Você está na página 1de 20

A EXTENSÃO RURAL NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DA AGRICULTURA

E NA BUSCA DE ALTERNATIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL 1

Cleyton H. Gerhardt 2
Jalcione Almeida 3

Resumo:

Várias foram as mudanças nas políticas agrícolas no Brasil nos últimos 50 anos, sendo que a
extensão rural teve (e continua tendo) papel importante na implementação das estratégias de
desenvolvimento. Neste contexto, foi realizado um estudo das diferentes fases (e faces) da extensão rural
e sua inserção nos “modelos” de desenvolvimento adotados, as conseqüências advindas tanto destes
modelos como das diretrizes e metodologias introduzidas pela extensão rural na sua implementação, os
limites impostos pôr estas políticas e os desafios frente ao atual quadro da agricultura e do rural. Foram
selecionadas diferentes fontes documentais e bibliográficas que permitiram montar um quadro histórico e
analítico do trabalho da extensão rural ao longo das últimas quatro décadas. Atualmente existe uma
confrontação de posições e discursos sobre o papel da extensão rural perante os desafios impostos ao
desenvolvimento da agricultura. Isto deu origem a uma espécie de lacuna entre a prática cotidiana dos
extensionistas e esta discussão acerca das novas diretrizes para a extensão. Seja qual for o seu resultado,
este repensar aponta para a necessidade de construção de um paradigma alternativo para a extensão rural.
Neste contexto a extensão tem a sua frente alguns desafios tais como: redefinir claramente o seu público-
meta, procurar formas de diminuir a lacuna existente entre a pesquisa a extensão e a realidade do
agricultor, bem como rever suas metodologias operacionais.

A época de ouro (negro) da extensão

A extensão rural no Brasil, criada em 1948, foi inicialmente uma atividade ligada a área
não governamental e sem fins lucrativos. Procurando ver a propriedade como um todo e
utilizando métodos grupais para trabalhar com os agricultores, sua maior preocupação residia
em buscar maior eficiência dos “fatores de produção” para, com isto, promover uma melhoria
das condições de bem-estar dos seus beneficiários (saúde, educação, lazer, etc...). A partir dos
anos cinqüenta, com a consolidação do processo de industrialização do país, a extensão rural
redirecionou drasticamente o seu enfoque. Acatando as políticas de desenvolvimento inspiradas
nos países do chamado Primeiro Mundo, passa a incorporar tanto os objetivos, como as

1
Trabalho apresentado no X Salão de Iniciação Científica da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, em 23.10.98. Versão preliminar.
2
Aluno de Graduação da Faculdade de Agronomia da UFRGS. Bolsista de Iniciação Científica.
3
Professor Adjunto da Faculdade de Agronomia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Rural (UFRGS). Doutor em Sociologia. Secretário Executivo do Núcleo Interdisciplinar “Tecnologia,
Meio Ambiente e Sociedade (Núcleo TEMAS - IFCH/UFRGS).
metodologias provenientes destes países (marco comum, aliás, dos modelos de extensão
adotados a partir daí na maioria dos países do terceiro mundo), recebendo inclusive um grande
aporte de financiamentos via FAO, PNUD, Banco Mundial, USAID, GTZ, entre outros, para a
implantação do novo “padrão industrial” de desenvolvimento na agricultura.
Este novo modelo de desenvolvimento para a agricultura baseava-se no aumento da
produção e da produtividade através do monocultivo em larga escala e da utilização de sementes
selecionadas que respondiam positivamente a altas quantidades de fertilizantes (sobretudo os
nitrogenados), controle rigoroso de pragas e moléstias através de maciças doses de
agroquímicos e uso intensivo de máquinas e implementos. Com o objetivo de aumentar a
quantidade de alimentos e assim acabar com a fome da população, este modelo se espalhou pelo
Brasil, ganhando força também em muitos países.
Neste contexto, usada como estratégia para promover a desmobilização das organizações
dos produtores (ligas camponesas e sindicatos rurais), a extensão entra na chamada fase
difusionista, passando a incentivar o aumento da produção e da produtividade agrícolas em
detrimento das atividades de maior cunho social. A estratégia adotada para viabilizar este
objetivo, visava “educar o homem do campo”, tirando-o do “atraso”, fazendo com que este
aceitasse as mudanças impostas pelo novo padrão de desenvolvimento. Os agricultores eram
treinados pelos agentes de extensão rural, estes configurando-se como repassadores de
tecnologias.
Já no final dos anos cinqüenta constatou-se que apenas a “educação” não bastava para
promover o aumento da produtividade e a adoção das novas tecnologias. Campanhas foram
feitas, priorizando atividades com os jovens, mas o trabalho com os pequenos agricultores ou a
chamada agricultura familiar não mostrou bons resultados. Em 1960, a extensão rural passa a
recomendar o trabalho com os médios e grandes proprietários e com aqueles aptos a adotar as
tecnologias ditas “modernas”, segmentos tidos com maior capacidade de resposta. As principais
faculdades de agronomia do país reformulam seus currículos, estabelecendo convênios com
instituições americanas e passando a adotar suas metodologias e estruturas de ensino e pesquisa,
privilegiando assim as áreas e disciplinas envolvidas com a adaptação do padrão agrícola já
consolidado naquele país.
Buscando adaptar a agricultura ao padrão industrial de desenvolvimento imposto, a
extensão é usada como ferramenta para promover a modernização do campo. Acreditava-se na
época que a mudança social se daria pela introdução de novas técnicas. Neste contexto, as
universidades desempenharam um papel fundamental, pois, além de incorporarem a disciplina

