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Leonilde Servolo de Medeiros

ATORES, CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO

DOSSIÊ
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Leonilde Servolo de Medeiros*

O artigo se volta para mudanças ocorridas nas quatro últimas décadas nas formas de organização dos tra-
balhadores do campo no Brasil, enfatizando disputas, convergências e impasses não só na relação entre os
próprios atores em processo de constituição, mas também com os mecanismos institucionais e políticas
públicas voltadas para o campo. Iniciamos com um breve histórico das mudanças que atingiram o meio rural
e, na sequência, discutimos a dinâmica política da representação das categorias agricultura familiar, trabalho
assalariado e, por fim, as faces contemporâneas da dinâmica da disputa fundiária. Procuramos mostrar como
essas categorias se entrecruzam e como a preocupação classificatória tende a esconder a complexa rede de
relações que articula diferentes segmentos do campo e suas organizações, cada vez menos perceptíveis como
universos estanques. Finalmente, tratamos do crescente protagonismo do agronegócio e suas implicações
para as disputas no campo e para a reconfiguração da questão agrária.
Palavras-chave: Representação política. Agricultura familiar. Assalariados. Conflitos fundiários. Agronegócio.

Nas quatro últimas décadas ocorreram e comunidades tradicionais, entre outras. Para
significativas mudanças no meio rural brasilei- a compreensão desse complexo processo, é fun-
ro, reconfigurando disputas, atores e significa- damental considerar as condições econômicas,
dos do que se convencionou chamar de ques- sociais e políticas que levaram à emergência
tão agrária. Elas caminharam lado a lado com de novas categorias, identidades e demandas
a construção de novas identidades, formas de que reconfiguraram o campo da representação
nomeação dos trabalhadores rurais, deman- política não só dos trabalhadores do campo,
das e formas convencionais de representação mas também dos segmentos patronais. Elas se
e participação política, com uma progressiva desenham num contexto em que se fortalece a
transformação nas instituições voltada para discussão sobre o papel da moderna agricultura
o desenho de políticas para a agropecuária e na economia, trazendo para o centro da dispu-
produção de novas configurações dos setores ta o significado do agronegócio e os rearranjos
dominantes nas áreas rurais. que sua consolidação e legitimação provocam
Para tanto, foram importantes tanto trans- no conjunto dos embates políticos que ultrapas- Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021
formações legais, configuradas na Constituição sam, e muito, os limites do agro.
de 1988, significativo marco da conquista de di- Na última década, essas disputas se in-
reitos por esses trabalhadores, quanto uma série tensificaram e sinalizaram claramente um re-
de políticas governamentais, tais como assenta- desenho das políticas para o campo. Em espe-
mentos de demandantes de terra; políticas de cial de 2016 em diante, a partir dos governos
apoio à agricultura familiar; regulamentações Temer e Bolsonaro, verifica-se o progressivo
para demarcação de terras de povos indígenas desmantelamento da institucionalidade ante-
riormente criada e só aparentemente consoli-
* Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Programa
de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimen- dada, trazendo à tona forças sociais e concep-
to, Agricultura e Sociedade. ções de rural que pareciam estar superadas.
Av. Presidente Vargas, 417, 8º andar. Cep: 20071-003. Rio
de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil. Uma das primeiras medidas do governo Temer,
leonildemedeiros@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-5030-8044 não por acaso, foi a extinção do Ministério do

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.43440 1
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Desenvolvimento Agrário (MDA), criado vin- muito subjacentes no debate político e que vol-
te anos antes, em 1996, no governo Fernando taram à cena pública por meio de um novo pacto
Henrique Cardoso. Suas funções foram trans- de poder. Neste novo contexto, os movimentos
feridas ou para o Ministério da Agricultura ou sociais tão ativos desde o final dos anos 1970
para a Casa Civil da Presidência da Repúbli- tiveram suas iniciativas políticas afetadas, com
ca.1 Com isso, ganhou novas cores uma antiga as organizações acossadas tanto pelos efeitos da
disputa sobre as formas de inclusão dos cha- crise econômica que vem desde 2008, quanto e,
mados “agricultores familiares” numa políti- talvez principalmente, pela crescente dificulda-
ca de estímulo à modernização e à lógica do de de diálogo com o Estado, de reconhecimento
mercado, reafirmando uma antiga tendência de suas demandas e em mobilizar suas bases.3
de secundarização dos seus segmentos mais Mais recentemente, os efeitos da pandemia da
frágeis. No caso da política de assentamentos Covid-19 só agravaram esse quadro.
rurais,2 que já vinha em declínio desde o segun- O presente artigo explora aspectos des-
do governo Lula, não só foi bloqueada, como sas mudanças. Seu suposto é a necessidade
passou-se a estimular a titulação definitiva dos de pensar os atores sociais como envolvidos
lotes dos assentamentos existentes e, com isso, em constantes reconfigurações e articulações
criar a possibilidade de devolver essas terras ao tanto entre si, por meio de suas organizações
mercado mediante venda legalizada, num mo- de representação, quanto em disputas políti-
mento em que a terra cada vez mais se valoriza, cas com opositores e com o Estado. Iniciamos
internacionaliza e financeiriza. Acelerou-se a com um breve histórico das mudanças que
regularização fundiária e, portanto, a titulação atingiram o meio rural nas últimas décadas.
de terras nas áreas com alta presença de pos- Na sequência, discutimos a dinâmica políti-
seiros, privilegiando os que controlam maiores ca da representação das categorias agricultu-
parcelas. Foram também suspensas as demar- ra familiar, trabalho assalariado e, por fim, as
cações de terras indígenas e de quilombolas. faces contemporâneas da dinâmica da dispu-
Essas iniciativas caminham lado a lado com a ta fundiária. Procuramos mostrar como essas
permissividade, denunciada na imprensa e por categorias se entrecruzam e como a preocu-
pesquisadores, em relação ao avanço do desma- pação classificatória tende a esconder a com-
tamento e indicam a centralidade da questão plexa rede de relações que articula diferentes
fundiária nos anos recentes e uma forte tendên- segmentos do campo e suas organizações e as
cia a ampliar a quantidade de terras sujeitas ao vinculações entre rural e urbano, cada vez me-
mercado em detrimento daquelas cujo uso foi nos perceptíveis como universos estanques.
garantido, pela própria Constituição Federal, Finalmente, tratamos do crescente protagonis-
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aos que nela viviam desde há muito. mo do agronegócio e suas implicações para as
Não são questões novas, mas temas há disputas no campo e para a reconfiguração da
questão agrária.
1
O MDA foi criado num contexto de intensas disputas
fundiárias, com o crescimento das ocupações de terra e
de emergência da agricultura familiar como ator político.
Além de ter sob sua órbita o Instituto Nacional de Coloni-
zação e Reforma Agrária (Incra), encarregado da política de
MODERNIZAÇÃO E EMERGÊNCIA
assentamentos rurais, também ficaram subordinadas a ele DE NOVOS ATORES NO CAMPO
as atribuições de políticas para agricultores familiares, até
então sob a órbita do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA). Ver, entre outros, Medeiros (2002).
Desde os anos 1950, mas em especial a
2
Uso esse termo e não reforma agrária porque ele me pa-
rece mais adequado para indicar o caráter pontual da polí- partir das políticas empreendidas pelo regime
tica de distribuição de terras, que foi feita, como veremos
adiante, assentando famílias envolvidas em conflitos mais
intensos, seguindo a lógica do Estatuto da Terra, de 1964, 3
O tema da complexidade da relação Estado e movimentos
mas também facilitando a concentração fundiária nas áre- sociais é tratado de forma bastante abrangente por Abbers;
as de maior interesse dos grandes capitais. Von Bulow (2011).

