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O PAPEL E A IMPORTÂNCIA DA AGRICULTURA FAMILIAR NO DESENVOLVIMENTO


RURAL BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

The role and the importance of the Family Farm in the contemporary Brazilian rural
development
Lauro Mattei
Professor dos cursos de Graduação em Economia e de Pós-Graduação em Administração, ambos da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC. Departamento de Ciências Econômicas. Campus Universitário, Trindade. CEP:
88.040-900, Florianópolis, SC, Brasil. l.mattei@ufsc.br

Resumo: o ar•go discute o papel e a importância da Abstract: this ar•cle discuss the role and the importance
agricultura familiar no âmbito da produção agropecuá- of Family Farm System into the Brazilian agrarian produc-
ria do país. Inicialmente faz-se uma breve recuperação •on sector. In the beginning we did a briefly discussion of
do processo histórico de ocupação do território nacio- the historical process of coloniza•on, highligh•ning the
nal, destacando-se o modelo secular de produção base- secular produc•on model based in the large farmers and
ado na monocultura e nas grandes propriedades. Neste single crops. In spite of the fact that family farm sector
processo, a produção familiar que responde por mais de was responsable for more than 80% of rural establish-
80% dos estabelecimentos só recentemente passou a ments, it never received a support from the government.
ter apoio governamental, por meio de polí•cas públicas This support by the government to the family farm sec-
como o PRONAF. A principal conclusão do estudo é que tor started only in 1990s. The main conclusion of the pa-
após receber este apoio houve uma resposta posi•va per is related with the public policies support because
imediata por parte da agricultura familiar, especialmente when the government gaves appropriate a"en•on to the
em termos produ•vos, econômicos e sociais, destacan- familiy farm immediatly this sector gaves a posi•ve re-
do-se a importância das ocupações rurais vinculados ao sponse, especially in economics and social terms. In this
setor familiar. case, we should highlight the level of rural job created by
the family farm sector in the last decade.
Palavras-chave: rural, produção, agricultura familiar.
Key-words: rural, produc•on, family farm.

1 Introdução De um modo geral, se pode dizer que até o


início da década de 1990 não existia nenhum tipo
Desde o início do processo de ocupação do de política pública, com abrangência nacional, vol-
território brasileiro a agricultura familiar – por muito tada ao atendimento das necessidades específicas
tempo chamada de agricultura de subsistência – faz do segmento social de agricultores familiares, o
parte da rotina das atividades produtivas do país. To- qual era, inclusive, caracterizado de modo mera-
davia, ao longo de todo período imperial, e também mente instrumental e bastante impreciso no âmbito
nos períodos subsequentes, este tipo de agricultura da burocracia estatal brasileira.
não recebeu praticamente nenhum apoio governa-
mental para se desenvolver adequadamente. Neste cenário foi criado, em 1996, o Pro-
grama Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Constata-se, ainda, que durante o processo Familiar (PRONAF), para atender a uma antiga
de modernização da agricultura brasileira (décadas reivindicação das organizações dos trabalhadores
de 1960 e 1970), as políticas públicas para a área rurais, as quais demandavam a formulação e a
rural, em especial a política agrícola, privilegiaram implantação de políticas de desenvolvimento rural
os setores mais capitalizados e a esfera produtiva específicas para o maior segmento da agricultura
das commodities voltadas ao mercado internacional brasileira, porém o mais fragilizado em termos de
e produzidas nos grandes latifúndios, com o objeti- capacidade técnica e de inserção nos mercados
vo de fazer frente aos desequilíbrios da balança co- agropecuários. Deve-se ressaltar que neste pro-
mercial do país. Para o setor da agricultura familiar, cesso os atores sociais rurais, através de suas or-
o resultado dessas políticas foi altamente negativo, ganizações e de suas lutas, desempenharam um
uma vez que grande parte desse segmento ficou papel decisivo na implantação do programa, con-
à margem dos benefícios oferecidos pela política siderado uma bandeira histórica dos trabalhadores
agrícola, sobretudo nos itens relativos ao crédito ru- rurais, pois permitiria a estes o acesso aos diver-
ral, aos preços mínimos e ao seguro da produção. sos serviços oferecidos pelo sistema financeiro

