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O desenho institucional

do Sistema Nacional de Igor de Aragão2

Pesquisa Agropecuária1
Resumo – O objetivo deste estudo foi apresentar as principais oportunidades e desafios do Sistema
Nacional de Pesquisa Agropecuária brasileiro, destacando o arranjo institucional produzido desde
a década de 1970, com base em dados qualitativos e quantitativos. Esse esforço se justificou pela
escassez de análise descritiva sobre sistemas de inovação em agropecuária no Brasil e pela impor-
tância do tema para o progresso econômico e social. Para tanto, fez-se ampla pesquisa bibliográfica
e levantamento de dados relacionados às organizações que promovem o desenvolvimento técnico
e científico do setor, com especial destaque à Embrapa. A análise mostra que o projeto inicial, for-
mulado para o setor de pesquisa agropecuária na década de 1970, ainda não foi implementado e
que o desenho institucional vigente não é capaz de integrar e coordenar as organizações públicas
de P&D agropecuário, de assimilar a difusão tecnológica como parte de um processo contínuo de
inovação nem de incorporar os agentes privados ao sistema nacional de inovação. Além disso, a
Embrapa carece dos instrumentos de coordenação do sistema e vem, ao longo do tempo, perdendo
capacidade de financiar o desenvolvimento científico agropecuário. Há iniciativas legislativas que
enfrentam uma parte dos problemas apontados, mas que precisam ser aperfeiçoadas.
Palavras-chave: P&D agrícola, política pública de ciência e tecnologia, sistemas de inovação.

The institutional design of the Brazilian system of agricultural research


Abstract – The objective of this study was to present the main opportunities and challenges of the
Brazilian agricultural research system, highlighting the institutional arrangement produced since
the 1970s, based on qualitative and quantitative data. This effort was justified by the scarcity of
descriptive analysis on innovation systems of agriculture in Brazil, and by the importance of the
topic for economic and social progress. To this end, an extensive bibliographic searching and data
collection related to organizations that promote technical and scientific development of the sector
were carried out, with special emphasis on Embrapa. The analysis shows that the initial project
formulated for the agricultural research sector in the 1970s has not been implemented yet, and that
the current institutional design is not capable of: integrating and coordinating public organizations
of agricultural R&D; assimilating technological diffusion as part of a continuous innovation process;
and incorporating private agents into the national innovation system. In addition, Embrapa lacks the
system’s coordination instruments and, over time, it has been lost its ability to finance agricultural
scientific development. There are legislative initiatives that face part of the mentioned problems;
however, such propositions still need to be improved.
Keywords: agricultural R&D, public policy on science and technology, innovation systems.

1
Original recebido em 2/9/2022 e aprovado em 4/10/2022.
2
Doutorando em Direito. E-mail: igordearagao@gmail.com

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Introdução cisivamente para a redução global da pobreza,
alimentando milhões de pessoas a preços muito
O setor agrícola já foi descrito como rudi-
mais acessíveis e evitando a conversão de mi-
mentar e desprovido de agregação de valor. Essa
lhares de hectares de terra em áreas desmatadas
caracterização deveu-se ao fato de que até o fim
(Pingali, 2012), o meio rural ainda é o espaço de
do século 19 quase todo o aumento da produção
maior concentração da miséria e da fome.
agropecuária era decorrente do aumento corres-
pondente da área cultivada, ou seja, os fatores Mesmo com todo o avanço técnico-cientí-
de produção centrais para a atividade econômi- fico, muitas áreas rurais no planeta persistem no
ca rural eram a terra e o trabalho. uso de técnicas rudimentares para a produção
Entretanto, o cenário começa a mudar no agrícola, e "[...] o cultivo estritamente manual,
século 20 e, nos últimos anos do período, a maior pouquíssimo eficiente, [ainda] predomina [...]
causa do aumento da produção agropecuária, nos países em desenvolvimento [...]" (Mazoyer &
tanto no Brasil quanto no mundo, foi o uso inten- Roudart, 2010, p.500).
sivo da tecnologia ao longo de toda a cadeia pro- Assim, a continuidade da condição de
dutiva. Estima-se que a relação entre a agricultura pobreza de muitos trabalhadores rurais pode
menos e a mais produtiva passou de 1 contra 10 ser entendida com base na chave do progresso
no início do século para 1 contra 500 no fim do desigual. Ou seja, com o aumento exponencial
século 20 (Mazoyer & Roudart, 2010)3. da produção de alimentos, os preços unitários
Se a agricultura do início do século 20 se sofreram reduções significativas, acarretando a
sustentava em técnicas tradicionais e em equi- redução das receitas, do lucro e da capacidade
pamentos manuais, como enxadas, pás, facas e de sustento da agricultura extensiva.
facões, o agronegócio, que se desenvolveu ao
A partir desse diagnóstico, constituiu-se en-
longo do século, passou a adotar as seguintes
inovações: a) elevada motorização e mecaniza- tre os gestores públicos e as lideranças políticas a
ção; b) seleção de variedades de plantas e de percepção de que o desenvolvimento econômico
raças de animais com alto potencial de rendi- e social passava necessariamente pelo progresso
mento; c) ampla utilização de fertilizantes e de científico do setor agrícola e de que a superação
alimentos concentrados para o gado; e d) amplo da pobreza e a garantia da segurança alimentar
emprego de produtos de tratamento agroquími- dependiam da difusão tecnológica, principalmen-
co e agrobiológico (Mazoyer & Roudart, 2010). te entre os pequenos agricultores. Com isso, os
estados nacionais passaram a desenhar e a imple-
A tecnologia foi o grande responsável pelo
mentar políticas públicas de P&D agrícola.
crescimento expressivo da produção global de
alimentos e continua sendo o fator de produção
mais importante para a competitividade do setor.
As políticas públicas de P&D
Diversos estudos têm estimado que as taxas de
retorno médias da pesquisa e desenvolvimento agrícola em âmbito internacional
(P&D) no setor agropecuário variam entre 40% e Depois da 2ª Guerra Mundial, os econo-
60% ao ano e que não há nenhuma evidência de mistas e gestores públicos começaram a dedi-
sua redução ao longo do tempo (Alston, 2000). car maior atenção ao papel da tecnologia no
Os resultados do paradigma tecnológico desenvolvimento nacional. É com a difusão do
na agricultura são contraditórios. Ao mesmo pensamento de Joseph Schumpeter que o de-
tempo que essa transformação de paradigma senvolvimento econômico passa a ser visto não
tecnológico, a Revolução Verde, contribuiu de- mais com a manutenção do fluxo circular e do

