 eram proprietários de
grandes rebanhos. Joaquim J. de Assumpção possuía 3.000 reses de criar, Felisberto I. da
Cunha 4.330, José R. Barcellos tinha mais de 4.600, João S. Lopes mais de 7.000, João S.
Lopes Filho mais de 8.500, José I. da Cunha era dono de 11.400 reses, Joaquim da S. Tavares
tinha mais de 8.700 e José A. Moreira possuía 13.000 reses em seus campos. Mas o maior
criador do grupo foi o coronel Anibal Antunes Maciel, que tinha mais de 34.000 cabeças de
gado pastando em suas estâncias no Uruguai, como já mencionei. De acordo com Farinatti, que
estudou Alegrete entre 1825 e 1865 (uma das regiões que concentrava os maiores criadores de
gado do Rio Grande do Sul), os proprietários de rebanhos superiores a 5.000 reses compunham
o topo da hierarquia social local. 52 Neste sentido, estes charqueadores possuíam um número de
reses que poderia competir tranquilamente com os principais estancieiros da fronteira.
De 10 a 20 mil 9 (17,6) 0 0 0 0 0
Fonte: CARVALHO, Mário T. de. Nobiliário Sul-rio-grandense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do
Globo, 1937; Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS); Livros de Notas do 1º, 2º e 3º Tabelionatos
de Pelotas (APERS); VARGAS, Jonas M. Op. cit.
Desnecessário dizer que os mais ricos entre estes charqueadores também eram grandes
escravistas e, juntamente com suas famílias, concentravam importante poder político e prestígio
social não somente em Pelotas, como fora do município. De acordo com a Tabela 7.1 pode-se
verificar que as famílias de charqueadores mais ricas também concentravam, por meio de seus
parentes próximos, uma alta notabilidade social (medido, neste caso, somente com o título de
nobreza) e um alto poder político (ministros de Estado, senadores e deputados gerais). E boa
51
Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS); Farinatti, Luís A. Op. cit.
52
FARINATTI, Luís A. Op. cit.
267
parte destas famílias eram proprietárias de grandes estâncias na região da campanha ou no
Uruguai, além de possuírem grandes rebanhos. A tendência à concentração de riqueza
fundiária, distinções sociais e poder político no interior do grupo é evidente. As duas últimas
faixas de fortuna (50,9% dos charqueadores inventariados) praticamente não tiveram acesso ao
recursos concentrados pelos de cima. 53
A política expansionista levada a cabo pelo Brasil na fronteira sul sempre teve a
resistência de grande parcela da população uruguaia. O resultado inevitável desta relação,
herdada desde os tempos de D. João VI, traduziu-se em inúmeros conflitos entre proprietários
rio-grandenses e uruguaios, além das autoridades militares e policiais de ambos os lados da
fronteira. Tais contendas tiveram um grande impulso com a independência da República
Oriental do Uruguai (em 1828), conquistada através de uma guerra contra o Brasil. 54 As
reclamações dos rio-grandenses traduziam-se nas queixas contra a desapropriação de suas terras
53
O perfil do patrimônio dos 12 mais ricos será tratado num outro capítulo.
54
Existem muitas pesquisas sobre as relações entre o Brasil e a região do Prata na primeira metade do século. Ver,
por exemplo, ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica da
fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPG-História UFF, 2012;
DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002; BANDEIRA. L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e aformação dos Estados na Bacia do Prata:
Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Brasília: UnB, 1998; ZABIELLA,
Eliane. Op. cit.; SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit.; MIRANDA, Márcia E. Op. cit.
268
e da captura do seu gado. Durante a guerra civil uruguaia (1838-1851), o confisco destes
mesmos bens para servirem ao exército oriental acentuou-se em proporções maiores. Um dos
grandes motivos destes sequestros de bens foi a tentativa de recuperação econômica, liderada
pelo presidente uruguaio Manoel Oribe, líder do Partido Blanco.
Em 1849, Oribe deu um novo golpe nas ambições dos charqueadores brasileiros,
ordenando que os escravos que trabalhassem nos seus saladeros em São Servando (no lado
uruguaio da fronteira) fossem retirados da região caso contrário seriam considerados libertos. A
55
MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed.
Universitária/UFPel, 2010, p. 119-123; 151.
56
SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit.
57
Como analiso de forma mais aprofundada no capítulo posterior.
58
Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1.027 (AHRS).
269
determinação provocou o retorno de “quatrocentos escravos” para Pelotas e Jaguarão.59 Num
documento desta época (talvez de 1851) foram listadas 10 saladeros (pertencentes a brasileiros)
localizadas no lado uruguaio, próximas à fronteira, nas imediações de São Servando, Taquary,
Arvedonda, Cebolatti e Olimar. Numa delas abatia-se anualmente de 12 a 15 mil reses, ou seja,
seu número era significativo e suficiente para desviar muitas tropas de gado dos saladeros de
Montevidéu.60 Portanto, com esta medida Oribe buscava beneficiar os saladeros da capital,
retirando praticamente à força os charqueadores brasileiros estabelecidos naquela região.
59
Rio de Janeiro, 5 de maio de 1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1.027 (AHRS).
60
Documento que lista os charqueadores na fronteira com o Uruguai, s/d. (Coleção de manuscritos, Coleção Rio
Grande do Sul, BN-RJ).
61
Rio de Janeiro, 7 e 21 de julho, 14 de agosto de 1850. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1-027 (AHRS).
62
PALERMO, Eduardo. Vecindad, frontera y esclavitud en el norte uruguayo y sur de Brasil. In: Memorias del
Simposio La Ruta del Esclavo en el Río de la Plata: su historia y sus consecuencias. Montevideu, 2003, p.91-114;
SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit.
63
Rio de Janeiro, 03.09.1849 e 03.10.1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1-027 (AHRS).
270
forte pressão para que uma guerra fosse realizada na fronteira. 64 Tratavam-se de políticos
extremamente bem relacionados com as cúpulas de poder regional e central. Afonso Alves era o
principal advogado de Pelotas. Além de ser aparentado com charqueadores, comerciantes e
estancieiros, era importante membro da elite local, tendo sido vereador, juiz municipal, diretor
do Asilo de órfãos e da Loja maçônica União e Concórdia. Reconhecido como um dos grandes
representantes de Pelotas na Assembléia Legislativa e na Câmara dos deputados, no Rio de
Janeiro, Alves era continuamente aclamado pelo Jornal O Brado do Sul, de propriedade do
charqueador Domingos José de Almeida, pelo seu interesse na defesa dos negócios da região. 65
Por conta da sua feroz defesa do Império do Brasil e da propriedade de seus súditos, o
“nobre” senador recebeu o título de Barão de Quaraí, em 1855. A honraria também deve ter
sido favorecida pela rede de relações na qual Chaves estava inserido na Corte, na qual estavam
Nabuco de Araújo e o Marquês de Abrantes, por exemplo. 67 Conforme Maria Fernanda
64
BANDEIRA, L. A. Muniz. Op. cit., p. 69.
65
O Brado do Sul (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Ver, por exemplo, as edições dos dias 20 e 31 de
dezembro de 1859.
66
NOGUEIRA, Almeida. A Academia de São Paulo: tradições e reminiscências. São Paulo: Saraiva, 1977, 2.a ed.,
volume 1, p. 141-142.
67
“Algum tempo, era em sua casa e na do marquês de Abrantes, que mais se reunia a sociedade mundana, amiga
de festas, do Rio de Janeiro. A liberdade era menor na suntuosa residência do marquês pelo tom formalista e
europeu do anfitrião e pela maior freqüência da roda diplomática; mas a companhia era a mesma, e a convivência
271
Martins, frequentavam seguidamente o Salão de Abrantes, o Marquês de Olinda, Silva
Paranhos, Tamandaré, Cotegipe, Zacharias, Ferraz, Sapucaí, Saraiva, Boa Vista, José de
Alencar, Torres Homem, Caxias e Mauá, entre muitos outros.68 Deve ser destas reuniões que
Pedro Chaves conheceu o Barão de Nova Friburgo, um dos cafeicultores mais ricos do Rio,
vindo a casar sua filha com o filho do mesmo. A inserção de Pedro Chaves no círculo dos
grandes da Corte era acompanhada pelo seu irmão, o Dr. Antônio Rodrigues Fernandes Braga –
Desembargador na Relação do Rio e senador do Império. Por meio do matrimônio de seu filho,
Braga uniu-se à família de Militão Máximo de Souza, o Visconde de Andaraí, rico banqueiro
carioca, sócio do Barão de Mauá e de outros capitalistas da Corte.69
Braga e Chaves eram primos do Conde de Piratini, que, por sua vez, era cunhado de
João Rodrigues Ribas. Este grupo era bastante articulado com outros políticos que vinham
pressionando o governo por conta das desordens no Uruguai. José de Araújo Ribeiro,
Diplomata brasileiro na França, e filho de um charqueador do vale do Jacuí, no Rio Grande,
também aliou-se aos mencionados políticos, pois sua família havia sido atacada no Uruguai.70
Ribeiro era primo do mencionado Comendador João Ribas e, estando em Paris, ajudava a
cuidar dos dois filhos deste, que estudavam na capital francesa. O tutor dos meninos era o Dr.
Sebastião Ribeiro (filho do Marechal Bento Manoel Ribeiro) que, graças ao apoio dado ao
Império na Guerra dos Farrapos, conseguiu um emprego na Legação Brasileira. Sebastião era
amigo de Pedro Chaves, de quem havia sido colega na Faculdade de Direito de São Paulo, e
residia com Pio Ângelo da Silva, que estudava Medicina em Paris. Pio era irmão de Honório da
Silva, dono de uma charqueada e uma estância no Uruguai. Nas cartas que Sebastião e Araújo
Ribeiro enviavam para o Comendador Ribas, desenha-se uma rede de relações que envolvia o
próprio Desembargador Braga, mencionado acima, além de grandes comerciantes. Numa delas,
de Abrantes e de Nabuco foi diária, durante muitos anos. Formavam o centro dessa agradável sociedade, comum às
duas casas, além dos chamados leões do Norte, Monte Alegre, Pedro Chaves (Quaraim), Dantas, Pinto Lima,
Sinimbu, e outros amigos íntimos de Nabuco , como Madureira, Pedro Muniz, José Caetano de Andrade Pinto, o
dr. Araújo, atual barão do Catete, com quem casará depois a marquesa de Abrantes”. (NABUCO, Joaquim. Um
estadista no Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, v. II. p. 1108).
68
MARTINS, Maria Fernanda. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de
Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
69
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária
Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997.
70
Filho de charqueadores e proprietário no vale do Jacuí, Araújo Ribeiro formou-se em Direito pela Universidade
de Coimbra, em 1823, e logo que regressou ao Brasil deu início a uma carreira diplomática notável, tendo
pertencido às legações brasileiras na Itália, França, Estados Unidos, Inglaterra e Portugal. Depois de sua demissão
da presidência da província, em 1837, voltou a exercer funções diplomáticas e em 1849, logo que retornou de
Paris, foi eleito senador pelo Rio Grande do Sul. Residiu boa parte de sua vida na Corte, onde gozava de enorme
reputação e vivia cercado de intelectuais e políticos. Araújo Ribeiro também era sócio do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e ao longo da vida ainda foi agraciado com o título de Visconde de Rio Grande.
272
Sebastião mostra sua preocupação com a questão platina e o desejo de que os países do Prata
continuassem em guerra:
Estou sabendo com prazer que os Plenipotenciários inglês e francês no Rio da Prata
não conseguiram pacificar aquelas Repúblicas: bem haja esse malogro, porque a paz
daqueles países, nas atuais disposições de Rosas para com o Brasil, seria a guerra para
nós, e demasiadamente temos nós sofrido para que não nos aquebrante e inquiete a
perspectiva de uma nova guerra.71
Caxias foi convocado para comandar o Exército brasileiro e colocou na liderança das
suas divisões os oficiais Bento Manoel Ribeiro, David Canabarro e Manuel Marques e Souza.
Os três eram grandes proprietários de gado, de terras e de escravos na fronteira. Além disso,
Marques e Souza era casado com uma neta do Visconde de Jaguari, um dos charqueadores mais
ricos de Pelotas. Eles constituíam-se em genuínos representantes da elite regional no período.
Sua capacidade de articulação política, mobilização de soldados e a liderança pessoal que
exerciam na província os colocavam entre os mais aptos a mediar as relações do Rio Grande
com o governo central. Inteligente, Caxias sabia que precisa negociar com os mesmos e deve
ter escrito a vários proprietários como eles para que o ajudassem na formação das tropas
militares que invadiriam o Uruguai. Um dos seus destinatários foi o charqueador Domingos
71
Carta de Sebastião R. de Almeida para Comendador João Ribas. Paris, 02.09.1847 (Correspondência do
Comando Superior da Guarda Nacional de Rio Grande. Maço 36, AHRS).
72
DORATIOTO, F. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
273
José de Almeida. Orgulhoso da tarefa que havia recebido, Domingos escreveu a outros amigos
para que fizessem o mesmo:
Ao final da carta, o charqueador anexou uma lista intitulada: “Relação das pessoas que
convidei para engrossarem as fileiras do Exército, a entrar em operações no Estado Oriental”.
No total eram 64 indivíduos e, conforme o charqueador, havia gente de todo o tipo. O mais
interessante é que ao lado de cada nome há informações a respeito da conduta e das
“qualidades” dos convocados. Alguns tinham problemas com bebida, enquanto outros eram
descritos como valentes e aptos para reunir cavalos. O major Jeremias foi avaliado como
“terrível” e o capitão Januário Borges, homem de ordens de Antônio de Souza Netto (ex-
general republicano), “exercendo influência no distrito de sua residência, empregado no
Exército chamará outros a ele”. Entre os mesmos estavam os filhos de Bento Gonçalves da
Silva, o chefe farrapo de 1835, e alguns familiares de charqueadores de Pelotas, como
Boaventura T. Barcellos e os irmãos Soares da Silva. O último da lista era o próprio filho do
charqueador, o Sargento Luís Felipe de Almeida, que Domingos pediu para ser colocado sob a
proteção do próprio Caxias, “tratando-o como pupilo seu”, “daonde talvez volte um Coronel”. 74
73
Carta de Domingos J. de Almeida a José Mariano de Mattos. In. Anais do AHRS, v. 3. CV-664.
74
Carta de Domingos J. de Almeida a José Mariano de Mattos. In. Anais do AHRS, v. 3. CV 664 – CV 663.
Domingos escreveu a Mariano de Mattos dizendo que tendo Caxias à frente do Exército “ninguém fica em casa”.
Carta de 17.06.1851. In: Anais do AHRS, v. 3. CV 662.
274
central em impor o seu projeto imperial sobre o Prata sem recorrer aos estancieiros do sul do
Brasil, muitos deles ex-rebeldes.75
No entanto, nem a vitória na Guerra e nem a assinatura dos Tratados de 1851 foram
suficientes para dar fim aos conflitos na fronteira. Com o término da campanha militar,
juntamente com o confisco de gado, a violência armada e o bandoleirismo que dominava ambas
as campanhas, outros problemas passaram a receber destaque nas centenas de correspondências
trocadas entre as autoridades administrativas e diplomáticas de ambos os países. O
recrutamento forçado nos dois lados da fronteira, a fuga de cativos para o Estado Oriental (onde
eram considerados livres) e o sequestro de negros livres para serem escravizados no Brasil,
75
COSTA, Wilma Perez. A Espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São
Paulo: HUCITEC, 1996.
76
DORATIOTO, Francisco. Op. cit.; PALERMO, Eduardo. Secuestros y trafico de esclavos en la frontera
uruguaya: estúdio de casos posteriores a 1850. Revista Tema Livre, n. 13, 2007; BORUCKI, A., CHAGAS, K.,
STALLA, N. Esclavitud y trabajo: Un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya, 1835-1855.
Montevideo, Ed. Pulmón, 2004.
77
ZABIELLA, Eliane. Op. cit.
78
BANDEIRA, L. Muniz. Op. cit., p. 74-75.
79
ZABIELLA, Eliane. Op. cit., , p. 54.
80
Os dados de exportação e os preços serão tratados no capítulo posterior.
275
entre outros, cada vez mais recheavam as páginas dos jornais, relatórios oficiais e cartas
trocadas entre as autoridades. 81 Portanto, a mencionada conjuntura não representou um período
de paz na fronteira.
Se por um lado os uruguaios eram atacados por capturar e recrutar os peões negros
contratados dos estancieiros rio-grandenses na região (na realidade, seus escravos), os
brasileiros também eram acusados de escravizar negros livres no Uruguai, vindo a remetê-los
81
Ver, por exemplo, a correspondência do Governo do Rio Grande do Sul com a Secretaria do Ministério dos
Negócios Estrangeiros entre 1852 e 1863 (Arquivo Histórico do Itamarati) e os códices B.1.027 até o B.1.032, do
fundo Avisos do Ministério de Estrangeiros (AHRS).
82
Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1854. Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-028). AHRS.
83
Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1854. Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-028). AHRS.
84
Ver, por exemplo, os Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-027 ao B.1-032 (AHRS)).
85
Relação e descrição dos Escravos (por proprietários) fugidos para Entre Rios, Corrientes, Estado Oriental,
República do Paraguai e outras províncias brasileiras. Estatística. Documentação Avulsa. Maço 1. AHRGS.
86
BORUCKI, Alex; STALLA, Natalia; CHAGAS, Karla. Op. cit.
276
para o Brasil. 87 Em junho de 1862, por exemplo, o negro Moisés conseguiu a liberdade após sua
mãe denunciar às autoridades policiais de Pelotas que ele era nascido livre e havia sido raptado
no Estado Oriental, sendo vendido como escravo no Rio Grande do Sul. O responsável pela
captura de Moisés no Estado Oriental foi o charqueador Wenceslau José Gomes. Conforme o
delegado, o comprador, Honório Luís da Silva, teria suspeitado da “origem viciosa de
semelhante escravidão” e colaborou com a polícia devolvendo Moisés às autoridades.88
Honório também era charqueador em Pelotas.
87
Nos últimos anos, muitas pesquisas vem se dedicando a investigar as relações escravistas na região da fronteira
rio-grandense e uruguaia, assim como as fugas, a reescravização e os contratos de peonagem. Ver, por exemplo,
BORUCKI, Alex; STALLA, Natalia; CHAGAS, Karla. Op. cit.; PALERMO, Eduardo. Op. cit.; GRINBERG,
Keila. Escravidão e relações diplomáticas Brasil e Uruguai, século XIX. In: Anais do 4º Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009, p. 1-9; LIMA, Rafael Peter de. “A nefanda pirataria de carne
humana”: escravizações ilegais e relações políticas na fronteira do Brasil meridional (1851-1868). PPG-História
UFGRS, Dissertação de Mestrado, 2010; CARATTI, Jonattas. O solo da liberdade: as trajetórias de preta
Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos de processo abolicionista uruguaio (1842-
1862). São Leopoldo: UNISINOS, Dissertação de Mestrado, 2010; ARAÚJO, Thiago L. de. A escravidão entre a
guerra e a abolição: o impacto das fugas e os pedidos de extradição de escravos nas fronteiras platinas (década de
1840). Anais do VI Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil meridional, 2013.
88
“Autuação do ofício do Vice Consul da República Oriental para indagações a respeito do preto Moisés”.
Processo n. 608, m. 14, Tribunal do Júri, Rio Grande, Caixa 314 (APERS).
89
ZABIELLA, Eliane. Op. cit., p. 60-61.
90
Os mercados importadores e as flutuações do preço do produto serão tratados no capítulo posterior.
91
Tratarei destes dados no capítulo seguinte.
92
Jornal O Constitucional, 07.09.1862 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro); BARRAN, Jose P.; NAHUM,
Benjamin. Op. cit.. p. 118-130).
277
A seção (…) entende que seria esse um remédio, se bem que favorável aos produtores
da província do Rio Grande do Sul, contudo, prejudicial ao resto da população, atenta
à carestia sempre crescente dos gêneros alimentícios. O charque é alimento geral,
preferido pelas muitas excelentes qualidades que tem, por toda a nossa população
menos abastada, muito principalmente nos lugares onde não se corta carne verde.
Constitui a alimentação diária e quase exclusiva de famílias inteiras e da escravatura
das nossas fazendas, pelo que pode ser considerado como matéria-prima para a nossa
única produção, que é a da lavoura, e que já luta contra tantas dificuldades! (…) Não é
justo que os [produtores] das províncias do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e
outras paguem mais caro o charque com que mantêm os braços que empregam, para
que, livres da concorrência, colham maiores benefícios os do Rio Grande do Sul.93
O recado estava dado. De fato, o charque era consumido por grande parte da população
pobre das grandes cidades costeiras e, tendo em vista a carestia de alimentos que afetou a
população urbana do Rio nos anos 1850 (até o Imperador criticou os monopolistas cariocas pelo
excessivo preço do charque na Corte), era necessário abrir o mercado aos concorrentes
platinos.94 Contudo, por trás desta preocupação também estava claro que os grandes
proprietários de escravos queriam reduzir os custos de suas plantations, criando uma verdadeira
polêmica ao redor do assunto, uma vez que até os conselheiros de Estado, agora envolvidos,
deixavam isto bem claro.
Esta postura do governo central, que 10 anos antes já havia encarado uma guerra por
conta dos conflitos envolvendo proprietários rio-grandenses no Uruguai, desagradou muito aos
pecuaristas da província sulina. Sem dúvida, o charqueador mais exaltado deste período foi
Domingos José de Almeida. Ele já havia participado de forma marcante da Revolta dos
Farrapos (1835-1845), tornando-se ministro da Fazenda da República Rio-grandense, e depois
ajudou Caxias a arregimentar soldados para a intervenção brasileira no Uruguai, em 1851.
Desta vez, Domingos criou o jornal “O Brado do Sul” (em 1859), onde frequentemente atacava
a política do Governo Imperial para com a economia rio-grandense. No editorial do dia 29 de
março daquele ano, ele fazia um apelo aos deputados gerais rio-grandenses para defender a
causa da província na Corte e afirmava que a indústria do charque havia se animado nas épocas
de guerra no Prata, “dando grandes lucros aos charqueadores e influindo beneficamente sobre
todo o giro do nosso comércio”. Em seguida: “Hoje, porém, tendo o governo provavelmente
tomado a decisão de aniquilar de uma vez o Rio Grande, sufocando a par do seu comércio,
morto pelo contrabando, também a sua indústria”. Para Domingos, ao não taxar o charque
platino, percebia-se “quão pouco o governo conosco se importa e conta”. E ao final do longo
editorial ele ameaçava: “ Sem medidas tais é inevitável a completa ruína de nossa indústria e
93
O Conselho de Estado e a política externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (1858-
1862). Rio de Janeiro: CHDD, 2005, p. 281-282.
94
GRAÇA FILHO, Afonso de A. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de
subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992.
278
sucumbindo na mesma ocasião o nosso comércio ao contrabando, o que restará à pobre
província do Rio Grande do Sul? A miséria e a fome (já o dissemos) são a revolta”.95
Entre 1861 e 1862, o revigoramento econômico uruguaio teve outro importante impulso,
quando Bernardo Berro, chefe político blanco, declarou o fim do prazo legal do Tratado de
comércio que permitia o trânsito de gado uruguaio para o Rio Grande do Sul e, além disso,
instituiu uma lei que proibia contratos com peões negros por mais de 6 anos. Por tais motivos,
os primeiros anos da década de 1860 trouxeram uma nova crise para as charqueadas pelotenses,
seguida de uma grande quebra entre os charqueadores – que será analisado posteriormente.
Entre 1861 e 1864, a onda de perseguições aos brasileiros residentes no norte do Uruguai
acentuou-se bastante. Em 1863, o próprio irmão do General Netto teve sua estância no Uruguai
atacada. Em 1864, o ex-farroupilha David Canabarro, que era homem de confiança do Império,
já começava a desobedecer as ordens vindas da Corte, protegendo os bandos armados de
Venâncio Flores em suas terras na fronteira. 99
95
Jornal O Brado do Sul, Pelotas, 29.03.1859 (BN-RJ).
96
Carta de Domingos J. de Almeida para Antônio de S. Netto. Anais do HRS, v. 3, CV-788. Além disso, os
próprios filhos de Domingos lidavam diretamente com estes chefes, como por exemplo, nas cartas em que
menciona os encontros do jovem Epaminondas com Osório e de Junius Brutus com o próprio General Neto, em
Montevideu.
97
Carta de Domingos J. de Almeida para David Canabarro, Pelotas, 06.09.1862. Anais do HRS, v. 3, CV-731.
98
Num capítulo posterior tratarei da divisão política que reinava entre os charqueadores.
99
Avisos do Ministério de Estrangeiros, AHRS, B.1.0.32.
279
O clima de descontentamento e a falta de habilidade de alguns diplomatas e estadistas
em lidar com estas questões condicionou um novo rearranjo das alianças políticas na fronteira.
Como resposta às medidas do governo de Berro contra os rio-grandenses residentes no Uruguai,
o líder colorado Venâncio Flores reuniu facilmente o apoio dos estancieiros rio-grandenses e
tomou uso dos mesmos para defender os interesses de sua facção política no Uruguai. Tratava-
se de uma aliança com interesses mútuos e ao Império era interessante enfraquecer os blancos.
Um conflito militar era questão de tempo, mas era preciso insuflar os ânimos dos dirigentes
políticos do País. 100 Na Corte, Felipe Nery, deputado pelo Rio Grande do Sul e autodeclarado
representante do General Netto, disparou diversos discursos incitando a invasão ao território
uruguaio.101 Na mesma época, outros dois deputados gerais rio-grandenses, Gaspar Silveira
Martins e Félix da Cunha, juntaram-se ao brigadeiro Manoel Luís Osório e, na Corte, foram
reclamar do mesmo. Na cúpula do poder imperial, eles tinham como aliados os deputados José
Bonifácio e Francisco Brusque (rio-grandense, ex-ministro da Guerra e também pertencente a
uma família de charqueadores), e os deputados Francisco Otaviano e Martinho Campos, como o
próprio Felix da Cunha declarou em uma missiva de julho de 1864 ao General David
Canabarro.102 Este, na sua estância na fronteira, acompanhava tudo numa intensa circulação de
cartas que tinha nos charqueadores Domingos Almeida e Manoel Lourenço do Nascimento
(este também deputado provincial) alguns de seus informantes. Portanto, este grupo de políticos
e proprietários exerceu constante pressão política nos bastidores da Corte ao longo dos meses
que antecederam à intervenção militar do Exército Brasileiro no Uruguai em 1864.
Conforme César Guazzelli, decidido a acabar com as tropelias dos blancos de uma vez
por todas, o General Netto (que já contava com centenas de homens armados na fronteira
prontos para atender as suas ordens), foi até o Rio de Janeiro fazendo-se porta-voz dos “direitos
de 40 mil brasileiros” residentes na Banda Oriental e numa audiência com líderes políticos da
Corte, os colocou num verdadeiro impasse. Se o Exército não invadisse Montevidéu, os
próprios rio-grandenses o fariam por sua conta, ameaçou o General. Motivado por outras
questões de ordem política e diplomática, o Império decidiu atender às reclamações dos
proprietários rio-grandenses evitando uma nova guerra civil no sul do País. 103 Em abril de 1864,
100
DORATIOTO, Francisco. Op. cit.
101
CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 159.
102
Carta de Félix da Cunha para Canabarro. Rio de Janeiro, 26.07.1864. AHRS, CV-3438.
103
GUAZZELLI, Cesar Augusto B. A Guerra do Paraguai e suas implicações na história e na sociedade da Bacia
do Prata. In: Anais do I Encontro de História Brasil-Paraguai. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia,
2002, p.299-351. Para uma visão mais voltada às relações políticas entre os Estados platinos e aos aspectos
econômicos ver DORATIOTO, Francisco. Op. cit; BETHELL, Leslie. O Imperialismo britânico e a Guerra do
Paraguai. Estudos Avançados, n. 9, v. 24, 1995, p. 269-285.
280
os diplomatas brasileiros exigiram que Atanásio Aguirre, o novo presidente Blanco, punisse as
autoridades responsáveis por perseguir os rio-grandenses, caso contrário o Brasil seria obrigado
a interferir militarmente. O Paraguai, defendendo a aliança feita com os blancos, protestou
contra a ameaça brasileira. Executando o que havia prometido, em setembro, as tropas imperiais
cruzaram a fronteira com o Uruguai. Dois meses depois, Solano Lopez respondeu mandando
aprisionar o vapor brasileiro Marquês de Olinda, vindo a invadir o Mato Grosso em dezembro.
GADOS – Não tivemos entradas, porém consta que no futuro mês de Novembro
entrarão muitas tropas. Complicada à situação política do Estado Oriental com a
passagem do Exército Brasileiro, é de supor que ali não possam trabalhar as
charqueadas, a que dará muita animação a este ramo de nossa indústria.106
104
MIRANDA, Márcia E. Op. cit., p. 301-304.
105
A aliança entre Flores e os estancieiros rio-grandenses estendeu-se ao Governo Imperial e à República
Argentina, sob a liderança de Bartolomé Mitre. Concomitantemente, Berro buscou criar um novo equilíbrio de
forças no Prata, estabelecendo um eixo Montevidéu-Assunção e uma possível associação com as províncias
dissidentes da Argentina, principalmente Entre Rios e Corrientes. Era de conhecimento de todos que o entrerriano
Urquiza mantinha estreitas relações com Solano Lopez. Apostando nestas possíveis alianças, Berro enviou um
emissário para negociar o apoio do Paraguai no caso de um enfrentamento militar. Apesar do acordo não ter sido
oficialmente firmado, o presidente paraguaio demonstrou-se interessado na aproximação com o partido Blanco e
uma possível utilização de Montevidéu como porto comercial.
106
Arquivo particular de Porfírio Metello, Museu João Nunes (São Gabriel).
281
(guerra civil na qual os colorados, apoiados pelos rio-grandenses, tiraram os blancos do poder),
que devastou os campos do país vizinho, prejudicando a sua economia.107 Alguns comerciantes
e charqueadores emprestaram significativas quantias ao Império para financiar a campanha
militar, libertaram alguns de seus escravos para servirem ao Exército e ajudaram a mobilizar
soldados em Pelotas. São exemplos deste protagonismo, os proprietários João da Silva Tavares,
Felisberto Inácio da Cunha, João Simões Lopes Filho e José Antônio Moreira. Todos eles
receberam títulos de nobreza, como gratificação pelos seus serviços prestados à Coroa. 108 Além
disso, muitos charqueadores devem ter lucrado economicamente, pois as tropas militares
também eram abastecidas com charque.109 Mas a campanha no Paraguai também ofereceu
ganhos não apenas aos charqueadores como também a comerciantes, banqueiros e criadores de
gado. O Barão de Mauá, que sempre lucrou com o imperialismo brasileiro no Uruguai, possuía
uma agência bancária em meio ao acampamento aliado. Além disso, o seu parente José Cardoso
de Salles arrematou vários contratos de abastecimento de víveres para o Exército. 110
107
BARRAN, José P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
108
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do
Globo, 1937. Ver Barão de Butuí, Barão de Correntes, Visconde da Graça e Visconde de Serro Alegre.
109
FIGUEIRA, Divalde G. Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas/USP, 2001.
110
FIGUEIRA, Divalde. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. O Rio Grande do sul e a Guerra do Paraguai. In:
GRIJÓ, Luiz Alberto; NEUMANN, Eduardo (Org.). O continente em armas: uma história da guerra no sul do
Brasil. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 123-152.
111
Inventário do Barão de Butuí. Pelotas. Cartório de órfãos e provedoria, 1877, APERS.
282
da Graça estava um busto do Duque de Caxias, e que outro charqueador, o Sr. Joaquim R. da
Silva, possuía um retrato à óleo do General Venâncio Flores como decoração em sua sala.112
Contudo, alguns dos charqueadores mais ricos de Pelotas não precisaram recorrer aos
mencionados “souvenirs” para terem em sua própria casa a presença daqueles “heróis”. José
Antônio Moreira e Joaquim José de Assumpção (Barões de Butuí e do Jarau) casaram suas
filhas com os filhos do General Osório (depois da Guerra, o Marquês do Herval) tornando as
reuniões de família um verdadeiro encontro de nobres. A família Osório ainda “arrematou”
outra herdeira de charqueadores para um de seus filhos, quando o casou com uma Antunes
Maciel, família que também aparentou-se aos Moreira, por meio dos casamentos. Tendo em
vista que Jarau era cunhado do Visconde da Graça, temos aqui os 4 charqueadores mais ricos de
Pelotas praticando uma apreciável endogamia sob à bênção não apenas do sacerdócio local,
como também dos generais, dos contrabandistas de gado e do próprio Imperador...
Para fechar este capítulo retorno ao mercado de gados, mas, desta vez, analisando a
tablada – a feira de gados que acontecia durante toda a safra dentro do próprio município de
Pelotas, num raio de 2 Km das charqueadas.113 As melhores descrições sobre a tablada foram
feitas por Louis Couty (1880), Herbert Smith (1882) e o Coronel Zeferino da Costa (cujas
memórias foram escritas no início do século XX). Tais escritos oferecem uma descrição sobre a
dinâmica do comércio do gado da tablada – que, nas palavras de Smith, era um descampado
extenso e quase liso, onde de dezembro a maio se vendiam as tropas de gado que chegavam a
Pelotas.114 É provável que a tablada não tenha funcionado sempre da mesma forma e que, após
a Guerra do Paraguai, a sua importância tenha aumentado para os charqueadores. Couty
mencionou que houve uma época em que os charqueadores confiavam mais no sistema de
tropeiros e agentes (aquele que analisei no início deste capítulo), mas que, no início dos anos
1880, a tablada já havia se tornado o principal mercado de gados para os charqueadores.115
112
Inventário Visconde da Graça, n. 1.254, m. 69, 1893, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS);
Inventário do Visconde da Graça; Jornal do Comércio de Pelotas, 02.07.1881 (BPP).
113
COUTY, Louis. Op. cit., p. 135.
114
SMITH, Herbert. Do Rio de Janeiro à Cuiabá. São Paulo: Melhoramento, 1922. As memórias do Coronel
Zeferino foram reproduzidas por PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria
pastoril do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria Continental, s/d, p. 110-120.
115
COUTY, Louis. Op. cit., p. 136.
283
XIX, ele escreveu: “Era a tablada a feira mais interessante que já vi. Ali reuniam-se,
diariamente, todos os charqueadores. Ali, desfilava a pecuária inteira do Rio Grande”. A feira
iniciava-se às 7 horas e encerrava-se às 12 horas, quando os animais eram recolhidos ao
pastoreio por peões conhecidos da própria localidade. Durante as negociações, “dez, vinte,
trinta tropas ali se aglomeravam, em reduzido espaço. Cada uma delas era rodeada e vigiada
pela peonada que a conduzia da estância para evitar o ‘entrevero’”. Conforme o Coronel, havia
tropeiros de toda a parte: “Que diversidade de gente. Uns, vinham das Missões, de São Luiz,
São Borja, de Cima da Serra, do Alto Uruguai, com 35 e mais dias de viagem; outros, do Estado
Oriental; muitos de Cachoeira e Rio Pardo; e não poucos da fronteira”. 116
As memórias do Coronel devem fazer referência ao final da década de 1870 e início dos
anos 1880, pois ele menciona os escravos que os charqueadores levavam até o leilão e a
presença de rebanhos vindos do norte da Província. Ora, Alvarino Marques diz que os rebanhos
desta região só integraram-se ao mercado pelotense a partir dos anos 1870 e 1880. 117 É possível
que a compra do gado da região norte da província buscasse sanar a diminuição dos rebanhos
vindos do Uruguai. Conforme Barran e Nahum, a Guerra Civil no Uruguai entre 1870 e 1872
foi ainda mais prejudicial à economia do país do que a Revolução Florista (1863-1865), sendo
que, desta vez, exterminou boa parte dos rebanhos orientais. 118 Soma-se a isto o fato de que o
Rio Grande do Sul já não contava mais com os antigos tratados de comércio totalmente
favoráveis a extração do gado uruguaio. Neste sentido, é provável que uma saída para os
charqueadores foi tentar comprar os rebanhos do norte da província para compensar a
diminuição do gado vindo do Uruguai.
116
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 111.
117
MARQUES, Alvarino. Op. cit.
118
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
119
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120.
120
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. p. 112.
284
Expostos os animais, iniciavam-se as negociações. Intermediando as transações entre os
estancieiros e os charqueadores estavam os comissários de gado. Estes iniciavam a sua
atividade diária oferecendo os novilhos e recolhendo as ofertas. Antigos e conhecidos
comissários de gado possuíam seus escritórios cheios de negociantes e tropeiros, “onde o
chimarrão, os comentários, as peripécias da longa viagem, os chistes – corriam a roda”.121 Um
dos mais antigos comissários de gado foi um francês, conhecido como Senhor Debise, que
anunciava e vendia as suas tropas em leilão sempre gritando: ‘Can-can, petite et grand tout
ensemble, quem dá mais?’ Conforme o Coronel Zeferino, o francês era original, pois como não
conhecia o peso, a qualidade, o valor dos gados que vendia, punha-os em leilão à maior oferta.
No entanto, o modo de negociar dos outros vendedores diferia, pois era menos “público”. Eles
“abriam o preço para cada tropa e recebiam, em reserva, as ofertas, entregando-a àquele que
melhor pagava”. 122 É interessante esta afirmação do Coronel Zeferino, pois negociando em
segredo, era possível que outros fatores influíssem na transação, tornando este mercado menos
impessoal do que poderia parecer, e possivelmente eivado de relações sociais diversas.
121
A partir dos anúncios dos jornais é possível verificar a presença de comissários oferecendo seus serviços aos
charqueadores. Em dezembro de 1890, o Diário Popular publicava o seguinte anúncio: “Tablada: Joaquim
Monteiro & Companhia – Encarregam-se da venda da tropa, na tablada, por comissão módica. Escritório à rua
General Netto, n. 39”. O mesmo anúncio foi feito por outros dois indivíduos, J. J. da Silva Braga e Boaventura S.
Barcellos (Jornal Diário Popular, 14 de dezembro de 1890. Anexo ao Inventário de Cipriano José Gomes. N. 158,
m. 5, 2º Cartório do Cível, 1890, Pelotas (APERS)).
122
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120.
123
REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Caxias/Poa: UCS/ Martins Livreiro, 1981, p. 19.
124
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 72.
285
apressavam-se em recorrer as tropas à venda, inspecionando-as, avaliando, calculando
o seu rendimento e perquirindo aos condutores: ‘Quantos dias de marcha? Quantas
disparadas? Vinham rondadas? Quantas encerras?’ E assim balançavam o que elas
poderiam produzir. Terminada a inspeção, começavam as vendas.125
De acordo com o Coronel Zeferino, as casas comerciais da cidade atraíam muita gente
na época da safra. “Pelotas enchia-se diariamente de uma população exótica que cada dia se
renovava e espalhava pelos hotéis São Pedro, Americano, Bonfiglio. As caravanas tinham
hospedagem (pernoite) gratuita nas lojas de fazendas, onde sustiam [sic] das suas necessidades
(...)”. Na cidade, ferreiros e ourives lucravam bastante. “As ‘comitivas’ ascendiam a 300
homens diariamente e espalhavam a mãos cheias o dinheiro ganho nas tropeadas”. O salário era
de 5$000 diários para os peões e 8$000 para os capatazes. Uns dos artigos mais procurados
eram as facas recamadas de ouro e de prata, os rebenques, estribos, esporas prateados e um
125
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120.
126
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 73.
286
sem-número de artefatos “que a vaidade dos gaúchos se comprazia em ostentar” e que serviriam
como distinção social ao retornarem para seus locais de origem. “À noite o encontro era no
‘Curral das Éguas’, espécie de ‘Cabaret’, existente no Hotel São Pedro”. 127
127
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 114.
128
COUTY, Louis. Op. cit., p. 135-137.
129
GRENDI, Edoardo. Polanyi: Dall’antropologia allá microanalisi storica. Milano: Etas Libri, 1978.
287
8. AS CHARQUEADAS, OS MERCADOS ATLÂNTICOS E OS SEUS
INTERMEDIÁRIOS
Como afirmou Marx, as mercadorias não iam com seus próprios pés ao mercado. Para
que um pedaço de charque chegasse até o prato de um escravo num engenho de açúcar em
Cuba ou no Recôncavo Baiano e para que uma peça de couro cruzasse o Atlântico até encontrar
as mãos de um operário nas fábricas britânicas uma cadeia de intermediários precisava ser
acionada. Um charqueador podia saber da situação favorável ou desfavorável dos diferentes
mercados marítimos tanto pelo contato com os diversos comerciantes e corretores estabelecidos
no porto, quanto pelas sessões mercantis dos jornais rio-grandinos e pelotenses. Mais do que eu
poderia imaginar, diariamente estes periódicos alertavam sobre as conjunturas econômicas
externas, as cotações do câmbio, informes sobre preços, os valores dos fretes, a quantidade e a
qualidade dos produtos existentes nos armazéns das principais cidades envolvidas no comércio
dos produtos pecuários, além de notícias políticas de diversos países. 1 O presente capítulo trata
das rotas mercantis em que o charque, os couros e o sal estiveram envolvidos após o término da
Revolta dos Farrapos (1835-1845) e dos agentes inseridos no interior destos mesmos circuitos.
1
Ver, por exemplo, os exemplares do Jornal do Comércio de Pelotas. No ano de 1875, por exemplo, podia-se ler
sobre as quantidades de charque e seus preços no porto de Salvador (6 de janeiro), transações em câmbio
realizadas sobre Londres e negócios com papéis bancários e mercado do tasajo no Rio da Prata (9 de janeiro),
notícias sobre o fim da safra em Montevidéu (7 de julho), carregamentos e estoques de couros nos portos de
Liverpool e Londres (14 de setembro), entre muitos outros (Jornal do Comércio, Biblioteca Pública Pelotense).
288
Neste contexto, jogando com as flutuações mercantis e de preços de ambos os produtos, muitos
charqueadores puderam resistir aos reveses conjunturais que afetavam as trocas de ambas as
mercadorias. O sal, por sua vez, era comprado tanto no mercado brasileiro como no mercado
internacional. Começarei a análise pelo comércio do charque, incluindo os indicadores
mercantis referentes aos couros e ao sal na medida em que a trama se desenvolve.
Conforme tratado no capítulo primeiro, desde que o Rio Grande do Sul começou a
exportar charque para o nordeste brasileiro, na década de 1790, até pelo menos os anos 1840,
aquela região foi a maior compradora do produto, com a região sudeste, por intermédio do Rio
de Janeiro, consumindo quase sempre menos da metade.2 Com quantias menores, Havana e
Lisboa também compareceram entre os portos receptores de charque, sendo que o mercado da
primeira costumava abrir-se quando o Prata se encontrava em guerra.3 A Revolta dos Farrapos
desmantelou a indústria pelotense que voltou a produzir charque em alta escala somente na
década de 1840. No gráfico 8.1 é possível verificar as flutuações das exportações de charque
entre 1837 e 1889. Observe-se que no início dos anos 1840 os índices apresentam um alto
crescimento, apresentando um nítido decréscimo, a partir de 1848. Foi exatamente por conta
dos prejuízos nestes últimos anos que charqueadores e estancieiros se mobilizaram pela
intervenção do Exército brasileiro em Montevideu, o que acabou ocorrendo em 1851.
Gráfico 8.1 – Charque exportado pelo Rio Grande do Sul entre 1837 e 1890 (em arrobas)
3.500.000
3.000.000
2.500.000
2.000.000
1.500.000
1.000.000
500.000
0
1839
1847
1855
1863
1871
1879
1887
1837
1841
1843
1845
1849
1851
1853
1857
1859
1861
1865
1867
1869
1873
1875
1877
1881
1883
1885
1889
Arrobas exportadas
Fonte: Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246-247;
Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1846-1860).
2
Salvo o ano de 1828, como foi demonstrado no capítulo 1 (AHRS, Fundo Fazenda, m. 482). É possível que em
outros anos o mesmo tenha ocorrido, mas em linhas gerais, como já analisei, as exportações para o nordeste foram
predominantes em quase todas as épocas.
3
LEITMAN, Spencer. Raízes sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 98.
