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Gersem Baniwa

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA:


ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS

Gersem Baniwa *

RESUMO
O depoimento objetiva produzir reflexões políticas e teóricas sobre o alcance prático
dos direitos indígenas no Brasil, no campo das políticas de educação escolar indígena,
a partir das mudanças provocadas pela Constituição Federal de 1988. Recorrer à
história recente de processos de escolarização dos povos indígenas possibilitará sugerir
a necessidade de um aperfeiçoamento nas estratégias desenhadas no âmbito dos
planos de médio e longo prazo do movimento indígena e indigenista brasileiro para a
ampliação e efetivação dos direitos a uma educação intercultural específica e
diferenciada, ameaçados pela nova onda de igualitarismo e universalismo. Os direitos
à educação escolar dos povos indígenas, antes de 1988, no Brasil, tiveram como
fundamento e fim garantir e facilitar o processo de integração dos índios à chamada
comunhão nacional ou mesmo a uma eliminação física, para abrir caminho aos projetos
de expansão territorial e econômica do Poder Colonial. A escola foi considerada e
tratada como um poderoso instrumento para isso. Em razão disso, os principais desafios
enfrentados na atualidade passam pela necessidade de superação das práticas
seculares de tutela ou semi-tutela para apostar no verdadeiro protagonismo e
autonomia indígena na construção e gestão de seus processos de educação associados
aos seus projetos societários do presente e do futuro.
Palavras-chave: Educação escolar indígena – Movimento indígena – Tutela e semi-
tutela – Autonomia indígena

ABSTRACT
INDIGENOUS FORMAL EDUCATION: THE STATE AND SOCIAL
MOVEMENTS
This account aims to produce political and theoretical reflections upon the practical
limit of indigenous rights in Brazil in the field of indigenous school policies, especially
on the base on the novelties introduces by the federal constitution of 1988. Coming
back to the recent history of the process of indigenous integration within the official
schooling system will turn possible to suggest the need of an improvement in the
indigenous strategies drawned in short and long term which are threatened by the
new wave of egalitarianism and universalism. Indigenous right to education before
1988 in Brazil was based on the project of integration indigenous people within the

* Mestre em Antropologia Social. Doutorando em Antropologia pela Universidade de Brasília. Atual Diretor-Presidente do
Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP), Conselheiro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e Coordenador-Geral
de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação. Endereço para correspondência: Universidade de Brasília, Campus
Universitário Darcy Ribeiro, Departamento de Antropologia, Asa Norte, Brasília/DF. E-mail: gersem@terra.com.br /
gersem@unb.br

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Educação escolar indígena: estado e movimentos sociais

national community when it did not aim at the simple physical elimination to open the
way to economic and territorial expansion. School was considered a powerful tool in
this sense. For this reason, the major present challenge is to go beyond the secular
practices of custody or half-custody, so as to invest in real protagonism and indigenous
autonomy in the construction and management of the educational process which are
key to their future.
Keywords: Indigenous school – Indigenous movement – Custody and half-custody –
Indigenous autonomy

Introdução Essas mudanças normativas, no âmbito do Es-


tado brasileiro, produziram resultados parciais sig-
Este breve depoimento objetiva produzir re- nificativos na história dos povos indígenas, seja no
flexões políticas e teóricas sobre o alcance práti- campo do direito e das políticas governamentais,
co dos direitos indígenas no Brasil a partir das seja na esfera da vida cotidiana de aldeia. No âm-
mudanças provocadas pela Constituição Federal bito concreto da vida cotidiana, a recuperação da
de 1988, no campo das políticas indigenistas e in- auto-estima em função das possibilidades de con-
dígenas do país, da perspectiva do processo de tinuidade étnica e de acesso aos benefícios mate-
escolarização dos povos indígenas. Recorrer à riais e tecnológicos do mundo moderno está
história recente possibilitará sugerir a necessida- possibilitando a reafirmação das identidades repri-
de de um aperfeiçoamento nas estratégias dese- midas e a (re)elaboração / (re)construção de no-
nhadas no âmbito dos planos de médio e longo vos projetos societários para o futuro. Neste sentido,
prazo do movimento indígena brasileiro, para a o processo de escolarização ganha força e nova
manutenção e garantia dos direitos indígenas a perspectiva, o de uma educação escolar específi-
uma educação escolar própria, ameaçados pela ca, diferenciada, intercultural e multilíngue.
nova onda de igualitarismo e universalismo a par- A criação e implementação de políticas públi-
tir das quais são interpretados e aplicados. Os cas dirigidas aos povos indígenas no Brasil têm sido
direitos indígenas antes de 1988, no Brasil, tive- o resultado de intensas e longas lutas de lideranças
ram como fundamento e fim garantir e facilitar o indígenas apoiadas por seus aliados não-indígenas,
processo de integração dos índios à chamada co- geralmente denominados de assessores, parceiros
munhão nacional ou mesmo a uma eliminação fí- e apoiadores. Mas há grandes diferenças entre as
sica, para abrir caminho aos projetos de expansão formas de instauração dessas políticas ao longo da
territorial e econômica do Poder Colonial. A es- história do Brasil. O que interessa aqui, para o nosso
cola foi considerada e tratada como um poderoso objetivo, é caracterizar as tendências atuais nos
instrumento para isso. modos de relacionamento do Estado com os povos
Foi a Constituição Federal de 1988 que trouxe indígenas, por meio da política educacional e as
uma nova base legal e conceitual de mudança da possibilidades de ações voltadas para atender os
visão e relação colonial, trazendo a perspectiva da direitos indígenas a uma educação própria garanti-
cidadania indígena (sujeitos coletivos de direitos dos pela atual Constituição Federal. Compreender
universais e específicos), do protagonismo indíge- esse cenário sociopolítico pode ajudar na compre-
na (reconhecimento da capacidade civil) e da au- ensão dos atuais níveis de discussões em torno das
tonomia indígena (capacidade de pensamento e de políticas de educação escolar indígena, os desafios
auto-representação), possibilitando pensar um novo a serem enfrentados e as possibilidades e oportu-
espaço e uma nova função social para a escola, nidades que se apresentam. Farei este breve pa-
agora com potencial instrumento de valorização e norama histórico, tratando de dois aspectos que
fortalecimento das identidades étnicas dos povos considero relevante e substantivo na construção
indígenas, de suas tradições, culturas, línguas e do atual desenho de “estado da arte” da política
valores próprios. educacional brasileiro.