3
Os autores calculam a produtividade líquida por trabalhador em tonelada de grãos.

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estado de equilíbrio, mas como a sua ruptura No momento inicial, o modelo inovativo
(Schumpeter, 1982). era pensado de maneira linear, ou seja, o desen-
volvimento científico era entendido à luz de um
Nessa perspectiva, a descontinuidade se-
paradigma industrial fordista. Nesse sentido, o
ria um elemento central do progresso econômi-
processo de produção de ciência e tecnologia
co. A inovação e o empreendedorismo seriam os
seria uma linha de produção, em que, para a ob-
elementos centrais, já que teriam a capacidade
tenção do output da inovação, seria suficiente a
de provocar um processo de destruição criadora.
multiplicação da pesquisa básica.
Para Schumpeter (2017), no capitalismo o
Essa concepção procedimental era ainda
impulso fundamental que mantém em funcio-
combinada com uma matriz de gestão centrali-
namento o sistema produtivo decorre essencial-
zada, na qual a decisão era tomada pelas auto-
mente dos novos bens de consumo, dos novos
ridades superiores em uma estrutura top-down
métodos de produção ou transporte, dos novos
(OECD, 2003). Isso significa que os objetivos, as
mercados e das novas formas de organização in-
metas e os instrumentos de pesquisa eram deci-
dustrial criadas pela atividade empresarial.
didos pelo alto escalão do governo, frequente-
Sob a influência desse marco teórico e mente por tecnocratas. E, partir dessa definição,
de novas bases intelectuais, os estados nacio- instituições públicas não universitárias recebiam
nais passaram a assumir a responsabilidade por um alto nível de financiamento institucional para
conduzir ou fomentar esse processo disruptivo, a condução das pesquisas necessárias.
orientando a atividade econômica por meio de
grandes investimentos em ciência e tecnologia. Por décadas, em um contexto no qual a es-
magadora maioria dos agricultores eram pessoas
No setor agrícola, esse paradigma conceitual com pouca ou nenhuma formação acadêmica, e
gerou importantes repercussões. A partir da expe- os objetivos institucionais das políticas públicas
riência internacional, em especial dos trabalhos se resumiam ao aumento da produção de bens
de Norman Bourlaug no México4, organizações básicos, esse desenho institucional apresentou
internacionais e governos nacionais começaram a um relativo grau de sucesso.
estruturar sistemas de pesquisa agropecuária em
âmbito nacional e em escala global. Entretanto, a partir das décadas de 1980 e
1990, em um contexto de intensificação da inte-
gração econômica e de especialização do meio
Os sistemas nacionais de pesquisa rural, os resultados dessa política pública come-
agropecuária: um modelo linear çaram a se mostrar insuficientes e insatisfatórios
(Word Bank, 2007).
A partir da década de 1950, começaram
a ser organizados os primeiros modelos de de- Começou-se a perceber a necessidade
senvolvimento agrícola baseados em sistemas de que a pesquisa passasse a ser conduzida a
nacionais de pesquisa agropecuária. Eles seriam partir da demanda efetiva dos agricultores e do
constituídos a partir dos investimentos públicos mercado, incorporando ainda a pesquisa apli-
em grandes centros de pesquisa que contariam cada e o desenvolvimento experimental. Nesse
com destacada estrutura física, equipamentos e contexto, foi se delineando um modelo de P&D
recursos humanos (World Bank, 2007). fundamentado em processos interativos e com a

4
Norman E. Borlaug foi personagem central da Revolução Verde e ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1970 por seu trabalho com o
desenvolvimento da agricultura no mundo. Ficou famoso pelo desenvolvimento e implementação de culturas de trigo no México,
tendo também trabalhado com cientistas indianos e paquistaneses no desenvolvimento do trigo na Ásia meridional. Foi diretor do
Programa Internacional de Melhoramento do Trigo. Para mais informações, ver: <https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1970/
borlaug/biographical>.