Recebido em 10 de abril de 2014 Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, suplemento especial, p. 83-91, out./dez., 2014
Aprovado em 13 de maio de 2014
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nacional, até então negligenciados aos agricultores (açúcar) que se assentava na grande propriedade
familiares. da terra, a qual estava concentrada sob os domí-
nios do reino de Portugal, mas que era distribuída
Assim, a criação do PRONAF representa a para segmentos sociais privilegiados que se situa-
legitimação, por parte do Estado brasileiro, de uma vam próximos à coroa.
nova categoria social – os agricultores familiares –
que até então era praticamente marginalizada em É neste contexto que vai se formando uma
termos de acesso aos benefícios da política agríco- agricultura de subsistência, particularmente na
la, bem como designada por termos como peque- região Nordeste do país, com a função de atividade
nos produtores, produtores familiares, produtores acessória ao sistema monocultor principal.
de baixa renda ou agricultores de subsistência. Localizada inicialmente nas regiões desfavorecidas
(sertão nordestino) esta atividade estabelece um
O objetivo deste estudo é analisar a trajetória padrão de desenvolvimento rural inicial assentado
da agricultura familiar, destacando sua importância numa dicotomia que perpassa toda a trajetória his-
no cenário atual do país. Para tanto, o artigo contém tórica do país-colônia: grandes áreas concentradas
mais três seções, além desta introdução. Na primei- de terras férteis com produtos para exportação ao
ra delas, faz-se um resgate da trajetória histórica da lado de uma imensa quantidade de trabalhadores
agricultura brasileira, destacando-se que durante os rurais com pouca terra e sob condições climáticas
ciclos econômicos, cuja produção era voltada prio- adversas e abandonas pela administração pública.
ritariamente para o exterior, esse tipo de produção
tinha uma função meramente acessória no âmbito Este mesmo processo se repete posterior-
do processo produtivo nacional. A segunda seção mente nos demais ciclos econômicos. Particular-
discute as mudanças institucionais recentes que le- mente no ciclo do algodão e da borracha, esse
varam à conformação de diversas políticas públicas mecanismo se reproduz e se exacerba agora como
destinadas especificamente a este setor, bem como epicentro também na região Norte do país, que era
o papel crescente da agricultura familiar no contexto uma grande área em completo abandono. Não é
da produção agropecuária do país. Finalmente, a ao acaso que após o fracasso dessas atividades,
terceira seção apresenta as considerações gerais permanece apenas uma agricultura de subsistên-
do trabalho, destacando-se o papel de relevo que cia de baixa capacidade produtiva e abandonada,
este sistema de produção tem para o Brasil, espe- tornando-se também fonte de geração de pobreza
cialmente em sua contribuição na produção de ali- e exclusão social no meio rural.
mentos básicos para a população, na geração de Esse cenário se agrava ainda mais quando
emprego no meio rural e na preservação ambiental. da expansão do ciclo da pecuária no Sul e do ciclo
cafeeiro na região Sudeste. Neste último caso, par-
2 Processo histórico de ocupação do ticularmente, além da concentração da terra, com
espaço agrário brasileiro e suas con- o fim da escravidão são estabelecidas relações de
sequências e contradições trabalho que, mesmo sob o manto do trabalho livre,
reproduziam a cultura histórica escravocrata que
Caio Prado Júnior, ao estudar a formação imputava às camadas pobres da população a ex-
econômica do Brasil, mostra que o país é hoje o ploração e a exclusão social.
que era ontem, numa clara referência ao passado
colonial, cujas marcas ainda se fazem presentes Portanto, é sempre na franja de um processo
em várias esferas da vida nacional, particularmente produtivo comandado pela grande agricultura as-
no meio rural brasileiro. sentada na concentração da propriedade da terra,
ao estilo plantation norte-americano, que vai se fir-
Assim, no debate clássico sobre a questão mar aquilo que hoje é conceituado como agricultura
agrária brasileira mostra-se a relação íntima desta familiar, ou seja, uma estrutura produtiva que sem-
com o processo histórico de desenvolvimento do pre foi relegada ao segundo plano no processo de
país. Desde o período das capitanias hereditárias, desenvolvimento rural do país.
passando pelos diversos ciclos econômicos (mine-
ração, borracha, açúcar e café) até os dias atuais, Esse quadro, no entanto, foi fortemente alte-
as questões da terra e do sistema de produção rado no período do Pós-Guerra, quando se adotou
agropecuário sempre estiveram presentes no deba- a política de “modernização” da agricultura brasilei-
te político nacional. ra, processo este que causou transformações pro-
fundas na esfera da produção agropecuária, mas
Durante o ciclo do açúcar, sendo o país ain- que também trouxe sérias consequências ambien-
da colônia de Portugal, foi instituída uma forma de tais e sociais, principalmente devido à enorme mo-
produção monocultora voltada para as exportações bilidade populacional ocorrida no país nas últimas