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militar (1964-1985), o campo brasileiro vem cidos como volantes, boias-frias ou clandesti-
passando por profundas alterações envolven- nos, viviam (e vivem) entremeando ocupações
do modernização tecnológica; criação de insti- temporárias nas áreas rurais, com outras igual-
tuições voltadas à pesquisa agropecuária, que mente precárias, nas áreas urbanas (constru-
tornaram possível, por exemplo, a ocupação ção civil, trabalhos domésticos). Longe de res-
dos cerrados, a introdução de novos cultivos quício do passado, a precarização do trabalho
– como a soja – e o fortalecimento de outros, no campo manteve-se ao longo das décadas.6
com presença tradicional na pauta de exporta- Os investimentos turísticos em áreas antes re-
ções em novas bases produtivas, como é o caso lativamente isoladas, a valorização das terras
da cana, café, algodão; instituição de mecanis- próximas a centros urbanos provocando forte
mos de crédito que facilitaram a inovação tec- especulação tiveram efeitos semelhantes em
nológica, mas também levaram a um intenso áreas antes habitadas por posseiros, também
processo de diferenciação social e econômica, contribuindo para o aumento de situações de
ao endividamento e perda de bens por parte pobreza e favelização. Da mesma forma, terras
de segmentos de agricultores; aceleração da habitadas por povos indígenas foram cada vez
ocupação de novas áreas, em especial no Cen- mais incorporadas ao mercado de terras, resul-
tro Oeste e Amazônia, mediante incentivos tando na sua expulsão ou mesmo dizimação de
fiscais; estímulo ao turismo como empreendi- grupos inteiros.
mento empresarial, atingindo áreas antes pou- Paralelamente e mostrando a complexi-
co exploradas (Delgado, 1985; 2012; Garcia; dade dos processos em curso, ganhou visibili-
Palmeira, 2001; Palmeira; Leite, 1998). dade uma ampla camada de agricultores, em
Esse processo, em suas múltiplas dimen- sua grande maioria proprietários de pequenos
sões, resultou em expropriação de diferentes lotes de terra que, desde os anos 1970, passa-
grupos sociais que viviam no meio rural, tanto ram a inscrever suas demandas na pauta sin-
em áreas de exploração antiga, quanto nas que dical. Enquadrados sindicalmente como traba-
foram sendo incorporadas pelos investimentos lhadores rurais, foram pouco considerados nos
de capital. Graças à mecanização do processo debates sobre a questão agrária nos anos 1950 e
produtivo e à introdução de insumos quími- 1960 e classificados como produtores de subsis-
cos, tornaram-se desnecessários trabalhadores tência, sem maior relevância econômica ou po-
morando no interior das propriedades.4 Muitos lítica. No entanto, em especial parcelas dos que
deles, tendo que sair das fazendas, passaram a viviam no sul do país, descendentes de colonos
viver nas periferias das pequenas cidades in- migrantes, conseguiram aderir ao processo de
terioranas e, arregimentados por empreiteiros, modernização, intensificando a diferenciação
passaram a realizar tarefas variadas, sem con- social, com muitos perdendo terras, outros se Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

trato formal e, portanto, sem acesso a direitos integrando às agroindústrias que se fortalece-
trabalhistas (Graziano da Silva, 1981).5 Conhe- ram nos anos 1970,7 outros ainda procurando
sobreviver em condições adversas, combinan-
4
Colonos, moradores, agregados, parceiros, foreiros eram
termos locais que indicavam situações em que o traba- do trabalhos na sua propriedade com venda de
lhador vivia dentro da propriedade, tinha acesso a um
pequeno lote de terra para plantar para sua subsistência, trabalhadores) foi eliminada em 2000, quando foi igualado
cuidava do produto principal da fazenda e ainda realizava o prazo entre rurais e urbanos por meio de uma mudança
uma enorme variedade de atividades de manutenção da do inciso XXIX do artigo 7 da CF de 1988. Disponível em:
propriedade, como limpeza de caminhos, recuperação de http://www.contag.org.br/index.php?modulo=portal&a-
instalações etc. (Palmeira, 2009; Stolcke, 1986). cao=interna&codpag=386&ap=1&nw=1. Acesso em: 20
jan. 2021.
5
Esses direitos foram assegurados desde 1963, com a apro-
vação do Estatuto do Trabalhador Rural, substituído pela 6
Ela se aproxima da situação que caracteriza o trabalho
Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que incorporou várias nos dias atuais, em diversos setores produtivos. Ver, entre
cláusulas da CLT. O FGTS foi estendido ao campo pela outros, Antunes (2018).
Constituição de 1988 e a prescrição bienal (direito de re-
correr à justiça até dois anos após a cessação do vínculo 7
Com destaque para a produção frutas para conserva, uva,
e não da violação do direito, como no caso dos demais fumo e aves e suínos. Ver Wilkinson (1986).

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ATORES, CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO...

força de trabalho em fazendas ou mesmo em na primeira metade dos anos 1980, se estende-
núcleos urbanos próximos. Por um lado, busca- ram por outros estados, não excluíam, em algu-
vam garantir renda, com a integração a merca- mas situações, a demanda por acesso ao lote de
dos mais amplos, de forma a se proteger do risco terras como parte de suas reivindicações. Mobi-
de sucumbir às dívidas e ter que se desfazer das lizações de pequenos agricultores por melhores
terras. Parcelas importantes desses agricultores preços, crédito, direitos previdenciários tinham
eram uma das bases da Confederação Nacional por horizonte, como antes apontado, por um
dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e, lado, manter-se na terra e, por outro, inserir-se
em seus espaços, desenvolviam demandas por numa dinâmica de mercado que trazia o risco
crédito e assistência técnica.8 do endividamento e da pauperização.
Esses processos, nas suas diferentes for- A essas lutas somavam-se diferentes for-
mas, constituíram um grande número de tra- mas de resistências que buscavam assegurar
balhadores sem acesso à terra. Se parte deles o uso da terra segundo formas guiadas pelo
migrou para as cidades (grandes e pequenas), costume, como é o caso do livre acesso aos
outros se organizaram, regra geral com apoio da babaçuais; aos castanhais; fundos de pasto;
Igreja Católica, por meio da Comissão Pastoral a defesa dos seringais; das lutas de posseiros
da Terra (CPT), e se reapropriaram de formas de em áreas de ocupação antiga. Nesse processo
luta desenvolvidas nos anos 1960, como ocu- há substantivas novidades: se alguns desses
pações e acampamentos para pressionar o Esta- atores emergentes já estavam organizados sin-
do (Sigaud, 2000; 2005; Sigaud; Rosa; Macedo, dicalmente, outros questionavam as práticas
2010). Nesse quadro, assumir a identidade de sindicais e buscavam mudar seus rumos ou
“sem terra” não era apenas não ter terra, mas mesmo criavam novos caminhos organizati-
se colocar politicamente como demandante de vos, ao mesmo tempo em que afirmavam suas
acesso a ela, pressionando o Estado. particularidades. Ou seja, no confronto com os
Frente a esse conjunto de mudanças, que com eles disputavam terras e com políti-
torna-se impossível pensar em trajetórias line- cas públicas que os desconheciam, traziam à
ares de categorias: uma mesma família ou até luz concepções distintas de uso da terra e de
mesmo um indivíduo pode estar em diferen- propriedade, que não se enquadravam nas for-
tes posições buscando melhores condições de mas legais existentes e, de alguma forma, as
reprodução social e econômica, o que colocou colocavam em questão (Almeida, 2006).
sensíveis desafios para a organização, tanto Não se tratava de luta contra o latifúndio
sindical, quanto sob a forma de “movimentos”. atrasado (embora às vezes fosse assim nome-
Desde os anos 1980, esses processos fi- ada), mas o resultado de uma reconfiguração
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caram visíveis como parte do crescimento das de atores e de formas de luta produzidas num
lutas sociais no país e das demandas por reco- novo contexto social, de intensa moderniza-
nhecimento de novos atores, que produziam ção, com crescente integração entre agricultu-
novas questões que se tornavam públicas (Ce- ra e indústria e intensa valorização de terras
fai, 2001). Elas foram constitutivas do processo que passam a ser objeto de investimentos tanto
de redemocratização e recolocaram a questão produtivos, quanto visando atividades turísti-
agrária na ordem do dia. Mesmo as greves de as- cas ou expansão urbana.
salariados que se iniciaram em Pernambuco e, Desde o final dos anos 1970, a realiza-
ção de sucessivos encontros de trabalhadores
8
Essas demandas já estavam presentes no II Congresso
da Contag realizado em 1973. Pouco depois, essa entida- de diversas inserções colocou em relação essas
de encomenda uma pesquisa a uma universidade para ter diferentes concepções, que produziram apro-
dados sobre a importância desses agricultores na produ-
ção de alimentos no país. Os resultados foram publicados ximações e estranhamentos. Tratava-se de um
em Graziano da Silva et al. (1978). Como veremos adiante,
esse é ainda um dos importantes temas de disputa política. momento de conformação de atores, mas tam-

