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Educação do Campo: a trajetória de um projeto de mudanças para

os povos do campo
Ivana Leila Carvalho Fernandes1

Resumo

O artigo apresenta a trajetória da educação rural no


Brasil desde as primeiras iniciativas desenvolvidas pelos
jesuítas, destacando o cenário de desenvolvimento
pensado para o campo, tratando a educação dentro desse
contexto. Apresenta, também, as principais políticas e os
programas educacionais criados para as escolas do campo,
articulando uma discussão com base nas diferenças e nas
especificidades entre espaços rurais e urbanos. O objetivo
é evidenciar as mudanças ocorridas no processo de
educação rural com vistas a um novo projeto de Educação,
reivindicado pelos movimentos sociais. A Educação do
Campo é o resultado das mudanças ocorridas ao longo
da história de lutas e indignações com as políticas criadas
para o campo, contrárias às suas especificidades. Os
movimentos sociais tiveram importante papel na conquista
de políticas públicas, principalmente o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que, desde a década
de 1980, vem lutando para mudar o modelo de educação
implantado no campo. A luta pela educação do campo é
permanente e, em seus avanços, ganha espaço na agenda
política de governos municipais, estaduais e do governo
federal no Brasil.

Palavras-chave

Educação do Campo. Movimentos Sociais. Desenvolvimento.

1. Mestranda em Avaliação de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará, especialista em Agricultura
Familiar Camponesa e Educação do Campo pela mesma instituição, membro do Programa Residência Agrária,
estudante e pesquisadora do Núcleo Multidisciplinar de Avaliação de Políticas Públicas. E-mail: ivanaleilac@
yahoo.com.br.

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Rural Education: the path of a design change for the people of the
field
Ivana Leila Carvalho Fernandes*

Abstract

The article presents the history of rural education in


Brazil since the first initiatives undertaken by the Jesuits,
detaching the scene of development idealized for the field
and as the education has been treated inside to this context.
It also presents the main policies and educational programs
designed for rural schools articulating a quarrel based on
the differences and specificities between rural and urban
spaces. The objective is to evidence the occurred changes
in the process of rural education with sights to a new project
of Education demanded for the social movements. The Rural
Education is the result of the occurred changes throughout
the history of fights and indignities with the policies created
for the field that they do not consider its characteristics
specify. The social movements had an important role in
the achievement of public policies, essentially the MST
that since decade 1980 has been fighting to change the
educational model implanted in the field. The fight for rural
education is permanent, and in its conquests obtains to
enter the programming of cities governments, of the state
and federal government level in Brazil.

Keywords

Rural Education. Social Movements. Development.

* Candidate for a master’s degree in Public Politicts Evaluation at the Federal University of Ceará, specialist in
Peasunt Familiar Agriculture and Rural Education in the same institution, Agrarian Residence Program member,
student and researcher of Multidisciplinar Center of Public Politics Evaluation. E-mail: ivanaleilac@yahoo.com.br.