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décadas do século XX. Em grande medida, pode- É neste contexto histórico-estrutural que a
se dizer que o conflito social que se instaurou nas agricultura familiar está inserida no processo pro-
áreas rurais do país está diretamente relacionado dutivo. Apesar de sofrer perdas de renda e ter di-
ao modelo de desenvolvimento agrário do Brasil, ficuldades de acesso aos benefícios das políticas
o qual está ancorado em dois pilares básicos: na públicas, esta é uma forma de produção que pro-
concentração da terra e na exclusão social dos cura estabelecer sistemas produtivos focados na
agricultores tradicionais. biodiversidade, na valorização do trabalho familiar,
na inclusão de jovens e de mulheres, na produção
Com isso, nota-se que o período entre as
de alimentos destinados à segurança alimentar e
décadas de 1950 a 1980 foi marcado por intensos
nutricional da população brasileira e na promoção
debates acadêmicos sobre o modelo de desen-
da democratização do acesso à terra e aos demais
volvimento brasileiro, com a reforma agrária assu-
meios de produção, como estratégia de construção
mindo um papel de destaque nessa discussão. De
do desenvolvimento rural sustentável.
um modo geral, pode-se dizer que estes debates
faziam uma conexão entre a estrutura agrária e os Nas últimas décadas, sob o impacto do forte
temas da pobreza rural, da dinâmica populacional, crescimento e intensificação dos ciclos de commo-
do combate ao desemprego e ao êxodo rural, da dities agroindustriais nos mercados internacionais,
modernização da agricultura e das mudanças nas conformou-se uma visão estereotipada do mundo
relações de trabalho no campo. Já nos anos 1990, rural, uma vez que tudo o que não se enquadrar no
incorporaram-se a essas discussões anteriores ou- âmbito do agronegócio e da modernização agrícola,
tros temas como o combate à fome, o resgate da é visto como um lugar do atraso, pobre e parado no
cidadania aos habitantes do campo e, fundamental- tempo. Assim, o desenvolvimento rural é enfocado
mente, a necessidade de romper com o poder eco- como um caminho de mão única, ou seja, todos pre-
nômico e político dos latifúndios. cisam se modernizar dentro da lógica da revolução
verde para não serem vistos como atrasados.
Neste novo cenário, a luta pela reforma agrá-
ria e pela defesa da agricultura familiar ganhou di- Ao se disseminar essa ideia do mundo ru-
mensão política nacional e passou a fazer parte, de ral, encobrem-se algumas questões cruciais. Em
forma destacada, da agenda dos governos e dos primeiro lugar, o Brasil continua figurando entre os
diversos atores sociais. No regime militar (1964- países com o maior índice de concentração de terra
1985), entretanto, os governos militares não tinham do mundo. Pelo Índice de Gini, indicador que mede
como objetivo implementar programas massivos de o grau de concentração da terra e que varia de zero
distribuição de terras, limitando-se apenas a implan- a um, sendo que quanto mais próximo de um, maior
tar os fracassados projetos de “Colonização Agríco- será o nível de concentração, nota-se que o indi-
la”, cuja estratégia era mais de segurança nacional cador variou pouco nas últimas décadas, ficando
(ocupar todas as fronteiras do país), do que propria- estacionado no patamar de 0,854 (censo Agropecu-
mente efetuar um programa de reformulação da es- ário de 2006). Este fato revela o quadro dramático
trutura agrária. Além disso, durante esses governos da maioria dos agricultores brasileiros sem terra ou
se priorizou a agricultura voltada às exportações em com pouca terra, uma vez que os estabelecimentos
detrimento do fortalecimento da agricultura de base com até 10 hectares representam 32% do total dos
familiar. O resultado disso foi o intenso êxodo rural estabelecimentos do país e detém apenas 1,8% da
ocorrido no país nas últimas quatro décadas do sé- área total.
culo XX.
Este processo de concentração da terra
Nesta trajetória histórica o espaço rural bra- provocou um efeito direto sobre a estrutura demo-
sileiro, apesar de diverso e heterogêneo, continuou gráfica do país, levando à ocorrência de elevadas
sendo fortemente marcado por uma estrutura fun- taxas de êxodo rural nos últimos cinquenta anos.
diária desigual e injusta, com tendência histórica à Assim, a população rural reduziu sua participação
concentração da propriedade da terra, que provoca na população total de 68%, em 1950, para 17% em
exclusão social e pobreza estrutural, constituindo- 2010, segundo os diversos Censos Demográficos
-se em forte empecilho ao desenvolvimento rural. do IBGE.
Além disso, esse espaço continua sendo marcado
Mesmo com a enorme redução da popula-
também por uma agricultura patronal que reproduz
ção rural, ainda prevalece neste espaço a preca-
no país um modelo embasado na monocultura e
riedade de indicadores sociais que revelam o grau
que gera degradação ambiental, exploração do tra-
de pobreza e de miséria presentes no meio rural
balho agrícola, exclusão social e concentração da
brasileiro. Segundo dados da PNAD de 2004, ape-
renda.
nas 16% dos domicílios rurais têm fossa séptica;