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ampla participação de diversos atores (Janssen & produtivo, dando centralidade às interações ex-
Braunschweig, 2003). ternas e à demanda efetiva pelos agentes sociais
para a construção de um ambiente inovativo.
As limitações e deficiências do mode-
lo linear já haviam sido expostas pelo Projeto Isso decorre do fato de que a produção
SAPPHO, realizado sob a coordenação de Chris agropecuária está cada vez mais integrada em
Freeman na Universidade de Sussex. Nessa ex- uma sofisticada cadeia de valor, em que, a mon-
periência, foram comparadas 50 inovações bem- tante, há uma série de insumos como sementes
-sucedidas com invenções que não obtiveram melhoradas e produtos agroquímicos e agrobio-
êxito. Os resultados mostraram que os principais lógico e, a jusante, tradings globais e agroindús-
atributos dos casos de sucesso eram as ligações trias, principalmente as indústrias de alimentos.
das equipes de pesquisa com fontes externas, Cada etapa dessa longa e complexa cadeia de
enquanto os casos de insucesso eram caracte- valor apresenta oportunidades de ganhos de efi-
rizados por falhas de comunicação com os de- ciência importantes.
mais agentes sociais (Cassiolato & Lastres, 2005). Nesse paradigma não linear, o desenvol-
vimento da capacidade de inovação de um sis-
A transição para sistemas de tema envolve duas atividades: a primeira é a de
criar redes de pesquisadores em torno de temas
inovação: o modelo não linear
específicos, e a segunda é a de construir vínculos
A partir da década de 1990, entre as redes para que a pesquisa possa ser usa-
da em inovações rurais (Hall et al., 2001).
[...] a inovação passou a ser vista não como
um ato isolado, mas sim como um processo de A valorização das redes de inovação de-
aprendizado não-linear, cumulativo, específi- corre do reconhecimento da importância do co-
co da localidade e conformado institucional- nhecimento tácito no desenvolvimento e difusão
mente (Cassiolato & Lastres, 2005, p.35). de tecnologias. Como a transmissão completa de
informações é extremamente difícil, é necessária
Com isso, o paradigma institucional e re- a construção de um ambiente que promova não
gulatório das políticas públicas de ciência e tec- uma interação pontual, mas contínua e que per-
nologia passou também por severas mudanças. mita a transferência de competências práticas.
Buscando atender a uma economia mais Por fim, um eixo central é a incorporação
flexível, globalizada e disruptiva, os sistemas de de novos atores às redes de informação. É ne-
P&D são atualmente pensados e articulados à cessário que, além das organizações de pesqui-
luz de um modelo não linear de desenvolvimen- sa pública, participem os serviços técnicos e de
to tecnológico no qual o objetivo central deixa extensão, as instituições de desenvolvimento e
de ser a descoberta científica e passa a ser o de- fomento, os empreendedores privados e produ-
senvolvimento de inovações. Estas, por sua vez, tores de toda a cadeia de valor. Essa indispen-
podem desempenhar três efeitos: a) o aumento sabilidade decorre do fato de que a maioria dos
da capacidade produtiva; b) a diversificação dos problemas não pode ser resolvida por apenas
produtos e dos mercados; e c) a agregação de um ator (World Bank, 2007).
valor ao longo de qualquer etapa da cadeia de
produção (Barghouti et al., 2004).
A trajetória brasileira e
Não há aqui uma ruptura completa com
o modelo anterior. Há mudanças que distin- a transição incompleta
guem as simples invenções e descobertas das O Brasil, com uma das maiores áreas de ter-
verdadeiras inovações e que reconhecem a im- ras agricultáveis do planeta e uma sólida tradição
portância da relação entre tecnologia e sistema agropecuária, participou ativa e destacadamente