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bém de disputas internas pela representação ção. Dessas iniciativas resultaram políticas
desses novos segmentos que emergiam e que que marcaram os anos 90 e o início dos anos
traziam questões, nem sempre de equaciona- 2000. Subjacentes a elas, cresceram disputas
mento simples, uma vez que colocam em jogo por representação e por formas de nomeação,
diferentes concepções de direitos e diferentes diferenciando atores.
modos de fazer valer suas demandas, em es-
pecial no que diz respeito a representações já
estabelecidas, como é o caso da sindical. Nes- AGRICULTORES FAMILIARES E
se contexto, tanto a ação de organizações não REARRANJOS NA ORGANIZAÇÃO
governamentais quanto as da CPT se combina- DOS TRABALHADORES
vam com diferentes vertentes dos movimentos
e organizações, num período rico de experi- Uma das principais mudanças das úl-
ências que valorizavam as identidades locais timas décadas foi a afirmação política da ca-
e suas particularidades, ao mesmo tempo em tegoria agricultura familiar, que provocou
que buscavam a linguagem legal para reivindi- importantes rearranjos no sindicalismo rural
car direitos (Medeiros, 2019). e nas políticas públicas (Medeiros, 2010; Pico-
Com a Constituição de 1988, marco de lotto, 2014; Picolotto; Medeiros, 2017). Já no
uma nova era da história brasileira em relação final dos anos 1980 e início dos 90, a catego-
à democratização e ampliação de direitos (tra- ria ganhou força a partir de pelo menos dois
balhistas, à terra, à seguridade social, à edu- processos que se entrecruzavam: por um lado,
cação), as lutas se ampliaram e passaram a setores dos chamados pequenos agricultores
usar a Carta Magna como referência para pos- canalizaram suas energias para fortalecer as
sibilidades de ampliação de direitos. Isso sig- “oposições sindicais”, articulação de sindica-
nificou, além de trazer para o espaço público listas críticos às práticas da Contag, considera-
novas questões, também a construção de no- das tímidas e incapazes de produzir mudanças
vas formas de relacionamento com o Estado, significativas na situação dos trabalhadores.
combinando a lógica do confronto com a da Essas “oposições”, no embate sobre adesão às
participação. O Estado deixava de ser perce- recém-criadas centrais sindicais, organizaram-
bido como um bloco monolítico e passava a -se na Central Única dos Trabalhadores (CUT),
ser olhado como espaço de múltiplas possibi- criando no seu interior uma Secretaria e, logo
lidades de abertura de canais de diálogo e de depois, um Departamento Nacional de Traba-
formatação de políticas públicas, capazes de lhadores Rurais, onde os pequenos agriculto-
atender demandas várias (Abbers; von Bulow, res tinham forte presença. Esse reordenamento
2011). No entanto, isso não se fazia sem filtros de representação não pode ser compreendido Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

e seletividade (Offe, 1984). sem considerar os diálogos com agências in-


Inovações em termos de mobilização se ternacionais, facilitados pelas relações com
desdobraram em grandes manifestações na- a Igreja Católica e com organizações não go-
cionais, que levavam a Brasília milhares de vernamentais (Medeiros, 2014). As iniciativas
trabalhadores de diferentes pontos do país internas ao campo sindical se cruzavam com
para encontros e apresentação de demandas debates acadêmicos e muitos intelectuais eram
ao governo federal. Manifestações massivas convocados para atividades de assessoria às
como Gritos da Terra, Marcha dos Sem-Terra, organizações (palestras, seminários, acompa-
Marcha das Margaridas, ocupações do Incra e nhamento de reuniões, pesquisas). Tratava-se
de prédios públicos, mobilizações indígenas de um debate tanto político como conceitual,
passaram a marcar o cenário político nacio- em que estava em discussão o estatuto da ca-
nal, numa combinação de pressão e negocia- tegoria “pequeno agricultor”, a de “camponês”

