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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(2) 1997

POLÍTICA FUNDIÁRIA
oportunidades perdidas, revolução cultural
e lampedusa

JOSÉ JULIANO DE CARVALHO FILHO


Professor de Economia Agrícola do Departamento de Economia da e dos
Programas de Pós-Graduação em Ciência Ambiental e Nutrição Humana Aplicada da USP

certamente, significa uma mudança radical de cultura, cujo


A história da reforma agrária, no Brasil, é uma resultado é a agilização da reforma agrária, com enorme
história de oportunidades perdidas. ganho de qualidade.”
Fernando Henrique Cardoso (Brasil, 1997:17) A respeito das últimas medidas citadas pelo ministro,
o site do Incra1 apresenta a matéria “O que mudou (e por
que mudou) nas leis que regem a reforma agrária”, desta-

O acompanhamento do noticiário recente sobre a


implementação da política fundiária pode levar
à impressão de que, finalmente, a resolução da
questão agrária brasileira é um dos objetivos prioritários
cando o “fim da indústria das desapropriações”, a “des-
centralização da reforma agrária” e o “desestímulo
às invasões”. Por meio da Medida Provisória no 1.577 e
do Decreto no 2.250, ambos de 11 de junho de 1997, o
do governo. A série de medidas ultimamente publicadas governo introduziu várias modificações positivas para a
mostra que o governo está na ofensiva. Em artigo publi- implantação da política fundiária, praticamente “limpan-
cado na Folha de S.Paulo (18/07/97:1-3), o ministro ex- do” a agenda em tramitação no Congresso, ao mesmo tem-
traordinário de Política Fundiária afirma que “o governo po em que procurou restringir a ação dos movimentos
Fernando Henrique Cardoso vem desencadeando uma sociais pelo desestímulo às invasões.
verdadeira ‘revolução cultural’ dentro da reforma agrá- O resumo apresentado na página 2 da citada matéria
ria brasileira”. Nesse mesmo artigo, que anuncia o início diz o seguinte:
do Recadastramento Nacional de Imóveis Rurais e discute a “Medida Provisória n o 1.577 introduz as seguintes
sua importância, o ministro Jungmann destaca os diversos modificações:
programas e alterações da legislação agrária, criados para 1) Torna impossível o proprietário ou seu preposto não
agilizar a reforma. Referindo-se à reforma agrária, diz o receber a comunicação de vistoria: ela será publicada em
ministro: “São vários os programas criados para agilizá-la, jornal de grande circulação na capital do Estado em que
dar-lhe a necessária qualidade e também descentralizá-la, a se encontre o imóvel rural e não mais entregue pessoal-
exemplo do Lumiar (que leva assistência aos assentamen- mente, o que acelera a Reforma Agrária;
tos, o que significa mais qualidade), do Casulo (que envolve 2) Acaba com a chamada “farra dos juros compensa-
os governos estaduais e as prefeituras no processo, descen- tórios” de 12% ao ano sobre o valor da terra improdutiva
tralizando-o) e do Cédula Rural (que cria uma parceria com – o que gerava superindenizações e acarretava prejuízos
os próprios beneficiários da Reforma). de milhões de reais ao erário. É o desestímulo à indústria
Poderíamos citar, ainda, as mudanças na legislação agrá- das desapropriações;
ria, como o novo ITR, a participação do Ministério Público 3) Revê os critérios da avaliação das terras improduti-
nas ações de reintegração de posse, do rito sumário, a Medi- vas, tornando-os compatíveis com os preços de mercado
da Provisória no 1.577/97 e o decreto no 2.250/97. Tudo isso, – barateando, assim, a Reforma Agrária;