289
No entanto, é preciso fazer uma ressalva. O volume de charque rio-grandense exportado
no período que antecedeu a Guerra de 1851-52 foi menor do que o indicado no gráfico. Em
1849, num manifesto remetido pelos vereadores de Pelotas à Assembleia Geral do Império fica
bastante claro que parte significativa daqueles montantes constituía-se em charque uruguaio que
era remetido até o porto rio-grandino pela fronteira de Jaguarão. Conforme os mesmos:
Para mais agravar essa posição ruinosa, a autoridade que dirige os negócios do
Estado Oriental proibiu a exportação de seus gados para esta, consentindo que nele, à
margem direita do Jaguarão, se estabelecessem charqueadas sob pretexto de facilitar
aos brasileiros um mercado para as vendas de seus gados; e prevendo que esta medida
acarretaria em represália a subida de direitos, como gênero estrangeiro, permitiu que o
espólio do gado ali morto beneficiado fosse deste lado para figurar em nossas
alfândegas como gêneros de manipulação nacional e iludir o nosso fisco.
Escárnio atroz nem a menos foi percebido; imensas charqueadas como por encanto ali
se montaram, parte das nossas deixaram de trabalhar e mais de dois mil peões, que se
empregavam na extração de gados daquela para esta parte, ficaram sem meios de
subsistência.
Para destruir este mal sinistro alcance pensa a Câmara que deveis propor uma
Lei que obrigue ao pagamento de 25% os gêneros provenientes do boi manipulado à
direita do Jaguarão, como no sal para ali exportado pelo Brasil. Este artigo porém,
como matéria-prima para as charqueadas desta Província, deve nela ser introduzido
sem ônus algum, e diminuir-se o direito que pagam a carne, graxa e sebo que dela se
exportar diretamente para portos estrangeiros.
Além da destruição de nossas charqueadas com o estabelecimento daquelas no
ponto que se indicou, outro mal ainda maior enxerga a Câmara no avultado número de
brasileiros que tem de ali procurar trabalho, relacionar-se e estabelecer-se e mais tarde
introduzirem por toda a extensão da linha divisória, vindas de Montevideu, as
mercancias que ora recebemos do Rio, Bahia e Pernambuco por ficarem mais baratas
em razão do menor direito que exibem na Alfândega daquela praça. Pelo exposto
vereis, Srs. Deputados, que a questão de estabelecimentos tais na margem direita do
Jaguarão não ataca somente conveniências comerciais desta e de outras províncias do
Brasil, mas sim mui seriamente a política e integridade do Império4
6
Listagem das charqueadas na fronteira com o Uruguai, s/d. (Coleção de manuscritos, Coleção Rio Grande do Sul,
BN-RJ). Além disso, segundo Rosal e Schmit, entre 1846 e 1848, Buenos Aires remeteu couros e lãs para o porto
de Rio Grande. O motivo foi o fechamento de seu porto por tropas anglo-francesas. O mesmo já havia ocorrido em
1830, quando os ingleses também bloquearam o porto buenairense (ROSAL, Miguel A.; SCHMIT, Roberto. Del
reformismo colonial borbónico al librecomercio: las exportaciones pecuarias del Río de la Plata (1768-1854).
Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana. 3ª serie, n. 20, 2º sem. 1999, p. 95-96).
291
Neste sentido, o surgimento destes saladeros na fronteira uruguaia aprofundou ainda
mais a situação estabelecida desde 1846, quando o chefe político uruguaio Manoel Oribe havia
proibido o envio de tropas de gado do seu país para o Rio Grande do Sul. O resultado disto tudo
se reflete na visível queda do Gráfico 8.1 e, como já foi dito, provocou grande insatisfação entre
os proprietários rio-grandenses. A reclamação dos charqueadores ganhou apoio do Presidente
da Província que buscou mediar a negociação com a Corte. Em julho de 1850, Pimenta Bueno
escreveu ao Ministro da Fazenda esclarecendo a situação: “Em minha opinião a questão seria
simples se esta Província estivesse povoada de gados, mas ela está exausta e em quando assim
continuar não poderá de modo algum competir com o Estado Oriental”. O presidente temia que
a cobrança de altas taxas sobre o charque remetido pela fronteira fosse incentivar os saladeros a
se instalarem na região uruguaia do Buceo levando para mais longe ainda os gados e os
negócios que vinham beneficiando economicamente o lado brasileiro do Jaguarão.7
Por conta do grande número de rebanhos dizimados durante a Guerra Grande e dos
tratados assinados com o Brasil, os saladeros de Montevideu também foram imediatamente
afetados. Como foi visto no capítulo anterior, dos 37 saladeros que existiam no Uruguai em
1842, somente 3 ou 4 continuaram funcionando normalmente no início dos anos 1850.11 Sem a
concorrência uruguaia, os preços do produto aumentaram e este foi um dos grandes benefícios
trazidos pela guerra. Conforme o gráfico 8.2, pode-se observar que os preços foram favoráveis
até a safra de 1858, quando a arroba atingiu uma média de 4$609 réis no porto de Rio Grande.
Este período também foi marcado por vultosos carregamentos de charque para o Rio de Janeiro,
superando a concorrência do tasajo no mercado do sudeste. Conforme Afonso Graça Filho, nos
anos 1850, o Rio Grande do Sul constituiu-se na principal província fornecedora de alimentos
para a população carioca. Entre os gêneros rio-grandenses mais consumidos destacavam-se o
milho, a farinha, o feijão e o charque. Em contrapartida, sem o tasajo uruguaio nos armazéns da
Corte e com os preços do produto em alta, a população pobre do Rio foi prejudicada pela crise
de carestia de alimentos que afetou a cidade em 1854.12 O fato é que para os charqueadores
pelotenses lucrassem conforme os seus desejos, todos os demais tinham que sair perdendo.
Mas a euforia em Pelotas durou pouco. No início dos anos 1850, a economia argentina
encontrava-se em melhor situação que a uruguaia, pois as guerras não foram tão nocivas aos
portenhos daquele ramo de negócios. Conforme Rosal e Schmit, a década de 1850 apresentou
9
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de
Extradição e de Limites. Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2002, p. 40.
10
Conforme as reclamações de Andrés Lamas, representante diplomático da República Oriental na Corte, os rio-
grandenses estabeleciam uma série de empecilhos na fronteira, exigindo o transbordo de todo o tasajo para
embarcações brasileiras e dificultando a sua passagem. As 618.926 arrobas remetidas na safra de 1850/51 caíram
para 126.062 na de 1854/55. BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 50.
11
Conforme a mesma fonte (sem data) citada anteriormente, a maioria das charqueadas daquele período estavam
desativadas. Por conta disto, a safra rio-grandense de 1852-1853 apresentou um aumento nas exportações para logo
declinar. Contudo, este declínio deve ser relativizado, pois agora já não se tinha mais o charque uruguaio entrando
pela Lagoa Mirim como nas quantidades anteriores, o que indica que os totais exportados após 1851
correspondiam totalmente ao que o Rio Grande do Sul realmente produzia por ano.
12
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 58-60.
293
altos índices de exportação de tasajo em Buenos Aires. Somados os 5 anos entre 1850 e 1854, a
cidade exportou mais de 100 mil toneladas, chegando perto das mais de 125 mil toneladas
exportadas pelo Rio Grande do Sul no mesmo período.13 Na segunda metade da década de
1850, os orientais conseguiram recuperar a sua indústria, atingindo altos índices de abate. A
revisão dos tratados comerciais entre Brasil e Uruguai, realizada em 1857, foi uma das grandes
estimuladoras desta retomada. Nesta ocasião, o charque uruguaio deixou de pagar as altas taxas
de importação no Brasil e voltou a ser comprado em grande escala pelos comerciantes cariocas.
Além da insistente diplomacia oriental, a medida também foi favorecida pelas crises de
abastecimento que a cidade do Rio de Janeiro vinha passando desde o ano de 1854.14 Portanto,
com a recuperação da indústria saladeril platina e a pacificação dos seus territórios, ficou difícil
para os pelotenses concorrerem com a expansão daquele setor. A brusca queda das exportações
de charque rio-grandense na safra de 1857-58 e o declínio dos preços do produto após aquele
mesmo ano foram vistas como sintomas de uma nova crise. Apenas para lembrar o leitor, datam
do final da década de 1850 as manifestações de descontentamento e revolta do charqueador
Domingos José de Almeida através do jornal que ele havia fundado.
6.000
5.000
4.000
3.000
2.000
1.000
Fonte: Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p.
246-247; Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1846-1860).
13
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., p. 86.
14
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit. Por conta disto, a taxa de importação já havia sido diminuída em 1854-55 de
25% para 11%. A medida também favorecia o charque argentino e em particular Justo Jose de Urquiza, antigo
aliado do Império na Guerra de 1851/52, cujo próprio saladero em Entre Rios vinha abatendo cerca de 40 mil reses
anualmente, enriquecendo o caudilho (BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 49; 91-93). Na mesma
época, a Bahia foi palco de uma semelhante crise por conta do excessivo preço da carne, que havia dobrado entre
1854 e 1858. (REIS, João José; AGUIAR, Márcia G. D. de. “Carne sem osso e farinha sem caroço”: o motim de
1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História, São Paulo, n. 135, 2º sem., 1996, p. 133-160).
294
No final dos anos 1850, além de Buenos Aires e Montevideu, a província de Entre Rios
também juntou-se ao grupo das grandes produtoras de carnes do sul da América. 15 Contudo,
quanto maior o número dos concorrentes e do produto fabricado, no interior de um sistema
econômico cuja demanda era pouco elástica, mais baixos ficavam os preços do charque no
mercado atlântico. Nesta nova conjuntura, o Atlântico Sul se viu tomado por levas e mais levas
de charque que excediam em muito a demanda dos mercados consumidores. 16 A tabela 8.1
demonstra este aumento. Não demorou muito e os produtores platinos diagnosticaram o
problema como uma crise de superprodução.17 Tal fenômeno fez despencar os preços do
produto, como pode se notar no gráfico 8.2. Por conta disto, em 1861, o governo brasileiro
reabilitou as taxas de importação sobre o tasajo, mas o estrago já estava feito. A década foi
marcada por intensos debates e tentativas tecnico-científicas para elaborar melhores formas de
aproveitamento da carne bovina, da sua conservação e a busca de mercados alternativos ao
Brasil e Cuba. 18 O Uruguai pacificado contava com mais de 8 milhões de reses nos seus
campos. Era tanto gado que os saladeros e os consumidores não davam conta. Numa reunião de
setembro de 1862, o Clube Nacional do Uruguai, formado por estancieiros, saladeiristas e
comerciantes, manifestou-se com relação a esta questão buscando traçar estratégias de ação
coletiva. Para os seus líderes, a crise tinha “uma única origem” que era a do tasajo possuir
somente dois “mercados consumidores”. Argumentando que o seu produto possuía qualidade
reconhecida tanto no Brasil como em Cuba, os mesmos apostavam que era necessário mirar a
Europa, onde o Reino Unido seria o principal mercado, porque, “há alguns invernos, a
Inglaterra e suas dependências asiáticas têm começado a sentir um terrível carestia e falta de
gêneros alimentícios”.19
Dos países europeus, a Inglaterra constituía-se num dos maiores consumidores de carne
bovina, sendo abastecida, durante séculos, por rebanhos vindos de todas as partes do
15
Para uma localização da mesma, ver o Mapa 1 na introdução desta tese.
16
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 118-130.
17
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 118-130. Jornal O Constitucional. Rio de Janeiro,
07.09.1862 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
18
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión
ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, 2003. Interessante notar que a amplitude
do comércio internacional ao longo século XIX vai tornando o mercado das carnes cada vez mais mundial ao
contrário dos séculos anteriores.
19
Os autores referiam-se à Índia, que no meado do século teve milhões de vidas ceifadas pela grande fome que
assolou Bengala. Eles sabiam que a reexportação inglesa do tasajo para a Ásia seria difícil, pois “obstão a isso de
um modo quiçá invencível as crenças religiosas daqueles povos”. Mas, de acordo com eles, como a Inglaterra
deveria prover com seus alimentos aqueles mercados em face daquela “calamidade” abrir-se-ia um espaço de
consumo na Ilha britânica. Por conta disto, era preciso ensaiar alguns envios de suas carnes para os portos
britânicos (Jornal O Constitucional. Rio de Janeiro, 07.09.1862 (BN-RJ)).
295
continente.20 Nesta época, o consumo anual per capita de carne bovina na Inglaterra era de 50
kg.21 Tratava-se de uma cifra inferior a dos habitantes do sul da América (em Buenos Aires era
de 100 Kg a 120 Kg, por exemplo), mas em termos europeus era suficiente para despertar o
interesse de grandes exportadores como Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, que, a
partir de Londres, podiam estender sua oferta aos países vizinhos da Europa Ocidental. 22
Contudo, este não era o único motivo pelo qual a Inglaterra havia se tornado uma alternativa
aos produtores do cone sul americano. A presença de comerciantes ingleses nos três portos
marítimos da região, devido ao circuíto mercantil dos couros salgados e gorduras com a
indústria britânica, constituía-se num estímulo adicional. Além do mais, nesta mesma época, os
próprios ingleses incentivavam os charqueadores e os saladeros a aprimorar as técnicas de
fabricação e a qualidade das carnes para ampliar o seu mercado. 23
Por conta disto, na década de 1860, várias tentativas de remessas de carnes foram
realizadas por charqueadores e saladeiristas, mas as mesmas fracassaram. A fabricação das
carnes em barris, que ressuscitava o fantasma irlandês dos tempos coloniais, também foi
retomada, mas não se obteve sucesso. A frustração para com os mercados do Atlântico norte foi
acentuada por três importantes fatores. Primeiramente, as barreiras protecionistas de alguns
países tornaram-se um grande empecilho. Os Estados Unidos, que importavam o charque
pelotense em pequenas quantias e o tasajo em proporções maiores, elevou as taxas de
20
Em 1869, por exemplo, a Holanda exportou 289 mil carneiros e 62 mil gados bovinos para a Inglaterra, seguido
da Alemanha, com 265 mil e 83 mil dos mesmos gados, e a Bélgica, com 140 mil e 13 mil (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 372). Para uma análise mais completa ver PERREN, Richard. The meat
trade in Birtain (1840-1914). London: Routledge & Kegan Paul, 1978.
21
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 357.
22
PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the International Meat Industry since
1840. Aldershot: Ashgate, 2006.
23
BELL, Stephen. Innovación, desarollo y medio local. Dimenciones sociales y espaciales de la innovación.
Revista Scripta Nova. Barcelona. N. 69 (84), 2000.
296
importação do produto em 1867, decretando o declínio das vendas nos seus portos.24 Além
disso, outros países europeus, como Portugal, utilizavam uma política protecionista bastante
rígida com relação a sua indústria alimentícia. 25 Em segundo lugar, os portos britânicos haviam
se tornado palco de um grupo de comerciantes norte-americanos que abastecia o proletariado
inglês com uma carne de porco salgada e bastante gordurosa (o toucinho brasileiro).26 Estes
negociantes influíram de forma negativa para a entrada do tasajo no mercado inglês. 27
Por conta de tudo isto, em 1864, a Inglaterra tomou a decisão mais radical dos mercados
consumidores analisados, proibindo a importação de tasajo, pois duvidava da qualidade dos
mesmos.29 Os muitos anos de consumo de carnes de boa qualidade aumentaram a exigência do
gosto dos ingleses não apenas das classes mais abastadas da sociedade, como também, do seu
proletariado urbano. Conforme Barran e Nahum, os operários ingleses e os mineradores
espanhóis se recusavam a consumir o produto, evidenciando uma aversão dos trabalhadores
livres a algo que pudesse associá-los à escravidão.30 Em Cuba, nos anos 1840, a divisão do
consumo era evidente. Os contratos de fornecimento para os trabalhadores ferroviários
24
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347-348. Em 1828, por exemplo, o Rio Grande do
Sul exportou quase 10 mil arrobas de charque para Boston, nos Estados Unidos, e em 1850 foram remetidas mais
de 2 mil arrobas para o mesmo país (Mapa estatístico comercial, Fundo Fazenda, m. 482 e 489, AHRS; Relatório
do Presidente da Província de 26.09.1855).
25
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
26
BELL, Stephen. Op. cit., 2000.
27
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
28
BELL, Stephen. Op. cit., 2000.
29
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347-348.
30
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
297
estipulavam que se desse carne fresca ao brancos e charque aos negros. 31 No Brasil, o charque
era alimento básico na dieta dos escravos e das classes mais pobres, mas não encontrei nada
próximo de uma aversão ao consumo do produto por parte das camadas mais ricas. O mais
curioso disto tudo é que a alimentação do operariado europeu era bastante pobre e em termos de
quantidades calóricas e a dieta equilibrada era inferior a de qualquer escravo nas Américas,
sendo, inclusive, motivo de ironias de charqueadores e saladeiristas. 32
A aversão do operariado inglês possuía fortes fatores culturais absorvidos das elites
britânicas, pois as declarações das autoridades inglesas, algumas de caráter até mesmo racista,
deixavam claro a divisão social do consumo de carnes pela qual o mundo Atlântico estava
sendo dividido.33 Neste sentido, como o mercado europeu fechava as suas portas ao charque
sul-americano e os Estados Unidos, além de autossuficientes no abastecimento de carnes ainda
eram um forte concorrente no Atlântico Norte, saladeiristas e charqueadores foram impelidos a
disputarem um maior espaço nos seus próprios mercados tradicionais: Brasil e Cuba. Tendo em
vista que o charque platino era mais saboroso, tinha melhor aparência e conseguia ser vendido
mais barato em muitos mercados, e como os comerciantes de Buenos Aires e Montevideu
estavam inseridos em redes mercantis hispânicas e anglo-francesas mais amplas, este produto
foi eliminando lentamente o charque pelotense dos mercados concorrenciais. Conforme
Stephen Bell, ao longo da década de 1850, os produtores platinos “empurraram” os rio-
grandenses para fora do mercado cubano. 34 O comércio das carnes em Havana era controlado
por monopolistas cubanos35 e tendo em vista a tradicional ligação entre a região do Prata e a
ilha caribenha, era difícil para os brasileiros imporem-se naquele mercado.
31
FRAGINALS, Manuel Moreno. O Engenho. São Paulo: Unesp/Hucitec, v. II, 1989, p. 78-79. Sobre esta divisão
social e racial do consumo de carne em Cuba ver também (TORRE, Celia P. La alimentación en Cuba en el siglo
XVIII. Revista de Humanidades, ITESM, Monterrey, n. 19, 2005, 101-116).
32
BARRAN, Jose P.; NAHUM. Benjamin. Op. cit., p. 112-113. Conforme Stephen Bell, os políticos rio-
grandenses debateram bastante sobre a possibilidade das charqueadas lucrarem com os habitantes pobres das
grandes cidades da Europa. Havia muita especulação sobre as péssimas condições de vida dos trabalhadores das
suas fábricas. “Um dos deputados mais otimistas descreveu uma grande fábrica de velas e sabão em Pelotas que
fervia patas de gado para [extrair] seus óleos. Esta fábrica enlatou o resíduo ‘cujo odor nem o olfato do nobre
deputado, nem o meu poderiam tolerar’. Duas colheres desta geléia, com uma bolacha em uma tigela fizeram o
almoço de um trabalhador inglês”. De acordo com Bell, “tal era a fome na primeira nação industrial que até mesmo
este produto era usado como comida” (BELL, Stephen. Op. cit., 2000).
33
Por conta disto, os produtores argentinos empenharam-se cada vez mais para alcançar a exigência do paladar
britânico, atingindo este nível somente no final do século XIX, como tratarei adiante.
34
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system, 1850-1928. Stanford: Stanford University
Press, 1998, p. 78.
35
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
298
acima aconteceu no Rio de Janeiro.36 De acordo com o Gráfico 8.3 percebe-se que, a partir dos
anos 1860, a praça carioca deixou de ser a principal compradora do charque rio-grandense e
muito embora permanecesse consumindo grande quantidade do produto, a representatividade
nos totais exportados pelo Rio Grande caiu bastante. Costuma-se vincular a produção do
charque aos cafezais do sudeste. Contudo, durante toda a década de 1860, o Rio comprou de
35% a 25% das exportações totais do produto, vindo a somar de 20% a 10% nas décadas
posteriores – índices muito baixos se comparados ao meado do século. Portanto, é interessante
perceber que o apogeu da produção e do comércio do charque aconteceu exatamente na década
de 1860 e teve como mercado impulsionador o nordeste agrário e não os cafezais do sudeste.
A análise da queda das vendas do charque pelotense para a praça do Rio não deve levar
a conclusões precipitadas a respeito de uma suposta mudança na dieta alimentar das camadas
mais pobres da cidade do Rio de Janeiro e dos escravos das plantations do sudeste.37 De acordo
com Graça Filho, o charque continuou sendo comprado em enorme quantidade e compunha
49,4% do valor dos comestíveis importados pelo Rio de Janeiro em 1863-64 e 64% em 1869-
70.38 Entretanto, seus maiores carregamentos não provinham mais do Rio Grande, mas sim da
região do Prata. O Gráfico 8.3 demonstra que nos anos 1860, os comerciantes cariocas
passaram a investir mais no tasajo vindo de Montevidéu e Buenos Aires para onde enviavam
remessas de açúcar, café e outros produtos. Portanto, a década de 1860 foi fatal para os
produtores pelotenses, pois eles foram alijados do seu mercado consumidor mais próximo.
Mesmo que a região sudeste não superasse a região nordeste no consumo de charque, o Rio de
Janeiro sempre foi o principal parceiro comercial do Rio Grande. A perda deste mercado para
os rivais argentinos e uruguaios não deve ter representado apenas um impacto econômico para
os pelotenses, mas também um impacto simbólico, pois a Corte era muito mais do que um
centro comprador de charque. O Gráfico 8.3 demonstra que por volta dos anos 1870 esta
36
“O movimento ascensional das exportações gaúchas de 1850 a 1868, só foi conturbado pela seca, praga de
carrapatos e o rigoroso inverno de 1857, bem como pela crise comercial de 1864. No ano de 1869, a produção se
restringe à metade, mantendo-se em torno desse patamar com ligeiras alternâncias até 1880. Na cidade do Rio de
Janeiro, os carregamentos vindos do sul reduziram-se progressivamente de 1859 a 1880, proporcionalmente ao
aumento das chegadas da carne-seca rio-platense. A queda na produção e o contrabando limitaram-na à
insignificante porcentagem de 5,6% e 6%, nos anos de 1878 e 1880” (GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 64-65).
37
Conforme Carlos Valencia, entre 1840 e 1860, a dupla charque/farinha de mandioca perfazia 60% dos gastos das
famílias pobres do Rio, em sua dieta alimentar (VALENCIA, Carlos Eduardo. Costos de los alimentos y renta de
los trabajadores libres en Río de Janeiro (Brasil) y Richmond (Virginia, EUA) en la primera mitad del siglo XIX.
In: Anales Simposio da CLADHE. México: Facultad de Economía, UNAM, 2011, p. 13).
38
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 45.
299
situação já havia se tornado irreversível. Somente uma nova grande guerra que afetasse a
economia platina poderia alterar aquele quadro, mas ela nunca veio. 39
A partir do mesmo Gráfico 8.3 começo a analisar a conjuntura do mercado das carnes no
último quartel do século XIX. É possível perceber que grande parte do charque exportado pelo
Rio Grande do Sul neste período foi remetido para outros mercados que não o Rio. Ora, estes
mercados eram a Bahia e Pernambuco que agora tornavam-se mais fundamentais ainda para a
economia charqueadora pelotense. Compilando dados estatísticos do período, Renato
Marcondes verificou que, entre os anos de 1869 e 1872, cerca de 80% do charque
comercializado pelo Rio Grande do Sul desembarcava nos portos de Recife e Salvador,
enquanto o Rio compunha somente cerca de 10% dos valores exportados.40 Na safra de 1874-
75, 83,7% do charque exportado teve como destino Bahia (44,5%) e Pernambuco (39,2%).41
Este processo de deslocamento dos mercados também pode ser compreendido por outros
fatores de ordem não econômica. A Guerra dos 10 anos em Cuba (1868-1878) fez diminuir as
importações de tasajo em Havana de 17 mil toneladas para 11 mil, prejudicando muito os
saladeiristas. 42 Com os obstáculos oferecidos por aquele mercado, os comerciantes platinos
foram obrigados a desviar as suas remessas para o Rio, onde se pagava bem pelo produto. E
aqui cabe uma outra interpretação para tornar todo o fenômeno descrito anteriormente ainda
mais complexo. Entre os anos 1860 e 1880, o charque rio-grandense sempre apresentou um
preço inferior ao tasajo no mercado carioca. É possível que os pelotenses e comerciantes de Rio
Grande não tenham sido apenas empurrados para fora do mercado carioca contra a sua vontade,
mas sim, que tivessem decidido buscar preços melhores para o charque no mercado nordestino.
Dados de 1870 mostram que, em Salvador, seu preço era levemente superior ao do tasajo –
situação que deve ter se acentuado após a epidemia de febre amarela no rio da Prata (1871-72)
39
No capítulo anterior argumentei que a intervenção militar no Uruguai, em 1864, e todas as suas implicações
trouxeram grandes benefícios aos charqueadores de Pelotas. Contudo, também colaborou para isso a epidemia de
cólera morbus (1867/68) que exigiu o fechamento de parte dos saladeros argentinos (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 345).
40
Nesta época, os rio-grandenses foram os maiores compradores de aguardente e açúcar vindos do nordeste. Os
preços pagos pelo açúcar, aguardente e algodão no Rio Grande eram os mais altos do Brasil. Em contrapartida, a
província onde se pagava mais caro pelo charque era São Paulo: 301 réis/kg contra 274 réis/kg na média nacional.
Os preços médios nacionais do açúcar, da aguardente e do algodão em réis eram 321/kg, 226/litro, 699/kg. No Rio
Grande, se pagava respectivamente 642/kg, 300/litro, 1.314/kg. Nota-se que com exceção da aguardente, os outros
dois produtos se pagava quase o dobro, o que devia ser rentável para os comerciantes do nordeste (MARCONDES,
Renato. Op. cit.).
41
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Além disso, Salvador, por
exemplo, abastecia Aracajú e Maceió, além do litoral baiano (Ilhéus e Caravelas) e dos sertões, onde o produto era
levado pelos tropeiros e caixeiros viajantes (CHAVES, Cleide. De um porto ao outro: a Bahia e o Prata
(1850-1889). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2001, p. 62-66).
42
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 254.
300
que obrigou a praça de Salvador a proibir a importação do tasajo.43 Para os rio-grandenses
tratava-se de uma manobra arriscada (e que já havia sido realizada com sucesso nos anos 1790,
como descrevi no primeiro capítulo), pois deslocava grande parte do comércio do charque para
praticamente um único mercado consumidor. Neste contexto, os fretes para Pernambuco
podiam chegar a custar quase o dobro do valor cobrado pelas cargas remetidas até o Rio. Como
demonstrarei no capítulo seguinte, esta nova fase favoreceu o enriquecimento de muitos
charqueadores pelotenses, mas também trouxe a ruína de outros tantos.44
Gráfico 8.3 – Charque platino e rio-grandense comprados pelo Rio de Janeiro e os totais
exportados pelo Rio Grande do Sul (1850-1886) – (em toneladas)
50.000.000
45.000.000
40.000.000
35.000.000
30.000.000
25.000.000
20.000.000
15.000.000
10.000.000
5.000.000
0
Fonte: Anuário Estatístico do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro (1876-1892) – BN-RJ; GRAÇA
FILHO, Afonso. Op. cit., p. 238; Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1848-
1862); Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922.
Além disso, pelo Gráfico 8.3 também é possível perceber que, a partir dos finais dos
anos 1860, as exportações de charque uruguaio e argentino exclusivas para o Rio (sem contar as
remessas que os mesmos faziam para o nordeste brasileiro e para Cuba, por exemplo) já eram
capazes de superar os totais exportados pelo Rio Grande do Sul, demonstrando a força da
indústria saladeril platina e confirmando as queixas de Andrés Lamas de que os pelotenses
sozinhos não tinham condições de abastecer o mercado brasileiro. É bem verdade que se
tratavam de três complexos fabris (agora Entre Rios juntava-se ao grupo platino) competindo
43
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 345; CHAVES, Cleide. Op. cit., p. 57-64.
44
Chaves diz que após 1888, o comércio de charque platino perdeu mercado para as carnes do sertão que
chegavam mais baratas por conta do desenvolvimento das estradas de ferro e rodagem no interior baiano. Estas
carnes vinham de Feira de Santana, Jacobina e alto São Francisco (CHAVES, Cleide. Op. cit., p. 88-90).
301
contra apenas um (além disso, argentinos e uruguaios disputavam o mercado brasileiro entre si,
unindo-se, às vezes, para exigir a diminuição das tarifas alfandegárias brasileiras). Mas no
último quartel do oitocentos, por exemplo, a Argentina sozinha já fabricava mais tasajo que o
Rio Grande do Sul. Analisando os indicadores compilados por Barsky e Djenderedjian percebe-
se que nos anos 1850 as exportações de tasajo pelo porto de Buenos Aires atingiram uma média
anual de 20 mil toneladas. Na década de 1860, quando as remessas oscilaram muito, atingiu-se
uma média aproximada de 25 mil toneladas. Nos anos 1870, ela foi de 35 mil toneladas, nos
anos 1880, onde também encontrara altos e baixos, o tasajo obteve uma média anual próxima
das 30 mil toneladas, e nos anos 1890, quando pela primeira vez ultrapassou 50 mil toneladas, a
média manteve-se acima das 40 mil toneladas, o dobro do que Rio Grande exportava.45
Como já foi dito, entre 1867 e 1878, Cuba recebeu algo entre 11 e 17 mil toneladas de
46
tasajo. A falta de pesquisas tratando do comércio de charque para o nordeste brasileiro
inviabiliza o conhecimento do total de tasajo importado pela região. Mas conforme Cleide
Chaves as quantias de carne platina descarregadas em Salvador eram bastante significativas,
uma vez que o charque pelotense não era capaz de suprir a demanda total da Bahia que revendia
as carnes para Alagoas e Sergipe.47 Tendo em vista que Montevidéu exportou anualmente, em
média, algo entre 30 e 40 mil ao longo dos anos 1870 e 188048 (média superior ao Rio Grande
do Sul nos anos 1860), pode-se considerar que o volume global de charque e tasajo negociado
nos principais portos consumidores do Atlântico (entre os anos 1860 e 1880) deve ter se
mantido na casa das 80 e 85 mil toneladas, ultrapassando as 100 mil em alguns anos.49
Sem dúvida era muito charque, mas ele estava longe de suprir a demanda mundial por
carnes, uma vez que o produto não era bem aceito pelos consumidores da maioria das cidades
europeias. Aceitando as opiniões inglesas como se fossem quase uma doutrina, articulistas
argentinos passaram a condenar a fabricação do tasajo pela forma como era preparado e a sua
45
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 340-341. Nos anos 1850 (com média anual de 22 mil
toneladas) e 1860 (com 30 mil) o Rio Grande do Sul manteve-se na frente dos argentinos. Mas nos anos 1870 (com
26 mil) e 1880 (com 21 mil) foi ultrapassado. Nestas últimas décadas, os argentinos exibiam um vigor econômico
impressionante, pois, como demonstrarei adiante, já exportavam outros tipos de carnes para o exterior, enquanto
Pelotas dependia cada vez mais do charque remetido exclusivamente para o nordeste brasileiro. Sobre o dinamismo
da economia argentina na passagem do século XIX para o XX, assim como os investimentos ingleses no país, ver
LENZ, Maria Heloisa. Crescimento econômico e crise na Argentina de 1870 a 1930: a Belle Époque. Porto
Alegre: UFRGS/FEE, 2004.
46
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 254.
47
CHAVES, Cleide. Op. cit.
48
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 641.
49
Na realidade, o volume negociado foi muito maior, pois não se está computando a carne seca e salgada
produzida por Estados Unidos, Venezuela e México, por exemplo. Na década de 1880, os Estado Unidos haviam
capturado o mercado cubano dos platinos, obrigando-os a deslocar mais ainda as suas vendas para o Brasil, o que
também ajuda a explicar a decadência final das charqueadas escravistas em Pelotas (MILLOT, Bertino M. Historia
Económica del Uruguay (1860 – 1910). Montevideo, Tomo II, 1996, p. 152-153).
302
qualidade final. Já na década de 1850, Martin de Moussy dizia que o tasajo só havia prosperado
graças “a classe desgraçada” que o consumia e que problemas de capital, mão de obra e da
qualidade do gado eram os grandes empecilhos para o crescimento da indústria argentina. Em
1867, sob influência da recente abolição da escravidão nos Estados Unidos, um articulista
escreveu: “la tendencia de época y para lo que com sobrada justicia se trabaja en el mundo
civilizado, es abolir la esclavatura; esse día no lejano, el tasajo no valdrá nada pues faltaran
bocas desgraciadas a quien imponerlo como alimento”.50 Por conta disto, o processo de
abolição da escravidão em toda a América passou a ser visto por muitos saladeiristas como algo
ameaçador. Sendo o tasajo dependente dos mercados escravistas, em que situação ficariam
aqueles que os fabricavam diante de um mundo onde a liberdade individual vinha tomando
força? Como poderiam empresários de visão tão “empreendedora” e ciosos de tais posições
depender da escravização de homens para manter os seus negócios? Conforme Barsky e
Djenderedjian, os saladeiristas temiam esta vinculação do tasajo com a escravidão, pois os
libertos, em melhores condições de vida, poderiam rejeitar o produto.
Hoje sabe-se que isto não aconteceu. O charque continuou a ser fabricado em larga
escala e até aumentou a sua produção ao longo das primeiras décadas do século XX. E isto
porque a vinculação do produto com a escravidão havia se tornado o efeito aparente de um
problema muito mais profundo. Como notaram Barran e Nahum, a divisão social do consumo
alimentar na segunda metade do oitocentos não era de ordem jurídica, mas sim, de ordem
social. Homens cativos e homens livres pobres em geral (brancos ou negros) compartilhavam
de uma infra-alimentação tão grande que a abolição do escravismo não representou ruptura
nenhuma no que diz respeito a este aspecto. O charque, enquanto fonte importante de protéinas,
ajudava a combater aquele problema. Isto não significa dizer que a indústria saladeril e
charqueadora não dependia do consumo dos escravos. O primeiro capítulo desta tese foi todo
dedicado a comprovar esta dependência e de como o tráfico atlântico foi fundamental no
processo de montagem dos complexos fabris no cone sul americano. Mas se a escravidão
africana criou as condições de arranque para o surgimento destas fábricas, o processo de
abolição nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil não foi capaz de eliminar o consumo do
produto. O hábito de alimentar-se com carne-seca, charque ou tasajo foi absorvido por distintas
culturas em várias regiões. Conforme o historiador cubano Manuel Fraginals “o charque com
50
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347.
303
batata-doce tornou-se o ‘prato nacional’” em seu país.51 Para Barran e Nahum foi a expansão
dos frigorícos e a democratização das geladeiras, um processo lento e que estendeu-se por todo
o século XX, que eliminou o charque da mesa das populações menos abastadas.52
Contudo, o pesadelo de que a abolição geral da escravidão negra pudesse provocar o fim
da indústria saladeril argentina serviu para estimular novas saídas e investimentos de capital no
setor. Era preciso aproveitar a grande abundância de gado vacum em seus campos. Entre 1862 e
1866, por exemplo, se abateu 8,3 milhões de bovinos, mas os saladeros e o consumo interno
absorveram somente 40% de toda carne, ou seja, era tanto animal vacum disponível que se
voltou a abatê-los somente para extrair os couros, desfazendo-se das carnes. Era necessário
encontrar uma saída econômica para a superprodução de carne, uma vez que ela estava
baixando o preço dos rebanhos e arruinando os estancieiros argentinos e uruguaios. Portanto,
passou-se a duvidar do tasajo como o tipo de alimento a ser exportado. Em 1868 e 1872,
autoridades administrativas ofereceram prêmios para quem descobrisse um novo sistema de
conservação das carnes. Nos anos 1860, o sistema de extrato de carne, transformado por meio
de um processo químico e vendido em enlatados, foi tentado tanto no Rio Grande quanto no
Prata.53 Sempre atentos aos mercados atlânticos e às inovações tecnológicas do período, alguns
empresários, como o Barão de Mauá, também buscaram participar deste processo.54
Contudo, foi somente a partir dos anos 1870 que verdadeiras soluções foram alcançadas,
com destaque para os produtores platinos. Nesta época, as remessas de gado em pé se tornaram
um negócio viável e os avanços científicos possibilitaram a introdução de raças bovinas que
forneciam mais carne.55 Na Argentina, em 1885, o gado crioulo não atingia 60 kg de tasajo por
animal, enquanto em 1899, as novas raças já possibilitavam extrair quase 100 kg do produto por
rês abatida. Além do mais, as novas raças cresciam mais rápido que as crioulas. Contudo, o
principal destino deste gado não era os saladeros, mas sim o mercado europeu e o
51
FRAGINALS, Manuel. Op. cit., p. 78. Analisando a Literatura ficcional cubana, Sluyter verificou que o tasajo
persiste como um elemento fundamental daquela cultura, bem como um traço de sua memória social (SLUYTER,
Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 2010, p.103).
52
BARRAN, Jose P.; NAHUN, Benjamin. Op. cit.
53
Os deputados rio-grandenses debateram tais questões intensamente na Assembléia Provincial. Ver, por exemplo,
as sessões de 02.10.1862, 04.11.1862 e 21.04.1863, na qual se discutiram o oferecimento de prêmios para quem
descobrisse novos métodos de conservação, os problemas dos mercados consumidores e a tentativa em retomar a
fabricação das carnes em barris (PICCOLO, Helga. Coletânea de Discursos parlamentares da Assembléia
Legislativa Provincial. Porto Alegre: ALRS, v. 1, 1998).
54
Segundo Caldeira, Mauá publicou anúncios em jornais europeus prometendo prêmios em dinheiro a quem
inventasse um método de conservação para evitar a deterioração das carnes (CALDEIRA, Jorge. Mauá:
Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18).
55
Em 1869, a Argentina isentou de impostos a exportação de gado em pé, o que durou até 1888, tamanha era a
abundância de rebanhos (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit. p. 342).
304
abastecimento de Buenos Aires.56 Apesar das primeiras experiências com navios capazes de
carregar carnes congeladas terem sido realizadas nos anos 1870, foi somente nas décadas
posteriores que a remessas atingiram quantidades significativas, sendo, primeiramente, as
carnes de ovelha (década de 1880) e depois as carnes bovinas (década de 1890).57
56
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 344-364.
57
Em 1899, o valor das exportações de gado em pé ainda era 3,2 vezes maior do que a de carne congelada. Mas
este transporte estava se tornando muito caro. Um bovino transportado por 25 a 30 dias perdia cerca de 150 kg na
travessia. Além disso, era muito custoso transportá-los vivos. Cada animal enviado em pé para a Europa
representava uma carga de 2 toneladas, somando o seu peso com o que ele deveria comer em um mês. Cerca de 1/3
do rebanho morria na viagem. Apesar de tudo, o negócio era muito rentável, pois enquanto um animal custava uma
onça de ouro para ser carregado, ele era vendido por 6 ou 8 onças de ouro na Europa (BARSKY, Osvaldo;
DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 374-75).
58
Sobre as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores ver HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-
1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000. Conforme Perren, o consumo de carne per capita na Inglaterra aumentou em
50% entre as décadas de 1840 e 1890 (PERREN, Richard. Op. cit., 1978, p. 3).
59
Um dos motivos pelo qual os norte-americanos dominaram o mercado de carnes refrigeradas foi a maior
proximidade com a Europa, pois, pela tecnologia da época, ainda não era possível levar as cargas refrigeradas do
Rio da Prata até a Inglaterra. Somente o congelamento proporcionava tais viagens. Foi preciso esperar mais 20
anos para que as técnicas de refrigeração fossem aproveitadas pelos produtores platinos.
60
ZUCCONI, Guido. A cidade do século XIX. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 17.
61
PERREN, Richard. The north american beef and cattle trade with Great Britain (1870-1914). The Economic
History Review, New series, v. 24, n. 3, 1971, p. 435-441.
305
8.2 PELAS “MARGENS” DO CAPITALISMO: OS MERCADOS ATLÂNTICOS DOS
COUROS E DO SAL
Portanto, as exportações dos couros (e das lãs, no caso dos países platinos) foram
fundamentais para o desenvolvimento de ambos os espaços econômicos. No processo de
industrialização na qual Inglaterra, França, Estados Unidos e algumas nações europeias tiveram
papel proeminente ao longo do oitocentos, a demanda por peles de animais em geral foi uma
constante e o cone sul americano integrou-se ao mercado internacional como fornecedor destes
produtos. Esta estrutura econômica foi um fator fundamental para a compreensão das
capacidades e das limitações das economias platinas e pelotense no período. A pecuária
argentina e uruguaia era muito mais dinâmica e ligava-se a distintos mercados se comparada à
62
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., 1999, p. 78-91. Como foi visto no primeiro capítulo, os couros
foram responsáveis por conectar o Rio Grande do Sul, por meio do porto do Rio de Janeiro, ao comércio
internacional. Os dados de exportação do produto são escassos, mas pode-se dizer que nos anos 1810, o Rio
Grande produzia a metade do Rio da Prata.
63
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., p. 89-91; BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit.,
p. 344. Na segunda metade do século a indústria platina manteve altos índices de exportações, acrescendo as
vultosas remessas de lã no mercado internacional, algo que o Rio Grande do Sul não conseguiu realizar com
sucesso semelhante (SABATO, Hilda. Capitalismo y ganadería en Buenos Aires: la fiebre del lanar (1850-1890).
Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1989). As charqueadas pelotenses não abatiam ovinos e a lã nunca chegou
a 4% dos valores exportados na segunda metade do século XIX.
306
rio-grandense que, além de depender de um único mercado consumidor de charque nos anos
1870, possuía um rol inferior de produtos negociáveis.
3.500.000
3.000.000
2.500.000
2.000.000
1.500.000
1.000.000
500.000
0
1853
1865
1879
1845
1847
1849
1851
1855
1857
1859
1861
1863
1867
1869
1871
1873
1875
1877
1881
1883
1885
1887
1889
64
As curvas dos totais de couros exportados não são totalmente equivalentes às do charque porque nem todo o
couro era proveniente de animais abatidos nas charqueadas. O gado destinado ao consumo local também tinha seu
couro vendido para fora da província, por exemplo.
307
Com relação aos destinos das exportações dos couros, não existem dados muitos
completos nem no Rio Grande do Sul, e, de acordo com Rosal e Schmit, nem para as remessas
platinas. Conforme os autores argentinos, os maiores compradores foram, em ordem de
importância, Inglaterra, Estados Unidos, com França e Espanha disputando o terceiro lugar. O
maior vínculo mercantil com o Reino Unido, predominante em quase todo o período, também
se devia pelo fato dos britânicos serem os grandes parceiros comerciais de Buenos Aires.
Contudo, esta posição foi ameaçada somente no meado do oitocentos, quando os Estados
Unidos atingiram um grande nível de industrialização e a lã começou a se tornar o grande
produto na pauta das exportações argentinas. No período entre 1849 e 1854, os Estados Unidos
ultrapassaram a Inglaterra pela primeira vez. Na década de 1850, os americanos foram os
maiores compradores de lã, seguidos de Inglaterra e França.65
Gráfico 8.5 – Preços de couro no porto de Rio Grande (1845-1890) (mil réis/unidade)
10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
1847
1861
1877
1845
1849
1851
1853
1855
1857
1859
1863
1865
1867
1869
1871
1873
1875
1879
1881
1883
1885
1887
1889
65
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., 1999, p. 89-95.
66
TORRES, Daniel de Quadro. Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses
econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão do Curso de História. FURG, 2004; SILVEIRA,
Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX. Monografia de
conclusão do curso de História da FURG. Rio Grande, 2006.
308
Inglaterra, as cidades hanseáticas, a França e Portugal, além de outros com menor importância.
