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Capítulo 1.

Os caminhos e descaminhos da agricultura


até a agroecologia
Milton Parron Padovan

Introdução

A agricultura química industrial, caracterizada por seus intusiastas


como “agricultura moderna”, atualmente é chamada de agricultura
convencional, pois, apesar dos grandes problemas ambientais e sociais
causados, acabou convencendo a maioria das pessoas como o “melhor
modelo”. Esse modelo de agricultura tem sua origem ligada às descobertas
ocorridas no século XIX, a partir de estudos dos cientistas Liebig (1803-
1873), Saussure (1797-1845) e Boussingault (1802-1887), que “derrubaram” a
teoria do húmus, segundo a qual as plantas obtinham seu carbono a partir
da matéria orgânica do solo.
Liebig difundiu amplamente o conceito de que o aumento da
produção agrícola seria diretamente proporcional à quantidade de substâncias
químicas incorporadas ao solo, o que hoje sabe-se que não é verdade.
As descobertas desses cientistas, marcou uma nova fase da
agricultura, caracterizada por um período de rápidos progressos científicos
e tecnológicos. A ciência, em sua maioria, passou a seguir cegamente a
“moda” instituída por Liebig e Rothamsted, com uma visão extremamente
reducionista, fragmentária, concentrando o pensamento unicamente nos
elementos nutritivos do solo e esqueceu ou omitiu-se de averiguar como as
plantas, o solo e seus organismos vivos são conectados entre si e estão
interagindo permanentemente.
No início do século XX, Louis Pasteur (1822-1895), Serge
Winogradsky (1856-1953) e Martinus Beijerinck (1851-1931), dentre outros,
descobriram diversos fundamentos científicos e fizeram contraposições às
teorias de Liebig, ao provarem a importância da matéria orgânica nos
processos de nutrição das plantas.
Por outro lado, mesmo com o surgimento de comprovações científicas
a respeito dos equívocos de Liebig e de seus colaboradores, os impactos de
suas descobertas haviam extrapolado o meio científico e ganhado força nos
setores industrial e agrícola, abrindo um amplo e promissor mercado que
passou a ser dominado por grandes corporações a nível mundial.
12 Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia

Ao mesmo tempo que vários componentes da produção agrícola


passaram a ser produzidos pelo setor industrial, ampliaram-se os
investimentos para afirmar esse “novo modelo” como moderno e
desqualificar sistemas de diversificação de culturas baseados em consórcios
e rotações de culturas, e integração da produção vegetal às criações de
animais, dentre outros, que se sustentaram durante séculos, tendo como
alicerce a valorização dos processos biológicos e físicos.
Deve-se ressaltar que após as duas grandes guerras mundiais,
ocorreram expressivos avanços nessa modalidade de agricultura, uma vez
que foram realizados investimentos em pesquisas para desenvolver
equipamentos e produtos químicos para as guerras. Encontrou-se na
agricultura, o grande receptor para “desovar” boa parte desse aparato
tecnológico.
Configurou-se, a partir daí, o início de uma nova fase da história da
agricultura, que ficou conhecida como "segunda revolução agrícola" ou
“revolução verde”. O desenvolvimento de motores de combustão interna e
a seleção e produção de sementes geneticamente melhoradas, também
fazem parte desse processo, bem como outros itens apropriados pelo setor
industrial.
Inegavelmente, estas inovações foram responsáveis por sensíveis
aumentos nos rendimentos das culturas, porém apresentaram mais
significância em “produtos” de interesse para a exportação.

Ainda na década de 60, esse modelo de agricultura começava a dar


sinais de sua insustentabilidade no mundo inteiro, demonstrando
rapidamente as suas fragilidades. Mesmo assim, ocorreu ampla adoção nos
anos seguintes, especialmente nos países em desenvolvimento, como o
Brasil.