2
de extensão rural no currículo das ciências agrárias, criando e reproduzindo repassadores das
técnicas desenvolvidas no seu interior ou importadas dos grande eixos de geração de
conhecimento, legitimaram o método difusionista (também dito rogeriano) do ponto de vista
científico. Os centros de ensino das ciências agrárias tinham como objetivo norteador responder
aos desafios propostos pelos planos nacionais de desenvolvimento. Neste contexto, a disciplina
de extensão assumiu a grande responsabilidade de formar profissionais habilitados a transferir
tecnologias. O substancial avanço do conhecimento tecnológico que ocorreu neste período e sua
excelente disseminação pelos extensionistas determinaram uma série de conseqüências que
acabaram por alterar completamente o quadro agrário e agrícola do país, alavancando o
processo de transformação da agricultura no Brasil.
Cabe aqui ressaltar que esta transformação não se restringe, como é comum se dizer,
apenas nas modificações ocorridas na base técnica de produção, na substituição das técnicas
agrícolas ditas tradicionais por técnicas “modernas”, na substituição do burro pelo trator, do
estrume pelo adubo (Graziano Neto, 1982). Significa muito mais, pois ao mesmo tempo que vai
ocorrendo o progresso técnico, vai se modificando também a organização da produção, o que
diz respeito às relações sociais (e não técnicas) de produção. Vão se modificando as relações do
homem com o meio ambiente. Além do aumento no consumo de fertilizantes, sementes
selecionadas, tratores, rações, agroquímicos, enfim, de bens industriais pelo setor agrícola,
ocorrem outras importantes modificações, como por exemplo o aumento dos chamados “bóia-
frias”, da mão-de-obra assalariada, da expropriação dos pequenos produtores, posseiros ou
parceiros, dos diversos e variados problemas de degradação ambiental e tantas outras
transformações.
Por volta da metade da década de sessenta, agrega-se um importante instrumento
utilizado no processo de modernização: o crédito agrícola subsidiado. É a partir deste momento
que o padrão de desenvolvimento realmente começa a se consolidar na realidade agrária do
país. Tamanha é a sua envergadura que, tomando apenas como exemplo a utilização de tratores
na agricultura, percebe-se um aumento de quase 1.400% no número de máquinas utilizadas
entre 1950 e 1965 (de 8 mil para 113 mil unidades) (Graziano Neto, 1982). Com a utilização do
crédito, financiado basicamente através de recursos externos e visando a substituição das
importações, um grande aumento também se reflete no consumo dos demais insumos
industriais utilizados na agricultura. No entanto, o crédito agrícola teve uma distribuição parcial,
tanto no que se refere a regiões, quanto as atividades agrícolas e produtores rurais: no ano de
1979, metade dos menores contratos de crédito, recebiam 5,2% do total de recursos e apenas

3
1% dos maiores contratos recebiam 38,5% do total do crédito (Pinto, 1979, citado por Graziano
Neto, 1982). Esta discrepância potencializou ainda mais os efeitos perversos da chamada
“revolução verde”, pois é inegável que existiu (e continua existindo) uma alta correlação entre o
tamanho das unidades de produção e o volume de recursos distribuídos.
Apesar de a indústria começar, a partir deste momento, a comandar a direção, as formas
e o ritmo das mudanças na base técnica da agricultura, ressonando também na prática da
extensão rural, cabe ressaltar que esta última teve papel fundamental neste processo, pois foram
os extensionistas da época que, de uma certa forma, efetivaram a implantação do crédito
agrícola e por conseguinte, o aumento no consumo de bens industriais na agricultura. Tiveram
papel ainda mais significativo no processo de “homogeneização” das unidades de produção e
regiões agrícolas, pois através da adoção pelos agricultores dos chamados pacotes tecnológicos
repassados pelos extensionistas - pacotes estes gerados nas nossas universidades e centros de
pesquisa ou importados de outros países - o homem do campo se viu cada vez mais “preso” a
sistemas de cultivo e/ou produção específicos e homogeneizados, diminuindo progressivamente
a sua autonomia quanto ao uso dos meios de produção.
Durante a década de setenta, a extensão se afastou progressivamente da agricultura
familiar, privilegiando outras categorias. Com a disseminação dos pacotes tecnológicos, cada
vez mais restritos a simples recomendações de quantidades, tipos e épocas de uso de
fertilizantes, agroquímicos e sementes e a transformação paulatina do extensionista em um
profissional restrito a atividades necessárias para a aquisição do crédito e assistência técnica do
empreendimento financiado, começaram a surgir dificuldades não só do ponto de vista social e
econômico, mas também ambiental. Sérios problemas de contaminação das águas,
envenenamento dos agricultores e dos alimentos, erosão dos solos foram se evidenciando mais e
mais. A estas conseqüências vieram se somar um aumento progressivo do êxodo rural, o
“enfavelecimento” das cidades, endividamento dos agricultores e aumento da pobreza.
Este processo desencadeou o surgimento de movimentos sociais, de organizações não
governamentais, e de correntes políticas que passaram a demostrar de maneira clara o
desconforto com os limites sociais, econômicos e ecológicos que o padrão de desenvolvimento
implementado apontava cada vez mais. Foi a partir destas constatações que começaram a surgir
pressões no sentido de se buscar formas e estratégias alternativas de desenvolvimento para a
sociedade e o meio rural. Estas idéias, no início tidas como subversivas, começaram a aparecer
também nas universidades, berço da geração dos conhecimentos a serem utilizados no processo
de modernização da agricultura.

4
Em 1975 é fundada a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
(EMBRATER), órgão que visava coordenar o trabalho de extensão rural nos estados. Seu
surgimento não trouxe mudanças imediatas no enfoque da extensão rural pública, mas induziu a
compreensão de que havia um processo de exclusão das famílias rurais em curso. Em
decorrência disso a EMBRATER passa a recomendar, além do trabalho de difusão junto aos
grandes e médios agricultores, um traballho complementar e assistencialista de cunho social (o
qual havia sido relegado ao esquecimento desde a década de cinqüenta), junto aos agricultores
de “baixa renda”. Fica evidente que esta atitude visava apenas reduzir e minimizar os efeitos e
conseqüências do processo de modernização e não apresentar uma proposta para esta parcela de
agricultores. No entanto, o seu surgimento acabou por desencadear junto aos demais agentes de
desenvolvimento envolvidos uma reavaliação das ações públicas junto ao meio rural.

Extensão e Meditação, 10 anos de reflexão

Entra-se assim nos anos oitenta, o qual ficariam conhecido como a “década perdida”.
Perdida certamente não, pois durante este período, mesmo que não ocorressem grandes
mudanças nas estratégias de intervenção e desenvolvimento do meio rural, houve uma
substancial reformulação nas diretrizes e programas, tanto dos órgãos e agentes de extensão e
assistência técnica, como das instituições de ensino, em especial as disciplinas ligadas a
extensão e, em um segundo momento, as vinculadas a geração de tecnologias. Com todacerteza,
este “repensar” pôde se evidenciar um grande parte devido às conseqüências perversas do
padrão de desenvolvimento vigente e do grito de alerta dos movimentos rebeldes nascidos
durante a segunda metade da década de setenta.
A partir de 1973, sucedeu-se uma diminuição paulatina do crédito agrícola, ao ponto de
em 1984 o valor destinado ser 80% inferior ao montante de recursos investidos em 1975
(Graziano da Silva, 1992). Esta supressão constante da principal ferramenta utilizada pelos
agentes de extensão, determinou outra grande alteração na situação agrária brasileira. Isto
porque, com a diminuição dos recursos destinados ao financiamento da agricultura dita
“moderna”, e estando esta dependente e baseada no alto consumo de insumos e mecanização,
intensificou-se o endividamento dos agricultores. As sucessivas frustrações de safras dos anos
de 1978/79, 1981/82 e 1982/83 contribuíram ainda mais para o agravamento da situação dos
agricultores de um modo geral. Soma-se a estes fatores, a baixa eficiência energética dos
sistemas produtivos potencializada pela necessidade cada vez maior do uso de fertilizantes e