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O primeiro aspecto diz respeito à notória dife- A política educacional brasileira, mais conser-
rença entre a forma de relacionamento do Estado vadora por sua própria história, tem seguido um
brasileiro com os povos indígenas, no período pos- ritmo mais lento na inclusão dos povos indígenas
terior à Constituição Federal de 1988, e as que nos processos de discussão, formulação e execu-
perduraram durante os séculos anteriores. Os lon- ção de políticas e ações dirigidas às aldeias. Dife-
gos períodos colonial e imperial e os primeiros sé- rentemente da saúde indígena, a educação escolar
culos da República foram marcados por políticas indígena não se constitui como um subsistema do
educacionais autoritárias, arbitrárias, isoladas e suposto “Sistema” Nacional de Educação1, mas em
impostas verticalmente aos povos indígenas, sem uma política setorial executada pelos três sistemas
que estes pudessem sequer se manifestar sobre de ensino do país: União, Estados e Municípios.
tais políticas. A característica central dessas políti- Assim, o ensino superior para os índios é oferecido
cas foi tratar os povos indígenas e as políticas vol- pelo Sistema Federal de Educação, por meio das
tadas a eles, de forma isolada e à parte da sociedade Universidades Públicas Federais ou Privadas ou
brasileira, reforçando o caráter discriminatório e pelos sistemas estaduais de educação por meio das
hierarquizando por baixo a questão indígena. Ou universidades públicas estaduais. O Ensino Médio
seja, as políticas destinadas aos povos indígenas é oferecido, preferencialmente, pelos sistemas es-
deveriam ser pensadas e executadas de forma se- taduais de educação, por meio das escolas estadu-
gregada das políticas nacionais e sempre com me- ais. A educação infantil e o Ensino Fundamental
são oferecidos pelos sistemas estaduais ou muni-
nor relevância na vida nacional.
cipais, por meio de suas respectivas secretarias de
Após a Constituição de 1988, quando as res-
educação e redes de escolas. É bom lembrar que
ponsabilidades pela oferta da educação escolar aos
os sistemas de ensino (federal, estadual e munici-
povos indígenas foram tiradas do monopólio do ór-
pal) são sistemas autônomos, mas que deveriam
gão indigenista e transferidas e distribuídas aos di-
atuar de forma articulada por meio de um “Regi-
ferentes sistemas de ensino, se não passaram a
me de Colaboração” preconizado pela Lei de Di-
ser pensadas ou dirigidas pelos povos indígenas,
retrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), mas
ao menos, são objeto de debates e, em alguns ca-
que, na prática, não funciona assim, na medida em
sos, começam a ser elaboradas, executadas e ava-
que os estados e municípios atuam de forma de-
liadas com a participação deles. O mais importante
sarticulada, concorrentes e tratam o tema segundo
é que as políticas são pensadas e construídas arti-
suas convicções e interesses políticos.
culadas ou mesmo integradas às políticas nacio- A educação escolar indígena não tem nenhuma
nais, tratando o índio como cidadão pleno, sem tradição em controle social efetivo. É importante
desconhecer os direitos específicos, que lhe ga- destacar que isso ocorre não apenas com a educa-
rantem políticas e ações específicas e diferencia- ção escolar indígena, mas com toda a educação bra-
das. É claro que essa participação ainda é muito sileira. Não se tem informação, na história brasilei-
incipiente, frágil e muitas vezes contraditória, tanto ra, de experiências com instrumentos de controle
pelo despreparo e ineficiência do Estado quanto social amplos, representativos e deliberativos no seu
pelas limitações dos próprios povos indígenas, pe- sentido pleno. Na educação brasileira, o que existe
las dificuldades de domínio da complexidade do são os conselhos normativos, cuja função é norma-
mundo político-administrativo do Estado. Isso se tizar, dirimir dúvidas e conflitos de interpretação das
dá tanto pela determinação constitucional, refor- leis existentes, sem o caráter formulativo e avaliati-
çada pela Convenção 169 da Organização Inter- vo, com pouca autonomia de funcionamento e de
nacional do Trabalho homologada em 2003, que
institui o estatuto da consulta prévia e informada
1
Educadores e estudiosos divergem quanto à existência implíci-
aos povos indígenas sobre tudo o que lhes dizem ta ou explícita de um Sistema Nacional de Educação. Os que
respeito, quanto pela crescente pressão qualifica- acreditam na existência utilizam, como argumentos principais
a favor da idéia, o fato de que o Brasil é uma república federada
da e organizada do movimento indígena e de seus e não confederada e pela existência de um Conselho Nacional
velhos e novos aliados e parceiros. de Educação.

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decisão. Este é o caso do Conselho Nacional de tes resistem e lutam contra as políticas de cotas
Educação (CNE) e dos Conselhos Estaduais e Mu- sob o argumento de que isso é privilégio e fere o
nicipais de Educação, todos órgãos normativos dos princípio universal do direito de acesso ao ensino
três sistemas de ensino. No caso do CNE, suas de- superior, mas esquecem, propositadamente, de que,
liberações só se transformam em resoluções váli- no Brasil, sempre houve privilégios e reservas de
das após homologação do Ministro. Tanto o Conse- vagas nas universidades públicas para as classes
lho Nacional, quanto os conselhos estaduais e dominantes, para os filhos dos militares, dos no-
municipais de educação não têm a função de plane- bres, dos dirigentes eclesiásticos. Mas como ago-
jar, acompanhar, avaliar, fiscalizar, manifestar seu ra se trata de beneficiar os setores populares,
posicionamento político, sugerir políticas. historicamente excluídos, se dizem contra qualquer
Desse modo, se por um lado, já não existe uma privilégio ou benefício subsidiado pelo Estado. Des-
coordenação político-administrativa, que ordene, sa forma, pensar, formular e executar políticas e
regule, avalie e execute a política nacional de edu- ações educativas sempre foi tarefa “delegada” aos
cação, por outro lado, tampouco existem instrumen- intelectuais e dirigentes políticos de alta patente,
tos efetivos de participação e controle social, restando aos cidadãos comuns enviar os filhos às
formulando políticas, acompanhando ações, fisca- escolas oferecidas como instituições prontas, fe-
lizando aplicação de recursos, avaliando a qualida- chadas, dogmáticas e voltadas para formar tipos
de dos serviços e resultados. Apenas para de cidadãos idealizados pelas elites que atendam
exemplificar, enquanto, no âmbito da política de seus interesses.
saúde, já foram realizadas sete conferências naci- O segundo aspecto desta abordagem histórica
onais de saúde nos últimos vinte anos e quatro con- está relacionado exatamente aos atores sociais in-
ferências nacionais de saúde indígena, a educação dispensáveis no âmbito da discussão, da formula-
brasileira só realizou uma conferência nacional, em ção e execução de políticas educacionais para os
1992, e uma conferência nacional de educação povos indígenas sob determinadas orientações po-
escolar indígena, realizada em novembro de 2009. lítico-pedagógicas e ideológicas. Como já foi ob-
Hoje existe uma Comissão Nacional de Educação servado acima, essa oferta de políticas, imposta ou
Escolar Indígena, apenas com função consultiva, reivindicada pelos povos indígenas, esteve, ao lon-
assim mesmo reduzida na sua função e poder de go da história brasileira, sob a responsabilidade de
tomada de decisões, além de ser composta apenas diferentes atores, instituições e orientações políti-
por indígenas, sem os órgãos gestores das políticas cas e ideológicas: governos locais, empresas, mis-
de educação escolar indígena. O conservadorismo sões, órgão indigenista, organizações não-gover-
da educação escolar indígena brasileira que segue namentais e governo federal. Nos últimos anos,
o conservadorismo da educação brasileira no to- podemos dizer que os segmentos determinantes na
cante à participação e ao controle social dos povos discussão e na condução das políticas indígenistas
indígenas é histórico. no Brasil são os Estados, os Municípios, a União e
A partir dessa realidade histórica, se poderia as ONG’s não-indígenas. Com o passar do tempo,
perguntar quais as razões que levaram à diferenci- a Igreja foi perdendo terreno e hoje sua influência
ação tão contundente dos processos e ritmos. Do é muito pequena, reduzida ao campo da crítica, mas
nosso ponto de vista, no caso da educação escolar com pouco envolvimento prático. Grosso modo,
indígena, as razões devem ser diversas, mas uma poder-se-ia afirmar que, no centro do debate, duas
merece destaque. Diz respeito ao fato de que a forças se confrontam: por um lado, o governo e
educação escolar sempre esteve no domínio e in- por outro, as ONG’s. Isto porque algumas lideran-
teresse restrito das elites dominantes do país, que ças indígenas, envolvidas no debate, geralmente
sempre resistem às mudanças políticas e proces- estão alinhados à agenda e demanda das ONG’s,
suais, que podem significar redução ou perda de principalmente no âmbito do debate nacional, uma
seus privilégios sociais, econômicos, acadêmicos e vez que localmente ou regionalmente isso não acon-
políticos, como se verifica hoje no campo do deba- tece, porque as demandas são mais específicas e
te sobre as políticas de ações afirmativas. As eli- conduzidas por movimentos indígenas locais.