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Introdução
Historicamente, a educação brasileira capital no Brasil. Assim, o país vai deixando
tem direcionado seu foco para a lógica da de ser “eminentemente agrícola”, de
realidade contemplada nas instituições urbanas, modo que o campo passa a ser visualizado
de modo que ela se reproduza para a situação como um lugar de atraso e que, para se
educacional da zona rural. Isso decorre a partir modernizar, precisaria acompanhar o progresso
do modelo de desenvolvimento implantado no industrial instalado nos centros urbanos.
meio rural brasileiro, que gerou sérios problemas De acordo com Baptista (2003),
para a questão da educação, ofertando essa diferença se dá em relação à visão de
privilégios e promovendo distinção entre grupos mundo que se estabelece entre um espaço
e classes desde a colonização até os dias atuais. e outro. Conforme a autora, para a escola
De acordo com Silva (2004), o termo ajudar a construir um novo modo de vida
“desenvolvimento” passou a ser utilizado, no e de desenvolvimento, é preciso considerar
Brasil, a partir da década de 1940, originado na tarefas específicas no campo, tais como:
linguagem biológica para explicar os processos
de transformações pelos quais passa os seres O resgate e o fortalecimento da auto-estima
do agricultor familiar. Descobrir o que existe
humanos em todas as fases da vida. Ao longo da
de prazeroso em ser agricultor, pois o que, até
história, o conceito foi gerando novos sentidos: agora, a escola fez foi insistir no vergonhoso e
pesaroso. Não se trata apenas de adaptações
Com o aparecimento da indústria e a sua curriculares, de didática, mas de postura, de
consolidação enquanto processo em alguns filosofia, de visão de mundo, de tarefa política
países da Europa, começa a ocorrer uma especifica no meio rural (BATISTA, 2003, p.
mudança radical no modo pelo qual os 40).
vários países buscam sustentação econômica.
O processo de industrialização modifica
profundamente a estrutura econômico-social
Para o alcance dessas mudanças, uma
dos países envolvidos nessa “nova” atividade. longa trajetória foi percorrida pela educação
As consequências para essas localidades são rural marcada por lutas significativas por um novo
tão evidentes que em muito pouco tempo a projeto político-pedagógico para a realidade
industrialização configura-se como sinônimo educacional do campo. Denominado “Educação
de desenvolvimento [...] O progresso técnico
difundiu-se, rapidamente, modificando os
do Campo”, esse trabalho é concebido na década
estilos de vida e de consumo e o projeto de 1990, advindo de um passado marcante
de melhoria da qualidade de vida da e excludente no cenário rural brasileiro.
população centrado apenas na modernização
da economia começou a se estruturar e
se fortalecer. Ganhava força o modelo de Educação Rural: história de
desenvolvimento alicerçado na ideia da invisibilidades dada às especificidades
industrialização dos países. Mas essa forma do campo
de pensar não demorou muito a se mostrar
profundamente desigual, determinando
ritmos de progresso diferenciados, conforme Para Marinho (2008), a educação rural
o país e a região em que estivesse localizado foi prejudicada ao longo da história de nosso
(SILVA, 2004, p. 3). país pelo fato de o sistema educacional não
considerar o meio em que vive o educando,
Para Silva (2001), na década de 1950, já que sustenta a ideia do reprodutivismo
a indústria vai assumindo, gradativamente, na escola. Dessa forma, o espaço escolar, ao
o comando no processo de acumulação do invés de ser um lugar de transformação da

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realidade, “finda” por não cumprir sua função, maioria era formada de índios, negros,
fortalecendo as desigualdades sociais. Isso escravos e mulheres, pessoas que não tinham
direito à educação;
porque, para além do “íntimo” da realidade da
vida no campo, as iniciativas políticas no âmbito
4ª Uma educação rural dependeria do apoio
da educação, geradas ao longo da nossa história, do senhor das terras, se ele não reconhecia a
não apresentam, em suas diretrizes, o interesse educação como algo importante, logicamente
real pelas especificidades dos diferentes sujeitos não iria apoiá-la (MARINHO, 2008, p. 27).
que habitam o campo brasileiro. Estas pessoas
têm suas características particulares, de certo Nesse sentido, é possível perceber,
são heterogêneas, por isso merecem, do Estado, historicamente, a diferenciação dada às classes
políticas públicas exclusivamente criadas a fim dominantes, acompanhada de exclusão social,
de atender, de forma própria, cada realidade. em decorrência da concentração fundiária, da
Para entender as dificuldades do Estado escravidão e da invasão das terras dos índios.
em adequar as políticas públicas de educação à Esse cenário permanece no contexto do
realidade do campo, é preciso analisar o modelo Primeiro Império no Brasil, marcado por revoltas
educacional implantado no Brasil desde o período em prol de um novo regime político e com uma
colonial. Para os nativos (índios), uma educação sociedade dominada por uma elite burguesa
dominadora, e para os filhos dos portugueses, preocupada com as principais questões políticas
um sistema de educação implantado com o da época, como a libertação dos escravos, a
objetivo de desenvolver os processos de ensino- república e a industrialização. As questões rurais
aprendizagem proveniente da cultura europeia, não faziam parte dos interesses políticos. Não
que já possuía 300 anos de experiência, interessava à elite discutir a educação rural, a
incluindo universidades (MARINHO, 2008). reforma agrária, os direitos dos trabalhadores
Conforme Marinho (2008), apesar rurais. Contudo, os conflitos de terras2, que
de o Brasil, nessa época, ser uma enorme vinham se estabelecendo em todo o país, e
zona rural não se pensava em educação a iminência do fim da escravatura punham
rural, isso devido a quatro causas: em risco a propriedade de terras e obrigava a
elite a um posicionamento diante dos fatos.
1ª Para o governo português, o Brasil era terra Conforme Morissawa (2001), nesse
de exploração e não de investimento, assim as
riquezas deveriam sair daqui para a Europa e
contexto é que o Império decretou a Lei
não fazer o inverso; de Terras em 1850, por saber que o fim da
escravatura seria inevitável e que essa questão
2ª A atividade econômica do país era braçal e agravaria os conflitos por terra. Assim, a lei
não requeria uma mão de obra especializada, surge para restringir o direito à posse de terra.
pois para trabalhar no campo, extrair minério, Somente teria acesso à posse de terra os que
ou cuidar do gado, o homem não precisa saber
ler nem escrever, para os senhores, melhor tivessem capital para adquiri-la, o que fortalecia
não saber mesmo, é mais fácil a manipulação; o processo de exclusão até então existente.
Com o fim do escravismo, os homens
3ª A população brasileira na sua grande livres começam a vender sua força de