Estes produtos, assim como as canelas e os chifres, eram processados nas indústrias
estrangeiras, com destaque para as têxteis. Mas examinando mais detalhadamente estes dados
observam-se duas rotas distintas dependendo do couro que se negociava. A Inglaterra
importava 77% dos couros salgados, mas somente 3% dos couros secos, ocupando a quinta
posição neste produto. Já os norte-americanos eram o quarto maior importador de couro
salgado, reunindo 3% das importações, mas eram os líderes no comércio de couros secos, com
58%.67 Esta diferença, apesar de não ter sido analisada por Rosal e Schmit, também se
verificava nas exportações platinas. Conforme Nahum e Barran, os ingleses preferiam os couros
salgados, algo que envolvia as preferências das respectivas indústrias compradoras, o tipo de
uso do couro e do produto que se fabricava.68
67
TORRES, Daniel. Op. cit., p. 50-52. Com relação aos chifres, para a fabricação de objetos e de pentes diversos,
inclusive dos usados nos teares, a Inglaterra importava 645.703 unidades, ou 58% do total, secundada pelos
Estados Unidos com 19%.
68
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.
69
A lista dos demais portos, apesar de receber poucos carregamentos, é ampla e contém: Malta, Marselha, Porto,
Bremem, Cádiz, Filadélfia, Gotemburgo, Málaga, Bergen, Hamburgo, Constantinopla, entre outros.
309
especializadas em determinados tipos de produtos. Na Inglaterra, por exemplo, os fabricantes
de Yorkshire eram especializados em elaborar um couro pesado que servia para as correias das
máquinas das grandes fábricas. Estes proprietários devolviam para o mercado uma série de
produtos como sapatos, bolsas, luvas, selas, além de outros, de diferentes tipos e tamanhos. Na
Inglaterra, os principais polos destas fábricas e oficinas eram as cidades de Leeds, Liverpool e
Londres. Conforme Church, no meado do oitocentos, o deslocamento de muitos fabricantes
londrinos e de outras cidades para os arredores de Liverpool (atraídos pelos benefícios daquele
porto) favoreceu um maior crescimento deste ramo de atividades, aumentando a demanda por
peles. Nesta época os couros sul-americanos foram amplamente importados, sendo que, entre
1870-74 e 1890-94, o volume das entradas nos portos ingleses aumentou quase 5 vezes. 70 Tal
incremento de atividades fez surgirem notáveis cidades industriais como Walsall – a 8 km de
Birmingham – especializada na produção de selas.71
Assim como na Inglaterra, os circuitos mercantis dos couros nos Estados Unidos eram
controlados por poderosos grupos de negociantes estabelecidos nos portos norte-americanos
que revendiam os mesmos aos curtidores e fabricantes espalhados pelo país. Entretanto, os
principais polos fabris encontravam-se no litoral atlântico. As cidades de Massachusetts, por
exemplo, reuniam a maior parte das fábricas de sapatos do país, juntamente com New York,
New Jersey, Lynn, entre outras.72 Conforme Ellsworth, os sapatos e botas consumiam ¾ do
couro norte-americano.73 Nos anos 1860, a indústria calçadista chegava a outras cidades do
interior como Rochester, Cincinnati, Detroit, Chicago, St. Louis e Milwaukee, por exemplo.74
Com o crescimento populacional e a expansão das estradas de ferro, os sapatos e demais
produtos de couro fabricados pelas cidades da costa leste foram acompanhando a nova demanda
e abastecendo os consumidores do meio-oeste. Tal fenômeno provocou a lenta substituição dos
pequenos fabricantes, artesãos e sapateiros do interior do país e as pequenas oficinas de
curtumes do litoral por indústrias cada vez maiores, cujo maquinário, tecnologia e número de
trabalhadores eram maiores.75 Portanto, a elasticidade do mercado consumidor dos couros tinha
relação direta com o grande aumento populacional e a crescente urbanização das grandes
70
CHURCH, R. A. The British Leather Industry and Foreign Competition (1870-1914). The Economic History
Review, New Series, v. 24, n. 4, 1971, p. 543-570.
71
GLASSON, Michael. Walsall Leather Industry: the world’s saddlers. Oxford: Marston Book, 2013.
72
MULLIGAN JR., William. Mechanization and work in the american shoe industry: Lynn, Massachusetts, 1852-
1883. The Journal of Economic History, v. 41, n. 1, Mar. 1981, p. 59-63.
73
ELLSWORTH, Lucius F. Craft to national industry in the nineteenth century: a case study of the transformation
of the New York State tanning industry. The Journal of Economic History, v. 32, n. 1, Mar. 1972, p. 399-402.
74
ROOVER JR., E. M. The location of the shoe industry in the United States. The Quarterly Journal of
Economics, v. 47, n. 2 (Feb. 1933), p. 254-276.
75
MULLIGAN JR., William. Op. cit.; ELLSWORTH, Lucius. Op. cit.
310
cidades norte-americanas, francesas e inglesas e tornou-se um dos grandes trunfos das
charqueadas e saladeros platinos para resistir às crises que afetavam o consumo do charque.
Mas os couros exportados pelo Rio da Prata para a Europa também possuíam uma
importante parceira capaz de abrir muitos mercados no Velho Mundo. Como já foi dito, a lã
também foi um grande trunfo das economias platinas no período. Apesar da criação de ovelhas
nos campos da região ser antiga, foi somente com a importação de carneiros merinos (processo
conhecido como a merinização) que iniciou-se a expansão da produção lanígera. Além disso, a
alta dos preços da lã atraiu muitos investidores estrangeiros. A lã argentina e uruguaia
preenchia perfeitamente a demanda por fios na fase de aceleração industrial no Atlântico norte
e, aos poucos, passou a disputar o mercado inglês com as peles negociadas no interior da
Europa. Neste contexto, a Guerra da Criméia (1853-1856) e a Guerra Civil Americana (1861-
1865) constituíram-se em importantes impulsionadores da expansão lanígera no Prata. A
primeira provocou a escassez de peles, pois Rússia e Turquia, envolvidas no conflito, eram as
maiores produtoras mundiais de lãs. A segunda diminuiu as remessas de algodão para os portos
britânicos, estimulando o uso das lãs nas fábricas. A febre del lanar, como ficou conhecida,
trouxe muitos investimentos de capitais para a região platina, estimulou a vinda de estrangeiros,
mostrou que a mistura de raças era benéfica para o desenvolvimento da pecuária e incorporou a
fabricação do charque de carne ovina, trazendo grandes lucros aos saladeros. 76 Por conta disto a
criação de ovinos, que na década de 1830 era realizada em pequenas propriedades e com uso do
trabalho familiar, passou a despertar o interesse de grandes estancieiros. Ela foi um dos
motivadores do avanço sobre as terras indígenas no Pampa (1867-1890) que incorporou 40
milhões de hectares de campos para a criação de gado bovino e ovino. Como resultado disto, o
rebanho de ovelhas quadruplicou entre 1856 e 1876, chegando a 60 milhões de animais. Em
1895, o seu estoque já atingia quase 75 milhões. 77
Antes de concluir esta parte, é necessário fazer algumas considerações breves sobre o
comércio de sal. Não foi possível localizar séries de preços e quantidades de sal importadas
pelo Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX. Mas ao analisar os carregamentos
desta mercadoria para a província, Silveira ajudou a preencher parte destas lacunas para a
primeira metade do século. Observando os indicadores pesquisados pela autora, verifica-se que
os meses de janeiro e fevereiro eram os que recebiam os maiores números de carregamentos de
76
SABATO, Hilda. Op. cit. Para os dados referentes ao grande salto das exportações de lã ver REBER, Vera.
British Mercantile Houses in Buenos Aires (1810-1880). Cambridge, Massachusetts and London: Harvard
University Press, 1979, p. 26.
77
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 304-321; 355.
311
sal, ou seja, exatamente na época da safra nas charqueadas. No período mencionado, o sal era o
artigo mais importado pela província, superando de longe o açúcar e a farinha, por exemplo.
Em contrapartida, os meses de agosto e setembro eram os de menor entrada do produto no Rio
Grande do Sul. De acordo com Silveira, o sal também era o único artigo em que eram remetidas
embarcações carregadas exclusivamente com o produto.78
Entre os portos estrangeiros que forneciam sal para o Rio Grande, Lisboa obteve
destaque perfazendo entre 32 e 34% dos carregamentos estrangeiros, seguida de perto por
Cádiz, com 28% a 30%. O porto nacional que mais remeteu carregamentos de sal foi o Rio de
Janeiro, oscilando entre 55% e 65% dos totais nacionais enviados em 1850 e 1854, seguido por
Bahia e Pernambuco que juntas somaram de 25% a 28%. No geral, o Rio de Janeiro foi o porto
que mais remeteu embarcações com sal para o Rio Grande do Sul, somando de 31,5% dos totais
no período. Entretanto, como afirmou Silveira, é provável que os comerciantes da praça carioca
estivessem reexportando sal proveniente de outras regiões. 80 O sal produzido no nordeste, cujas
salinas constituíam importante atividade econômica, também era reexportado por Pernambuco e
Bahia. É necessário referendar que as embarcações vindas do Rio não eram exclusivas de sal,
pois o Rio Grande do Sul recebia muitas outras mercadorias deste porto. Conforme Silveira, os
carregamentos exclusivos de sal nunca provinham do Rio e da Bahia, podendo ser de Assú (Rio
Grande do Norte), Pernambuco, Cabo Frio, Setúbal, Porto, Lisboa, Cádiz, Buenos Aires,
Patagônia e Cabo Verde. A presença de portos franceses, como Marselha, e norte-americanos,
78
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 26-32.
79
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978.
80
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 35.
312
como Salém, foi mínima. 81 Embora o sal nacional também fosse remetido para Rio Grande, o
sal preferido pelos charqueadores sempre foi o estrangeiro, sobretudo o de Cádiz. Os
charqueadores “consideravam-no o único válido para a fabricação de charque e desprezavam o
produto nacional” que começou a ganhar uma fatia no mercado “à medida que se
desenvolveram as salinas do Rio Grande do Norte e, depois, as de Cabo Frio”. 82
Como se fosse algo estrutural no interior das redes mercantis que vinculavam aquelas
sociedades atlânticas, em cada porto um grupo de comerciantes parecia destacar-se controlando
a maioria dos carregamentos de charque e de couros. Em 1858 e 1864, por exemplo, os 3
maiores importadores de charque no Rio de Janeiro concentraram, aproximadamente, 30,86% e
30,53% do total dos carregamentos de carne seca. Nos últimos decênios do século XIX, em
1885, 1887 e 1900, as 3 primeiras casas mercantis controlaram 53,78%, 47,63% e 54,40% das
mesmas. Contabilizando as 10 primeiras firmas, Graça Filho detectou que em 1858 elas
reuniam 66,5% e em 1885, 83,5%, chegando a 99,7% das transações em 1900.83 O mesmo
autor acrescentou que a acumulação originada no comércio de abastecimento pelas 10 firmas
foi o ponto de partida de algumas das maiores riquezas do Rio de Janeiro. A projeção social
destes comerciantes pode ser verificada “pelos títulos nobiliárquicos, pelos cargos de direção e
presidência de bancos e companhias, pelo número de navios e ações que possuíam”. O papel da
família no gerenciamento dos negócios também foi marcante. Juan Frias, Militão Máximo de
Souza e Miguel d’Avellar, que estavam entre os 11 primeiros importadores de charque de 1864,
viram seus descendentes continuarem seus negócios até o fim do Império. 84
Com relação aos comerciantes envolvidos no comércio dos couros se verifica algo
semelhante. Em 1847, os maiores exportadores de couros salgados eram Carruthers Sousa &
Cia. (88.602), Holland Davies & Cia. (81.863), Bradshaw Wenklyn & Cia. (64.074), Proudfoot
Muir & Moffat (44.498) e Hugentobler & Douley (32.178). Em 1854, alguns nomes se repetiam
e, ao invés das quantidades de couros exportadas, os periódicos indicavam o número de
carregamentos. Entre os primeiro encontravam-se Hugentobler & Cia (36), Marcos Pradel &
Cia (27), Lind & Cia (23), Proudfoot Muir & Moffat (8) e Claussen & Bertran (6). Comparando
as transações envolvendo couros secos e salgados é possível verificar que havia uma
86
XIMENES, Cristiana. Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia (1828-
1887). Dissertação de Mestrado em História. UFBA, 1999, p. 95-96.
87
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 67. Graça Filho mostrou que os negociantes da praça carioca lucravam
muito com o comércio do produto. Em 1859, por exemplo, o valor de exportação do charque em Rio Grande era de
105 réis/Kg, mas no Rio ele era revendido no atacado por 276 réis/Kg, esboçando um lucro de 162% sobre o preço
na compra.
88
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 69.
89
BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes
mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011, p. 84.
90
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 53.
91
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
314
especialização na negociação de cada produto, pois somente um destes 5 maiores exportadores
de couros salgados também estava entre os maiores negociantes de couros secos. Em 1847, por
exemplo, os maiores exportadores desta mercadoria eram Hugentobler & Douley (177.800),
Claussen & Cia. (103.804), E. H. Folmar (31.446), Marcos Pradel (17.671) e Thomaz Messiter
(14.908). Em 1854, os maiores carregamentos de couros secos estavam nas mãos de
Hugentobler & Cia (54), Bento & Irmãos (23), Claussen & Bertran (20), Lind & Cia (9),
Marcos Pradel & Cia (8). Portanto, verifica-se que alguns deles conseguiram permanecer por
mais anos entre os maiores exportadores, além de concentrar grande quantidade de remessas.92
92
SILVEIRA, Josiane. Op. cit.; TORRES, Daniel. Op. cit., p. 40-41. Conforme Daniel Torres, estes
comerciantes residiam na cidade de Rio Grande e deviam ter sócios na Europa e nos Estados Unidos.
93
BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011.
94
MARCONDES, Renato. O mercado brasileiro do século XIX: uma visão por meio do comércio de cabotagem.
In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de História Econômica (ABPHE). Campinas: CDROM, 2009, p.153-154.
315
Mas a “invasão” britânica tinha motivos de força maior. 95 A expansão inglesa sobre os
mercados dos couros convergiu com o maior crescimento da economia britânica visto até então.
Nunca as exportações inglesas aumentaram tão rapidamente quanto nos primeiros sete anos da
década de 1850. Para onde se olhava, a “grande expansão” era notável. Da descoberta do ouro
na Califórnia, em 1848, até a metade da década de 1850, a disponibilidade mundial do metal
aumentou de seis a sete vezes, fazendo multiplicar os meios de pagamento e encorajar a
expansão do crédito. As indústrias se proliferavam por toda a Europa e “os lucros
aparentemente à espera de produtores, comerciantes e, acima de tudo investidores
apresentavam-se quase que irresistíveis”. Esta expansão sofreu um recuo em 1857, para retornar
na década de 1860 com toda a força, até a grande depressão de 1873.96
Aliás, Mauá também esteve diretamente associado à “invasão” britânica no porto de Rio
Grande, por meio da Carruthers, Souza & Cia, maior exportadora de couros salgados, em 1847.
Esta firma também aparece entre as exportadoras de sal e de couros secos, revelando certa
95
De acordo com os estudos de Carlos Gabriel Guimarães, a presença dos britânicos no comércio brasileiro
remontava ao início do século, desde a Abertura dos portos, em 1808. Portanto, o fenômeno aqui descrito era muito
mais complexo e se ancorava numa consolidada tradição de relações mercantis entre ingleses e brasileiros muito
bem tratada pelo autor. Para uma análise destas relações políticas, sociais e econômicas que os mesmos
estabeleceram com as elites mercantis e políticas na Corte ver GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa
nas finanças e no comércio no Brasil Imperial. São Paulo: Alameda, 2012.
96
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 55-77.
97
GOULARTI FILHO, Alcides. Abertura da navegação de cabotagem brasileira no século XIX. Ensaios FEE, v.
32, n. 2, nov. 2011, p, p. 414.
98
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., 2000, p. 82.
99
PLATT, D. C. M. Latin America and British Trade (1806-1914). London: T. & A. C. Ltd., 1972, p. 316-321;
GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1973.
100
Para um interessante quadro geral deste período, tanto na indústria europeia quanto na sua relação com as
Américas, ver CANABRAVA, Alice. O algodão em São Paulo (1861-1875). São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.
101
LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1994, p. 54-55.
316
diversidade de investimentos. O empresário brasileiro também foi pecuarista no Uruguai, onde
acumulou mais de 160 mil hectares, 16 mil reses e 100 mil ovelhas. 102 Além disso, instalou uma
filial de seu banco em Pelotas e Rio Grande e apareceu comprando seis escravos de um
pelotense, em 1855, indício de que estivesse atuando, por meio de seus sócios, no tráfico inter-
provincial. 103 Como é sabido, Mauá era rio-grandense e tais atividades revelam que ele jamais
perdeu seus vínculos com a região, onde possuía os seus agentes. Além disso, entre 1853 e
1873, ele foi deputado geral pela mesma província, representando-a na Corte e, na mesma
época, casou seu filho com a filha de José Luís Cardoso de Sales, o Barão de Irapuá, que em
algumas notas biográficas consta como tendo sido estancieiro no Rio Grande do Sul. 104
Analisando as listagens elaboradas por Silveira e Torres foi possível observar que Mauá
também participava do comércio de sal. 105 A firma Carruthers Souza & Cia, cujo um dos sócios
era Mauá, apresentou 3 carregamentos em 1850. Neste ano e no de 1854 verificou-se as
seguintes firmas (com seus respectivos carregamentos): Lind & Cia (29), Hugentobler & Cia
(28), Eufrásio Lopes de Araújo (27), Proudfoot Muir & Moffat (15) e Paiva & Vianna (14).
Analisando os carregamentos de Paiva & Vianna, Silveira verificou que os mesmos estavam
mais associados ao comércio de cabotagem, recebendo sal da Bahia, Pernambuco e Rio, sendo
que seus navios também traziam açúcar, aguardente, cal e outros gêneros. Somente Pernambuco
enviou cargas exclusivas de sal para o Rio Grande. Entretanto, analisando somente os
carregamentos da firma inglesa Hugentobler & Cia, foi possível verificar que somente dois
vinham de portos do Brasil: Paranaguá e Pernambuco. Mais da metade dos carregamentos
provinham de Cádiz e Cabo Verde e eram na sua maioria exclusivas do produto.106
Portanto, é possível perceber que havia uma divisão dos mercados atlânticos, ficando o
transatlântico nas mãos dos comerciantes estrangeiros (principalmente os ingleses e norte-
americanos) e o de cabotagem com os luso-brasileiros (sendo boa parte formada por rio-
grandenses). Alguns dos importadores de sal nacional também estavam entre os maiores
exportadores de charque, como Lobo & Barbosa, J. M. da Costa Sol, Porfírio Ferreira Nunes &
Cia., Cascão & Irmãos, Cruz Guimarães & Cia. e José Ribeiro de Farias Guimarães. O
comércio de cabotagem era a especialidade destes negociantes e ele era controlado por
brasileiros. Alguns deles se arriscavam nas exportações de couro para os mercados do Atlântico
102
MARQUES, Alvarino da F. A Economia do Charque. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992, p. 58-59.
103
Inventário de José Antunes da Porciúncula. 1º Cartório de órfãos e ausentes, Pelotas, 1855 (APERS).
104
Para uma análise mais completa sobre a atuação de Mauá na política e na economia brasileira ver
GUIMARÃES, Carlos G. Op. cit., 2012.
105
No capítulo posterior, demonstro que sua presença na economia charqueadora foi ainda mais marcante.
106
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 40.
317
norte, mas pareciam não obter muito sucesso. Comparando as firmas exportadoras de couros
secos com as de charque, por exemplo, Silveira percebe que 10 nomes se repetiam, mas os
negociantes de charque ocupavam posições inferiores entre os exportadores de couro.107
Uma análise rápida dos negociantes envolvidos nas diferentes rotas comerciais
demonstrou que a atuação nestes mercados estava concentrada nas mãos de determinados
grupos de agentes. Alguns, como o Visconde de Mauá, Militão Máximo de Souza, Joaquim
Pereira Marinho e John Proudfoot108, atuando em diversos ramos de negócios, tinham o seu
nome conhecido em praticamente todos os portos. Outros, que tinham como única função
carregar os produtos do trapiche da charqueada até o porto de Rio Grande, permanecem no
anonimato. No mundo rural que orbitava as charqueadas, e onde estes muitos trabalhadores
negociavam com os mencionados estabelecimentos, reinavam relações de troca permeadas por
relações pessoais, seja do charqueador com tropeiros e criadores, no que diz respeito ao
mercado do gado, seja do mesmo com os patrões de iate, marinheiros e carregadores, no trato
fluvial dos produtos de sua fábrica. No comércio atlântico, por sua vez, os principais agentes
eram as grandes firmas e companhias mercantis, sob a gerência de negociantes brasileiros e
estrangeiros que movimentavam significativas quantias de capital e mercadorias. Eram os
negociantes de grosso trato do qual Braudel dedicou muitas páginas em o Jogo das Trocas.109
107
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 55.
108
John Proudfoot era natural de Glasgow, na Escócia, e partiu para Buenos Aires em 1835, onde atuou alguns
anos no comércio. Anos depois, migrou para o Rio Grande, vindo a estabelecer-se com sua firma mercantil.
“Agricultor, comerciante e industrialista era o proprietário do mais elegante vapor que circulava nos rios e na lagoa
dos Patos – o Guaíba – construído em Clyde. Além de outros barcos de menor calado para os rios de menor
vazão”. Ele foi um dos fundadores da Praça do Comércio de Rio Grande, em 1844. Sem filhos, deixou sua fortuna
para um sobrinho, após falecer em Lisboa, em 1875 (MACEDO, Francisco R. Os ingleses no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 34; 58; 61). Segundo David Platt, John Proudfoot fez fortuna em Montevidéu não
apenas no comércio, como também emprestando dinheiro a altos juros (PLATT, D. C. M. Op. cit., p. 48).
109
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. No Brasil, um corpo mercantil com atuação semelhante pode ser analisado em FRAGOSO, João.
Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
318
sistemas de pesos e medidas distintos. Ele se relacionava com homens que dominavam o
idioma mercantil atlântico e que circulavam por um espaço de trocas internacional no qual a
força do charqueador era muito pequena, mas que não funcionava sem as suas carnes e os seus
couros. Em suma, o Atlântico não era a fronteira com o Uruguai e o charqueador não podia
estabelecer-se em todos os portos como fazia com os seus parentes nas suas estâncias.
110
O Rio-grandense, n. 264, 04.01.1848, p. 3 apud TORRES, Daniel. Op. cit., p. 31.
319
os abaixo assinados lembram aos compradores que eles aqui recebem em suas
charqueadas, sem nenhuma oposição e sujeitando-se aos riscos da viagem, o sal, que
aliás é gênero de muita quebra, e quase todo comprado à eles compradores de couros
pela medida feita à bordo dos navios ou nos armazéns da cidade de Rio Grande.111
Antes de tudo, tratava-se de uma audácia que meros fabricantes escravistas quisessem
impor suas práticas mercantis aos britânicos. A resposta dada pelos charqueadores revela, em
suas entrelinhas, aspectos da relação mercantil entre os mesmos e os comerciantes do porto.
Primeiro, fica claro que não há nenhuma regulamentação legal sobre onde os couros deveriam
ser examinados e pesados. Os charqueadores defendiam uma prática tradicional, “há muito
tempo estabelecida”, de que os couros deviam ser pesados e examinados em Pelotas,
provavelmente nas suas próprias charqueadas, para depois serem encaminhados ao porto.
Desconheço o que levou os comerciantes estrangeiros a reclamarem de tal procedimento. É
provável que alguns charqueadores estivessem vendendo aos agentes dos negociantes
estrangeiros os seus piores couros ao preço dos melhores, o que desagradava os ingleses no
momento em que os mesmos eram embarcados ou chegavam na Europa. Os britânicos pareciam
querer imprimir um método mais “racional” na aquisição dos produtos – talvez fruto de uma
prática realizada em seus locais de origem. O fato é que parecia haver uma certa tensão entre
ambos os grupos, oriunda da diversidade de práticas mercantis e culturais tanto locais quanto
internacionais. Neste sentido, a região portuária assemelhava-se a uma região de fronteira, no
sentido de que possibilitava o contato de diferentes culturas atlânticas.
111
O Rio-grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4, apud TORRES, Daniel. Op. cit., p. 32). Grifos meus.
320
tradicional – vivido pelo fazendeiro de café – com a lógica mercantil, objetiva e racional – dos
grandes negociantes que integravam redes internacionais de comércio”. 112
Por ordem de John Proudfoot & Cia [comprador], negociante desta praça, comprou a
H. Fraeb [vendedor], negociante desta praça, 6.500 couros salgados de novilho
pesados de charqueada de Pelotas da matança do mês de fevereiro próximo passado e
do presente mês de março. Da matança do mês de fevereiro entregarão-se aqueles
couros que sobrarem das compras que o vendedor tem efetuado nas diferentes
charqueadas de Pelotas. O restante para completar a quantidade acima mencionada de
6.500 couros entregarão-se das primeiras matanças das charqueadas de Pelotas com
que o vendedor tem contratos para o presente mês. Os couros serão recebidos pelo
reconhecedor do vendedor logo que estiverem prontos para serem embarcados nas
charqueadas, mas a fatura se fará segundo o peso determinado na entrega em São José
do Norte com o aumento de 3%. O trabalho de pesar os couros terá lugar ou no
trapiche dos compradores ou a bordo dos iates de Pelotas, barcada por barcada, em
São José do Norte, assistindo ao peso um empregado do vendedor e outros dos
compradores. Será admitido só couro que tem o peso de 58 libras pra cima. O preço
dos couros da matança de fevereiro é 178 réis por cada 459 gramas (…) O frete das
charqueadas, imposto municipal e direitos da barra de Pelotas são por conta dos
compradores. O vendedor entregará também aos compradores os chifres de novilho
correspondentes ao número dos couros ao preço das charqueadas com as despesas de
costume. O pagamento se fará da maneira seguinte. Vinte contos de réis nestes 2 ou 3
dias. Vinte contos de réis em 8 dias depois. Vinte contos de réis em 14 dias. Quinze
contos de réis em 21 dias depois do primeiro pagamento, o restante logo que se tiver
completado a entrega dos couros. O vendedor e os compradores obrigam-se de guardar
segredo absoluto a respeito deste contrato.113
112
KUNIOCHI, Marcia N. A intermediação mercantil e bancária na fronteira meridional do Brasil. In: História e
Economia. São Paulo, v. 1, n. 1, 2005, p. 67-86.
113
Contrato de 04.03.1878, Códice JC-53, Fundo Junta Comercial, AHRS.
321
padrões regionais, ultrapassando os 75 contos de réis pagos em menos de um mês e por apenas
6.500 couros (o Rio Grande exportava mais de 1 milhão de couros na época). Provavelmente H.
Fraeb adiantava a real quantia ao charqueador revendendo os 6.500 couros a J. Proudfoot com a
sua taxa de lucro e comissões. A operação também envolvia a troca de libras esterlinas por mil
réis na casa comercial do Corretor Geral.
Amigos e Srs. Recebi seu favor do 1º de julho em que me diz que o Sr. Joaquim
Guilherme da Costa lhes tem apresentado uma conta de comissões de cobranças e
vendas de sal, desde a extinta firma (…). Fico inteirado igualmente do que há passado
entre o Sr. Joaquim Guilherme e vossas mercês em uma entrevista pessoal, e que
resultou em ele pedir que me nomeasse árbitro para decidir se a conta era justa ou não.
Não é muito agradável ser nomeado juiz em sua mesma causa, porém como ele deseja
saber minha opinião, direi sem entrar em discussões e razões que não tem direito de
fazer tais cargas, e que a conta não é justa. Sinto que as relações que temos tido por
tanto tempo com o Sr. Joaquim Guilherme tenham um fim desagradável.115
Conforme Proudfoot, Costa estava cobrando uma comissão indevida e sem recibos
válidos. Não satisfeito, o comerciante escocês escreveu à outra grande firma exportadora de
couros, a Claussen & Bertran, perguntando se Costa lhes cobrava as comissões que exigia no
tempo em que serviu de agente para os mesmos (1854-1855). Os comerciantes responderam
que não. Costa perdeu a causa em primeira e em segunda instância. Não é possível saber qual
das partes estava com a razão, mas o fato é que Costa vinha ganhando muito dinheiro sendo
comissário dos exportadores estrangeiros. Em 1856, por exemplo, junto com outros dois sócios,
114
Numa fatura anexa ao processo fica claro que ele passava nas charqueadas, comprava os couros e encarregava
diferentes iates (seus ou de terceiros) de levá-los até o porto de Rio Grande.
115
Carta de John Proudfoot para Sr. Crawford. Glasgow, 08.08.1859. Anexa ao processo de Apelação n. 90, m. 8-
B, cartório cível e crime, Pelotas, 1860 (APERS). Tradução da carta realizada pelos oficiais tradutores.
322
ele comprou 3 barcas a vapor, pagando 48:000$, e criou a Companhia União de Vapores, em
Pelotas.116 Um ano depois do processo judicial em que enfrentou Proudfoot, Costa comprou
outra charqueada por 26:900$000.117 Ao falecer, Costa possuía 77 escravos e deixou um monte-
mor com mais de 287 contos de réis. 118
“Chegando ontem de fora, vim encontrar suas cartas de 21 e 25 do corrente que ora
respondo. Acabando de carregar o navio de Sinclair Robinson & Cia (…) que por estes
dias ficará concluído, então lhes farei aviso respeito ao seu carregamento, de que
fazem já o aviso provisório. Entretanto, estou mandando recolher cinzas que estão
espalhadas em diversas charqueadas”.
Diante dos muitos reveses dos mercados atlânticos, da ação feroz dos monopolistas e do
poder dos comerciantes estrangeiros, além de outros fatores, chegou a hora de perguntar: como
os charqueadores de Pelotas agiam no interior deste sistema mercantil atlântico tão complexo?
O que se podia fazer para diminuir a insegurança presente em tais circuitos de troca? Como foi
visto no capítulo 3 desta tese, a forma como os charqueadores intervinham neste comércio
marítimo ajudou a definir a sua posição na hierarquia econômica regional durante o colonial
tardio. Passado meio século, esta mesma lógica se manteve. Portanto, os charqueadores que
também atuavam no comércio marítimo, ou seja, aqueles que, para além da relação comercial
116
Escritura de 20.08.1856, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro 8 (APERS).
117
Escritura de 23.10.1860, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro 9 (APERS).
118
Inventário de Joaquim Guilherme da Costa, n. 599, m. 38, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1865
(APERS).
119
GUTIERREZ, Ester. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001, p. 190.
120
Liquidações, processo n. 2.584, m. 75, 1875, 1º volume, 2º cartório cível e crime, Pelotas (APERS).
323
que mantinham no porto de Rio Grande, acabavam encurtando a distância geográfica e
temporal entre o mundo rural da charqueada e o mundo atlântico, continuavam no topo da
hierarquia econômica regional.
121
GRENDI, Edoardo. Microanálise e História Social. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla
(Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009, p. 27-30.
324
Rio Grande. No entanto, como os inventários retratam a composição das fortunas dos mesmos
na fase idosa de suas vidas, o cruzamento com outras fontes documentais, como as escrituras
públicas e os registros de matrículas e embarcações da Junta Comercial do Rio Grande, revela
que a maioria destes charqueadores havia participado do comércio marítimo em outros tempos,
abandonando-o depois de uma certa idade. Na década de 1860, o Visconde da Graça, o Dr.
Chaves Filho e Felisberto Cunha, por exemplo, apareceram registrando um patacho, um brigue
e uma barca americana na mencionada Junta. O campeão de registros foi Moreira, com pelo
menos quatro embarcações de grande porte registradas. 122 Além dos registros de embarcação,
por meio da análise de outras fontes sabe-se que José Rodrigues Barcellos e João Simões Lopes
foram comerciantes de grosso trato matriculados na Real Junta do Comércio da Corte, atuando
no mercado atlântico, e que Antônio José da Silva Maia também havia atuado no comércio
marítimo remetendo seus navios com charque para a Bahia e Pernambuco.123
Outra forte evidência da íntima relação destes charqueadores mais ricos com o comércio
de longo curso pode ser atestada na lista dos presidentes da Associação Comercial de Pelotas.
Criada em 1873, ela foi continuamente dirigida por charqueadores.124 Este foi o caso de
Possidônio Mâncio Cunha, João Maria Chaves, Lúcio Lopes dos Santos, Paulino Costa Leite,
Joaquim Rodrigues da Silva, Joaquim da Silva Tavares e Joaquim José de Assunção. É
importante destacar que destes 7 presidentes, 2 estão entre os 12 charqueadores mais ricos e 3
deles eram sócios de outros charqueadores do mesmo grupo (sendo que 2 também eram irmãos
dos mesmos). Esta concentração fica mais evidente quando se constata que muitos dos 12
inventariados tinham estreitos vínculos familiares entre si. Os Chaves e os Barcellos eram
aparentados, Simões Lopes era pai do Visconde da Graça e sogro do Barão de Jarau, Tavares e
Maciel eram primos, o Barão de Corrientes era filho de José Inácio da Cunha e Butuí era genro
do Comendador Castro (ver Diagrama 8.1). Estes dados por si só revelam que a direção da
Associação, que reunia os industriais e comerciantes atacadistas da cidade, estava nas mãos de
poucas famílias que também ocupavam o topo da elite charqueadora.
122
Registro de matrículas de comerciantes e embarcações da Junta Comercial do Rio Grande. Fundo Junta
Comercial, Códices 17 a 27, AHRS. Talvez uma das explicações para tal volume de navios registrados por Moreira
seja o fato de o seu sogro, o também charqueador Comendador Castro, possuir um estaleiro onde construía as
embarcações.
123
Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170 (volumes 1, 2 e 3); Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Jornal O
Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
124
Correspondência da Associação Comercial de Pelotas. Fundo Junta Comercial, maço 3, Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul.
325
Diagrama 8.1 – Vínculos de parentesco entre os 12 charqueadores mais ricos de Pelotas (1850-1900)129
Antônio J. Francisca
Isabel D. da João S. Joaquim J. Maria A. Baronesa Barão de
Oliveira Alexandrina
Fontoura Lopes Assumpção Fontoura de S. Tecla Santa Tecla
Castro
Leocádia
Tavares Baronesa Barão de
Visconde Viscondessa Baronesa Barão de Antônio R. de Butuí Butuí
da Graça da Graça de Jarau Jarau Assumpção
Augusto
Assunção
Anibal A. Leopoldo Cândida Francisca
Leocádia Maciel A. Maciel Moreira Moreira
Melo
Irmãos
Eliseu A. Leopoldina
Moreira
Maciel Rosa
Zeferina José I. da José M.
G. Cunha Cunha Chaves
Irmãos
Antônio J. Maria L. João M.
Arminda Alfredo
Silva Maia Barcellos Chaves
S. Lopes Braga
129
Por falta de espaço o diagrama não elenca todos os filhos dos casais ilustrados, mas somente aqueles que proporcionaram uma conexão com as demais famílias do grupo.
326
Dos 22 exportadores de charque que enviaram carregamentos para Bahia, Pernambuco
e Rio de Janeiro na safra de 1874/75, 9 eram charqueadores. Antônio José da Silva Maia e
José Antônio Moreira são os que remeteram mais embarcações com charque
(respectivamente, 14 e 6 navios). Ambos estão entre os 12 charqueadores mais ricos. João
Simões Lopes, que remeteu somente uma embarcação para Pernambuco, também era um dos
mais ricos. Dos demais, não foram localizados inventários ou os mesmos não tiveram sua
avaliação concluída. Contudo, é provável que também fossem empresários de notável
fortuna.130 Ao remeterem seus navios para o nordeste, os mesmos retornavam com
mercadorias que deviam auferir significativos lucros. Em janeiro de 1875, por exemplo, a
barca Pombinha, do Barão de Butuí, retornou da Bahia com 133 barricas de açúcar, 700
barricas de cal e 177 volumes de piaçabas. 131
Entre estes charqueadores mais ricos havia empresários com práticas e conhecimentos
mercantis bastante amplos, aprendidos em outros portos marítimos enquanto jovens e sob a
supervisão distante dos seus pais, charqueadores como eles. O barão de Corrientes, por
exemplo, havia sido negociante na Corte, o visconde da Graça em Salvador e o Dr. Gonçalves
Chaves em Montevidéu. Além do mais, os charqueadores também podiam ter filhos e genros
atuando no comércio, o que potencializava suas conexões com o mercado atlântico. O
charqueador João Vinhas, por exemplo, possuía um genro negociante em Salvador e outro no
Rio de Janeiro. Além disso, seu filho estava estabelecido em Rio Grande como comerciante.
Numa carta escrita por ele ao seu pai é possível perceber a importância de tais conexões:
130
Junius Brutus de Almeida, por exemplo, que era genro do mencionado Simões Lopes, nos anos 1880 investiu
400 contos de réis reformando sua charqueada, importando máquinas e contratando técnicos italianos e 40
operários especializados de Montevidéu para fabricar charque a partir do “sistema platino” (CORSETTI,
Berenice. Op. cit., p. 175-176). Honório Luís da Silva, por sua vez, possuía uma estância no Uruguai com mais
de 10 mil reses, mas seu inventário não teve prosseguimento (Inventário de Honório L. da Silva, n. 111, m. 6, 2º
cartório de órfãos e ausentes, Pelotas, 1880 (APERS).
131
Jornal do Comércio de Pelotas (05.01.1875) – BPP. Na mesma época, o charqueador Anibal Antunes Maciel
(também entre os mais ricos do grupo) também atuava no comércio marítimo. Conforme o seu advogado, no
processo de inventário do casal, os mesmos possuíam “navios (…) os quais por comportarem alto calado não
podem entrar na Barra do arroio São Gonçalo e chegar a esta cidade, [mas somente em] Rio Grande, onde
costumam estar ditos navios a receber cargas para conduzí-las às províncias do Rio de Janeiro, Bahia e
Pernambuco” (Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime
(APERS)).
327
As cartas que Vossa Mercê remeteu para F. Silva Flores e Paiva & Viana foram
entregues. De seu filho obrigado e criado Boaventura da Silva Vinhas”.132
Concluindo, pode-se dizer que atuando pessoalmente no porto de Rio Grande ou por
meio de seus filhos, irmãos ou genros, o charqueador podia ter uma relação diferenciada com
os mercadores atlânticos e ser favorecido por conta disto. Ele podia fechar melhores contratos
de fretamento, reservar os melhores carregamentos de sal para a sua charqueada e ter
informações preciosas que nem os jornais conseguiam noticiar. E agindo diretamente neste
comércio, como um pequeno grupo conseguiu, ele lucrava enquanto produtor de
couros/charque e comerciante de longo curso, uma vez que seus navios retornavam
abarrotados de açúcar, aguardente e outras mercadorias. Isto diferenciava os charqueadores
mais ricos dos menos ricos. No entanto, em que patamar estava essa tão propalada riqueza?
Após viajar por Pelotas, Wolfhang Harnisch deixou o seguinte relato sobre esta elite local: “A
riqueza que traziam era fantástica (...) Esses milionários pelotenses bem poderiam ter vivido
no Rio ou em Nice e ainda em Paris; poderiam ter concorrido com os fidalgos russos no luxo
e na dissipação de Monte Carlo”.136
135
OSÓRIO, Helen. Op. cit.
136
HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85.
329
9. OS BARÕES DO CHARQUE: PERFIL E NÍVEIS DE RIQUEZA,
MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE E TRANSMISSÃO DE
PATRIMÔNIO
Charles Darwin
Joaquim José de Assumpção foi o empresário do charque mais rico de Pelotas no século
XIX. Filho de um charqueador e comerciante homônimo, Assumpção também fez fortuna
atuando como capitalista e banqueiro, tendo sido presidente da Companhia de Gás e da
Companhia de Seguros Pelotense. Influente no alto comércio da cidade, também foi o primeiro
presidente da Associação Comercial de Pelotas, em 1873. Quando a sua esposa faleceu, em
1895, o patrimônio do casal foi avaliado em 6.152:393$500 réis. Grande parte dele (74%)
estava composta por apólices da dívida pública do Brasil, investidas no Rio de Janeiro, metade
rendendo 4% e a outra 5% ao ano.1 Segundo Fernando Osório, Assumpção (então Barão de
Jarau) teria acumulado a maior fortuna do Rio Grande do Sul no século XIX.2 Apesar dos
sucessos financeiros alcançados por este empresário, o seu patamar de riqueza não foi atingido
pela grande maioria dos proprietários de charqueada em Pelotas. Nas páginas seguintes
desenvolvo melhor o fenômeno da concentração das fortunas e o perfil do patrimônio dos mais
ricos para buscar compreender quais os fatores favoreceram o enriquecimento de alguns em
detrimento da ruína econômica de outros.
1
Inventário da Baronesa do Jarau, n. 187, m. 6, 1895 , 2º cartório do cível, Pelotas (APERS).
2
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, vol. 2, 1997, p. 97-100.
330
bens avaliados completamente. Para facilitar a comparação das fortunas inventariadas ao longo
do século XIX, converti todos os valores avaliados dos mil réis para as libras esterlinas, pois,
como é sabido, a moeda inglesa apresentava-se mais estável e tal método reduz as grandes
oscilações do real ao longo do tempo. 3
Tabela 9.1 - Análise das fortunas dos charqueadores (em libras esterlinas) por períodos
N.º Soma dos Média por Mediana Maior Razão da maior
Inventários Montantes inventário fortuna para a menor
fortuna
1810-1825 06 99.782 16.630 12.236 40.256 11
Analisando a Tabela 9.1, percebe-se que nos dois primeiros períodos (1810-1835) as
fortunas acumuladas pela primeira geração de charqueadores de Pelotas não foram tão altas se
comparadas às inventariadas após 1855.4 Muitos fatores influíram para tal fenômeno.
Primeiramente é necessário considerar que os preços dos escravos, das fazendas de criação e
das próprias fábricas não apresentavam os valores que vieram a possuir após a década de 1850,
pois aquela era uma conjuntura de fronteira agrária aberta, de mão de obra acessível via tráfico
atlântico e de pouca sofisticação nos utensílios e benfeitorias das charqueadas. 5 As primeiras
fábricas, construídas na passagem do século XVIII pra o XIX eram bens de pouca valia,
equivalentes ao preço de 4 escravos. 6 Elas reuniam instalações rudimentares e estavam longe de
compor as partes mais valorizadas do patrimônio inventariado.7
3
Para a conversão dos valores em mil réis para libras esterlinas utilizei as Médias anuais das taxas de câmbio do
Ipeadata, no item séries históricas, disponível em http://www.ipeadata.gov.br/. (acesso em 30 agosto de 2012).
4
É necessário considerar que entre 1836 e 1845, tem-se somente três inventários post-mortem, visto que os
serviços judiciais na cidade praticamente paralisaram durante a Guerra dos Farrapos, além da população ter se
dispersado bastante.
5
O preço dos escravos e das terras também tiveram seu valor aumentado, justamente após o ano de 1850, com a
Lei de extinção do tráfico atlântico e a Lei de Terras como verifiquei nos capítulos anteriores.