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Essa constatação tem me incentivado, nos últi- ção ao Índio (SPI), em 1910, e com a aprovação
mos anos, a desenvolver reflexões e debates den- da Lei 6001, de 1976, conhecida como o Estatuto
tro do movimento indígena sobre o papel histórico do Índio, que submete os índios à condição de re-
das ONG’s e das chamadas assessorias ou espe- lativamente incapazes, razão pela qual o Estado,
cialistas, levando em conta não somente o legado por meio do SPI e, depois, pela Fundação Nacio-
indiscutível da contribuição fundamental que de- nal do Índio (FUNAI), deveria exercer o papel de
ram à luta dos povos indígenas, nos seus primórdi- tutor e protetor. Ação de tutoria e proteção na prá-
os dos anos 1970 em diante, mas também o tipo de tica significava decidir pelos índios, integrando-os
relações que foram se constituindo e os seus im- forçosamente à comunhão nacional e, dessa for-
pactos para as lutas atuais e futuras dos povos e ma, apropriar-se de suas terras. Ou seja, se antes
organizações indígenas. Minha análise, portanto, não do SPI e do Estatuto do Índio, o Estado trabalhava
deve ser entendida como crítica política ou ideoló- na perspectiva de extinção dos povos indígenas por
gica, mas como uma análise histórica e instrumen- meio da guerra e da violência física, agora, por meio
tal para a compreensão do atual quadro político do SPI e, posteriormente, por meio da FUNAI, essa
das lutas indígenas no Brasil, no campo da educa- extinção deveria se dar por meio da integração
ção, em seus avanços, desafios, impasses, possibi- compulsória. Nesse sentido, proteger significava
lidades e oportunidades. Nesse sentido, o caminho integrar e tutelar significava submeter e dominar.
escolhido para esta análise é pensar essa relação Há quem acredite que o Estado, ao tutelar, tam-
como terceira etapa da tutela indígena no Brasil, bém protegia, o que pode em parte ser verdade, se
que denomino de semi-tutela. considerarmos casos e fatos isolados de sertanis-
Trato aqui tutela não tanto como prática políti- tas e indigenistas que agiam dentro da instituição
ca que considera os índios como incapacitados de indigenista em defesa intransigente dos povos indí-
tomar suas próprias decisões e que tem justificado genas, movidos por compaixão, piedade e humani-
o papel paternalista, tutor, dominador e procurador dade diante das atrocidades e barbáries a que eram
do Estado, com o poder arbitrário de tomar deci- submetidos. Mas se considerarmos a prática insti-
sões em nome deles, mas enquanto forma de pen- tucionalizada e seus resultados práticos, não se pode
sar e agir dos colonizadores que se baseia na idéia afirmar que o Estado também protegia. Senão,
de que os índios pertencem a culturas inferiores e, como se explicaria, nesse período, a vertiginosa
por isso, não são suficientemente capazes de com- queda populacional?
preender a complexidade do mundo branco e to- Esse primeiro momento corresponde aos mo-
mar decisões sábias e certas ou, ainda, porque são dos de atuação dos anos 1970 e 1980, quando a
povos vencidos na guerra, portanto, precisam se marca principal é a atuação tutelar convencional,
submeter à vontade dos vencedores e dominado- no sentido de que os tutores não-indígenas servi-
res. Mas, antes de prosseguir este raciocínio, é am de porta-vozes, representantes e procuradoras
importante ponderar que essas qualificações alusi- dos povos indígenas junto à sociedade e ao Esta-
vas levam em conta a forma da relação e atuação do. Para defender os direitos dos povos indígenas,
estabelecida e não os propósitos e compromissos elas falavam em nome dos índios, representavam
político-ideológicos dos atores e das instituições. os índios e tomavam decisões em nome dos povos
Por enquanto, o que interessa mesmo é tratar da indígenas. Certamente, foi um período rico da his-
relação construída e de seus impactos e resultados tória do indigenismo brasileiro, uma vez que muitas
na vida dos povos e das organizações indígenas. conquistas foram alcançadas, graças a essa forte
Do nosso ponto de vista, a prática da tutela no atuação dos aliados dos índios, em grande parte
Brasil teve diferentes momentos, espaços e moda- antropólogos e indigenistas, articulados no interior
lidades, que impactaram por demais a relação dos das entidades de apoio que produziram mudanças
povos indígenas com a sociedade nacional e com o históricas na vida dos povos indígenas, mas criou
Estado. O princípio legal que gerou a prática da uma relação de forte dependência e subserviência
tutela teve início com a criação do Serviço de Prote- aos “assessores” dos índios.