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e a de “agricultor familiar” (em oposição ao constituição, no final dos anos 1990, do Movi-
grande produtor, de caráter patronal). mento dos Pequenos Agricultores, que logo se
Em que pese a valorização da dimensão vincula à Via Campesina e se coloca no cenário
familiar da produção, o sindicalismo de traba- político a partir da identidade camponesa, de-
lhadores rurais se apoiava na definição legal que fendendo uma agricultura de bases agroecológi-
delimitava sua base: pelo Decreto-Lei 1.166, de cas, fundada no princípio da soberania alimen-
15 de abril de 1971, era considerado pequeno tar, hídrica, mineral, energética e territorial. Esse
produtor aquele que trabalhasse em regime de conjunto de princípios funda o “Plano Campo-
economia familiar, com área igual ou inferior a nês”, “um programa estratégico que pressupõe o
um módulo rural, podendo contar com ajuda campesinato e os povos originários e tradicionais
eventual de terceiros. No entanto, a diferencia- como a base do desenvolvimento do campo”.10
ção que marcou a agricultura, em especial no Com a Constituição de 1988 e sua re-
sul do país, afetou fortemente esse segmento e gulamentação por meio da lei 8629, de 23
trouxe ainda nos anos 1970 discussões em tor- de fevereiro de 1993, conhecida como “Lei
no da possibilidade de criação de uma tercei- Agrária”, as ambiguidades envolvidas no en-
ra faixa sindical, composta por produtores de quadramento sindical se multiplicaram. Pela
base familiar, que não se consideravam repre- Constituição, foram criadas três categorias de
sentados nos sindicatos de trabalhadores, com propriedade no campo, definidas em termos
sua amplitude, nem pelos sindicatos patronais, de tamanho (pequena, média e grande), subs-
controlados pelos grandes produtores. tituindo as categorias presentes no Estatuto da
Não temos como precisar quantitativa- Terra (minifúndio, latifúndio por exploração,
mente, mas diversos sindicatos que constitu- latifúndio por dimensão e empresa rural). A lei
íram as oposições sindicais no final dos anos de 1993 definiu a pequena propriedade como
1970 e início dos anos 1980 tinham como sua aquela que tinha até quatro módulos; média,
base segmentos de agricultores integrados a quando possuía de quatro a quinze módulos; e
mercados, com forte peso na base sindical do grandes, as com mais de quinze módulos. Pe-
DNTR/CUT. No entanto, esse segmento tam- las normas do enquadramento sindical, eram
bém era representado na Contag. Havia, pois, considerados trabalhadores rurais os que ti-
além de um recorte que envolvia concepções nham até um módulo, o que já não correspon-
políticas sobre o sindicalismo, também dis- dia à base real do sindicalismo. Esse impasse
putas políticas locais e regionais. Como resul- foi parcialmente resolvido pela Lei 9.701, de
tado, já no final dos anos 1990, surgiu uma 17 de novembro de 1998, que enquadrou como
Federação da Agricultura Familiar em Santa trabalhador rural quem tinha até dois módu-
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Catarina, que se se desdobrou numa federação los. Importante lembrar que se tratava de uma
regional e, no início dos anos 2000, na criação disputa que envolvia também bases dos sin-
da Federação Trabalhadores na Agricultura dicatos patronais e que se relacionava com as
Familiar do Brasil (Fetraf-Brasil), transforma- possibilidades de acesso ao Programa Nacio-
da, em 2016, na Confederação Nacional dos nal de Fortalecimento da Agricultura Familiar
Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (Pronaf), criado em 1995 e primeira política
Familiar do Brasil – Contraf/Brasil/CUT), em agrícola direcionada especificadamente para
2020 contando com mais de 900 sindicatos e agricultores familiares, definidos com base na
organizada em 20 estados9. lei de 1993 (Schneider; Cazella; Mattei, 2004).
A disputa por representação desse seg- Impulsionada pela criação dessa política,
mento se torna mais complexa ainda a partir da a categoria “agricultor familiar” progressiva-
9
Disponível em: https://contrafbrasil.org.br/conteudo/ 10
Disponível em: https://mpabrasil.org.br/plano-campo-
quem-somos/. Acesso em: 20 jan. 2021. nes/. Acesso em: 15 jan. 2021.

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Leonilde Servolo de Medeiros

mente se generalizou, ganhou contornos mais significativa diferenciação no interior da camada


claros e sucessivas regulamentações, sendo a legalmente identificada como “agricultor fami-
mais importante delas a lei de agricultura fami- liar”, e muitos sequer acessam o Pronaf. Ainda
liar (lei 11.326 de 24 de julho de 2006). Nela, segundo Wesz Jr., o decreto 9064, de 31 de maio
consideravam-se como tal os que praticassem de 2017, que regulamentou a lei de 2006, criou a
atividades no meio rural, detendo área com, no Unidade Familiar de Produção Agrária e tirou de
máximo, quatro módulos fiscais (ou seja, bem seu âmbito categorias como pescadores, aquicul-
mais que a referência para o enquadramen- tores, extrativistas, silvicultores, quilombolas e
to sindical); utilizassem predominantemen- indígenas, o que afetou diretamente o número de
te mão-de-obra da própria família e tivessem estabelecimentos agropecuários familiares aptos
renda familiar predominantemente originada a receber o Pronaf.13 Além disso, há que se con-
de atividades econômicas vinculadas ao esta- siderar que muitos agricultores não foram clas-
belecimento; dirigisse o estabelecimento com sificados como familiares por terem renda pro-
sua família. Entre seus beneficiários foram in- venientes de atividades fora da propriedade, por
cluídos silvicultores; aquicultores; extrativis- um lado, ou, por outro, pelo aumento do uso de
tas; pescadores; povos indígenas e integrantes mão de obra contratada (Del Grossi et al. 2019).
de comunidades remanescentes de quilombos Esses dados indicam transformações
rurais e demais povos e comunidades tradicio- internas na categoria agricultura familiar e
nais, abrangendo, pois, grupos sociais que iam trazem desafios ainda pouco estudados em
bem além das tradicionais bases sindicais. Essa termos do que eles representam em termos de
legislação se desdobrou em uma série de pro- organização sindical. A diferenciação interna
gramas voltados para determinados segmentos se reflete no crescente uso acusatório pelos
ou temas considerados sensíveis.11 movimentos sociais, em especial os ligados à
Como apontado por Wesz Jr. (2021, p. 95), Via Campesina, da categoria agronegocinho,
no entanto, a principal linha do Pronaf, a de cus- referindo-se aos segmentos que crescentemen-
teio, foi progressivamente sendo concentrada em te se integram ao agronegócio. Incidem ain-
contratos de maior valor, “sobretudo naqueles da nas disputas no interior do Ministério da
com mais de R$ 50 mil, que representavam 31% Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)
em 2014 e passaram para 47% em 2018, enquanto em torno da unificação de políticas de apoio
nos contratos de menos de R$ 30 mil esses núme- ao desenvolvimento do agronegócio como um
ros quase se invertem, pois, no mesmo período, todo e não a determinado grupo de agriculto-
passa de 46% para 35%”. O mesmo autor mostra res. Exemplo disso são as recorrentes afirma-
que, embora os que recebiam Pronaf B fossem o ções da ministra Thereza Cristina sobre a exis-
grupo mais numeroso (55% dos agricultores fa- tência de uma só agricultura.14 Também apare- Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

miliares no Censo Agropecuário de 2006 e 70% ce quando se analisa como esses conflitos se
no Censo Agropecuário de 2017), fizeram 36% refletem localmente.15
dos contratos em 2018. Os que recebiam Pronaf de microcrédito, que inclui famílias com renda bruta anual
A tinham 21% dos recursos do Pronaf em 2000 de até R$ 23 mil e sem emprego de trabalho permanente.

e caem para 0,8% em 2018.12 Ou seja, há uma 13


A Unidade Familiar de Produção Agrária recobre famí-
lias que explorem uma combinação de fatores de produ-
ção, com a finalidade de atender a própria subsistência e
11
Dentre eles, o Seguro da Agricultura Familiar, o Progra- à demanda da sociedade por alimentos e por outros bens
ma de Garantia de Preço da Agricultura Familiar, o Progra- e serviços, e que resida no estabelecimento ou em local
ma de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacio- próximo a ele.
nal de Alimentação Escolar (Pnae), o Programa Nacional
de Produção e Uso do Biodiesel (Pbio), o Programa Na- 14
Disponível em: https://terezacristinams.com.
cional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pronater), br/2019/01/02/tereza-cristina-da-posse-a-secretarios-com-
o Programa Desenvolvimento Sustentável de Territórios -ministerio-fortalecido/. Acesso em: 15 jan. 2021
Rurais (Pronat), Programa Territórios da Cidadania (PTC). 15
Um interessante estudo que mostra a circulação de lide-
12
O Pronaf A é formado por agricultores familiares assenta- ranças entre diferentes organizações a partir de disputas
dos pelo PNRA ou beneficiários do PNCF; o Pronaf B é a linha locais é o de Teló (2014).