O avanço da agricultura química industrial no Brasil

A partir da década de 60, a estratégia modernizadora da agricultura


no Brasil fundamentou-se no paradigma da „revolução verde‟. Os novos
modelos de sistemas de produção passaram a ser caracterizados como
modernos pelos segmentos interessados e, conseqüentemente, a pesquisa e
extensão rural foram orientadas para o desenvolvimento e incorporação de
“pacotes tecnológicos”.
Estes pacotes destinam-se a maximizar o rendimento dos cultivos,
onde predominam sistemas monoculturais, forte presença da mecanização
em todas as etapas da cadeia produtiva, opções diversificadas de
agrotóxicos destinados ao controle de insetos pragas, doenças, entre outros
Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia 13

organismos julgados como ameaçadores aos cultivos, além da intensa


difusão da utilização dos adubos sintéticos altamente solúveis, no
suprimento de alguns dos nutrientes requeridos pelas culturas de interesse
comercial.
Rapidamente houve grandes avanços de áreas cultivadas,
representados principalmente pela abertura de novas áreas através de
desmatamentos indiscriminados, quase sempre apoiada pelos governos, os
quais criaram estruturas de crédito rural subsidiado e atrelado ao “pacote
tecnológico” e, paralelamente, a estruturação do ensino, pesquisa e extensão
rural associadas a esse modelo, sem, contudo, analisar com profundidade as
reais conseqüências desse modelo ao meio ambiente e à própria sociedade
como um todo, a médio e longo prazo, visualizando apenas os resultados
momentâneos.
Configurou-se claramente uma estratégia de dominação, onde os
países desenvolvidos, detentores dessas tecnologias, através das empresas
multinacionais, passaram a “ditar as regras” para o modelo de
desenvolvimento em diversas regiões do mundo e, encontraram no Brasil,
um dos “mercados mais promissores” e “governos mais receptivos”, o que
ainda predomina atualmente.
Entretanto, essa agricultura industrial, que desqualifica a
complexidade dos processos biológicos, privilegiando o controle dos
sistemas de produção através de procedimentos químico-mecânicos,
apresenta alguns aspectos sócio-econômicos, como: atrelamento ao
complexo industrial, priorização da produção para exportação, baixa
eficiência energética (baseada no petróleo), alta dependência de insumos
externos à unidade de produção, resultando em altos custos de produção.
Ressalta-se alguns aspectos agro-ambientais dessa “agricultura moderna”,
destacando-se a predominância de monoculturas, resultando em perda
acelerada da biodiversidade, grande instabilidade dos agroecossistemas,
erosão e redução da variabilidade genética, degradação dos recursos
edáficos e mananciais de água, poluição do ambiente e alimentos,
intoxicação do homem e desnaturação dos produtos alimentícios.
No Brasil, historicamente esse modelo de agricultura tem conduzido à
concentração de terra e demais meios de produção sob o domínio da
minoria, em detrimento da grande maioria. Tem se caracterizado como um
dos principais agentes de exclusão social, resultando em forte êxodo rural.
No país estima-se que mais de 60 milhões de brasileiros encontram-se em
estado de miséria e, destes, cerca de 30% estão na zona rural e não
conseguem produzir para satisfazer minimamente as necessidades
alimentares de seus familiares. Fica evidente que os processos de produção,
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como parte do modelo agrícola predominante, é inadequado para a maioria


dos agricultores.