6
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre:
UFRGS, 2007, p. 310. Além disso, os negócios do ramo, no colonial tardio, ainda eram considerados por muitos
como investimentos de risco. No período de 1810 a 1835, por exemplo, deixei de contabilizar 3 inventários, por
apresentarem um passivo superior ao ativo, ou seja, eram de proprietários que tiveram vários problemas com os
331
Além disso, os charqueadores da primeira geração enfrentaram muitas dificuldades por
terem sido os “desbravadores” neste ramo de negócios. Na passagem do século XVIII para o
XIX e por mais algumas décadas, tanto o acesso ao crédito como os capitais disponíveis para o
financiamento da montagem do complexo charqueador eram demasiado escassos. Portanto,
como já foi enfatizado no capítulo 3, as charqueadas dependiam do capital mercantil das
transações de outras mercadorias com o Rio de Janeiro para serem montadas e mantidas. Esta
geração também penou ao buscar saídas econômicas e novos mercados para os produtos das
charqueadas em conjunturas desfavoráveis. Assim foi na década de 1790, quando eles levaram
o charque até os portos do nordeste, e em 1809, quando encontraram em Havana um importante
espaço consumidor do produto. Neste período inicial, o mesmo problema foi encontrado com
relação à importação do sal e aos monopólios impostos por Lisboa sobre o mesmo.8
Sendo comerciantes que decidiram investir nestes negócios, os mesmos tiveram que
comprar grande parte do seu plantel de escravos recorrendo ao tráfico atlântico, enquanto
muitos dos ricos charqueadores das gerações posteriores tiveram a vantagem de contar com
plantéis herdados do pai ou do sogro (já treinados no trabalho), assim como os conhecimentos
práticos do ramo, desenvolvidos e transmitidos pelos que os antecederam, como tratarei
adiante. Portanto, como não havia um modelo fabril anterior, a primeira geração teve que
“aprender” a administrar sua escravaria, cujo índice de africanos (de diversas procedências) era
bastante alto e, em alguns casos, ultrapassava os 80% do plantel inventariado, muito superior à
segunda metade do século. Ainda com relação à mão de obra, os charqueadores do primeiro
período possuíam um número de escravos inferior às gerações posteriores. Enquanto a sua
média de cativos por proprietário foi de 51,6, nos dois períodos posteriores ela atingiu os
índices de 66,4 e 68,5 escravos, respectivamente. Tais números podem indicar que a capacidade
de abate e produção na maioria das primeiras fábricas era mais limitada do que as suas
sucessoras no ramo, refletindo-se nos seus patrimônios. 9
seus negócios e cujo patrimônio não era suficiente para saldar as suas dívidas. Caso semelhante só voltou a ocorrer
num inventário de 1890, quando o complexo-charqueador escravista já havia definhado.
7
Nos anos 1780, as oficinas de carne seca no Aracati, segundo um vereador da vila, eram “umas casas ou edifícios
insignificantes em forma de telheiros formados de paus e telha vã que em pouco tempo se podem mudar e contruir
denovo com os mesmos paus e telha”. ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes” no Siará Grande: dinâmica social,
produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de
Mestrado, UFPB, 2012, p. 144.
8
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Niterói: ICHF/UFF, Dissertação
de Mestrado, 1983, p. 108-115.
9
Foi dessa grande ampliação do comércio do charque, dos couros e demais produtos da pecuária que as vultosas
fortunas dos charqueadores da segunda metade do oitocentos começaram a ser acumuladas. Um último indicador
pode ser dado analisando-se as importações de sal. Entre 1816 e 1822, por exemplo, foi importada uma média
anual de 103.073 alqueires do produto, enquanto que, somente no 1º trimestre de 1854, importou-se 196.671
332
A Tabela 9.1 demonstra que além da ampliação das capacidades de acumular riquezas
ter aumentado na segunda metade do século, os mais ricos nas últimas décadas do oitocentos
eram mais afortunados se comparados aos menos ricos de sua mesma época, ou seja, a riqueza
tornou-se maior e mais concentrada. Se entre 1810 e 1835, os mais ricos tinham um patrimônio
11 vezes superior ao dos menos ricos, entre 1871-1885, este índice foi de 59 vezes e no último
período ele atingiu 89 vezes. São índices de concentração extremamente altos, uma vez que
trato aqui somente de membros da elite econômica, ou seja, não comparo a riqueza dos
charqueadores com a dos mais despossuídos da sociedade pelotense, o que levaria esta
diferença a valores astronômicos.
alqueires do mesmo. O sal era produto fundamental para a fabricação do charque e tais índices revelam que a
produção e o comércio envolvendo as charqueadas haviam entrado em níveis muito altos se comparado com as
primeiras décadas do oitocentos (BERUTE, Gabriel. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios,
mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011, p. 67).
10
SCHULZ, John. A crise financeira da Abolição. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 36.
333
donos do dinheiro.11 A produção de alimentos voltada para o mercado interno também ampliou-
se e refletiu-se no comércio de cabotagem, que saltou de 255.866 toneladas transportadas, em
1846, para 1.912.313 toneladas, em 1869. 12 Com todo este crescimento, a Bolsa de valores do
Rio viu-se em completa euforia e foi alvo de muitas especulações gerando grandes fortunas e
grandes bancarrotas.13
11
Algumas boas análises desta conjuntura podem ser vistas em LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de
Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994; PAULA, João Antônio de. O processo
econômico. In: CARVALHO, José Murilo de (Org.). História do Brasil Nação: a construção nacional (1830-
1889). Rio de Janeiro: Objetiva, v. 2, 2012, p. 179-224.
12
GOULARTI FILHO, Alcides. Abertura da navegação de cabotagem brasileira no século XIX. Ensaios FEE, v.
32, n. 2, nov. 2011, p. 415.
13
LEVY, Maria B. Op. cit., p. 54-55. Para uma análise dos investimentos em ações num âmbito nacional ver
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades
econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In:
FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003, p. 143-164.
14
FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro
(1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; OSÓRIO, Helen. Op. cit.
334
melhores condições de amealhar fortuna). Mas eliminando os inventários abertos antes de 1850
e refazendo os cálculos percebi que o nível de concentração mantém-se igualmente alto, pois os
11charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras passam agora a concentrar 72% da
riqueza no período.
Como o objetivo maior desta tese é analisar as famílias da elite local que se projetaram
para um patamar diferencial no sentido político e socioeconômico, tornando-se elite regional, e
que, por este motivo, vieram a influir nos rumos do Império escravista, destaco na Tabela 9.3 as
12 maiores fortunas inventariadas. Como já foi dito, o mais rico destes empresários foi Joaquim
José de Assumpção, o Barão de Jarau. Dos charqueadores inventariados ele é o único que não
possuía mais a charqueada, tendo escapado da crise geral que afetou o setor nos anos 1880,
invertendo seus capitais em outras áreas. Banqueiro conhecido em toda a província, em 1895,
74% de seus bens eram compostos em apólices da dívida pública. Portanto, chegando à velhice
numa época de crises (como, por exemplo, o Encilhamento (1890-1891) e a Revolução
Federalista no Rio Grande do Sul (1893-1895)), o Barão preferiu investimentos mais seguros.
Tabela 9.3 – Composição do patrimônio dos charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras (%)16
Charqueadores Monte- Monte-mor Ano A B C D E F G H
mor (mil réis)
Nº %
(libras)
Joaquim J. de Assumpção 254.811 6.152:393$500 1895 9,8 2,4 - - - 1,8 1,4 84,6 -
(Barão de Jarau)
Aníbal Antunes 189.563 1.893:256$602 1871 51,8 1,1 159 9,0 10,8 7,5 21,8 - 5,5
Maciel (Coronel)
José Antônio Moreira 173.162 1.829:905$407 1877 15,7 5,8 158 2,7 41,0 14,0 9,5 6,5 2,9
(Barão de Butuí)
João Simões Lopes Filho 143.320 2.894:415$540 1893 24,7 9,7 - - 23,2 1,2 5,2 34,0 0,2
(Visconde da Graça)
José Inácio da Cunha 78.035 749:137$798 1865 49,5 1,6 116 21,3 2,9 7,6 11,4 0,1 2,5
Antônio J. de Oliveira 66.124 634:797$351 1848 15,0 17,0 175 13,3 35,8 7,5 0,6 - 7,5
Castro (Comendador)
José Rodrigues Barcellos 65.409 546:030$572 1850 53,2 14,6 82 6,9 19,7 - 5,7 - -
(Comendador)
Antônio José da Silva 63.482 736:155$500 1884 11,3 37,0 74 - 29,3 9,8 0,1 11,7 0,4
Maia
João Simões Lopes 58.444 472:976$160 1853 15,3 4,1 81 14,1 11,2 27,0 14,5 2,4 1,6
(Comendador)
Joaquim da Silva Tavares 56.808 1.435:164$080 1900 58,7 8,9 - - - 6,5 23,7 1,7 -
(Barão de S. Tecla)
Antônio J. Gonçalves 52.132 500:467$360 1872 14,9 12,6 27 4,5 0,1 33,5 * 23,2 *
Chaves Filho (Doutor)
Felisberto Inácio da Cunha 51.183 500:163$173 1877 43,0 9,2 75 16,6 10,2 - 12,7 2,6 1,7
(Barão de Correntes)
Fonte: Inventários post-mortem. Cartórios de Pelotas (APERS)
A – Imóveis rurais; B – Imóveis urbanos; C – Escravos; D – Dívidas ativas; E – Dinheiro; F – Gado vacum; G – Ações e apólices;
H – Embarcações; * Possuía estes bens em sua firma, mas ficaram com o seu sócio.
15
FRAGOSO, João e RIOS, Ana Lugão. Um empresário no oitocentos. In: CASTRO, Hebe; SCHNOOR, Eduardo
(Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 199-202; 208-210. Ver também
LEVY, Maria B. Op. cit.; Ver, também, FRAGOSO, João. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
16
Para os charqueadores Felisberto Inácio da Cunha, Anibal Antunes Maciel, Antônio José de Oliveira Castro e
Joaquim José de Assumpção foram consultados os inventários dos bens dos seus respectivos casais, na ocasião do
falecimento de suas esposas que foram, na ordem, Silvana Belchior da Cunha, Felisbina Antunes da Silva,
Francisca Aleandrina de Castro e Cândida Clara de Assumpção.
336
Bagé, entre outros empreendimentos regionais. Por tudo isso foi agraciado com o título de
visconde da Graça.17 A diferença com relação ao seu cunhado foi que ele tinha somente 2% de
seus bens em apólices e 32% em ações de Companhias, revelando que o visconde interessava-
se por investimentos que, por conta dos riscos, buscavam maiores lucros no mercado. 18 Neste
sentido, não há exagero em considerar que Graça, pelo tipo de inversões realizadas, foi um
empresário escravista que, abandonando lentamente os negócios com o charque, inverteu seus
capitais em outros setores, colaborando com a disseminação de práticas mais capitalistas no sul
do Brasil. Analisando o balanço das safras das charqueadas nos anos 1870, é possível perceber
que tanto Graça quanto Jarau já não se dedicavam tanto à produção de charque, como os demais
charqueadores do grupo, pois eles estavam entre os que menos abatiam reses em seus
estabelecimentos.19 Embora outros ricos charqueadores tenham aplicado alguma quantia em
ações (Castro e Barcellos foram os únicos que não o fizeram) seus investimentos não se
comparavam aos de Graça.
A partir da Tabela 9.3 também é possível verificar que o perfil da riqueza dos
inventariados não era homogêneo, pois uns investiam mais em alguns bens do que outros. É
sabido que a maior parte dos charqueadores residia na cidade ou tinha ali residências em que
passavam algumas temporadas. No caso dos mais ricos, todos os 12 inventariados possuíam
imóveis urbanos e pelo menos 7 deles eram proprietários de sobrados na cidade. A maioria
detinha menos de 15% do patrimônio investidos nestes bens. No grupo temos casos como os de
Simões Lopes e José da Cunha que possuíam somente duas casas até o de Maia que era
proprietário de 49 imóveis na cidade. Quando faleceu, este charqueador já havia se retirado dos
negócios e arrendava o seu estabelecimento. O alto número de imóveis urbanos e o
arrendamento da charqueada indica que, no fim da vida, Maia buscou viver como um rentista, o
que não significa que ele estivesse alheio aos negócios, uma vez que seus filhos e genros
seguiram abatendo reses em sua fábrica. 20
17
OSÓRIO, Fernando. Op. cit., p. 97-100.
18
Inventário Visconde da Graça, n. 1.254, m. 69, 1893, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
19
Jornal do Comércio de Pelotas (12.07.1877) e Correio Mercantil de Pelotas (03.07.1879) (BPP).
20
Inventário de Antônio J. da S. Maia, n. 995, m. 25, 1884, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
337
charqueadores mais ricos também eram grandes criadores de gado (com rebanhos acima de 2
mil reses de criar) e buscavam os melhores campos em municípios vizinhos e na região da
campanha, algo que os charqueadores de fortunas médias e pequenas conseguiam muito pouco.
Com relação à mão de obra escrava é possível verificar que todos aqueles que tiveram
seus bens inventariados antes da Abolição da escravidão (1888) possuíam cativos, como não
poderia ser diferente. Também é possível perceber que o tamanho da riqueza era proporcional
ao tamanho do plantel. Excluindo a escravaria de Gonçalves Chaves, que teve somente parte
dos cativos arrolados, pois o restante ficou com seus sócios, a média deste grupo era de 115
escravos, ou seja, quase o dobro da média geral de todos os charqueadores da época. Apesar
disso, em somente um dos casos o percentual dos escravos foi superior a 20% da fortuna
inventariada. 21 Somado ao valor do estabelecimento da charqueada, eles compuseram mais de
25% dos bens do charqueador em somente dois casos. Entre os charqueadores menos
afortunados, o percentual dos escravos e da charqueada no perfil do patrimônio tendia a ser
maior, revelando que eles tinham menos investimentos em outros ramos de atividades, o que os
tornava mais vulneráveis em conjunturas econômicas adversas. 22 É importante ressaltar que não
ser um grande pecuarista e não atuar no comércio do charque não inviabilizava as atividades
econômicas de um charqueador. No entanto, aqueles que se restringiam somente às atividades
de charquear tinham seus ganhos diminuídos, pois os tornava mais dependentes dos grandes
comerciantes marítimos e dos vendedores de tropas.
21
No inventário de Antônio José da Silva Maia constavam apenas os serviços dos 55 escravos que ele havia
libertado sob cláusula de contrato de trabalho. Coloquei 74 cativos na Tabela porque este era o número de escravos
que ele possuía em 1869, quando arrendou sua charqueada para um comerciante (Escritura de 16.09.1869, Livro de
Notas n. 12, 1º Tabelionato de Pelotas, APERS). Em ambos os casos não foi possível saber o preço dos escravos.
22
Este percentual tende a aumentar conforme vai se descendo para as fortunas intermédias e pequenas. Cipriano
Joaquim Rodrigues Barcellos, Custódio Gonçalves Belchior e Inácio Rodrigues Barcellos, por exemplo, tinham
respectivamente 74%, 54% e 84% do seu patrimônio investidos na charqueada e nos escravos (Inventário de
Cipriano J. R. Barcellos, n. 2, m. 1, 1870, 2º cartório de órfãos e ausentes, Pelotas; Inventário de Silvana Claudina
Belchior, n. 727, m. 44, 1870, 1º. Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas; Inventário de Inácio Rodrigues
Barcellos, n. 554, m. 36, 1863, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS)).
338
Portanto, apesar dos patrimônios analisados não apresentarem uma homogeneidade no
que diz respeito a sua composição, há algo que os colocava em situação de semelhança. Eles
não se especializaram num único ramo deste sistema econômico e buscaram diversificar o
máximo possível os seus investimentos. Neste sentido, o seu enriquecimento também foi
resultado da alta capacidade em diversificar os seus negócios e evitar a especialização ou na
produção, ou no comércio ou na criação. Apesar de alguns terem se esforçado para conseguir
um maior sucesso no abastecimento de gado, outros dedicaram-se mais ao comércio marítimo,
enquanto outros na atuação como banqueiros ou investidores capitalistas. Tal capacidade de
investimentos foi muito pequena entre os charqueadores de fortunas menores e intermediárias,
pois, como foi mostrado nos capítulos anteriores, somente uma minoria conseguiu atuar no
comércio de longo curso e possuir grandes estâncias de criação fora de Pelotas. Esta
diversificação era, ao mesmo tempo, um privilégio dos mais ricos e a causa de suas riquezas.
De acordo com Braudel, analisando a hierarquia do mundo dos negócios entre os séculos XV e
XIX, era somente na base e no seu intermédio que os participantes do mundo dos negócios se
especializavam em um ramo, pois na medida em que a economia de mercado encontrava o seu
progresso, ela afetava toda a sociedade mercantil, intensificando a divisão social do trabalho.
Esta “fragmentação das funções” se manifestava primeiro nos estratos inferiores: “os ofícios, os
lojistas, os mascates, se especializavam”. Mas o mesmo não ocorria no alto da pirâmide, visto
que, “até o século XIX, o negociante de altos voos jamais se limitou, por assim dizer, a uma
única atividade”. Era “negociante, sem dúvida, mas nunca num único ramo”, e também era,
“segundo as ocasiões, armador, segurador, prestamista, financista, banqueiro ou até empresário
industrial ou agrícola”.23
Assim sendo, em que patamar de riqueza estavam as fortunas dos mais ricos? Apenas
para lembrar o leitor, Wolfhang Harnisch, visitando Pelotas já no século XX, disse que a
riqueza da elite da cidade, entre os quais estavam os charqueadores, era “fantástica” e que
“esses milionários pelotenses bem poderiam ter vivido no Rio ou em Nice e ainda em Paris;
poderiam ter concorrido com os fidalgos russos no luxo e na dissipação de Monte Carlo”.24 Ora,
perante as fortunas dos grandes magnatas franceses, ingleses e norte-americanos, a maioria dos
charqueadores podia ser considerada como um mero mascate. Na primeira metade do século,
por exemplo, o banqueiro inglês Nathan Rotschild já possuía um patrimônio avaliado em 5
23
BRAUDEL, Fernand. A Dinâmica do Capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 40.
24
HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85.
339
milhões de libras esterlinas.25 Décadas mais tarde, com a grande expansão do capitalismo, os
milionários banqueiros londrinos eram ainda mais numerosos. Entre os mesmos, Youssef
Cassis encontrou 125 fortunas superiores a 300 mil libras (entre 1890 e 1914), sendo que 30
delas superavam o milhão de libras.26 Ampliando o foco de análise para outros ricaços ingleses
além dos banqueiros, William Rubinstein listou dezenas de milionários para o século XIX e
início do XX, como os Duques de Devonshire e Sutherland com 1,86 e 1,37 milhão de libras
respectivamente, e o Barão de Stern e Richard Thornton com 3,54 e 2,8 milhões, entre outros.27
A burguesia francesa também possuía os seus milionários. Em Paris, no início do século XX,
Adeline Daumard encontrou 9 fortunas entre 10 e 50 milhões de francos, 1 com 89 milhões de
francos (mais de 3 milhões de libras) e duas na ordem de 250 milhões de francos, patrimônios
que, segundo a autora, equivaliam aos de Alphonse e Gustave de Rotschild.28 Em 1877, o
homem mais rico dos Estados Unidos, o empresário Cornelius Vanderbilt, possuía uma fortuna
de mais de 100 milhões de dólares (19,6 milhões de libras). 29
O exagero de Harnisch deve ter sido motivado pelos esforços dos charqueadores em
demonstrar o excessivo luxo, o apreço pela cultura, as letras e os hábitos europeizados de sua
elite, como enfatizarei no capítulo seguinte. Neste sentido, com exceção de Mauá e alguns
outros poucos industriais e banqueiros do qual pouco se sabe (e que merecem ser mais bem
pesquisados), as demais elites econômicas brasileiras também possuíam fortunas muito
inferiores às dos magnatas europeus e norte-americanos. Portanto, no século XIX, a riqueza dos
charqueadores estava mais próxima das elites proprietárias brasileiras e é com eles que esta
comparação se torna mais adequada. Conforme Stephen Bell, um rico charqueador tinha capital
suficiente para comprar uma fazenda de café, por exemplo. 30 Apesar de terem existido
propriedades de valores bem menores, escolhi uma das fazendas de café do Barão de Entre Rios
como parâmetro. A Fazenda Penedo, localizada em Paraíba do Sul, valia 260 contos de réis, nos
25
PEDREIRA, Jorge M. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822):
diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Tese de Doutorado. Universidade Nova de Lisboa,
FCSH, 1995, p. 303.
26
CASSIS, Youssef. City Bankers (1890-1914). London: Cambridge University Press, 1994, p. 198.
27
RUBINSTEIN, William. Wealth, Elites and the Class Structure of Modern Britain. Past & Present, n. 76, Aug.
1977, p. 99-126.
28
DAUMARD, Adeline. Hierarquia e Riqueza na sociedade burguesa. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 228;
DAUMARD, Adeline. Les fortunes françaises au XIX siècle. Enquête sur la répartition et la composition des
capitaux privés à Paris, Lyon, Lille, Bourdeaux et Toulouse d’après l’enregistrement des declarations de
succession. Paris, Mouton, 1973.
29
HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 206. Para a conversão em
libras utilizei MOURA FILHO, Heitor P. Taxas Cambiais do Mil-Réis. Exchange rates of the mil-reis (1795-
1913). MPRA Paper N. 5210. Disponível em <http://mpra.ub.uni-muenchen.de/5210/>, 2006.
30
BELL, S. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system, 1850-1928. Stanford University Press, 1998, p. 73.
340
anos 1860.31 Tratava-se de um valor bastante alto, mas acessível para os charqueadores mais
ricos e até mesmo para alguns de fortuna intermédia. O mesmo valia para um grande engenho
de açúcar em Pernambuco. Conforme Peter Eisenberg, os maiores engenhos no final do
oitocentos chegavam a custar 200 contos.32
31
FRAGOSO, João L. R. Sistemas agrários em Paraíba do Sul: um estudo de relações não-capitalistas de
produção (1850-1920). Rio de Janeiro: Departamento de História, UFRJ, Dissertação de mestrado, 1983, p. 98.
32
EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977.
33
MARCONDES, Renato. A Arte de acumular na gestação da economia cafeeira: formas de enriquecimento no
vale do Paraíba paulista durante o século XIX. Tese de Doutorado em Economia. USP, 1998, p. 130.
34
MATTOSO, K. Bahia: Século XIX, Uma Província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 613.
35
XIMENES, Cristiana. Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia
(1828-1887). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 1999, p. 96.
36
GRAÇA FILHO, Afonso de A. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de
subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 258; 272.
37
ALMICO, Rita. Fortunas em movimento: um estudo sobre as transformações ocorridas na riqueza pessoal em
Juiz de Fora 1870/1914. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 2001, p. 104.
341
industrial, com uma fortuna de 896 mil libras, em 1893, seguido pelo Barão de Itapetininga,
com 715.780 libras, em 1877. Os demais possuíam menos de 300 mil libras, com destaque para
Fidelis Nepomuceno Prates e Antônio A. Monteiro de Barros – ambos com pouco mais de 250
mil libras. Conforme Zélia C. de Mello, a maioria destas fortunas tinha origens familiares
ligadas à lavoura açucareira e cafeeira, mas ao final do oitocentos eram extremamente
diversificadas em ações de companhias, indústrias e bancos. 38
Se pudesse ser estabelecida uma hierarquia entre estas fortunas, Mauá ocuparia o topo.
Num patamar abaixo estariam ricaços como os Barões de Nova Friburgo, de Itapetininga, o
Marquês de Três Rios, o Conde de Ipanema, além de outros proprietários, banqueiros e
comerciantes com fortunas superiores a 500 mil libras. Abaixo deles seriam colocados
empresários com fortunas acima de 100 mil libras, ou seja, o Comendador Vallim, Joaquim
Marinho, o Visconde de São J. de Matosinhos, Moreira Lima, Bernardo Mascarenhas,
industriais, fazendeiros, comerciantes e banqueiros de algumas capitais de província, alguns
senhores de engenho baianos e pernambucanos e cafeicultores da Zona da Mata mineira e do
oeste paulista, além dos charqueadores mais ricos de Pelotas, como o Barão de Jarau, o Barão
de Butuí, o Visconde da Graça e o coronel Anibal Antunes Maciel.
38
MELLO, Zélia C. Metamorfose da Riqueza, São Paulo, 1845-1895. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 131-147; 164.
39
Neste sentido, também devo incluir aqui a fortuna de um dos grandes financistas do período, o Conde de
Ipanema, que teve seus bens avaliados no ano de 1880 em mais 610 mil libras. Para uma análise deste círculo das
altas finanças no Império ver FRAGOSO, João.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
40
CALDEIRA, Jorge. Mauá: Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 428, 439. É
possível que os cálculos do autor contenham certos exageros, o que não elimina o fato de Mauá ser o homem mas
rico do Brasil no período. Para uma análise mais aprofundada da atuação bancária de Mauá ver GUIMARÃES,
Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá,
MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997.
342
Observe-se que se tratavam de setores ligados às altas finanças, às companhias e
indústrias, ao comércio marítimo e à agricultura de exportação. É provável que fora destes
espaços de investimento dificilmente se poderia alcançar as 100 mil libras esterlinas em
patrimônios (com a possível exceção dos grandes latifúndios). Em São João del Rei, por
exemplo, onde predominava a pecuária conjugada com o comércio de abastecimento da Corte e
vilas mais próximas, Afonso Graça Filho não encontrou fortunas superiores a 60 mil libras. 41 O
mesmo vale para Alegrete, município da região da campanha sul-rio-grandense, cuja pecuária
bovina era o centro da economia.42 Contudo, seja em Alegrete ou em São João del Rei, seja em
Pelotas ou em São Paulo, passando por Juiz de Fora, Bahia e Rio, os ocupantes do topo da
hierarquia econômica pareciam sempre diversificar os seus negócios. E no meio rural, ainda
acontecia um outro fenômeno bastante importante. Os fazendeiros mais ricos (senhores de
engenho, criadores de gado, cafeicultores) também atuavam como atravessadores (como se
fossem brokers entre o mercado local e o exterior) comprando a produção dos produtores
menores (por meio de seus agentes) e revendendo-as a comerciantes mais bem estabelecidos.
Por conta disto, também podiam ser chamados de fazendeiros-capitalistas. 43 Fornecendo crédito
e extraindo o excedente dos pequenos produtores, eles ampliavam sua riqueza, num modelo de
atuação local muito semelhante com o que os charqueadores mais ricos faziam com relação aos
menos ricos, o que estabelecia o capital mercantil sempre acima dos distintos setores
econômicos – no gerenciando do capital produtivo.
Não existem muitas pesquisas sistemáticas dedicadas à análise comparativa das fortunas
em termos regionais. Embora este não seja o objetivo desta tese, busquei somente realizar
algumas considerações para situar a riqueza dos charqueadores num contexto mais abrangente.
Na realidade, a grande maioria dos cafeicultores, comerciantes, senhores de engenho,
fazendeiros, criadores de gado e charqueadores, por exemplo, não era formada por homens com
riqueza superior as 25 mil libras esterlinas. Neste sentido, em cada região ou localidade sempre
havia potentados e negociantes com grandes fortunas (cada um com o seu equivalente local) e
matizar a imbricação destas elites econômicas com outros espaços de atuação como a política e
a burocracia, e sua intersecção com espaços de status social, como as letras e a nobreza titulada,
41
GRAÇA FILHO, Afonso de A. A Princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei
(1831-1888). São Paulo: Anna Blume, 2002.
42
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do
Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 60.
43
FARIA, Sheila de Castro. Fortuna e família em Bananal no século XIX. In: CASTRO, Hebe; SCHNOOR,
Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 70-71; FRAGOSO,
João; RIOS, Ana Lugão. Op. cit., p. 207-209; EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 90-93; FARINATTI, Luís A. Op.
cit., p. 61-66.
343
ainda permanece uma tarefa a ser realizada. Uma das formas de estudar os níveis e acumulação
de riqueza é compreender os rendimentos das atividades econômicas das elites. A seguir, busco
estimar os ganhos de uma empresa charqueadora escravista.
44
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 100.
45
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
Entretanto, por uma falta de sorte de minha parte, nem neste processo e nem nos outros as contas da charqueada
foram descritas de forma completa. Os examinadores dos livros apenas avaliavam a veracidade das escriturações,
se havia irregularidades e se as mesmas eram feitas “na lógica mercantil”, como afirmou um oficial. O mesmo
serve para os inventários, onde eram anexados recibos e fragmentos de contas de uma safra, mas nunca uma conta
completa.
46
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 97-98.
344
setores chaves da economia, mas seria equivocado considerar que os mesmos fossem
imprescindíveis para o exercício das atividades de charquear. Portanto, um iniciante para
começar no ramo dos negócios devia possuir, antes de tudo, a sua charqueada e os seus
escravos e são estes investimentos que deve-se atentar. Realizarei somente algumas
considerações para as décadas de 1850 e 1860, que é onde tenho mais informações, fazendo as
ressalvas necessárias ao longo da exposição.
Pela heterogeneidade das benfeitorias que podiam compor uma unidade produtiva e a
qualidade e tamanho dos estabelecimentos, o valor da charqueada é o mais problemático para se
estabelecer os custos iniciais. Entre os anos de 1850 e 1860, é possível encontrar charqueadas
valendo menos de 20:000$, enquanto a de José Inácio da Cunha valia 110:000$. Isto dificulta
estabelecer um percentual médio dos escravos e da charqueada no patrimônio total de um
charqueador, como Stephen Bell buscou realizar. 47 Além disso, não havia um consenso no que
pertencia e o que não pertencia à charqueada. Foi comum nos inventários anteriores aos anos
1860, os oficiais avaliarem benfeitoria por benfeitoria, ficando difícil definir o que era
imprescindível para o funcionamento da fábrica.
É somente a partir das décadas de 1850/1860 que começam a ficar mais comuns os
avaliadores substituirem o grande número de benfeitorias descritas por somente algumas delas,
ficando subentendido que o terreno, as senzalas, as barracas de couros, as casas dos
empregados, o moinho do sal, o trapiche, entre outros, estavam reunidos numa única unidade
denominada “estabelecimento de charqueada”. No inventário de Joaquim G. da Costa, por
exemplo, a fábrica foi descrita como: “Um estabelecimento de charqueada completo com casa
de sobrado e diversas outras casas térreas, galpões e todas as demais benfeitorias edificado num
terreno situado na margem do Arroio Pelotas”.48 Portanto, não se elencava mais o rol de
benfeitorias e utensílios. Contudo, observe-se que a moradia do charqueador é incluída no
espaço que se entendia pertencer a charqueada. Isto dificulta a análise, porque um sobrado ao
47
BELL, Stephen. Op. cit., p. 72-73. Examinando poucos inventários, Bell considerou que os escravos perfaziam
70% dos investimentos da charqueada. Por azar, o inventário escolhido pelo autor, o do Comendador João Simões
Lopes, foi um dos quais a charqueada apresentou um dos menores valores na época – apenas 15:000$. Analisando
apenas os inventários dos anos 1860, e somando o valor da charqueada ao dos escravos, foi possível verificar 4
patrimônios onde os escravos apresentaram um percentual inferior ao valor da charqueada. Foram os casos de João
Jacintho de Mendonça (45,8%), Inácio Rodrigues Barcellos (34%), Silvana Claudina Belchior (43,2%) e Cipriano
J. R. Barcellos (36,6%). Tais cálculos são muito complexos, pois dependem tanto das condições da charqueada
quanto dos escravos, além da época em que os mesmos foram avaliados. Mesmo assim, por motivos que
explicitarei adiante, tendo a concordar com Bell, pois na maioria das vezes os escravos eram bens mais valiosos do
que a charqueada, ainda mais após a extinção do tráfico atlântico.
48
Inventário de Joaquim G. da Costa, n. 599, m. 38, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1865 (APERS).
345
lado da fábrica era mais um investimento em conforto e um símbolo de status do que algo
indispensável para um investidor que quisesse dar início aos negócios com o charque.
49
Escritura de compra e venda de 01.12.1862, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro de Notas n. 9 (APERS).
50
BELL, Stephen. Op. cit., 1998, p. 73.
51
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
52
Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
Tratam-se de valores bastante altos e que no caso do segundo depoente, que tinha interesse direto no inventário,
poderia estar super-estimado.
346
ser de grande importância para a história econômica do Brasil, qual seja, a compreensão dos
rendimentos de uma empresa escravista no oitocentos.
Com relação ao sal, em 1882, Louis Couty mencionou que a quantidade do produto
utilizado para salgar cada bovino abatido nas charqueadas oscilava entre 8 kg e 10 kg. 55 Ester
Gutierrez, por sua vez, considerou que eram utilizados de 10 kg a 12 kg de sal no mesmo
processo.56 Novamente optei pela média de 10 kg. Tendo em vista que o preço do alqueire de
sal (13,8 kg) oscilou sempre em torno de 1$000, é possível estimar que cada rês consumia
aproximadamente $725 em sal. 57 A respeito dos gastos com mão de obra assalariada utilizei o
mesmo processo de Liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos. Nele foram localizados alguns
trabalhadores livres cobrando seus salários referentes à safra que se encerrava. A partir dos
mesmos, é possível calcular os respectivos vencimentos anuais para o capataz (1:536$), o
patrão do iate (480$), o graxeiro (384$), o camarada do iate (320$), o peão da casa (340$) e o
53
Como indicam as cotações correntes nos periódicos de Pelotas. Ver, por exemplo, Jornal do Comércio de Pelotas
em 01.07.1877 (BPP). Em Alegrete, os preços do gado amentaram 31% da década de 1870 para a de 1880
(GARCIA, Graciela. Terra, trabalho e propriedade: a Estrutura agrária da campanha rio-grandense nas décadas
finais do período imperial (1870-1890). Tese de Doutorado, PPGH-UFF, 2010, p. 77).
54
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 142. Inventário de João Simões Lopes, m. 366, m. 26, 1853, 1º cartório de
órfãos e provedoria, Pelotas; Inventário de João J. Mendonça, n. 41, m. 1, 1862, 2º cart. do cível, Pelotas (APERS);
Escritura de 11.05.1868, Livro de notas n. 11, 1º Tebelionato, Pelotas (APERS).
55
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1882].
56
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel,
2001, p. 189.
57
Inventário de Thereza S. de Oliveira. N. 310, m. 21, 1849, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria - APERS;
Inventário de Aníbal A. Maciel. N. 815, m. 48, 1875, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria - APERS. Nestes
e em outros documentos, tanto na década de 1840 quanto na de 1870, 1 alqueire de sal valia 1$000.
347
rondador (337$). Somados eles custavam, por ano, 3:397$ ao charqueador. Arredondei para
4:000$, vistos os possíveis prêmios dados aos escravos carneadores.58
Com relação aos cuidados médicos, os Vianna possuíam um convênio com o Dr. João
Campello, no qual pagavam 384$ anuais por atendimentos “a sua família e escravos do seu
estabelecimento de charqueada”. O plano não devia cobrir cirurgias, pois, entre 1863 e 1864, o
médico cobrou um adicional de 320$ para amputar as duas pernas de um escravo, 200$ pela
operação na bexiga de outro cativo e 50$ pela costura abdominal de um escravo ferido. No
total, o charqueador gastou 1:338$000 em 1863-1864, o que resulta numa média de 669$ por
58
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
59
Inventário de José P. Sá Peixoto, n. 276, m. 19, 1847, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
60
Devia ser difícil precisar comprar carne exclusivamente para os escravos, pois as partes dos próprios novilhos
que chegavam para as charqueadas podiam servir para alimentá-los, sem causar grandes prejuízos ao charqueador.
Em 1882, por exemplo, Couty disse que as costelas dos bovinos eram destinados à alimentação dos escravos. Mas
quando fosse necessário comprar o produto, o mesmo não devia custar tão caro. Em abril de 1865, quando a
charqueada dos Vianna não estava mais abatendo, o administrador dos escravos comprou 150 costelas de gado
durante um mês, pagando somente 6$ (custo que em um ano seria de 72$). (Liquidação da Viúva Vianna &
Filhos). Um engenho cubano com 260 escravos consumia 2,5 reses por semana (FRAGINALS, Manuel M. O
Engenho. São Paulo: Hucitec, v. II, 1989, p. 79). Portanto, uma charqueada com 52 escravos (20% do plantel
indicado em Cuba) consumiria ½ novilho por semana, o que daria 24 bovinos por ano. Ao preço de 16$ o novilho,
isto custaria 384$000. Portanto, quando os senhores precisavam comprar carne no mercado local, o preço das
mesmas custavam muito pouco diante do volume de capital movimentado em uma safra na charqueadas.
348
ano.61 Como o convênio incluía os cuidados médicos dos escravos considerei o valor integral
como os custos médicos na senzala. Somando os gastos médicos com a alimentação tem-se
2:300$253 por ano. Os gastos com as roupas são os mais difíceis de estimar, mas também
deviam ser os mais baratos, visto o baixo preço dos tecidos e a presença de escravas costureiras
nos plantéis.62 Estudando os relatórios oficiais de uma companhia mineradora de São João del
Rei, Douglas Libby encontrou uma média entre 58$ e 59$ de gastos gerais com cada escravo
nos anos 1860.63 Para fins de estimativa, por falta de indicações mais seguras e para fechar um
cálculo que resulte numa média aproximada à localizada por Libby, eu acresceria 700$ de
gastos com roupas e despesas eventuais para um plantel médio entre 50 e 55 escravos. Somados
aos cálculos anteriores, isto totaliza um custo anual aproximado de 3:000$ com os escravos,
resultando numa média entre 55$ e 60$ de gastos com cada escravo por ano, ou seja, quantia
muito aproximada da encontrada por Libby.
Também calculei em mais de 4:000$ os gastos com barricas e pipas vazias para colocar
o sebo e a graxa, equivalentes ao produto de uma charqueada que abatesse 20 mil novilhos. 64
Com relação aos impostos, também foi possível fazer estimativas verossímeis. Como o preço
do sal já trazia consigo os seus encargos e, como foi visto no capítulo anterior, os impostos
municipais dos couros e seus fretes eram pagos pelos estrangeiros, não incluo tais valores.
Contudo, os charqueadores deviam pagar os impostos por profissões, por gado abatido no
município e os direitos de exportação do charque. O primeiro era de 265$ por empresário, o
segundo, no caso aqui proposto de uma safra com 20 mil novilhos abatidos, custava 425$ ao
charqueador e o terceiro calculei em cerca 6:658$.65 É certo que existiam outros gastos
adicionais, como reformar uma benfeitoria, por exemplo. Mas não os incluo pelo simples fato
61
Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
62
Mesmo os relatórios da companhia mineradora inglesa estudada por Libby não revelam os gastos com roupas.
Mas visto a fábrica possuir um departamento de costura, o autor considerou que as vestimentas dos cativos deviam
estar incluídas nos gastos com mantimentos gerais (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 98).
63
LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 98.
64
Este cálculo foi realizado da seguinte forma. Em 1876, 1 pipa com capacidade para 462 Kg de graxa e 1 barrica
para 100 kg de sebo coado podiam ser compradas no mercado por 7$000 e $800 réis, respectivamente. Tendo em
vista que uma rês rendia, em média, 10 kg de graxa e 7 kg de sebo, uma safra que abatesse 20 mil novilhos exigiria
a compra de 432 pipas e 1.400 barricas, resultando em gastos de 4:144$. Os números foram retirados das contas do
Inventário de Ismael Soares de Leivas, n. 972, m. 55, 1º cart. órfãos e provedoria, 1882, Pelotas (APERS) e de
COUTY, Louis. Op. cit., p. 125-127.
65
Calculei os valores dos direitos de exportação no ano de 1863 a partir de uma regra de três simples. Se naquele
ano foram abatidas 326.272 reses nas charqueadas e os impostos de exportação somaram 108:615$240, o charque
equivalente a 20 mil novilhos abatidos pagaria os direitos de 6:658$ (para os direitos pagos e o gado abatido nas
charqueadas ver Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246-247;
PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria pastoril do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Livraria Continental, s/d.). Não fica claro se quem pagava os direitos de exportação era o
charqueador ou o comerciante que revendia suas mercadorias no porto. De qualquer forma incluí na conta do
charqueador, pois os maiores valores, como os fretes marítimos, pareciam ser pagos pelo comerciante carregador,
como enfatizo a seguir.
349
de que também não estou incluindo os ganhos do charqueador com os aluguéis de escravos.
Entre fevereiro e março de 1865, os Vianna receberam 560$ referentes ao aluguel de seus
escravos para dois charqueadores.66 A quantidade de cativos não é especificada. Mas como, nos
anos 1860, os serviços de um cativo das charqueadas valiam 30$ mensais, é provável que
tivessem sido alugados 9 ou 10 escravos por 2 meses.67
Por fim, entre os ganhos do charqueador acrescento 5:665$ pelos fretes de um iate
durante uma safra. Incluí este valor porque Cândido Barcellos, quando adquiriu a sua
charqueada, comprou-a com um iate.68 O ganho médio do charqueador com os produtos da
charqueada pode ser estimado a partir da conta entre Antônio José da Silva Maia e João Batista
Balbé, em 1866. Segundo Maia, que remetia gado para ser abatido na charqueada de Balbé, o
rendimento de um novilho (que ele não especifica nem o peso e nem o valor) naquele ano era
de 2$ por arroba de charque (sendo que uma rês dava, em média, 4,5 arrobas do produto ou
quase 70 kg), 5$ por arroba de sebo, 4$ por arroba de graxa, 4$ a unidade do couro e 6$ o cento
de chifres. 69 Conforme foi visto no capítulo anterior, várias charqueadas produziam cinzas para
o mercado, então resolvi incluí-las nos cálculos de rendimentos, a partir das estimativas de
Louis Couty. 70 Maia, além de charqueador era comerciante e fretava embarcações no porto de
Rio Grande. Nos anos 1870, uma embarcação mandada para a Bahia ou Pernambuco cobrava
$350 a $400 por arroba de charque carregado.71 Em 1874-1875, um navio carregava em média
146,5 toneladas de charque, o que resultaria num frete de mais de 3:900$ até Pernambuco.72
Contudo, a partir da análise dos contratos de fretamento, creio que era o comerciante do porto
que pagava os fretes ao proprietário do navio e não os charqueadores. É provável que ele
calculasse seus lucros sobre o frete pago, mas não foi possível encontrar tais documentos e,
neste aspecto, torna-se necessário novas pesquisas.73
66
Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
67
Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
68
Como todo médio ou grande charqueador possuía o seu iate, ele não precisava pagar os fretes até o porto de Rio
Grande. Contudo, tinha que arcar com os salários do patrão do iate, seu camarada e a manutenção do mesmo. A
segunda opção era mais rentável do que pagar fretes, pois a maior parte dos charqueadores tinha um iate. Um bom
iate podia ser comprado nos anos 1860 por 2:000$. Os salários de um patrão de iate com seu camarada custavam
800$ anuais. De acordo com Duarte de Souza, os fretes dos dois iates da charqueada de Vinhas rendiam mais de
6:400$ por ano (ver nota anterior). Portanto, percebe-se que em uma safra o valor pago pelo iate era amortizado e
ainda rendia lucros. Um fragmento das contas dos fretes do iate da charqueada dos Vianna demonstra que somente
em janeiro de 1865, ele rendeu 944$060 (Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
69
Processo de Liquidação de João B. Balbé, n. 2.570, m. 74, 1866, 2º cart. cível e crime, Pelotas (APERS).
70
Conforme Couty, a tonelada de cinzas valia aproximadamente 100 francos (33$333) (COUTY, 2001, p. 123).
71
Contrato de fretamento n. 1240, 12.03.1878 (JC-53, Fundo Junta Comercial, AHRS).
72
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
73
Contratos de fretamento da Corretoria Geral de Rio Grande (Ver, por exemplo, JC-53 e JC-55, Fundo Junta
Comercial, AHRS). Isto fica evidente nas centenas de contratos de fretamento dos anos 1860 e 1870. Eram poucos
350
Tendo sido feitas as devidas considerações, é possível verificar, a partir da Tabela 9.4,
que a charqueada poderia apresentar um rendimento de 9,4% numa safra dos anos 1860.
Lembro que não incluí as entradas referentes aos aluguéis dos escravos. No entanto, posso ter
subestimado alguns gastos, o que compensaria a não inclusão daqueles dados. Mas, como já
disse, trata-se de uma estimativa cujo grau de erros e acertos só pode ser testado com livros
contábeis originais. Assim como em outras empresas da época, estes rendimentos eram maiores
em algumas safras e menores em outras, variando de acordo com os preços dos produtos.74
Tudo isto podia fazer os valores saltarem de 9,4% para quase 15% ou cairem para 3% ou
menos, podendo resultar em sérios prejuízos ao empresário. E estas oscilações foram muito
comuns, pois os preços variavam numa mesma safra e na mesma semana. Portanto, um
charqueador que havia lucrado muito numa safra não caía em desgraça caso sofresse um
prejuízo na safra seguinte (desde que ele não fosse tão grande). Mas no geral, o charqueador
com déficits excessivos sucumbia diante das oscilações. Como ensinou Witold Kula, estudando
os rendimentos dos senhorios feudais polonenses, em qualquer sociedade a conta da empresa
precisava estar equilibrada.75
os charqueadores que apareciam pagando fretes aos comerciantes e proprietários de navios. Somente os
charqueadores ricos atuavam neste ramo. Acredito que eles compravam o charque dos médios e pequenos, que
deixavam de arcar com os fretes marítimos, mas como o comerciante devia colocar sua taxa de lucro sobre o
produto, forçando os preços do charque para baixo, devia dar no mesmo. Além disso, os comerciantes lucravam
com o retorno dos seus navios que traziam açúcar, aguardente e sal na viagem de volta. Como foi visto no capítulo
anterior, eram os comerciantes ingleses que pagavam os fretes dos couros.