7
ATORES, CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO...

Ou seja, estamos num cenário de dispu- transformações sofridas pela agricultura bra-
tas por representação e por projetos políticos di- sileira antes descritas. O fato de os contratos
ferenciados, que trazem para o centro do debate terem curta duração e de que os trabalhado-
o lugar dos agricultores mais pobres, pensando res circulam em busca de trabalho, traz, por
não só em termos de renda, mas também de sua si só, significativos desafios para a organiza-
capacidade de construir representação política. ção e para a definição de qual a base sindical,
Olhando as pautas sindicais, é possível afirmar em especial considerando que há migrações
que o sindicalismo fala pelos agricultores fami- sazonais de longa distância (Menezes, 2014;
liares mais estabelecidos, público, por excelên- Novaes; Alves, 2007; Silva, 1999). Como se
cia, do Pronaf. O MPA, por sua vez, fala para vincular ao sindicato de base municipal se a
um grupo de agricultores com organização mais permanência numa determinada localidade é
delimitada e que buscam a construção de um curta, muitas vezes sem contrato formalizado
novo modelo de agricultura com base em prin- e seguida de busca de trabalho em outros lo-
cípios agroecológicos, recuperando o termo cais? Como organizar a base sindical se ela é
camponês para referenciar um modo de vida. fluida e, em diversas situações, como no caso
Trata-se de indagar sobre quem fala por esses da cana-de-açúcar, os trabalhadores migrantes
segmentos mais empobrecidos, à margem ou ficam alojados no interior das usinas sob estri-
com acesso limitado ao Pronaf. to controle da empresa? A isso, acresce-se uma
diferenciação interna entre os assalariados,
que ainda merece estudos aprofundados, com
AS NOVAS CONFIGURAÇÕES a constituição de um setor de trabalhadores
DOS ASSALARIADOS RURAIS que opera com máquinas e equipamentos so-
fisticados, que exigem habilidades específicas
Se, no início da década de 1980, o Brasil e geram profundas distinções com os trabalha-
presenciou um ciclo significativo de greves de dores considerados braçais.
assalariados rurais, os anos que se seguiram fo- Esses elementos fragilizaram a represen-
ram marcados por paralizações pontuais e mo- tação sindical dos assalariados, ao mesmo tem-
bilizações locais de assalariados. Ao mesmo po em que se verificava o fortalecimento dos
tempo se acumularam as reclamações legais e agricultores familiares, objeto, como vimos,
as denúncias referentes à progressiva deterio- desde meados dos anos 1990, de políticas es-
ração das condições de trabalho.16 pecíficas de valorização e reconhecimento. Ou
Uma dificuldade importante na repre- seja, perdem pouco a pouco o protagonismo
sentação sindical desse segmento refere-se à político, embora, se nos basearmos na docu-
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

nova conformação da categoria em razão das mentação sindical, em especial nos congressos
da Contag, a pauta de reivindicações dos assa-
16
Como indicadores dessa precarização são recorrentes as lariados está sempre presente.17
queixas sobre exposição a agrotóxicos sem a devida pro-
teção; movimentos repetitivos que implicam em lesões; Com a Constituição de 1988 e a institui-
condições exaustivas de trabalho; doenças degenerativas,
temas que vêm sendo apontados quer por trabalhos acadê- ção da liberdade e autonomia sindical, ganhou
micos (Verçoza, 2018; Silva, 2013) quer por denúncias de
organizações não governamentais como é o caso da Repór- corpo a tentativa, no estado de São Paulo, de
ter Brasil (https://reporterbrasil.org.br/). A elas se somam se formar uma federação sindical específica, a
os casos que podem ser enquadrados como trabalho escra-
vo, objeto de constantes denúncias pelos sindicatos, pela Federação de Empregados Rurais e Assalaria-
CPT e, em diversas situações, objeto de ação do Ministério
Público Federal do Trabalho. Essa forma de trabalho é de- dos do Estado de São Paulo (Feraesp) que, no
finida pelo Código Penal (art. 149), como aquela em que
estão presentes condições degradantes, com violação de 17
Já desde o final dos anos 1970, nos bastidores sindicais,
direitos fundamentais que colocam em risco a saúde e a havia um tensionamento com pequenos agricultores que
vida do trabalhador, jornadas exaustivas, trabalho força- empregavam assalariados, considerando que ambos inte-
do, ameaças físicas e psicológicas, servidão por dívida etc. gravam a mesma base sindical subsumidos numa ampla
Nessas situações limítrofes são evidentes as dificuldades categoria politicamente construída pela Contag (Palmeira,
de organização. 1985).

8
Leonilde Servolo de Medeiros

entanto, por muito tempo, sequer foi reconhe- 13.467/2017, que alterou diversos pontos da
cida como representante legal de sua categoria CLT) e da lei 13.429/2017, que permitiu a ter-
em negociações coletivas. Sua existência ten- ceirização do trabalho para todos os tipos de
sionava a representação sindical contaguiana atividade, a situação dos trabalhadores tornou-
e, de alguma forma, trazia à luz as dificuldades -se ainda mais precária.20 Sem trazer grandes
de representação do segmento. novidades para as áreas rurais, uma vez que a
Em que pese a dificuldade de reconhe- marca constante foi a precariedade contratu-
cimento legal e, portanto, de poder representar al, a reforma permitiu a continuidade de uma
suas bases nas negociações salariais, a Feraesp situação de extrema carência de direitos dos
firmou-se em algumas áreas do estado e, em rurais. Acresça-se a isso a extinção do Minis-
pouco tempo, já mostrava as contradições pre- tério do Trabalho em 2019 (MP 870, aprovada
sentes na categorização formal dos emprega- pelo Senado em 28/5/2019) e a transferência
dos rurais: um dos marcos de sua atuação foi de suas atribuições entre os Ministérios da
a ocupação de terras, sendo bem sucedida na Economia, Justiça e Cidadania, o que aumen-
formação de alguns assentamentos rurais, pas- ta a insegurança jurídica dos assalariados e as
sando a falar também por assentados, ou seja, dificuldades de fiscalização de situações irre-
pequenos agricultores/agricultores familiares, gulares. Tais medidas colocam ainda maiores
ao mesmo tempo em que buscava se tornar re- dificuldades para a Contar, que se organiza
presentação efetiva dos assalariados dos cana- num momento extremamente adverso para os
viais e de colhedores de laranja de São Paulo trabalhadores.
(Coletti, 1998; Thomaz Jr., 2004).
Apesar das tentativas de filiação ao
sistema Contag, a Feraesp não foi aceita, em A LUTA PELA TERRA E OS NO-
nome da manutenção da unicidade sindical, VOS ATORES
tida pela Contag como um valor, para além das
possibilidades legais de reconhecimento da re- No que diz respeito à questão fundiária,
presentação dos assalariados.18 de luta contra o “latifúndio atrasado” que mar-
Essas tensões, que se acumularam ao cou os anos 50/60, passou-se progressivamente
longo dos anos e acompanharam o crescimen- à crítica ao agronegócio, à progressiva incor-
to da força política dos agricultores familiares, poração da dimensão ambiental, e da defesa
culminaram na chamada dissociação sindical de uma alimentação saudável, isenta de agro-
em 2016, momento em que a representação químicos, dotando a questão agrária de novos
sindical tradicional contaguiana se cinde e significados. São novos enquadramentos que
cria-se um sindicalismo que representa os as- reorganizam os atores.21 Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

salariados rurais (Confederação Nacional dos Como apontado anteriormente, o início