O resgate do paradigma ecológico e a agricultura alternativa

No início dos anos 70, a oposição em relação ao padrão produtivo


agrícola convencional concentrava-se em torno de um amplo conjunto de
propostas “alternativas”, movimento que ficou conhecido como
“agricultura alternativa”. No Brasil, profissionais diversos, principalmente
das ONGs, e pesquisadores das ciências agrárias, produtores e pessoas de
vários segmentos da sociedade, começaram a se mobilizar, propondo uma
agricultura mais ecológica, porém eram considerados como sonhadores,
hostilizados, ridicularizados, mediocrizados, rotulados de reacionários,
retrógrados, contra o desenvolvimento, enfim, toda uma estratégia
esmagadora com intuito de desqualificar e desmoralizar o movimento.
O movimento pela “agricultura alternativa” ganhou força na década
de 80 no país, com a realização de três Encontros Brasileiros de Agricultura
Alternativa (EBAAs), nos quais foram incorporando a cada evento, a
discussão dos aspectos socioeconômicos, que juntamente com os aspectos
ecológicos e técnicos sobre a produção da alimentos, entre outros produtos.
O interesse da opinião pública pelas questões ambientais e a adesão
de vários profissionais das ciências agrárias ao movimento alternativo,
tiveram alguns desdobramentos importantes no âmbito da ciência,
tecnologia e desenvolvimento, como a busca de fundamentação científica
para as suas propostas técnicas e o firme propósito de valorizar os aspectos
sócio-culturais envolvidos na produção agrícola. Alguns projetos
alternativos foram financiados, em sua maioria por recursos oriundos de
países estrangeiros, os quais possibilitaram a visualização da “agricultura
alternativa” na prática, além da filosofia, como muitos rotulavam.
Assim, os movimentos no sentido da adoção de uma maior qualidade
no modelo de produção e dos produtos agrícolas cresceram,
desenvolvendo-se de forma ímpar. Aparece nesse contexto a agroecologia,
inicialmente rotulada como uma ciência, com suas ramificações e
especializações, que estudava os preceitos da agricultura orgânica,
biodinâmica, ecológica, permacultura, biológica, regenerativa, entre outras,
que surgiram como “correntes de agricultura alternativa”, as quais possuem
suas concepções filosóficas próprias e, em alguns casos, com motivações de
ordem religiosa. Em comum, todas as correntes apresentam forte
preocupação com as relações do homem e o meio ambiente, sendo a
agricultura orgânica a mais conhecida desse segmento.
Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia 15

Neste contexto, as correntes alternativas têm como premissas o enfoque


através de abordagens holísticas, buscando modelos de otimização
produtiva, visando produção estável e continuada, calcado principalmente
na melhoria da vida do solo, na manutenção da sua capacidade produtiva,
na diversificação, resgate de germoplasmas, na independência dos
agricultores aos recursos externos.

Principais correntes da agricultura alternativa

Como alternativa à agricultura calcada em estratégias e componentes


químico-mecânicos, rotulada como moderna e amplamente praticada
atualmente, o manejo orgânico de agroecossistemas começa a se estender no
mundo e no Brasil através de diversas correntes que se diferenciam em
alguns pontos, mas possuem princípios comuns.
Estas tendências têm origem e precursores diferentes, recebem
denominações específicas, como Agricultura Orgânica, Biodinâmica,
Natural, Biológica, Permacultura, Nasseriana, entre outras, mas possuem o
mesmo objetivo: promover mudanças tecnológicas e filosóficas na
agricultura, de maneira ampla, não somente no aspecto tecnológico.

a) Agricultura Orgânica
Essa corrente tem como princípio que o alicerce para a
sustentabilidade da agricultura baseia-se conservação da fertilidade do solo,
com ênfase na matéria orgânica, nos microorganismos do solo (como a
associação micorrízica e as bactérias fixadoras de nitrogênio), valorização da
compostagem, bem como a necessidade de integração entre a produção
vegetal e animal, como condição para manter ou recuperar a fertilidade do
solo.
A base científica desta corrente se assenta nas seguintes práticas:
rotação de culturas, manejo e fertilização do solo e, sobretudo, na
manutenção de elevados níveis de húmus (matéria orgânica já decomposta
e estabilizada). Também como nas outras correntes agroecológicas, o solo é
considerado um “organismo complexo”, repleto de seres vivos (minhocas,
bactérias, fungos, formigas, cupins, entre outros) e de substâncias minerais
em constante interação e interdependência, o que significa que ao se
manejar um aspecto (adubação, por exemplo), faz-se necessário considerar
todos os outros (diversidade biológica, qualidade das águas subterrâneas,
suscetibilidade à erosão, etc.), de forma conjunta, compreendendo ao
princípio da "visão sistêmica" da agricultura, também chamada “abordagem
holística”.
16 Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia