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4) Amplia para quatro anos a possibilidade de revi- bém levar ao entendimento de que está ocorrendo uma
são judicial das superintendências ou indenizações frau- “revolução cultural dentro da reforma agrária brasilei-
dulentas; ra”, como afirma o ministro. Será? Cabe questionar
5) Responsabiliza, civil, penal e administrativamente essas colocações?
o engenheiro agrônomo que fizer a avaliação do imóvel a O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão so-
ser desapropriado, caso se comprove superavaliação ou bre o histórico da implementação da política fundiária no
fraude na identificação das informações; Brasil – com ênfase no período que começa na década
6) Autoriza a União, Estados, Distrito Federal, autarquias dos 60 – e, desta forma, questionar a postura e as coloca-
e fundações instituídas pelo poder público a moverem ação ções do atual governo frente à questão agrária. A revisão
rescisória, a qualquer tempo, quando comprovado que a dos acontecimentos históricos a seguir apresentada pro-
indenização for flagrantemente superior ao preço de mer- cura evidenciar a relação entre as ações fundiárias leva-
cado do imóvel desapropriado; das a efeito pelos diversos governos da República e as
7) Delega aos Estados, mediante convênio, o cadas- questões políticas geradas pelo conflito agrário e pela atua-
tramento, vistoria e avaliação de imóveis rurais, desde que ção dos movimentos sociais. O objetivo explícito do arti-
sejam instituídos órgãos colegiados com a participação go é destacar o padrão histórico da implementação da
da sociedade civil. É mais um passo em direção à descen- política e verificar se a atuação do atual governo apre-
tralização da Reforma Agrária; senta diferenças significativas.
8) Cria a possibilidade de instituições de Comissões
Agrárias nos Estados; PADRÃO HISTÓRICO DA
9) Impossibilita a ‘maquilagem’ ou a fragmentação de POLÍTICA FUNDIÁRIA
imóveis, depois de realizada a vistoria.
A revisão histórica da implementação da política fun-
Decreto no 2.250, determina: diária no Brasil, bem como o acompanhamento dos fatos
As Entidades estaduais representativas de trabalhado- atuais relativos à questão agrária, provoca uma incômo-
res rurais e agricultores poderão indicar, ao órgão fun- da sensação de déjà vu. Parece existir um padrão repetiti-
diário federal (Incra) ou ao órgão colegiado (previsto na vo no qual a ocorrência de uma questão política relevan-
MP 1557), áreas passíveis de desapropriação para refor- te na área agrária induz uma reação governamental
ma agrária e estabelece que o órgão fundiário terá um agressiva que, por sua vez, leva à impressão de que ocor-
prazo de 120 dias para proceder a vistoria, sob responsa- rerão mudanças significativas no entendimento e na re-
bilidade administrativa. A realização da vistoria será solução da questão agrária. Conforme o caso, autorida-
comunicada à entidade representativa dos trabalhadores des são exoneradas, prometem-se rigorosos inquéritos,
rurais e das classes produtoras, a fim de que cada entida- afirma-se que desta vez os culpados serão punidos, insti-
de possa indicar um representante técnico para acompa- tuem-se novos programas, discutem-se mais verbas, alte-
nhar o levantamento de dados e informações. O proprie- ram-se dispositivos legais, nomeiam-se autoridades cujo
tário do imóvel rural terá um prazo de 15 dias, após o passado garanta o diálogo com os movimentos sociais e
recebimento do laudo de vistoria, para exercer o direito até ministérios são criados e/ou recriados.
de manifestação. O imóvel invadido não será vistoriado A dosagem destas medidas varia conforme a gravi-
até ser desocupado.” dade e as circunstâncias políticas do caso. Todavia, con-
As informações anteriormente destacadas sobre a im- trolado o nível de conflito no campo – este parece ser
plementação da política fundiária, somadas a outras – o objetivo principal da política no decorrer do tempo–,
como o anúncio de que o BNDES está criando linha de tudo volta ao que sempre foi. Prevalecem as forças
crédito para compra de terras e o aumento do volume de oriundas do latifúndio, a impunidade, a insuficiência e
recursos para o Programa Nacional de Fortalecimento da a ineficácia da política fundiária. A reforma continua
Agricultura Familiar – Pronaf, bem como os dados divul- sendo vista, no máximo, como política compensatória
gados pelo governo sobre desapropriações e aquisições e/ou assistencialista. Ou seja, a política fundiária – ins-
de terras e número de famílias assentadas (médias men- trumento de implementação da reforma –, embora con-
sais de famílias assentadas e de desapropriações e aquisi- tinue como objeto de muita retórica, permanece como
ções de terras expressivamente superiores a todos os de- política secundária e a reforma agrária não é alçada à
mais governos, metas anuais cumpridas e até previsão de posição de objetivo nacional. Quando muito, verifica-
superação das mesmas no final do mandato) –, podem se maior agressividade na política fundiária com a re-
levar a pensar que, de fato, desta vez a oportunidade de tomada de programas insuficientes de assentamentos,
implantar a reforma agrária não será perdida. Podem tam- que nunca puderam ser chamado de reforma. O con-

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junto de acontecimentos que envolveram o massacre nante do projeto de desenvolvimento do então conhecido
de trabalhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás é como Modelo de Substituição de Importações. Como tam-
um exemplo típico desse processo. Fatos muitos pare- bém esclarece o documento presidencial, nessa época
cidos ocorreram por ocasião do massacre de Corumbiara, “dezenas de projetos-de-lei de reforma agrária foram apre-
dos assassinatos de Chico Mendes e do Padre Josimo sentados ao Congresso Nacional. Nenhum foi aprovado.”
(hoje nome de assentamento) e, mais recentemente, com O final dos anos 50 e o início da década de 60 foi
a marcha dos trabalhadores rurais sem-terra para Bra- um período marcado por uma grande crise da socieda-
sília. As medidas governamentais atuais podem ser vis- de brasileira – política, econômica e social. Foi tam-
tas como conseqüência da importância política assu- bém época de intensificação do debate sobre os desti-
mida pela marcha. nos do país, com crescente participação popular. Foi
A interpretação aqui apresentada sobre a implementa- nesse período que ocorreu o chamado “debate clássi-
ção da política fundiária está sustentada por uma seqüên- co” sobre a questão agrária brasileira, com a participa-
cia de fatos verificados no decorrer da história. ção de vários e importantes intelectuais vinculados às
diversas forças políticas em confronto, tais como Al-
DOS PRIMÓRDIOS A 1964 berto Passos Guimarães, Caio Prado Jr., André Gunter
Frank, Ignácio Rangel e Celso Furtado, entre outros.
Como bem diz o documento presidencial destacado na Discutia-se a sociedade brasileira, suas origens e ca-
frase que inicia este artigo, “a história da reforma agrá- racterísticas (dualista ou não), bem como o seu futuro
ria, no Brasil, é uma história de oportunidades perdidas”. e soluções para a crise. As posições em conflito eram
Desde o período colonial até o início dos anos 60 do diversas e variavam desde a interpretação marxista or-
século atual, não havia política fundiária no Brasil. En- todoxa (tese sobre os resquícios feudais da sociedade
quanto outros países, entre os quais os Estados Unidos, brasileira no campo), passando pela crítica a essa mes-
resolveram de alguma forma as suas questões agrárias, o ma posição, no interior da própria esquerda, pela posi-
Brasil permaneceu sem enfrentar esse problema, de grande ção estruturalista e pela tese da dualidade básica
importância para o seu futuro como Nação soberana, de- (Rangel), até a posição conservadora e liberal baseada
mocrática e desenvolvida tanto no campo social, como na teoria neoclássica, para a qual a reforma da estrutu-
no econômico. A questão da terra chegou a ser discutida ra agrária brasileira não tinha sentido para o Brasil (A.
no país por ocasião da Lei de Terras de 1850 e na Campa- C. Pastore, Elizeu Alves). De qualquer forma, pró ou
nha Abolicionista, contudo, prevaleceram os interesses do contra, todas as posições realçavam a reforma. Assim,
latifúndio. dentre as chamadas reformas de base então discutidas,
A respeito do que ocorreu nos séculos XVIII e XIX, é a reforma agrária ocupou posição preeminente, polari-
interessante destacar a seguinte colocação, extraída do zando o debate político e acadêmico.
documento presidencial (Brasil, 1997): No campo e nas cidades, os movimentos sociais se
“Ainda colônia de Portugal, o Brasil não teve os mo- organizavam e avançavam. Especificamente no meio ru-
vimentos sociais que, no século 18, democratizaram o ral, verificava-se um crescimento importante na organi-
acesso à propriedade da terra que mudaram a face da zação dos trabalhadores com a fundação da Confedera-
Europa. No século 19, o fantasma que rondou a Euro- ção Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag
pa e contribuiu para acelerar os avanços sociais não (1963) e o ressurgimento das Ligas Camponesas (1954 a
cruzou o Oceano Atlântico, para assombrar o Brasil e 1964, quando foram colocadas na ilegalidade). Além das
sua injusta concentração de terras. E, ao contrário dos Ligas e do aumento do número de sindicatos decorrente
Estados Unidos que, no período da ocupação dos terri- da fundação da Contag, como esclarece João Pedro Stédile
tórios do nordeste e do centro-oeste, resolveram o pro- (1997), também atuavam as seguintes organizações de
blema do acesso à terra, a ocupação brasileira – que trabalhadores da agricultura: União de Lavradores e Tra-
ainda está longe de se completar – continuou seguindo balhadores Agrícolas do Brasil – Ultabs (1953-1964);
o velho modelo do latifúndio, sob o domínio da mes- primeiros sindicatos de assalariados rurais (baseados na
ma oligarquia rural.” legislação para os trabalhadores urbanos) em Itabuna
O modelo que até hoje prevalece no meio rural é aquele (BA), Campos (RJ), Usina Barreiros (PE) e interior de
oriundo dos interesses do latifúndio colonial, hoje “mo- São Paulo (1954); Movimento dos Agricultores Sem Terra
dernizado”, mas, como dantes, concentrador e excluden- – Master, no Rio Grande do Sul (influenciado pelo PTB –
te. Foi somente no período que se seguiu à Segunda Guerra 1958-1963); e um movimento de cunho pastoral da ala
Mundial, em 1945, que o país começou a discutir a reso- conservadora da Igreja Católica, criado para combater o
lução da questão agrária, principalmente como condicio- comunismo no campo (1962-1964).