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O segundo momento da tutela foi implementa- esforço dos antropólogos, dirigentes das ONGs, em
do pela prática missionária. Esta atuação esteve favor do protagonismo e da autonomia de pensa-
centrada à prática escolar transferida pelo Estado mento e de prática política dos povos indígenas.
à Igreja. Como as ações do SPI e da FUNAI não Mas, na prática, este discurso nunca foi efetiva-
foram suficientes para a consumação da integra- mente seguido por eles. Ou seja, muda o discurso,
ção compulsória, o Estado transferiu também essa tenta-se mudar a prática, investindo na formação
tarefa à Igreja, principalmente por meio da cate- e capacitação dos indígenas, mas não foram sufi-
quese e da escola. A catequese e o ensino escolar cientes para o pleno exercício do protagonismo e
passaram a ser os principais instrumentos de per- da autonomia de voz, de pensamento e de deci-
seguição e negação das culturas indígenas. Poder- sões. As razões podem ser diversas, desde proble-
se-ia supor que, de certo modo, era uma estratégia mas dos instrumentos metodológicos adotados, até
bem pensada e articulada, uma vez que a Igreja estratégias para garantir espaço institucional e de
faria o primeiro trabalho de amansar os índios, en- empregos para os assessores e aliados dos povos
fraquecendo-os culturalmente, para que depois o indígenas.
SPI e a FUNAI completassem o processo de inte- O terceiro momento da prática tutelar é o das
gração, adaptando os índios já aldeados à lógica da organizações não-governamentais pró-indígenas
vida não-indígena, tornando-os dependentes com- dirigidas principalmente por antropólogos e educa-
pulsivos da cadeia econômica do mercado, por meio dores não indígenas. O que diferencia essa nova
dos chamados projetos agrícolas que também vi- prática tutelar é o seu propósito, mas não a forma.
savam à geração de renda, inclusive para a manu- Os antropólogos indigenistas, dirigentes das ONG’s,
tenção da política indigenista oficial. mais conhecidos pelos povos indígenas como par-
Nesse momento, a Igreja também ganha o di- ceiros ou assessores, mudaram substantivamente
reito de ser o tutor dos povos indígenas, com o po- o modo de relacionamento dos povos indígenas com
der de representá-los em suas vontades e interesses os não-índios, inclusive com as instituições gover-
e tomar decisões por eles. O que aqui mereceria namentais. Como afirmei no início deste trabalho,
um estudo e aprofundamento maior é quanto à in- essa atuação dos antropólogos pró-indígenas pode
tencionalidade da Igreja e dos missionários nos ser analisada de diversos ângulos e, certamente,
impactos e nas conseqüências resultantes das prá- com múltiplas percepções, como aqui procuro fa-
ticas adotadas, na media em que, se por um lado, é zer, a partir de alguns aspectos observados.
possível identificar o papel bem intencionado dos O primeiro aspecto diz respeito ao fato de que
missionários na proteção dos índios contra a vio- os agentes das ONGs não conseguem superar o
lência dos colonos, dos comerciantes, dos militares papel tutelar que exerceram ao longo de, pelo me-
e das tropas de resgates, por outro lado, a prática nos, duas décadas, razão pela qual continuam exer-
de perseguição e negação das culturas, principal- cendo o papel de porta-vozes dos povos indígenas
mente das línguas e das cerimônias religiosas tra- e reivindicando legitimidade desse papel. Obvia-
dicionais, resultava igualmente na violência e mente, esse papel é hoje assumido com novos per-
integração forçada dos povos indígenas, que por fis, como por exemplo, o de incorporarem junto de
sua vez, resultavam na negação dos seus direitos, si alguns setores ou segmentos do movimento indí-
cujo instrumento principal foi a escola. gena, sugerindo uma nova prática da tutela, que eu
Esse segundo momento teve início com a emer- denomino de semi-tutela, no sentido de que se ad-
gência do movimento indígena impulsionado por mite a capacidade de protagonismo e de autono-
meio de organizações e lideranças indígenas politi- mia indígena, mas não se cria condições efetivas
zadas que, na verdade, foram resultantes do pró- para o exercício pleno dessa autonomia por parte
prio trabalho das primeiras ONGs e de setores dos povos indígenas, seja por incapacidade instru-
progressistas da Igreja e da Academia que investi- mental, seja por uma intenção político-estratégica.
ram na formação e capacitação dessas novas lide- O segundo aspecto é o fato de não terem con-
ranças. Esse momento é marcado pelo discurso e seguido transferir suas experiências e seus conhe-

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cimentos acumulados, impedindo ou inviabilizando e acadêmicos indígenas, cada um no seu campo


as possibilidades efetivas de protagonismo e auto- de atuação, distantes ou divergentes entre si, mas
nomia dos povos indígenas, na medida em que eles enfrentando a mesma causa e o mesmo efeito, sem
não ficam de forma permanente nas regiões, mas que se deem conta disso, pela própria forma como
somente nos períodos de suas pesquisas de campo a nova tutela opera de modo consciente ou incons-
para conclusão de seus mestrados e doutorados. ciente pelos seus praticantes. Não é tão difícil per-
Disto resulta um processo curioso hoje no seio do ceber tal situação. Basta analisar o fato de que o
indigenismo nacional, em vários campos setoriais interesse dos povos indígenas pelo ensino superior
da política indigenista, qual seja, a existência de está relacionado à aspiração coletiva de enfrentar
dois grupos heterogêneos de interlocutores: por um as condições de vida e a marginalização, na medi-
lado, as organizações indígenas e, por outro, as or- da em que veem a educação como uma ferramen-
ganizações indigenistas. Esses grupos de interlo- ta para promover suas próprias propostas de
cutores ou porta-vozes não só apresentam desenvolvimento, por meio do fortalecimento de
demandas e pautas políticas diversificadas, quan- seus saberes originários e de suas instituições, e
to, muitas vezes, apresentam demandas, interes- incrementar suas capacidades de negociação, pres-
ses e pautas políticas antagônicas e conflituosas. são e intervenção dentro e fora de suas comunida-
Essa concorrência, entre o movimento indígena e des.
o movimento indigenista (pró-indígena) das ONG’s, Mas por que, então, mesmo com os primeiros
tem dificultado a articulação de uma agenda indí- indígenas egressos das universidades, com diferen-
gena nacional, na medida em que, na concorrên- tes especialidades, estimados em pelo menos 500
cia, as ONG’s ainda levam vantagem, por indígenas, ainda não há sinais claros de produção
influências que exercem junto ao governo, à aca- de mudanças concretas nas realidades de suas
demia e à sociedade em geral. comunidades, de seus povos e organizações indí-
São elas que em muitas ocasiões ainda dão a genas, pelo menos no campo da interlocução? No
última palavra, pois apresentam e dão maior visibi- início da instalação da Comissão Nacional de Polí-
lidade à temática indígena no cenário nacional, por- tica Indigenista (CNPI) presenciei um cenário pre-
tanto, dominam quase que exclusivamente a opinião ocupante, quando 13 advogados indígenas
pública nacional e internacional quanto ao tema pleitearam ao colegiado da Comissão preferência
indígena no Brasil. Ou seja, permanece no movi- para prestar assessoria aos representantes indíge-
mento indígena real, como eu já afirmara, ainda na nas dentro do colegiado, e foram simplesmente
década de 1990, a superioridade do assessor não negados, tendo sido dada preferência aos assesso-
indígena, frente às próprias lideranças indígenas res não indígenas. Podemos até discutir e discor-
(FERREIRA, 2001). Pude confirmar essa situa- dar da forma como foi pleiteada mas não do mérito
ção por ocasião da realização da I Conferência da proposta.
Nacional de Educação Escolar Indígena realizada As experiências e as realidades vivenciadas
em Luziânia/GO, em novembro de 2009, quando indicam que não basta apenas formar indígenas
temas complexos, como as propostas de “Sistema para garantir o protagonismo e a autonomia indí-
Próprio de Educação Indígena” e dos Territórios gena, sem romper as diferentes formas de tutela e
Etnoeducacionais, simplesmente não foram discu- colonização. Não é uma tarefa fácil, na medida
tidas de modo aprofundado, pois as delegações já em que, na atualidade, isso também depende dos
vinham com posicionamentos fechados, com do- próprios índios, uma vez que muitos grupos se tor-
cumentos prontos, orientados e determinados por naram resistentes a isso pela relação de depen-
assessorias não indígenas. dência e cumplicidade que foram induzidos a adotar
Da relação tutelar construída ao longo do últi- na relação com o Estado, com as Igrejas e com as
mo século, sob a orientação colonizadora ora do ONGs.
Estado, ora da Igreja, ora das ONGs, resultaram Por conta disso, hoje, os acadêmicos e profissi-
os principais desafios enfrentados pelas lideranças onais indígenas sofrem dupla exclusão ou discri-