É a mais antiga e tradicional corrente da agricultura alternativa ao


modelo agroquímico. Howard, que foi o principal precursor da agricultura
orgânica, na década de 1930, instituiu o que mais tarde ficaria conhecido
como teoria da trofobiose, ao afirmar, com base em suas observações, que “a
verdadeira base da saúde e da resistência a doenças não é outra senão a conservação
da fertilidade do solo e que os insetos e fungos não são a verdadeira causa das
doenças das plantas, pois só atacam variedades não adaptadas às condições locais ou
cultivadas de forma inadequada”.

b) Agricultura Biodinâmica
Originária da Alemanha, se desenvolve baseada nos princípios
filosóficos do humanista científico Rudolph Steiner (década de 30). As
principais características, além da compostagem, baseia-se na utilização de
“preparados” homeopáticos ou biodinâmicos, que são fundamentais na
produção, promovendo o fortalecimento da planta, deixando-a resistente a
determinadas bactérias e fungos, e do solo, ativando sua microvida. Os
animais são integrados na lavoura para aproveitamento de alimentos, ou
seja, aquilo que o animal tira da unidade de produção volta para a terra. A
importação de adubo orgânico não é permitida, pois materiais orgânicos de
fora da propriedade ou da região não são adequados por não possuírem a
bioquímica, a energia ou a vibração adequada à cultura. Existe a
preocupação com o paisagismo, com a arquitetura e com a captação da
energia cósmica.
A agricultura biodinâmica transcende a visão de uma atividade
apenas econômica e social, com uma concepção mais integradora do homem
no universo.
Na ótica da biodinâmica, a agricultura é concebida como parte desta
visão de mundo, e é entendida a partir das influências cósmicas no
desenvolvimento das plantas e animais, e da interação de forças espirituais
através do que poderia se chamar de “energias sutis” com plantas, animais e
os homens.
Nesta concepção, Steiner julga possível praticar uma agricultura que
tem como princípio a integração dos recursos naturais da agricultura em
conexão com as forças cósmicas e suas diversas formas de valores
espirituais e éticos, para chegar a ter uma aproximação mais compreensível
das relações entre a agricultura e estilos de vida. A agricultura biodinâmica
está baseada na Antroposofia, que prega a importância de conhecer a
influência dos astros sobre todas as coisas que acontecem na superfície da
terra.
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c) Agricultura Natural
Originária do Japão, a principal divulgadora desta corrente
alternativa é a Mokiti Okada Association (MOA). Mokiti Okada (1882-1955),
propôs, em 1935, um sistema da produção agrícola que tomasse a natureza
como modelo, passando a ser chamada de “agricultura natural”. Utiliza
estratégia de intervenção mínima do homem nos processos da natureza,
destacando-se a ausência de aração, capinas, uso de pesticidas e
fertilizantes. Através destes preceitos, é dispensável, em grande parte, um
planejamento centralizado do processo produtivo para realizar tarefas de
manejo, alicerçando o desenvolvimento da “agricultura natureza”, ou seja, a
manutenção de sistemas de produção iguais aos encontrados na natureza.
De acordo com Mokiti Okada, a harmonia e prosperidade entre os
seres vivos é fruto da conservação do ambiente natural, a partir da
obediência às leis da natureza. Através do princípio da reciclagem dos
recursos naturais presentes na propriedade agrícola, o solo se torna mais
fértil pela ação benéfica dos microorganismos (bactérias, fungos, entre
outros) que decompõem a matéria orgânica liberando nutrientes para as
plantas. Assim, o solo, o alimento e o ser humano recuperam a saúde e a
vitalidade.