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Com isso, as reivindicações dos trabalhadores do campo dentemente vinculadas à democratização do acesso à ter-
passaram a ecoar por toda a Nação e a incomodar as eli- ra. O convite do presidente foi formulado por Roberto
tes dominantes. Os conflitos cresceram em número e vio- Campos.
lência. Pressionado pelas forças à direita e à esquerda do A respeito desses acontecimentos, conta Zé Gomes:
espectro político, o governo, em 1962, criou a Superin- “Tão logo começaram a vazar as primeiras notícias (como
tendência de Política Agrária – Supra, encarregada de exe- sempre acontece quando se trata de temas polêmicos afe-
cutar a reforma agrária. As forças à esquerda, embasadas tando interesses poderosos) de que uma proposta de RA
na participação popular, predominaram. Seguiram-se a estava sendo cogitada pelo Governo, que tivera nesse pro-
aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural (março de cesso exatamente um pretexto para desferir um golpe
1963), regulando as relações de trabalho no campo e, em militar, o mundo começou a vir abaixo.
13 de março de 1964, a assinatura do decreto que previa - ‘Precisamos começar a conspirar de novo’, vocife-
a desapropriação, para fins de reforma agrária, das terras rou o presidente da Sociedade Rural Brasileira, Sálvio
localizadas nas faixas de dez quilômetros ao longo das Pacheco de Almeida Prado.
rodovias, ferrovias e açudes construídos pelo governo - ‘Esse Ibra (o Instituto de Reforma Agrária, o órgão pro-
federal. Por fim, no dia 15 de março do mesmo ano, o posto para executar a RA) ‘é um filho da Supra’, disse o
então presidente da República, João Goulart, encaminhou irado Carlos Lacerda, um dos três governantes que, na área
mensagem ao Congresso Nacional propondo um conjun- civil, tiveram maior participação na derrubada de Jango.
to de providências consideradas “indispensáveis e Era apenas o começo de uma nova luta – e da respec-
inadiáveis para atender às velhas e justas aspirações po- tiva frustração – que se repetia com as mesmas caracte-
pulares”, entre as quais, e com realce, a reforma agrária. rísticas, argumentos e personagens daquela que tivera
O que aconteceu depois? Houve o golpe militar e o presi- lugar em São Paulo, com a Revisão Agrária.
dente foi deposto. Entre as razões apresentadas para o De novidade surgia no cenário apenas a obstinação
golpe, como não poderia deixar de ser, estava a reforma de Castello Branco (transvestido de reformista por
agrária, que implicava a democratização do acesso à ter- motivos que até hoje merecem ser melhor investiga-
ra e do poder. As forças à direita predominaram. dos por algum cientista social), com a retaguarda inte-
O desenlace da crise de 1964 acarretou a perda de uma lectual de Roberto Campos, nosso embaixador em Wa-
das mais relevantes oportunidades para implantar a re- shington” (Silva, 1966).
forma agrária. A sua realização, nessa época, causaria um Apesar dessas reações, o grupo de trabalho presidi-
importante efeito positivo no desenvolvimento econômico do pelo ministro Campos apresentou rapidamente re-
e social, beneficiando, em particular, o desenvolvimento da sultados, concretizados em um projeto-de-lei. Após a
agricultura e o perfil da distribuição de rendas e riquezas. aprovação do projeto pelo Congresso Nacional, o pre-
sidente da República sancionou a Lei n o 4.504, ou seja,
O PERÍODO MILITAR o Estatuto da Terra.
A política fundiária que marcou o período militar
A ditadura militar instalou-se e, com ela, começou o caracterizou-se pela não implantação da reforma pos-
ciclo de generais presidentes, que durou 21 anos. A Junta sibilitada pelo Estatuto. A opção, como substitutiva da
Militar que assumiu o poder – como relata o velho, hon- reforma, foi feita pelos projetos de colonização na fron-
rado e combativo José Gomes da Silva em seu livro pós- teira norte (principalmente) e pelos chamados “proje-
tumo A reforma agrária na virada do milênio – anunciou tos especiais”. São dessa época os seguintes programas:
“num lacônico comunicado que a revolução tinha sido feita Programa de Integração Nacional – PIN (1970); Pro-
para ‘realizar as reformas necessárias ao lado do comba- grama de Redistribuição de Terras e de Estímulo à
te à corrupção e à infiltração comunista’” (Silva, 1966:30 Agroindústria do Norte e Nordeste – Proterra (1971);
e seg.). Para surpresa de todos, não se sabe se devido ao Programa Especial do Vale do São Francisco – Provale
passado então recente dos conflitos no campo e/ou por (1972); Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais
determinação do primeiro presidente militar, Castello da Amazônia – Polamazônia (1974); Programa de De-
Branco, em meio à repressão e aos Atos Institucionais, senvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste –
surgiu a informação de que o governo estava preparando Polonordeste (1974), além de outros, como os chama-
um programa de reforma agrária. Além disso, havia notí- dos “baixa renda” Inan e Emater, PNBB, Procanor,
cias de que, para colaborar na elaboração do que viria a Polocentro (este dedicado à expansão da agricultura
ser o Estatuto da Terra, tinha sido convidado um grupo moderna nas áreas de cerrados), etc.
de Campinas, do qual faziam parte pessoas como o pró- Em geral, do ponto de vista das populações pobres e
prio Zé Gomes, Carlos Lorena e Fernando Sodero, evi- sem terra, com pouca terra e/ou com acesso precário a ela