5
agroquímicos, o que, como conseqüência desencadeava um processo de empobrecimento dos
solos e de desequilíbrio radical dos agroecossistemas. Os elevados aumentos iniciais de
produtividade, resultantes do processo desencadeado pela “revolução verde” começaram a
esbarrar em uma característica até então imutável da agricultura: o fato de se estar lidando com
processos biológicos, vivos e dinâmicos, os quais não respondem da mesma forma que os
processos de produção industrial. Se a “revolução verde” proporcionou, em um primeiro
momento, o aumento fantástico na produção total da agricultura, agora já não é possível seguir a
lógica da elevação dos rendimentos e produtividade, conseguidos graças a uma intensificação
do fenômeno do apropriacionismo na agricultura (Goodman et alli, 1990).
Sofrendo pressões de diversos segmentos da sociedade, vendo o surgimento de
movimentos alternativos contrários a chamada agricultura convencional e percebendo as
dificuldades e limites que se impunham ao desenvolvimento da agricultura face ao modelo
adotado até então, a extensão entrou desde o final da década de setenta em um lento processo de
reflexão acerca das suas estratégias. Em um primeiro momento, apesar de continuar movendo-
se no sentido da lógica modernizadora, os órgãos de extensão buscaram incorporar elementos
novos ao seu discurso (por exemplo, a defesa do meio ambiente), sem no entanto realizar
transformações fundamentais das bases que orientavam suas práticas. Tomando a frente nas
discussões, a EMBRATER assumiu um papel importante no processo do repensar da extensão.
A reavaliação das atividades públicas ligadas ao meio rural trouxeram de volta antigos valores,
resgatando assim aspectos como a importância da organização dos produtores; a necessidade de
se priorizar a agricultura familiar e as categorias mais desfavorecidas; a requalificação dos
extensionistas no sentido de atuarem procurando compreender a lógica dos agricultores e
construirem, juntos, alternativas de produção; a descentralização dos serviços, adequando-os às
realidades locais; e a parceria e articulação com sindicatos, entidades não-governamentais e
outras representações. Era preciso retomar o diálogo com os agricultores, principalmente
aqueles que foram alijados do processo, mudando-se o enfoque produtivista para uma
abordagem mais humanista, buscando assim, através da sua organização, soluções e alternativas
de desenvolvimento mais adequadas às realidades regionais e locais.
Também nas universidades começaram a surgir questionamentos ao programa de ensino
vigente, incorporando-se as críticas ao padrão de desenvolvimento no debate que se estabeleceu
em torno da disciplina de extensão rural, o que ocasionou uma revisão dos conteúdos
programáticos e das abordagens metodológicas adotadas até então. As sucessivas reuniões
ocorridas em 1977 e 1979 da Associação Brasileira de Ensino Superior (ABEAS) determinaram

6
um passo importante na direção da reformulação radical da disciplina de extensão rural. Este
novo programa proposto centrava-se na leitura da realidade rural e na busca de alternativas de
transformação desta realidade, acabando assim com o enfoque centrado no arsenal
metodológico para a difusão de inovações na agricultura, como tinha sido proposto, por
exemplo, por Hayami & Ruttam (1984). Este programa tem o objetivo de preparar o futuro
profissional para atuar no processo de mudança social de maneira crítica e criativa. Outro
avanço importante foi a desvinculação do serviço oficial de assistência técnica e extensão como
sendo a única forma de intervenção na realidade rural, legitimando o aparecimento crescente de
organizações não-governamentais imbuídas de uma proposta divergente da agricultura
convencional.
A evolução das discussões a respeito da mudança de enfoques efetivada pelos agentes de
extensão e instituições de ensino foi caracterizada pela análise crítica da ação extensionista
oficial e pelas descrições dos principais problemas que conformavam o quadro da realidade
rural. No entanto, as constatações advindas destas discussões esbarraram na falta de propostas
de ações concretas para o enfrentamento da problemática detectada. Não havia sido gerado
ainda um conhecimento suficiente acerca de alternativas tecnológicas ao paradigma em curso
para se interferir de forma substancial no sentido da sua mudança. As chamadas ONG’s eram
ainda muito jovens, estando em uma fase inicial de estruturação, sendo que as instituições de
pesquisa - que deveriam responder às demandas geradas pela necessidade de alternativas -
permaneciam fortemente atreladas a geração de tecnologia em um formato essencialmente
reducionista, distante das reais necessidades dos agricultores (fenômeno, aliás, que, em grande
medida, se estende até hoje).
Assim, todo o embasamento metodológico gerado para a intervenção criativa e
transformadora dos profissionais, esbarrava na pouca quantidade de subsídios necessários para a
adoção desta atitude, o que muitas vezes contribuiu para o enfraquecimento das metodologias e
estratégias de extensão e ensino com enfoque mais construtivista. Por outro lado, também os
técnicos que trabalhavam junto aos agricultores, permaneciam profundamente arraigados às
antigas formas de atuação centradas na transferência de tecnologia (problema também atual),
determinando uma alteração apenas superficial na base técnica, pois se por um lado os altos
quadros das EMATER e EMBRATER propunham a mudança, as bases destas entidades não
assimilavam de forma direta as novas diretrizes de trabalho geradas neste órgãos. É neste
contexto que as proposições geradas no processo de discussão ocorrido durante toda a década de
oitenta, foram adequadas no sentido de se questionar o modelo oficial de atuação da extensão e

7
propor novas formas de leitura da realidade, mas não conseguiu ser propositivo em relação a
novas estratégias de intervenção no meio.
Alheio a esta crise de identidade dos órgãos de extensão e instituições de ensino ligadas
ao meio rural, o processo de modernização da agricultura prosseguiu praticamente inalterado
durante toda década de oitenta. Apesar das constatações mais que evidentes das conseqüências
perversas da moderna agricultura capitalista, centrada na melhoria contínua das condições de
rentabilidade e taxas de lucro elevadas e a evidência dos seus limites, este modelo de
desenvolvimento continuou (e continua ainda) a imperar de forma hegemônica. O consumo de
fertilizantes e agroquímicos continuou aumentando, o êxodo rural recrudesceu ainda mais, a
degradação ambiental prosseguiu e a qualidade de vida da agricultura familiar decresceu. No
entanto, a evolução da sociedade (e por conseguinte da agricultura) é um processo dinâmico,
onde as interrelações e interpenetrações dos diversos e diferentes campos do conhecimento e
agentes envolvidos resultam em conseqüências as quais não podem ser avaliadas sem levar em
conta seu caráter temporal. Certamente os anos oitenta foram insuficientes para a proposição de
um novo padrão para a agricultura que rompesse com o paradigma vigente, mas certamente que
estes anos serviram, primeiro, para consolidar as evidências negativas constatadas já na década
de setenta e, segundo, começar o processo de construção de abordagens e estratégias
alternativas, servindo assim como genitora de inúmeros movimentos contrários ao padrão
estabelecido que então surgiram. Portanto, estes anos estabeleceram as condições necessárias
para que, durante os anos noventa, houvesse a sinalização para uma perspectiva de mudança
muito mais sólida e embasada em resultados não somente teóricos (como, por exemplo, os
propostos pelas discussões em volta da noção de sustentabilidade), mas também empíricos
(como, por exemplo, no que se refere a construção de alternativas de desenvolvimento local).