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do processo de transição para uma agricultura A construção do Sistema Nacional
moderna e intensiva em capital e tecnologia. Para de Pesquisa Agropecuária
isso, o Estado brasileiro implementou um conjun-
A estratégia de desenvolvimento da agri-
to de políticas públicas cuja estratégia regulatória
pode ser dividida em três fases. cultura brasileira que efetivamente lançou as ba-
ses fundamentais da agricultura moderna nasceu
na década de 1960, sendo claramente inspirada
O início da pesquisa no modelo norte-americano e fundada em um
agropecuária brasileira tripé indissolúvel: crédito rural subsidiado, ex-
tensão rural e pesquisa agrícola por instituições
No Brasil, foi a partir da segunda metade
públicas (Buainain et al., 2013).
do século 19 que diversos institutos e escolas de
agricultura e agronomia foram criados. O exem- Diante da constatação de que a agricultura
plo de maior destaque foi a fundação do Instituto nacional precisava ser intensamente moderniza-
Agronômico de Campinas, inicialmente nomeado da por meio da intensificação do uso de novas
de Estação Agronômica de Campinas, em 1887, tecnologias, foi instituído um grupo de trabalho
por decisão do imperador Dom Pedro II. pelo então Ministro da Agricultura, Luís Fernando
Cirne Lima. Tal iniciativa resultou na publicação,
Tal iniciativa foi fundamental para o cres-
em 1972, do Livro Preto, um relatório conten-
cimento da cafeicultura no Estado de São Paulo
do as sugestões para a formação de um Sistema
ao longo de todo o período que se seguiu. Além
Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA) no
disso, foi inaugurado o paradigma de que o de-
Brasil (Sugestões..., 2006).
senvolvimento da agricultura dependia não só
do aumento da área cultivada, mas também do A principal medida a ser implementada
crescimento da produtividade (Pereira & Castro, seria a criação de uma empresa pública res-
2017). ponsável pela P&D da agropecuária no Brasil.
Assim, em 1973, foi criada a Empresa Brasileira
Entretanto, essas entidades foram pensa-
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com as fi-
das e instituídas de maneira dispersa e desarticu-
nalidades de promover, estimular, coordenar e
lada, restringindo a abrangência à esfera regional
executar as atividades de pesquisa para o desen-
e desenvolvendo pesquisas voltadas para a agri-
volvimento agrícola do País e de dar apoio técni-
cultura local, prescindindo de escalabilidade e
co e administrativo a órgãos do Poder Executivo
de um ambiente de inovação mais sólido. Seria
no setor agrícola (Brasil, 1973).
necessário aumentar muito o investimento em
P&D, articulando esses esforços com uma estra- Como se vê, nesse caso, a atuação direta
tégia nacional de desenvolvimento e ocupação do Estado não se resumia à operação econômica
do espaço para que a agropecuária brasileira de provisão de bens e serviços. Existia também
conseguisse atingir outro patamar. um forte viés regulatório na medida em que ten-
tava influenciar o comportamento econômico
Diante da constatação de que o modelo
dos agentes privados, promovendo a aproxima-
era extremamente limitado, em meados do sécu-
ção entre os interesses estratégicos nacionais e a
lo 20, os gestores públicos e lideranças políticas
atuação dos produtores rurais.
perceberam que seria necessário um aumento
substantivo do investimento em P&D, articulado Uma das maiores conquistas da Embrapa
a uma estratégia de desenvolvimento nacional foi a absorção, a apropriação e a adaptação das
e de ocupação do território para que a agrope- técnicas e tecnologias agronômicas estrangerias
cuária brasileira conseguisse atingir um patamar à produção nacional. Para isso, a Empresa con-
de desenvolvimento compatível com as necessi- tou com uma estratégia própria de internaciona-
dades da urbanização e da industrialização pela lização da pesquisa brasileira, enviando em 1973
qual passava o País. e 1974 cerca de 140 pesquisadores para a reali-

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zação de cursos de pós-graduação no exterior vez que amplia o efeito de spillover da ciência
(Cabral, 2005). desenvolvida por outras equipes.
Também é interessante notar a estrutura A aposta na pesquisa agropecuária como
administrativa da Embrapa e o modelo de de- ferramenta central de desenvolvimento não se res-
partamentalização adotado. Foi desenvolvido, tringiu ao Brasil, devendo ser entendido como um
ainda nos seus primeiros anos de funcionamen- fenômeno global que ganhou tração entre 1970 e
to, um modelo organizacional multifuncional em 1985. Ao longo da década de 1970, o investimen-
que as unidades centralizadas ficariam respon- to em pesquisa agrícola cresceu, em média, 6%
sáveis pelo planejamento, estratégia, direção e ao ano nos países em desenvolvimento, sendo,
suporte, enquanto as unidades descentralizadas, entretanto, acompanhado, na década seguinte,
pela pesquisa científica (Embrapa, 2020). de uma a redução do crescimento ou até mesmo
do declínio dos investimentos, principalmente na
A prática internacional mais comum é a
América Latina e África (Byerlee, 1998).
da estruturação administrativa baseada na de-
partamentalização divisional em regiões geo-
gráficas. Esse modelo, por exemplo, é adotado A pesquisa agropecuária brasileira
pela Agricultural Research Service, dos Estados a partir da década de 1990
Unidos, que é departamentalizada a partir da
Apesar das restrições orçamentárias,
divisão das unidades de pesquisa em cinco gran-
a pesquisa brasileira na década de 1990 foi
des áreas geográficas5.
marcada por certa institucionalização formal
Nesse modelo mais tradicional, cada divi- do aparato edificado nas décadas anteriores.
são é uma unidade autocontida e autossuficiente, Esse processo começou com a Constituição de
ou seja, cada divisão possui todos os departamen- 1988, que reservou um capítulo inteiro para a
tos funcionais necessários para gerar o resultado, política agrícola e fundiária, tema até então iné-
havendo também duplicidade de esforços e re- dito em um texto constitucional. A fim de regu-
cursos na estrutura produtiva (Chiavenato, 2004). lar esse assunto em nível infraconstitucional, foi
De maneira distinta, o modelo organiza- aprovada a Lei nº 8.171/1991, que dispôs sobre a
cional escolhido pela Embrapa foi além do para- política agrícola brasileira (Brasil, 1991).
digma clássico e adotou uma abordagem híbrida Com o novo texto legal, foi autoriza-
capaz de estimular a flexibilidade e a horizon- da a criação do Sistema Nacional de Pesquisa
talidade das equipes de pesquisa; para tanto, as Agropecuária, sob coordenação da Embrapa.
unidades descentralizadas foram divididas em Entretanto, é importante destacar que a proposta
três categorias: a) de produtos; b) de temas bási- original de criação do SNPA, feita cerca de 20
cos; e c) ecorregionais. anos antes pelo grupo de trabalho do Ministério
Para o desenvolvimento dos projetos de da Agricultura, em nada se parecia com o marco
pesquisa, elas poderiam se articular e cooperar, regulatório aprovado na década de 1990.
com base na pertinência temática de cada uma, A recomendação inicial previa que o siste-
em relação ao produto final. Com isso, os co- ma fosse estruturado por um Conselho Nacional
nhecimentos desenvolvidos em um projeto de de Pesquisa Agropecuária, como principal ins-
pesquisa poderiam ser mais facilmente empre- trumento de coordenação em nível nacional.
gados em outros projetos similares. Esse modelo O seu objetivo seria coordenar de forma intensa
foi também adotado no Canadá e parece mais e racional as demais organizações de pesquisa
promissor e interessante do que o modelo tra- agropecuária, de modo a gerar cooperação, co-
dicional de departamentalização regional, uma laboração e coesão entre as unidades.