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apenas 42% têm filtro de água; apenas 26% deles beneficiários e/ou suas representações sociais nos
dispõem de telefone; e ainda 16% dos domicílios processos de elaboração, implementação e ava-
não tinham acesso a energia elétrica. liação de políticas públicas, sobretudo no que diz
respeito à definição de prioridades e aplicação dos
Já os dados da PNAD de 2009 (IBGE, 2010)
recursos financeiros.
revelaram que 8.4 milhões de pessoas que faziam
parte da população rural total (30.7 milhões de pes- Com isso, observa-se que a relação tradicio-
soas) eram classificadas como pobres (renda per nal entre Estado e Sociedade vem se alterando, na
capita mensal de até ½ salário mínimo, que em medida em que os atores sociais elevam sua partici-
valores de Setembro de 2009 correspondia a R$ pação na definição e gestão das políticas públicas,
207,50) e 8.1 milhões de pessoas eram classifica- tornando-se protagonistas efetivos neste processo
das como extremamente pobres (renda per capita de ampliação democrática. Ao mesmo tempo, nota-
mensal de até ¼ salário mínimo, que em valores -se que o próprio Estado se ajusta a esta nova re-
de Setembro de 2009 correspondia a R$ 103,75). alidade, modificando suas funções tradicionais com
Isso significa que no ano de 2009 aproximadamente o objetivo de racionalizar as ações e ampliar seus
54% da população rural total era enquadrada como resultados.
pobre. A distribuição espacial da pobreza rural reve-
É neste contexto que nas duas últimas
la que 53% do total de pessoas classificadas como
décadas as políticas públicas voltadas ao combate
pobres viviam na região Nordeste do país, sendo
à pobreza e à promoção do desenvolvimento rural,
que a mesma região respondia também por 70% do
bem como aquelas políticas que têm interface com
total de pessoas extremamente pobres.
o mundo rural, tiveram forte impulso. Com isso, os
Estes indicadores levaram o governo atual instrumentos de políticas públicas voltadas ao públi-
a definir ações preferenciais para as áreas rurais no co amplo da agricultura familiar ganharam espaço
âmbito do Programa Brasil Sem Miséria, cujo foco na agenda governamental, especialmente durante
está concentrado na erradicação da pobreza extre- o Governo Lula (2003-2010).
ma em diversas regiões do país que apresentam
Especificamente em relação à redução da
elevados percentuais desses indicadores, e cujo
pobreza rural, estudo do OPPA (2011), afirma que o
epicentro dos mesmos ocorre em áreas rurais ocu-
declínio da mesma no Brasil nos últimos anos está
padas e trabalhadas pelos agricultores familiares.
relacionado, de modo central, a três ordens de fe-
Além disso, os últimos governos ampliaram as polí-
nômenos ligados à intervenção governamental na
ticas públicas específicas para os agricultores fami-
economia. Em primeiro lugar, a retomada do cres-
liares, conforme veremos na seção seguinte.
cimento econômico e do aumento do emprego na
3 Mudanças institucionais recentes e economia que, de modo geral, ocorreu ao longo dos
o reconhecimento da importância da dois Governos Lula até a crise financeira internacio-
nal de 2008. Ligue-se a isto o persistente aumento
agricultura familiar para o País real do salário mínimo verificado no período, que
3.1 O Estado brasileiro apoiando também a agri- promoveu uma considerável elevação da demanda
cultura familiar interna na economia, tornando-a uma das fontes
significativas de crescimento econômico no perío-
Com o processo de redemocratização do país do. Note-se que esta política promoveu um revigo-
e, especialmente, com a promulgação da Constitui- ramento das economias de pequenos municípios
ção de 1988, ocorreu um reordenamento do Esta- no interior do Brasil, muitos deles rurais, elevando
do brasileiro, levando a uma descentralização das a renda e o consumo de seus habitantes e geran-
ações governamentais com o intuito de ampliar o do efeitos positivos territoriais e microrregionais. Há
acesso aos recursos públicos, por um lado, e de de- evidências de que o vigoroso crescimento da eco-
mocratizar as próprias políticas, por outro. Esse mo- nomia em 2007 e 2008 foi fundado no investimento
vimento de democratização possibilitou uma maior e no consumo doméstico, sendo que o incremento
intervenção dos atores sociais, a qual se viabilizou do consumo foi principalmente o dos consumidores
através dos conselhos gestores de políticas seto- da base da pirâmide social, localizados particular-
riais e das políticas gerais de desenvolvimento nas mente no Nordeste e no Norte do Brasil1.
diversas esferas governamentais.
Esses Conselhos (municipais, estaduais e 1 Segundo Tania Bacelar, Relatório Final da 1ª Conferência Na-
cional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (Olin-
nacional) foram criados e estimulados como meca- da/PE, 25-28 de junho de 2008). Por um Brasil com Gente.
nismos de uma nova forma de gestão pública esti- Brasília, CONDRAF, p. 21-30 e 112-3, e Tania Bacelar, Entre-
mulada pela constituição de 1988, visando incluir os vista, Desafios, julho 2008, p. 8-14.