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minação. São percebidos como ameaças aos pos- Cada um defende o seu espaço institucional, o seu
tos de lideranças indígenas e ameaças aos postos interesse, a sua ideologia, o seu emprego, o seu
de assessorias e consultorias para questões indí- status quo e ninguém quer criar cobras, muito
genas entre os dirigentes e equipes técnicas das menos incorporar cobras em sua casa, como di-
ONGs. Em função disso, são excluídos dos pro- zem os políticos. É natural que os indígenas egres-
cessos de discussões, de espaços de tomadas de sos das universidades adotem posturas mais críticas
decisões e dos espaços de execução das ações e a práticas tutelares viciadas nas comunidades, nas
das políticas. Quando a ameaça é mais eminente organizações indígenas, nas organizações indige-
e real, a justificativa para garantir o trabalho e o nistas, nas academias e no governo e busquem pro-
salário dos assessores não-índios é a concorrên- vocar mudanças e é isso que incomoda e ameaça
cia pela qualidade técnico-científico, além, é cla- as lideranças indígenas, dirigentes e equipes não
ro, do tempo de experiência, sabendo-se que os indígenas das ONGs, acostumados às relações e
indígenas egressos das universidades ainda não práticas assimétricas que, muitas vezes, beiram um
dispõem desses requisitos e não lhes foram da- autoritarismo ou imperialismo na condução das dis-
das oportunidades, o que poderia ser com a legíti- cussões e definições estratégicas das organizações
ma justificativa de domínio do notório saber. Desse indígenas e indigenistas.
modo, tão cedo não terão condições de concorrer Por conta disso, não basta apenas inovar os dis-
de forma igualitária com os não-índios, uma vez cursos e aprofundar as críticas. Para que os estu-
que ainda levarão tempo para ter seus primeiros dantes indígenas não se distanciem dos processos
especialistas reconhecidos nacional ou internaci- societários dos seus povos, é necessário superar
onalmente, mestres e doutores. velhas práticas tutelares enraizadas nas instituições,
Mesmo com um número significativo de profis- nas pessoas, inclusive nas organizações indígenas
sionais indígenas habilitados, as oportunidades e os e indigenistas que alimentam e reproduzem per-
espaços estratégicos, no âmbito interno do movi- cepções e práticas políticas limitadas, contraditóri-
mento indígena e no âmbito das políticas públicas, as e equivocadas, no que tange a lideranças
continuam sendo ocupadas por profissionais não indígenas capacitadas, engajadas, ativas, críticas,
indígenas, especialmente ligados às ONGs indige- competentes e, sobretudo, comprometidas com os
nistas, na maioria das vezes com apoio das própri- processos de lutas dos seus povos. Mas como fa-
as organizações indígenas. A justificativa é sempre zer isso sem romper com os parceiros, aliados e
que os indígenas não estão suficientemente prepa- assessores de longas datas ou como reduzir a de-
rados e qualificados ou ainda não possuem experi- pendência ou mesmo prescindir, em alguns casos,
ências para exercer tais tarefas, pois os cursos de especialistas exigidos ou impostos pelas políti-
universitários não dão conta disso, o que pode ser cas governamentais e privadas, considerando que
verdade, mas que poderia ser complementado com essas assessorias e alianças continuam sendo fun-
cursos específicos, aliás, como as ONGs fazem damentais para a manutenção e ampliação dos di-
para suas equipes técnicas não indígenas, que tam- reitos indígenas no Brasil.
bém saem das universidades com as mesmas defi- Talvez essa seja a razão da cumplicidade entre
ciências na formação. Mas, se as universidades as lideranças das organizações indígenas e dos di-
não dão conta da formação adequada e desejada rigentes das ONGs, em detrimento dos estudantes
pelas comunidades desses jovens e se eles não têm universitários indígenas, que clamam por um espa-
oportunidades para adquirirem experiências, quando ço pelo menos em suas próprias comunidades e
e de que forma poderão atender aos requisitos exi- organizações. Não se trata, portanto, de abrir mão
gidos pelas agências do mercado de trabalho e de nada, de prescindir de assessorias, alianças e
aceitos ou ignorados pelas organizações indígenas? parcerias, mas de romper os círculos viciosos das
Este depoimento pode parecer radical, mas vi- relações historicamente construídas com base em
vendo duas décadas em meio ao fogo cruzado, uma realidade em que os povos indígenas não dis-
sabemos bem como as coisas de fato acontecem. punham de técnicos, profissionais e especialistas

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Gersem Baniwa

e, em função disso, se consolidou a idéia de que o a prática histórica de insistência pela invisibilidade
assessor tem que ser branco, pois só o branco dessas coletividades. É como se, no imaginário
“sabe”, “pode” e “merece” a confiança da comu- coletivo das pessoas, os povos indígenas existis-
nidade ou da organização, para incorporar, somar sem, mas não enquanto sujeitos e atores políticos
e ampliar o leque de possibilidades de assessorias dessa diversidade.
com os próprios indígenas que estão se formando. De fato, os povos indígenas gozam de direitos
Do contrário, o movimento indígena estaria reivin- específicos que lhes permitem organizar seus mo-
dicando formação superior para quê? Para asses- dos de vida segundo suas tradições, costumes, cul-
sorar os brancos, os governos, os empresários? turas, valores e conhecimentos acumulados ao
longo de milhares de anos. Eles vivem de formas
Pluralismo e Diversidade Cultural diferentes, inclusive quanto aos seus sistemas jurí-
Indígena na Educação Escolar dicos. Dentro das terras indígenas, não é a lei poli-
Indígena cial que vigora, mas as leis tradicionais. Quando
alguém viola normas, regras, a comunidade se res-
A questão da diversidade cultural é de extrema ponsabiliza pelas medidas corretivas e punitivas,
relevância para o mundo de hoje e, muito particu- aplicando procedimentos administrativos milenares.
larmente, para o Brasil que vive nos últimos anos Desse modo, não necessitam de intervenção poli-
um intenso debate, sobretudo no campo da Educa- cial do Estado para resolver seus problemas, ainda
ção a partir da discussão sobre as políticas de ações que possam, espontaneamente e de acordo com
afirmativas. São políticas voltadas, de certa ma- situações específicas recorrer à autoridade polici-
neira, para minorias, não só étnicas, mas também al. Existe um entendimento predominante entre os
sociais. No âmbito dessas discussões, o primeiro povos indígenas de que, dentro das terras indíge-
aspecto importante é a própria formulação do con- nas, se aplicam preferencialmente as leis e nor-
ceito de diversidade cultural. Tem-se a impressão mas internas tradicionais. Além disso, mesmo
de que se fala muito facilmente da diversidade, mas quando os índios violam leis e normas tradicionais
com pouca responsabilidade sobre as conseqüên- indígenas ou da sociedade nacional fora das terras
cias, quando valoramos essa idéia da diversidade indígenas, é necessário considerar o entendimento
cultural, mesmo no âmbito da escola indígena. A e a visão cultural que está relacionada àquele even-
maioria das pessoas defende a diversidade cultu- to não aceitável. E a escola precisa incorporar es-
ral, mas pouco se faz para que essa diversidade sas visões e práticas e os modos de vida no âmbito
efetivamente faça parte do exercício diário da nossa de seus instrumentos político-pedagógicos, princí-
vida no mundo, que tem a ver com nosso compor- pios epistemológicos e metodologias de trabalho.
tamento, normas, práticas de vida, atitudes e for- O Brasil, diferentemente de outros países do
mas de relacionamento dentro e fora da escola. continente americano, tem avançado muito pouco
É perceptível o dilema brasileiro no campo da no debate e no exercício de uma sociedade ou Es-
diversidade cultural, especificamente em relação tado multicultural. A estrutura e a prática pedagó-
aos povos indígenas, quando se faz muita propa- gica nas escolas não indígenas e, mesmo na maioria
ganda e pouca ação. Basta acompanhar as decla- das escolas indígenas do país, é um exemplo clás-
rações dos nossos representantes de Governo lá sico desse conservadorismo, que ainda insiste em
fora, para se perceber a propaganda de que o Bra- orientar sua visão e suas práticas a partir de uma
sil é um país democrático, um país pluriétnico que comunidade imaginada de um Brasil monocultu-
respeita os direitos humanos e os direitos das mi- ral e monolíngue. Falar de autonomia, autodeter-
norias, porque existem vários instrumentos legais minação ou autogoverno indígena no Brasil, ainda
normativos que garantem isso, mas, na prática, soa nos ouvidos dos militares, juízes, políticos, inte-
pouca coisa tem mudado para dar efetividade ao lectuais e educadores como ameaça à soberania
reconhecimento e à garantia desses direitos. No territorial do Estado-nação, enquanto no Canadá,
caso específico dos povos indígenas, o que pesa é nos Estados Unidos, no México, no Panamá, no