A perspectiva da mudança ou a reacomodação do paradigma?

Dentro do quadro exposto acima, todas as discussões a respeito de novas “saídas” e


estratégias de desenvolvimento que vinham se avolumando desde a década de setenta, tanto no
Brasil como no mundo, culminaram na reformulação das orientações teóricas que configuravam
o pensamento científico de então. As contradições de um tipo de pensamento que vê o
crescimento econômico e o progresso técnico-científico como fatores que pudessem, por si só,
proporcionar indiretamente a melhoria das condições de vida das populações de uma forma
homogênea, se exacerbam cada vez mais com o agravamento das crises ambiental, econômica e

8
social. O crescimento progressivo das desigualdades sociais, desequilíbrios ambientais e
ineficiência energética e econômica impostas pelos processos de industrialização ocorridas ao
longo de todo o século 20, determinaram o reconhecimento acerca da insustentabilidade do
atual padrão de desenvolvimento pelas organizações internacionais (ONU, Banco Mundial,
FMI, entre outros). É neste contexto que surge no panorama mundial, a partir de 1987, com o
relatório Brundtland, a noção de “desenvolvimento sustentável”. Não é objetivo deste artigo
analisar como se deu (e se dá) o desenrolar das discussões a respeito deste tema - o qual
configura um imenso caleidoscópio de idéias e concepções ideológicas - mas sim apenas inserir
as principais implicações oriundas das diferentes tendências sobre novas propostas de
desenvolvimento na atuação e no futuro da extensão rural.
Nos últimos dez anos, várias foram as conceituações elaboradas nos inúmeros
seminários, simpósios, encontros e conferências a respeito da idéia de desenvolvimento
sustentável. Estes conceitos estão invariavelmente sujeitos a diversas interpretações e
influências de diferentes matizes ideológicas. No entanto, é unânime em todos aqueles que se
envolvem no debate, que este representa um avanço no campo das concepções de
desenvolvimento e nas abordagens tradicionais relativas à preservação dos recursos naturais
(Almeida, 1995). Mesmo com o surgimento de uma infinidade de definições sobre
sustentabilidade, desenvolvimento sustentável ou ainda, como querem os franceses,
desenvolvimento durável, vários são os objetivos e pontos em comum incorporados nas
diferentes conceituações, tais como: manutenção a longo prazo dos recursos naturais e da
produtividade agrícola; mínimo de impactos adversos ao meio ambiente; retornos adequados
aos produtores; otimização da produção das culturas com o mínimo de insumos químicos;
satisfação das necessidades humanas de alimentos e de renda; atendimento das necessidades
sociais das famílias e das comunidades rurais (Ehlers, 1996), entre outros.
Contudo, por trás desta aparente sincronia existente nos diversos entendimentos a
respeito do que seja “sustentável”, trava-se uma verdadeira batalha. O embate principal a
respeito da sustentabilidade não reside na discussão acerca de se manter ou não os recursos
naturais, de reduzir ou não os impactos ambientais, satisfazer ou não as necessidades sociais das
comunidades rurais, pois estas prerrogativas são unânimes nas diversas esferas onde se
desenrola o debate . O que realmente causa polêmica é a apropriação por parte de pessoas e
organizações no sentido de que se estas estarão buscando como devem ser as estratégias
adotadas para que se consiga atingir estes “objetivos comuns” (este “futuro comum”). Existem
aqueles que defendem a idéia de que o desenvolvimento sustentável ou a sustentabilidade da

9
agricultura seria alcançada através do desenvolvimento de novas tecnologias (que causem
menores impactos ambientais e racionalizem o uso de insumos químicos), da maior eficiência
técnica e gerencial por parte dos agricultores (com a aplicação correta dos recursos disponíveis)
e da capacitação destes agricultores (através de eficientes agentes de extensão). Não se trata,
portanto, de se transformar o padrão existente, mas sim de adaptá-lo às novas exigências
impostas pelas conseqüências advindas do próprio paradima vigente. Esta visão sobre a
problemática das relações homem-natureza (ou sociedade-natureza) tende a encarar os
agroecossistemas como mais um “recurso” a ser explorado, acreditando ser através do resgate
da idéia de progresso e do avanço tecnológico que se conseguirá atingir os objetivos almejados.
Todavia, um outro ponto de vista também é possível. Este preconiza fundamentalmente
a perspectiva da “construção da mudança”, ou melhor, do movimento no sentido de buscar a sua
transformação como forma de reidirecionar o debate a respeito do desenvolvimento sustentável
na agricultura e para a realidade agrária como um todo. Para tanto, seria necessário romper-se
com a idéia de que a simples geração de novas tecnologias (alternativas ou não, biotecnológicas
ou não, sustentáveis ou não) e que o progresso técnico-científico e o crescimento econômico
possam proporcionar indiretamente a melhoria da qualidade de vida (nos diversos níveis que
esta possui) das famílias e comunidades rurais. Trata-se de formar no seio da sociedade uma
nova consciência a respeito das relações do homem com a natureza; na produção de novos
valores filosóficos e morais; e na gestão de novos conceitos jurídicos, enfim, na produção de
novas formas políticas e ideológicas... definindo-se anteriormente o tipo de desenvolvimento
econômico que se quer, para depois saber quais as tecnologias que lhe são apropriadas
(Graziano, 1995). Sendo assim, a extensão (pública ou não) não pode ser analisada
separadamente. Pelo contrário, ela é parte integrante e atuante de um amplo processo de
restruturação das bases teóricas existentes, interferindo e sofrendo interferência das diferentes
forças que o compõem.

A necessidade de mudança metodológica da extensão para a


construção de um novo padrão de desenvolvimento

Chegamos assim a uma encruzilhada desafiadora para a extensão. Se esta foi


inicialmente criada para servir como instrumento de uma determinada política de
desenvolvimento, atendendo assim a uma demanda existente no meio rural (o repasse e a
difusão de pacotes tecnológicos gerados pelas instituições de ensino/pesquisa) e se este padrão