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– público típico de reforma agrária –, as avaliações efe- DA REDEMOCRATIZAÇÃO AOS DIAS ATUAIS
tuadas sobre esses programas2 mostraram a ineficácia da
ação governamental para beneficiá-las. O acesso precá- Com o advento da então chamada “Nova República”,
rio à terra, a insuficiência de terra, as falhas das políticas a seqüência dos fatos também evidencia a semelhança que
de apoio (fomento, crédito, extensão rural, etc.) e as rela- se está querendo destacar.
ções sociais predominantes nas áreas foram as principais Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral, sus-
causas apontadas para o fraco desempenho das intervenções. tentado por uma coalizão política contraditória, compos-
Nos primeiros 15 anos de vigência do Estatuto da Ter- ta pelas forças envolvidas na campanha das eleições di-
ra, foram beneficiadas apenas 9.327 famílias em projetos retas e facções políticas conservadoras. Foram definidos
de reforma agrária e 39.948 em projetos de colonização. os objetivos nacionais do novo governo, figurando entre
A concentração fundiária cresceu. eles a reforma agrária. O presidente eleito confirmou este
No fim do período da ditadura militar, ocorreu o agra- objetivo quando definiu seu ministério (11/03/1985). Na
vamento do conflito fundiário, em decorrência do pro- ocasião, Tancredo Neves anunciou tanto a criação de um
cesso de modernização conservadora da agricultura bra- novo ministério para os assuntos fundiários, como indi-
sileira.3 Além das áreas tradicionais, o recrudescimento cou Nelson Ribeiro para ocupar a nova pasta. O novo
do conflito acompanhou a expansão da fronteira agríco- ministro, que contava com o apoio de parte expressiva
la. Paralelamente a estes fatos, embora ainda incipiente, dos movimentos sociais, chegou ao poder resguardado pela
crescia a organização dos trabalhadores expulsos da ter- confiança de uma das forças mais importantes pró-refor-
ra. A Comissão Pastoral da Terra – CPT foi criada em ma, ou seja, a Igreja Católica, que na época era fortemen-
1975 pela ala progressista do clero católico. O Movimen- te marcada pela sua ala progressista. Em 30 de março de
to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, oriundo 1985, foi criado oficialmente o Ministério da Reforma
das comunidades patrocinadas pela CPT, foi fundado em Agrária e Desenvolvimento – Mirad. Com o falecimento
1984. O ato de fundação contou com representantes de de Tancredo, o vice-presidente, José Sarney, tomou pos-
16 estados. se da Presidência da República e confirmou tanto o mi-
Diante dos fatos, o governo militar tomou uma série nistério como os compromissos anunciados por Tancredo.
de medidas semelhantes às atuais: criação do Ministério Nelson Ribeiro assumiu o Mirad e indicou, para a presi-
Especial de Assuntos Fundiários – Meaf (1982); nomea- dência do Incra, José Gomes da Silva, em quem as forças
ção de um general vinculado ao sistema de segurança pró-reforma agrária depositavam total confiança.
nacional para ministro (naquela época de militarização da Em 30 de maio de 1985, no IV Congresso da Confede-
questão agrária, o importante não era o diálogo com os ração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura –
movimentos sociais); criação do Programa Nacional de Contag, o presidente e seu ministro lançaram a Proposta
Política Fundiária (1982); lançamento das bases do Sis- do Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA. A se-
tema Fundiário Nacional; reestruturação do Incra; cria- qüência dos fatos ocorridos entre o lançamento da pro-
ção do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins posta do PNRA até a extinção do Mirad ainda está na
– Getat (1980); reformulação do Imposto Territorial Ru- memória de todos. Contudo, destacam-se aqui alguns
ral (1979); instituição do usucapião especial (1981); im- desses eventos: foram elaboradas 12 versões do Plano; o
plementação de programas específicos para agricultores processo foi altamente conflituoso e radicalizado; as for-
familiares, principalmente no Nordeste e Centro-Oeste; e ças conservadoras contra-reforma, por meio da chamada
anúncio (com muito alarde) de um amplo programa de União Democrática Ruralista – UDR, adquiriram expres-
distribuição de títulos de terras (um milhão), por meio de são e pregaram o uso da força para resistir à reforma agrá-
ações discriminatórias e arrecadatórias, desapropriações por ria (como os leilões de gado para a aquisição de armas); o
interesse social (pouco utilizadas), aplicação do usucapião número de conflitos aumentou: o PNRA, bastante modi-
especial, compras de terras e projetos de colonização e ati- ficado, foi aprovado em outubro de 1985; os planos re-
vação do ITR (atualmente fala-se o mesmo sobre o ITR). gionais de reforma agrária, entregues ao Planalto em ja-
Considerando o período dos governos militares (1964- neiro de 1986, tornaram-se efetivos apenas em maio e sem
1985), o total de famílias assentadas atingiu a cifra de definição de áreas prioritárias; estes últimos planos fo-
77.465, com média mensal de 307 famílias, a grande ram assinados em duas etapas, sendo que a segunda foi
maioria em projetos de colonização. Evidentemente, a forçada por um assassinato de repercussão – a morte do
oportunidade foi perdida. Padre Josimo Moraes Tavares, coordenador da CPT do
Dessa forma, a questão foi contornada sem alterações Bico do Papagaio; o ministro e seu presidente do Incra
significativas da problemática agrária e o país chegou à foram “desestabilizados” e deixaram seus cargos (chegou
tão esperada redemocratização. a ocorrer até nomeação de um presidente do Incra à reve-