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Educação escolar indígena: estado e movimentos sociais

Equador, no Peru, na Bolívia e em outros países cias que levem em conta os direitos específicos
vizinhos, tais conceitos fazem parte do vocabulário dos povos indígenas e criem novos instrumentos
político cotidiano e das práticas concretas em polí- administrativos para isso, tais como varas judiciá-
ticas públicas. rias, tribunais, delegacias, juízes, procuradores e
Ao contrário do que se prega de forma leviana profissionais especializados em direitos indígenas.
no Brasil, tais conceitos e práticas não resultaram Outro aspecto que deve ser enfrentado pela
de nenhuma forma em desintegração da soberania escola indígena intercultural é o imaginário muito
dos estados nacionais, mas em arranjos e modelos restritivo a alguns aspectos do fenótipo indígena
administrativos e jurídicos mais democráticos e exotizado, que expressa determinado segmento
multiculturais. Algumas experiências, como no étnico cultural, mas que é apresentado como uma
Panamá, resultaram na formação de unidades fe- característica distintiva de uma identidade univer-
derativas multiculturais muito prósperas, social e sal indígena. É assim que vemos a grande mídia,
economicamente, que têm contribuído para a pró- como a televisão, considerar e apresentar, como
pria consolidação do estado Panamá democrático padrão cultural indígena, as características físicas
e pacífico e do seu pleno desenvolvimento econô- de indivíduos ou grupos indígenas do Parque Indí-
mico e social. Em muitos países, as estruturas judi- gena do Xingu, quando se ignora que, mesmo en-
ciárias há tempo criaram varas e tribunais tre os diversos grupos indígenas do Parque, as
especializadas em direitos indígenas, que incluem diferenças físicas e culturais são tão grandes. Se
os direitos consuetudinários, abrindo procedimen- se reconhece os povos indígenas como diversos, é
tos administrativos e iniciativas na área de forma- importante atentar sempre para o que isso signifi-
ção jurídica em direitos indígenas. ca, pois implica em vários aspectos da vida, não só
É necessário, pois, avançar, no Brasil, no deba- no campo da filosofia ou da forma de pensar e
te do multiculturalismo e pluriculturalismo e nos viver, mas também das formas de conceber a so-
ideais de um pluralismo jurídico efetivo e isso pode ciedade, a cosmologia, os valores, o que é conside-
e deve começar pela escola. Um país continental, rado como valor e o que é considerado como não
com uma enorme diversidade cultural e étnica, não valor. Isso é absolutamente variante.
pode prescindir desse exercício social, na medida É importante enfatizar que existem hoje, no
em que há a necessidade de garantir espaço plural Brasil, 223 povos indígenas, sendo que cada povo
de convivência e de estabelecimento de direitos e é diferente dos outros. Por que é diferente? Por-
deveres equitativos, como formas eficientes para que cada povo tem sua língua própria, tem suas
se evitar futuros conflitos e tensões étnicas e raci- tradições próprias, sua mitologia própria, sua cos-
ais, como vemos nos últimos anos no sul da Ásia e mologia própria que se distingue das demais. Mas
na África subsariana. O aprofundamento e a con- isso é muito pouco considerado na forma, por exem-
solidação de estados-nações democráticos pres- plo, das instituições escolares lidarem com essas
supõe, fundamentalmente, o exercício pleno dos populações. As atividades educacionais são pen-
direitos individuais e coletivos. Ora, os direitos co- sadas como se todo cidadão brasileiro falasse a
letivos, principalmente étnico-raciais, exigem es- mesma língua, comesse a mesma comida e da
paços políticos (poder) e administrativos (sistemas mesma maneira, como se tivesse a mesma origem,
jurídicos, econômicos e sociais) multiculturais ade- a mesma mitologia, a mesma religião, os mesmos
quados, em que se sintam integrantes plenos da valores, as mesmas tradições e costumes, a mes-
sociedade, mas aos seus modos. ma forma de organização do trabalho, a mesma
Para isso é necessário que as universidades forma de organização social, econômica e política
públicas brasileira abram cursos e disciplinas que e assim por diante.
abordem, estudem, pesquisem e sistematizem os A segunda questão é trabalhar socialmente essa
diversos sistemas jurídicos dos povos indígenas, diversidade. Passamos mais de quatro séculos em
para que sejam conhecidos e reconhecidos pelas que a política oficial da escola distinguia negativa-
instituições públicas e produzam novas jurisprudên- mente as pessoas e os grupos, física e cultural-