10
de desenvolvimento começa a partir de um certo momento a apresentar sinais de estagnação
e/ou mudança, a extensão como a conhecemos estará se não condenada a desaparecer,
seriamente comprometida a procurar um novo horizonte que norteie seus objetivos e
metodologias. Seguindo este pressuposto, não resta alternativa a extensão (ainda mais aquela
pública e gratuita) se não restruturar suas bases teóricas.
Como já foi discutido anteriormente, o desenvolvimento da agricultura ao longo deste
século obedeceu à lógica do crescimento econômico e do progresso técnico-científico em sua
vertente industrial-econômico-financeira. Tanto o processo de desenvolvimento de inovações
tecnológicas geradas pela pesquisa para a agricultura quanto a interpretação da realidade agrária
foi (e ainda é) feita fundamentalmente com base no enfoque analítico-reducionista clássico,
separando-se os diferentes componentes de um todo mais ou menos definido, estudando-se estes
componentes até a exaustão com o mínimo de interações e interferências externas
(padronização dos demais fatores atuantes) e recombinando-os novamente para então tentar
“reformatar” o problema inicialmente proposto.
É bem verdade que esta abordagem acarretou um grande crescimento da produção
agrícola em termos quantitativos e, do mesmo modo, representou um substancial incremento
para o processo de compreensão dos processos físicos, químicos e biológicos existentes na
natureza. No entanto, quando se buscava entender as interrelações destes diferentes processos
(fisico-químico-biológicos) nos seus diferentes níveis, esbarrava-se em um fenômeno
intransponível para este tipo de leitura tecnicista: a complexidade infinita existente entre as
partes constituintes de um todo analisado. Apenas como exemplo, conseguiu-se com isto um
enorme sucesso na determinação de doses adequadas de fertilizantes para uma determinada
cultura visando o seu máximo rendimento. Entretanto, ao mesmo tempo se evidenciou também
um fracasso total em se avaliar os efeitos (espaciais e temporais) desta prática nos diferentes
níveis de interrelações que um determinado agroecossistema sucita. isto tanto em termos
extritamente físico-biológicos como também no que se refere ao universo da própria
compreensão e relação humanas). Quer dizer, estes limites, mesmo que mais facilmente
percebidos no ambiente natural, se expressam não só nas relações “ecossistemicas”, mas
também nas relações sociais e econômicas existentes (no agro), pois a adoção de inovações
tecnológicas pelo agricultor atua no sentido de modificar os meios de produção existentes
(determinando assim uma alteração completa na lógica dos seus padrões produtivos) e, mais do
que isto, alterar também as percepções denses agentes sociais sobre o mundo ao seu redor e
ambiente que o envolve.

11
Durante os últimos 50 anos a passagem do conhecimento seguiu um modelo linear, onde
o fluxo de informação se dava de cima para baixo, do pesquisador para o extensionista e do
extensionista para o agricultor, sem ou com o pouco reconhecimento da existência de trocas.
Tratava-se apenas de desenvolver uma determinada técnica e “vendê-la” ao público
consumidor: os agricultores. Também no ensino a metodologia é semelhante, pois o professor
tende a ser visto como o detentor do conhecimento e aquele que repassa este conhecimento para
seus alunos. Estas abordagens a muito se mostraram, no mínimo, paradoxais em relação aos
seus objetivos anteriores, determinando uma forte pressão no sentido de se buscar outras formas
de construção do conhecimento. É assim que (re)surge no meio acadêmico vinculado às
ciências agrárias, o enfoque sistêmico e a abordagem construtivista, duas correntes as quais
propõem restabelecer uma relação dinâmica e de aprendizagem mútua, onde o pesquisador-
extensionista e o agricultor busquem conjuntamente as soluções para os problemas e estejam
ambos envolvidos no mesmo processo, empenhados na transformação constante da realidade
(Souza, 199?). Ou seja, tentar inserir os agricultores não como meio mas como sendo a razão do
próprio desenvolvimento. Portanto, sob este ponto de vista, não se pode pensar em inovações
tecnológicas ou em novas alternativas tecnológicas para o meio rural sem que estas estejam
intimamente ligadas e relacionadas com os objetivos e a lógica dos agricultores. Para que isto
seja possível, a atitude do extensionista deverá necessariamente se voltar para a busca da
integração destes agentes ao processo de desenvolvimento como sujeitos e não como indivíduos
sujeitados as determinações dele decorrentes. Só assim se conseguirá potencializar a quebra das
heteronomias em que o agricultor se acha preso e gerar, ao invés disso, novos mecanismos de
valorização da sua autonomia (no sentido lato), permitindo com isto que haja um maior
desenvolvimento das suas capacidades de análise crítica e de intervenção na realidade.
Para que se estabeleça este diálogo entre os agricultores e o meio acadêmico, é
necessário romper com a idéia de extensão e pesquisa como duas coisas separadas e com a
linearidade do fluxo epistemológico (Demo, 1996). A extensão está dentro do processo de
construção do conhecimento e por conseqüência da pesquisa acadêmica. O pesquisador é
também um agente de extensão e o ensino deve ser articulado conjuntamente a este processo,
originando um elo inseparável entre ensino-pesquisa-extensão-agricultor, onde o fluxo ocorre de
forma dinâmica e interdependente. Não se trata de repassar ou de levar nada para alguém. Os
agricultores, órgãos de pesquisa, instituições de ensino, agentes de extensão, enfim, a sociedade
como um todo já é (ou pelo menos deveria ser) parte integrante do processo. Além disso, outro
aspecto importante que difere, por exemplo, a pesquisa agrícola sistêmica da pesquisa clássica

12
reside no fato de a primeira visualizar a realidade agrária com um olhar holístico, almejando
considerar o máximo possível as interações existentes entre os inúmeros elementos, aspectos,
idéias e/ou possibilides que a compõem. Para que isto aconteça, é imprescindível a busca
contínua da interdisciplinaridade, pois esta pressupõe sempre a busca da integração do
conhecimento entre as diferentes áreas relacionadas ao universo rural e a tentativa de
visualização das interfaces que este espaço estabelece, por exemplo, com os fatores políticos,
econômicos e sociais provenientes da sociedade em geral.

A agricultura familiar como base do processo de desenvolvimento da agricultura

Como já visto, esta necessidade de integrar e não de separar decorre do reconhecimento


acerca da inadequação das tecnologias desenvolvidas pela pesquisa tradicional para os
agricultores de recursos escassos, sendo este fator, portanto, de suma importância na reflexão
sobre qual o público motivador da pesquisa-extensão. É certo que a modernização da agricultura
acarretou enormes transformações sociais no campo, fazendo surgir novos atores no cenário
agrário do país. É neste sentido que a categorização dos agricultores em pequenos, médios e
grandes produtores (dando a idéia de haver uma certa homogeneização social) se torna
totalmente ineficiente para se entender a complexa dinâmica existente no meio rural, pois os
diferentes grupos sociais constituem forças com diferentes interesses econômicos, sociais e
culturais.
Uma forma de constatar esta característica multifacetada pode ser amplamente
comprovada através das inúmeras tipologias de agricultores já disponibilizadas pela pesquisa
científica. Neste sentido, um desses exemplos, aqui usado apenas a título demonstrativo, sobre o
caráter heterogenio dos agricultores, é apresentado por Gehlen (apud Caporal, 1994). Este autor,
tomando como base a relação das “classes sociais” com a terra para mostrar as diferenciações
presentes na agricultura, pôde identificar três grandes categorias sociais bem distintas entre si:
a) um primeiro grupo que detêm a terra como fonte de poder e articula-se de maneira a manter
privilégios através da sua influência política (latifundiários e grandes empresários); b) um
segundo que vê a terra como fonte de riqueza material e está continuamente buscando aumentar
sua taxa de lucro e seus investimentos (burguesia capitalista, empresariado rural e os chamados
“colonos fortes”); e c) um terceiro grupo para o qual a terra é vista como um espaço de trabalho.
Entretanto e a despeito dos indicadores arbitrários usados nesta separação, o fato é que,
mesmo uma observação superficial, indicará que o nível de informação, de acesso ao capital e