d) Agricultura Biológica
Se popularizou na França, na década de 60, a partir dos trabalhos de
Claude Aubert, influenciado por Francis Chaboussou, entre outros.
A ênfase nas práticas agrícolas recai sobre o manejo dos solos,
fertilização e rotação de culturas. Seus adeptos sugerem a incorporação de
rochas moídas no solo e, principalmente, adubação orgânica,
necessariamente de origem animal. Destaca-se pelo controle biológico, do
manejo Integrado de pragas e doenças, e pela Teoria da Trofobiose (efeito
dos agroquímicos na resistência das plantas). Alguns estudiosos da
„agricultura alternativa‟ qualificam os preceitos da agricultura biológica,
como semelhantes aos que norteiam a agricultura orgânica.

e) Permacultura
Os fundamentos éticos da permacultura repousam sobre o cuidar do
Planeta Terra, fortalecendo sua capacidade de manutenção de todas as
formas de vida, atuais e futuras.
Tem origem na Austrália e no Japão e o conceito básico foi
desenvolvido nos anos 70 por Bill Mollison e David Holmgren. Pode ser
definida como uma agricultura integrada com o ambiente. São utilizadas
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associações particulares de árvores, perenes e não perenes, arbustos e


plantas herbáceas rasteiras que se nutrem e se protegem mutuamente,
incluindo a atividade produtiva dos animais.
Em seu processo de planejamento, consideram-se os aspectos
paisagísticos e energéticos. Seus princípios estimulam a criação de
ambientes equilibradamente produtivos, ricos em alimentos, energia,
abrigos e outras necessidades materiais e não materiais, o que inclui infra-
estrutura social e econômica.
A permacultura é desenvolvida através da cuidadosa observação dos
padrões naturais e das características de cada lugar em particular, o que
permite uma gradual implementação de métodos ótimos para integrar
instalações humanas com os sistemas naturais de produção de energia como
florestas, plantas comestíveis, aqüicultura, animais silvestres e domésticos,
dentre outros.

f) Agricultura Nasseriana
Se apresenta como a mais nova corrente da agricultura alternativa e
tem como base a experiência de Nasser Youssef Nasr, no estado do Espírito
Santo. Também chamada de „Biotecnologia tropical‟, é calcada no estímulo e
manejo de ervas nativas e exóticas, a multidiversidade de insetos e plantas,
a aplicação direta de estercos e resíduos orgânicos na base das plantas,
adubações orgânicas e minerais pesadas. Nasser defende que a agricultura
de clima tropical do Brasil não precisa de compostagem, pois o clima
quente e as reações fisiológicas e bioquímicas intensas garantem a
transformação da matéria orgânica no solo.
No Brasil, defende Nasser, o esterco deve ser colocado diretamente na
planta, pois esta têm os mecanismos apropriados para lançar suas radículas
na matéria orgânica que está em decomposição, e os microorganismos do
solo buscam no esterco os nutrientes necessários para a planta e os levam
para baixo da terra.
Outro ponto a destacar consiste no uso de ervas nativas e exóticas
junto com a cultura para que haja diversidade de plantas espontâneas
(inços). Desta forma, é preciso manejar as ervas nativas de maneira que elas
mantenham o solo protegido e façam adubação verde.

Os fundamentos básicos da agroecologia

A partir dos anos 80, o termo agroecologia passa a ser usado para se
referir a um campo da ciência que aporta conhecimentos teóricos e
metodológicos no estudo das experiências de “agricultura alternativa”.
Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia 19