Trabalhadores Assalariados Rurais, Contar) e dos anos 1980 foi marcado pela emergência de
outro que representa os agricultores familia- ocupações e acampamentos como forma mais
res, a Contag (Picolotto, 2018).19 visível de luta por terra, em especial nas áreas
A partir da reforma trabalhista (lei mais modernizadas, como o Sul e o Sudeste,
estendendo-se depois para todo o país. Elas
18
Essa tentativa foi feita também pela Federação dos Tra-
balhadores da Agricultura Familiar de Santa Catarina (Fe- tiveram efeitos importantes na Assembleia
trafesc), recusada pelas mesmas razões (Medeiros, 2014).
Nacional Constituinte e resultaram na incor-
19
Como mostra Picolotto (2018), desde 2014 o Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE) manifestou entendimento 20
Uma análise dessas mudanças e suas implicações para o
de que podem existir duas categorias sindicais específi- mundo do trabalho pode ser encontrada em Krein (2018).
cas (assalariados rurais e agricultores familiares) dentro
da “categoria eclética de trabalhador rural” (p. 203). Essa 21
A respeito da importância produção de novos enqua-
manifestação foi decisiva para que a dissociação pudesse dramentos para a luta política ver, entre outros, Benford;
ocorrer legalmente. Snow, 2000.

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ATORES, CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO...

poração ao texto constitucional do tema da Do ponto de vista da representação polí-


reforma agrária, vinculada à definição de que tica dos trabalhadores do campo, também nes-
a terra tem uma função social, recuperando o sa esfera ocorreu importante divisão. A emer-
que fora estabelecido no Estatuto da Terra. No gência do MST, como grupo mobilizado, sem
entanto, os debates em torno do tema levaram formalidades de registro jurídico contrapunha-
para dentro da Constituição uma contradição. -se à formalidade da representação sindical da
Por um lado, há a definição da função social e, Contag. Por outro lado, se no final dos anos
por outro, a assertiva de que terras produtivas 1970 a Contag falava em ocupar, no período
(assim como a pequena e média propriedades) da redemocratização optou por práticas mais
não podem ser desapropriadas.22 A regulamen- negociadoras, em especial no início da Nova
tação da Constituição pela chamada Lei Agrá- República quando alguns de seus quadros de
ria de 1993, anteriormente mencionada, de assessoria ocupavam postos no Incra. Do pon-
alguma forma abriu caminho para a retomada to de vista político, isso implicou em assenta-
das ocupações e acampamentos, com base na mentos que se colocavam publicamente como
lei: as organizações escolhiam para serem ocu- “do MST”, do “sindicato”, “da Feraesp” ou de
padas propriedades que poderiam ser classifi- outras organizações que se formaram ao longo
cadas como improdutivas. Cabia ao Incra, por dos últimos trinta anos. Não foram poucas as
meio de uma série de procedimentos técnicos situações de assentamentos divididos entre di-
(vistorias, uso de índices etc.) definir se a pro- ferentes forças, disputando apoios e recursos.
priedade poderia ser desapropriada ou não.23 Para além das disputas por representa-
Essas medidas fizeram com que cres- ção dos que demandam terra, também estive-
cesse a pressão sobre a terra, à medida que as ram em jogo nos últimos anos as possibilida-
desapropriações e assentamentos ocorriam, des de investir nos assentamentos em termos
mostrando para os movimentos a eficácia das de arranjos produtivos e de relações com ou-
formas de luta escolhidas. A própria dinâmica tros segmentos sociais. Assim, se para o sin-
da luta fortaleceu a constituição de áreas com dicalismo rural o acesso à terra se configurava
vários assentamentos próximos, em especial como ponto de chegada, para o MST ele era
nas regiões onde havia crise das lavouras tra- definido como um ponto de partida para uma
dicionais, como é o caso da cana em algumas transformação mais ampla. Num primeiro mo-
áreas do Nordeste e do Rio de Janeiro (Leite et mento, para esta organização, tratava-se de
al. 2004). Mas também consolidou a lógica das mostrar como os assentamentos podiam ser
desapropriações caso a caso, fora da perspecti- produtivos, de forma a afirmar publicamente o
va de uma reforma agrária massiva ou mesmo sucesso da reforma agrária. No entanto, articu-
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

de seleção de áreas prioritárias, que continu- lações com outras organizações, em especial a
ava a ser demandada pelas organizações que Via Campesina, levaram à busca de novas pos-
estavam à frente das ocupações. As crescentes sibilidades produtivas e construção de novas
dificuldades para obtenção de terras para as- alianças políticas que trouxeram profundas
sentamentos levaram também à desmobiliza- inovações. O exemplo mais significativo tal-
ção, uma vez que a luta pela terra se alimenta vez seja o abandono da concepção de que os
de seus próprios sucessos. assentamentos deveriam ser geridos de forma
a explorar o potencial produtivo das grandes
22
Para uma discussão mais exaustiva do tema, ver Medei-
ros (2002). unidades coletivas formadas. Com efeito, des-
23
A base desse cálculo são os índices de produtividade. Os de o final dos anos 1990, a valorização de prá-
disponíveis no início dos anos 2000 foram calculados com ticas agroecológicas de produção levou o MST
base no Censo de 1975, momento em que a modernização
se iniciava. Tentada no governo Lula, a sua atualização, a buscar o estímulo à recuperação de técnicas
que permitiria a ampliação das propriedades passíveis de
desapropriação, não se viabilizou. tradicionais, de produtos locais, alinhavados

10
Leonilde Servolo de Medeiros

com formas cooperativas de gestão de produ- o significado da terra, como lugar da vida dos
ção, de uso de equipamentos ou de venda de antepassados, das tradições, trazendo para o
produtos. Ao mesmo tempo, ia se gestando centro do debate o tema dos territórios. Não
um debate sobre qualidade do alimento, so- se trata de uma terra que possa ser trocada ou
bre alianças com consumidores que levaram vendida. No cerne desse debate, a questão fun-
a um modelo de reforma agrária que vai além diária se cola à questão ambiental.
da distribuição de terra e está profundamente Também foram se constituindo formas de
alinhada com a discussão dos riscos ambien- diálogo entres essas diferentes concepções, de-
tais, adotando a agroecologia como modelo marcando um novo momento de interconheci-
produtivo (Lerrer; Medeiros, 2014). São esses mento. Nessa direção, teve grande significado o
elementos que passam a compor o que o MST I Encontro dos Povos da Terra, da Floresta e das
chama hoje de “reforma agrária popular”. Águas, realizado em 2012, e que, pela primei-
No entanto, a questão fundiária não se ra vez na história brasileira, ensaiou construir
expressa só na luta de sem-terra mas também uma unidade política entre grupos sociais bas-
na dos posseiros. Não por acaso, nos anos 1990 tante diferenciados e, inclusive, recortados por
ganha relevo um antigo debate que converge disputas entre si no plano local.
com o da reforma agrária que é o da regula- Ao longo desses anos, foram assentadas
rização fundiária, ou seja, o reconhecimento cerca de um milhão de famílias e reconhecidos
da propriedade desses segmentos, dando-lhes direitos territoriais de diversos grupos sociais.
o título legal. Esse debate foi particularmente No entanto, os índices de concentração fun-
fértil no governo Lula, quando o II PNRA co- diária pouco se modificaram. Ou seja, se, por
locou o tema na sua agenda. Já nesse momen- um lado a terra era distribuída num local, ela
to, estava em jogo quem poderia ter seu título era apropriada e concentrada nas regiões de
regularizado. Assim, da proposta inicial de avanço da agricultura moderna. Para avançar
regularizar um módulo, as disputas políticas nessa discussão é importante romper os limi-
levaram à ampliação desse limite. Nos dias de tes estritos da análise da representação política
hoje, a proposta de titulação amplia o limite dos trabalhadores rurais e pensá-la lado a lado
das terras legalizáveis, indicando o que o que com o processo de crescimento e legitimação
está efetivamente em jogo é a legalização das do que hoje se chama de agronegócio.
ocupações ilegais de terra, conhecida como
grilagem, denunciada quer pelo sindicalismo,
quer com bastante intensidade pelo MST. DIMENSÕES POLÍTICAS DO
Finalmente, há que se destacar a pro- AGRONEGÓCIO
gressiva incorporação de luta pela demarcação Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