13
de capacidade reprodutiva dos sistemas de produção adotados, nos dois primeiros grupos,
mostra-se demasiadamente mais elevado que o do terceiro grupo. Soma-se a estas
características o fato de que o incentivo dado pelos agentes de desenvolvimento durante todo o
período da chamada “Revolução Verde” a este tipo de agricultura baseada na exploração
capitalista do meio ambiente, foi um dos principais determinantes do processo de
empobrecimento contínuo que se estabeleceu no campo até os dias de hoje.
Aliado a isto está o fato de, inserido dentro da terceira categoria identificada,
encontrarem-se incluídos uma infinidade de tipos sociais não tão facilmente distingüíveis
(como, por exemplo, pequenos proprietários, arrendatários, parceiros, posseiros, meeiros,
assalariados, bóias frias, marginalizados, entre outros). Na verdade, estes configuram ainda a
grande maioria da população rural brasileira, correspondendo essencialmente ao que se
convencionou denominar nos últimos anos de agricultures familiares. A principal característica
em comum entre estes agricultores, é o fato de eles costumam, via de regra, manter a gestão, a
propriedade e o trabalho vinculados a indivíduos que possuem laços de sangue ou casamento
entre si (Abramovay, 1997). Dentro deste universo, estima-se hoje que cerca de 3/4 dos
estabelecimentos rurais desenvolvem suas atividades nos moldes da economia familiar, os quais
abrigam cerca de 17% da população brasileira (Ehlers, 1996).
Durante muito tempo esta produção familiar foi relegada a um segundo plano, ocupando,
no cenário econômico brasileiro, a simples tarefa de produzir alimentos básicos para populações
de “baixa renda”. No entanto, apesar deste papel secundário e coadjuvante, estas propriedades
superam as propriedades patronais (aqui exemplificadas pelos tipos a e b) no que se refere a
oferta da maioria dos produtos agropecuários, tais como: leite, ovos, batata, carne suína e de
aves, trigo, café, laranja, banana, milho, feijão, cacau, algodão, tomate, mandioca (Corrêa,
1997), isto só para citar alguns. Além disso, olhando-se para o desenvolvimento agrícola dos
países hegemônicos (EUA, Grã-Bretanha e Europa continental), vê-se que a base social
propulsora deste desenvolvimento foi a empresa familiar (mesmo que nos moldes empresariais).
Mas, também sob o ponto de vista da transição para sistemas mais sustentáveis ou de
produção, a agricultura familiar traz consigo uma série de vantagens em relação a agricultura
patronal, pois, em geral possui maior capacidade gerencial; mão de obra mais adequada as
especificidades locais e regionais; maior capacidade de geração de empregos; maior
flexibilidade e uma maior aptidão para a diversificação de cultivos e preservação dos recursos
naturais (Ferrari, 1997).

14
Chama-se a atenção, entretanto, de que as tendências atuais em termos de alternativas
para a agricultura familiar não são muito alentadoras. Voltando ao exemplo citado
anteriormente, os agricultores fsamiliares (pertencentes ao tipo c) estão fadados a seguirem
basicamente quatro caminhos: ascender para a condição de semi-empresários; subordinarem-se
às empresas integradoras, perdendo assim sua autonomia; perderem parcial ou totalmente a
terra como meio de produção; ou ,o que parece ser o rumo mais adequado, a permanência na
sua atual condição através da criação e/ou participação de novas estratégias de resistência e
de afirmação econômica e social (Gehlen, 1988).
Portanto, em vista do quadro diferenciado em termos de “oportunidades” (de capital, de
infra-estrutura, de terra, etc.), associado as características intrísicas dos diferentes agentes
sociais existentes no universo rural, poderia se indagar, por exemplo, qual destas categorias
deveriam representar o público preferencial dos serviços de extensão oferecidos pelo estado? À
quem deveriam ser prioritariamente direcionados os recursos financeiros e de infra-estrutura
disponíveis? Quais aqueles agentes que encontram-se menos favorecidos em termos de acesso
às políticas agrícolas e agrárias governamentis (efetuadas através de mecanismos como crédito,
preços mínimos, programas de melhoria de estradas, investimento nas condições de
armazenamento dos produtos, etc.)? Enfim, qual o público prioritário que o Estado
(representado aqui por órgãos e instituições de extensão e de pesquisa governamentais como a
EMATER e a EMBRAPA) deveria priorizar quando da elaboração dos seus planos de
desenvolvimento (especialmente no caso do desenvolvimento rural)?
Talvez uma das primeiras tarefas a serem empreendidas pelos órgãos governamentais,
mas também pelas instituições não diretamente vinculadas ao Estado (como as ONG’s, por
exemplo), deveria ser a tentativa de desmistificar uma tendência, bastante comum da sociedade
atual, de desvalorização do meio rural e sobretudo da agricultura familiar. Na verdade, estes
espaços são, na maioria das vezes, considerados como lugares “atrasados”, onde as condições de
vida são precárias e as pessoas são rudes, “burras”, sem conhecimento e inferiores as que vivem
nos meios urbanos. Neste sentido, investir na agricultura familiar significa, além da
contribuição para a diminuição da pobreza e da marginalização social, ir ao encontro desta
tarefa, tratando, “na sua origem, as causas da migração campo-cidade e os problemas que dela
decorrem (Corrêa, 1997).
Portanto, mais importante do que definir precisamente o que seja agricultura familiar e
os segmentos econômicos e sociais que a compõem (pois, segundo Abramovay - 1997 - “este
não é um bloco homogêneo e compacto), é valorizar as conseqüências que o seu

15
desenvolvimento pode propiciar, contribuindo para a democratização do acesso à terra e a
construção da cidadania no campo. Para que isto seja possível não se pode pensar o incentivo a
agricultura familiar e os agentes de extensão desarticulados com propostas que sejam social,
ambiental e economicamente sustentáveis, nem desvinculados das abordagens que tragam
consigo a necessidade de valorização do conhecimento adquirido pelos agricultores e que
procurem buscar sua autonomia e independência.