2. No final do século XVIII, os latifúndios ocupavam todas as regiões economicamente importantes. Os donos
não permitiam o estabelecimento de lavradores em suas terras, a não ser como dependentes. Isso fez com que
muitos se tornassem posseiros de pequenas porções existentes entre uma propriedade e outra [...] Em 1822 não
havia mais terras a distribuir, de modo que foram suspensas as concessões. Começou então a ocupação pelo
sistema de posses. O período marcado até 1850 ficou conturbado por conflitos entre posseiros e latifundiários.
(MORISSAWA, 2001).

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trabalho para os fazendeiros. Além disso, sociedade oligárquica para urbana industrial.
os imigrantes europeus chegam ao país Essa mudança refletiu profundamente no
para trabalhar nas fazendas, aumentando, sistema educacional do país que voltava todos
significativamente, a massa da população rural. os esforços para acompanhar o momento,
Devido à grande parcela da população inclusive o campo, que também entrava
concentrada na zona rural e à existência de uma na lógica da modernização e implantava os
classe intermediária que começa a perceber novos conhecimentos por meio das Políticas
que não só o dinheiro poderia levar à ascensão de Assistência Técnica e Extensão Rural.
social, no segundo Império apareceram as As primeiras noções para uma política
primeiras intenções para a educação rural: educacional no país surgem a partir da
Constituição de 1934, que estabelecia a
Almeida (1889), parafraseando o imperador, necessidade de criação de um Plano Nacional
diz que uma primeira série de conhecimentos de Educação que fiscalizasse as atividades de
deveria ser dada tanto para o pobre quanto
ensino em todo o Brasil. Neste momento, foi
para o rico, para os menos inteligentes e para
os mais inteligentes, pois a oportunidade implantada a gratuidade e o ensino primário
de saber contar, ler e escrever deveria ser tornou-se obrigatório. Quanto ao ensino
oportunizada para todos (MARINHO, 2008, religioso, tornou-se opcional. Foi reconhecido,
p. 41). então, o direito de todos à educação (MARINHO,
2008).
Conforme Marinho (2008), as escolas As diretrizes para o Plano Nacional de
no meio rural eram construídas, mas não Educação são demarcadas em linhas gerais,
funcionavam, principalmente as escolas não deixando claro o que, especificamente,
agrícolas criadas nesse período, que não estaria reservado às escolas rurais.
possuíam os instrumentos necessários Souza (2006) aponta outras iniciativas
para o seu funcionamento. A proposta de do Estado em relação à educação rural.
educação para as escolas do campo eram No ano de 1937, foi criada a Sociedade
as mesmas criadas para as escolas urbanas. Brasileira de Educação Rural com o objetivo
Com a mudança do modelo de governo de expansão do ensino e a preservação da
de Império para República, as políticas no arte e do folclore rural. Na década de 1940,
Brasil continuaram a atender o interesse das foi criada a Comissão Brasileira-Americana de
elites dominantes e o latifúndio permanecia Educação das Populações Rurais, cujo objetivo
com a sua posição de destaque nas relações era a implantação de projetos educacionais e
políticas do país. Contudo, o período é o desenvolvimento das comunidades rurais.
marcado por uma forte presença do movimento Conforme Nagle (1974), nas primeiras
anarquista, pela fundação do Partido Comunista décadas da República, houve um grande fluxo
do Brasil (PCB) e pela efervescência do migratório do campo para a cidade, o que fez
movimento operário. O primeiro período surgir, no campo, um movimento ruralista que
republicano (1889-1930) ficou caracterizado pretendia convencer os homens a permanecerem
pelo comando político dos coronéis e pela na zona rural. A partir desse movimento, nasce
insatisfação das massas civis e militares contra o “ruralismo pedagógico”, um projeto que
o então sistema de governo. Inicia-se, assim, atendia aos interesses dos fazendeiros em
um modelo de política educacional Estatal, manter os trabalhadores rurais no campo e
porém sem demarcações para o mundo rural. daqueles que temiam a superpopulação das
O período datado de 1930 a 1936 cidades. A proposta era levar uma educação
ficou caracterizado pela transição de uma para o meio rural brasileiro no sentido de

