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Não deixa de ser surpreendente a velocidade com que ganha espaço público
e legitimação a assertiva de que é preciso repensar o modelo de desenvolvimento
rural adotado no Brasil e, mais do que isto, reorientar as formas de intervenção do
Estado e as políticas públicas.
Nos anos recentes é marcante o modo como ocorreram as mudanças e
reorientações das políticas públicas para o meio rural brasileiro, destacando-se a
criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF),
em 1996. O surgimento deste programa representa o reconhecimento e a legitimação
do Estado, em relação às especificidades de uma nova categoria social os
agricultores familiares que até então era designada por termos como pequenos
produtores, produtores de baixa renda ou agricultores de subsistência. Este fato
recente merece destaque, pois até o início da década de 1990 não existia nenhum
tipo de política pública especial, com abrangência nacional, voltada ao atendimento
das necessidades desse segmento social do meio rural brasileiro.
De uma maneira geral, considera-se que as mudanças recentes nas ações
governamentais para o meio rural, em especial para a agricultura familiar, vão de
encontro a um conjunto de transformações mais profundas que se operam no
tecido social e econômico da sociedade contemporânea. Estas mudanças, que
influenciam os espaços rurais e suas populações, estão relacionadas ao processo
de ampliação da interdependência nas relações sociais e econômicas em escala
internacional, designado por muitos autores como a essência da globalização. A
globalização traz efeitos e estabelece novos condicionantes que, sinteticamente,
1 As idéias que compõem este texto foram apresentadas e discutidas no Seminário Agricultura
Familiar e Desenvolvimento Territorial, organizado pelo Núcleo de Estudos Agrários da
Universidade de Brasília. Sou grato a Amauri Daros e Flávio Botelho pelo convite para o
evento e para participar deste livro. Agradeço, igualmente aos meus colegas de trabalho do
PGDR, alunos de mestrado e doutorado, além de diálogos continuados com operadores de
governo (especialmente os ligados à SAF/MDA) e extensionistas rurais dos Estados do Sul do
Brasil. Além destes interlocutores tenho me beneficiado enormemente do apoio que o CNPq
vem conferindo às minhas pesquisas. Também gostaria de registrar meus agradecimentos aos
bolsistas Leonardo Renner Koppe (PIBIC/CNPq), Ana Luíza Müller (ITI/CNPq) e Ivan G. P.
Tartaruga (DTI/CNPq), além dos colegas da UFPel, na pessoa do Prof. Flávio Sacco dos Anjos.
2 Sociólogo, Mestre e Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Rural e do Departamento de Sociologia da UFRGS. Pesquisador do CNPq
(Bolsa Produtividade em Pesquisa). Endereço Av. João Pessoa, 31, Centro - Porto Alegre, RS
90.040-000 E-mail: schneide@ufrgs.br
podem ser entendidos e caracterizados a partir da excepcional capacidade da
economia capitalista de ajustar, em escala planetária, a interdependência entre as
condições de tempo e espaço no processo global de produção de mercadorias.
No que diz respeito à agricultura e ao mundo rural, os efeitos da
reestruturação econômica, produtiva e institucional podem ser percebidos através
de múltiplas dimensões. Primeiro, abrem-se os mercados, aceleram-se as trocas
comerciais e intensifica-se a competitividade, agora tendo por base poderosas
cadeias agroalimentares que monopolizam a produção e o comércio atacadista
em escala global, restringindo a participação nestas relações de troca de imensas
regiões produtoras, o que vale inclusive para alguns países e mesmo parcelas
continentais (Reardon e Berdegué, 2003). Segundo, paralelamente ao processo
contínuo de aprofundamento do progresso tecnológico (agora via biotecnologias,
engenharia genética, etc), assiste-se ao aparecimento de iniciativas, dos mais
variados matizes, que contestam e criticam o padrão técnico dominante (Goodman
e Watts, 1997). Terceiro, as modificações nos processos de produção pós-fordistas
(mais flexíveis e descentralizados) levam à diluição das diferenças setoriais
( é visto pelo encadeamento de vários setores) e espaciais. O rural
deixa de ser o específico das atividades agrícolas e as variadas formas de
complementação de renda e ocupação em atividades não-agrícolas permite que
a renda de muitas famílias que residem no meio rural se estabilizem ao longo do
ano e que os filhos não precisem mais deixar o meio rural para achar emprego
(OCDE, 1996; Echeverría, 2001; Graziano da Silva, 1999; Schneider, 2003).