A denominação “tecnologias alternativas” foi usada, nesse período,


para designar as várias experiências de contraposição à agricultura química
industrial, passando a ser substituída, numa fase seguinte, por agricultura
agroecológica ou agroecologia propriamente dita, englobando todo o
contexto agrícola.
A agroecologia representa um desafio normativo aos temas
relacionados à agricultura nas diversas disciplinas, com raízes nas ciências
agrícolas, no movimento ambiental, na ecologia, nas análises de
agroecossistemas e em estudos de desenvolvimento rural.
A concepção de agroecossistemas, sob bases agroecológicas,
compreende o manejo ecológico de recursos naturais que, incorporado a
uma ação social coletiva de caráter participativo, permite projetar caminhos
para o desenvolvimento sustentável, através de estratégias, nas quais o
papel central da dimensão local é estratégico, construindo através da
articulação do conhecimento dos agricultores com o científico, facilitando a
“construção ou desenho” de sistemas agrícolas que potencializam a
biodiversidade ecológica e sócio-cultural”.
No contexto da consolidação de caminhos alternativos à agricultura
química industrial, a agroecologia se constitui num paradigma em
construção permanente, abrangendo grande complexidade de fatores
envolvidos, devendo-se ressaltar que na “concepção” de sistemas
agroecológicos de produção, não basta abordar apenas os aspectos
tecnológicos, mas sim considerar as questões econômicas, culturais e sociais.
São sistemas sustentáveis, podendo ser adaptados e aperfeiçoados de
acordo com as condições locais, tendo como base a inserção de experiências
e fundamentos tradicionais.
O termo “agroecologia” deixa de ser compreendido como apenas uma
disciplina científica que estuda os agroecossistemas, como defendido por
alguns estudiosos do assunto, ou seja, para tornar-se mais uma prática
agrícola propriamente dita, abrigando alguns dos componentes de cada
“corrente alternativa”, sem cunho religioso, espiritual, envolvendo os
componentes sociais, ecológicos, econômicos e culturais no processo
produtivo, garantindo a sustentabilidade do sistema produtivo e a
manutenção da família na propriedade rural, vivendo com dignidade.
A agroecologia compreende uma nova visão de mundo, que eleva a
agricultura a um novo patamar, que supõe uma diferenciação social. O
recurso às tecnologias sustentáveis passa por um investimento em
socialização às informações, desenvolvimento de equipamentos e técnicas
específicas e por relações mais humanísticas entre as pessoas.
Deve-se ressaltar que a agroecologia abrange um novo paradigma
técnico-científico, ambiental e cultural que está sendo construída de forma
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progressiva, com base em uma grande multiplicidade de práticas


produtivas, de ecossistemas e de estratégias diversificadas de sobrevivência
econômica. Esse exercício inovador para a maioria, reflete uma nova
maneira de pensar e fazer agricultura, passando inevitavelmente por
experiências de êxito e fracasso, uma vez que não há “receitas prontas”.
Aliado à reforma agrária, o pensamento agroecológico busca o
fortalecimento da agricultura familiar como o segmento social para
afirmação de um novo modelo de desenvolvimento mais solidário, justo e
ecológico.
A construção de sistemas agroecológicos baseia-se em alguns
princípios norteadores, representando a complexidade de abordagens, que
trata dos agroecossistemas como organismos vivos, e são apresentados
resumidamente a seguir:
 melhoramento da produção de alimentos básicos para o consumo das
famílias, garantindo a segurança alimentar;
 seleção de germoplasmas adaptados a cada condição ambiental
específica, visando boa produtividade, mas também a superação de
eventuais estresses ambientais locais;
 conservação dos germoplasmas de cultivos locais e melhoramento destes
nas comunidades rurais;
 produção de sementes nas comunidades para atender às necessidades de
cultivo dos agricultores;
 manutenção da paisagem, através de conservação ou recomposição
florística, como base para o estabelecimento de equilíbrio ecológico;
 aumento da diversidade e variedade de vegetais e animais para
minimizar riscos nos agroecossistemas;
 conservação e melhoria da fertilidade do solo através da aplicação
periódica de pó de rochas, do aporte permanente de materiais orgânicos,
através de cobertura morta, viva, adubação verde e estercos, fortalecendo
o conceito de priorização do uso eficiente de recursos locais;
 manutenção do equilíbrio nutricional das plantas, baseado na “qualidade
de vida do solo”, evitando situações de estresse, de modo a que seus
mecanismos de defesa não sejam alterados e possam se manifestar;
 minimização das perdas de nutrientes por percolação e erosão;
 obtenção da máxima reciclagem de nutrientes;
 manutenção das populações de insetos-praga, doenças e plantas
espontâneas em níveis toleráveis, sem o emprego de técnicas que
representem impactos negativos ao meio ambiente e ao homem;
 integração das atividades de produção vegetal com as de produção
animal;
Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia 21