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impedir a migração e fixar o homem no campo. Popular. No campo havia um contexto de
O ruralismo pedagógico não resolveu o emergência de movimentos sociais rurais,
a exemplo dos bóias-frias, movimentos de
problema da educação no meio rural, já que surgiu luta pela permanência na terra e contra a
sem nenhuma proposta nova para as pessoas do expropriação (SOUZA, 2006, p. 54).
campo e não pretendeu despertar o homem
do campo para sua condição social excludente. Era um momento em que existia um
A principal preocupação do governo forte antagonismo entre as classes, com greves,
nesse período era qualificar mão de obra para ocupações, reivindicações e um forte clamor
a indústria e, como bem disse Silva (2001), o por parte dos camponeses pela realização da
campo também precisava se modernizar, pois o Reforma Agrária. Para acalmar os anseios do
atraso da agricultura brasileira era um empecilho povo o presidente João Goulart3, em 1961,
ao desenvolvimento do país. Assim, no início de anuncia suas reformas de base, dentre elas, a
1960, instalam-se no país as fábricas de máquinas Reforma Agrária. O governo absorveria terras
e insumos agrícolas. Com isso, a agricultura improdutivas dos latifundiários e distribuiria aos
brasileira teria que criar um mercado consumidor camponeses (MORISSAWA, 2001). Para o então
para esses “novos” meios de produção. Para Presidente da República, a Reforma Agrária era
garantir a ampliação desse mercado, o Estado necessária à vida social e econômica para que
criou um conjunto de políticas agrícolas
o país pudesse progredir sua indústria e para o
destinadas a incentivar a aquisição dos produtos
bem estar de seu povo (STÉDILE, 2005, p. 105).
desse novo ramo da indústria (SILVA, 2001).
Essa ideia retrata a fixação dos governos pelo
Na década de 1950, outras ações
crescimento da indústria e, consequentemente,
foram criadas para a preparação de técnicos
de um modelo de desenvolvimento para o país.
destinados a educação de base rural e
Com o golpe militar de 1964, João
programas de melhoria de vida dos agricultores
Goulart foi deposto. Num momento seguinte,
como a Campanha Nacional de Educação Rural
em 1964, o presidente Castelo Branco4
e o Serviço Social Rural. Na década de 1960,
anuncia a primeira lei de Reforma Agrária do
com a criação da Lei de Diretrizes e Bases da
Brasil (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de
Educação, Lei nº 4.024/61, ficou comprovada
1964), denominada Estatuto da Terra que,
a marginalidade da Educação do Campo,
segundo Morissawa (2001), não foi implantada.
uma vez que foi delegada aos municípios a
Para Marinho (2008), o grande erro
estruturação da escola fundamental rural.
assumido pelo país, na década de 1960, foi
Nessa década foram organizados os Centros acreditar que se deveria dar uma educação para
Populares de Cultura e o Movimento o desenvolvimento e não para a formação de
Educacional de Base, ligados a partidos de uma consciência crítica, na qual o homem teria
esquerda e com sustentação ideológica no que mostrar que sabe pensar como cidadão e
trabalho desenvolvido pelas ligas camponesas,
sindicatos e ação pastoral de bispos da Igreja
que não era um mero joguete de ideologias,
Católica. Assim foram desenvolvidos grupos características de uma sociedade capitalista.
de Alfabetização de Adultos e Educação Com a Lei 5.692/715 e a preocupação
3. João Goulart assumiu a presidência da República em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros num momento
em que havia efervescência das lutas operárias e camponesas em todo o país (MORISSAWA, 2001, p. 83).
4. Em decorrência do golpe de 1964 ocupou o lugar de Presidente da República, em seu governo introduziu a
reforma agrária, mediante a criação de títulos da dívida pública destinados a facultar a indenização sem onerar de
imediato ao Tesouro (MORISSAWA, 2001).
5. O objetivo geral desta lei era dar ao educando uma formação indispensável ao desenvolvimento das
potencialidades, preparando-o para o trabalho e o exercício consciente da cidadania (MARINHO, 2008)