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Em segundo lugar, a redução da pobreza rural significado para definição das estratégias de reprodução
esteve ligada à criação, ampliação e legi•mação social social dos agricultores familiares é absolutamente
do Programa Bolsa Família e de uma Rede de Proteção fundamental.
e de Promoção Social, na qual se destaca o Programa
Ao disponibilizar recursos financeiros a
de Previdência Social Rural, que pôs em prá•ca uma
volumes crescentes para a categoria social dos
estratégia intersetorial de enfrentamento da pobreza.
agricultores familiares, fazendo com que aumentasse
Em 2009, o Programa Bolsa Família incluiu cerca de 12
significa•vamente o acesso destes ao sistema financeiro,
milhões de famílias ou, aproximadamente, 48 milhões de
pode-se dizer que o programa vem cumprindo com
pessoas. Para tanto, o Bolsa Família teve seu orçamento
um aspecto considerável de seus obje•vos originais,
ampliado, no período, de R$ 3,2 bilhões em 2003 para R$
especialmente quando estados, regiões e setores
12 bilhões em 20092.
tradicionalmente deixados à margem pelas polí•cas
Finalmente, a implementação de um conjunto públicas, passaram a receber tratamento prioritário.
amplo de polí•cas públicas diferenciadas, de âmbito
Este movimento influenciou a conformação
federal, dirigidas ao meio rural e des•nadas a es•mular
do tecido social de muitas regiões e unidades da
a produção de alimentos através da agricultura familiar
federação, seja através do es"mulo à organização dos
e a aumentar o acesso das populações carentes a
agricultores familiares ou através da busca de novas
estes alimentos também deve ser destacado quando
formas cooperadas de produção (associa•vismo,
se considera a redução da pobreza rural nos úl•mos
coopera•vismo, etc.), com resultados posi•vos sobre
anos. Neste par•cular merecem referência o Programa
os mercados agropecuários. Esta trajetória, de alguma
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
maneira, está presente entre todas as categorias que
(PRONAF), o Programa Aquisição de Alimentos (PAA) e os
fazem parte do segmento denominado de agricultura
Planos Safra da Agricultura Familiar, o Programa Nacional
familiar.
de Reforma Agrária (assentamentos, regularização
fundiária e crédito fundiário), os Programas Territórios de Além disso, o programa está conformando um
Cidadania e Territórios Rurais de Iden•dade, o Programa novo campo de coalizão de atores sociais, públicos
Luz para Todos (de eletrificação rural) e a Polí•ca de e privados, tendo por obje•vo dar um tratamento
Habitação Rural, além de programas des•nados a povos e adequado às necessidades da agricultura familiar
populações tradicionais, antes “invisíveis” para a polí•ca brasileira. Com isso, a intervenção nas áreas de crédito,
governamental, como, por exemplo, as Comunidades de infraestrutura, de pesquisa e de assistência técnica
Quilombolas. comprova a importância de polí•cas de desenvolvimento
rural que enfa•zam a agricultura familiar como a•vidade
Do ponto de vista do apoio direto ao sistema
prioritária, devido à sua expressão social no âmbito do
familiar de produção, o Estado brasileiro passou a inves•r
sistema de produção agropecuária do país.
mais recursos no Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (PRONAF), inclusive aumentando Portanto, nesta nova fase das polí•cas públicas de
sua área de cobertura, diversificando o público desenvolvimento rural, o PRONAF fez com que os temas
beneficiado e criando novas linhas temá•cas de crédito. da ins•tucionalidade, da gestão social e da par•cipação
Rapidamente o número de agricultores familiares passassem a ter expressiva relevância. Ao longo dos
beneficiados aumentou para aproximadamente dois úl•mos anos foram sendo criadas organizações, instâncias
milhões famílias. de representação e de decisão desde o âmbito municipal
até a esfera federal, além de procedimentos técnicos e
Em menos de 15 anos o PRONAF foi implementado
administra•vos que ampliaram a possibilidade da gestão
em todas as grandes regiões e unidades da federação,
democrá•ca das polí•cas públicas. Com isso, abriu-se
encontrando-se presente, atualmente, em pra•camente
espaços para a sociedade civil intervir concretamente
todos os municípios do país. Este movimento de
na formulação, implementação e avaliação das polí•cas
consolidação do programa pode ser observado em duas
des•nadas a promover o fortalecimento da agricultura
direções: por um lado, nota-se um movimento consistente
familiar no país.
de crescimento do volume de recursos disponibilizado,
especialmente a par•r da safra 2002/2003 e, por outro, Para maior suporte e apoio às a•vidades produ•-
o número de agricultores a•ngidos por esta modalidade vas da agricultura familiar, o Estado também inves•u na
de polí•ca pública cresceu a patamares nunca vistos reestruturação do sistema nacional de assistência técni-
anteriormente. ca e extensão rural (ATER). Em 2004, com o lançamento
do Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão
Deste modo, não parece ser exagerado afirmar
Rural (PRONATER), foi estabelecida outra missão para
que o PRONAF se tornou um instrumento fundamental
este serviço público: apoiar e favorecer o desenvolvi-
para discussão do desenvolvimento rural no país, pois seu
mento rural orientado pelos princípios da sustentabili-
dade ambiental, social e econômica dos sistemas pro-
2 Francisco Menezes, Segurança Alimentar e Nutricional no du•vos. Esta mudança de percepção se materializou
Brasil, 2010, p. 5-6. com o aumento de inves•mentos para a estruturação