 bem-estar das espécies exploradas na criação animal, através de nutrição,


tratamento sanitário e condições de vida que respeitem suas
características;
 rotações e consorciações de culturas;
 alcance da auto-suficiência de nitrogênio, por meio de reciclagem e
fixação biológica de N2, usando espécies diversificadas, com ênfase em
leguminosas;
 intensificação da utilização de espécies arbóreas nos sistemas de
produção;
 produção de insumos biológicos nas unidades de produção, de valor
comprovado, que possam ser utilizados pelos agricultores;
 realização de monitoramento permanente de toda a unidade de
produção, obedecendo a uma visão holística, ou seja, atentar e considerar
não apenas cada cultura ou criação, mas o conjunto e suas interações,
para corrigir a causa do problema e não as conseqüências;
 processo organizativo em toda a cadeia produtiva, com especial atenção
à agregação de valor aos produtos pelas famílias dos agricultores, bem
como relativo à comercialização direta aos consumidores;
 condições de trabalho que representem oportunidades de
desenvolvimento humano aos envolvidos;
 extrativismo sustentável;
 deve haver um comportamento ético na produção e comercialização dos
produtos, bem como a preocupação com a saúde dos consumidores,
tendo-os como parceiros ativos e interessados;
 preocupação com a saúde e condições de trabalho e de vida do
trabalhador rural e seus familiares.

Nesse contexto, as famílias dos agricultores devem ficar atentas à


forma de produção agrícola, pois, num primeiro momento, a emergente
agroecologia concilia produção, qualidade, conservação e recuperação dos
recursos naturais, o que só lhes trará vantagens. Ao mesmo tempo, aumenta
rapidamente a conscientização do consumidor, o qual a cada dia que passa
se torna mais informado e conhecedor das formas de produção e da
qualidade dos produtos que adquire e, assim mais exigente.
Nesse sentido, o acesso à informação como um novo insumo não é
uma simples fórmula e é possível estimar que alguns segmentos ficarão
ainda mais dispersos, se considerarmos os desafios à extensão rural, cuja
eficiência pode ser reduzida por políticas públicas que concentrem
permanentemente a informação e as tecnologias apenas nos agentes de maior poder
econômico.
Faz-se necessário a mudança da postura da extensão rural, passando a
atuar não como “detentora e repassadora do conhecimento”, mas como
22 Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia

parceira das famílias dos agricultores e suas organizações, na construção de


alternativas próprias de independência e de liberdade na cadeia produtiva,
na organização e na vida cotidiana, articulando interesses por melhores
condições de vida das pessoas do campo e da cidade.
Esse processo também requer uma “nova postura da pesquisa”, que
implica em “mudanças na forma de pensar e agir”, que visa garantir a
independência dos agricultores desse aparato tecnológico caríssimo, que só
interessa às grandes empresas multinacionais, inacessível à maioria dos
pequenos produtores, degradante do meio ambiente e da própria espécie
humana, pois esse modelo de agricultura que trocou o "homem" pela
máquina, mostrou-se fortemente excludente, vislumbrando para que, nessa
nova perspectiva, os agricultores possam resolver a maioria dos problemas
encontrados no cotidiano dos seus sistemas de produção, através de
alternativas existentes na própria unidade de produção ou na comunidade à
qual ele faz parte, ou seja, que as ações inerentes à extensão rural e pesquisa
desenvolvidas possam contribuir para a real independência dos
agricultores.
Portanto, faz-se necessário pensarmos que em países em
desenvolvimento como o Brasil, o desafio da produção de alimentos em
sistemas agroecológicos dentro de uma economia globalizada e flexível,
implica na retomada do debate sobre políticas públicas amplas e
diferenciadas, reforma agrária, agricultura familiar e segurança alimentar.