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com o desenvolvimento socioeconômico do de abertura política em um contexto de discurso
país, o analfabetismo volta a ser foco das políticas democrático aclamado por diferentes forças
públicas. Foram criados projetos especiais sociais e políticas, como afirma Oliver Costilla.
como, por exemplo, o EDURURAL, que veio
a funcionar na década de 1980, para melhorar De 1985 a 1988, o Brasil viveu o auge de
a educação no meio rural (SOUZA, 2006). importante momento político-coletivo-
democrático, encarnado na constituinte
Na década de 1970, a intenção e constituição de 1988, documento de
do desenvolvimento com base na importância suprema para entender a situação
indústria permanece e o analfabetismo que ainda persiste, referente ao encontro
se apresenta como um dos principais entre renovada sociedade política dirigente
obstáculos ao desenvolvimento do país. e as demandas expressas da sociedade civil
em luta. Havia soma e contradição entre
Além do EDURURAL, o Movimento sociedade política e sociedade civil, entre
Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), criado uma sociedade política “democrática”,
em 1967, iniciou suas ações. O principal objetivo dominada pelas forças conservadoras, e
do MOBRAL era erradicar o analfabetismo uma sociedade civil “democrática”, influída
no campo e na cidade. Nem o EDURURAL pelas ideias populares sobre direitos sociais e
políticas públicas universais, visando diminuir
e nem o MOBRAL conseguiram com suas a desigualdade social e a exclusão secular
ações acabar com o analfabetismo no país. e profunda, mas ingênua, com respeito à
A Lei 5.692/71, em seu artigo 11, unidade entre economia e política (OLIVER
preconizava que o ensino na zona rural COSTILLA, 2006, p. 28).
deveria ser adaptado ao calendário agrícola.
Portanto, a escola poderia organizar seu No contexto das demandas da
calendário com previsão de férias na época sociedade civil, a Reforma Agrária continua
do plantio e da colheita. De acordo com a ser uma das grandes questões vinculadas às
Andrade (1993), essas medidas não mudaram, desigualdades sociais. Dentre a diversidade
efetivamente, a realidade do ensino rural. de movimentos sociais da época, surge o
Ainda na década de 1970, a lógica de Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
que os agricultores são atrasados em relação Terra (MST), para dar continuidade às lutas que
aos sujeitos da cidade permanece e a saída para se travam pela terra no país. O MST realizou
a adequação à modernização continua sendo uma série de ocupações, manifestações e
a educação. No final da década, é criado o III enfrentamentos contra o Estado, exigindo
Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto soluções para os problemas do povo do campo.
– PSECD (1980-1985), que surge com a proposta Conforme Morissawa (2001), em
de priorizar as populações carentes do meio rural 1985, o Instituto Nacional de Colonização
e das periferias urbanas, visando corrigir, pela e Reforma Agrária (INCRA) entregou às
indução governamental, os problemas sociais lideranças políticas um plano intitulado Plano
gerados pelo desenvolvimento econômico Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que
(ANDRADE, 1993). O momento histórico de tinha como objetivo dar aplicação rápida ao
criação do III PSECD foi marcado pelo fim do Estatuto da Terra e viabilizar a Reforma Agrária.
milagre econômico, pelo acirramento da pobreza O anúncio do PNRA despertou uma
e pelo desmoronamento da ditadura militar. A série de reações contrárias. Grupos da elite
educação deveria estar alinhada aos interesses dominante, empresários rurais, latifundiários e
do governo e, ideologicamente, contribuir representantes parlamentares demonstraram
para o desenvolvimento econômico do país. insatisfação e pressionaram o governo
A década de 1980 apresenta um cenário contra a realização do plano. Além disso, a