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Gersem Baniwa

mente. Passamos de uma fase hostil a essa diver- da como um valor no mundo de hoje, temos que
sidade cultural brasileira em relação aos povos in- utilizar todos os recursos de que o processo de for-
dígenas, que era considerada um entrave para a mação escolar dispõe, para fazer com que essa
formação do Estado Brasileiro e até mesmo para diversidade seja reconhecida, conhecida e valori-
o chamado desenvolvimento, para uma sociedade zada, não apenas na sua generalidade. É muito fá-
de maior tolerância, na qual se tolera essa diversi- cil dizer que no Brasil existem 223 etnias, sem
dade mas ainda sem uma devida valorização. Neste conhecer quem são essas 223 etnias.
sentido, é necessário que seja dado o próximo pas- Mas quando se fala de Escola está se falando
so, que é sair dessa situação de tolerância para de uma nova forma de poder ou, melhor, de um
uma convivência mais compartilhada da diversida- poderoso instrumento de poder. Está se falando de
de. Porque uma coisa é tolerar alguém, outra coisa uma coisa que no Ocidente é muito mais instru-
é compartilhar espaços sociais, espaços de poder mentalizada que é o conhecimento ou saber. O pro-
e modos de pensar, de viver, valores e conheci- blema é que para os povos do Ocidente o saber
mentos. E tudo isso deve começar pela escola. científico é absoluto e corresponde à verdade ab-
O terceiro aspecto é que, quando aceitamos soluta que substituiu Deus. O saber jurídico, por
afirmativamente a diversidade no ambiente da es- exemplo, se autodeclara como poder acima do bem
cola como valor, é necessário que ela seja consi- e do mal, ou seja, acima do homem e da natureza.
derada base orientadora das práticas pedagógicas Se queremos uma sociedade multicultural, é ne-
que resultam nas formas de relações sociais do dia cessário um processo de desconstrução do abso-
a dia das crianças e dos jovens. Os povos indíge- lutismo acadêmico, para que o saber volte a ser
nas enfrentam uma educação escolar que, de cer- uma obra-prima do homem, como algo que é rela-
ta maneira, impõe padrões de vida, que vão da tivo, porque produto do próprio homem e da natu-
alimentação à língua. Somos obrigados a aprender reza. O que foi a colonização para os indígenas?
e a falar uma outra língua, muitas vezes abdicando De repente chegou um saber que se considerava
de nossas línguas maternas, de nossas tradições, melhor do que os saberes indígenas – a verdade
de nossos valores. A sociedade dominante impõe em si mesma, absoluta – e que tinha que dominar,
inclusive padrões de avaliação dos modos e quali- domesticar os outros saberes, os outros conheci-
dades de vida como são os índices de desenvolvi- mentos, gerando a enorme dificuldade de diálogo
mento humano e os índices de qualidade do ensino. intercultural de fato.
Mas que qualidade ou qualidade para quem? O que De todo modo, o diálogo sobre a diversidade
é desenvolvimento humano para um Yanomâmi? só será possível quando os diferentes saberes e
O que é qualidade de ensino ou de educação para as ciências humanas forem equivalentes, produ-
um Baniwa? O que é um ideal de vida para um zindo harmonia e sinergia entre elas. O que para
jovem Guarani? a academia ocidental pode ser uma heresia total,
Existem algumas possibilidades que merecem pode ser uma base epistemológica, religiosa e
ser pensadas e construídas. O Brasil está vivendo moral fundamental para garantir o bem viver das
um momento importante na atualidade, na medida pessoas dos grupos ou de outras ciências huma-
em que percebemos novas possibilidades, com nas. Nesse sentido, o diálogo deve começar fun-
avanços das políticas trazidas a partir da Constitui- damentalmente entre os saberes, entre as ciências
ção de 1988. Se hoje pensamos na perspectiva da e não entre as disciplinas que foram personaliza-
globalização, sobretudo com relação aos meios de das e endeusadas pelo ocidente europeu. Tudo
comunicação e à tecnologia da informação, é uma isso deve ser objeto de discussão junto à escola e
oportunidade para construir modelos de socieda- às universidades.
des pluriculturais interessantes, se houver vontade Outra questão que merece ser destacada é a
coletiva, mas que não se resolve por meio de de- questão das línguas indígenas. Eu sou do Municí-
creto ou de lei. pio de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do
Desse modo, a escola pode ser o principal ins- Amazonas, que é o único município no Brasil onde,
trumento para isso. Se a diversidade é considera- do ponto de vista oficial, são reconhecidas três lín-

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Educação escolar indígena: estado e movimentos sociais

guas co-oficiais. Além do português, temos mais de lideranças indígenas no comando das comuni-
três línguas co-oficiais: o nheengatu, o baniwa e o dades e organizações indígenas que não passaram
tukano. Quando falo oficial, é porque vigora na por nenhum processo de capacitação sobre os di-
base da lei aprovada pela Câmara Municipal e ho- reitos indígenas. Curiosamente, as lideranças indí-
mologada pelo prefeito e até hoje não contestada genas atuais são mais escolarizadas, mais
em outras instâncias. Essa conquista dos povos articuladas, porém com menor domínio sobre os
indígenas daquele município, onde mais de 90% da direitos indígenas e seus mecanismos de operacio-
população é indígena, traz à tona profundas con- nalização, talvez por conta de que estão sempre
tradições no campo da base legal do Estado Brasi- ocupados e engajados com aspectos burocráticos
leiro, na medida em que define o Estado Brasileiro de projetos, uma vez que as organizações indíge-
como monolíngue, tendo a Língua Portuguesa como nas foram sendo transformadas em agências im-
a Língua Oficial, mas, ao mesmo tempo, reconhe- plementadoras de projetos.
ce aos índios o direito de continuarem falando suas A segunda medida seria constituir assessorias
línguas próprias. jurídicas específicas, aproveitando os primeiros
Existem várias experiências de trabalho com a advogados indígenas, sem prejuízo de aproveita-
diversidade linguística, como são os programas de mento de advogados não indígenas especializados
rádios comunitárias que trabalham com as três lín- em direitos indígenas. Hoje em dia, já existem mais
guas. No começo, havia uma dificuldade porque de 20 indígenas formados em direito. É notório o
havia conflito de uma língua ser mais valorizada do fato de que os direitos indígenas garantidos na
que a outra, ter mais tempo e assim por diante. Constituição são permanentemente violados e des-
Também é preciso capacitar comunicadores indí- respeitados pelo próprio Estado brasileiro e por
genas para atuarem a partir de suas línguas e isso segmentos majoritários ou elites minoritárias do
terá impactos e repercussões positivas nas aldei- país. Nesses casos não basta apenas cobrar politi-
as, na medida em que as informações serão traba- camente do governo o respeito e a garantia dos
lhadas de forma diferente. Acho que essa direitos. É necessário também exigir a garantia dos
visibilidade das línguas é fundamental. Aliás, o prin- direitos por meio de ações judiciais nas diferentes
cipal sonho dos povos indígenas, em termos de instâncias judiciárias, inclusive internacionais.
políticas públicas, é de se pensar um canal de TV Por último, no caso brasileiro, os povos indíge-
e de rádio público, que simbolizaria como primeiro nas precisam se habilitar de forma qualificada e
sinal de reconhecimento dessa diversidade linguís- autônoma para lidarem com o universo complexo
tica. Vale lembrar que, dos 700 mil indígenas que das políticas públicas, que passa necessariamente
ainda existem no Brasil, quase a metade pouco fala por um processo próprio de formação escolar e
e entende a língua portuguesa. Então, como é que técnica, mas principalmente por uma formação
eles vão exercer uma cidadania, se têm dificulda- política adequada e qualificada. O movimento indí-
des para ouvir e falar o português, que é através gena precisa criar seus instrumentos próprios de
do qual se explicam os direitos políticos e assim formação política, que há décadas denomino “es-
por diante? cola indígena autônoma”, uma vez que a escola e
Primeiro, é preciso construir e implementar um a universidade, por serem instrumentos do Estado
programa de capacitação de lideranças indígenas e geridos pelo Estado, jamais poderão gerir ou as-
em instrumentos nacionais e internacionais de di- sumir essa função. É errado pensar que é a escola
reitos humanos e dos direitos específicos dos po- ou a universidade que precisa assumir e exercer
vos indígenas, principalmente ao nível de aldeias e essa função. O Estado até pode ou deve apoiar a
organizações indígenas locais e regionais, a exem- iniciativa de uma escola de formação política, mas
plo do que aconteceu nos anos 80 e 90 por meio não é coerente, nem estratégico, do ponto de vista
dos conhecidos e bem sucedidos encontros e as- da perspectiva de autonomia dos povos indígenas.
sembléias indígenas patrocinados pelo CIMI. É bom Urge no Brasil a formação de uma inteligentsia
destacar que, atualmente, há uma nova geração indígena, um corpo orgânico pensante para ajudar