Fica claro, porém, que apesar de não ser pequeno, é imprescindível o


esforço de toda sociedade para uma mudança de paradigma da extensão
rural e da pesquisa agropecuária, principalmente, quando esta se encontra
atrelada a alterações sócio-políticas de caráter estrutural.

Considerações finais

A demanda por produtos orgânicos está crescendo tanto no mercado


interno como no mercado externo, mesmo com o seu preço relativamente
mais elevado do que os produtos convencionais, o que num primeiro
momento se constitui como estímulo, porém restringe o mercado às elites de
consumidores, reduzindo a possibilidade de grande expansão desse
mercado, que é a grande saída para os agricultores familiares, tornando-se,
a médio prazo, um problema pois esse mercado tende a saturar
rapidamente com diversos produtos.
No entanto, com o aumento da oferta de produtos agroecológicos,
espera-se que sejam praticados preços semelhantes aos dos produtos da
agricultura e pecuária convencional (agricultura química industrial), para
que a população de menor poder aquisitivo possa ter acesso a esses
Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia 23

produtos e assegurar-se de alimentação saudável, além de garantir amplo


mercado aos agricultores familiares que foram marginalizados no mercado
que predomina atualmente, que exige somente escalas de produção,
privilegiando os monopólios. O grande diferencial dos produtos orgânicos
deverá caracterizar-se pela sua superioridade na qualidade biológica e
nutricional.
Entretanto, para que os produtores obtenham mais sucesso, é
imprescindível que eles se organizem em todas as etapas na cadeia
produtiva, bem como no processo de comercialização visando,
principalmente, a eliminação da presença do intermediário.
Os consumidores podem contribuir para o avanço da agroecologia
através da divulgação aos seus amigos e parentes, como o sistema orgânico
produz alimentos de alto valor biológico, sem a utilização de agroquímicos
nocivos, contribuindo para a manutenção da saúde e do equilíbrio
ambiental e, ao mesmo tempo, procurando e freqüentando feiras e
supermercados especializados na sua comercialização ou que possuam
esses produtos à venda, como parte de seus negócios.
A expansão da agroecologia é, portanto, uma tendência que revela
novos paradigmas de manejo dos agroecossistemas e de postura dos
agricultores e de seus familiares no meio em que vivem. Sua consolidação
caminha de forma consistente e inequívoca. Em cada região se apresenta em
diferentes estágios de desenvolvimento, dependendo do grau de
engajamento dos atores no processo de desenvolvimento agropecuário,
representado pelas famílias dos agricultores, suas organizações,
movimentos sociais, organizações não governamentais, instituições de
ensino, pesquisa e extensão públicas e privadas.
O movimento agroecológico no Brasil e no mundo já é bastante
expressivo e desenvolve-se de forma razoavelmente organizada, com
importantes exemplos exitosos em diversas regiões, integrando produtores,
comerciantes e consumidores agindo de forma aberta, com regras claras,
onde não há exploradores ou explorados, procurando se construir relações
de mútua confiança.
Nesse processo, a transparência é a palavra de ordem, estimulando as
organizações locais e, inclusive, modificando processos inerentes às relações
humanas, substituindo a competitividade pela complementariedade, a
confiança e colaboração mútua, melhorando o senso de eqüidade e
conseqüentemente de justiça, resultando em melhoria na qualidade de vida
a todos os envolvidos.
24 Os caminhos e descaminhos da agricultura até a agroecologia

Bibliografia consultada

ALTIERI, M. A. Agroecologia: as bases científicas para a agricultura


alternativa. Guaíba: Agropecuária, 2002, 592 p.

AQUINO, A. M. de.; ASSIS, R. L. de (Eds.). Agroecologia: Princípios e


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