5
Midwest Area, Northeast Area, Pacific West Area, Plains Area e Southeast Area.

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Ao contrário, a lei aprovada pouco dispôs Os principais desafios da política de
sobre a estrutura regulatória do SNPA e basica- P&D para o setor agrícola no Brasil
mente estabeleceu diretrizes, centralizando to-
das as atribuições de coordenação do sistema na O sistema público de P&D agropecuário, à
Embrapa – a empresa pública responsável pela exceção da Embrapa, combina uma progressiva
operacionalização das pesquisas agropecuárias. redução do nível de financiamento público com
um baixo grau de desenvolvimento institucio-
Com o tempo, a Embrapa se consolidou nal. Nesse sentido, há uma percepção corrente
como a instituição de pesquisa agropecuária na comunidade internacional de que, embora a
hegemônica no Brasil. Seu orçamento, corpo Embrapa tenha experimentado grandes altera-
técnico e profissional e instalações são singu- ções nas últimas décadas, o marco regulatório
lares entre as organizações públicas similares e e institucional da pesquisa brasileira perma-
congêneres que promovem a inovação no meio neceu engessado e desatualizado (Janssen &
rural. Nesse contexto, as organizações estaduais Braunschweig, 2003).
foram paulatinamente assumindo um papel pe- Na qualidade de coordenadora do SNPA,
riférico na P&D. a Embrapa tem mais do que um papel no de-
De acordo com o Conselho Nacional das senvolvimento direto de pesquisas em unidades
Entidades Estaduais de Pesquisa Agropecuária descentralizadas: concentra também as funções
(Consepa, 2022), de janeiro de 2022, no Brasil de liderança e de coordenação estratégica da
política pública de P&D agropecuário do País.
há apenas 17 entidades estaduais integrantes do
SNPA – isso mostra como a P&D agrícola esta- Nesse sentido, a Empresa demanda recur-
dual é ainda precária e pulverizada. sos não só para financiar os seus próprios pro-
jetos de pesquisa, mas também para estruturar
Com exceção do Estado de São Paulo,
o SNPA e para repassar recursos às demais ins-
que possui a Agência Paulista de Tecnologia tituições de pesquisa e de difusão tecnológica.
Agropecuária, à qual se vinculam sete institutos Necessita, portanto, de um financiamento robus-
de pesquisas, incluindo o Instituto Agronômico to e destacado entre as organizações de pesqui-
de Campinas, todas as demais entidades esta- sa do País.
duais combinam baixa capacidade operacional
e modesto orçamento.
O financiamento da Embrapa
Há ainda uma percepção, por parte dos
agentes estaduais, de que a Embrapa poderia ser Apesar do diagnóstico feito, o orçamento
público da pesquisa agropecuária brasileira caiu
encarada como um substituto à produção de so-
ano após ano. Eliseu Alves e Antônio Oliveira
luções pelas organizações estaduais de pesquisa
analisaram os valores monetários repassados à
agropecuária (CGEE, 2006). Isso explicaria o mo-
Embrapa desde 1975 e concluíram que 1981 foi
tivo de, mesmo em regiões onde a agricultura
o ano no qual a entidade mais obteve recursos
tem grande peso econômico, haver um evidente para o financiamento da P&D, considerando a
desprestígio às organizações estaduais. relação entre o dispêndio e o PIB agropecuário
Nos últimos anos, em decorrência da crise (Alves & Oliveira, 2005). Desde então, a propor-
fiscal que acometeu a grande maioria dos go- ção de gastos com P&D passou por progressivo
vernos estaduais, duas instituições de pesquisa decréscimo.
agropecuária foram extintas: a Empresa Baiana Outro dado que chama a atenção é o au-
de Desenvolvimento Agrícola e a Fundação mento vertiginoso dos gastos com pessoal em
Estadual de Pesquisa Agropecuária do Rio relação ao orçamento total. Em 1981, o gasto
Grande do Sul. com pessoal era de, aproximadamente, 51% do

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total; em 1990, de aproximadamente 75% (Alves Embora não se negue a grave crise fiscal
& Oliveira, 2005). Em 2021, de acordo com o pela qual o País passa, também é imperioso per-
Portal da Transparência (2022), a despesa com ceber que o financiamento público da P&D do
pessoal alcançou a taxa de, aproximadamente, setor agropecuário não é compatível com a im-
86% do orçamento total. portância do setor para a produção de riqueza,
Ainda que os elementos mais importantes para a integração brasileira no comércio interna-
de uma organização de pesquisa sejam justa- cional e para o desenvolvimento nacional.
mente os seus recursos humanos, o crescimento
acelerado de uma rubrica como essa tem o efei- O desenho institucional do SNPA
to de comprimir as despesas de capital e de cus-
teio, gerando a desatualização dos laboratórios e Em 1972, ao enumerar os pontos de estran-
equipamentos e criando dificuldades adicionais gulamento da pesquisa agropecuária brasileira, o
à obtenção dos insumos necessários às ativida- grupo de trabalho instituído pelo Ministério da
des cotidianas. Agricultura diagnosticava que as "[...] atividades
de coordenação e de comunicação [...] se [revestiam]
Analisando a trajetória da despesa públi- de carácter precário e [funcionavam], quase sempre
ca da Embrapa de 2014 até 2021, pelo Portal da em base ad hoc" (Sugestões..., 2006, p.10).
Transparência, o quadro é de permanência da
Além disso, reconhecia
tendência observada até aqui e de deterioração
substantiva da capacidade institucional de de- [...] uma acentuada deficiência nas relações de
senvolvimento técnico e científico (Figura 1). coordenação [...] planejamento e [na] execução
de atividades de pesquisa entre os órgãos de
pesquisa e os serviços de apoio à agricultura, es-
pecialmente os de assistência técnica, de finan-
ciamento e de comercialização (Sugestões...,
2006, p.11).