de terras indígenas, de territórios quilombolas, As últimas décadas não foram anos so-
caiçaras e demais comunidades tradicionais na mente de reconfiguração dos trabalhadores do
definição dos termos da questão agrária, levan- campo e das suas formas de organização. O
do a que o debate em torno da questão agrária mesmo processo que os diferenciou tanto eco-
incorporasse também o tema das “terras tradi- nômica como politicamente também afetou a
cionalmente ocupadas” (Almeida, 2006). A en- representação dos interesses ligados à terra e às
trada desses novos atores, inicialmente local- novas formas de produção que se instauraram
mente organizados, mas cada vez mais criando nas últimas décadas. Como já apontado, a mo-
articulações nacionais e internacionais, traz dernização tecnológica da agricultura provo-
outros componentes ao debate fundiário que cou avanços na agroindustrialização, voltada
o levam a ultrapassar os limites do produtivo: para a produção tanto para o mercado interno
entram em questão novas compreensões sobre como externo. Esses processos levaram a uma

11
ATORES, CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO...

crescente valorização de terras, em especial 1990), que chamava a atenção para as moder-
nas áreas novas, ainda pouco exploradas pelo nas e complexas inter-relações entre cidade e
capital. Como mostra Bruno (2010), também campo e para a necessidade de “enxergar o sis-
se multiplicaram as associações por produto e tema como um todo, de reconhecer o enorme
multiproduto, gerando formas de representação crescimento da interpendência da agricultura
de interesse mais particulares, que se desenvol- com outros setores econômicos” (Araújo et al.
vem paralelamente à representação sindical ofi- 1990). Defendia ainda que as políticas para a
cial. Ao mesmo tempo, a pressão por terra, com agricultura deveriam ser desenhadas de forma
acampamentos e ocupações e o anúncio, em a ultrapassar a dimensão setorial. Logo depois,
1985, num congresso de trabalhadores, da pro- em 1993, foi criada a Associação Brasileira
posta do 1º Plano Nacional de Reforma Agrá- do Agronegócio (Abag), com laços com insti-
ria, resultou em novas iniciativas políticas dos tuições de pesquisa, como é o caso do Pensa
setores patronais. É nesse momento que surge (Centro de Conhecimento em Agronegócios),
a União Democrática Ruralista (UDR), que se ligado à faculdade de Economia e Adminis-
colocava contra o Plano e defendia abertamente tração da USP e, depois, o Cepea (Centro de
o uso da violência nas ocupações de terra em Estudos Avançados em Economia Aplicada)
nome do direito de propriedade. Sob liderança da Esalq/USP. Seu lançamento oficial foi no
de alguns de seus quadros presentes no Con- Congresso Nacional. Na ocasião foi lançado o
gresso Nacional, foi possível a introdução de livro Segurança Alimentar: uma abordagem de
uma trava à reforma agrária na Constituição de agribusiness, de autoria da nova entidade. Ini-
1988, como apontado anteriormente. cia-se então uma etapa mais pública do debate
No entanto, sob a égide da Constituição, em torno de quem produz alimentos para a so-
que reconhecia uma série de direitos e pare- ciedade brasileira. Na visão da Abag dependia
cia inaugurar tempos democráticos, o discurso do agribusiness a segurança alimentar do país,
da UDR deixou uma forte marca de apologia “pedra fundamental de seu desenvolvimento
da violência, da negação da negociação como como sociedade justa” (Abag, 1993, p. 9).
caminho de entendimento para as demandas Esse foi um momento de crescimento do
dos trabalhadores rurais, completamente frus- debate político em torno da pobreza e da fome
tradas com os parcos resultados do I PNRA e marcado pela criação do Conselho Nacional
(Medeiros, 2002). Não por acaso, no início de Segurança Alimentar (Consea), ainda no
dos anos 1990 se inicia uma outra articulação governo Itamar Franco e pelas discussões no
política, centrada na valorização de um setor interior do chamado “governo paralelo”, orga-
agropecuário que se advoga capaz de atender nizado ao redor do candidato derrotado nas
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

às necessidades de produção de alimentos, eleições presidenciais de 1989, Luis Inácio


que se faz ver publicamente pela sua dimen- Lula da Silva.24 Esses fatos são reveladores do
são produtiva, articulando industrialização e campo de disputas que se estabelecia e onde a
distribuição de produtos agropecuários. Por Abag buscava ganhar força, deslocando o foco
esse caminho, garantem seu protagonismo do debate sobre a violência para a questão da
político, projetando uma nova imagem a par- produção, desta vez para o abastecimento in-
tir da valorização do termo complexo agroin- terno, mas também de exportação, destacando
dustrial, na sua versão em inglês agribusiness, a sua importância na economia brasileira.
logo traduzida para agronegócio (Bruno, 2010. Agregando não só produtores, mas tam-
Para tanto, foram marcos tanto a produção de bém empresas do setor de processamento e
expressões intelectuais do setor, como é o caso
do livro Complexo Agroindustrial – o agribu- 24
Em janeiro de 1995, o governo Fernando Henrique Car-
doso criou o Programa Comunidade Solidária e extinguiu
siness brasileiro (Araújo; Wedekin; Pinazza, o Consea. O órgão foi restabelecido em 2004.