74
Caso o novilho apresentasse um preço médio de 17$, por exemplo, os custos aumentariam em 20:000$,
reduzindo os rendimentos para menos de 15 contos. Se o novilho custasse 18$ em média, o charqueador teria altos
prejuízos na safra, mas se comprasse os novilhos uruguaios dos campos do Capitão Mendonça, avaliados em 12$,
o rendimento seria altíssimo (80:000$ a mais). O preço pago pelos produtos também faziam os rendimentos
oscilarem. Caso o charque aumentasse o preço da arroba de 2$ para 2$200, os ganhos aumentavam 18:000$ no
cálculo final. E se os couros acompanhassem o aumento do charque e saltassem de 4$000 para 4$500, os mesmos
ultrapassavam os 50 contos no final da safra (ou seja, valores próximos do que os Vinhas e os Vianna declararam
em 1862 e 1864, como foi dito acima).
75
KULA, Witold. Da Tipologia dos Sistemas Econômicos. In: FOURASTIÉ, J. (Org.). Economia. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 1979, p. 75-140.
76
É possível que as olarias dos charqueadores abastecessem de tijolos boa parte da região, intensificando a sua
produção durante a entressafra das charqueadas. Tratava-se de um negócio muito lucrativo, pois como a população
crescia desenfreadamente, o número de casas a serem construídas acompanhava tais necessidades. Além disso, a
vizinha Rio Grande também crescia a índices impressionantes. Em 1835, por exemplo, a superfície desta cidade
era de 36 hectares, em 1860, atingiu 75 hectares, mas em 1878 chegou a 458 hectares – um salto muito grande para
pouco tempo. Tendo em vista que, em 1868, Rio Grande possuía apenas 5 olarias (enquanto Pelotas detinha 28) é
provável que parte dos charqueadores suprissem uma parte considerável da construção civil da localidade. Nenhum
outro município da Província possuía mais fábricas de tijolos do que Pelotas (ALVES, Francisco das Neves. A
Cidade de Rio Grande. Rio Grande: FURG, 1997, p. 48; Mapa demonstrativo das Fábricas e Produtos de alguns
351
revendê-las ou alugá-las ou alugar os próprios escravos para a construção civil, eles podiam
potencializar sua economia sem muitos gastos. Comprar terrenos baratos, erigir casas sobre os
mesmos e depois vendê-las podia auferir significativos lucros. Analisando a atuação econômica
da família Rodrigues Barcellos, Carla Menegat pode observar que o charqueador José era um
“verdadeiro especulador imobiliário”. Ele e sua esposa negociaram 40 imóveis entre 1832 e
1871. Quando faleceu, sua olaria havia sido repassada ao filho José Maria. Apenas para lembrar
o leitor, José Rodrigues Barcellos também estava entre os 12 mais ricos de Pelotas. 77
Tabela 9.4 – Estimativa média de rendimentos de uma charqueada em uma safra com abate de 20
mil novilhos (década de 1860)78
municípios desta província e de suas riquezas naturais. In: Quadro Estatístico e Geográfico do Rio Grande do Sul,
1868. Códice E-1 (AHRS)).
77
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de
Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPG-História
UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009.
78
As fontes utilizadas para a composição da tabela estão descritas minuciosamente nas páginas anteriores.
352
No Rio da Prata, um grande saladero com uma variada gama de investimentos podia
render o dobro. Analisando as contas da enorme fábrica de Justo J. de Urquiza, em Entre Rios,
verificou-se que, numa fase de auge, os seus lucros atingiram os 20% na década de 1850.79
Contudo, de acordo com Barran e Nahum, um saladero uruguaio numa época crítica (1862)
podia render até 8% de lucros sobre as despesas na mesma safra.80 O fato é que sem os livros
contábeis de uma média e de uma grande charqueada em Pelotas fica difícil fazer uma
afirmação precisa. Prefiro arriscar que os ganhos ficavam entre 7% e 9% – algo bastante
plausível se comparado a outras empresas da época. Tais rendimentos eram levemente
superiores a outros investimentos na pecuária. Conforme Juan C. Garavaglia, as estâncias de
criação de gado em Buenos Aires obtinham um lucro médio de 1% a 8% no início do anos
1850.81 Taxa semelhante foi encontrada por Luís A. Farinatti na mesma época. Estudando a
criação de gado em Alegrete, o autor percebeu que os grandes estancieiros podiam obter ganhos
entre 3% e 7% por safra.82 Observe-se que se tratam de comparações entre empresas escravistas
e não escravistas e que ambas não apresentavam diferenças significativas.83
79
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión
ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, p. 339.
80
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 128-129.
81
GARAVAGLIA, Juan C. Patrones de inversión y ‘elite económica dominante’: los empresarios rurales en la
pampa bonaerense a mediados del siglo XIX. In: GELMAN, Jorge; GARAVAGLIA, J. C.; ZEBERIO, Blanca.
Expansión Capitalista y transformaciones regionales: Relaciones sociales y empresas agrarias en la Argentina del
siglo XIX. Buenos Aires: La Colmena, 1999, p. 130-131.
82
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 142-145.
83
No que diz respeito à criação de gados isto parece evidente. Mas com relação aos saladeros e as charqueadas o
correto seria comparar os lucros de Urquiza com os de um grande charqueador pelotense com muitas inversões de
capital, o que não foi possível estimar. Na comparação com os saladeros uruguaios não há muita diferença entre os
valores, mas este é um problema de pesquisa que ainda está em aberto e merece novos estudos.
84
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil em uma economia colonial tardia (c. 1750 – c. 1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001,
p. 230-231.
85
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 202-205.
86
ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia (1750-1808). In: In: BETHELL, Leslie (Org.). História da
América Latina. São Paulo: EDUSP, v. 3, 1999, p. 568.
353
médios de 9 grandes fazendas de café no sudeste chegavam a 17%.87 Em Pernambuco,
Eisenberg verificou que os engenhos tradicionais dos anos 1870 não atingiam 9% em lucros. 88
A fortuna acumulada por um charqueador também dependia de outros fatores que não
somente os seus próprios investimentos individuais e o gerenciamento de seu patrimônio.
Sendo a charqueada uma empresa de caráter familiar e que envolvia parentes em outras áreas de
atuação conjugadas ao estabelecimento, como a pecuária e o comércio, é necessário entender
alguns outros fatores no interior da família que favoreciam a economia interna da unidade
produtiva. Os negócios dos filhos e genros, por exemplo, podiam trazer maiores lucros e
estabilidade para as finanças da empresa charqueadora, assim como a forma na qual o
proprietário administrava o seu patrimônio e encaminhava os seus herdeiros na fase adulta
também era fator importante no sucesso da geração seguinte. Neste sentido, a política
sucessória era algo complexo e que envolvia arranjos matrimoniais, antecipações de herança,
investimentos em educação, empréstimos com juros inferiores aos de mercado, entre outros
fatores. Contudo, estas questões, por si só, mereceriam um estudo específico, algo que esta tese
não pretendeu realizar. 90
90
Os estudos sobre a reprodução social agrária, as políticas sucessórias e a transmissão de patrimônio possuem
uma larga tradição nas ciências humanas. Para análises pioneiras ver THOMPSON, E. P.; GOODY, Jack;
THIRSK, J. Family and Inheritance: Rural Society in Western Europe (1200-1800). New York/Londres: Past and
Present Publications/Cambridge University Press, 1978.; LADURIE, Emmanuel Le Roy. Système de la coutume:
structures familiales et coutume d’héritage en France au XVI siècle. Annales ESC, 27 (4-5), p. 825-846;
BOURDIEU, Pierre. A terra e as estratégias matrimoniais. In: BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Rio de
Janeiro: Vozes, 2009, p. 244-265. Para uma profunda revisão historiográfica sobre o tema ver PEDROZA,
Manoela. Estratégias de reprodução social de famílias senhoriais cariocas e minhotas (1750-1850). Análise Social,
v. XLV, 194, 2010, p. 141-163. Para estudos no universo luso-brasileiro entre os séculos XVI e XIX ver
MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-
1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Csa da Moeda, 1998; DURÃES, Margarida. Estratégias de sobrevivência
econômica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (séc. XVIII-XIX). In: Anais do XIV
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú (MG), 2004, p. 1-24; BACELLAR,
Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre senhores de engenho do oeste
paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997; COSTA, Dora. Formação de famílias
proprietárias e redistribuição de riqueza em áreas de fronteira: Campinas, São Paulo, 1795-1850. In: História
Econômica & História de Empresas. Vol. VII, n. 2, jul-dez, 2004, p. 7-35; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em
Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998;
PEDROZA, Manoela. Engenhocas da Moral: um estudo sobre uma dinâmica agrária tradicional. Tese de
Doutorado em Ciências Sociais, Unicamp, 2008.
355
descreveu a distribuição geográfica das charqueadas que existiram em Pelotas na época,
somando 43 estabelecimentos.91
Estas fábricas não funcionaram ao mesmo tempo, pois algumas foram montadas e outras
desativadas em épocas diferentes. Para cada uma das 43 charqueadas elencadas, Lopes Neto
buscou destacar o primeiro proprietário e para quem a mesma foi sendo transmitida sem
esclarecer muito bem se a mesma foi vendida, entregue por endividamento ou legada por
herança, e em que data ocorreu a transferência. O ponto forte da “relação” é exatamente mapear
e situar as propriedades ao longo das margens do arroio Pelotas e do rio São Gonçalo, uma vez
que a listagem dos proprietários apresenta algumas lacunas que busquei preencher com outras
fontes documentais, como os inventários post-mortem, as genealogias de famílias de
charqueadores, as listas de qualificação de votantes e da Guarda Nacional e as escrituras
públicas de compra e venda. 92
Dos 43 estabelecimentos arrolados por Lopes Neto, tive que eliminar 3, pois em dois
deles o autor não deixou claro quem eram seus proprietários e no outro a charqueada foi
demolida ainda na década de 1830. No entanto, acrescentei outros dois estabelecimentos que
Lopes Neto não arrolou, pois eles estavam localizados fora do círculo principal das
charqueadas, próximas às margens fluviais do São Gonçalo e do Pelotas. Destas 42
charqueadas, reuni informações mais seguras para 32 delas, ou seja, 76% dos estabelecimentos.
As demais parecem não ter encontrado sucessores entre os filhos ou foram destruídas ou seus
proprietários não deixaram muitos vestígios na documentação.
Ao contrário dos estancieiros que podiam ter seu patrimônio fundiário fracionado entre
os filhos, os herdeiros de um charqueador não tinham como dividir a fábrica de charque em
partes, pois o fracionamento da escravaria e das instalações da empresa tornava a continuação
dos negócios inviável. Portanto, as charqueadas eram bens “indivisíveis” (como um engenho de
açúcar, por exemplo) e exigiam um planejamento especial por parte dos proprietários para que a
91
Esta fonte foi publicada na Revista do 1º Centenário de Pelotas intitulada “Notícia sobre a fundação das
charqueadas” e está reproduzida em MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto
Alegre: Edigal, 1987, p. 99-102.
92
Como, por exemplo, a Lista de qualificação de votantes de Pelotas (Fundo Eleições, maço 2, AHRS) e a Lista de
qualificação da Guarda Nacional (Fundo Conselho de Qualificação da Guarda Nacional, maço 77, AHRS). Um
manifesto assinado em 1848 pelos charqueadores pelotenses reclamando da pesagem do couro apresenta três
indivíduos que não aparecem na listagem de Simões Lopes Neto. O manifesto foi publicado no Jornal O Rio-
Grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4. e foi reproduzido por TORRES, Daniel de Quadro. Rio Grande – Pelotas:
produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão
do Curso de História. FURG, 2004, p. 32. Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública
Pelotense – transcrição gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)).
356
empresa não se fragmentasse em gerações posteriores.93 Neste sentido, a política sucessória
deveria envolver um longo processo de “transmissão” e “aprendizagem” dentro da própria
família enquanto o pai ainda estava vivo. Tal processo consistia em investir o papel de sucessor
da charqueada a um dos filhos homens. Em poucos casos este espaço foi preenchido por um
genro do charqueador. Naturalmente, alguns charqueadores venderam a sua propriedade
durante a vida. Nos casos em que não encontraram pessoas na família que o sucedessem, as
viúvas e/ou os herdeiros foram obrigados a arrendarem ou negociarem o estabelecimento.
93
Ao contrário dos charqueadores, os senhores de engenho já mereceram muitos trabalhos a respeito da análise do
processo de transmissão de herança. Ver, por exemplo, BACELLAR, Carlos. Op. cit.; COSTA, Dora Isabel Op.
cit.; FARIA, Sheila de Castro. Op. cit; PEDROZA, Manoela. Op. cit., 2008. Todos estes estudos serviram de
referencial teórico e metodológico para esta pesquisa.
94
Em 4 destes estabelecimentos o “sucessor” nos negócios foi o genro, em 2 deles foram os netos, em 1 o cunhado
e em outro o afilhado.
357
charqueadas.95 Portanto, motivado pela expansão econômica que caracterizou o meado do
século, o número de estabelecimentos atingiu o seu auge nos anos 1850 e 1860, mantendo-se
estável até o início da década de 1880, para depois decair. Ainda com relação às três
conjunturas, é necessário considerar que a Guerra dos Farrapos (1835-1845) marca um
importante divisor entre os períodos A e B, e as diferentes crises que afetaram as charqueadas
nas décadas de 1860 a 1870 significaram um importante obstáculo para as famílias que atuaram
neste negócio entre os períodos B e C.96
95
Como já foi dito, nem todas as charqueadas existentes nestas épocas fazem parte da análise.
96
Para uma análise dos charqueadores pertencentes a cada período ver Anexos da tese.
97
Entre os mesmos, 7 estavam nas mãos dos filhos, 2 dos genros, 1 dos netos, 1 do irmão e 1 do cunhado. Como
um destes charqueadores possuía dois estabelecimentos e ambos ficaram com os netos, o número de charqueadores
é 16, mas o número de charqueadas 17.
358
charqueadas analisadas, vedando o acesso das mesmas a outras famílias. Para fins analíticos,
denominei estas famílias que conseguiram passar por guerras e grandes crises econômicas e
permanecer nos negócios com o charque entre os anos 1820 e 1880 de famílias longevas.98
Tornar-se genro de um charqueador poderia ser uma das formas de ingressar na elite
charqueadora. Contudo, entre as famílias longevas o genro conseguiu herdar o papel de
charqueador somente em 2 delas, pois os filhos foram os sucessores preferenciais do interior
das mesmas. Tendo em vista que das 32 charqueadas analisadas aqui apenas 15 apresentaram
sucessão de pai para filho, pode-se dizer que as famílias longevas foram as mais representativas
em praticar com sucesso uma política sucessória de pai para filho, pois reuniam 11 das 15
charqueadas (74,3%) em que tal tipo de transmissão foi realizada.
Este padrão de transmissão da charqueada para um dos filhos não deve ser visto como
uma obviedade nas relações familiares. Estudando os engenhos de Campos dos Goytacazes
(Rio de Janeiro) no século XVIII, Sheila Faria verificou um sistema sucessório matrilinear, ou
seja, o engenho era transmitido para um dos genros por intermédio de uma das filhas. No caso
estudado por Faria, o genro português e comerciante foi o típico herdeiro e sucessor nos
negócios da localidade. No entanto, estudando diferentes sistemas sucessórios e dando ênfase
aos engenhos de açúcar do oeste paulista, Carlos Bacellar considerou que havia padrões
diferenciados no processo sucessório dos mesmos. Neste mesmo sentido, Dora Costa
identificou um padrão diferente do localizado por Faria. Estudando o oeste paulista na
passagem do século XVIII para o XIX, ela verificou que o padrão hegemônico era o patrilinear,
embora houvesse espaço para os genros herdeiros.99 O padrão localizado nas charqueadas
pelotenses era semelhante ao encontrado por Costa.
Dos 14 charqueadores (15 charqueadas) que tiverem nos seus filhos o sucessor nos
negócios com a charqueada, 12 tiveram nos primogênitos os herdeiros preferenciais. Para um
deles o sucessor foi o segundo mais velho e para outro não consegui identificar se o filho
herdeiro era o mais velho. Portanto, em mais de 90% dos casos onde houve a transmissão da
administração da charqueada para o filho, o mesmo era o primogênito, sendo os secundogênitos
não incluídos neste processo de transmissão informal. Ora, estamos diante de uma distinção
notável nas políticas sucessórias realizadas por um grupo de famílias se comparada às demais.
98
Obviamente que o “longeva” diz respeito à história das famílias proprietárias nas charqueadas em Pelotas, uma
vez que, em outras realidades históricas, o período de 60 ou 70 anos não representava uma grande permanência no
tempo. Ver, por exemplo, MONTEIRO, Nuno. Op. cit.; BECKETT, J. V. The Aristocracy in England 1660-1914.
Londres, 1986; MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco
colonial. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
99
FARIA, Sheila de C. Op. cit; BACELLAR, Carlos. Op. cit., p. 15; COSTA, Dora. Op. cit.
359
Se as famílias longevas concentraram as sucessões da charqueada de pai para filho e se nestas
sucessões predominaram as transmissões para os primogênitos, podemos concluir que a longa
permanência destas famílias nos negócios com o charque estava diretamente relacionada ao tipo
de política sucessória realizada. A transmissão da charqueada para um filho-sucessor parecia
garantir uma transição mais estável e que assegurava às gerações seguintes uma maior
permanência neste ramo de negócios. Mas pode-se ir mais adiante. Se grande parte das famílias
longevas também estavam entre as famílias mais ricas da segunda metade do século, é possível
verificar o quanto uma política sucessória envolvendo o primogênito podia condicionar a
trajetória e a possibilidade de ganhos econômicos das gerações posteriores.
O charqueador mais rico de Pelotas pode contar com um triplo fator de favorecimento
na sua trajetória. O Barão de Jarau era: a) filho de charqueador; b) genro de charqueador, com
poucos cunhados; c) tinha poucos irmãos. O primeiro e o segundo fator dispensam comentários.
Jarau foi beneficiado em duas partilhas de patrimônios consideráveis e na segunda delas,
possuía somente 3 cunhados com quem dividir os bens de seu sogro. Além disso, o fato de
possuir somente um irmão e uma irmã permitiu ao mesmo ficar com boa parte do patrimônio do
pai – que além de charqueador, era comerciante marítimo. Não encontrei nenhum caso igual ao
dele. Mas outros dois dos mais ricos charqueadores de Pelotas chegaram perto disso. O
Visconde da Graça, por exemplo, era filho de charqueador e também tinha poucos irmãos (3),
mas não teve a sorte de tornar-se genro de um rico charqueador como Jarau. O Barão de Butuí,
por sua vez, apesar de não ser filho de charqueadores, casou-se com a única herdeira de
100
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote. Mulheres, Famílias e Mudança Social no Brasil (1600-1900).
São Paulo: Cia. das Letras, 2000, em especial o capítulo 3.
360
Antônio José de Oliveira Castro – um dos 12 charqueadores mais ricos do grupo aqui estudado
– herdando parte da fortuna do sogro na primeira partilha do casal, em 1848. Estes três casos
(mas principalmente o do Barão do Jarau), lembram a forma como o Comendador Manoel
Vallim começou a acumular a sua grande fortuna de cafeicultor em São Paulo. Herdando
grandes patrimônios agrários do pai e do sogro, Vallim os administrou com competência, vindo
a tornar-se uma das maiores fortunas do Brasil no oitocentos. Zélia C. de Mello também
mencionou que as grandes fortunas de São Paulo no fim do oitocentos tinham origens
familiares vinculadas ao café e ao açúcar.101 Sendo assim, o peso da riqueza familiar na
constituição das fortunas das mencionadas elites na segunda metade do oitocentos era notável.
101
FRAGOSO, João; RIOS, Ana Lugão. Op. cit.; MELLO, Zélia C. de. Op. cit.
102
Inventário do Visconde de Jaguari, n. 348, m. 25, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1852 (APERS).
103
DAUMARD, Adeline. Os burgueses e a burguesia na França. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Em especial o
capítulo 3.
361
Não possuo elementos documentais para defender esta hipótese, mas era como se as
práticas de sucessão das famílias longevas fossem inspiradas nas políticas sucessórias
características das casas nobres portuguesas do Antigo Regime, assegurando ao filho mais
velho o nome do pai e a própria charqueada – um bem indivisível –, mas sem deixar de agregar
os demais filhos ao patrimônio legado.104 Na origem de algumas destas famílias longevas
estavam charqueadores portugueses da primeira geração do colonial tardio, como José Antônio
Moreira, João Simões Lopes, Joaquim José de Assumpção, João Vinhas, Manoel Batista
Teixeira e Antônio José Gonçalves Chaves. Nestes casos, os filhos que herdaram a
administração da sua charqueada eram seus primogênitos e seus homônimos. Para tornar esta
análise ainda mais interessante, é necessário afirmar que das 13 famílias longevas apontadas, 9
estavam ligadas entre si por meio de matrimônios estabelecidos entre filhos e filhas, denotando
uma apreciável endogamia.105
A Tabela 9.5 também demonstra que a presença de grandes estâncias nos patrimônios
era diretamente proporcional não apenas ao acúmulo de fortunas, como já foi dito no capítulo 7,
como também à estabilidade da política sucessória. É provável que na maioria dos casos, para
que o sucessor da charqueada reunisse os escravos e a fábrica sem o prejuízo dos demais irmãos
e irmãs, o pai devia ter que possuir um patrimônio significativo para garantir uma sucessão
mais estável. Sendo as estâncias e os animais uns dos bens de maior valor no monte-mor dos
charqueadores, é possível perceber que a terra, além da nítida função econômica, e de fonte de
poder e status, também parecia funcionar como fator de estabilidade na condução da política
sucessória. Aliada aos imóveis urbanos e ao dinheiro, as terras (e aqui incluo os pequenos
campos e as chácaras dentro da própria Pelotas) garantiam uma sucessão mais tranquila para as
gerações seguintes.106 Tendo em vista que as charqueadas funcionavam sob uma perspectiva de
atuação familiar, pois irmãos e genros ocupados em unidades produtivas distintas tinham nela
um fator de alocação de seus rebanhos e capitais, o pai garantia uma reprodução social das
mesmas práticas envolvendo todos os herdeiros, muito embora o filho-charqueador pudesse
auferir os melhores rendimentos, além de encarnar o nome e o prestigio do pai no mercado.
Charqueadores que não possuíam tantos bens podiam passar por um processo de
transmissão de patrimônio mais dificultoso. Um exemplo disso pode ser dado na charqueada de
Inácio Rodrigues Barcellos. Com uma fortuna pequena para os padrões dos charqueadores, os
104
MONTEIRO, Nuno. Op. cit.
105
Acerca deste tema inspirei-me no tratamento dado por MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit.
106
Não quero com isto dizer que o charqueador comprasse a estância pensando neste dispositivo. Mas em alguns
casos, estas propriedades facilitavam a igualdade na distribuição da herança.
362
seus herdeiros tiveram que contornar o sistema igualitário de herança no Brasil. Neste contexto,
a família devia elaborar estratégias de sucessão dos bens que fossem aceitas entre seus
membros e não prejudicassem em demasia uns com relação aos outros. 107 Uma das formas de
realizar este projeto era o charqueador legar em sua terça testamentária uma parte dos bens para
o filho-sócio, favorecendo-o na partilha. E foi exatamente o que Inácio Barcellos fez. Contudo,
como a sua fortuna não era suficiente para encaminhar todos os herdeiros, Barcellos dividiu a
sua terça aos três filhos mais velhos que acabaram se tornando sócios na charqueada até a
década de 1880.108
107
Para maiores detalhes sobre os sistemas de herança no Brasil Império e as estratégias sucessórias para contornar
estas relações ver COSTA, Dora. Op. cit.
108
Inventário de Inácio R. Barcellos. N. 554, m. 36, 1863, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
109
Inventário de João Guerino Vinhas. N. 383, maço 26, Cartório de órfãos e provedoria, ano 1854, Pelotas,
APERS. p. 13v. Listagem de Simões Lopes Neto.
110
Inventários de José Ignácio da Cunha. N. 600, m. 38, 1865, 1º cartório de ófãos e provedoria, Pelotas (APERS),
Tomás José de Campos. N. 1004, m. 47, 1º cartório de órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS) e Boaventura R.
Barcellos. N. 409, m. 28, 1856, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
111
Lista de Qualificação de votantes de Pelotas, 1865, m. 2, Fundo Eleições (AHRS).
112
Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense – transcrição gentilmente
cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)).
363
mesmo ano, Vicente Lopes dos Santos Filho aparece como “gerente” na lista de votante e no
mesmo documento o seu pai era charqueador, revelando que esta família também apresentava
este tipo de negócios.113
Creio que na maioria dos casos o irmão-charqueador devia buscar uma maior harmonia
com os familiares, pois a mesma podia lhe facilitar nos negócios. Quando este possuía um
capital suficiente ou o apoio do restante da família (que lhe permitia as negociações com prazos
e valores privilegiados) ele podia comprar as partes herdadas pelos irmãos na charqueada e os
escravos tornando-se o único proprietário da mesma. Dora Costa utilizou o termo “irmão
concentrador” para analisar estes casos. Foi o que fizeram João S. Lopes Filho e Antônio J.
Gonçalves Chaves, por exemplo. Este seguiu administrando a charqueada do pai junto com
outros de seus irmãos.115 Firmas formadas por irmãos e cunhados não eram raras, mas a grande
maioria dos inventários post-mortem que pesquisei revela que as charqueadas possuíam
somente um proprietário, apesar de serem gerenciadas com a participação de familiares.
113
Inventário de Antônio José da Silva Maia. N. 995, m. 57, 1884, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas
(APERS). Lista de Qualificação de votantes de Pelotas (1880).
114
Inventário de Tomás José de Campos. N. 1004, m. 47, 1º cartório de órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS).
115
Livro de Transmissões e Notas. 2º Tabelionato, Pelotas, Livro 4, p. 73v. Inventários de Antônio José Gonçalves
Chaves. N. 754, m. 45, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1872, Pelotas (APERS).
364
Tal aprendizado envolvia o conhecimento das redes mercantis, tanto para comprar gado e sal,
quanto para conseguir mão de obra por um preço favorável. Portanto, o filho charqueador já
iniciava os seus negócios imerso em um mundo de privilégios inacessíveis aos não-iniciados.
Sob a supervisão do pai, ele compartilhava das redes de relações do mesmo, podendo garantir
melhores acordos com arrendatários, capatazes e trabalhadores eventuais, além de herdar
prestígio social e político – importantes nas negociações e na busca de crédito na praça, assim
como favores de diferentes tipos. Portanto, creio não ser coincidência que 7 das 9 famílias de
charqueadores mais ricas de Pelotas também estão entre as famílias que denominei longevas, ou
seja, aquelas que conseguiram manter-se nos negócios desde a década de 1830 (e muitas delas
antes disto) até os anos 1880.116
116
Entre os estancieiros estudos por Farinatti, ocorria algo semelhante: “Tanto no caso do desempenho da pecuária
quanto no que tange à ocupação de cargos militares, o fato dos filhos homens seguirem os passos do pai era
francamente facilitado pela existência de um patrimônio previamente construído pela atuação paterna. Tal
patrimônio era composto por estâncias, gado, escravos, relações comerciais, crédito e informações, no caso da
pecuária e negócios, e por cargos e relações sociais, no caso dos postos militares. (...) os filhos de grandes
estancieiros tinham facilidade no início de suas trajetórias como pecuaristas, uma vez que muitos deles recebiam
gado e escravos como adiantamento de herança, podiam criar seu primeiro rebanho nas terras de seus pais, sem
necessitar pagar qualquer forma de arrendamento e contavam com o crédito que seus pais já haviam conquistado
no mercado” (FARINATTI, Luis. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do
Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPG em História Social do IFCS-UFRJ, 2007, p. 224).
117
Inventário de José Bento de Campos. N. 1165, m. 65, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
118
Ver, por exemplo, os inventários de João Guerino Vinhas. N. 383, maço 26, Cartório de órfãos e provedoria,
ano 1854, Pelotas (APERS); Jacintho Antônio Lopes. N. 1028, m. 58, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1885,
Pelotas (APERS); Inventário de Felisbina da S. Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS).
119
Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS).
120
Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cart. de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
365
O esforço financeiro do irmão-concentrador e a intromissão de genros e parentes
diversos na administração do novo proprietário permite considerar que ser o herdeiro da
charqueada não deve ser encarado simplesmente como um privilégio. Dependendo dos casos,
ser investido como o sucessor paterno ou tornar-se o genro-proprietário também podia ser um
ônus. O primogênito investido do papel empresarial poderia ter (e muitas vezes tinha)
responsabilidades econômicas e familiares muito maiores do que a de um irmão burocrata ou
advogado, por exemplo. Além da charqueada com sua numerosa escravaria, ele devia estar
atento à economia da estância de criação de gado, as suas embarcações, seus armazéns, imóveis
urbanos, chácaras e, em alguns casos, a olaria. Além do mais, a concentração dos recursos
econômicos fazia com que o irmão-charqueador fosse o mais procurado pelos irmãos nas horas
de dificuldade financeira, tendo que ocupar o papel antes pertencente ao pai. A corrente
presença de parentes entre as dívidas ativas de um charqueador serve como exemplo disso.
Mas nem esta organização familiar e nem os altos rendimentos auferidos por uma
empresa charqueadora foram suficientes para assegurar a reprodução social de todas as
famílias. As crises que afetaram o setor, notadamente entre as décadas de 1850 e 1870,
eliminaram muitos charqueadores deste ramo de negócios. Para finalizar este capítulo farei
121
Apesar do termo “estratégia” oferecer uma racionalidade demasiada aos agentes, como alertou Edoardo Grendi,
sigo as premissas de Giovanni Levi que buscou despi-lo de significados tão rígidos, considerando-o e reafirmando-
o como um comportamento que, apesar de racional, era limitado e seletivo. Esta racionalidade limitada obedecia,
portanto, aos condicionantes estruturais e conjunturais na qual a família agia e interagia, contribuindo para romper
ou reforçar os próprios traços desta estrutura social (GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL,
Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 253; LEVI,
Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000).
366
algumas considerações tanto sobre as famílias que denominei longevas quanto aquelas que não
resistiram às mencionadas crises.
Portanto, ao longo de mais de meio século, houve uma troca de famílias no topo da elite
charqueadora pelotense. Como ensinou Lawrence Stone, as elites não devem ser vistas como
um grupo de pessoas cuja posição ocupada possuísse um caráter rígido. Elas não estavam
“congeladas” em seus postos, uma vez que ocupavam um lugar social onde a mobilidade era
algo presente e que para se manter em tal espaço privilegiado era necessário empregar diversas
estratégias que assegurassem a reprodução social de sua posição. 123 Famílias como os
Rodrigues Barcellos, que entre as décadas de 1820 e 1840, possuíam um importante prestígio
político regional e chegaram a possuir 7 charqueadas na região, ao final da monarquia detinham
somente um estabelecimento e o mesmo estava entre os mais pobres da localidade. 124 Em
contrapartida, Antônio José da Silva Maia, que entre 1830 e 1840, era um mero comerciante
local, acabou herdando a charqueada do sogro e construiu um dos mais ricos patrimônios da
década de 1870 e 1880, legando grande fortuna aos filhos. 125 Além dele, outros charqueadores
como José Inácio da Cunha e Anibal Antunes Maciel, por exemplo, não estavam envolvidos
nestes negócios antes da década de 1840, comprando, posteriormente, as suas charqueadas.
122
MENEGAT, Carla. Op. cit., p. 64.
123
STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641). Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 37-43.
124
Inventário de Boaventura T. Barcellos. N. 157, m. 5, 1º cart. de órfãos e provedoria, 1890, Pelotas (APERS).
125
Inventário de Manoel Soares da Silva, n. 318, m. 22, 1850, cart. de órfães e provedoria, Pelotas (APERS).
Inventário de Antônio José da S. Maia. N. 995, m. 57, 1884, 1º cart. de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
367
Tendo em vista que os negócios com o charque e os couros eram os mais lucrativos na
província, não é plausível considerar que o desaparecimento de algumas famílias deste ramo
dos negócios tenha ocorrido pelo fato de as mesmas encontrarem outra atividade mais rentável,
como já argumentei. Também não estavam elas invertendo seus capitais para outra área de
investimentos que oferecessem maior prestígio social, pois os charqueadores também
concentravam grande poder político e status social no final da monarquia. Tratava-se mais de
um processo de empobrecimento. Portanto, é necessário buscar os motivos que favoreceram a
ascensão de um grupo de charqueadores ao topo da elite em detrimento dos outros.
Como já foi dito, a conjuntura econômica das décadas de 1850 e 1860 não foi marcada
apenas por um grande crescimento econômico, mas, também, por grandes reveses conjunturais.
A crise de superprodução na década de 1860 fez baixar os preços do charque, sendo exigido dos
empresários que quisessem manter os lucros, aumentar a produção e buscar outros mercados
para diminuir os seus prejuízos. Mas isto não foi possível de ser realizado de forma plena. O
fim do tráfico e o aumento do preço da mão de obra cativa vedou o aumento da produção para
muitos. O fim dos tratados com o Uruguai (1851-1861) que franqueavam os rebanhos orientais
a baixos preços também trouxe dificuldades no abastecimento de gado. O seu preço aumentou
bastante nas décadas de 1870 e 1880, o que deve ter contribuído para diminuir bastante os
rendimentos da charqueada. Além disso, ao invés de ampliar os mercados consumidores, os rio-
grandenses perderam Cuba e o Rio de Janeiro para os platinos. Somado a isso, a crise mundial
de 1857 favoreceu a diminuição das exportações de couro, que só voltaram a ultrapassar a casa
do milhão de unidades no final da Guerra Civil Americana (1861-1865).
Portanto, a saída para estas crises não era simples, pois a manutenção dos lucros exigia,
entre outros fatores, a busca de novos mercados e da incorporação de mais mão de obra cativa.
Para o primeiro, a solução possível foi deslocar as exportações cada vez mais para o nordeste
do país. Entretanto, os fretes para Recife, embora fossem 50% mais caros, podiam custar o
dobro dos valores até o Rio de Janeiro o que diminuía os ganhos dos charqueadores, mas
possibilitava lucros para aqueles que estavam inseridos no comércio marítimo carregando o
charque dos demais produtores. Soma-se a isto o fato de que as plantations açucareiras de
Pernambuco e da Bahia não passavam pela sua melhor fase e os escravos da região estavam
sendo lentamente vendidos para os cafezais do sudeste do Brasil. 126 Para piorar, os
charqueadores mais ricos ainda estavam drenando as escravarias dos falidos. Portanto, somente
126
EISENBERG, Peter. Op. cit.; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil - 1850-1888. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
368
os charqueadores com maiores recursos puderam tirar melhor proveito dos momentos
favoráveis que marcaram o período, podendo repassar o prejuízo das conjunturas difíceis para
os menos ricos, além dos pecuaristas da região da campanha.
Faliu o negociante desta praça Jacintho Antônio Lopes, com fazenda de criação
de gados e charqueada nos Canudos: o seu ativo em rigor produzirá 800:000$ e o seu
passivo sobe a 1.400:000$. Diz-se que antes de lhe abrirem a falência, vendera 60
escravos e um iate, e hipotecou as fazendas por 320:000$; se é assim, preparou um
bom canudo para os credores.
Em Pelotas também convocara os credores o charqueador Heleodoro de
Azevedo e Souza, apresentando um ativo de 600:000$ e um passivo de 516:000$ que
vencia prêmio de 1%. Três ou quatro dos credores maiores decidiram o negócio,
tomando conta da estância do Ponche Verde por 258:000$, e pela qual só oferecem
144:000$, e concedendo-lhe uma moratória de um a quatro anos sem prêmios. O maior
credor é José Antônio Moreira com 130:000$. Bravo… bravíssimo (…).
O charqueador José Bento de Campos endoideceu em 29 de agosto em
consequência dos prejuízos que sofreu; e procedendo-se o balanço de sua casa, achou-
se um ativo de 90:000$ a realizar e um passivo de 160:000$!!
Barcellos & Mascarenhas também convocaram os credores apresentando um
ativo de 270:000$ e um passivo de 180:000$; a estes os credores tomaram conta dos
bens para liquidarem, visto que não soube elevar fantasticamente o seu débito, como é
moda.
Domingos Soares Barbosa teve necessidade de balancear sua casa, pela
impertinência de dois meninos, seus credores porém sairão-se logrados na tentativa e
harmonizaram-se com o devedor.
Basta de quebras (…).127
O desespero tomou conta de parte dos empresários do charque que viram suas fortunas
ruírem em poucos anos. Entre os principais credores estavam os charqueadores mais abastados,
como o citado José Antônio Moreira (Barão de Butuí) e ricos comerciantes de diferentes praças.
Como já mencionei, Moreira possuía diversas embarcações de grande porte. Nesta época, ele
devia transportar o charque de muitos dos falidos. Além de lucrar com este negócio, nas épocas
de baixa ele podia transferir os seus prejuízos para os mesmos, voltando a lhes emprestar
dinheiro nas safras seguintes, dando início ao mesmo círculo que lhe possibilitava grande
acumulação de capital. A análise das escrituras públicas revela que os charqueadores mais ricos
realizaram diversos empréstimos a outros comerciantes, fazendeiros e charqueadores desde
127
O Constitucional, Rio de Janeiro, 25.10.1862, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (grifos meus).
369
quantias pequenas, passando por médias e vultosas montas, como no caso que envolveu o Barão
de Jarau, em julho de 1883. Juntamente com seu irmão e mais dois banqueiros locais, o Barão
executou uma hipoteca contra o charqueador Pedro Lobo Vinhas, no valor de 331 contos de
réis, o suficiente para eliminá-lo (como eliminou) do ramo dos negócios.
Por falar em Mauá, o seu Banco esteve presente na cobrança de dívidas e liquidação de
outras charqueadas. Em novembro de 1862, juntamente com outros charqueadores, ele assinou
escritura de dívida com hipoteca contra José Bento de Campos, em mais de 50 contos. No
mesmo mês de 1864, foi a vez dos charqueadores Manoel Francisco Moreira (genro e herdeiro
da fábrica de João J. de Mendonça) e Vicente Lopes dos Santos assinarem escrituras de dívidas
com hipoteca (102 contos e 70 contos de réis, respectivamente). Como garantia, eles
ofereceram à Mauá & Cia as sua charqueadas com seus escravos (51 o primeiro e 31 o
segundo). Manoel Moreira nunca mais apareceu neste ramo de atividades e Lopes quitou sua
dívida em 1869, mas parece ter seguido cambaleante nos negócios até os anos 1880. No mesmo
ano, Mauá tomou para ele a dívida que o charqueador Domingos Barbosa possuía com Simão
da Porciúncula no valor de 139:000$. A maioria destes negócios era executada por João
Rodrigues Saraiva, procurador de Mauá em Pelotas, e que numa ocasião também foi procurador
de John Proudfoot, demonstrando a relação de Mauá com os ingleses. 129
Foi comum, nas cobranças executadas por Saraiva, os charqueadores mais ricos de
Pelotas aparecerem juntamente como credores, demonstrando que eles também foram os
principais algozes dos empresários endividados. Em 1863, Pedro Nunes Batista viu-se
128
Escritura de 22.09.1862, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS).
129
Escrituras de 28.11.1861, 21.11.1862 e 10.03.1864, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS);
Escritura de 28.04.1864, Livro de Notas n. 9 do 2º Tabelionato de Pelotas (APERS).
370
endividado em cerca de 100 contos com João Simões Lopes Filho (que viria a ser o Visconde
da Graça). Em 1868, quando João R. Barcellos foi arrendar sua charqueada, o escrivão anotou
que a mesma encontrava-se a hipotecada a Joaquim José de Assumpção (futuro Barão de
Jarau). Em 1862, Domingos Barbosa assinou hipoteca no valor de 394:696$ com diversos
credores, entre os quais alguns charqueadores dos mais ricos. Um ano depois, a Barcellos e
Mascarenhas teve seus bens no valor de 151:843$900 hipotecados com os mesmos. 130
Contudo seria um equívoco enxergar estas novas famílias como desenraizadas no local.
Butuí, Jarau e Graça pertenciam a terceira e quarta geração da prestigiosa família Silveira –
tratada no capítulo 3 da tese. Os dois primeiros eram filhos de comerciantes portugueses que
migraram para Pelotas casando-se um com uma neta e o outro com uma bisneta de uma das
irmãs Silveira. O terceiro era ele próprio comerciante vindo do Porto, contraindo igualmente
matrimônio com uma das mencionadas bisnetas. Muito embora pertencessem a uma família de
notáveis comerciantes e fazendeiros que compunham a elite rio-grandense no último quarto do
setecentos, de acordo com os relatos de contemporâneos e a documentação pesquisada, os pais
de Jarau e Graça não estavam entre os principais charqueadores da localidade nas primeiras
décadas do século XIX. Portanto, a presença dos seus herdeiros entre a principal elite
charqueadora entre os anos 1860 e 1880 tratava-se de uma importante mobilidade social intra-
elite – no que diz respeito a este grupo de empresários.
Um fator de sorte para o principiante é iniciar em bom tempo econômico. Mas isso
não garante o sucesso. A conjuntura mercantil é instável. Quando vira para bom
tempo, geralmente entram em campo pequenos empresários ingênuos. A maré, o vento
são favoráveis: ei-los confiantes, um pouco fanfarrões. O mau tempo que vem a seguir
os surpreende, engole-os sem piedade. Só os mais hábeis ou os mais afortunados ou
aqueles que tinham reservas no início escapam a tal massacre de inocentes. […] O
grande mercador é aquele que, justamente, atravessa sem acidentes a má conjuntura.
Se o consegue, é claro, porque tem trunfos na mão e sabe servir-se deles; ou, se tudo
corre mal, é porque tem meios de se eclipsar, de se pôr a salvo como convém.131
Para finalizar este capítulo, gostaria de fazer mais uma consideração. É muito difícil
identificar alguns traços da personalidade empresarial destes indivíduos e mais difícil ainda
detectar a transmissão desta herança imaterial aos seus filhos. Mas tenho para mim, como
hipótese, que boa parte dos mais ricos charqueadores do final do oitocentos tiveram no
comportamento dos seus próprios pais charqueadores um modelo de atuação nos mundo dos
negócios. O Visconde da Graça e o Barão do Jarau, por exemplo, que souberam ler a conjuntura
desfavorável dos anos 1870 antes de todos e inverteram seus capitais para outras áreas,
pareciam ter na própria casa dois mestres na iniciativa empresarial local. Seus pais também
atuavam no comércio marítimo e o pai do primeiro, nos anos 1850, possuía ações no Banco do
Brasil (numa época em que quase nenhum charqueador investia nisto). Além disso, o pai de
Jarau, como foi afirmado no capítulo 5, não apenas foi o primeiro a apresentar escravos
aprendizes em seu plantel, como também um número muito grande dos mesmos. 132 O
inventário do pai de Graça apresentou dois vestígios interessantes. Ele foi o charqueador que
teve a criança escrava mais jovem com uma profissão definida (o menino Clemente, de 8 anos,
campeiro) e um dos dois únicos empresários que teve mulheres escravas trabalhando no interior
131
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 338 (grifos meus).
132
Inventário de Maria A. da Fontoura, n. 514, m. 22, 1845, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS).