Quarto, modifica-se o papel do Estado, do poder público em geral e das instituições
que atuam nos espaços rurais, pois o centralismo cede espaço à parceria, às
ações descentralizadas e à valorização da participação da sociedade civil
(Schejtman, A. Berdegué, J., 2003; Campanhola e Graziano da Silva, 2004).
Quinto, a dimensão ambiental e as práticas de uso sustentável dos recursos
naturais deixa de ser vista como um aspecto secundário e marginal, tomado
como um argumento restrito as minorias e passa a ser um fator de competitividade,
um elemento de estímulo à ampliação do consumo, uma vantagem econômica
comparativa e um pré-requisito para obtenção de créditos e acesso à fundos de
investimento, especialmente os de fontes públicas (Ploeg e Renting, 2000).
Em face dessas transformações vários analistas passaram a preconizar a
necessidade de repensar as abordagens analíticas e os enfoques que até então
eram utilizados como referências teóricas para definir o desenvolvimento rural.
Este é, em particular, o caso da abordagem das estratégias de sobrevivência
familiares e a diversificação dos modos de vida rurais (
), exposta pelo inglês Frank Ellis (2001; 2000; 1998).
Segundo este autor, o desenvolvimento rural consiste em um conjunto de iniciativas
pragmáticas que visam gerar impactos significativos na melhoria das condições de
vida dessas populações e ampliar suas perspectivas de garantir a reprodução social
e econômica estão. Na maioria das vezes, as oportunidades para alcançar estas
ações encontram-se nas próprias localidades e territórios onde as pessoas vivem.
A diversificação não implica apenas em ampliação das possibilidades de obtenção
de ingressos, especialmente rendas (agrícolas, não-agrícolas, outras) mas representa,
sobretudo, uma situação em que a reprodução social, econômica e cultural é
garantida mediante a combinação de um repertório variado de ações, iniciativas,
escolhas, enfim, estratégias (2000, p. 25; 2001, p.443).
O
disseminado e intenso processo de modernização tecnológica teria
permitido que a agricultura se tornasse uma atividade cada vez mais
individualizada, dispensando gradualmente a utilização da mão-de-obra
total das famílias rurais. Este processo de individualização do trabalho
agrícola estaria diretamente associado ao aumento dos membros das
famílias com domicílio rural ocupados em atividades não-agrícolas;
Nos
países desenvolvidos, embora não exclusivamente, as atividades não-
agrícolas e a pluriatividade das famílias passou a contar com o apoio
e o estímulo das políticas públicas para contrapor-se não apenas à
queda das rendas no setor agrícola mas, sobretudo, como uma
estratégia de desintensificação da agricultura buscando-se amenizar
os problemas de super produção e os impactos ambientais. Os
estímulos oferecidos aos agricultores pela União Européia, introduzidos
a partir da grande reforma da Política Agrícola Comum (PAC), ocorrida
em 1991/92, estão relacionados a esta nova situação. Em um cenário
onde o desemprego tornou-se um problema estrutural sem perspectivas
de resolução imediata, a busca de geração de oportunidades de
trabalho e ocupação no meio rural passou a figurar entre os objetivos
das políticas públicas;
A expansão da
pluriatividade no meio rural também pode ser atribuída à dinâmica do
mercado de trabalho não-agrícola. Existem vários estudos que indicam
as relações entre processos de descentralização industrial ou de
industrialização descentralizada em áreas não-urbanas com o crescimento
de atividades não-agrícolas nos espaços rurais. Este é o caso, em
particular, de algumas regiões do Mediterrâneo, especialmente em países
como Portugal, Espanha e Itália e no Brasil algumas áreas dos estados
de Santa Catarina (Vale do Itajaí) e do Rio Grande do Sul (Encosta Inferior
e Superior da Serra do Nordeste);
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