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lia do ministro e sem compromisso com a reforma); ocor- sentava visível agravamento, crescendo o número de ocu-
reu uma sucessão de nomes para o Mirad, cabendo lem- pações e conflitos. Itamar Franco, apoiado pela coalizão
brar Dante de Oliveira e Marcos Freire, nomes vincula- de forças políticas pós-impeachment, nomeou Russo para
dos às forças progressistas; no final de 1987, o Incra foi o Incra, homem do antigo PCB, filiado ao PPS de Roberto
extinto e foi criada uma nova autarquia – Instituto Jurídi- Freire, na época líder do governo na Câmara. Além da
co das Terras Rurais (Inter); na ocasião também foram origem de esquerda, Russo também era portador de am-
instituídas diversas normas legais (leis, decretos e decre- plo currículo que o credenciava para o exercício do car-
tos-lei) criando restrições para os processos de desapro- go. O novo presidente assumiu o Incra procurando que-
priação, contrariando o Estatuto da Terra; em outubro de brar a conotação ideológica do debate sobre a reforma
1988 foi promulgada a nova Constituição, estabelecendo agrária, pregando a paz no campo, prometendo a reativa-
normas que significaram maior restrição para a execução ção do processo de assentamento e afirmando que havia
da reforma agrária, inclusive postergando a regulamen- condições políticas para tanto. Russo procurou reorgani-
tação da questão para lei complementar – a lei agrária, zar o Incra e retomar a reforma. Foi aprovado um progra-
que veio a ser aprovada muito depois. Por fim, abrevian- ma emergencial com meta de assentamento de 80.000
do a seqüência de fatos, o Mirad foi extinto, o Inter desa- famílias. Todavia, como aconteceu com outros ocupantes
pareceu e o Incra voltou a existir. Quanto à implementa- do cargo, enfrentou limitações, não apenas fora, mas tam-
ção do PNRA, foram atingidos apenas 10% da meta bém dentro do próprio governo, pouco podendo realizar
acumulada para 1988 (83.687 famílias assentadas). quanto à meta de assentamento do programa. Foram assen-
Mais uma vez, a questão foi contornada, mudou-se tudo tadas 23 mil famílias com a implantação de 152 projetos.
várias vezes e tudo permaneceu como dantes, inclusive a O final do governo Itamar foi polarizado pela implan-
impunidade. Chico Mendes foi assassinado em dezem- tação do plano de estabilização e pelo processo eleitoral.
bro de 1988. A questão fundiária foi novamente adiada, embora apre-
Sobre o período do governo Collor, não há muito o sentasse aceitação praticamente unânime entre os então
que falar, a não ser chamar a atenção para o fato de que, candidatos à Presidência da República. Tratava-se, con-
desde o turbilhão da entrada, passando pela crise política tudo, usando uma expressão de João Pedro Stédile, “de
marcada pela CPI, até o processo de impeachment, não uma unanimidade vazia” (Stédile, 1997:56).
houve implementação de política fundiária: o programa Fernando Henrique Cardoso apresentou-se ao elei-
de assentamentos foi paralisado; os assentamentos exis- torado com um programa fundamentado no Plano Real
tentes foram abandonados, o Incra foi desarticulado pela e sustentado por uma coalizão política em que se alo-
reforma administrativa; e as desapropriações ficaram blo- java grande parte das forças políticas tradicionalmente
queadas pela falta de regulamentação dos dispositivos conservadoras e anti-reforma. Este fato levantava dú-
constitucionais – ocorrida apenas no início de 1993; não vidas quanto à implementação de qualquer programa
houve nenhuma desapropriação de terras por interesse significativo de reforma. Todavia, quanto à problemá-
social para fins de reforma agrária. O conflito no campo tica agrária, afirmava o então candidato: “ ... Os con-
sofreu agravamento e cresceu o número de ocupações de flitos agrários existentes no Brasil são conseqüência de
terras improdutivas. uma situação histórica que as políticas públicas não
Foi no governo Collor que a Embrater (Empresa Bra- foram capazes de reverter. São necessárias, portanto,
sileira de Assistência Técnica e Extensão Rural) foi ex- profundas mudanças no campo. O governo Fernando
tinta, em nome da modernização do Estado. Hoje, o go- Henrique vai enfrentar essa questão, com vontade po-
verno tenta remediar as conseqüências do desmantelamento lítica e decisão, dentro dos princípios da lei e da or-
do sistema de extensão rural – antes formado pela Embrater dem. Com a meta de aumento substancial dos assentamen-
e Ematers, criando o Projeto Lumiar, que “visa implantar tos a cada ano, o objetivo é atingir a cem mil famílias no
um serviço descentralizado de apoio técnico às famílias último ano do seu governo. Essa é uma meta ao mes-
dos agricultores assentados nos Projetos de Reforma Agrá- mo tempo modesta e audaciosa, já que os assentamen-
ria” (Incra, 1997:2). A bem da justiça, cabe informar que tos nunca superaram a marca anual de 20.000 famílias”
o processo de extinção da Embrater começou no governo (Estado de S.Paulo, 1994:A14).
Sarney. Especificamente quanto às metas anuais, o programa
Já com referência ao governo Itamar Franco, é inte- afirmava: “Adotar uma política agrária realista e respon-
ressante lembrar o episódio da nomeação de Oswaldo sável, com o assentamento de quarenta mil famílias no
Russo de Azevedo para a presidência do Incra, em feve- primeiro ano; sessenta mil, no segundo ano; oitenta mil,
reiro de 1993. Na época, como uma das decorrências de no terceiro ano e cem mil no quarto ano” (Estado de
tudo o que já foi relatado, a questão social no campo apre- S.Paulo, 1994:A14).