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as comunidades, os povos, as organizações e as tam e atentam contra os direitos específicos dos


lideranças indígenas a encontrarem estratégias povos indígenas e a escola, espaço de reprodução
sábias, certas e coerentes, para trilharem no difícil desse sistema, precisa tornar-se um instrumento
caminho da luta por direitos, por cidadania, por dig- de mudança. Mas não basta querer que a escola
nidade, frente a um Estado que, muitas vezes, con- automaticamente mude seu perfil, sua função e sua
tinua sendo insensível e hostil. forma. É necessário que gestores, administrado-
Na atualidade, existem dois modos de conce- res, educadores e lideranças indígenas e não indí-
ber e se relacionar com as políticas públicas. Um genas se capacitem para fazer essas mudanças.
que concebe a possibilidade de um dia tornar as Não basta apenas transferir a gestão das escolas
políticas públicas governamentais como praticáveis aos índios para se esperar mudanças, sem antes
segundo as lógicas e racionalidades socioculturais investir fortemente na formação técnica e política
dos povos indígenas; ou seja, que os povos indíge- deles.
nas devem fazer, a seu modo, o papel do estado, Em outra dimensão, a sociedade nacional e o
inclusive a gestão de recursos e programas. Outro Estado moderno se configuram e se sustentam à
é aquele que concebe as políticas públicas como base de uma democracia da maioria sobre ou con-
responsabilidade do Estado e dos governos e ca- tras as minorias, neutralizando e negando os direi-
beriam aos índios o controle social e a participação tos legais conquistados e constituídos. Essa situação
em todas as fases, o espaço de tomada de deci- sugere a hipótese de que a garantia dos direitos de
sões e de execução, para que os direitos indígenas grupos sociais depende das co-relações de forças
sejam respeitados e garantidos. As experiências políticas, o que vai contra a noção do Estado de
acumuladas demonstram a inviabilidade do primei- direito e de instituições judiciárias imparciais. É
ro, pois fragiliza os processos de autonomia dos comum ouvir dos operadores de direito, por exem-
povos indígenas, além de viciar as lideranças indí- plo, que a eficácia dos direitos indígenas depende
genas nos problemas de gestão administrativa e de contextos políticos específicos, uma vez que eles
financeira dos projetos que tentam executar e im- são resultado de pactos políticos entre a maioria,
plementar, com as melhores intenções possíveis, cuja vontade tem precedência sobre outras. Deste
como foram os casos dos convênios de saúde. Não modo, a aplicabilidade do discurso do multicultura-
resta, portanto, outra alternativa, a não ser habili- lismo, pluriculturalismo e da interculturalidade de-
tar as lideranças e as organizações indígenas no monstram limites determinados, exatamente de
seu papel de protagonistas na luta pela defesa pri- acordo com os contextos e interesses da maioria.
mordial dos direitos dos povos indígenas, a partir Isso pode ser exemplificado pela ausência de
dos instrumentos e mecanismos existentes de di- representação indígena nos poderes constituídos do
reitos indígenas e humanos, além da luta pelo aper- país, Executivo, Legislativo e Judiciário, mesmo
feiçoamento e pela ampliação desses direitos e de diante de um discurso e de uma base legal pautada
seus mecanismos de efetividade. por ideais de multiculturalismo, pluriculturalismo e
interculturalidade. Os dois primeiros casos depen-
Considerações finais dem de coeficientes demográficos eleitorais e o
terceiro caso depende da formação escolar e inte-
O cenário em que os agentes indígenas de diá- lectual dos povos indígenas. O mesmo ocorre com
logo e de direito atuam na atualidade tem uma base o não reconhecimento prático, por parte do Esta-
legal e conceitual positiva, fundamentada nos prin- do, dos sistemas sociais de vida dos povos indíge-
cípios de cidadania, protagonismo e autonomia in- nas – sistemas jurídicos, sistemas sociais e políticos
dígena. No entanto, a base político-administrativa etc... Essa realidade revela a sociedade moderna
é ainda extremamente conservadora, discrimina- com uma sociedade de tolerância limitada, mas
tória e monolítica, o que torna as práticas políticas muito longe de uma sociedade da diversidade e da
ainda fortemente excludentes e injustas. O univer- multietnicidade.
salismo e igualitarismo das políticas públicas afron- Os desafios se concentram em duas dimensões.

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A primeira dimensão diz respeito ao campo das po- minação e legitimação das políticas de interesses
líticas públicas quanto ao problema de compatibili- do Estado, diante da fragilidade e fragmentação
dade entre as diferentes bases racionais que da luta indígena. Uma das questões fundamentais
fundamentam e orientam as práticas políticas e so- é trabalhar para que as lideranças, que assumem
ciais do Estado, como a Escola, por exemplo, uma funções ou responsabilidades públicas na escola
das que fundamentam e orientam a vida das comu- ou nos sistemas de ensino, não se afastem de suas
nidades indígenas. Disso resultam práticas exclu- realidades locais e de algum modo continuem co-
dentes e discriminatórias da administração que é o nectadas e envolvidas direta e concretamente, a
principal instrumento de limitação e negação dos fim de evitar o distanciamento, o isolamento e a
direitos indígenas. Diferenças conceituais e práti- cooptação.
cas de chefia, hierarquia, autoridade, burocracia, A estratégia fundamental seria a capacidade de
solidariedade, lealdades, conhecimento, ampliam a assumir concretamente o protagonismo e autono-
distância entre as perspectivas indígenas e as do mia de pensamento, de tomadas de decisões es-
Estado. A organização social e política, por meio de tratégicas e recuperação do autogoverno social e
sindicatos, organizações profissionais (categorias) e territorial. Para isso, o passo mais importante é
partidos políticos vão contra a lógica de vida social e superar toda e qualquer tutela, de Estado, Igreja,
política indígena holística, comunitária, orgânica etc. ONGs, Governos, que ainda resiste no meio indí-
Em outra perspectiva, encontram-se as orga- gena e indigenista, e investir prioritariamente na
nizações e lideranças indígenas que enfrentam formação integral, principalmente dos educadores
muitas contradições, ambiguidades, conflitos. Tais e das lideranças indígenas, tanto na dimensão teó-
desafios resultam principalmente da dificuldade de rica e técnica, quanto na dimensão política.
compreensão da complexidade do mundo da esco- Enfim, é fundamental lutar para que os indíge-
la ou de visões equivocadas acerca dela e de seus nas deixem de ser vistos e considerados como meio-
instrumentos de poder. Disto resulta a necessida- brasileiros, súditos de segunda categoria, subcida-
de de uma formação política adequada para criar dãos, para serem cidadãos de fato. Nesse sentido,
competências que os empoderem com habilidades as organizações indígenas e lideranças indígenas
suficientes para lidarem com as artimanhas, sedu- como agentes de diálogo, mesmo com todos os
ções e tentações dos instrumentos de dominação problemas, são relevantes e vitais para a garantia
do Estado. Participação, controle social e ocupa- e o avanço dos direitos indígenas no Brasil, para os
ção de espaços podem ser transformados em ins- quais o escola é um poderoso potencial de trans-
trumentos de luta dos povos indígenas, na medida formação e empoderamento técnico e político de
em que podem participar ou contribuir para as to- velhas e novas gerações de lideranças e cidadãos
madas de decisões em favor dos povos indígenas, indígenas.
mas até hoje são muito mais instrumentos de do-

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Recebido em 01.12.09
Aprovado em 05.12.09

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