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Capítulo seis

Voltando para casa

Muitas pessoas têm uma casa. Não são muitas que sentem que têm um lar.

Você assistiu ao filme E.T.? Lembre-se da cena comovente na qual o pequeno


extraterrestre aponta com seu dedo curvo para uma estrela e diz, com uma voz lamentosa,
“E.T. go home” (E.T. vai para casa). Quase todo mundo tem um profundo anseio pelo lar.
Podemos pensar nisso como um tipo de instinto de regresso ao lar. Ele é um lugar ao qual
sentimos que pertencemos. Ele sustenta uma sensação de presença confortável. Podemos
relaxar aqui. É um lugar onde nos sentimos seguros para abandonar qualquer pretensão,
um lugar para estarmos abertos e naturais. Lar, lá no fundo de todas as nossas memórias,
provavelmente ressoa com a qualidade boa do ventre onde nos aninhamos, nos
alimentamos e crescemos para a vida. Talvez lar seja, na verdade, a qualidade da mente
que encontramos sempre que existe uma atmosfera de benevolência, retidão e bem-estar.

Os monges budistas são chamados, às vezes, de sem-teto ou aqueles que têm uma
vida sem casa. De certa forma, essa interpretação pode ser bastante enganosa. É provável
que eles não tenham uma casa, porque eles vão de um lugar a outro e não possuem
moradia. Mas se eles vivem com um sentido de bem-estar, então eles obviamente não são
sem-teto.

Muitas vezes confundimos casa e lar. Um número enorme de pessoas não se


sentem em casa, mesmo dentro de suas próprias casas. A casa torna-se um lugar de
conflito e preocupação: problemas de família, pertences para guardar, hipotecas a pagar.
Muita gente tem uma casa. Mas nem todos sentem que têm um lar.

Nos ensinamentos budistas, existe uma meditação para retornar ao lar. É chamada
de Brahmā Vihāra. Costuma ser traduzida como Moradia Divina. Brahmā era o rei dos
devas. Deva significa ser radiante ou brilhante. Vihāra significa moradia ou residência.
Então Brahmā Vihāra significa moradia da radiância. Poderíamos até chamar de casa da
radiância ou talvez a radiância do lar.

Pense na ideia de radiância, não o brilho pintado em volta dos santos ou uma
fantasia especulativa sobre campos dourados, mas algo muito básico e realista. Quando
alguém está se sentindo muito bem, podemos dizer que essa pessoa está radiante. Sua
aparência brilha. Seus olhos cintilam. Existe uma presença de calma e de bem-estar ao seu
redor, uma certa energia serena. Se você fosse dizer para ele ou ela “sinta-se em casa”,
essa pessoa não teria problemas em fazer isso. Na verdade, com esse tipo de energia, ela
provavelmente se sentiria em casa em qualquer lugar. No ensinamento Brahmā Vihāra
existem quatro contemplações que podem nos levar a esse estado. Bondade amorosa,
compaixão, alegria empática e equanimidade são todos caminhos que podem nos levar de
volta para casa, para o lar.
Bondade amorosa

Imagine uma casa quadrada, de um só cômodo. É uma casa muito simples, e por
isso ela talvez pareça um pouco estranha. O que é diferente nela é que há quatro portas,
uma de cada lado, e cada porta dá para o mesmo cômodo. Nós também poderíamos
imaginar que existem janelas em cada um dos lados. Um brilho suave, caloroso, dourado,
que misteriosamente sussurra “lar” por todas as células do nosso corpo, gentilmente irradia
para fora de todas as janelas e portas. Algo maravilhosamente familiar ressoa em nossos
corações, nos convidando a entrar. Olhando para a porta exatamente na nossa frente,
vemos acima dela uma placa onde se lê “Bondade Amorosa”. Esse é o caminho de casa,
através da porta da bondade amorosa.

Bondade amorosa, ou mettā, como é chamada em páli, está bem distante das
fantasias de romances de arlequins e das cenas hollywoodianas de amor. É, na verdade,
um estado da mente, ou uma expansividade do coração, que pode genuinamente abraçar
todos do jeito que são. Quando a bondade amorosa está presente, existe um maravilhoso
calor e abertura em relação a todos os seres. Sentimo-nos tão à vontade e relaxados em
nós mesmos que nos sentimos à vontade e relaxados com todos os outros. Quando a
bondade amorosa está presente, estamos totalmente em casa.

Imagine aproximar-se desse lar radiante através da porta da bondade amorosa.


Começamos a focar em alguém com a sensação de abertura e amizade florindo em nossos
corações. Pode ser um momento muito mágico, como se essa pessoa estivesse fazendo
fluir um tesouro de vitalidade e amor que estava escondido em nosso ser. A radiância leva a
mais radiância, e brilhamos com uma sensação de que todas as coisas são possíveis e
boas.

Os antigos textos de meditação nos alertam sobre os perigos comuns dessa prática.
Por mais que houvéssemos começado relacionando-nos com um coração de bondade
amorosa, gradualmente, em nome do amor, podemos, às vezes, nos tornar possessivos e
controladores. Estávamos indo para a porta da bondade amorosa e, estranhamente, como
se caíssemos em um sonho ruim, percebemos que desviamos do caminho para um outro
muito diferente, um que está agora nos levando para longe da radiância livre e aberta da
bondade amorosa. Em vez de voltarmos para casa, ficamos cada vez mais emaranhados
numa confusão pegajosa de apego, barganha (Eu te dou isso, se você me der aquilo) e
exclusividade (Eu “amo” essa pessoa, mas não suporto aquela). Isso já aconteceu com
você?

A prática da bondade amorosa pode ser arriscada. Somos atraídos por um estado
maravilhosamente aberto, radiante, generoso e expansivo, mas acabamos em um
relacionamento sufocante. O que aconteceu? Se formos tolos o suficiente para tentarmos o
caminho complicado e, às vezes, enganoso, da bondade amorosa (você deveria perceber
que precisa ser um pouco tolo para poder despertar), descobriremos que a vida é muito
gentil. Para nossa surpresa, parece que teremos mais uma chance. Pausando por um
momento para vermos a confusão, poderemos, mais uma vez, sentir a radiância amigável
fluindo da casa. Apesar de tudo, não estamos tão longe de casa.

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