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das agências estaduais de assistência técnica e extensão de cidadania, integrando ações das diferentes esferas
rural (contratação de novos servidores, inves•mentos governamentais e promovendo o envolvimento e a
em infraestrutura e capacitação dos extensionistas), as par•cipação da sociedade civil.
quais passaram a ter maior responsabilidade em relação
Em 2008 foram formados 60 territórios de
ao suporte técnico des•nado que deverá ser des•nado
Cidadania, número que foi dobrado no ano de 2009.
oficialmente ao setor da agricultura familiar.
Dentre os critérios de seleção considerados, destacam-
Especificamente na área agrária, foi lançado se: 1) locais com menor IDH; 2) maior número de
o II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que beneficiários do programa Bolsa Família; 3) maior
possibilitou o acesso à terra a mais de 500 mil famí- concentração de agricultores familiares, assentados
lias na primeira década do século XXI. Paralelamente a da reforma agrária, quilombolas e indígenas; 4) maior
isso, foi ampliado o Programa de Crédito Fundiário e número de municípios com baixo dinamismo econômico;
o Programa de Regularização Fundiária, os quais com- 5) maior organização social. Ficou definido também
plementam as ações governamentais para reordenar o que cada unidade da federação teria pelo menos um
espaço agrário brasileiro. Por fim, para possibilitar um território a ser atendido pelo PTC.
melhor desenvolvimento dos assentamentos rurais, em
A polí•ca de Desenvolvimento Territorial ganhou
2004 foi criado o Serviço de Assessoria Técnica, Social e
um novo impulso no ano de 2010, quando o Conselho
Ambiental à Reforma Agrária (ATES), visando democra-
Nacional de Desenvolvimento Sustentável (CONDRAF)
•zar o acesso dos agricultores assentados à assistência
aprovou a Polí•ca de Desenvolvimento do Brasil Rural
técnica, ao mesmo tempo em que incrementou as ta-
(PDBR) que, em linhas gerais, apresenta à sociedade
xas de cobertura, contribuindo para que os projetos de
brasileira um conjunto de diretrizes de um novo projeto
desenvolvimento dos assentamentos fossem mais bem
de desenvolvimento rural para o país, o qual deve estar
qualificados.
amparado no princípio inclusivo, ou seja, “de um rural
As polí•cas públicas de promoção de desen- com gente”. Neste sen•do, a PDBR orienta as ações do
volvimento rural foram ampliadas ainda mais através Estado buscando valorizar seu papel enquanto órgão
da adoção da dimensão territorial do desenvolvimen- indutor do desenvolvimento das áreas rurais, tendo a
to, buscando superar a ainda dominante concepção abordagem territorial como enfoque central.
setorial da ação do Estado. Com isso, os territórios
Essa polí•ca aprovada pelo CONDRAF escreve
rurais, ao representarem a complexidade da vida e da
um novo marco sobre o significado do rural ao abordá-
produção no campo, colocaram novas demandas às
lo a par•r de seus três atributos básicos e simultâneos:
polí•cas públicas. Neste contexto foi implementado o
enquanto espaço de produção, espaço de relação com
Programa Nacional de Desenvolvimento de Territórios
a natureza e espaço de reprodução de dis•ntos modos
Rurais com elevados inves•mentos em infraestrutura
de vida. Tendo presente essas premissas, a PDBR busca
na agricultura familiar, gerando agregação de valor à
construir as condições polí•cas necessárias para realizar
produção e melhorias nas condições de vida da popu-
uma profunda transição no modelo de desenvolvimento
lação rural.
rural do país, consolidando a incorporação às
Neste sen•do, a polí•ca de desenvolvimento polí•cas públicas de importantes segmentos sociais
dos territórios rurais que vem sendo oficialmente historicamente excluídos e, ao mesmo tempo,
implementada no Brasil desde 2003 tem como fatores reordenando e priorizando as ações do Estado brasileiro
mo•vadores o resgate da importância econômica e a par•r da perspec•va do desenvolvimento territorial.
dos valores rurais para o desenvolvimento do país; a
Desta forma, ao se buscar construir um “Brasil
necessidade premente de combater todos os •pos
rural com gente” adotou-se a abordagem territorial
de desigualdades; e o papel fundamental do sistema
como referencial do desenvolvimento que se almeja,
familiar de produção e da reforma agrária na geração
o qual coloca novos desafios para a intervenção do
de produção, emprego e renda, bem como na própria
Estado, bem como para as organizações sociais. Essa
dinamização socioeconômica local e regional das
abordagem, que ocupa lugar central na PDBR, rejeita
comunidades rurais.
o viés setorial e fragmentado das polí•cas públicas,
O trabalho dessa inicia•va específica no âmbito enquanto instrumentos indutores do desenvolvimento.
do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) Nessa nova abordagem des•na-se grande relevância ao
acabou tendo repercussão posi•va no conjunto do processo par•cipa•vo das organizações da sociedade
governo, levando o mesmo a criar, ainda em 2008, o civil nas diversas etapas da construção das polí•cas
Programa Território da Cidadania (PTC), uma polí•ca do públicas, o que significa es•mular constantemente o
Governo Federal que envolve a estrutura administra•va protagonismo dos atores sociais.
de aproximadamente vinte ministérios e que se
Isto porque o território é visto como um
reveste de ações estratégicas voltadas à promoção do
espaço socialmente construído, dinâmico e mutável,
desenvolvimento em regiões mais deficitárias através
compreendendo de forma interligada as áreas rurais
do mecanismo da universalização de programas básicos
e urbanas e sendo caracterizado por um sen•mento

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de pertencimento e de iden•dade sociocultural, o se firmado, ao contribuir decisivamente tanto na