Tal diagnóstico é válido ainda hoje, já que


as reformas institucionais capazes de alterar o
quadro nunca foram implementadas.

A coordenação dos integrantes do SNPA


Figura 1. Embrapa – despesas executadas com de- Por mais que a Embrapa goze de preemi-
senvolvimento técnico e científico. nência no SNPA, as demais organizações não
Fonte: elaborado com dados do Portal da Transparência (2022). são irrelevantes e têm a capacidade de contri-
buir para o desenvolvimento científico brasileiro.
Assim, uma melhor divisão de atribuições entre
Certamente a crise fiscal do Estado brasi-
os seus integrantes poderia promover maior si-
leiro e a necessidade de controle rígido das des-
nergia na pesquisa cientifica setorial, promoven-
pesas públicas são grandes responsáveis por essa
do então maior eficiência das atividades.
redução progressiva e contínua do orçamento
voltado para P&D. Aliado a esse quadro, a cres- Considerando o cenário brasileiro, mar-
cente rigidez orçamentária de outras categorias de cado pela simultânea escassez de recursos fi-
despesas, decorrente da ampliação da vinculação nanceiro e sobreposição de competências, a
de despesas, faz com que as despesas discricio- especialização das organizações estaduais em
nárias, como as despesas com desenvolvimento atividades complementares poderia ser uma po-
científico, sejam extremamente reduzidas em ce- lítica racionalizadora e importante para o aper-
nários de contingenciamento fiscal. feiçoamento de todo o sistema.

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A constituição de uma rede de informa- A integração da P&D com
ções articulada e descentralizada teria a capa- a difusão tecnológica
cidade de não só promover a cooperação e a O desenvolvimento agrícola se baseia no
sinergia entre as organizações de P&D com a binômio P&D e difusão tecnológica. Em outras
difusão tecnológica, mas também de reduzir a palavras, em um primeiro momento a tecnologia
realização de atividades sobrepostas, já que a é desenvolvida para resolver problemas con-
aprendizagem e o conhecimento desenvolvidos cretos dos produtores rurais e, posteriormente,
em uma organização poderiam ser utilizados pe- os novos achados devem ser difundidos e in-
las outras. corporados à atividade agrícola. Portanto, seria
Além disso, seria extremamente proveitosa extremamente desejável que essas atividades
a incorporação de outras organizações impor- contínuas estivessem integradas em um mesmo
tantes ao SNPA, como os institutos de agrono- sistema de inovação.
mia de universidades brasileiras, importantes Embora seja importante preservar a auto-
polos de desenvolvimento tecnológico do setor. nomia de cada um desses processos, é também
De acordo com o QS World University Rankings imperioso reconhecer sua complementaridade e
(2021), há cinco universidades brasileiras entre interdependência. Assim, um alinhamento estra-
as 200 melhores instituições de agricultura do tégico entre essas duas políticas e uma clara divi-
mundo, sendo duas entre as 50 melhores6. são de competências podem fortalecer o próprio
A integração sistêmica dessas organiza- desenho institucional do SNPA.
ções é extremamente importante, principalmen- O que se percebe é que, enquanto a po-
te num cenário de dificuldades fiscais relevantes lítica de pesquisa agropecuária é relativamente
como aquele vivido pelos entes políticos brasi- exitosa no Brasil, a de difusão tecnológica é ex-
leiros nas últimas décadas. tremamente precária, tanto em nível de desen-
Além disso, dado o crescimento do setor volvimento institucional quanto na efetividade
privado na pesquisa agropecuária, a Embrapa po- dos seus instrumentos. De acordo com o Censo
deria deslocar parte dos recursos originalmente Agropecuário de 2017 (IBGE, 2019), apenas 20%
endereçados à realização direta de atividades de dos estabelecimentos rurais brasileiros contam
pesquisa para o desenvolvimento de atividades com algum tipo de orientação técnica pública.
de planejamento setorial, suporte à regulação e Em virtude da baixa qualidade das defi-
de coordenação dos diferentes atores setoriais. nições de competências, muitas instituições de
Esse reposicionamento foi experimentado P&D acabam sendo responsáveis também pela
por outras organizações de P&D ao redor do difusão tecnológica. É o caso da Embrapa, que
mundo, como o Institut National de la Recherche desenvolve marginalmente atividades de exten-
Agronomique (Inra) da França. Essa organização, são rural e assistência técnica.
embora originalmente desenhada para a geração Em 2021, de acordo com o Portal da
e difusão de tecnologias agropecuárias, foi con- Transparência (2022), as despesas empenhadas
vertida, entre 1990 e 2000, em uma instituição na rubrica “Transferência de tecnologias para a
que combinava atividades acadêmicas e con- inovação para a agropecuária” representaram
tratuais e que conseguiu desenvolver centros de menos de 1% do empenho orçamentário total
excelência tanto acadêmicos quanto de políticas da Embrapa, perfazendo o montante de, aproxi-
públicas e fomento ao agronegócio (Larédo & madamente, R$ 28 milhões. Entretanto, mesmo
Mustar, 2004). nesse cenário de profunda escassez, depois do

6
Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Universidade Estadual
Paulista (Unesp) e Universidade Federal de Lavras (Ufla).