A extensão no contexto atual da discussão sobre novas estratégias de desenvolvimento:


desafios e limites para o seu futuro

Sem dúvida, todo o processo de discussão que se desenrola acerca da construção de uma
nova Extensão Rural, que contribua para um desenvolvimento mais adequado do ponto de vista
social, ambiental e econômico da agricultura e do rural, passa por uma restruturação profunda
das suas bases conceituais, diretrizes e estratégias de intervenção na realidade, abordagens
metodológicas e públicos prioritários de trabalho. Ao mesmo tempo que este debate acontece,
não se vislumbra, ao menos para um futuro próximo, grandes alterações no atual padrão de
desenvolvimento. O que se verifica é uma tendência-evidência de ruptura desencadeada pelos
limites impostos pelo próprio padrão e o início de um longo processo de transição que poderá
(ou não) dar origem a um novo modelo de desenvolvimento. Quanto ao seu caráter
“sustentavel”, somente o decurso da história poderá responder que que tipo de sustebtabilidade
será proposta e levada adiante.
Por outro lado, este novo “que fazer” da extensão deve passar pela priorização e
articulação do seu trabalho com a chamada agricultura familiar e os mais desfavorecidos pelas
políticas agrícolas e agrárias implementadas até hoje. Trabalhando com estes de forma
“construtiva”, deve-se sempre incentivar ao máximo a participação de todos os atores sociais
envolvidos a tomarem parte no processo de construção do seu próprio desenvolvimento
enquanto pessoa, família ou comunidade. Certamente esta “vontade” já foi explicitada pelos
órgãos de extensão, os quais vendo as conseqüências danosas das suas estratégias de atuação ao
longo das últimas quatro décadas, proporcionaram o repensar do discurso extensionista e sua
aproximação com as categorias sociais mais marginalizadas dos processos econômicos, sociais
e políticos da atualidade brasileira. No entanto, a falta de instrumentalização metodológica
adequada (principalmente das suas bases), de uma política firme e coesa na adoção das novas
diretrizes e de uma interação maior com as técnicas agronômicas ditas mais alternativas ou

16
agroecológicas, determinaram certos limites de atuação junto ao meio rural que não podem ser
negados, mas incorporados no processo de formação e estruturação da extensão rural do futuro.
A escolha da agricultura familiar como público prioritário se justifica também pela
tendência de enfraquecimento da agricultura de padrão industrial, “insumista”, que cada vez
mais se vê encurralada pela diminuição dos preços dos produtos agrícolas, aumento das
quantidades e dos preços dos insumos, estagnação ou até mesmo diminuição da produtividade,
exigência de uma maior qualidade dos produtos agrícolas pelos consumidores, diminuição do
crédito, oligopolização das atividades agropecuárias, entre outros fatores. Além da questão
social e econômica, soma-se o problema ambiental, pois a agricultura familiar tende a utilizar
de forma mais racional e eficiente os meios de produção do ponto de vista da conservação do
meio ambiente. Portanto, cabe a extensão inserir-se neste contexto de modo a dinamizar os
recursos disponíveis nas próprias unidades de produção e/ou buscando outras alternativas junto
aos agricultores e debatendo com eles suas necessidades e objetivos.
Também deve fazer parte do trabalho da extensão rural o apoio às famílias sem terra,
defendendo os interesses deste grupo social e contribuindo para a solução do seu maior
problema: a terra (ou melhor dizendo, a falta dela). Não é possível se pensar o desenvolvimento
da agricultura sem a realização de uma imediata, ampla e autêntica reforma agrária. Como
pensar em diminuição das desigualdades sociais enquanto não forem implementadas as devidas
condições e “vontades” políticas que viabilizem um processo verdadeiro de redução da
concentração da posse da terra e redistribuição da renda? Estas prerrogativas não se justificam
apenas como necessidades sociais, mas também constituem um importante catalisador do
desenvolvimento econômico do país. Ao mesmo tempo, é preciso compreender que não é
possível ficar aguardando todas estas modificações para começar a trabalhar por um
desenvolvimento mais apropriado, pois, como ensina a dialética, a construção da mudanças
qualitativas ocorrem a partir da somatória de pequenas modificações quantitativas.
Parafrasiando Graziano Neto (1982), a água ferve e muda de estado físico aos 100ºC, mas cada
um dos cem graus é igualmente responsável pela fervura da água, e não apenas o último.
Quanto a busca de alternativas tecnológicas (principalmente para esta parcela de
agricultores), faz-se urgente e necessário uma real e intensa aproximação da extensão rural com
as entidades de pesquisa e destas com os agricultores. Não se pode continuar a permitir que as
técnicas agronômicas e agrícolas introduzidas no meio rural sejam concebidas apenas nos
domínios das universidades, onde os pesquisadores “escolhem-elegem” determinados
“problemas”, montam suas hipóteses, realizam seus experimentos e tiram suas conclusões. Esta

17
pesquisa, apesar de ser pensada com este objetivo, algumas não é feita para solucionar os
problemas dos agricultores, pois encontra-se totalmente desvinculada e desconectada da
realidade dos sujeitos mais interessados na solução destes problemas. É preciso quebrar com
este distanciamento existente entre o pesquisador-extensionista e o agricultor, revalorizando o
seu conhecimento adquirido ao longo de várias décadas. Em certa medida, desconsiderando-se
as bases conceituais mais conservadoras do que se entenda por pesquisa, os agricultores também
podem ser considerados pesquisadores, pois também fazem experimentações com base em
problemas identificados por eles próprios. Da mesma forma, o extensionista é também um
pesquisador e o pesquisador precisa ser um extensionista, sendo assim necessário para o
desenvolvimento do meio rural, uma constante troca de informações e experiências entre todos
os agentes envolvidos para juntos procurarem as alternativas mais apropriadas na resolução dos
problemas.
Para que isto ocorra é também indispensável à extensão rural uma mudança de enfoque
na geração de conhecimentos para as unidades produtivas, elegendo-se a abordagem sistêmica
como a mais adequada e efetiva no trabalho junto aos agricultores. É preciso não mais
desconectar as partes constituintes de uma unidade de produção, de um sistema de produção ou
de um sistema agrário, estas devendo serem vistas de maneira interelacional, inter e
intradependentes, onde qualquer modificação na lógica existente no sistema (seja interna ou
externa a ele), por mínima que seja, acarretará modificações em toda a sua dinâmica de
funcionamento. Neste sentido, a extensão tem papel importante no que se refere a integração de
todos os fatores envolvidos na organização rural: comercialização dos produtos, adoção de
diferentes sistemas de cultivo e criação, avaliação dos objetivos do agricultor, análise de
mercado, disponibilidade de mão de obra, utilização dos meios de produção, etc. de modo a
buscar uma intervenção autônoma dos próprios agricultores na sua realidade local conforme
forem seus interesses mais prioritários. Deve também atuar de maneira a reverter as tendências
atuais de concentração de poder político e econômico e dependência do agricultor impostas
pelos pacotes tecnológicos e cadeias produtivas integradoras
Outra função fundamental da extensão deve ser o de potencializar a organização dos
agricultores, seja em associações, grupos e/ou cooperativas. O fortalecimento das comunidades
rurais através da sua união e articulação política e econômica permite a estas uma maior
capacidade de sobrevivência e reprodução, determinando o nascimento de melhores condições
de inserção dos seus produtos nos mercados local e regional, uma maior capacidade de acesso e
gerenciamento dos meios de produção (crédito, insumos, máquinas, terra) e melhoria das