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(2) 1997

O discurso, contudo, trazia em seu bojo uma contradi- gundo grande massacre de trabalhadores sem-terra, em
ção: ao mesmo tempo em que reconhecia a necessidade Eldorado de Carajás. O noticiário nacional e internacio-
de profundas mudanças no campo, o programa apresen- nal destacou a chacina, mostrando que houve execuções.
tado era impotente para tanto. O conceito de reforma agrá- De início, o episódio foi classificado como “coisas do
ria era claramente compensatório, sem pretensões de al- Brasil arcaico”, depois, frente à sua repercussão, o país
terar o padrão de concentração fundiária que sempre acompanhou uma seqüência de fatos bastante conhecidos:
existiu no campo. A professora Maria da Conceição Ta- declarações indignadas por parte das autoridades – presi-
vares usa a expressão “política compensatória, de corte dente e governador; promessas de “rigoroso inquérito” e
assistencialista” (Tavares, 1997:2-4). de que os criminosos seriam punidos – “seja lá quem for!”
Uma vez empossado – em pleno auge da implantação (até hoje não o foram); e anúncio de medidas de reper-
do Real –, o presidente deu razão aos que levantaram cussão por parte do governo – troca de autoridades e al-
dúvidas sobre a viabilidade política da sua própria pro- terações administrativas.
posta de reforma agrária, nomeando José Eduardo de Em resumo, o governo tomou uma série de atitudes,
Andrade Vieira para o Ministério da Agricultura, e Brasílio entre as quais destacaram-se a criação do novo Minis-
de Araujo Neto para o Incra, pessoas cujos históricos não tério Extraordinário de Política Fundiária – novamen-
as recomendavam para a implantação da reforma. Os te retirando do Ministério da Agricultura a responsabi-
movimentos sociais foram praticamente ignorados, em lidade de executar a política fundiária – e a nomeação
especial, o MST. O desempenho dessas autoridades, so- de Raul Jungmann para assumi-lo. O ministro Jungmann
mado à evidente má vontade da área econômica, compro- também é oriundo do PPS e apresentava condições de
vou que a meta de assentamentos para o primeiro ano de diálogo com os movimentos sociais. Enquanto isso, a
governo não seria alcançada. Nessa época, a tensão no tensão no campo se agravava e entidades como a Con-
campo mostrou-se crescente – multiplicando-se as ocu- federação Nacional da Agricultura – CNA recomenda-
pações de propriedades improdutivas pelos sem-terra – e vam uso da força na defesa da posse da terra (Gazeta
ocorreu o primeiro grande massacre de trabalhadores em Mercantil, 13/05/96:A-5).
Corumbiara. Assim, o tempo foi passando: o governo anunciando
Pressionado por uma questão política que crescia com algumas medidas (o conjunto de medidas, dessa fase até
o massacre e se evidenciava pela maior força dos movi- hoje, estão relatadas no início deste artigo), as ocupações
mentos sociais – o MST tornara-se o principal movimen- aumentando; os jornais dando menos espaço para o mas-
to dos trabalhadores rurais da história da questão agrária sacre e para o andamento dos “rigorosos inquéritos”; os
brasileira –, o governo mudou de posição e nomeou Fran- mesmos jornais e também televisões (principalmente)
cisco Graziano Neto para o Incra, nome da confiança pes- veiculando notícias que procuravam desqualificar os
soal da presidência e familiarizado com a questão agrá- movimentos sociais, inclusive lançando dúvidas sobre as
ria. Graziano conseguiu apaziguar os ânimos, reduzir vítimas; a produção familiar sendo depreciada; o gover-
tensões e encaminhar a questão da reforma dentro e fora no e seu ministro perdendo diálogo com os movimentos
do governo. Esta situação durou pouco, culminando com sociais (a relação com o MST foi praticamente rompida).
a saída de Graziano devido ao episódio “grampo/Sivam”. Ou seja, apesar dos atritos com os movimentos sociais, a
Foi nessa época (final de 1995) que foram decretadas as situação foi controlada e tudo voltou ao “normal”. Até
prisões de Diolinda Alves de Souza, Márcio Barreto e José que começa a surgir uma nova questão política: o MST
Rainha Júnior, todos ligados ao MST. Diolinda, acusada resolve fazer a marcha para Brasília.
de “formação de quadrilha”, foi presa e encaminhada para De início, da mesma forma que estava fazendo com o
o pavilhão 2 da Penitenciária Feminina do Carandiru. Movimento, o governo menosprezou o fato e ameaçou o
Márcio também foi levado para a Penitenciária. Rainha MST. Dois meses depois, dada a expressão que a marcha
tornou-se um foragido da lei. Crescia a tensão no Pontal assumiu, o mesmo governo recebeu a liderança dos sem-
do Paranapanema. A questão social voltava a ser tratada terra. Afinal, os “primitivos”, como diz o presidente, ou
como caso de polícia. “os resquícios do Brasil arcaico”, como querem outros,
O imediato de Graziano assumiu o Incra interinamen- haviam chegado a Brasília – com capacidade de mobili-
te e lá permaneceu por longos meses, terminando por ser zação popular. Contraditoriamente, os “resquícios” cres-
efetivado no início de 1996. Nesse período, o governo ciam! A eles somavam-se outros “resquícios”, estes mo-
anunciou que a meta de assentamentos para 1995 havia dernos, conseqüentes da atual fase “modernizante” e
sido atingida e até superada, no que, com razão, foi con- “globalizante” da economia nacional. Eram os excluídos
testado pelo MST, pela Contag e por alguns analistas. A do processo de modernização, os “inempregáveis”. A tem-
situação permaneceu dessa forma até a ocorrência do se- peratura em Brasília subiu, teve até peru na mesa do mi-