372
das charqueadas. 133 Ter crianças trabalhando nas fábricas de carnes, mas principalmente
mulheres, constituía-se num traço de comportamento empresarial que parecia colocar os seus
proprietários em semelhança com os industriais capitalistas ingleses. 134
Outros dois exemplos podem ser dados pelos irmãos Gonçalves Chaves e o proprietário
Junius Brutus de Almeida (que infelizmente não teve seus bens inventariados no período, mas
que com certeza devia estar entre os mais ricos).135 Já escrevi a respeito do pai dos primeiros, o
charqueador Antônio José Gonçalves Chaves, citado por Saint Hilaire por ser um homem
ilustrado e empreendedor em seu tempo. Juntamente com o pai de Domingos José de Almeida
(o responsável pela primeira graxeira a vapor em Pelotas) eles realizaram diversos projetos,
sendo que um deles constituiu-se na fabricação da primeira barca a vapor da província,
construída com peças importadas do Estados Unidos, onde o filho de Chaves residia (como foi
tratado no capítulo 2). Um dos filhos de Chaves também apresentou muitas ações no Banco do
Brasil na década de 1850 e o outro, que também era doutor, estava entre os 12 mais ricos
charqueadores da segunda metade do século. Além disso, Domingos foi o outro charqueador
que colocou mulheres cativas no trabalho das fábricas.
Penso que estes traços são muito mais do que coincidências. Parte destas famílias
charqueadoras possuíam uma visão de mundo e um modo de se comportar social e
economicamente distinto das demais famílias que não estavam entre as mais ricas. Até mesmo a
sua política sucessória que investia no esforço de colocar o filho primogênito como um novo
charqueador na geração seguinte era distinta e teve maior sucesso. Atuando no interior de
mercados bastante instáveis, concentrando o conhecimento dos segredos do mundo dos
negócios e favorecendo a transmissão das redes de relações de pais para filhos eles atingiram
um sucesso inalcançável aos demais concorrentes. Neste sentido, estas principais famílias não
podem ser comparadas com as demais. Elas apresentavam-se de maneira muito mais distinta do
que a dos outros charqueadores, ultrapassando o simples espaço de atuação das elites locais,
vindo a ocupar o topo da hierarquia social regional. No capítulo a seguir demonstrarei que esta
concentração de recursos materiais e imateriais também envolvia outros espaços da vida social
colocando estas poucas famílias entre as mais destacadas da elite regional e com condições de
mediar de maneira notável as relações entre a província e a Corte, colocando-as numa posição
de buscar influir direta e indiretamente (com outras elites regionais) nos rumos do Império.
133
Inventários de João Simões Lopes, n. 366, m.26, 1853, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
134
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p 100-101.
135
Almeida também atuava no comércio marítimo. Como foi visto no capítulo 8, nos anos 1880 ele investiu cerca
de 400 contos de réis na reforma de sua charqueada.
373
10. “A ARISTOCRACIA DO SEBO”: PODER POLÍTICO, NOBREZA,
EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA NAS FAMÍLIAS DA ELITE
CHARQUEADORA PELOTENSE
A reflexão do Conde D’Eu era certeira. Conhecedor da aristocracia europeia, ele sabia
que o termo não era muito adequado ao Brasil do final da monarquia. No entanto, o estilo de
vida das famílias pelotenses que ele conheceu, a sua riqueza se comparada ao restante da
população da cidade, o poder político que aquela minoria exercia sobre a mesma e o status
social de que gozavam, lembravam, em alguns aspectos, as famílias da elite do velho mundo. E
aqui está um traço marcante entre as elites da época. Elas possuíam a capacidade de
reconhecerem suas equivalentes em outras sociedades, compreenderem os signos de distinção e
as hierarquias de poder que as cercavam. Neste sentido, o Conde D’Eu, um membro da família
real imperial e genro do monarca, era capaz de reconhecer as aristocracias da terra de acordo
com parâmetros europeus e brasileiros. E em Pelotas, quem era ela? A aristocracia do sebo foi
um apelido pejorativo colocado pelos comerciantes rio-grandinos que rivalizavam com os
charqueadores em nivel regional e que entraram em conflito direto com os mesmos nos anos
1870 por conta da instalação da Alfândega em Pelotas.1
1
MAGALHÃES, Mário Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo
sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: UFPel, 1993, p. 124; 162. Outro motivo era a disputa sobre qual
deveria ser o ponto de partida para a estrada de ferro até Bagé.
374
a magnificência da casa” e “a aristocracia da terra era representada por muitos dos seus mais
respeitáveis ornamentos, e era sem conta a porção de cavalheiros que atopetava todos os
espaços do edifício”. 2 Num outro grande baile, em 1885, os jornais diziam que o mesmo havia
sido frequentado “desde a alta nobreza até o simples burguês”. 3 No início do século XX, o
advogado Fernando Osório, genro de charqueadores, definiu a filha de um rico charqueador
como “uma das mais notáveis figuras da sociedade aristocrática pelotense”.4 Os periódicos
costumavam os tratar como a “primeira sociedade” e “as nossas famílias”. Tais distinções
possuíam resultados práticos notáveis. As associações de bailes da cidade, por exemplo,
dividiam-se em três: a aristocrática, a comercial e a plebéia, sendo que rígidos estatutos
mantinham o caráter elitista da primeira. 5
O leitor mais atento já deve desconfiar que as famílias mais ricas tratadas até aqui
constituíam-se na elite que concentrava poder político, status social e riqueza. Além do mais, os
títulos de nobreza e os casamentos entre seus filhos e filhas davam um toque a mais para este
grupo de elite. Portanto, esta suposta “pretensão aristocrática” – termo que Sheila Faria utilizou
para tratar do estilo de vida dos Barões do café no sudeste – dizia respeito a elas e outros grupos
da elite local. 6 Estudar os espaços de lazer e as práticas socioculturais desta elite é muito mais
do que realizar um simples inventário dos seus espaços de sociabilidade e dos seus membros
que mais se destacaram naquela conjuntura de prosperidade. 7 A educação superior, o estilo de
vida luxuoso e a imitação de hábitos europeus, nas letras, nas artes e nas maneiras de
sociabilizar conferiam grande prestígio social às famílias do topo da hierarquia. Tais
investimentos possibilitavam melhores casamentos para os filhos e filhas, melhor acesso em
outros espaços de poder e oferecia todas as condições para que os membros mais preparados da
família se tornassem mediadores políticos, ou seja, a atuação coletiva reproduzia a própria
desigualdade de recursos que as colocavam numa posição social superior. Portanto, tratava-se
de um comportamento social igualmente capaz de elevar algumas famílias à condição de elite
regional, ultrapassando o espaço de atuação dos meros “caciquinhos locais”.
2
Diário do Rio Grande, 03.04.1851 apud MÜLLER, Dalila. “Feliz a população que tantas diversões e
comodidades goza”: espaços de sociabilidade em Pelotas (1840-1870). Tese de Doutorado em História, Unisinos,
2010, p. 66.
3
A Discussão, 03.02.1885 apud MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143.
4
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas. Pelotas: Armazém Literário, v. 2, 1997, p. 123.
5
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 69; 72; MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143.
6
FARIA, Sheila de C. Barões do café. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário de Brasil Império. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 78-79. Ver também SCHNOOR, Eduardo. Das casas de morada às casas de vivenda. In:
MATTOS, H.; SCHNOOR, E. (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p.
31-62.
7
Conforme Dalila Müller, “as elites pelotenses distinguiram-se do conjunto da população, não só pela sua riqueza
e atividade econômica, mas pelo seu comportamento social, pelo seu modo de vida específico e reconhecível”
(MÜLLER, Dalila. Op. cit., p .21).
375
10.1 EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA ENTRE AS FAMÍLIAS CHARQUEADORAS DE
PELOTAS
8
Processo-crime n. 2.729, m. 78, Autos de apreensão de contrabando, Cartório do Cível e Crime, Alegrete, 1852
(APERS). Agradeço a Marcelo Matheus pela indicação deste documento.
9
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit.
10
FARIA, Sheila de Castro. Sobrado. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário de Brasil Império. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 678.
376
Neste sentido, tratava-se de um longo processo que marcou todo o oitocentos e que, no
nordeste, Evaldo Cabral de Mello denominou-o como “o fim das casas-grandes”. 11 A referência
clara a Gilberto Freyre tem em vista o que este próprio autor buscou delinear em seu clássico
Sobrados e Mucambos, qual seja, a da decadência do patriarcalismo rural frente ao processo de
modernização e urbanidade que marcou a história brasileira ao longo do oitocentos mas que só
veio a se concretizar no século XX e que tinha nos sobrados urbanos um de seus símbolos. 12
Paralelo a este processo e acompanhando uma tendência que iria marcar a vida de algumas
elites proprietárias brasileiras no século XIX, os charqueadores pelotenses cada vez mais
deslocaram a sua vida do meio rural (nas charqueadas) para os seus sobrados no centro da
cidade. 13 Neste contexto, as famílias mais ricas de Pelotas começaram a compartilhar de um
estilo de vida que as distinguia bastante das demais classes sociais da urbe e que se assemelhava
com a dos grandes fazendeiros de café e senhores de engenho, por exemplo.
11
MELLO, Evaldo Cabral de. O fim das Casas-grandes. In: ALENCASTRO, Luís Felipe de. História da Vida
privada no Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, v. II, 1997.
12
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
13
Conforme Magalhães, os charqueadores foram aos poucos deslocando residência para a cidade, “construindo
sobrados de arquiteutra europeia” (MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 95-96).
14
SCHNOOR, Eduardo. Op. cit., p. 38-39.
15
O mesmo pode se dizer da elite paulistana estudada por ARAÚJO, Maria L. Viveiros. Os interiores domésticos
após a expansão da economia exportadora paulista. Anais do Museu Paulista, n. 12, jan./dez. 2004, p. 129-160.
377
aparelho de porcelana para chá, entre outros. O barão de Corrientes também apresentou os
mesmos móveis em mogno, tampos de mármore, piano, além de outros móveis. 16
Com relação aos pianos, que já faziam parte da casa das famílias de elite na primeira
metade do século, é importante considerar que os mesmos se disseminaram de uma forma
notável pela população pelotense, sendo encontrado inclusive em patrimônios de famílias de
fortuna mediana. Os anúncios de jornal dão uma ideia deste fenômeno. Era corrente as casas
comerciais anunciarem a chegada de novas músicas em partituras, os anúncios de professores
de piano oferecendo os seus serviços, além do conserto, afinação, aluguel e venda dos mesmos
intrumentos. Em leilões, a presença dos pianos também não era rara. Em julho de 1877, por
exemplo, o filho do charqueador Manuel Rodrigues Valladares anunciava a sua mudança em
definitivo para a Corte, leiloando seu piano e estantes para livros.17 Pela quantidade, os
anúncios de novos títulos recebidos pelas livrarias rivalizavam juntamente com os relacionados
aos pianos.18 Apesar dos inventários post-mortem muitas vezes não arrolarem a biblioteca dos
seus proprietários, eles podiam indicar as estantes para livros, mas no geral não o faziam. 19
Se o gosto pela leitura talvez não ocupasse grande parte da vida da maioria dos
charqueadores, certamente o era pelos seus filhos, esposas e genros doutores que frequentavam
16
Inventário do Barão de Butuí, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS);
Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS); Inventário de
Silvana Belchior da Cunha, n. 870, m. 50, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1877 (APERS).
17
Jornal do Comércio de Pelotas (1, 10, 11 e 12 de janeiro de 1875; 1 e 26 de julho de 1877; 5 de setembro de
1879 (Biblioteca Pública Pelotense). Havia famílias de charqueadores que possuíam dois pianos, como os Vianna e
os Antunes Maciel (Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível,
Pelotas, 1865 (APERS).
18
Jornal do Comércio de Pelotas, 26 de julho de 1877 (BPP).
19
SACCOL, Tassiana Parcianello. Um propagandista da República: Política, letras e família na trajetória de
Joaquim Francisco de Assis Brasil (década de 1880). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2013. Entre
os charqueadores, como se verá a seguir, o rol de livros foi mais comum nas primeiras décadas do século.
378
seus casarões. Conforme Magalhães, se os charqueadores possuíam uma série de atividades
relativas aos seus negócios e que os mantinham ocupados, seus filhos “puderam se dedicar
largamente aos estudos, às letras, às ciências e às artes (…) e, dentro das letras, à recitação de
discursos e à metrificação de versos, compostos, sobretudo e respectivamente, para exaltar as
virtudes da cultura clássica e cortejar damas um tanto reservadas e muito requintadas”.20 Não
possuo dados referentes aos formados em Medicina e Engenharia, mas na província, Pelotas
despontava como um dos grandes focos de famílias que enviavam seus filhos para estudar
Direito em São Paulo, ficando atrás somente de Porto Alegre. 21 Dos 22 pelotenses formados
entre 1832 e 1889, 18 eram filhos ou netos de charqueadores. Sem contar os bacharéis
formados em Recife e os médicos formados na Corte e em Salvador, também houve pelo menos
um advogado formado em Montevidéu e outros diplomados que estudaram em Paris. Por
intermédio de filhos educados fora da província, as elites pelotenses, com destaque para os
charqueadores, inseriam-se no interior de importantes redes de relações sociais e políticas.
A vida acadêmica era prescedida dos estudos com os melhores professores particulares
da cidade. Enquanto alguns filhos eram direcionados para a profissão das leis ou da medicina,
outros acompanhavam o pai na administração das charqueadas. A diversão dos rapazes
consistia nos banhos de rio no Santa Bárbara, nas aulas de ginástica, esgrima e dança no
colégio, nas regatas no São Gonçalo, nos exercícios de equitação no Jockey Club, além de
atividades teatrais com outros rapazes e moças no interior dos sobrados. As meninas, por sua
vez, “quando saíam, era geralmente em direção aos saraus familiares, ao teatro e às igrejas”.
Em casa, dedicavam-se aos “trabalhos de agulha, bordado e culinária, com os jogos de víspora,
com aulas de pintura e música”, além da “leitura de algum romance amoroso”. 22 A vida das
esposas dos charqueadores não devia ser muito diferente. Além de cuidar dos filhos, governar a
casa e ocupar-se com alguns assuntos relativos à comunidade local, seus divertimentos
envolviam a leitura e os lazeres ao lado da família.23
20
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 122.
21
Reunindo 113 bacharéis em direito rio-grandenses formados na Faculdade de São Paulo, Vargas constatou que
26 eram de Porto Alegre e 22 de Pelotas (VARGAS, Jonas. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as
estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: UFSM/Anpuh-RS, 2010).
22
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 148.
23
Um dos recibos anexos ao processo de liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos demonstra que a dona
Rosaura, uma das proprietárias da charqueada, havia comprado Os Miseráveis de Vitor Hugo. Além disso, no
escritório de sua charqueada havia uma estante com livros diversos.
379
sociabilidade destas elites. Como demonstrou Magalhães, algumas vezes estes eventos eram
comentados na imprensa local. Em fevereiro de 1875, por exemplo, o charqueador Junius
Brutus de Almeida abriu sua casa aos amigos para um baile de carnaval “que imensamente
animado e concorrido prolongou-se até a madrugada” com a presença de clubes carnavalescos e
bandas de música. Para estas ocasiões, uma casa comercial francesa anunciava a chegada de
“500 cabeleiras à Luís XV recebidas de Paris no último vapor”. Em junho do mesmo ano, foi a
vez do charqueador Pedro Lobo Vinhas oferecer um grande baile em sua casa como
“complemento à festa de São Pedro da Beneficiência Portuguesa”. Geralmente os jornalistas
buscavam agradar os charqueadores elogiando a sua família e a boa recepção dos mesmos.
Sobre uma festa na casa do comendador Antônio Mâncio Ribeiro, sogro do charqueador
Domingos Guilherme da Costa, podia-se ler o seguinte: “sendo saudado com uma serenata na
Praça por três bandas de música e mais de mil pessoas, retribuiu a gentileza convidando alguns
dos participantes para a sua casa”. Ali podia-se ver “uma esplêndida mesa, onde a riqueza” e “o
luxo deslumbravam” e na sala principal, reuniam-se algumas das “senhoras de nossa primeira
sociedade”. 24
Mas as festas e bailes não se reservavam aos encontros particulares nas casas dos seus
proprietários. De acordo com Dalila Müller, entre os anos 1850 e 1860, Pelotas possuía muitas
sociedades recreativas e culturais, sendo 8 delas de dança. Estas sociedades eram classificadas
pela própria imprensa como “aristocráticas”, “comerciais” e “plebéias”, sendo a primeira,
24
Correio mercantil 8 de junho de 1875 apud MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143-144.
25
Jornal do Comércio de Pelotas, 12 de dezembro de 1877 e 1 de julho de 1879 (BPP).
26
Como foi visto no capítulo 5, 27 dos 142 escravos do Barão de Butuí residiam na cidade, alguns junto ao
sobrado do senhor ou em outras casas do mesmo, sendo que, entre os mesmos, havia 2 copeiros, 2 cozinheiros, 1
boleeiro, 3 costureiras, 2 engomadeiras, 1 lavadeiro e 2 serventes.
27
SCHNOOR, Eduardo. Op. cit.
380
obviamente, reservada às famílias da elite local. As sociedades possuíam estatutos redigidos
pelos seus diretores e os bailes tinham seu protocolo previamente planejado, com rigorosa
etiqueta, horários do chá, do café e das danças, tempo dos intervalos, entre outros aspectos.28
Estas ocasiões eram propícias para o experimento de novidades culinárias, como o sorvete,
chegado de Paris nos anos 1860, mas que só se difundiria pelo Brasil na década de 1890. As
famílias frequentadoras acompanhavam a cobertura dos bailes nos jornais, onde se podia ler
comentários sobre os vestidos das mulheres, a decoração, o serviço de copa e os
homenageados.29 Neste sentido, elas seguiam o modelo das sociedades de baile da Corte que se
disseminaram pelo Brasil no meado do século XIX, o que devia agradar os visitantes ilustres.30
Em fevereiro de 1885, por exemplo, o prédio da Câmara Municipal foi local de um dos bailes
mais importantes que a cidade havia presenciado, com a presença da Princesa Isabel e do Conde
d’Eu, que haviam permanecido em Pelotas por 3 semanas. Na ocasião, enquanto o charqueador
Heleodoro de A. E Souza Filho dançou uma quadrilha com a Princesa, a filha do charqueador
Anibal Antunes Maciel foi o par do Conde. 31 Em outras festividades, os charqueadores podiam
interagir com autoridades estrangeiras como no baile de julho de 1877, quando os oficiais da
canhoneira inglesa Beacon foram homenageados.32
Pelotas também possuía outras opções de lazer e a análise dos jornais demonstram que
os charqueadores e os seus familiares estavam diretamente ligados ao gerenciamento de clubes,
associações e companhias diversas. Os domingos no Jockey Club eram um ponto de encontro
certo e as corridas eram “concorridíssimas”. 33 Alguns de seus diretores e secretários eram
charqueadores, como Joaquim Rodrigues da Silva, Joaquim José de Assumpção, Antônio de
Azevedo Machado Filho e João Maria Chaves, por exemplo. 34 Além do Cassino, frequentado
pelas elites locais, outra diversão inaugurada nos anos 1870 foi o “Rink” de patinação. Em
agosto de 1879, os jornais já anunciavam a chegada de “mais patins americanos em grandes
quantidades”.35 Conforme Müller, os banquetes nos hóteis e os encontros nos clubes para a
28
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 66; 69-73; 99. Além dos rígidos estatutos, o “público indesejado” podia ser vetado
pela diretoria, que exigia pessoas de boa conduta pública. Conforme Müller, aqueles que não podiam entrar nos
bailes ficavam nas janelas espiando e alguns manifestavam-se com obscenidades. A Sociedade Harmonia
Pelotense colocou cortinas nas janelas para evitar a aglomeração de pessoas ao redor do salão. Nos teatros, hotéis,
praças e ruas, a circulação dos “não iguais” era mais livre (MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 92-94).
29
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 100-102.
30
PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. São Paulo: Livraria Martins, 1959.
31
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 147.
32
Jornal do Comércio de Pelotas, 1 de julho de 1877 (BPP).
33
Jornal do Comércio de Pelotas, 1 de julho de 1879 (BPP).
34
Jornal do Comércio de Pelotas, 3, 5 e 12 de julho de 1877 ; 1 de julho de 1879 (BPP).
35
Jornal do Comércio de Pelotas, 14 de agosto de 1879 (BPP); MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 157.
381
prática de jogos lícitos também eram propagandeados nos jornais da cidade. 36 Portanto, quando
não estavam ocupados com seus muitos negócios, os charqueadores acompanhavam sua família
ao teatro e aos bailes, frequentavam os clubes com os amigos, as corridas no Jockey e os
leilões. Em casa não faltavam jornais para os mesmos ocuparem-se da conjuntura política e
econômica e de curiosidades. 37 Alguns ainda tinham na caça um hobby eventual e nas suas
chácaras um retiro da vida da cidade e da charqueada.38
Como os artistas não possuíam uma segurança mais profissional para exercerem as suas
atividades, geralmente as elites pelotenses, entre as quais estavam muitos charqueadores,
acolhiam seus projetos e realizações.39 Neste sentido, ao mesmo tempo em que recebiam
pintores, poetas, escultores, professores e músicos em suas casas e sob a sua proteção, os
charqueadores ofereciam um espaço de convivência para que seus filhos e filhas se sentissem
atraídos pelos mesmos caminhos da arte. Conforme Cândida Rocha, os concertistas eram
recebidos nas casas dos ricos e muitas vezes ensinavam suas filhas a tocarem piano, harpa e a
cantar.40 Não demorou muito e do seio destas mesmas famílias surgiram importantes artistas
com renome regional e até internacional. Alice Ramos, que descendia das famílias Silveira
Martins e Antunes Maciel, apresentou-se várias vezes no Teatro 7 de Abril e tinha em Chopin,
Mozart e Schumann seus compositores favoritos. Maria Francisca da Costa Silva, neta do
coronel Anibal Antunes Maciel, também teve destaque neste meio artístico. Acostumada ao
protagonismo nos saraus e salões da pequena Pelotas, também apresentou-se na Corte, onde
cantou para o Imperador acompanhada do maestro Carlos Gomes. Maria Francisca foi uma das
senhoras da elite rio-grandense que esteve no último Baile da Ilha Fiscal, em 1889. Contudo,
Zola Amaro foi a mais famosa de todas. Neta do Visconde da Graça, tornou-se uma grande
cantora de ópera, tendo se apresentado nas principais cidades da América e da Europa ao lado
de grandes tenores e sob a regência dos principais maestros da época. A inserção dos familiares
dos charqueadores neste espaço artístico e cultural permaneceu forte nas primeiras décadas do
século XX. Em 1918, por exemplo, estavam entre os líderes da fundação e presidência do 1º
36
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 25-26.
37
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 249. Conforme o autor, a partir de 1860, “sete jornais devem ser
destacados pela influência que tiveram e pela extensão de tempo em que circularam”: Diário de Pelotas (1868-
1889), Jornal do Comércio (1870-1882), Correio Mercantil (1875-1915), Onze de Junho (1877-1889), O Cabrion
(1879-1889), A Discussão (1881-1888), A Pátria (1886-1891).
38
O Cel. Anibal Maciel possuía um piano na cidade e outro na sua chácara, indicando que esta última também
devia ser um espaço importante de lazer. O mesmo possuía entre seus bens uma arma de caça (Inventário de
Anibal A. Maciel, n. 815, m. 48, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1875 (APERS). Em 27 de julho de 1875,
o Jornal do Comércio encontra-se um leilão de uma espingarda de caça com máquina para fazer cartuchos e na
edição de 1 de julho de 1879 uma loja anunciava vender diferentes armas e pistolas modernas (BPP).
39
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit.
40
ROCHA, Candida Madruga da. Um século de música erudita em Pelotas (alguns aspectos: 1827-1927).
Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 1979.
382
Conservatório de Música de Pelotas, os senhores Dr. Francisco Simões Lopes, Francisco
Gomes da Costa, Alfredo da Silva Tavares e Francisco Moreira, revelando que estes
sobrenomes eram quase que onipresentes em todos os espaços sociais da cidade. 41
41
ROCHA, Candida. Op. cit., p. 95-99; 123-134. Nos anos 1880, Epaminondas de Almeida, filho do charqueador
Domingos J. de Almeida, foi Presidente da Filarmônica Pelotense (Jornal de Comércio, 05.07.1880 (BPP)).
42
LONER, Beatriz; GILL, Lorena; MAGALHÃES, Mário O. Dicionário de História de Pelotas. Pelotas: UFPel,
2010, p. 244. Apenas para lembrar, Vianna foi sócio de Domingos e de Chaves na Barca a Vapor chamada
“Liberal”. Importante observar que além do navio, o nome do próprio teatro (a data da Abdicação de Pedro I)
apresentava o posicionamento liberal deste trio de charqueadores. Neste aspecto, como se verá a seguir, eles se
constituíam numa minoria na cidade.
43
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 154. Na mesma época, Arsene Isabelle deixou registrado: “São
Francisco de Paula é uma encantadora cidadezinha que não conta mais de uns dez anos de existência, e que,
entretanto, já rivaliza com Porto Alegre pela atividade de seus habitantes, a importância de suas transações
comerciais e o grande número de edifícios que se constroem diariamente (…). Há um teatro muito bonito,
realmente elegante e cômodo. Existia apenas uma tipografia, no ano passado, mas circulam vários jornais políticos.
A população já se elevava de sete a oito mil habitantes” (ISABELLE, Arsene. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio
Grande do Sul. Brasília: Senado, 2006, p. 259).
44
Jornal do Comércio, 3 de janeiro de 1875 (BPP).
45
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit.; Inventário do Barão de Butuí, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e
provedoria, Pelotas (APERS); Inventário de Silvana Belchior da Cunha, n. 870, m. 50, 1º Cartório de órfãos e
provedoria, Pelotas, 1877 (APERS).
383
Neste mesmo sentido, este grupo de charqueadores não demorou a contratar pintores
europeus para retratarem a si mesmo e a seus familiares. 46 Conforme Magalhães, foi comum os
membros da elite pelotense solicitarem os serviços destes artistas e alguns deles tiveram certo
renome na localidade. Mariza Souza e Neiva Bohns analisaram como o prestigiado pintor
Frederico Trebbi retratou os familiares dos charqueadores Barão de Butuí e Barão do Jarau, por
exemplo. 47 Conforme Magalhães, as pinturas e retratos à óleo haviam virado moda e era
conveniente que os cidadãos mais respeitáveis se fizessem retratar não apenas a si mesmos
como também a seus ancestrais e parentes próximos. 48 Em janeiro de 1875, um anúncio de
jornal estimulava a prática: “O retrato é hoje uma necessidade por todos reconhecida. O filho
não pode negar-se a fazer retratar os seus pais, porque nada pode trazer-lhe a memória uma
recordação mais agradável do que a imagem daqueles a quem deve amor e gratidão”. 49
Neste sentido, não foi incomum encontrar quadros entre os bens inventariados dos
charqueadores de maior fortuna. O coronel Anibal Maciel e sua esposa possuíam entre seus
bens “vários quadros com retratos” e outros três “representando navios”. O Barão de
Corrientes, além dos móveis de mogno e seu piano, possuía 11 quadros decorando o interior do
seu sobrado na cidade. Acolhendo estes artistas, os charqueadores também proporcionavam um
espaço de aprendizagem para suas filhas e netas. Nas exposições de arte locais era possível
apreciar o talento das moças e as técnicas que as mesmas haviam aprendido com seus
professores europeus. Entre as pintoras que expunham seus trabalhos é possível verificar que
pertenciam às famílias dos principais charqueadores da cidade, dos seus parentes e de outros
membros da elite local, como as alunas Maria Francisca da Costa, Ambrosina Campello,
Belarmina Sá de Araújo, Leocádia Tavares, Maria Marques de Souza e Alice Cunha, por
exemplo. 50 Além disso, alguns destes ricos charqueadores também contrataram arquitetos
italianos para projetarem os seus casarões na cidade, como Felisberto Braga, Francisco e
Leopoldo Antunes Maciel. 51
No campo das letras, a presença das principais famílias charqueadoras não foi diferente.
Pelotas possuía algumas livrarias, além de clubes de leitura e saraus que animavam a população
e incentivavam a existência de um pequeno círculo de escritores e poetas. Isto também foi
46
Conforme Magalhães, os charqueadores possuíam agentes comerciais em diferentes locais e pediam para eles
remeterem artigos de luxo pelos navios que descarregavam charque (MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 137).
47
SOUZA, Mariza; BOHNS, Neiva. Pinturas de retratos de Frederico Trebbi: um patrimônio cultural em risco. In:
Seminário de História da Arte – Centro de Artes. Pelotas: UFPel, v. 1, n. 1, 2011.
48
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 207-209.
49
Jornal do Comércio, 14 de janeiro de 1875 (BPP).
50
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 192; 209-213.
51
ANJOS, Marcos H. dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX.
Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 1996, p. 75-76.
384
patrocinado pelos charqueadores. O Visconde da Graça, por exemplo, “doou o primeiro prédio
para que se instalasse, em 1875, a Biblioteca Pública Pelotense”. Filhos e parentes de
chaqueadores além de outras pessoas pertencentes a elite local seguidamente doavam livros a
mesma.52 Fidel Echenique, um dos livreiros mais conhecidos da cidade, era genro do
charqueador Barão de Corrientes. Estes empresários tendiam a abrir as portas de sua casa aos
literatos e poetas locais, muitos deles amigos de seus filhos e filhas. Lobo da Costa, um dos
principais poetas da cidade, frequentava o sobrado do abastado charqueador João Mendes de
Arruda, onde mantinha estreita amizade com seus filhos.53 Os dois grandes escritores pelotenses
da época, Alberto Coelho da Cunha e João Simões Lopes Neto, formados neste pequeno círculo
literário, eram, respectivamente, filho e neto de ricos charqueadores.
Há pelo menos dois indícios de que uma parte dos charqueadores buscou investir na
elevação educacional da sociedade pelotense, mesmo que de forma distinta. Nos anos 1840,
João F. Vieira Braga remeteu ao Império uma proposta de abertura de um colégio interno para
300 alunos (meninos e meninas) com apoio local e sob o investimento de capitais, no qual ele
calculava uma receita de 60:000$ anuais. Portanto, seria uma escola particular. Segundo Vieira
Braga, “são de transcendente utilidade para muitos pais de família, que aspiram a dar a seus
filhos uma educação ilustrada e completa (…) que importa boa parte da civilização que o país
tanto necessita”. O projeto parece não ter vingado.54 Uma proposta mais inclusiva foi liderada
por Domingos José de Almeida em 1862, na qual ele escreveu para diversos deputados
provinciais e solicitou o apoio de outros charqueadores (eram 11 cópias da requisição).
Domingos propunha a abertura de uma escola para meninas no 2º distrito do municipio. Uma
cláusula interessante do seu requerimento dizia: “a criação de uma cadeira de primeiras letras
(…) obrigando-se os signatários a preencherem a aula com o número de meninas pobres na lei
marcado para funcionar caso a ela não concorram as jovens que abundam na freguesia”,
sobretudo “na serra dos Tapes próximas à pequena povoação de Boa Vista onde convém
instalar escolas de ambos os sexos para fomentarem o progresso dela”. 55 É provável que
membros da elite local com comportamento semelhante ao de Domingos fossem muito mais
exceção do que regra. Contudo, estas propostas de criação de escolas em Pelotas parecem ter
dado algum fruto. Comparando o número de habitantes alfabetizados na província, Tassiana
52
Os jornais às vezes divulgavam os títulos dos livros doados, sendo que alguns eram escritos em língua inglesa.
Em 1879, o presidente da Biblioteca era Saturnino Arruda, filho do charqueador João Mendes de Arruda. Em
agosto de 1879, um gabinete de leitura da cidade anunciava que os livros dos sócios podiam ficar com os mesmos
por 15 dias (Jornal do Comércio de Pelotas, 9 e 14 de agosto e 5 de setembro de 1879 (BPP)).
53
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p.132; 277.
54
João Francisco Vieira Braga, Documentos Biográficos, Coleção Manuscritos (Biblioteca Nacional do RJ).
55
Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para José Bento de Campos, 11.07.1862, CV-785, v. 3.
385
Saccol percebeu que Pelotas era o município que possuía o maior índice, ultrapassando os 33%
entre a população livre (a média total da província era 24%).56 Neste sentido, a sua maior
população urbana se comparada ao interior deve ter favorecido a inclusão de mais pessoas nas
escolas. 57
Ainda é importante argumentar que este gosto pela novidade e pela cultura europeia
também foi motivado pela migração de estrangeiros que marcou a segunda metade do
oitocentos e que tratei de forma mais aprofundada no capítulo 4. Segundo Marcos dos Anjos, a
56
SACCOL, Tassiana. Op. cit., p. 38-39.
57
Em 1883, também foi instalada a Imperial Escola de Medicina Veterinária com forte incentivo da família
Antunes Maciel – episófio que tratarei adiante.
58
Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para José Bento de Campos, 11.07.1862. CV-785, v. 3.
59
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 201-203.
60
TOMASCHEWSKI, Cláudia. Caridade e filantropia na distribuição da assistência: a Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia de Pelotas – RS (1847-1922). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2007.
61
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 201-203.
62
TOMASCHEWSKI, Cláudia. Op. cit., p. 104
386
alta presença de estrangeiros em todos os setores da população pelotense, na área educacional,
nos meios artísticos e profissionais diversos, influenciou a transformação dos valores vigentes e
as próprias concepções de vida da elite local. 63 Esta interação social ajudou a favorecer a
pretensa europeização dos costumes entre as elites pelotenses. Conforme César e Cerqueira,
para alguns setores da elite local esta europeização nada mais era do que uma forma de superar
o estereótipo rural, de rusticidade e escravismo que poderiam ser expostos diante do olhar
estrangeiro.64 De acordo com Magalhães, a civilidade e urbanidade também contribuiram para
que a elite local de Pelotas respirasse um culto exagerado às letras. E a este mesmo culto “pode-
se creditar uma das fortes manifestações do bairrismo pelotense”. 65 Eles se viam diferentes dos
demais habitantes do interior da província criando uma tradição de superioridade de suas elites
em comparação com a de outros municípios. Tal comportamento provocou reações adversas
como a do viajante W. Haernisch que declarou o seguinte sobre Pelotas e sua elite: “a
aristocracia que nela se fundou foi exclusivista. Ser pelotense vale para o mesmo pelotense
como uma especialidade; sua terra, ou melhor, sua cidade, é o centro de todo o seu ser”.66
63
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 61.
64
CERQUEIRA, Fábio; CÉSAR, Temístocles. Os periódicos do final do século XIX e do início do século XX e o
quotidiano de Pelotas. In: História em Revista, UFPel, n. 1, 1994.
65
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 263.
66
HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85.
67
No século XX, os Antunes Maciel projetaram-se para o Rio de Janeiro, onde o filho do Dr. Francisco Antunes
Maciel tornou-se presidente do Banco do Brasil e uma de suas filhas casou-se com o Senador Valdomiro
Magalhães e a outra com o Deputado Federal Moreira Brandão (CARVALHO, Mário T. de. Nobiliário Sul-rio-
grandense. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1937, p. 43). Uma bela análise desta família no período republicano, quando
387
família paulista. A neta do Barão de Jarau, filha do Dr. Joaquim Assumpção, por sua vez,
casou-se com a D. Haydée Bordagorri. O Barão de Correntes teve dois genros de famílias
espanholas, o proprietário Ramon Trapaga e o capitão Guilherme Echenique, além de de uma
filha que foi morar com o marido no Rio de Janeiro.68 Portanto, a diversificada engenharia de
matrimônios foi somente mais um traço desta elite da elite.
As festas, os saraus e os bailes nas casas dos charqueadores e nas associações e clubes
aos quais os mesmos frequentavam constituíam-se no cenário perfeito para a ostentação não
apenas das jóias, das carruagens, da criadagem e do seu vestuário, sempre na moda, como das
boas maneiras, hábitos e cultura letrada dos membros de suas famílias, incluindo genros de
outras partes do Brasil e até da Europa. A suposta prática do mecenato e a promoção do
progresso e da educação não era compartilhada por todos, mas, principalmente, por algumas das
mesmas famílias dos charqueadores mais ricos que venho analisando nesta tese, ou seja, os
Simões Lopes, os Antunes Maciel, os Moreira, os Tavares, os Cunha, entre outros. Portanto,
ocupando posições distintas nos espaços filantrópicos, educacionais, artísticos e, como se verá
adiante, políticos, esta elite da elite reforçava a sua dominação social sobre os demais
legitimando-se, por meio de uma relação extremamente complexa, como os mais aptos a
governarem a sua sociedade e a representá-la em outros espaços de poder.
parte dela já havia migrado para o Rio, pode ser visto em PAULA, Débora Clasen de. “Da mãe e amiga Amélia”:
cartas de uma baronesa para sua filha (Rio de Janeiro - Pelotas, na virada do século XX). Dissertação de
Mestrado em História, Unisinos, 2008.
68
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 68; 79; 133. Possuir genros europeus podia favorecer um maior acesso às
comunidades estrangeiras que residiam na cidade (ver Capítulo 4), possibilitando alianças e favores. Não se deve
esquecer que o alto comércio pelotense e rio-grandino estava repleto de estrangeiros que tinham acesso a artigos de
luxo, ao sal de melhor qualidade, aos mercados dos couros, além de preciosas informações do mundo dos
negócios. Além disso, numa sociedade onde a cultura europeia era tida como superior e oferecia certo prestígio
social aos que dela compartilhassem com distinção, transitar por estes círculos, receber homenagens em clubes e
associações e ocupar lugares de honra entre os mesmos, seja em espetáculos teatrais de companhias estrangeiras,
seja em festejos cívicos, podia render um status considerável naquela pequena cidade.
388
bastante disputado nas eleições locais. Os delegados e subdelegados de polícia e os inspetores
de quarteirão eram igualmente importantes pelos mesmos motivos, além de também serem
utilizados para perseguir os adversários políticos. 69
69
Ver, por exemplo, GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ,
1997; AL-ALAM, Caiuá. Palácio das misérias: Populares, delegados e carcereiros em Pelotas (1869-1889). Tese
de Doutorado em História, PUCRS, 2013; VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010.
70
RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava: milicianos e guardas nacionais no Rio Grande do Sul
(1825-1845). Santa Maria: Editora da UFSM, 2005; FERTIG, André Atila. Clientelismo político em tempos
belicosos: a Guarda Nacional da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul na defesa do Império do Brasil
(1850-1873). Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010; MÜGGE, Miquéias. Prontos a contribuir: guardas nacionais,
hierarquias sociais e cidadania (Rio Grande do Sul - século XIX). São Leopoldo: Oikos, 2012.
71
Como demonstrou VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010.
72
SODRÉ, Elaine L. V. A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no
Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871). Tese de Doutorado. PPG-História da PUC-RS, 2009; BIEBER,
389
charqueadores assumiam o cargo, como José Inácio da Cunha e José Antônio Moreira, por
exemplo. 73 O Judiciário local era quase um negócio entre famílias e quando os réus, muitos
deles escravos e homens livres pobres, eram levados ao Tribunal do Júri, lá estavam os
charqueadores, seus parentes e outros membros da elite local para decidirem se os mesmos
eram culpados ou inocentes.74 Tendo em conta que o juizado de paz e as delegacias de polícia
eram ocupadas pelos mesmos indivíduos ou membros de suas fações políticas locais 75 pode-se
considerar que Pelotas, uma localidade litorânea e mais urbanizada, se constituía numa
realidade não muito distinta de outras regiões do Brasil, demonstrando que o alcance da
centralização implementada pela Reforma Judiciária de 1841 possuía sérios limites, como
outras pesquisas já demonstraram. 76
Na Câmara municipal, a presença destas famílias também foi notável. Dos 89 indivíduos
que ocuparam o cargo de vereador em Pelotas entre os anos de 1832 e 1889 77, 29 (32,6%) eram
charqueadores e 28 (31,4%) eram parentes próximos dos mesmos, ou seja, filhos, irmãos,
cunhados e genros. Reunindo somente os 14 presidentes da Câmara (o mais próximo do que
poderia ser identificado como um prefeito na época), 28,5% deles eram charqueadores e 42,8%
eram seus parentes próximos. Portanto, cerca de 2/3 da edilidade pelotense recebia influência
direta das famílias charqueadoras. Pode-se argumentar que a Câmara estava longe de se
constituir no espaço de poder local que havia sido no período colonial. Contudo, o cargo era
bastante disputado pelas elites locais e a Câmara era o palco de grandes conflitos por contratos,
recursos financeiros e influência política em assuntos importantes, tratados, inclusive, no
parlamento provincial.
Judy. O sertão mineiro como espaço político (1831-1850). Revista Mosaico, v. 1, n. 1, jan./ jun., 2008, p. 74-86;
NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência: I. Império. Brasília: STF, 2000.
73
Ver, por exemplo, Livro de notas n. 5, 2º tabelionato de Pelotas (APERS).
74
O exame das dezenas de processo-crime trabalhados no capítulo 6 me permitem fazer esta afirmação.
75
Para Pelotas ver, por exemplo, AL-ALAM, Caiuá. Op. cit., 2013.
76
SODRÉ, Elaine. Op. cit.; GRAHAM, Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; FLORY, Thomas. El
juez de paz y el jurado en el Brasil imperial, 1808-1871. México: Fondo de cultura economica, 1986. Com isto não
quero dizer que não existiam embates entre as autoridades nomeadas pelo governo central e os potentados locais,
como diversos documentos demonstram. Os conflitos resultavam hora na vitória de um lado, hora na de outro. No
entanto, muitas vezes quando um juiz de direito imprimia uma derrota a um fazendeiro ele também podia estar
aliado aos adversários deste. Não foi raro localizar o envolvimento dos juízes de direito com as facções locais,
assim como os oficiais do Exército, os empregados da Alfândega, os promotores públicos, entre outros
funcionários nomeados pelo governo central (Ver, por exemplo, SODRÉ, Elaine. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op.
cit., 2010; FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul
do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010. As relações de poder no nível local apresentavam uma
variedade de casos numa complexa relação de negociação e conflito que vem sendo muito bem estudada e
problematizada por alguns historiadores. Ver, por exemplo, VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem:
violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais – século 19. São Paulo: EDUSC,
2004; DANTAS, Mônica D. Para além do mandonismo: Estado, poder pessoal e homens livres pobres no Império
do Brasil. In: SOUZA, Laura. M. e; FURTADO, Júnia F.; BICALHO, Maria. F. (Org.). O governo dos povos. São
Paulo: Alameda Editorial, 2009, p. 335-354.
77
A listagem pode ser encontrada em OSÓRIO, Fernando. Op. cit., v. 1.
390
Ultrapassando o espaço local de influência, muitos pelotenses ocuparam uma cadeira na
Assembleia Legislativa. Analisando as listagens de deputados provinciais entre 1835 e 1889, foi
possível verificar a presença de pelo menos 37 parlamentares que eram charqueadores ou
parentes de charqueadores. O exercício de tal cargo os colocava em privilegiadas condições
para captar recursos para Pelotas, desenvolvendo a região, mas, ao mesmo tempo, respondendo
as demandas de suas clientelas e eleitores. Como alguns autores demonstraram, as assembléias
provinciais eram o palco de acirrados debates e disputas por verbas e influência política.78 Na
mesma esfera regional estavam os presidentes de província que, na maioria das vezes, se
constituíam em indivíduos nomeados pelo governo central e sem raízes com os locais onde
exerciam seus cargos. No Rio Grande do Sul, entre 1845 e 1889, dos 55 indivíduos que
assumiram a presidência da província como titulares nomeados ou como vice-presidentes 22
(40%) eram rio-grandenses. Destes, 7 eram charqueadores ou seus parentes próximos. As
famílias Jacintho de Mendonça, Silva Tavares, Antunes Maciel, Rodrigues Barcellos e Simões
Lopes foram as que concentravam tais cargos. Além de administrarem a província, os
presidentes possuíam um papel fundamental no período eleitoral, pois eram capazes de remover
oficiais da Guarda Nacional e autoridadees policiais e administrativas locais, alterando as
configurações faccionais de cada região vindo a favorecer o partido do governo. Mas tais
medidas davam-se geralmente em sintonia com os seus correligionários em nível local, uma vez
que, constituindo-se em elementos exógenos àquela sociedade, os presidentes precisavam
barganhar com os membros das elites locais e regionais que pertenciam ao seu partido. 79
78
GOUVÊA, Maria de Fátima. O Império das Províncias: Rio de Janeiro (1822-1889). Civilização Brasileira: Rio
de Janeiro, 2008; DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit. A listagem dos deputados rio-grandenses pode ser verificada
em AITA, Carmen; AXT, Gunter. Parlamentares gaúchos nas Cortes de Lisboa aos nossos dias (1821-1996).