18
condições de infra-estrutura existentes nestas comunidades (luz, água, telefonia, estradas,
escolas, atendimento médico).
Um dos principais limites de atuação da extensão rural reside no fato de que o
verdadeiro problema de questões como a degradação ambiental, o aumento da exclusão social e
da fome e a diminuição da qualidade de vida dos agricultores estão relacionados muito mais
com áreas como a economia e a política do que propriamente com a área técnico-agronômica.
Para finalizar, é importante ressaltar que a problemática do desenvolvimento na
agricultura (e o papel da extensão dentro deste contexto) possui tantas implicações e meandros,
que muitas vezes as reflexões feitas não podem (ou não conseguem) apontar caminhos mais ou
menos definidos sobre o futuro deste tema. Neste sentido, este artigo tem o objetivo de
contribuir para o debate e, pretensiosamente, para a construção de novas bases para o
desenvolvimento do nosso país e, ao mesmo tempo, daqueles até agora tão esquecidos pelos
órgãos públicos: os agricultores.

Bibliografia

ABRAMOVAY, R. “Uma nova extensão rural para a agricultura familiar”. In: Seminário
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. Brasília, ago.1997.
ALMEIDA, J. “Por uma nova definição profissional do agrônomo: a contribuição das
disciplinas voltadas para a perspectiva do desenvolvimento sustentável”. Extensão Rural.
Universidade Federal de Santa Maria/Centro de Ciências Rurais/ Departamento de
Educação Agrícola e Extensão Rural. Santa Maria, Ano 3, jan/dez de 1996.
ALMEIDA, J.; NAVARRO, Z. Reconstruindo a agricultura: idéias e ideais na perspectiva de
um desenvolvimento sustentável. Porto Alegre, Editora da Universidade (UFRGS), 1997.
ARANHA, Maria L. A. Filosofando: introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 1986.
ASSESSORIA E SERVIÇOS A PROJETOS EM AGRICULTURA ALTERNATIVA. “Uma
nova Extensão Rural para a Agricultura Familiar”. In: Seminário Nacional de Assistência
Técnica e Extensão Rural. Brasília, ago.1997.
CAPORAL, F.; BEBER, J. C. “Por uma nova extensão rural: fugindo da obsolescência”.
Extensão Rural. Universidade Federal de Santa Maria/Centro de Ciências Rurais/
Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural. Santa Maria. Ano 2, n. 2, jan/dez
de 1994.
CAPORAL, F.R. Sobre Extensão, Desenvolvimento Rural Sustentável e os Riscos de
(des)Integração Interinstitucionais: aporte para o debate sobre a construção de um novo
modelo de desenvolvimento rural para o Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Emater/RS,
1997.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA. “Elementos
para a construção de uma nova política de assistência técnica e extensão rural”. In:
Seminário Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. Brasília, ago. 1997.
CORRÊA, L. M. “Elementos centrais para uma proposta de política pública de assistência
técnica e extensão rural”. In: Seminário Nacional de Assistência Técnica e Extensão
Rural. Brasília, ago. 1997.

19
DEMO, P. “A (má)consciência da Universidade”. Cadernos de Extensão Universitária, Fórum
de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Ano 2, n. 5, 1996.
DIESEL, V. “A nova extensão rural”. Extensão Rural. Universidade Federal de Santa
Maria/Centro de Ciências Rurais/ Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural.
Santa Maria. Ano 1, v. 1, n. 1, jan/jun de 1993.
DUDERNET, J.; BASSO, D.; LIMA, A.P. A Política agrícola e diferenciação da agricultura do
Noroeste do Rio Grande do Sul. Ijuí, Unijuí,Textos para Discussão, n.4, 1993.
EHLERS, E. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma. São Paulo,
Livros da Terra, 1996.
FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES E SINDICATOS DOS TRABALHADORES DA
EXTENSÃO RURAL E DO SETOR PÚBLICO AGRÍCOLA DO BRASIL. “A construção
de um novo modelo de serviço público de extensão rural e assistência técnica (A
contribuição da FASER)”. In: Seminário Nacional de Assistência Técnica e Extensão
Rural. Brasília, ago. 1997.
FERRARI, E. A. “Desenvolvimento da agricultura familiar: A experiência do CTA-ZM.” In:
Seminário Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. Brasília, ago.1997.
GOVERNO FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. “Relatório: adequação dos serviços de
extensão rural aos novos desafios do setor agropecuário”. Série: Textos Selecionados nº 8.
Emater, Porto Alegre, 1996.
GRAZIANO NETO, F. Questão agrária e ecologia: crítica da moderna agricultura. São Paulo,
Brasiliense, 1982.
GRAZIANO SILVA, J. Uma década perversa: as políticas agrícolas e agrárias dos anos 80.
UNICAMP/Instituto de Economia, ago. 1992.
HAYAMI, Y & RUTTAN, V. W. “A Toward a theory of induced institucional innovation”., vol
The journal of development studies.V.ol.20, nº4, junho de 1984.
LACKI, P. A formação de profissionais para profissionalizar os agricultores e para o difícil
desafio de produzir melhor com menos. Santiago del Chile, Organizacion de las Naciones
Unidas para la Agricultura y la Alimentacion, 1998. Mimeo.
ORGANIZACION DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA AGRICULTURA Y LA
ALIMENTACION. Relatório da Mesa Redonda sobre Adequação dos Serviços de
Extensão Rural aos Novos Desafios do Setor Agropecuário. Porto Alegre, Emater/RS,
1996.
ORGANIZACION DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA AGRICULTURA Y LA
ALIMENTACION. La Extension Rural como Profisionalizadora y Emancipadora de los
Agricultores. Santiago del Chile, Oficina Regional de la FAO para America latina y el
Caribe, 1996.
SCHMITT, W. Extensão rural: um cenário para o futuro. Porto Alegre, Emater/RS, 1995.
SEMINÁRIO Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. Conferências. Brasília,
ago.1997.
SOUZA, J. R. F. Pesquisa e extensão públicas: a intervenção do agricultor como uma política.
O desafio institucional. S.l., 199?.
VIEIRA, J. “Assistência técnica e extensão rural no Brasil. Hoje e amanhã”. In: Seminário
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. Brasília, ago. 1997.
WILDNER, L. P.; NADAL, R.; SILVESTRO, M. “Metodologia para integrar a pesquisa, a
extensão rural e o agricultor”. Série: Textos Selecionados nº 6. Emater, Porto Alegre,
1994.
WINDLER, L do P. et al. Metodologia para integrar a pesquisa, extensão rural e o Aagricultor.
Porto Alegre, Emater/RS, 1994.

20

Você também pode gostar