qual é compar•lhado por uma diversidade de atores comercialização da produção como no fortalecimento de
sociais que se mobilizam visando construir um projeto suas organizações.
de desenvolvimento sustentável. Nesses territórios
Este conjunto polí•cas, programas e ações go-
se organizam espaços públicos de mediação e
vernamentais des•nados especificamente ao público de
concerto das polí•cas públicas, que obrigatoriamente
agricultores familiares de todo o país vem apresentando
precisam superar o caráter fragmentado das ações
resultados extremamente posi•vos em termos de pro-
governamentais.
dução, conforme veremos mais adiante, bem como tem
Ainda no âmbito da agricultura familiar, visando contribuído para a superação de desigualdades historica-
ampliar o suporte estatal à organização produ•va des- mente construídas, especialmente em relação ao aceso
ses agricultores, foi criado no ano de 2006 o Seguro da a terra e aos bene•cios das polí•cas públicas, as quais
Agricultura Familiar (SEAF), com a intenção de diminuir até bem pouco tempo atrás •nham apenas os setores
os riscos com as intempéries que afetam a produção la•fundiários como público preferencial.
agrícola. Na mesma linha, também foi criado o programa
3.2 As respostas produtivas, econômicas e so-
governamental Garan•a Safra, que assegura renda mí-
nima para aqueles que perderam mais de 50% de sua ciais da Agricultura Familiar
produção na área do Semiárido brasileiro. Nas duas úl•mas décadas a expressão “agricul-
Finalmente, destaca-se o Programa de Aquisição tura familiar” se consolidou no contexto econômico e
de Alimentos (PAA), polí•ca pública que tem sua gestão social brasileiro. Em grande medida, esse processo re-
ar•culada a par•r de um grupo interministerial que pro- presenta a conjunção da luta polí•ca dos movimentos
cura garan•r a compra da produção de agricultores fa- sociais rurais capitaneados pelas organizações dos agri-
miliares, bem como formar estoques para dar sustenta- cultores familiares em prol de uma polí•ca pública espe-
ção à polí•ca de segurança alimentar e nutricional, bem cífica para este setor; a própria legi•mação desta bandei-
como suprir demandas de outros programas públicos ra de lutas por parte do Estado quando criou o PRONAF
des•nados ao atendimento de populações carentes e em 1996 e, mais recentemente, quando promulgou a Lei
em condições de pobreza. da Agricultura Familiar (2006); e a retomada dos estu-
dos e debates acadêmicos com dis•ntos olhares sobre a
O PAA foi concebido no bojo de um grupo de ruralidade brasileira, fato que auxiliou na ampliação do
polí•cas estruturantes do Programa Fome Zero (PFZ), escopo temá•co tradicional.
visando implementar ações no âmbito das políticas
agrícola e de segurança alimentar com o objetivo de É justamente esta forma de produção que
fortalecer a política global de combate à fome. Para se encontra em evidência atualmente no meio rural
tanto, buscou-se incentivar a agricultura familiar através brasileiro, ao agregar famílias, propriedades agrícolas,
de ações vinculadas à distribuição de alimentos de trabalho na terra, ao mesmo tempo em que se cultuam
origem agropecuária aos grupos sociais em situação de valores e tradições. Isto tudo conforma uma grande
insegurança alimentar, além de facilitar o processo de diversidade econômica, social e cultural que dinamiza os
comercialização no âmbito local e promover a formação processos sociais rurais.
de estoques estratégicos de alimentos. O marco legal ocorreu em 24 de julho de 2006
De maneira geral, o programa des•na-se à quando o governo promulgou a Lei 11.326, também co-
aquisição de produtos agropecuários fornecidos pelos nhecida como Lei da Agricultura Familiar. Tal disposi•vo
agricultores familiares, sendo possibilitada a compra estabelece que, para fins legais, considera-se agricultor
sem licitação de produtos da agricultura familiar até o familiar aquele que pra•ca a•vidades no meio rural e
limite máximo de R$ 2.500,00 por agricultor ao ano. Os que atende, simultaneamente, aos seguintes requisitos:
preços dos produtos adquiridos não podem ultrapassar a) não detenha área maior que 4 módulos fiscais; b)u•li-
o valor dos preços pra•cados nos mercados locais e/ ze predominantemente mão de obra familiar nas a•vida-
ou regionais, sendo os mesmos determinados pelos des econômicas de seu estabelecimento; c) tenha renda
gestores do programa no âmbito regional. familiar predominantemente originada das a•vidades
econômicas vinculadas ao estabelecimento; d)dirija seu
Diversos estudos mostraram que, embora o estabelecimento com sua família.
volume de recursos e o número de agricultores familiares
envolvidos com o programa ainda sejam modestos Diante deste novo marco legal, o Ins•tuto Brasi-
compara•vamente a outros programas governamentais, leiro de Geografia e Esta!s•ca (IBGE) realizou o Censo
é possível afirmar que esse programa tem apresentado Agropecuário de 2006. Com isso, pela primeira vez exis-
um importante desempenho, especialmente ao a•ngir tem esta!s•cas específicas e especiais sobre a agricultu-
um número significa•vo de pessoas que se encontravam ra familiar brasileira. Estas informações foram disponibi-
em insegurança alimentar, melhorando a qualidade e lizadas em 2009 no documento denominado de “Censo
quan•dade da alimentação disponível. Mas é também Agropecuário Agricultura Familiar. Primeiros resultados,
entre os agricultores familiares que o programa tem Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federação”. Tal

Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, suplemento especial, p. 83-91, out./dez., 2014