Porto Alegre: Assembléias Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1996.
79
VARGAS, Jonas. Op. cit. 2010.
391
seu portador, por exemplo, o direito de intervir na nomeação dos Executivos provinciais. Na
época, Maciel não apenas nomeou o seu parente Barão de Sobral para a presidência do Rio
Grande do Sul, como influiu para que sua família recebesse mais 3 títulos de nobreza. Logo que
ocupou a pasta, o seu primo Francisco Antunes Gomes da Costa recebeu o título de Barão do
Arroio Grande (1884), o seu irmão Leopoldo Antunes Maciel tornou-se o 2º Barão de São Luís
(1884) e outro parente, Aníbal Antunes Maciel, foi titulado Barão de Três Serros (1884).
No Antigo Regime europeu, uma das funções da nobreza era encarregar-se do governo
da sociedade, traço que parece ter permanecido significativo em diversos países ao longo do
século XIX.80 Mas a nobreza titulada brasileira, ao contrário da europeia, havia surgido em
meio a uma sociedade cujo o arranjo intitucional possuía um forte caráter liberal. A nobreza
tupiniquim não se ligava à pureza de sangue, à longevidade imemorial dos seus troncos
familiares, ela não era hereditária e não conferia grandes privilégios legais aos seus portadores,
por exemplo. Suas únicas semelhanças com a nobreza de Antigo Regime diziam respeito ao
fato de que os títulos eram mercês reais oferecidas como retribuição aos serviços prestados à
Coroa, denotando a defesa da monarquia por parte dos agraciados, e que a importância dos
mesmo coincidia com a hierarquia política do Império, ou seja, os membros da alta nobreza e os
da alta política se confundiam. 81 Como verifiquei em outro estudo, a ostentação de títulos de
nobreza representava a confirmação de um estreito vínculo com os grandes espaços de poder
político, além de servir como uma amostra das famílias mais ricas da província e daquelas que
se identificavam e eram identificadas com o projeto político imperial. Além disso, os títulos
lhes conferiam certo status social que as diferenciava das demais famílias do extremo sul do
País. Pode-se dizer ainda que a Corte, ao congratulá-los, os reconheciam como membros das
elites provinciais, possibilitando, através dos mesmos, uma melhor interlocução entre o governo
80
A bibliografia sobre o tema é ampla. Para uma análise inicial ver LUKOWSKI, Jerzy. The european nobility in
the Eighteenth Century. London: Palgrave Macmillan, 2003; LIEVEN, Dominic. The aristocracy in Europe, 1815-
1914. London: Macmillan, 1992; SCOTT, Hamish. The European Nobilities in the seventeenth and eighteenth
centuries. London: Palgrave Macmillan, 2007; MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o
patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998; Les
Noblesses européennes aux XIXe siècle. Actes du colloque organisé par l'Ecole française de Rome et le Centro
per gli studi di politica estera e opinione pubblica de l'Université de Milan en collaboration avec la Casa de
Velázquez (Madrid) [et al.]. Roma, 21-23 novembre 1985.
81
Como demonstrou Carvalho, se o título de barão reservava-se principalmente às nobrezas provinciais, os
Viscondes, Marqueses e Condes eram títulos que se confundiam com os membros da elite política imperial
(CARVALHO, José M. de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política
Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 258-259). Maria Fernanda Martins também verificou uma
profunda imbricação entre os nobilitados e os membros do Conselho de Estado (MARTINS, Maria Fernanda V.
“A velha arte de governar”: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2007).
392
central e as regiões onde concentravam sua base social e econômica, oferecendo-lhes, em
conseqüência disto, um acesso mais facilitado ao mundo da alta política. 82
No Rio Grande do Sul, provavelmente de forma mais acentuada do que nas outras
províncias, a maioria dos títulos foi concedida como retribuição aos serviços militares dos seus
súditos. A nobreza rio-grandense possuía um perfil fortemente ligado ao campo de batalha,
envolvendo também estancieiros civis que haviam lutado em uma ou mais guerras. Cerca de
65% dos 58 rio-grandenses que receberam títulos de nobreza no Segundo Reinado eram ou
oficiais da Guarda Nacional ou do Exército. Pelo menos 22 deles participaram da Revolução
Farroupilha, sendo 19 do lado legalista. 83 Mas no caso dos charqueadores, os títulos de nobreza
recebidos pelos mesmos eram mais uma retribuição ao dispêndio de seu patrimônio do que
qualquer outra coisa. Apesar de patrocinar financeiramente a guerra e insuflar os movimentos
nos bastidores (ver capítulo 7) os charqueadores não foram grandes guerreiros. Portanto, como
os títulos nobiliárquicos dos mesmos também constituíram-se em uma compensação pelo
patrimônio gasto com o Império e a libertação de escravos em grande quantidades não
surpreende que as famílias charqueadoras mais ricas concentraram tais honrarias, como pode
ser percebido na Tabela 10.1.
82
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
83
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. Ver capítulo 3.
393
som de Mozart, Chopin e Schumann, não tinham o maior constrangimento em ordenar, por
meio de seus capangas, as perseguições mais agressivas aos seus inimigos políticos.84
Tabela 10.1 – Relação entre Riqueza, Nobiliarquia, Alta política e Educação entre as famílias
charqueadoras de Pelotas (1845-1900) – em libras esterlinas 85
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas; FRANCO, Sérgio da Costa. Gaúchos na
Academia de Direito de São Paulo no século XIX in: Revista Justiça & História. Porto Alegre:
CEMJUG, 2001, pp. 107-129; CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto
Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
84
VARGAS, Jonas. Op. Cit., 2010.
85
Para a construção desta tabela foram considerados como familiares os pais, filhos, irmãos, genros e sogros.
86
Telegrama de 06.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
87
Telegrama de 06.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
394
uma moeda no bolso do colete. Há mais 6 liberais feridos levemente. Estou doente de
tanto gritar.88
A prática política, sobretudo no âmbito local e regional, tinha nas famílias as suas
unidades de ação mais elementares e as mesmas sustentavam seu poder incorporando vasta
clientela e um número grande de capangas. 91 Um exemplo disso pode ser verificado por meio
da família do mencionado deputado Arruda – importante liderança do Partido Liberal em
Pelotas. Numa noite de sábado de abril de 1873, um grupo de escravos e homens livres, todos a
cavalo, causou certo tumulto nas ruas de Pelotas. Tendo a polícia tentado reprimir os mesmos,
um dos membros do grupo, um pardo paraguaio chamado Candido Simplício, gritou aos
demais: “A la carga muchachos!”. Conforme testemunhas, eles gritavam “vivas à liberdade” –
saudação comum aos liberais. Fugindo do enfrentamento com a polícia, alguns escravos foram
acoitar-se nas terras do major João Mendes de Arruda e outros na de seu genro. O interrogatório
revelou que todos eles, inclusive os paraguaios, eram trabalhadores da charqueada do próprio
Major. Os escravos haviam encontrado Simplício e outros homens na frente da casa do
conselheiro Francisco de Araújo Brusque, um dos chefes do Partido Liberal em Pelotas e que já
havia sido Ministro da Guerra, em 1864.92 Portanto, o grupo devia compor parte dos capangas
da facção liberal pelotense, algo muito comum na vida política paroquial.93 O major Arruda era
88
Telegrama de 07.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS.
89
CARVALHO, Mario Teixeira de. Op. cit., p. 121.
90
Em setembro de 1859, no dia das eleições em Pelotas, o Dr. Miguel foi acusado de manter um votante na Santa
Casa como se estivesse ainda doente. (O Brado do Sul, Pelotas, 14.09.1859, Biblioteca Nacional do RJ).
91
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
92
Processo-crime n. 995, m. 25, 1874, Tribunal do Juri, Pelotas (APERS).
93
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
395
charqueador e residia em seu estabelecimento no Fragata, possuindo também um sobrado no
centro da cidade, onde seu filho João Maria, oficial do Exército, morava. O advogado e
deputado Saturnino de Arruda, mencionado acima, era o membro da família capaz de conectá-
la com grandes centros políticos, como Porto Alegre e a própria Corte, pois mantinha intensa
correspondência com Fernando Osório, filho do General Osório, quando ambos (pai e filho)
eram respectivamente deputado e senador pelo Rio Grande do Sul, residindo no Rio. Ou seja, as
facções conectavam indivíduos desde a paróquia até a Corte.94
94
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
95
Sobre clientelas ver GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
396
Portanto, ultrapassando o espaço regional e locomovendo-se com certa distinção no
mundo da alta política surgia um grupo bastante pequeno de indivíduos, porém muito influente
e poderoso em termos políticos. E digo indivíduos porque, neste espaço, eles já não podiam
mais carregar consigo as suas famílias na função de mediação. Quanto mais complexa era a
tarefa do broker mais individual ela se tornava, muito embora a sua rede de relações fosse
utilizada como trunfo nas negociações que o mesmo realizava.96 Mas é preciso ter cuidado, pois
por trás de cada estadista ou grande politico e lider regional escondiam-se interesses de
diferentes ordens, nas quais eles não conseguiam se desprender. Somente os senadores e
conselheiros de Estado, cujos cargos eram vitalícios, podiam gozar de uma maior autonomia
com relação a esta pressão vinda dos paroquianos, mas ela jamais deixava de existir. Portanto,
os seus familiares, amigos e “protetores” possuíam papel importante na sua trajetória e sua
dívida para com os mesmos e outros membros das elites regionais era grande. Neste sentido, a
razão de estado e a razão clientelística não se excluíam. A mão que governava e assinava
decretos preocupando-se com questões de ordem nacional era a mesma que mandava nomear
parentes e aliados políticos nos cargos pedidos pelos parentes e amigos.97 E se hoje esta prática
possui um caráter antagônico aos interesses públicos, naqueles tempos, mesmo que nos
discursos ou em elaborações filosóficas ela pudesse ser condenada, era por meio destes
mecanismos que o Estado era capaz de atingir certos espaços e fazer-se impor em outros.98
Portanto, os mediadores políticos agiam por intermédio tanto dos espaços institucionais
abertos aos mesmos (sendo que os mais comuns eram as Assembléias provinciais e a
Assembléia Geral) quanto pelas vias informais de atuação. Numa sociedade agrária com meios
de comunicação e transportes bastante precários, seu papel era fundamental na viabilização do
sistema político do Brasil Império e na captação de recursos materiais para suas províncias.
Negociando com as autoridade centrais e defendendo interesses de ordem regional e local eles
também buscavam sustentar a posição de suas famílias e facções enquanto elite provincial.
Neste processo, aqueles mediadores políticos de maior prestígio e com uma trajetória de maior
sucesso nestas práticas, ascendiam ao Senado, a algum ministério e até mesmo ao Conselho de
Estado.
96
SILVERMAN, Sydel. Patronage and community-nation relationships in central Italy. In: SCHMIDT, S. W.
(ed.). Friends, Followers and factions: a Reader in Political Clientelism. Berkeley: University of Califórnia, 1977,
p. 293-304.
97
CARVALHO, José Murilo. Rui Barbosa e a Razão Clientelista. Dados, v. 43, n. 1, Rio de Janeiro, 2000.
98
URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do estado patrimonial brasileiro do século
XIX. São Paulo: Difel, 1978; GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.
397
Tendo em vista o alto retorno em termos de recursos materiais e imateriais que a
ocupação destes cargos podia trazer aos seus portadores, não surpreende que a disputa pelos
mesmos fosse bastante acirrada. As clivagens existentes entre os mesmos grupos decorriam de
posturas ideológicas distintas, das tradições familiares e das próprias redes de compromissos
que caracterizavam o universo político oitocentista. Neste sentido, as famílias charqueadoras
mais ricas estavam divididas não apenas entre conservadores e liberais, como também em
facções dentro dos próprios partidos. Os Antunes Maciel, importantes chefes liberais, ficaram
ao lado de Silveira Martins na cisão que marcou o partido no final dos anos 1870, sendo que, os
Almeida e os Arruda acompanharam a família do General Osório. Importante notar que os
Osório e os Antunes Maciel eram aparentados, o que não significava que não pudessem romper
politicamente. Os Gonçalves Chaves e os Cunha também eram liberais. Entre os conservadores,
o Barão do Jarau e o Visconde da Graça eram chefes locais do partido, mas sofriam oposição
dos Rodrigues Barcellos, por exemplo, que também eram conservadores, assim como os
Mendonça e os Azevedo e Souza.99
99
Sobre as cisões que marcaram o período ver PICCOLO, Helga. A Política Rio-Grandense no II Império (1868-
1882). Porto Alegre: UFRGS, 1974; CARNEIRO, Newton G. A identidade inacabada: o regionalismo políticos no
Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
100
Jornal do Comércio de Pelotas, 19.06.1981 (BPP).
101
Numa de suas viagens à Corte, o visconde da Graça demorou-se por 3 meses no Rio, onde foi recebido pelo
visconde de Rio Branco. Desta viagem, resultou um Diário que foi consultado pelo escritor Carlos Diniz.
Conforme o mesmo, “ao chegar à casa em que se hospedava, João Simões Lopes [o visconde da Graça] encontra
uma carta de Rio Branco, que veio a ser transcrita no Diário, nos seguintes termos: ‘A S. Excia. Sr. Barão da
Graça cumprimenta o Visconde do Rio Branco, e comunica que estará esta tarde às suas ordens, em casa, às 6 e
½ horas, desejando vê-lo…’. Adiante, registra o manuscrito do viajante: ‘À hora indicada, parti a carro e fui ter à
porta de S. Excia... O encontro de todo (direi mesmo conferência) com aquele hábil homem de Estado foi-me tão
agradável, quanto honroso e delicado o acolhimento que me fez’. A conversa, relatada minuciosamente no Diário,
girou sobre a estratégia das obras ferroviárias no sul do país e de fortificações nas zonas fronteiriças, para colocar o
Brasil em posição de resistir vantajosamente à cavalaria dos argentinos, sua arma principal, ‘se porventura o
orgulho ofendido destes senhores, pelo papel secundário que representaram na última guerra, e naufrágio de sua
diplomacia no Paraguai, quiser desforrar-se pelas armas’. E adentrou na política, a incursionar sobre os destinos
do Partido Conservador da província” (DINIZ, Carlos Sica. João Simões Lopes Neto: uma biografia. Porto Alegre:
AGE, 2003, p. 31).
398
cidades com Escolas e Academias imperiais. Foi uma conquista do advogado e charqueador
Francisco Antunes Maciel quando o mesmo assumiu o cargo de Ministro do Império naquele
mesmo ano.102
Para conseguir manter a sua posição privilegiada, o mediador tinha que se legitimar a
partir dos recursos e benefícios que conseguia captar para as suas regiões de origem. E os
eleitores pelotenses, dentre os quais haviam muitos charqueadores, estavam sempre atentos com
relação a isto, pois muitos deles ajudavam a financiar as campanhas eleitorais103 e gastavam seu
tempo indicando as candidaturas para outros charqueadores e fazendeiros. Seu poder não deve
ser desprezado, pois eles eram capazes de acabar com as carreiras de políticos jovens e até
mesmo de homens experiente e poderosos. Em 1860, por exemplo, o jovem deputado Félix da
Cunha elegeu-se com o apoio de Osório e outros estancieiros e charqueadores. Tendo assumido
a cadeira na Câmara dos deputados, ele deixou de responder as muitas cartas dos mesmos
proprietários que o elegeram. Descontentes, estes escreveram para Osório reclamando do
representante e não voltaram mais a elegê-lo.104 Em 1873, nem mesmo o Visconde de Mauá
resistiu a pressão política do eleitorado. Acostumado a receber o apoio dos charqueadores
pelotenses105, nesta época ele desagradou os líderes liberais rio-grandenses (por aproximar-se
demais do Gabinete Rio Branco) e os charqueadores (por apoiar a Lei do Ventre Livre). Silveira
Martins reuniu oposição ferrenha a Mauá e convocou o eleitorado da província para decidir-se
entre ambos. O banqueiro foi derrotado e teve que abandonar o mandato.106
Na Corte, os estadistas mais bem preparados sabiam muito bem com quem podiam
contar tanto em Pelotas quanto em outras localidade do Rio Grande do Sul, por meio de uma
cadeia de intermediários e dos próprios mediadores rio-grandenses que orbitavam o parlamento
geral. Em 1872, o próprio Visconde de Rio Branco, chefe do Gabinete conservador que
102
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 238-241. Anos depois, o governo central retirou parte dos investimentos
prometidos e a Escola passou para a administração municipal, tendo sua primeira turma de formando em 1895.
Como demonstrei em outra pesquisa, o mesmo ocorria quando Osório era aclamado pela imprensa e pelos eleitores
pelas conquistas políticas que conseguia.
103
Em janeiro de 1861, o charqueador Domingos José de Almeida, liberal, escreveu ao charqueador Joaquim José
de Assumpção, conservador, indagando: “Não querendo nutrir a mais leve suspeita contra a moralidade de alguém,
(…) lhe rogo o obséquio de dizer-me se o ouro derramado com tanta profusão para as eleições últimas fora
fornecido pelo Governo ou por quem” (Anais do AHRS, Carta de Domingos J. de Almeida para J. J. de
Assumpção, 19.01.1861. CV-759).
104
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
105
Em setembro de 1860, por exemplo, Domingos escreveu para o estancieiro e oficial da Guarda Nacional David
Canabarro pedindo votos para Mauá: “Reiterando meu pedido para que V. S. com seus numerosos amigos se
empenhem na reeleição do Barão de Mauá de Deputado à Assembléia Geral Legislativa pelo 3º círculo [além de]
meu parente e amigo o Dr. Joaquim José Afonso Alves, que na criação do grande mercado e do excelente asilo
para as órfãs desgraçadas desta cidade (…) há demonstrado ter compreendido as necessidades da Província (…)”
(Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para David Canabarro, 06.09.1860, v. 3, CV-731).
106
DORATIOTO, Francisco. General Osório. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
399
permaneceu por 4 anos no poder, escreveu para o Visconde da Graça pedindo que o irmão deste
charqueador, o Dr. Ildefonso, se candidata-se à Câmara. Rio Branco também pediu para que
Graça escrevesse a outros estancieiros solicitando o mesmo.107 Isto demonstra o respaldo e o
prestígio que Graça possuía na Corte e ajuda a entender a segurança com que o mesmo se
movia naqueles espaços de poder. Um outro exemplo pode ser dado na missiva que Silveira
Martins enviou a Osório em 1865. “Aqui me acho em Pelotas (…) falta aqui V. Ex. para ditar a
lei, mas na sua falta cada um vai fazendo o que pode. Fui ao Rio; falei com os nossos amigos, e
a grande conveniência é mandar liberais à Câmara; eu conto quase infalível o meu triunfo, mas
V. Ex. sabe que nesses negócios não há certeza”.108 Este trecho evidencia que, preocupado com
sua a carreira, o jovem Gaspar foi até a Corte buscar informar-se sobre a conjuntura política e
as possibilidades de se eleger. Além disso, ele reconhecia que Osório era quem colocava ordem
no Partido Liberal de Pelotas.
Depois de tudo o que foi visto ao longo dos capítulos encerro esta tese tecendo algumas
considerações acerca da atuação da elite charqueadora e do papel das elites regionais no
processo de formação do Estado Imperial. Apesar da notável disseminação da cultura europeia
em Pelotas na segunda metade do século XIX, é necessário analisar as primeiras décadas do
oitocentos, pois traços daquela difusão já eram visíveis naquela época e é possível considerar
107
Carta de João S. Lopes. Pelotas, 23.06.1872. Arquivo do Barão de São Borja. Lata 450, pasta 9, carta 6 – IHGB.
108
Carta de Silveira Martins a Manoel Osório, 09.09.1865. OSÓRIO, Fernando. Op. cit. 2000, v. 1, p. 137.
109
SACCOL, Tassiana. Op. cit.
110
OSÓRIO, Fernando. Op. cit., v. 1, p. 189-191.
400
que a elite da elite charqueadora analisada anteriormente era herdeira dos atos e modelos de
ação da primeira geração de charqueadores.
Como notou Magalhães, referências semelhantes foram comuns mesmo antes de Pelotas
tornar-se vila. O bispo Coutinho, visitador da freguesia em 1815, observou na igreja “um
grande concurso de homens e mulheres, vestidos com riqueza e luxo”. Um ano depois, o conde
português Francisco d’Azeredo, após passar com seu batalhão por Pelotas, deixou registrado a
“abundância” e os “bons costumes”, destacando que “a ociosidade é partilhada por todos os
brancos”.112 Saint-Hilaire, por sua vez, considerou que “não se vê em São Francisco de Paula
uma palhoça sequer e tudo aqui anuncia abastança”. 113 Provavelmente, este estilo de vida era
compartilhado por outras famílias de elite no Rio Grande do Sul. Em Pelotas, os comerciantes-
charqueadores estudados nos capítulos 2 e 3 eram os que mais se destacavam nos relatos dos
viajantes.114 Além da considerável fortuna para a época, sua conexão com o universo mercantil
111
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 138-139. Após marchar pelo interior do Rio Grande do Sul durante dias,
Seidler esboçou todo o seu contentamento ao avistar novamente Pelotas: “Em poucas horas alcancei o meu
objetivo; a bela cidadezinha estava diante de mim, como um faisão dourado na bandeira de prata do rei. Diante da
casa dum negociante inglês conhecido apeei e, poucos minutos depois, do balcão da casa avistei de coração
contente o lugar onde outrora vivera dias felizes” (SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. São Paulo: Livraria
Martins, 1976, p. 199).
112
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit.
113
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 130.
114
Saint-Hilaire, por exemplo, destacou Antônio Francisco dos Anjos, Antônio Soares de Paiva, Mateus da Cunha
Teles e Antônio José Gonçalves Chaves (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit.).
401
marítimo os colocavam a par das diversas inovações provenientes da Europa, assim como dos
seus artigos de luxo.
Eles quiseram que o lugar prosperasse, e o lugar prosperou; cada um deles tem ali sua
casa urbana; e quando, nos domingos e dias santos, a população das charqueadas
ajunta-se na cidade para assistir ao serviço divino (...) é difícil fazer-se ideia do ar de
vida e de opulência que respira então a cidade de Pelotas. (...): a par do carro popular,
tosca testemunha da antiga indústria local, anda o ligeiro carrinho de construção
europeia, como também entre os cavalos arreados de prata, luxo especial dos homens
do país, aparecem ginetes ricamente ajaezados com selins bordados por mãos inglesas
e montados por senhoras que não cedem em elegância e boas maneiras às mais
graciosas parisienses.118
115
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 137.
116
Inventário de Maria Joaquina de Castro, n. 74, m. 3, Rio Grande, 1º cartório do cível, 1840 (APERS). Ele
também possuía uma outra sege para dois cavalos e um “carrinho de bom gosto”.
117
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 98.
118
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961.
402
1827, além dos talheres de prata, aparelhos de chá, cama de jacarandá e quadros decorando a
sala de sua casa, uma estante para livros na qual podia se ver 37 volumes escritos em francês e
2 de direito mercantil. A biblioteca do charqueador Ignácio José Bernardes era mais variada e
nela podia se encontrar dezenas de exemplares, com destaque para os livros de Medicina, os
religiosos, dicionários e exemplares diversos em francês e também em espanhol. Entre os
mesmos havia uma “História do Império da Rússia” e um “Vida de Bonaparte”. O charqueador
Joaquim José da Cruz Secco, que teve os bens de seu casal inventariados em 1828, também
apresentou muita prataria, móveis importados, aparelhos de chá, um piano forte e 77 chícaras e
10 dúzias de pratos da Índia. Entre os seus livros havia uma “História de Portugal”, uma
“História Sagrada” e uma “Recriação Filosófica”. 119
Secco foi sogro de Antônio José Gonçalves Chaves e talvez nenhum charqueador tenha
o excedido em conhecimento e cultura. Como já foi dito anteriormente, Saint Hilaire
impressionou-se com o mesmo considerando-o “um homem culto, sabendo o latim, o francês,
com leituras de história natural, conversando muito bem”, em suma, “um dos homens mais
esclarecidos da região”.120 Leitor de Adam Smith, Chaves expôs todas as suas ideias sobre
política e economia num livro que escreveu entre os anos 1817 e 1822.121 O principal sócio de
chaves também era bastante instruído. O charqueador Domingos de Almeida, quando ministro
da República Rio-grandense, possuía um gabinete de leitura com mais de 800 livros. 122 Numa
das cartas escritas para a sua esposa na época da Guerra, Domingos pediu que ela lhe enviasse
os livros “Economia Política”, “Contrato Social”, “Beccaria ou Tratado de Delitos e Penas” e as
obras de Telinho Elípio. 123 O investimento na educação dos filhos também foi algo que os
charqueadores da primeira geração, notadamente a elite dentro da elite, já praticava. Tanto
Secco, quanto Chaves e Domingos enviaram seus filhos para estudar Direito em São Paulo.
Contudo, é importante que se diga que tudo isto foi possível por apresentar uma
conjuntura favorecida pelos acontecimentos do ano de 1808. A vinda da Família Real para o
Brasil e a instalação da Corte dentro da própria América portuguesa tornou o Rio de Janeiro um
119
Inventário de João Nunes Batista, n. 75, m. 1, 1823, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS);
Inventário de Inácio José Bernardes, n. 217, m. 15, 1838, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS) ;
Inventário de Teresa Angélica de Sá, n. 126, m. 10, cartório de órfãos e proveroria, Pelotas, 1828 (APERS).
120
SAINT-HILAIRE O. Op. cit., p. 103.
121
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 53-77.
122
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 128.
123
Anais do AHRS, carta de 16.10.1835, CV-178, v. II, 1978. Sua liderança como propagandista da revolução via
imprensa foi marcante (MENEGAT, Carla. Op. cit.).
403
centro especial de representação política e difusão cultural. 124 Principal parceiro comercial do
Rio Grande do Sul, não é difícil perceber que sua influência política, econômica e cultural se
fez presente entre as elites da província desde essa época. 125 No entanto, este não foi o único
fenômeno que favoreceu o desenvolvimento sociocultural das cidades litorâneas da época. A
abertura dos portos às nações estrangeiras, evento ocorrido naquele mesmo ano de 1808,
proporcionou a entrada de muitos negociantes europeus e norte-americanos no espaço portuário
e urbano das mesmas cidades. Por conta disto não somente as mercadorias, como as pessoas, as
ideias, os novos gostos e as distintas visões de mundo foram lentamente influindo na vida dos
colonos que habitavam tais espaços urbanos. 126
124
Ver, por exemplo, MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da
Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; ARAÚJO, Maria L. Vieiros. Os caminhos
da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Hucitec, 2006.
125
Ver, por exemplo, COMISSOLLI, Adriano. A serviço de Sua Majestade: administração, elite e poderes no
extremo meridional brasileiro (1808 c. – 1831 c.). Tese de Doutorado em História, PPGHIS-UFRJ, 2011.
126
O comerciante inglês John Luccock, que esteve em Rio Grande em 1810, deixou anotado o impacto da abertura
dos portos, pois os produtos ingleses já vinham substituindo os portugueses de forma notável, devido aos preços
mais atrativos e o “gosto pela exibição” que vinha crescendo entre as pessoas “pois que as possibilidades que a
riqueza concedia se escoavam por vários canais” (LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes
meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 122). MALERBA, Jurandir. Op. cit.; COUTO, Jorge.
Rio de Janeiro: capital do Império português (1808-1821). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
127
PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de
la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009.
128
MIRANDA, Márcia E. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província
de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009. Nos anos 1820, quando J. B. Debret pintou um casal de
charqueadores, ele deixou registrado: “Pode-se reconhecer na vestimenta do cavaleiro o manto espanhol adotado
pelo rico habitante do Rio Grande, cujas terras confinam com o território de Montevidéu. Os estribos de madeira
enfeitados de prata, bem como o resto do arreio do seu cavalo, são, ao contrário, de formas portuguesas importadas
no Brasil” (DEBRET, Jean-Batiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: USP, v. 1, 1972, p. 332).
129
PRADO, Fabrício. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit.
404
Portanto, ao pensarmos numa colônia em movimento é possível considerar que a
América portuguesa constituía-se num território na qual havia uma profunda interação entre
comerciantes e burocratas com as elites coloniais nas suas próprias capitanias e de umas com as
outras.130 Isto ajuda a relativizar uma ideia de que a Corte estabelecida no Rio de Janeiro em
1808 concentrava uma espécie de poder civilizador que foi lentamente sendo distribuído às
demais regiões da América luso-brasileira que sofriam de um isolamento cultural
intransponível. Considerando o piano como um símbolo deste modelo de civilização, Luís
Felipe de Alencastro afirmou que, em meados do século XIX, o mesmo só havia entrado em
poucos sobrados do Rio de Janeiro, de Recife e Salvador, sendo praticamente desconhecido nas
outras partes do Império.131
Ora, pesquisas recentes demonstram que este instrumento musical já podia ser
encontrado em muitas casas distantes destas três cidades e bem antes do meado do oitocentos.
Pesquisando São Paulo, por exemplo, Maria Viveiros de Araújo localizou não apenas
bibliotecas com muitos livros, como pianos entre os bens inventariados da elite paulista entre
1800 e 1850.132 No Rio Grande do Sul, Adriano Comissoli identificou os mesmos itens entre as
elites administrativas e políticas da região nas primeiras décadas do oitocentos. O autor
demonstrou como a presença dos pianos eram “indicativos da busca por refinamento aliado a
um entretenimento de alta sociedade”. Além disso, “a recorrência dos aparelhos de louça para
chá indicam igualmente a disseminação de hábitos considerados refinados numa sociedade que
se complexificava e cuja elite dialogava com os pares de outras praças”. Neste sentido, “os
tempos em que a sociedade sul rio-grandense era classificada de ‘rústica e agreste’ haviam sido
ultrapassados pela elite oitocentista”.133
O simples fato dos primeiros pianos terem chegado à pequena Desterro – capital de
Santa Catarina134 – já no início do século XIX, fazem supor que em outras cidades litorâneas
130
FARIA, Sheila. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII). Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros,
lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus
negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009; VIEIRA JÚNIOR, Antônio
Otaviano. De Família, Charque e Inquisição se fez a trajetória dos Pinto Martins (1749-1824). In: Revista Anos 90.
Porto Alegre, v. 16. N. 30, dez, 2009, p. 187-214.
131
ALENCASTRO, Luís Felipe de. História da vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, L.
F. (ed.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, v. 2, 1997, p. 45.
132
ARAÚJO, Maria L. Viveiros. Op. cit., 2006. É importante que se diga que os inventários retratam o patrimônio
dos indivídos em determinada época de sua vida e não são suficientes para dar conta da posse dos pianos, livros e
demais artigos que uma pessoa tinha contato ao longo de toda a sua vida.
133
COMISSOLI, Adriano. A serviço de sua maestade: administração, elite e poderes no extremo meridional
brasileiro (c.1808 - c.1831). Tese de Doutorado em História. PPGHIS-UFRJ, 2011, p. 227.
134
HOLLER, Marcos T.; SANTOLIN, Roberta F. O piano em Desterro no século XIX. In: D.A. Pesquisa.
Florianópolis: UDESC, v. 3, 2009, p. 1-8.
405
mais ricas e com elites mais bem estabelecidas não apenas o acesso aos pianos como a outros
artigos importados, assim como livros e novas ideias estivessem sendo acessadas por
intermédio de comerciantes, burocratas e estrangeiros de diferentes países que os conectavam
com o mundo exterior. Nas suas memórias, o magistrado Albino Barbosa de Oliveira deixou
escrito a respeito de sua permanência no Maranhão (onde serviu como juiz de direito na década
de 1840), a existência de um teatro e dos bailes e soirées que frequentava na casa de muitas
famílias de elite, onde conheceu as filhas da Dona Lourença Leal, sendo que uma delas “tocava
muito bem piano, o que era grande recurso para mim, ávido de distrações”. 135
Com relação aos pianos, teatros e bailes, os próprios viajantes deixaram relatos
importantes. Em Porto Alegre, no início da década de 1820, Saint-Hilaire mencionou: “São
freqüentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas senhoras tocam, com maestria, o
violão e o piano, instrumento este desconhecido no interior, por causa das dificuldades de seu
transporte”. Mas se no interior das províncias os pianos podiam demorar para chegar, nas
cidades litorâneos ele pareceu ser do usufruto de muitas famílias das elites. No sul do Brasil, a
interação social com os hispano-americanos e estrangeiros devia estimular mais ainda o gosto
por artigos de luxo, pianos e o contato com visões de mundo distintas. Em Buenos Aires, por
exemplo, Arsene Isabelle deixou escrito no início dos anos 1830: “É preciso que a família seja
muito pobre para não ter o seu piano. As buenairenses como as montevideanas têm a mesma
inclinação das italianas pela música mas não se dão ao trabalho de estudar a música escrita
(falando de um modo geral)”.136 Passando por Pelotas, nos anos 1820, Carl Seidler recomendou
aos viajantes que “tocassem algum instrumento, sobretudo o piano, mesmo que pouco, pois que
o piano se encontrava em todas as boas casas da freguesia de São Francisco de Paula”, antigo
nome da cidade de Pelotas.137
135
OLIVEIRA, Albino J. B. Memórias de um magistrado do Império. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1943, p. 165.
136
ISABELLE, Arsene. Op. cit., p. 128-129.
137
NOGUEIRA, Isabel; SOUSA, Márcio. Saraus. In: LONER, Beatriz; GILL, Lorena; MAGALHÃES, Mário. Op.
cit., p. 230-231. Conforme Müller, o desenvolvimento dos espaços de sociabilidade em Pelotas tiveram influência
da Corte, da França, da Inglaterra, de Buenos Aires e de Montevideu (MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 23-24).
406
respectivas hinterlands, por exemplo), mas, principalmente, as interações diretas dos seus
habitantes com os estrangeiros que cada vez mais circulavam pelas cidades brasileiras, além da
histórica relação política e administrativa das mesmas com Lisboa e Coimbra, por intermédio
dos burocratas e bacharéis. Os filhos estudantes, como já foi dito, eram importantes
intermediários neste sentido, assim como os genros comerciantes. Como demonstrou José
Murilo de Carvalho, a influência de Coimbra foi notável entre as elites políticas luso-brasileiras
tanto no período colonial quanto nas primeiras décadas do Império. 138 Além de contribuir com a
ilustração dos filhos das elites coloniais os bacharéis introduziam novos costumes, hábitos,
vocabulário político e visões de mundo vindos da Europa.
Portanto, estes exemplos podem ser multiplicados caso se estude o perfil regional dos
estudantes brasileiros formados em Coimbra. Analisando uma listagem que reunia 1.242 alunos
matriculados entre 1772 e 1872, Carvalho observou que 26,8% eram provenientes do Rio de
Janeiro, 25,9% da Bahia, 13,6% de Minas Gerais, 11,5% de Pernambuco, 8,7% do Maranhão e
138
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., 2003.
139
Sobre esta família, ver GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço
pelotense. Pelotas: UFPel, 2001.
407
3,7% era o índice idêntico alcançado por Pará e São Paulo.140 Neste sentido, é difícil pensar que
famílias com elites muito bem constituídas e com conexões familiares em outros pontos do
Império português também não compartilhassem de signos de cultura do mundo europeu por
intermédio de alguns parentes próximos que circulavam por aqueles espaços, estabelecendo
contatos comerciais e alianças matrimoniais com outras elites.141 Esta talvez tenha se
constituído numa das heranças da cultura política do Império português e que os estadistas da
jovem nação independente trataram de reproduzir. 142 A circulação de magistrados, burocratas e
presidentes de província e a criação de somente duas academias de Direito (em São Paulo e
Olinda/Recife) obrigavam os filhos das elites regionais, assim como o membros das elites
políticas e administrativas do Império, a circularem por todo o território nacional favorecendo
um sentimento de pertencimento a uma unidade política maior.143
140
CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p. 73.
141
Sobre esta mobilidade e diversidade de espaços nas quais os membros das famílias de elite regionais
circulavam, ver, por exemplo, BACELLAR, Carlos. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre
senhores de engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997;
ALMEIDA, Carla M. C. de. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus
aparentados. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla; SAMPAIO, Antônio C. J. Conquistadores e negociantes:
Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 121-193; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit.
142
CARVALHO, José Murilo. Op. cit.; Sobre a cultura política do Antigo Regime ver BICALHO, Maria
Fernanda. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do
Antigo Regime. Almanack Braziliense, n. 2, nov. 2005, p. 21-34.
143
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus juízes. São
Paulo: Perspectiva, 1979; MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.). Optima Pars: elites
ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005; CARVALHO, José Murilo. Op. cit.
144
MATTOSO, Kátia de Q. Bahia: Século XIX (Uma Província no Império). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992,
p. 281. Conforme José Murilo de Carvalho, os magistrados formados em Coimbra, enquanto membros da elite
política imperial, constituíram-se em agentes que possibilitaram um processo de transição sem grandes rupturas
para o período pós-independência (CARVALHO, José M. Op. cit.).
408
seja, os homens que ocuparam tal cargo formavam uma elite política com profundas raízes nas
famílias conquistadoras estabelecidas no poder desde os tempos coloniais. 145 No Rio Grande do
Sul, Adriano Comissoli percebeu que os representantes políticos da Província nos primeiros
anos após a Independência eram os mesmos agentes administrativos do período joanino. Tal
permanência, mesmo num contexto de transformações institucionais importantes e que
estabeleceram um arranjo institucional de ordem liberal, favoreceu a identificação daquela elite
com o governo do Rio de Janeiro e a oposição da maioria dos mesmos à Revolta de 1835.
Conforme Comissoli, eles “deviam muito à velha relação com o centro e sabiam que dele
dependia em larga escala seu reconhecimento como a camada superior da sociedade”.146
Da circulação de ideias e do papel marcante das elites coloniais e locais no interior dos
impérios marítimos americanos e, posteriormente, dos novos estados independentes, derivava
um cenário extremamente rico em projetos políticos (tanto regionais como nacionais e
transnacionais) e que marcou o processo de independência das colônias americanas e as
primeiras décadas que se sucederam aos mesmos acontecimentos.147 Além disso, a
historiografia nacional e internacional tem aceito amplamente o papel das elites coloniais no
governo dos seus povos e a existência de nobrezas locais nos territórios americanos.148 No caso
do sul do Brasil, os comerciantes e charqueadores tiveram papel proeminente neste processo.149
Desde o início do século XIX muitos deles atuaram em sintonia com o projeto joanino para com
a região platina apoiando as guerras na fronteira e dispensando seus recursos para o
financiamento das mesmas. As requisições de comendas honoríficas fornecem diversas
informações a respeito disto. No início do século XIX, foi possível verificar que o sargento-mor
de ordenanças Matheus da Cunha Telles fez o pedido de uma comenda, tendo sido informado
145
MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da mudança: elites, poder e redes familiares no Brasil, séculos XVIII e
XIX. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla & SAMPAIO, Antônio C. J. Op. cit., p. 403-435. Neste sentido, ver
também FRAGOSO, João. “Elites econômicas” em finais do século XVIII: mercado e política no centro-sul da
América Lusa. Notas de uma pesquisa. In: JANCSÓ, István (Org.). Independência: História e Historiografia. São
Paulo: Hucitec, 2005, p. 849-880.
146
COMISSOLI, Adriano. Op. cit., p. 361. Sobre as rupturas institucionais do período, assim como a relação das
elites rio-grandenses com o governo central ver MIRANDA, Márcia E. Op. cit.
147
Esta tese não se propõe a examiná-as. Importantes contribuições sobre a temática podem ser vistas em
JANCSÓ, István. Op. cit.; JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos
para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos G. Viagem Incompleta: a
experiência brasileira (1500-2000).. São Paulo: Ed. SENAC, 2000; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial:
origens no federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.
148
Ver também MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda S. Op. cit.; FRAGOSO, João;
SAMPAIO, Antônio C. J. (Org.). Monarquia pluricontinental e agovernança da terra no ultramar atlântico luso:
séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012; GREENE, Jack. Negociated Authorities: essays in colonial
political and constitutional history. Charlottesville: University Press of Virginia, 1994; RUSSEL-WOOD, A. J. R.
Centros e periferias no mundo luso-brasileiro. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, 1998; STUMPF,
Roberta G. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares
nas minas setecentistas. Brasília: Tese de doutorado, PPPGHIS - UNB, 2009; PRADO, Fabrício. Op. cit.
149
Para uma análise conjuntural deste período ver MIRANDA, Márcia E. Op. cit.
409
sobre o mesmo que na Guerra de 1801, “sendo proprietário de embarcações franqueou gêneros
para a esquadra subtil que defendia o porto. Na de 1810 a 1812, aumentou as suas ofertas e
dádivas economizando a Real Fazenda somas avultadas”. Nas campanhas militares sequentes
“abriu os seus cofres de tal maneira que estagnou o seu comércio, pois tem assistido e pago
todas as letras sacadas sobre ele pelo General Lecor” para soldos e cavalos, “constando ter
despendido mais de cem contos de réis”. 150 Num longo documento, o capitão de cavalaria José
Vieira da Cunha, também charqueador, foi referenciado como tento auxiliado com cavalos,
homens e dinheiro nas guerras, conduzindo prisioneiros espanhóis, colocando suas “gentes e
bois” da charqueada e das fazendas em diversos trabalhos e fardando os soldados.151
150
Relação dos comerciantes e grandes proprietários residentes na Vila do Rio Grande que pretendem
condecorações, s/d. Coleção Rio Grande do Sul, Manuscritos (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). No mesmo
documento, o Sargento-mor José Rodrigues Barcellos, també charqueador, foi descrito como um “dos maiores
proprietários da fronteira do Rio Grande” e de boa conduta quando no comando dos oficiais militares.
151
Requerimento de Alexandre Vieira da Cunha de 09.10.1808, C608-17, Documentos Biográficos, BN-RJ.
152
Ver também ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica
da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPG-UFF, 2012.
153
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 96. O viajante referia-se à comenda da Ordem de Cristo.
154
MIRANDA, Márcia E. Op cit., p. 302-304.
410
Conforme o mesmo documento, os valores doados pelos charqueadores eram muito
maiores que os dos indivíduos de outras localidades da província. Com o fim de obter a Ordem
Imperial do Cruzeiro, João Francisco Vieira Braga fez um extenso rol dos serviços prestados à
Coroa e que demonstram o destino deste dinheiro. Dizia ele que doou 12:600$ para a sustenção
da Independência e a Guerra contra Buenos Aires, 10:800$ para o estabelecimento da Colônia
de Suíços, 189:415$547 no abastecimento de gêneros comestíveis ao Exército Imperial, “sem
que daí resultasse o menor interesse pecuniário e sim da Nação”, entre muitas outras coisas que
fez. Um dos argumentos de Vieira Braga para ser agraciado com as comendas e títulos (que de
fato recebeu, vindo a tornar-se Conde de Piratini) era a continuidade dos serviços prestados
pelo seu pai (homônimo), que, segundo ele, havia sido comerciante de grosso trato em Rio
Grande. Num dos atestados fornecidos pelo Oficial Manoel Marques de Souza acerca dos
serviços deste podia se ler:
Atesto que o Capitão da 2ª Companhia da Vila do Rio Grande João Francisco Vieira
Braga tem sido um vassalo fiel a sua magestade e útil ao Estado, em todas as ocasiões
de urgência se tem prestado de boa vontade, como aconteceu na guerra de 1801,
aprontando e entregando por empréstimo 8 mil cruzados para o pagamento das tropas,
oferecendo gratuitamente os seus iates para o serviço da fortificação e igualmente 30
cavalos para o da fronteira, 1 barril de pólvora, 1 bandeira para o reduto da vila e 100$
para o fardamento das tropas (…). Tem igualmente servido com distinção os cargos da
República (…) sempre se distinguiu fazendo demonstrações e festividades públicas
que bem mostravam a sua fidelidade, entre estas tem em primeiro lugar as que fez em
atenção a feliz restauração de Pernambuco. Enfim, tem sido um cidadão útil,
manejando um grosso comércio e ao mesmo tempo bem digno Pai de família assaz
numerosa, mas não lhe tem faltado com a educação e princípios de Religião em que
bem se distingue (…) Acampamento do Chuí, 20 de agosto de 1818.155
155
Requerimento de João Francisco Vieira Braga de16.01.1840, Documentos Biográficos, BN-RJ.