12
Leonilde Servolo de Medeiros

distribuição, agentes financeiros e centros de agrícola e, por extensão, do próprio grupo político
pesquisa (Abag, 1993), a Abag indica um pro- ligado ao agronegócio.

cesso de reconstrução da dinâmica de repre- Não por acaso, cresce a disputa em tor-
sentação do setor. De acordo com Lerrer (2020, no de quem produz alimentos criando uma po-
p. 276-277), foi por meio do termo “agronegó- larização entre agronegócio e agricultura fami-
cio” que este setor do patronato rural passou a liar, que se coloca como o segmento que coloca
construir uma nova imagem que se consagrou, alimentos na mesa dos brasileiros. Ao lado
repercutindo para a sociedade brasileira uma da disputa por números, ganha peso, como
ideia que associa essa palavra à modernização, apontado, a tese de que há uma só agricultura.
eficiência econômica, competitividade, domí- Desdobramento político dessa concepção foi
nio tecnológico e produtividade. a extinção do Ministério do Desenvolvimento
Desde então, forjou-se uma hegemonia Agrário em 2016 e a transferência de suas fun-
que aparentemente tira a questão da proprieda- ções tanto relacionadas à agricultura familiar,
de do centro do debate, uma vez que o impor- quanto a assentamentos rurais e questões fun-
ta é que ela seja produtiva e articulada nessa diárias ao Ministério da Agricultura. Fechando
cadeia, que seja capaz de produzir alimentos o círculo, não por acaso uma das expressivas
e colocar o Brasil numa posição de destaque lideranças da antiga UDR passa a ocupar o car-
no cenário internacional de produção agrícola. go de Secretário Nacional de Assuntos Fundiá-
No entanto, como a própria expansão do agro- rios desse mesmo Ministério.
negócio depende da disponibilidade de terras,
o tema fundiário é uma dimensão central, em-
bora não claramente explicitada nas autojusti- CONSIDERAÇÕES FINAIS
ficativas do segmento.
Como aponta José Renato Porto (2014, Nos últimos 40 anos, os trabalhadores
p. 27), apoiando-se em Foucault, do campo se reorganizaram sob diversas for-
Mais do que simplesmente revigorar-se como um mas, construíram formas de representação
grupo de interesse, conquistando (ou reconquis- diversas, ocuparam a cena política com suas
tando) de maneira progressiva espaços no Legisla- mobilizações e demandas. Para além dos temas
tivo, no Executivo, e executando pressão de forma
tratados neste artigo, trouxeram à luz identida-
significativa também no Judiciário, o agronegócio
des territoriais, temas como gênero e geração,
encampa hoje um poderoso ‘discurso de verdade’
(Foucault, 2010; 2011), capaz de atrelar elementos participação política. Passaram a integrar orga-
cuja força de persuasão é enorme. Dentre esses ele- nizações internacionais, num processo conhe-

Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021


mentos, destacam-se, por exemplo, (i) a disputa pela cido como “globalização desde baixo” (Vieira,
ideia de “sustentabilidade”, (ii) a narrativa da mo- 2012). Foram anos de muitas trocas e disputas,
dernização, (iii) a bandeira do combate à fome, e (iv)
mas que deram a conhecer suas demandas, di-
mais recentemente, parece figurar também na linha
versidades e em especial buscaram fazer valer
argumentativa dos representantes do agronegócio
uma defesa incólume da legalidade, dos princípios direitos como produtores, bem como trouxe-
democráticos, do “Estado de Direito”, obviamen- ram a debate direitos territoriais. Não se pode
te não pelas afinidades às bases desses conceitos, compreender essas disputas sem considerar o
mas sim como uma maneira eficiente de travestir peso das mudanças, a crescente hegemonia do
os interesses e as práticas dos agronegócios. Essas
agronegócio e sua capacidade de construir um
dimensões, quando apropriadas, entrelaçadas e
discurso com enorme poder de verdade que se
postas a serviço de determinados interesses especí-
ficos, figuram como metáforas mobilizadoras muito difunde na sociedade, mas que também gera
eficientes, capazes de convencer a opinião pública outros, quando são colocados à luz os temas
e legitimar a expansão de um modelo de produção ambientais que, cada vez mais, se impõem e

13
ATORES, CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO...

obrigam o próprio agronegócio a reconstruir ARAÚJO, N. B.; WEDEKIN, I.; PINAZZA, L. A. Complexo
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foram questionadas em várias frentes, a insti- BRUNO, R. Um Brasil ambivalente. Rio de Janeiro: Mauad
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xando os diferentes grupos de trabalhadores na América Latina: a questão agrária atual. São Paulo:
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do a lógica que marcou o início deste século. problems. In: CEFAI, D.; TROM, D. Les formes de l’action
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Voltou-se a um processo de trabalho interno, École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2001. p. 51-97
com atividades de formação e reflexão sobre os COLETTI, C. A estrutura sindical no campo. Campinas:
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dilemas do presente, marcado para além dessas
DELGADO, G. Capital Financeiro e agricultura. São Paulo:
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tradicionais, negando o uso de agrotóxicos e trabalho na agricultura. São Paulo: Hucitec, 1981.
transgênicos e impondo o debate sobre a pro- KREIN, J. D. O desmonte dos direitos, as novas
dução agroecológica, bem como a afirmação configurações do trabalho e o esvaziamento da ação
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ATORES, CONFLITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO...

ACTORS, CONFLICTS AND PUBLIC POLICIES ACTEURS, CONFLITS ET POLITIQUES


FOR RURAL AREAS IN CONTEMPORARY PUBLIQUES POUR LE MILIEU RURAL AU
BRAZIL BRÉSIL CONTEMPORAIN

Leonilde Servolo de Medeiros Leonilde Servolo de Medeiros

The article discusses changes that took place in L’article discute les changements qui ont eu lieu
recent decades on the forms of organization of au cours des quatre dernières décennies dans
rural workers in Brazil, emphasizing disputes, les formes d’organisation des travailleurs ruraux
convergences and impasses both in the relations au Brésil, mettant l’accent sur les conflits, les
between the actors during their constitution convergences et les impasses non seulement dans
process, and with institutional mechanisms and la relation entre les acteurs eux-mêmes dans leur
public policies aimed at rural areas. From a brief processus de constitution, mais aussi avec les
overview on the changes that affected the rural mécanismes institutionnels et politiques publiques
environment, we discuss the political dynamics conçu pour le milieu rural. En commençant
of representation regarding family farming, wage par un bref historique des changements qui ont
labor, and the contemporary dynamics of land affecté le milieu rural, nous aborderons ensuite
disputes. We aim to show how these categories les dynamiques politique de représentation des
intertwine and how classificatory concerns hide catégories agriculture familiale, travail salarié et
the complex relationship networks that articulates les formes contemporaines de la dynamique du
different rural segments and their associations, less conflit foncier. On cherche à montrer comment
and less perceived as hermetic universes. Finally, ces catégories s’entrecroise et comment le souci
we examine the growing role of agribusiness and de classification masque le réseau complexe de
its consequences for rural disputes and for the relations articulant les différents segments ruraux
reconfiguration of the agrarian issue. et leurs organisations, de moins en moins perçus
comme des univers étanches. Enfin, nous abordons
le rôle croissant de l’industrie agroalimentaire et
ses implications sur les conflits ruraux et sur la
reconfiguration de la question agraire.

Keywords: Political representation. Family farming. Mots-clés: Représentation politique. Agriculture


Wage earners. Land conflicts. Agribusiness. familiale. Salariés. Conflits fonciers. Industrie
agroalimentaire.

Leonilde Servolo de Medeiros – Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Professora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-16, e021003, 2021

Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Coordenadora


do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência em Movimentos Sociais e Políticas Públicas no
Campo, do CPDA/UFRRJ. Bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisas na área de movimentos sociais,
políticas fundiárias, sindicalismo rural. Publicações recente: Ditadura, conflito e repressão no campo.
A resistência camponesa no estado do Rio de Janeiro (org.). Rio de Janeiro: Consequência, 2018, 667 p.;
Rural Social Movements in Brazil in the Second Half of the 20th Century: From the Peasant Leagues to
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