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violência no campo contra os trabalhadores Segundo Kolling e colaboradores (2002),
rurais aumentou e os conflitos por terra se a luta dos movimentos sociais e sindicais
acirraram, o que demonstrou a incapacidade pela melhoria da qualidade da educação
do PNRA de efetivar a reforma prometida. no campo, iniciada na década de 1980,
firmava a ideia de construir um modelo de
Educação do Campo: conquistada a educação que estivesse em harmonia com as
partir das lutas dos movimentos sociais particularidades da vida real dos camponeses.
Essa luta culminou no I Encontro Nacional
De acordo com Souza (2006), o MST de Educadores na Reforma Agrária (ENERA),
iniciou, na década de 1980, as primeiras realizado em Brasília, no ano de 1997. O
discussões sistematizadas sobre o futuro das encontro marcou o início de um movimento
crianças acampadas e sobre a garantia de escolas de lutas pela Educação do Campo, na intenção
em assentamentos que estavam sendo criados. de garantir que todas as pessoas que vivem
É a partir das conversas e reivindicações no meio rural tenham acesso à educação
realizadas pelo MST, por um projeto pública e de qualidade em seus diversos níveis,
transformador da educação e da escola, que voltada aos interesses da vida no campo.
começam a surgir, por via das políticas públicas,
No ENERA participaram cerca de 700 pessoas,
programas e projetos com propostas diferentes sendo assentados e acampados, educadores
das que já se haviam conhecido, por incluir nessas a maioria, representantes de universidades
propostas o sentido da Educação do Campo. e de instituições que apoiam o Movimento
Para o MST, a escola corresponde a um ou com ele têm parceria. O eixo de reflexão
do ENERA eram problemas econômicos,
instrumento de continuidade da luta. Mas, para sociais e educacionais de acampamentos/
ser esse instrumento, o ambiente escolar precisa assentamentos. Analisou-se da educação
ensinar a realidade em que a criança vive, no infantil à educação de jovens e adultos. As
assentamento e no mundo (ANDRADE, 1993). principias conclusões mostraram que apesar
do descaso e do abandono do governo
Essa ideia é contra hegemônica ao modelo
federal, efervesciam experiências, frutos de
de educação pensado para o campo e, de acordo concepções pedagógicas desenvolvidas na
com Souza (2006), esse projeto e a Educação luta pela Reforma Agrária pelos militantes do
Rural têm intenções completamente diferentes: MST (MOLINA, 2003, p. 49).

A Educação do Campo nasceu dos Os frutos dos debates no ENERA geraram a


pensamentos, desejos e interesses dos proposição do Programa Nacional de Educação
sujeitos do campo, que nas últimas décadas
intensificaram suas lutas, especializando-se
na Reforma Agrária (PRONERA) e a Conferência
e territorializando-se, formando territórios Nacional por uma Educação Básica do Campo,
concretos e imateriais, constituindo que foi realizada no ano seguinte (1998), na
comunidades e políticas, determinando seus cidade de Luziânia, em Goiás. A mesma teve
destinos na construção de suas ideologias, como objetivos reafirmar a existência do campo
suas visões de mundo. A educação rural
nasceu da cabeça dos ruralistas como forma
e lutar, legitimamente, por políticas públicas
de subordinar os camponeses, de reservar específicas, pensando a educação como um
a eles um controlado espaço nas políticas projeto educativo próprio para seus sujeitos.
de educação para “civilizar” e manter a Segundo Molina (2003), esses eventos
subordinação. Assim por quase um século, foram promovidos pelo Movimento dos
a Educação Rural não promoveu políticas
autênticas, não propôs o desenvolvimento
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e
educacional do campesinato (SOUZA, 2006, apoiados pela Conferência Nacional dos Bispos
p. 16). do Brasil (CNBB), Fundo das Nações Unidas