89
Lauro Mattei

documento contém informações gerais sobre a caracte- rior. A produção vegetal respondia por 72% do valor da
rização da agricultura familiar no país, com informações produção total da agricultura familiar, com predomínio
rela•vas aos estabelecimentos agropecuários, processos neste percentual das lavouras temporárias.
produ•vos, ocupação da mão de obra e valores da pro-
dução. 4 Considerações finais
Tomando-se como referência esses dados do Cen- São inegáveis os avanços observados nas duas
so Agropecuário (CA) de 2006, observa-se que ocorreu úl•mas décadas no meio rural brasileiro, a par•r do mo-
um crescimento expressivo da agricultura familiar no mento que o Estado decidiu apoiar mais fortemente o
contexto da produção agropecuária brasileira, compara- setor produ•vo classificado como “agricultura familiar”,
•vamente ao úl•mo censo realizado no ano de 1995/96. o qual por quase cinco séculos ficou à margem das ações
das polí•cas públicas de desenvolvimento rural do país.
Do ponto de vista da estrutura agrária, os dados
revelam que o processo de concentração da propriedade Em primeiro lugar, deve-se registrar os resultados
da terra permanece inalterado, uma vez que do total de extremamente posi•vos ob•dos pela agricultura familiar
estabelecimentos agropecuários do país contabilizados em termos produ•vos, especialmente no que concerne à
pelo CA em 2006, 4.367.902 eram de agricultores fami- produção de alimentos básicos. Na recente crise econô-
liares, o que representava 85% do total. Porém, em ter- mica foi possível se observar que a disponibilidade inter-
mos de área ocupada, estes estabelecimentos familiares na de alimentos para o conjunto da população tornou-se
de•nham apenas 24% da área total, o que caracteriza um fator decisivo no controle inflacionário, bem como
a existência da concentração. Este fato foi comprovado contribuiu posi•vamente no sen•do de equilibrar a ba-
pelo Índice de Gini que a•ngiu o patamar de 0,852 no lança comercial.
referido ano.
Em segundo lugar, deve-se ressaltar, também,
Do ponto de vista produ•va destaca-se a gran- o papel relevante da agricultura familiar no sen•do de
de importância da agricultura familiar, com ênfase nas manter grande parte das ocupações rurais sob sua res-
seguintes informações: 87% da produção total de man- ponsabilidade. Os dados do úl•mo Censo Agropecuário
dioca; 70% da produção de feijão; 46% da produção de confirmam essa tendência, uma vez que mais de três
milho; 34% da produção de arroz; 38% da produção de quartos de todas as ocupações existentes atualmente no
café; e 58% da produção de leite. Além disso, os dados meio rural do país estão vinculadas diretamente ao siste-
revelam que 59% do plantel de suínos; 50% do plantel de ma familiar de produção.
aves; e 30% do plantel de bovinos são de responsabilida-
Em terceiro lugar, é importante realçar o papel
de da agricultura familiar.
decisivo que a agricultura familiar desempenha para
Obviamente que esta expressiva expansão da além dos aspectos meramente produ•vos. Assim, em
produção da agricultura familiar tem efeitos sobre o nú- regiões em que predomina este •po de agricultura são
mero de pessoas ocupadas no meio rural. Assim, verifi- gritantes as diferenças, compara•vamente às áreas do-
ca-se que os estabelecimentos familiares ocupavam 12,3 minadas pelo agronegócio, cujo centro dinâmico é dado
milhões de pessoas, enquanto os estabelecimentos pa- pelas commodi•es produzidas em larga escala e volta-
tronais ocupavam apenas 4,3 milhões de pessoas. Isso das aos mercados internacionais. Duas diferenças são
significa que a agricultura familiar respondia por aproxi- visíveis: a maior preservação dos recursos naturais e um
madamente 75% do total das ocupações rurais. espaço "sico ocupado com gente.
Ainda neste quesito ocupação, verifica-se que o É por esta razão que a Política de Desenvolvimento
número de pessoas ocupadas por área de estabeleci- do Brasil Rural (PDBR) recentemente aprovada
mento, segundo França et al. (2009), na agricultura fami- pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural
liar foi cerca de 9 vezes maior que nos estabelecimentos Sustentável (CONDRAF) aposta na dinamização e ocu-
agropecuários não familiares. Além disso, esses autores pação produ•va do espaço rural brasileiro concomitan-
mostram que, num cenário de redução global das ocu- temente à conservação dos patrimônios ambiental e
pações agropecuárias entre os dois úl•mos períodos sociocultural, visando beneficiar todos os segmentos so-
censitários, a agricultura familiar foi capaz de reter um ciais rurais e urbanos, sobretudo daqueles municípios e
número maior de ocupações, compara•vamente à agri- regiões que dependem do funcionamento da economia
cultura não familiar. rural, em par•cular os setores da indústria, do comércio
e dos serviços.
Finalmente, em termos das receitas, o IBGE divul-
gou que 1/3 delas provinha da agricultura familiar. Po- Isto porque se entende que a garan•a da se-
rém, quando se considera o valor total da produção dos gurança alimentar e nutricional; o fortalecimento do
estabelecimentos agropecuários do país, observa-se que mercado interno; a exportação de produtos agrícolas;
a agricultura familiar respondia em 2006 por quase 40% a preservação da biodiversidade; a reprodução do patri-
do valor total. Registre-se que este percentual apresen- mônio cultural das populações rurais; e a manutenção
tou tendência de crescimento em relação ao censo ante- da diversidade territorial dos espaços rurais interessam

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O papel e a importância da agricultura familiar no ...

e beneficiam a toda a sociedade, uma vez que ela pode ______. Polí•cas de desenvolvimento territorial
usufruir de alimentos de qualidade e diversificados, de rural no Brasil: desafios para a construção de um
ambientes naturais preservados e de uma pluralidade marco jurídico-norma•vo. Brasília, 2011b. (Série
de manifestações culturais, etc. Isso revela a perspec•- Desenvolvimento Rural Sustentável, v.13).
va solidária da contribuição da sociedade agrária para o
______. Polí•cas públicas, atores sociais e
funcionamento global da sociedade brasileira.
desenvolvimento territorial no Brasil. Brasília, 2011c.
É à luz dessa concepção de desenvolvimento que (Série Desenvolvimento Rural Sustentável, v.14).
as políticas públicas deveriam buscar criar condições
______. Reflexões sobre polí•cas de desenvolvimento
para uma transição estrutural do atual modelo para um
territorial. Brasília, 2010b. (Série Desenvolvimento
novo projeto de Brasil rural, com gente e produzindo sus-
Rural Sustentável, v.11).
tentavelmente!
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Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, suplemento especial, p. 83-91, out./dez., 2014

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