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POLÍTICA FUNDIÁRIA: OPORTUNIDADES PERDIDAS, REVOLUÇÃO...

nistro Kandir. A ave foi colocada pelos participantes de ciadas quando da marcha do MST a Brasília, no dia 17 de
uma manifestação da Contag. abril, por decisão do presidente Fernando Henrique.
A respeito da mudança da atitude governamental so- ‘Ele entendeu que não era o momento político correto,
bre a marcha, relatou o jornalista Jânio de Freitas, em ar- era melhor deixar que a sociedade visse qual a postura do
tigo publicado na Folha de S.Paulo (16/04/97:1-5): MST com o governo’, afirmou.
“Há mês e meio, o ministro da Reforma Agrária, Raul Segundo Jungmann, o governo estava aguardando su-
Jungmann, negava qualquer possibilidade de simples con- gestões dos trabalhadores rurais. ‘Como eles decidiram
versa com alguém do Movimento dos Trabalhadores Sem não negociar e resolveram radicalizar, o governo teve que
Terra, ao qual negava o seu reconhecimento pessoal e, usar de suas prerrogativas.’
como ministro, o do governo. A Presidência considerava ‘Não há um golpe nos movimentos sociais. Estamos
que a marcha a Brasília não atingiria seu objetivo, por- abertos à conversação. O que estamos fazendo é dar um
que Fernando Henrique não receberia a comissão dos sem- basta na corrupção e nos conflitos agrários e acabar com
terra. O senador Antônio Carlos Magalhães avisava que o conluio do Incra com as invasões e superavaliações de
não permitiria a manifestação dos sem-terra em frente ao terra’, disse o ministro.”
Congresso. Todas essas atitudes estão substituídas pelo Ora ... essa não é a forma de tratar as questões agrária
seu oposto. E ignora-se o significado de tamanho recuo, e social. Será que o governo pensa que isolando e enfra-
no qual resta apenas recuar sem expor a humilhação, é quecendo o MST acaba com a questão fundiária? Acaba
deixar fora da vista um embate que envolve mais do que com o conflito no campo? É isto que se chama de “revo-
as partes evidentes: alcança toda a ideologia em moda e lução cultural”? São atitudes desse tipo que levam ao “pri-
suas representações e fins entre nós.” meiro passo”4 que o presidente Fernando Henrique afir-
Voltar atrás não é necessariamente um defeito, pode ma ter dado para resolver o problema da terra no Brasil?
ser sabedoria ou uma virtude – reconhecimento de um erro. Não seria esta mais uma oportunidade perdida? Tanto pela
No entanto, o que se seguiu não foi nada virtuoso ou fru- atitude governamental frente à questão social como pelo
to de sabedoria. A marcha de Brasília foi um claro sinal caráter claramente compensatório do seu programa de
de aumento das tensões sociais não só no campo, mas tam- assentamentos? Este, não está sendo suficiente nem para
bém nas cidades. controlar o conflito rural. Não está havendo um divórcio
Em clima de grande desconfiança, o governo, afinal, entre as demandas sociais e a política fundiária?
recebeu os sem-terra e propôs uma comissão. Em segui- A respeito desse desequilíbrio entre a política gover-
da, os jornais relataram uma seqüência de desentendimen- namental e a realidade social, esclarece a professora Ma-
tos que resultaram na falta de acordo entre o governo e os ria da Conceição Tavares (1997:2-4) em artigo publica-
trabalhadores. Má intenção de ambos os lados? Tentati- do na Folha de S.Paulo: “Esse divórcio entre os interesses
vas de colocar o Movimento em uma “arapuca”? Radi- populares e as prioridades do governo explica por que o
calismo do MST? Tentativa governamental de apenas presidente afirmou (antes da chegada da marcha dos sem-
amainar os movimentos sociais? Não se sabe. O fato é terra a Brasília) que ‘o problema da terra, tão antigo quanto
que as autoridades não tiveram a capacidade de conver- o País, não poderá ser resolvido por um governo. Talvez
sar com os trabalhadores. As tentativas anteriores de iso- por uma geração’.
lar o MST devem ter pesado na balança. Obviamente, ninguém pretende que os 3 ou 4 milhões
Em seguida, para possibilitar negociações, supunha- de famílias sem-terra sejam assentados em um ou dois
se, Milton Seligman foi nomeado presidente do Incra e anos; mas é claro que o ritmo estabelecido pelo governo
tomou posse no dia 2 de junho. Dez dias depois, o gover- é totalmente insuficiente, pois requereria quase meio sé-
no anunciou a MP no 1.577 e o Decreto no 2.250 (vide culo para absorver a atual população dos ‘sem–terra’, na
início do artigo). Este, significando endurecimento com hipótese remota que essa conseguisse sobreviver a tão
o movimento dos sem-terra, aquela (louvável), com me- longa espera.” O governo garante que as metas da políti-
didas que facilitam a implementação da política fundiá- ca fundiária estão sendo atingidas, todavia, pouco mudou.
ria. Ou seja, o confronto se agravou. O Movimento rea- Enquanto isso, a tensão social no campo cresce, pois a
giu falando em outras formas de ocupação de terras. O UDR (e outras instituições do gênero) se reorganiza e a ocor-
pior dessa história é que o anúncio governamental foi feito rência de conflitos graves torna-se mais do que provável.
no mesmo dia em que ocorreu a – no mínimo estranha –
condenação de José Rainha em Pedro Canário (ES). Coin- CONCLUSÕES
cidência? A respeito disso, esclareceu o ministro, à Folha
de S.Paulo (13/06/97:1-4): “... Jungmann disse que as Seria possível continuar alinhavando outros aconteci-
medidas estavam prontas havia meses mas não foram anun- mentos para mostrar as semelhanças entre a situação vi-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(2) 1997