411
Neste ínterim, a grande derrota na Cisplatina gerou certa frustração entre os empresários
escravistas e as insatisfações de ordem política e econômica que marcaram os anos 1830
estiveram entre os principais motivos da Revolta dos Farrapos, em 1835. 156 O movimento foi
liderado principalmente pelos estancieiros e alguns poucos charqueadores. Mas isto não foi
suficiente para colocar todos ao lado dos rebeldes. Ao contrário do que se pensou durante muito
tempo, a Guerra dos Farrapos esteve longe de se constituir num conflito na qual uma província
inteira lutou contra o governo central. A maior parte dos comerciantes marítimos e dos
charqueadores, assim como muitos estancieiros, colocaram-se na defesa da legalidade. O
charqueador Domingos de Castro Antiqueira (Barão de Jaguari) apoiou os legalistas fornecendo
duas peças de artilharia munidas dos necessários pertences – armamento que possuía em sua
estância. Enquanto isto, o seu parente Manoel Marques de Souza, futuro Conde de Porto
Alegre, organizava as tropas.157 Em março de 1836, os imperiais buscaram mais 2 artilharias
das 9 que se encontravam localizadas numa das charqueadas dos irmãos Rodrigues Barcellos. 158
O estancieiro e charqueador João da Silva Tavares, descrito pelo próprio presidente da
província como o “campeão da legalidade” defendeu ferozmente a monarquia junto com o seu
primo e também charqueador Anibal Antunes Maciel. O charqueador Alexandre Vieira da
Cunha, juntamente com seus parentes, recrutou aliados para combater os farrapos. Em
Jaguarão, o charqueador João Antônio Lopes também forneceu ajuda. Em Rio Grande, os
comerciantes José dos Santos Magano e Porfírio Ferreira Nunes despenderam muito dinheiro,
forneceram armamentos e franquearam suas embarcações para reforçar a resistência legalista. 159
156
As altas taxas sobre o sal importado no Rio Grande do Sul, a falta de uma política protecionista que tributasse
as carnes platinas desembarcadas no Rio de Janeiro e nos portos do nordeste, as secas que assolaram a região da
campanha na década de 1830, a cheia do São Gonçalo de 1834, entre outros aspectos, geraram perdas econômicas
importantes aos estancieiros e charqueadores. Três meses antes da Revolta Farroupilha, um charqueador escreveu
para outro colega queixando-se da “maldita safra” (Carta de Heleodoro Souza para Boaventura Barcellos. Livro
Registros Diversos n. 5, Pelotas, APERS). Os descontentamentos de ordem política eram diversos. Importantes
líderes militares como Bento Gonçalves da Silva e Bento Manoel Ribeiro estavam insatisfeitos por terem perdido
seus postos de comando da fronteira. Os rio-grandenses também queixavam-se da pequena representação na
Câmara dos Deputados (tinham 3 representates) e da oposição realizada pelo Presidente da Província da época
(LEITMAN, Spencer. Raízes socioeconômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979).
157
MOREIRA, Ângelo. Pelotas na tarca do tempo. Pelotas: s/ed., v. III, p. 65; 69.
158
MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 146.
159
MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 30; 37; 43, 66; José dos S. Magano, Documentos Biográficos, Coleção
Manuscritos (Biblioteca Nacional do RJ).
412
Trono Imperial, gravemente ameaçado pelos revolucionários, contra os quais reuniu
gente armada, prontificou peças de artilharia e fez todos os esforços a seu alcance, até
que, obrigado pelas circuntâncias, emigrou para esta Corte, desamparando todos os
seus bens, que tem sido destruídos, avaliando os danos causados pelos rebeldes em
mais de 80:000$ de réis.160
Neste sentido, quando o Exército imperial, sob o comando de Caxias, contou com maior
contingente no Rio Grande do Sul163, ele veio juntar-se aos legalistas que já estavam resistindo
aos farroupilhas durante anos. Portanto, se os legalistas não os tivessem apoiado e sustentado a
monarquia, dificilmente a guerra teria o desfecho apresentado no final, com os rebeldes
visivelmente derrotados.164 Nas demais províncias revoltosas do período, o papel das suas
respectivas elites proprietárias foi fundamental para a contenção dos movimentos sediciosos de
caráter mais popular. Na Bahia, no Pará, no Maranhão e em outras regiões, por exemplo, o
Império pode contar com as mesmas na manutenção da ordem e na repressão das revoltas.165
160
Requerimento de João Francisco Vieira Braga de16.01.1840, Documentos Biográficos, BN-RJ.
161
MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 15. Numa carta de 15.10.1835, Bento Gonçalves da Silva escreveu para o chefe
político uruguaio Manoel Oribe comunicando que Pelotas era a cidade rio-grandense onde se concentrava “um
punhado de facciosos capitaneados pelo sanguinário Silva Tavares” (Idem, p. 83-84).
162
Os farrapos também utilizaram o porto de Montevideu (GUAZZELLI, César A. B. A República Rio-grandense
e a praça de Montevideo (1836-1842). In: HEINZ, Flávio; HERRLEIN JR., Ronaldo. Histórias regionais do
Conesul. Santa Cruz: Edunisc, 2003, p. 147-166).
163
Isto aconteceu somente na década de 1840, após a pacificação das outras revoltas regenciais (RIBEIRO, José
Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército
Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de Doutorado. PPGHIS-UFRJ, 2009).
164
A vitória na Farroupilha contou com este tipo de ação e negociação, muito bem demonstrada por José Iran
Ribeiro, que, aliás, percebeu como o governo central negociava de forma diferente conforme os interesses, a
posição e a situação das elites regionais. Isto se dava exatamente pelo fato de que a vida política, os arranjos
familiares, as hierarquias sociais regionais, os recursos materiais e imateriais concentrados, eram distintos em todas
as províncias do Império.
165
Na Bahia, por exemplo, verdadeiras mílicias armadas e mantidas por grandes proprietários e senhores de
engenhos do Recôncavo ajudaram a garantir não apenas a Independência (1822-1823) como a violenta repressão
aos revoltosos da Sabinada (1837-1838) (SOUZA, Paulo Cesar. A Sabinada: a revolta separatista da Bahia
(1837). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 61-63).
413
Esta convergência de interesses entre o governo central e grande parte das elites
regionais foi facilitada pela continuidade das mesmas famílias nos espaços de poder locais e
provinciais numa relação de apoio à monarquia brasileira que vinha ocorrendo desde a época da
Independência. Conforme João Paulo Pimenta e Andréa Slemian o processo de Independência
no norte e nordeste do país encontrou importante resistência de alguns setores da sociedade e se
não fossem as muitas guerras com o apoio de parte importante das respectivas elites regionais o
projeto não teria se consolidado.166 Nas décadas posteriores, os novos arranjos institucionais
não se deram no sentido de afastar as mesmas elites regionais da influência política e do poder
econômico que elas mantinham, mas ao contrário. Elas foram trazidas para dentro do sistema
político monárquico primeiramente nos Conselhos Administrativos e, principalmente, nas
Assembléias legislativas provinciais, um espaço de reforço do seu poder regional, criado com o
Ato Adicional de 1834. Antes disso, uma parte delas, reunindo notadamente os indivíduos mais
influentes, já havia sido eleita para participar das Cortes de Lisboa e das Assembléias Gerais
dos primeiros anos do parlamento brasileiro.167
Ao que salve as diferenças regionais e a diversidade de projetos políticos, parte dos seus
interesses convergiam com os do Império. A manutenção da monarquia, da escravidão, da
unidade territorial e da ordem social local também fazia parte da agenda política da maioria
que, por intermédio dos espaços de mediação política abertos após a Independência, vinha
participando do governo da nação, exercendo um papel bastante importante no processo de
consolidação do Estado Imperial.168 Portanto, neste aspecto compartilho das ideias propostas
por outros historiadores no sentido de que o Império do Brasil resultou mais de uma negociação
166
“Valendo-se de extrema violência, o projeto de independência e unidade do Império do Brasil superava o seu
primeiro grande desafio. As guerras em torno de adesão, apesar de contarem com a decisiva participação do Rio de
Janeiro na contratação de exércitos mercenários estrangeiros e na organização de forças locais, mostraram como
aquele projeto conhecia, desde os últimos meses de 1822, significativo alargamento em sua área de influência e
aceitação para além das províncias do Centro-Sul. Afinal, os conflitos todos se deram em razão de falta e consenso
nas demais províncias, decorrente de uma pluralidade de posições de grupos políticos, entre as quais aqueles
favoráveis à independência se mostraram, mesmo no Norte-Nordeste, suficientemente consistentes para levar a
uma guerra. Em outras palavras, para que o uso da força pudesse ter eficácia na Bahia, no Maranhão e no Pará, era
necessário que a ideia do Império do Brasil tivesse considerável respaldo de grupos sociais”. (PIMENTA, João
Paulo G.; SLEMIAN, Andréa. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825).
Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 93-94).
167
Para uma análise deste processo ver DOLHNIKOFF. Miriam. Op. cit.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Política
provincial na formação da monarquia constitucional brasileira: Rio de Janeiro (1820-1850). Almanack Braziliense.
São Paulo, n. 7, mai-2008, p. 119-137.
168
Conforme Dolhnikoff, “tanto a elite paulista como as das demais províncias demonstraram disposição para
aderir ao Estado sediado no Rio de Janeiro, desde que encontrassem nele espaço satisfatório para a defesa de seus
interesses” (DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit., p. 54).
414
do governo central (por meio de sua elite política) com as elites regionais, do que uma
imposição de um projeto de um grupo minoritário contra as forças centrífugas provinciais. 169
Nos últimos anos, uma série de pesquisas vem constribuindo neste mesmo sentido.
Realizando recortes regionais distintos, utilizando-se de um leque diverso de fontes
documentais, contando com um grande número de novos trabalhos que permitam conhecer
melhor a complexidade da história brasileira e das especificidades provinciais no período, estes
historiadores colaboraram para que se construa um novo quadro sociopolítico acerca deste
tema. 170 Apesar de alguns pontos aparentemente discordantes e do uso de matrizes teóricas
distintas, estas pesquisas convergem em muitos aspectos. Primeiramente, a maioria dos
trabalhos não se reserva mais à análise exclusiva dos discursos oficiais, dos anais parlamentares
ou das biografias dos grande estadistas para compreender o mencionado processo histórico.
Além destes documentos, estes historiadores debrussaram-se sobre conjuntos de
correspondência, genealogias, inventários post-mortem, processos judiciais, periódicos e uma
série de outras fontes manuscritas. Em suma, eles devassaram os arquivos buscando analisar a
rica vida política do lado de fora do palácio real e do parlamento geral.
Um outro ponto comum entre estas novas pesquisas é que já não é mais possível pensar
nas elites regionais (reunindo nesta categoria principalmente os comerciantes, proprietários,
bacharéis e políticos mais notáveis de cada província) como passivas diante do processo de
consolidação do estado monárquico imperial ou como forças centrífugas prontas a
obstacularizar o mesmo. Além disso, como já foi dito, os autores compartilham do princípio da
negociação entre governo central e as elites regionais, da mediação política e da convergência
de interesses entre os diversos proprietários de terra espalhados pelo Brasil, como fator
importante na afirmação do Estado imperial brasileiro e na superação das suas divergências
169
DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; DANTAS, Mônica D. Partidos, liberalismo e poder pessoal: a política no
Império do Brasil. Almanack Braziliense. São Paulo, n. 10, Nov. 2009, p. 40-47. Numa linha semelhante ver
MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit., 2005. Recentemente, ver MARTINS, Maria Fernanda. Das racionalidades da
História: o Império do Brasil em perspectiva teórica. Almanack, n. 4, 2º sem. 2012, p. 53-61.
170
MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; GRAHAM, Richard. Op. cit;
GOUVÊA, Maria de Fátima. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; RIBEIRO,
José Iran. Op. cit.; FARINATTI, Luís A. Op. cit.; SODRÉ, Elaine. Op. cit.; ANDRADE, Marcos F. de. Elites
regionais e a formação do Estado Imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; ARAÚJO, Dilton de Oliveira. O tutu da Bahia (Transição conservadora e
formação da nação, 1838-1850). Tese de Doutorado em História, UFBA, 2006; RESENDE, Edna M. Ecos do
Liberalismo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção do Estado Imperial, Barbacena
(1831-1840). Tese de Doutorado, UFMG, 2008; KLAFKE, Álvaro. O Império na Província: construção do Estado
nacional nas páginas de O Propagador da Indústria Rio-grandense (1833-1834). Dissertação de mestrado,
UFRGS, 2006; MELLO, Evaldo C. de. A outra independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São
Paulo: Ed. 34, 2004. Ver também as coletâneas de textos organizados por JANCSÓ, Istvan. Op. cit.; COSTA,
Wilma P.; OLIVEIRA, Cecília H. de S. (Org.). De um império a outro: estudos sobre a formação do Brasil,
séculos XVIII e XIX. São Paulo: FAPESP, 2007.
415
políticas internas. Numa avaliação dos estudos brasileiros sobre o oitocentos e o impacto das
pesquisas de uma nova geração de historiadores, Carvalho teceu importante consideração que
certamente é válida para estes novos estudos:
No entanto, o caminho aberto por importantes trabalhos que seguiram esta mesma
perspectiva nos anos 1970 e 1980, como os do próprio José Murilo de Carvalho e Ilmar R. de
Mattos, ainda oferecem importantes referenciais e problemas de pesquisa que continuam atuais.
A importância da expansão cafeeira e sua ligação com a política imperial, por exemplo, foi
evidente. Um grupo de políticos fortemente aparentado com cafeicultores do Vale do Paraíba
fluminense e traficantes de escravos realmente encontrava-se em situação privilegiada para
exercer grande influência política.172 No entanto, estas novas pesquisas oferecem um novo
quadro interpretativo no qual é difícil pensar que este grupo estivesse em condições de impor
um projeto formulado exclusivamente pela fração conservadora de sua classe. O mais provável,
diante das muitas contribuições historiográficas dos últimos anos, é que a construção do Estado
Imperial brasileiro foi fruto de um projeto negociado e que envolvia fatores socioeconômicos,
171
CARVALHO, José Murilo. Apresentação. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila. O Brasil Imperial (1870-
1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. III, 2009, p. 9.
172
Neste sentido, refiro-me especialmente à clássica tese de MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema: a
formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 1990. Para considerações que divergem de alguns pontos
centrais da pesquisa do autor, ver DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. 2012.;
GRAHAM, Richard. Construindo uma nação no Brasil do século XIX. In: Revista Diálogos. Maringá: DHI/ UEM,
v. 5, n. 1, 2001; NEEDELL, Jeffrey. Formação dos partidos brasileiros: questões de ideologia, rótulos partidários,
lideranças e prática política (1831-1888). In: Almanack Braziliense. São Paulo, n. 10, Nov. 2009, p. 54-63.
416
culturais e políticos compartilhados por outras elites regionais brasileiras. 173 Penso que foi desta
convergência de ideias que o resultado final, o Império do Brasil, tomou força e tornou-se
viável. Estadistas habilidosos e inteligentes, os membros da elite política imperial sabiam muito
bem com quem contar nas diferentes regiões, onde muitos deles haviam atuado como
presidentes de província ou como magistrados, por exemplo. E na impossibilidade de as
conhecerem pessoalmente, possuíam contatos diversos envolvendo desde indivíduos que
conheciam do seu tempo de estudantes em Coimbra ou nas academias do Império, deputados
gerais e senadores que conviviam com os mesmos na Corte, além dos seus parentes.174 Em
suma, o governo central não possuía um “poder infra-estrutural”175 capaz de realizar uma
imposição de um projeto contra supostas forças centrífugas provinciais sem negociar com as
elites regionais e contar com as mesmas para sufocar as revoltas locais, manter a ordem social e
a unidade territorial.
173
Muitos membros das famílias das elites regionais concordavam com os projetos políticos do governo central e
os defendiam muito antes do Regresso Conservador, como os charqueadores pelotenses que lutaram ferozmente
contra os farroupilhas em 1835, por exemplo. Com relação a isto, ver também KLAFKE, Álvaro. Op. cit.
174
É importante afirmar a importância do Parlamento na governabilidade do Estado Imperial. Quando se observa o
tamanho das bancadas regionais verifica-se o quão fundamental era este tipo de negociação. Bahia, Pernambuco e
Minas (que conheceu uma expansão cafeeira significativa somente na segunda metade do século XIX) somadas
concentravam quase a metade das cadeiras do Senado e da Câmara, além de possuírem grande número de ministros
de Estado. A Bahia sozinha, por exemplo, reuniu 25% dos ministros durante todo o período monárquico
(MATTOSO, Kátia. Op. cit.). Nenhum projeto se concretizava sem o apoio dos políticos destas províncias.
175
MANN, Michael. O poder autônomo do Estado: suas origens, mecanismos e resultados. In: HALL, John (Org.).
Os Estados na História. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 163-204.
417
outros.176 No entanto, isto não elimina o seu papel do interior do mesmo processo. Em cada
localidade e cada região, grupos de indivíduos e famílias ocupavam o topo da hierarquia social
e disputavam os canais de mediação disponíveis encontrando-se dispostos a defender seus
interesses e negociar com os diferentes espaços de poder.177
Neste sentido, creio que um dos grandes motivos pelo qual o Império do Brasil foi
viabilizado referia-se ao fato de não afrontar questões caras aos grupos mais ricos e poderosos
que compunham as elites regionais como a monarquia e a escravidão e, mesmo com as
reformas centralizadoras que caracterizaram o Regresso e que tiveram alcance prático
discutível, não ameaçou a permanência das mesmas famílias ricas no topo das hierarquias
socioeconômicas regionais. 178 Com isto não quero dizer que não ocorreram importantes
rupturas de ordem institucional e que novos grupos e famílias de elite não se apresentaram no
novo cenário. É necessário que novos estudos continuem iluminando estas questões,
contribuindo com o conhecimento deste tema. Contudo, o processo de ruptura do Brasil
enquanto colônia portuguesa para uma nação independente e a formação do Estado Imperial foi
facilitado porque contou com uma importante dose de permanência das estruturas sociais (que
continuamente reproduziam uma hierarquia social excludente179), como também notaram Ilmar
de Mattos e José Murilo de Carvalho. 180
176
Numa comparação entre as elites políticas da Bahia, do Ceará e do Rio Grande do Sul, Vargas constatou que
cada uma delas reunia singularidades socioeconômicas e político-culturais que influíram no recrutamento de suas
respectivas elites políticas ao longo do período monárquico (VARGAS, Jonas M. “Um império de cruzes, togas e
espadas”: notas comparativas sobre as elites políticas do Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia no período
monárquico. In: HEINZ, Flávio M. (Org.). Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história. São
Leopoldo: Oikos, 2012, p. 115-144).
177
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
178
Além disse, como demonstrou Dolhnikoff, o Regresso não foi capaz de eliminar importantes instituições
criadas durante o “Avanço Liberal”, como as Assembléias Legislativas Provinciais e a Guarda Nacional
(DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.). Sobre as Assembléias ver também GOUVÊA, Maria de Fátima. Op. cit.
179
FRAGOSO, João L. R.. Homensde grossa aventura – Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
180
MATTOS, Ilmar R. Op. cit.; CARVALHO, José M. Op. cit., 2003.
418
CONCLUSÃO
Neste sentido, a passagem do século XIX para o século XX teria visto uma transferência
de investimentos nos negócios do ramo das carnes de Pelotas para outras regiões do Rio Grande
do Sul, sobretudo, para a fronteira sudoeste/oeste. Em 1908, por exemplo, Pelotas reunia apenas
31% dos estabelecimentos do Estado. Em 1920, a situação era ainda mais adversa. Das 31
charqueadas existentes no Rio Grande do Sul, somente 5 (16%) estavam em Pelotas, que agora
já não era mais o principal município charqueador, perdendo para Bagé, que tinha 6 fábricas
(Mapa 11). Isto destoava totalmente dos anos 1870, quando Pelotas certamente era responsável
por algo entre 80% e 90% do charque exportado pelo porto de Rio Grande. Além do mais, no
século XX, a presença do capital estrangeiro alcançava um nível que nunca havia sido atingido
no oitocentos. Das 31 fábricas arroladas em 1920, pelo menos 11 eram de propriedade de
europeus, uruguaios ou norte-americanos. Além disso, assim como no Rio da Prata, na trilha
destes novos investidores chegaram os primeiros frigoríficos na região, com destaque para as
companhias Armour e Swift.2
1
VOLKMER, Márcia S. “Onde começa ou termina o território pátrio”: os estrategistas da fronteira –
empresários uruguaios, política e a indústria do charque no extremo oeste do Rio Grande do Sul (Quaraí, 1893-
1928). Dissertação de mestrado em História, Unisinos, 2007; PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha:
frigoríficos, charqueadas, criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL, 1980. Para o Uruguai ver SEOANE, Pedro.
La industria de las carnes en el Uruguay. Montevideo: Tip. Industrial, Castelnuovo & Berchesi, 1926.
2
PESAVENTO, Sandra. Op. Cit.
419
pelas mesmas elites pelotenses que lideraram os negócios com o charque no oitocentos. No
mencionado processo de transição, não há nem rastro daquelas famílias charqueadoras
pelotenses que gozaram de uma distinção “aristocrática” e ocuparam o topo da hierarquia
regional entre os anos 1860/1880. 3 Nos anos 1910 e 1920, por exemplo, não se observa mais os
Simões Lopes, os Assumpção, os Moreira, os Antunes Maciel, os Silva Tavares, os Gonçalves
Chaves, os Rodrigues Barcellos, os Cunha entre os novos empresários do charque. Isto não
significa que estas famílias deixaram de ser elite, mas sim, que elas migraram de investimentos
num momento crítico e que foi responsável por derrubar grande parte dos charqueadores
pelotenses. Rastreando os herdeiros destas principais famílias, é possível perceber que alguns
dos mesmos se ocuparam de outras atividades econômicas não menos rentáveis.
Fonte: Adaptado pelo autor do original em VOLKMER, Márcia. Op. cit, p. 50.
3
Em Pelotas havia uma charqueada de propriedade da firma Moreira & Filhos. Não foi possível saber se ela
pertencia aos herdeiros de José Antônio Moreira, o barão de Butuí (PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 170). Em
caso positivo, trataria-se de uma exceção.
420
(também charqueador) e o Dr. Joaquim Augusto e Assumpção, filho do barão de Jarau, Costa
foi um dos incorporadores do Banco Pelotense, criado em 1906, e que teve importante papel no
desenvolvimento da economia regional durante a Primeira República. 4 Além deles, outros
membros de famílias charqueadoras, como José Júlio Albuquerque Barros, Pedro Luís Osório e
Lúcio Lopes dos Santos Sobrinho, também compuseram o corpo de diretores do Banco.
4
LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense & o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1985, p. 85-93.
5
PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 123.
421
Maciel Júnior e Simões Lopes tiveram papel importante na elite gaúcha que subiu ao
poder político nacional acompanhando Getúlio Vargas em 1930. O primeiro foi Secretário da
Fazenda do Rio Grande do Sul logo após a Revolução e, depois, Ministro da Justiça, entre 1932
e 1934. Entre 1934 e 1937, foi diretor da Carteira de Redescontos do Banco do Brasil. Quando
Vargas retornou ao poder em 1953, lá estava ele como Diretor do BNDE. O segundo foi
deputado federal por três legislaturas, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio (1919-
1922), presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (1926 a 1943), criador da
Confederação Rural Brasileira (1928) e Diretor do Banco do Brasil (1930-1943). Portanto, para
algumas das principais famílias charqueadoras do oitocentos é possível considerar que elas
ultrapassaram de vez o espaço regional de atuação política e atingiram o seu auge na elite
política nacional. Contudo, isto só veio a ocorrer numa época em que Pelotas já não era mais o
núcleo charqueador do Rio Grande do Sul e suas famílias já haviam abandonado estes negócios.
Nunca é demais lembrar que o visconde da Graça foi um dos pioneiros da mudança em
termos do perfil de investimentos apresentado pela elite empresarial do período republicano.
Nos anos 1870, quando ele começou a inverter os capitais da charqueada em ações de
companhias (como foi visto no capítulo 9) parecia estar antecipando em nível regional (e
agindo em sintonia com o que se fazia no centro do país) o que passou a ocorrer de maneira
mais intensa somente no século XX. Esta inversão socioeconômica reproduzia uma
metamorfose que já havia ocorrido no Rio de Janeiro entre os anos 1840 e 1870, quando
descendentes de famílias de comerciantes de grosso trato e de grandes fazendeiros fluminenses
foram, aos poucos, se tornando a elite financeira do país, sediada na Corte, costurando íntimas
alianças com a elite política imperial. 6 Portanto, tanto em termos políticos como em termos
econômicos, alguns membros das principais famílias continuaram atuando com importante
influência no nível regional e agora nacional.
Apesar da riqueza das mencionadas trajetórias no século XX, esta tese não pretendeu
estudar a metamorfose dos membros das famílias charqueadoras em empresários capitalistas. O
objetivo principal foi analisar apenas as famílias da elite charqueadora-escravista que ocuparam
o topo da hierarquia local e regional no oitocentos. Trata-se de uma geração de charqueadores
escravistas que não foi capaz de reverter uma situação de crise econômica que varreu muitos
empresários daquele ramo de negócios e que afetou o setor de forma mais drástica na década de
1880. Repito, esta derradeira crise no complexo charqueador escravista-pelotense não foi capaz
de eliminar as principais famílias da sua posição de elite regional, mas ela foi fatal em deixar
6
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. Op. cit, p. 143-164.
422
apenas na memória dos pelotenses uma época em que elite econômica regional e elite
charqueadora se confundiam com algumas de suas famílias. Tal época constituiu-se num ciclo
cujo auge durou somente algumas décadas – entre os anos 1850 e 1880. Portanto, assim como
aquelas principais famílias charqueadoras da primeira geração (no colonial tardio) que não
conseguiram resistir à Guerra dos Farrapos e as crises dos anos 1850 e 1860, estas principais
famílias charqueadoras nos anos 1870 e 1880, também tiveram que abandonar este ramo de
negócios na virada do século e, até mesmo, antes dela.
Isto abriu espaço para um terceiro grupo de empresários entrar em cena e deslocar seus
capitais para fora de Pelotas. O interessante é que os investimentos destes novos empresários do
charque no século XX já indicam algumas das limitações da geração escravista oitocentista.
Como foi mencionado, entre os novos charqueadores a presença de estrangeiros é mais
marcante. Numa fase mais desenvolvida do capitalismo no Brasil, eles começaram investindo
nas charqueadas e nos frigoríficos da região, revelando um antigo problema do setor: a falta de
instituições financeiras e de capitais disponíveis. 7 O abate de 100 mil reses por safra alcançado
pela charqueada São Carlos, localizada em Uruguaiana, indica o grande incremento de capitais
e mão de obra assalariada nesta nova era, uma vez que as grandes charqueadas escravistas dos
anos 1870 abatiam somente 20 mil reses em média. Além disso, a aproximação destes novos
estabelecimentos das vias férreas que levavam até o porto de Montevideu também indica que os
antigos charqueadores escravistas foram incapazes de resolver de forma satisfatória o problema
da barra do porto de Rio Grande e que a capital uruguaia foi uma saída neste sentido.
Outro problema claro é que não havia uma oferta de gado suficiente para garantir bons
níveis de abate anual de quase 40 charqueadas nos finais dos anos 1870. E tal problema ficou
mais dramático com o fim das guerras civis no Uruguai na mesma época, quando a sua
indústria pode recuperar-se, passando a consumir cada vez mais gado em suas fábricas, o que
restringia o abastecimento das charqueadas em Pelotas. A saída foi recorrer para os rebanhos do
norte do Rio Grande do Sul. Mas a distância destes para Pelotas era muito grande e prejudicava
o comércio de tropas. Isto ajuda a entender porque foram surgindo cada vez mais charqueadas
geograficamente mais próximas destas áreas de criação, como São Borja, Itaqui, Caxias, Santa
Maria, Passo Fundo e Júlio de Castilhos, por exemplo. Como observou Louis Couty, se Pelotas
tivesse menos charqueadas (talvez a metade), os seus proprietários poderiam ter conseguido
manter bons rendimentos em conjunturas adversas, podendo inclusive ter maior segurança para
7
Nesta época, firmas uruguaias instalaram-se no Rio Grande, assim como inglesas e norte-americanas. Para um
estudo de caso ver VOLKMER, Márcia. Op. cit.
423
realizar uma transição mais segura para o trabalho assalariado.8 A concorrência entre os
próprios charqueadores parece ter se acentuado, tendo os mais ricos e bem preparados drenado
os recursos dos menores.
Outro motivo ainda mais nítido pelo qual este processo de substituição das famílias no
grupo charqueador ocorreu foi que as principais famílias do ramo não conseguiram garantir de
forma satisfatória uma transição do uso da mão de obra escrava para o trabalho assalariado.
Além disso, estas principais famílias também não encontraram um mercado consumidor
alternativo ao do nordeste brasileiro, sofrendo grandes prejuízos por conta deste exclusivismo,
já que associavam-se a um espaço econômico que vinha enfrentando profundas crises por conta
do mercado internacional do açúcar. Portanto, as principais famílias estudadas nos últimos
capítulos foram a última elite charqueadora pelotense com grande importância regional, uma
vez que, na Primeira República, os sucessores no ramo parecem não ter atingido a mesma
notabilidade política e econômica se comparados aos seus correspondentes da época escravista.
Não existem muitos estudos sobre as novas elites no período, mas o certo é que a elite
econômica do Rio Grande do Sul, por volta dos anos 1920, já havia entrado em sua fase
industrial-financeira, ou seja, era uma elite mais capitalista, colocando os charqueadores para
um segundo escalão na hierarquia socioeconômica regional, muito embora os seus negócios
continuassem bastante diversificados.
Pelotas, assim como diversas cidades atlânticas, foi lugar de uma série de fenômenos
sociais gerais que afetaram o mundo ocidental na mesma época. Sua população sentiu os
impactos de tais transformações e teve que adaptar-se ao aceleramento e fim do tráfico atlântico
de escravos, aos diversos fluxos migratórios, ao processo de avanço de um Estado nacional
8
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque. Pelotas: Seiva, 2000 [1882].
424
recém constituído e que ainda aprendia a lidar com questões de ordem política e econômica, aos
problemas de abastecimento e moradia de uma população crescente, às flutuações do mercado
internacional, às novas correntes de ideias que vinham a alterar a visão de mundo de muitos
homens, entre outros fenômenos característicos da época. Juntamente com outros proprietários
rio-grandenses, os charqueadores tiveram que buscar saídas para estes e outros problemas que
surgiam e neste sentido também foram agentes ativos na condução do processo histórico.
É bem verdade que a elite pelotense também era formada por comerciantes atacadistas e
outros proprietários. Mas quando se analisa quem controlava os principais cargos políticos, os
títulos de nobreza e os diplomas de bacharéis, verifica-se que os charqueadores formavam o
grupo mais proeminente. A concentração de poder, riqueza e status foi um fator que contribuiu
para que estas famílias adquirissem uma “consciência de elite”. Tal fenômeno social conferia
um sentimento de superioridade às mesmas, o que se refletia no seu estilo de vida, nos
casamentos de seus filhos e na sua política sucessória. Além disso, estes homens de negócios
também atuavam no prestamismo local, no comércio de grosso trato, na criação de animais, na
fabricação do charque, ou seja, estavam quase onipresentes nestas atividades econômicas. Além
disso, uma profunda endogamia combinada com uma engenharia matrimonial que estabelecia
alianças com genros de outras províncias e até de outros países, demonstravam o seu prestígio
social local e regional. Pelo estilo de vida que levavam, pela importância dada a educação dos
filhos, pelos baronatos e a notabilidade política com que conduziam os negócios da urbe, eram
tidos pelos seus próprios pares como a “aristocracia da terra”.
425
Na parte inferior da pirâmide social, um grupo significativo de despossuídos, escravos e
homens livres pobres compunha bem mais da metade da população e interagia diariamente com
charqueadores e demais proprietários, embora os espaços de cada um e a distinção social entre
ambas as classes sempre fora bastante clara. No mundo do trabalho, os escravos eram as mãos e
os pés do charqueador. Seu apego aos mesmos foi algo tão forte que pode-se dizer que o último
capítulo da história destas elites, enquanto charqueadoras, coincidiu com o fim da escravidão no
Brasil. O trabalho escravo nas charqueadas foi marcado por uma complexa relação que
alternava estabilidade e conflito e que tomou ares ainda mais complexos na segunda metade do
século, quando os assalariados livres passaram a dividir o espaço de trabalho com os cativos,
mesmo que em menor número. Nesta relação, escravos e senhores elaboravam estratégias
diárias para defender seus interesses. Tendo que lidar com o fim do tráfico atlântico, a Lei do
Ventre Livre, as frequentes alforrias, o aumento do preço dos escravos, o crescimento do
número de conflitos entre trabalhadores e capatazes, os charqueadores pelotenses acabaram não
resistindo aos novos tempos. O episódio envolvendo os insubordinados ex-escravos (libertos
sob cláusula de contrato de trabalho) da charqueada do barão de Santa Tecla revelava o quão
difícil seria a nova era para os mesmos senhores que não conseguissem adaptar-se.
Uma outra leitura deve atentar para o fato de que se estas principais famílias não
conseguiram reverter a situação na qual as mesmas encontraram-se diante das crises que
afetaram as charqueadas nos anos 1880, elas foram muito hábeis em garantir uma nova vida
distante deste ramo de negócios. Não há uma metáfora mais clara em afirmar que elas pularam
do barco antes do naufrágio. Alguns membros destas famílias literalmente abandonaram
Pelotas. No capítulo 4 demonstrei como a população pelotense foi ficando mais pobre ao longo
do período monárquico, em contraste com uma riqueza ainda mais concentrada nas mãos dos
grandes empresários. Neste sentido, a manutenção daquelas famílias no topo da pirâmide esteve
sempre pautada por uma lógica de reprodução de uma hierarquia social excludente. Ao
drenarem as escravarias dos charqueadores de menores posses, por exemplo, assim como o seu
patrimônio por meio de vultosos empréstimos com hipotecas, estas famílias mais ricas também
conseguiram resistir melhor às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1870,
repassando seus prejuízo para outros setores da população.
Talvez isto deixe um pouco mais claro que esta elite pareceu não possuir um projeto de
sociedade num sentido mais abrangente, como as elites europeias da época. No caso de Pelotas,
as charqueadas trouxeram riqueza material e cultural, mas para quem? Projetos de
desenvolvimento agrícola e inclusão de outros setores sociais na economia para além dos
426
latifúndios e empresas escravistas só seriam forjados e levados a cabo de forma mais incisiva
no século XX. Neste sentido, é sintomático que a Primeira República foi um ponto de inflexão
do que viria a se tornar a economia e a sociedade rio-grandense na segunda metade do século
XX. O conhecido empobrecimento da metade sul do Estado – onde os latifúndios e as estâncias
de criação concentravam os investimentos principais – contrastava com o desenvolvimento
urbano, agrícola e empresarial da metade norte, região de colonização e imigração europeia
mais recente e que contou com importantes subsídios do Estado Republicano.
Neste sentido, num nível mais global, os charqueadores também foram vítimas do
próprio avanço da ciência e do desenvolvimento social que vinha marcando o período. As
melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora europeia, um maior cuidado com a
qualidade das carnes como forma de evitar doenças, as lutas dos operários dos setores das
carnes por melhores salários e condições, o fim do trabalho escravo nas Américas, eram sinais
que o mundo que os charqueadores ajudaram a criar estava começando a ruir. As principais
famílias da aristocracia do sebo conseguiram escapar da crise oitocentista, mas, para isso,
tiveram que abandonar as charqueadas – estabelecimentos fabris que, depois da Revolución del
Frío, viram-se condenados à extinção. Como afirmaram Barran e Nahum, o processo de
desaparecimento do tasajo e do charque da mesa das populações mais pobres foi se acelerando
de acordo com o desenvolvimento de um outro processo: a democratização das geladeiras.9 Mas
esta já é uma outra história…
9
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1967.
427
Anexo 1 – Listagem geral dos charqueadores e arrendatários de Pelotas com as respectivas siglas utilizadas nos Gráficos 3.1 e 3.2 e os períodos de
atuação nos negócios com o charque (A, B e C) utilizados no capítulo 9
Albino da Silva Fagundes (B) Domingos Guilherme da Costa (B, C) João Batista de Figueiredo Mascarenhas JBFM
Alexandre Vieira da Cunha AVC Domingos José de Almeida DJA João Cardoso da Silva JCS
Alfredo Augusto Braga (C) Domingos Pinto França Mascarenhas (B) João Duarte Machado JDM
Alfredo Gonçalves Moreira (C) Domingos Rodrigues DR João Francisco Gonçalves (C)
Anibal Antunes Maciel (B) Domingos Soares Barbosa (B, C) João Francisco Vieira Braga JFVB
Antônio Francisco dos Anjos AFA Eleutério Rodrigues Barcellos (B, C) João Guerino Vinhas JGV
Antonio José da Silva Maia (B, C) Evaristo Ferreira Nunes (C) João Jacintho de Mendonça JJM
Antônio José de Azevedo Machado AJAM Felisberto Ignácio da Cunha (Barão de Correntes) (B, C) João José Teixeira Guimarães JJTG
Antonio José de A. Machado Filho (B, C) Felisberto José Gonçalves Braga (B, C) João Maria Chaves (B, C)
Antônio José de Oliveira Castro AJOC Francisco A. Antunes Maciel (C) João Maria da Fontoura JMF
Antônio José de Oliveira Leitão (B) Francisco Alves Ribas (C) João Mendes de Arruda (B, C)
Antônio José Gonçalves Chaves AJGC Francisco A. G. da Costa (Barão de Arroio Grande) (C) João Nunes Batista JNF
Antônio José Gonçalves Chaves Filho (B) Francisco de Paula Ferreira FPF João Simões Lopes JSL
Antônio Machado Vianna AMV Francisco Fagundes de Oliveira (C) João Simões Lopes Fº (Visconde da Graça) (B, C)
Antônio Pereira da Cruz APC Francisco Teixeira Guimarães FTG João Theodosio Gonçalves (C)
Antônio Rafael dos Anjos ARA Francisco Xavier de Faria FXF João Vinhas Filho (B)
Antônio Soares de Paiva ASP Gabriel Gonçalves da Silva (C) Joaquim Antônio Chaves (B)
Ataliba Borges Ribeiro da Costa (C) Heleodoro de Azevedo e Souza HAS Joaquim da S. Tavares (Barão de S Tecla) (B, C)
Balthazar Gomes Vianna BGV Heleodoro de Azevedo e Souza Filho (B, C) Joaquim Guilherme da Costa (B)
Bernardino Bráulio Almeida (B, C) Honório Luis da Silva (B, C) Joaquim José da Cruz Secco JJCS
Bernardino Rodrigues Barcellos BERB Ignácio José Bernardes IJB Joaquim José de Assumpção JJA
Boaventura da Silva Barcellos (B) Inácio José de Oliveira Guimarães IJOG Joaquim J. de Assumpção (Barão dE Jarau) (B, C)
Boaventura Ignacio Barcellos (B) Inácio Rodrigues Barcellos IRB Joaquim Manoel Teixeira
Boaventura Rodrigues Barcellos BORB Ismael da Silva Ferreira (B) Joaquim Rasgado (Tenente-Coronel) (B, C)
Boaventura Teixeira Barcellos (B, C) Ismael Soares Leivas (C) Joaquim Rodrigues da Silva (B, C)
Cândido Antônio Barcellos (B) Jacinto Antonio Lopes (B, C) José Antônio da Silva Neves JASN
Cipriano Joaquim Rodrigues Barcellos (B) Jerônimo de Freitas Ramos (B) José Antônio Moreira (Barão de Butuí) JAM
Custódio Gonçalves Belchior (B) Jerônimo José Coelho (B) José Antônio Moreira Filho (C)
Custódio José dos Santos Moreira CJM João Alves de Bittencourt JAB José Bento de Campos (B, C)
Domingos de Castro Antiqueira (Visconde de Jaguari) DCA João Antônio Netto (B) José Bento de Campos Filho (C)
428
José da Costa Santos JCS Leopoldo Antunes Maciel (Dr.) (C) Manoel Soares da Silva MSS
José da Rosa Neves JRN Lúcio Lopes dos Santos (B, C) Manoel Soeiro Daltro (B)
José Ferreira de Araújo JFA Luís Pereira da Silva LPS Manuel Nunes Batista (B)
José Ferreira Gonçalves Ferrugem JFGF Luis Teixeira Barcellos (B, C) Miguel da Cunha Pereira MCP
José Gonçalves da Silva Calheca JGSC Luiz de Azevedo e Souza LAS Paulino Teixeira da Costa Leite (B, C)
José Gonçalves Lopes (B, C) Manoel Alves de Moraes MAM Pedro Lobo Vinhas (B, C)
José Ignacio Bernardes JIB Manoel Alves Vianna (B) Pedro Nunes Batista (B, C)
José Ignácio da Cunha (B) Manoel Batista Teixeira MBT Porfirio Honorio da Silva (B)
José Joaquim Gonçalves JJG Manoel Batista Teixeira Filho (B) Possidonio Mancio da Cunha (B, C)
José Maria Moreira (C) Manoel Bento da Fontoura MBF Simão Soares da Silva SSS
José Pereira de Sá Peixoto JPSP Manoel Bernardino Soares (B) Teodósio Pereira Jacome TPJ
José Pinto Martins JPM Manoel de Sá Araújo (B) Thomaz José de Campos (B)
José Rodrigues Barcellos JRB Manoel Francisco Moreira (B) Vicente Lopes dos Santos (B, C)
José Rodrigues da Silva Candiota (B) Manoel José de Oliveira Guimarães MJOG Virginio José de Campos (C)
José Tomaz da Silva JTS Manoel José Rodrigues Valladares MJRV Wenceslau José Gomes (B)
José Vieira da Cunha JVC Manoel Lourenço do Nascimento (B)
José Vieira Vianna JVV Manoel Pedro de Toledo (B)
Junius Brutus Cassius de Almeida (B, C) Manoel Raphael Vieira da Cunha (B, C)
A periodização é a seguinte: período A (1790-1830), B (década de 1850) e C (fim da década de 1870 e anos 1880). Todos os charqueadores com siglas pertencem ao
período A, sendo que alguns mantiveram-se nos negócios até o período B. Os períodos B-C significam que o charqueador atuou entre as décadas de 1850 e início dos
anos 1880.
Fontes: O ponto de partida para a elaboração desta listagem foi a relação de charqueadores pelotenses elaborada por João Simões Lopes Neto, em 1925, e publicada por
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 99-102. Pelo fato dessa listagem estar incompleta, cruzei a mesma com
outras fontes documentais. Primeiramente, rastreei em todos os inventários post-mortem de Pelotas a presença de charqueadas entre os bens dos inventariados, assim como as
transações públicas envolvendo as mesmas nos Livros de Notas dos Tabelionatos de Pelotas (APERS). Também cruzei estes dados com a Lista de qualificação de votantes de
Pelotas, 1865 (Fundo Eleições, maço 2, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul), a Lista de qualificação da Guarda Nacional, 1873 (Fundo Conselho de Qualificação da
Guarda Nacional, maço 77, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul) e a Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense – transcrição
gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)). Outra fonte utilizada foi um Manifesto assinado em 1848 pelos charqueadores pelotenses para que os
comerciantes rio-grandinos trouxessem os couros para serem pesados em Pelotas (Jornal O Rio-Grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4 apud TORRES, Daniel de Quadro. Rio
Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão do Curso de História. FURG, p.
32). A bibliografia sobre o tema também foi consultada para compor o grupo, como, por exemplo, os livros de Ester Gutierrez, Eduardo Arriada e Helen Osório. É muito
provável que alguns nomes tenham me escapado, visto a amplitude das pessoas que se dedicaram a tais negócios e visto os poucos vestígios deixados pelos mesmos nas
fontes. Contudo, os principais empresários do charque no período estão contemplados no trabalho.
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