Ano XXXII – Nº 1 – Jan./Fev./Mar. 2023 51


contingenciamento fiscal promovido, a despesa maneira mais intensiva em P&D na industriali-
efetivamente paga foi reduzida pela metade em zação de alimentos e em máquinas e equipa-
relação ao empenho original, alcançando ape- mentos agrícolas, o setor público concentra os
nas cerca de R$ 14 milhões. esforços em recursos naturais e ambientais e
Além disso, quando detalhadas as des- em nutrição humana e segurança alimentar. Em
pesas, em 2021, com a difusão tecnológica da suma, o financiamento privado é complementar,
Embrapa, percebe-se que dois elementos de não substituto do público.
despesa ganham destaque e, somados, respon- No caso brasileiro, o Estado adota uma
dem por cerca de 70% da despesa: “Locação de política bastante ativa de subvenções e incen-
mão de obra” e “Outros serviços de terceiros – tivos fiscais para a P&D, mas, mesmo assim, o
Pessoa Jurídica” (Portal da Transparência, 2022). investimento privado ainda é pequeno e circuns-
Ou seja, além de ser tratada como ativi- crito a algumas grandes sociedades empresárias
dade periférica e de menor importância no or- (Araújo, 2012). Assim, a integração da P&D públi-
çamento da empresa pública, a atuação ainda ca e privada em um sistema de inovação parece
é predominantemente terceirizada, não havendo ser bastante promissora, não só para qualificar
acúmulos técnicos ou aumento da especializa- a atividade de fomento estatal já existente, mas
ção ao longo do tempo. também para promover a integração da P&D
pública com a atividade produtiva, alinhando os
esforços às demandas reais do setor.
A incorporação de agentes
privados ao SNPA
Historicamente, o Poder Público assumiu A proposta de reforma
a iniciativa no financiamento da pesquisa agro- legislativa do SNPA
pecuária. No entanto, nas últimas décadas, nos
países mais desenvolvidos, o setor privado foi Para atualizar o desenho institucional ori-
assumindo o protagonismo. ginal, previsto em 1991, foi proposto o Projeto
de Lei nº 6.417/2019 (Brasil, 2019), que, basica-
A trajetória dos Estados Unidos ilustra bem mente, sugere uma nova estruturação do SNPA,
essa tendência. Entre 1970 e 2008, as despesas convertendo-o em uma rede articulada por meio
públicas com agricultura giravam em torno de de uma plataforma digital. O novo desenho bus-
50% da despesa total. Depois desse período, a ca aumentar a flexibilidade de atuação das enti-
participação estatal foi perdendo importância dades estatais com o mercado e, para isso, tenta
em decorrência do aumento substantivo dos construir um ambiente flexível no qual os inte-
investimentos privados (Mohamedshah et al., grantes do sistema atuem de maneira horizontal.
2020).
Essa iniciativa é uma decorrência da
Em 2013, as despesas públicas passaram Emenda Constitucional n.º 85/2015 (Brasil, 2015),
a representar menos de 30% das despesas totais que buscou atualizar o tratamento das ativida-
com P&D agropecuário e, desde então, perma- des de ciência, tecnologia e inovação no Brasil,
neceram nesse patamar (Mohamedshah et al., promovendo um ambiente de colaboração entre
2020). É fundamental perceber que a redução o setor público e o privado e instituindo instru-
da participação relativa não é resultado da dimi- mentos de cooperação, permitindo, inclusive,
nuição das despesas nominais, e sim do cresci- o compartilhamento de recursos humanos es-
mento acelerado da P&D privada. pecializados e de capacidade instalada, para a
Mais do que isso, as áreas de concentra- execução de projetos de pesquisa, de desenvol-
ção dos setores público e privado também são vimento científico e tecnológico e de inovação
distintas. Enquanto o setor privado investe de (art. 219-A da Constituição).