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para a Infância (UNICEF), Organização das Essas diretrizes, segundo Henriques
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura e colaboradores (1997), representam um
(UNESCO) e Universidade de Brasília (UNB). importante marco para a Educação do
Silva (2006) acrescenta que, além do MST, Campo, porque contemplam e refletem
contribuíram para a construção da Educação um conjunto de preocupações conceituais
do Campo os seguintes movimentos sociais: e estruturais presentes, historicamente, nas
Movimentos Indígenas, Movimento Nacional reivindicações dos movimentos sociais. Dentre
dos Pescadores (MONAPE), Movimento dos elas, o reconhecimento e a valorização dos
Atingidos Por Barragens (MAB), Coordenação povos do campo; a formação diferenciada
Nacional dos Quilombolas (CONAQ), Conselho de professores; a possibilidade de diferentes
Nacional dos Seringueiros (CNS), Movimento formas de organização da escola; a adequação
de Agricultores e Trabalhadores Rurais, e dos conteúdos; as peculiaridades locais; o
Movimentos de Mulheres Trabalhadoras Rurais. uso de práticas pedagógicas contextualizadas;
No ano de 2004, esses movimentos, em a gestão democrática; a consideração dos
parcerias com outros movimentos e instituições tempos pedagógicos diferenciados; a promoção
governamentais e não governamentais, por meio da escola, do desenvolvimento
realizaram em Luziânia, Goiás, a 2ª Conferência sustentável e do acesso aos bens econômicos,
Nacional por uma Educação do Campo. O sociais e culturais. Dessa forma, a educação
momento era considerado propício pelos básica, para os camponeses, não pode ter
participantes do evento, pois, em meio à somente aspectos de escolarização formal.
situação política atual do país, seria possível um A educação não formal tem caráter popular,
debate democrático sobre campo e educação, faz parte do dia a dia do camponês, do fazer
uma vez que a discussão girava em torno Educação do Campo, a partir das experiências
de como efetivar, no Brasil, um tratamento alternativas de conhecimento empírico, de
público específico para a Educação do Campo. resistência e de recriação da cultura do campo.
Muitos encaminhamentos foram Conforme Caldart (2004), a discussão
decididos nessa Conferência, dentre eles os permanente sobre a questão da Educação do
participantes se comprometeram a lutar para: Campo, na pauta de lutas e de trabalhos de
articular e coordenar a construção de uma movimentos sociais e sindicais de trabalhadores
Política Nacional de Educação do Campo, criar rurais, vem pressionando a inclusão do tema
uma política de financiamento diferenciado para na agenda de governos municipais, estaduais
a Educação do Campo, articular uma política e federal, o que tem resultado na criação de
de Educação do Campo com as diferentes políticas públicas no tocante ao cenário do
políticas públicas, garantir a participação campo.
dos movimentos sociais nos Conselhos de Nesse sentido, no ano de 1998, o
Educação, nacional, estaduais e municipais, e Ministério do Desenvolvimento Agrário cria o
em outros espaços institucionais (CENEC, 2004). Programa Nacional de Educação na Reforma
Caldart (2004) afirma que a organização Agrária (PRONERA), por meio da Portaria nº
dos trabalhadores e trabalhadoras rurais tem 10/98 do Ministério Extraordinário de Política
resultado em conquistas significativas no Fundiária, a fim de implantar ações educativas
âmbito da luta por políticas públicas, e cita, para as populações dos acampamentos e
como exemplo, a aprovação das Diretrizes assentamentos rurais, com o objetivo de
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas fortalecer o mundo rural como território de
do Campo (Parecer n° 36/2001 e Resolução n° vida em todas as suas dimensões: econômicas,
1/2002 do Conselho Nacional de Educação). políticas, culturais e éticas (INCRA, 2004).