vida no governo Fernando Henrique e ocasiões anterio- basicamente em torno da atividade agrícola” (Tavares,
res. Todos reforçariam a sensação de que nada de rele- 1997:2-4).
vante ocorre ou ocorrerá no trato e na conceituação da Portanto, no que se refere à “revolução cultural”, tam-
questão agrária por parte das autoridades governamen- bém vale a explicação de Tancredi: nada de fundamental
tais e que, depois de algum tempo da ocorrência de um mudou.
fato político de relevância, acontece uma seqüência de Apesar dessas conclusões, algo de novo foi encontra-
fatos já conhecidos e tudo volta à “normalidade”. Ou seja, do na revisão dos fatos relativos ao panorama da questão
o não encaminhamento da solução da questão agrária no agrária brasileira. Trata-se do avanço recente dos movi-
Brasil, e a repetitiva perda de oportunidades. Tudo conti- mentos sociais, aos quais o país deve os poucos progres-
nua como dantes, até a ocorrência de uma nova situação sos verificados, incluindo o crescimento expressivo do
de gravidade suficiente para gerar uma questão política apoio da sociedade à reforma agrária.
importante e reproduzir o ciclo, confirmando, assim, o
“padrão Lampedusa” da política fundiária brasileira. A
referência aqui é para o escritor italiano Giuseppe Tomasi NOTAS
di Lampedusa, em seu romance O leopardo, quando o seu
personagem Tancredi explica a seu tio, personificação da E-mail do autor: jjcarvf@usp.br
1. http://www.incra.gov.br/serv/legis/apresent.htm (matéria copiada em 11/07/97).
nobreza latifundiária italiana, as razões de sua adesão às
2. O autor participou de estudos de avaliações nas regiões Nordeste e Centro-
forças republicanas: “ (...) Se queremos que tudo fique Oeste.
como está é preciso que tudo mude. Expliquei-me bem?” 3. Parte da revisão dos fatos aqui apresentada foi publicada pelo autor (Carvalho
Filho, 1996:9-12).
(Lampedusa, 1963:32). O perigo dos ciclos, inclusive para
4. Veja-se artigo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1997:1-11).
a democracia, é quando o divórcio entre as demandas
sociais e os interesses das elites poderosas se agrava e o
governo não atende à sociedade.
Não é possível concordar com a “revolução cultural” REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

afirmada pelo ministro, embora se reconheça a validade BRASIL. Reforma agrária – compromisso de todos. Brasília, Presidência da
das medidas que visam facilitar a implementação da po- República, Secretaria de Comunicação Social, 1997, p.17.
lítica fundiária e também a atitude louvável do ministro CARDOSO, F.H. “Reforma agrária: compromisso de todos”. Folha de S.Paulo.
São Paulo, 13/04/97, p.1-11.
Jungmann de procurar ouvir o meio acadêmico crítico à CARVALHO FILHO, J.J. de. “Déjà vu na política agrária?” Informações Fipe.
política governamental. Essa revolução não foi identifi- São Paulo, n.189, junho 1996, p.9-12.
cada na revisão dos fatos em função, principalmente do FOLHA DE S.PAULO. “Em pouco tempo”. São Paulo, 16/04/97.

conceito de reforma agrária que caracteriza o programa __________ . “Governo muda a lei e quer dar ‘um basta’ a invasões”. São Pau-
lo, 13/06/97; p.1-4.
do atual governo, ou seja, meramente compensatória e sem __________ .“O cadastro da terra”. São Paulo, 18/07/97, p.1-3.
relevância econômica. Revolução cultural haveria se o GAZETA MERCANTIL. São Paulo, 13/05/96, p.A-5.
governo reconhecesse o caráter estrutural da reforma, seu INCRA. Projeto Lumiar: assistência técnica nos assentamentos. Brasília, Minis-
tério Extraordinário da Política Fundiária - Diretoria de Assentamentos,
conteúdo econômico atual, sua relevância para a criação janeiro 1997.
de emprego, sua atualidade evidente para grande parte da LAMPEDUSA, G.T. di. O Leopardo. 3ª ed. São Paulo, Difusão Européia do Livro,
população excluída, sua potencialidade de geração e dis- 1963.
O ESTADO DE S.PAULO. “Mudanças dependem de reforma no setor público –
tribuição de rendas. Além disso, como afirma a professo- reforma agrária”. São Paulo, 25/08/94. p.A-14.
ra Maria da Conceição Tavares: “Uma reforma agrária SILVA, J.G. da. A reforma agrária na virada do milênio. Campinas, Edições
articulada com a política de desenvolvimento territorial e Abra, 1966.
STÉDILE, J.P. “A questão agrária”. In: LOCOME, W.(coord.). Espaço e Deba-
complementação agroindustrial constitui também uma das te. São Paulo, Atual, 1997.
poucas opções para a dinamização político-econômica do TAVARES, M. da C. “A questão agrária”. Folha de S.Paulo. São Paulo,
interior do País, das cidades de pequeno porte que gravitam 27/04/97, p.2-4.

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