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O projeto de lei que reorganiza o SNPA Considerações finais
determina a sua integração ao Sistema Nacional
O desenvolvimento econômico e social
de Ciência, Tecnologia e Inovação, inaugurado
brasileiro depende fortemente da agropecuária.
pela Emenda Constitucional n.º 85/2015 (Brasil,
Por sua vez, o aumento da competitividade do se-
2015). É um esforço de integração da política de tor depende principalmente do desenvolvimento
pesquisa agropecuária a uma estratégia nacional tecnológico. Nesse contexto, o Estado pode agir
de desenvolvimento tecnológico. como um catalizador das inovações por meio de
Outra importante mudança é a incorpo- políticas públicas eficientes e eficazes.
ração do princípio do planejamento ao SNPA, Embora a constituição de grandes sistemas
criando para o Poder Público a obrigação de de- nacionais de pesquisa agropecuária, centraliza-
finição de planos operacionais anuais e de planos dos e tecnocráticos, tenha alcançado diversos
plurianuais. Esse esforço possui três finalidades resultados significativos, tal modelo não é mais
relevantes: a) a organização da gestão do SNPA a capaz de enfrentar a nova realidade econômi-
partir de diretrizes, objetivos e metas; b) a promo- ca que demanda a diversificação de produtos e
ção de uma melhor comunicação entre os diver- mercados e a agregação de valor ao longo de
sos agentes; e c) a indicação para o setor privado qualquer etapa da cadeia produtiva.
de oportunidades de parcerias. Assim, há um certo consenso na literatura
Além disso, a reforma busca incorporar de que, atualmente, a efetividade das políticas
novos integrantes ao SNPA, tanto públicos quan- públicas de P&D agropecuárias depende da
to privados, como empresas produtoras de insu- criação de redes descentralizadas e flexíveis e
mos agrícolas e as agritechs. Entretanto, exige-se do estabelecimento de diálogos ativos com os
produtores rurais para, assim, a inovação atender
cautela para que a adesão de novos integrantes
às demandas reais de mercado.
seja feita com base na relevância da sua capa-
cidade de pesquisa, de maneira que não hiper- O Brasil desenvolve políticas agrícolas há
trofie o sistema. A ampliação descontrolada dos muito tempo e, nas últimas décadas, a agricultura
atores envolvidos aumenta os riscos de paralisia brasileira conseguiu alcançar o padrão produtivo
decisória e de perda de eficiência. dos países mais desenvolvidos – somos hoje um
dos maiores exportadores líquidos de alimentos
Em síntese, o projeto de lei enfrenta alguns do mundo –, e o grande protagonista do desen-
dos problemas relevantes apontados neste tra- volvimento agrícola brasileiro foi a Embrapa.
balho, mas falha em não prever uma estrutura
Entretanto, a Embrapa, como organiza-
organizacional capaz de dirigir e de interligar
ção central do SNPA, não conseguiu fomentar
os diversos agentes e estabelecer uma estratégia
avanços similares às organizações estaduais de
setorial de longo prazo. Também não prevê me-
pesquisa agropecuária. Estas, em regra, combi-
canismos específicos de incentivos para a inte-
nam baixa capacidade operacional e orçamento
gração da pesquisa e para o compartilhamento restrito, sendo encaradas por muitos gestores
de recurso entre os agentes. públicos como instituições substitutas à própria
O SNPA continua precisando de um órgão Embrapa e, por isso, vêm perdendo relevância
colegiado decisório que disponha de capacida- até mesmo nas políticas de desenvolvimento
de técnica para estabelecer um planejamento regional.
de longo prazo para o setor de pesquisa e que A Embrapa, organização central de todo o
detenha recursos orçamentários para fomentar sistema, precisa não só recuperar a capacidade
parte da pesquisa agropecuária no País e alinhar de investir recursos em desenvolvimento técnico
os esforços privados ao interesse público. e científico, mas também dispor de recursos su-

Ano XXXII – Nº 1 – Jan./Fev./Mar. 2023 53


ficientes para exercer a função de coordenação fed/decret/1970-1979/decreto-72020-28-marco-1973-
das demais instituições. 420455-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 15
nov. 2022.
Além disso, o desenho institucional pre- BRASIL. Emenda Constitucional nº 85, de 26 de fevereiro
cisa ser capaz de coordenar os integrantes do de 2015. Altera e adiciona dispositivos na Constituição
SNPA, integrar a política de P&D com a de di- Federal para atualizar o tratamento das atividades de
fusão tecnológica e ainda incorporar os agentes ciência, tecnologia e inovação. 2015. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
privados mais relevantes do setor. Para tanto, é
emendas/emc/emc85.htm>. Acesso em: 15 nov. 2022.
necessário a definição de um órgão colegiado
capaz de planejar no longo prazo e de tomar BRASIL. Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991. Dispõe
sobre a política agrícola. 1991. Disponível em: <https://
decisões tecnicamente embasadas sobre o finan- www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8171.htm>. Acesso
ciamento público de projetos de pesquisa, tanto em: 15 nov. 2022.
públicos quanto privados. BRASIL. Projeto de Lei nº 6.417, de 2019. Altera a Lei
Há discussões relevantes no Congresso nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, para dispor sobre o
Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para
Nacional sobre a reforma do SNPA, para trans- a Agropecuária (SNPA). 2019. Disponível em: <https://
formá-lo em uma rede articulada por meio de www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
uma plataforma digital. Esses esforços partem materia/140163>. Acesso em: 15 nov. 2022.
de um diagnóstico correto, ou seja, de que as BUAINAIN, A.M.; ALVES, E.; SILVEIRA, J.M. da;
inovações dependem de ambientes abertos e NAVARRO, Z. Sete teses sobre o mundo rural brasileiro.
flexíveis de colaboração integrada entre todos Revista de Política Agrícola, ano22, p.105-121, 2013.
os agentes relevantes. Entretanto, o Projeto de BYERLEE, D. The search for a new paradigm for the
Lei nº 6.417/2019 se omite em relação a dois te- development of national agricultural research systems.
mas necessários: a previsão de mecanismos de World Development, v.26, p.1049-1055, 1998.
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