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Dessa forma, a Educação do Campo que se deve usar Educação “do” campo e
contempla expectativas de progresso para não “no” campo (ou educação rural), pois no
além da escola possibilitando transformações caso o “do” retrata o direito do povo a uma
nas condições de vida no campo. O educação pensada desde o seu lugar e com
campo tratado aqui faz referência à a sua participação vinculada à sua cultura e
às suas necessidades humanas e sociais. O
realidade de vida camponesa e as lutas sociais “no” campo apresenta o direito do povo de
e culturais dos grupos que hoje tentam garantir ser educado no lugar onde vive, porém não
a sobrevivência do trabalho camponês6
(FERNANDES, CERIOLI; CALDART, 2009, p.
inclui a sua participação na decisão do tipo de
25). educação em que vai receber (CALDART, 2002).
Por essa razão, a Educação deve ser
De acordo com Caldart (2007), a Educação construída com a participação do povo do
do Campo assume-se como especificidade campo e, com base nisso, voltada para as suas
na discussão de país, de política pública e de especificidades. Arroyo (2004) lança um desafio
educação que trata das questões do campo, às políticas públicas no sentido de que possam
dos seus sujeitos e dos processos formadores superar essa lógica de Educação direcionada ao
em que estão socialmente envolvidos: povo, ou seja, aquela que pensa “no” campo
– e afirma que é preciso incentivar e criar
Não tem sentido, dentro da concepção social condições para que olhares ultrapassados e
emancipatória que defendemos, afirmar a imaginários sobre o campo e, especificamente,
especificidade da Educação do Campo pela sobre a educação – sejam avaliados e
educação em si mesma; menos ainda pela
interpretados sobre o ponto de vista “do” campo.
escola em si mesma (uma escola específica ou
própria para o campo). Isso é reducionismo; Nesse sentido, em 2010, a Educação do
politicamente perigoso e pedagogicamente Campo passa a ser reconhecida como Política
desastroso (CALDART, 2007, p. 3). Pública, a partir do Decreto n° 7352, de 4 de
novembro desse mesmo ano, que destaca
É fundamental considerar o vínculo os princípios dessa política como sendo:
de origem da Educação do Campo com as respeito à diversidade do campo em seus
lutas por educação nas áreas de Reforma aspectos sociais, culturais, ambientais, políticos,
Agrária, assim como recordar que a Educação econômicos, de gênero, geracional e de raça
do Campo nasceu como crítica à realidade e etnia; incentivo à formulação de projetos
da educação brasileira, particularmente à políticos-pedagógicos específicos para as
situação educacional do povo brasileiro que escolas do campo; desenvolvimento de políticas
trabalha e vive no/do campo (CALDART, 2004). de formação de profissionais da educação
O sentido “no” e “do” remete a uma para o atendimento da especificidade das
acepção política para o termo Educação do escolas do campo; valorização da identidade
Campo, criado pelos movimentos sociais e da escola do campo; controle social da
compreendido a partir do entendimento de qualidade da educação escolar (BRASIL, 2010).

6. O significado de campo é extraordinariamente genérico e representa uma diversidade de sujeitos que, no


Brasil, em algumas porções do Centro-Sul, tem a denominação de caipira [...]. No Nordeste, é curumbá, tabaréu,
sertanejo, capiau, lavrador [...]. No Norte, é sitiano, seringueiro. No Sul, é colono, caboclo. Há um conjunto de
outras derivações para as diversas outras regiões do país: caiçara, chapadeiro, catrumano, roceiro, agregado,
meeiro, parceiro, parceleiro, entre muitas outras denominações, e as mais recentes são: sem-terra e assentado
[...]. Possui significado histórico e político que perpassa as principais lutas de resistência como Canudos,
Contestado, Porecatu, Trombas e Formoso, Ligas Camponesas e MST (FERNANDES; CERIOLI; CALDART, 2009).

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Considerações Finais A luta pela Educação do Campo resgata
o valor do trabalho camponês e dos povos
Apesar de o modelo dominante de do campo, faz pensar e compreender que
ensino e educação prevalecer atualmente, o campo é peculiar e merece ser respeitado
iniciativas como a Educação do Campo por suas diferenças; diferenças que fazem
tem sustentado uma luta no sentido contra deste espaço um lugar único e de grande
hegemônico ao modelo vigente, tanto para importância para o progresso nacional.
os espaços em que a educação se desenvolve Muitos passos já foram dados na
de maneira formal como para os informais. perspectiva da Educação do Campo, o que
Buscou-se discutir, neste artigo, a não significa dizer que todos os objetivos
história da educação rural e os caminhos foram alcançados. É preciso permanecer na
que levaram os movimentos sociais a lutar luta por direitos e valorização do campo para
por um projeto diferente de educação e de avançar cada vez mais em busca de um novo
desenvolvimento para a realidade do campo. modelo de desenvolvimento para o país.

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