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Júlia Lima Gorges Brandão1

Da Coonatura ao Circuito Carioca de Feiras Orgânicas: breve história da


comercialização de alimentos orgânicos no Estado do Rio de Janeiro
Introdução
O estado do Rio de Janeiro é considerado um dos pioneiros na produção de
orgânicos no Brasil. A história da prática possuí marcos importantes para a difusão da
agricultura orgânica no estado. Destaca-se, em 1979, a criação da primeira cooperativa
autogestora de consumidores orgânicos do Estado do Rio de Janeiro, a Coonatura. Um
ano antes havia sido criada a Coolmeia, no Rio Grande do Sul. Tendo sido estas duas, as
primeiras cooperativas deste tipo no Brasil. 2 Já na década de 1980, na região conhecida
como Brejal, situada no distrito da Posse, em Petrópolis, alguns poucos produtores, que
antes já se dedicavam à agricultura convencional (com uso de agrotóxicos) iniciaram a
transição para a produção orgânica, estimulados por um estudante de engenharia
agrônoma, que havia conhecido a agricultura orgânica e decidira difundir a prática. Na
mesma década ocorreram três outros marcos importantes para a agricultura orgânica na
região: o II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa 3, realizado em 1984, em
Petrópolis; a criação em 1985, em Nova Friburgo, da Associação de Agricultores
Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO) 4 e a fundação, também em 1985 e em
Nova Friburgo da “Feira da Saúde”, considerada a primeira Feira Orgânica do Brasil.
1
Doutoranda em História das Ciências e da Saúde no Programa de Pós Graduação em História das
Ciências e da Saúde. Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
2
Ver: OLIVEIRA, Fernanda Hamann de. Cultura Orgânica. Rio de Janeiro: Desiderata, 2010. p. 61.
3
Este encontro, realizado em Petrópolis, de 2 a 6 de abril de 1984, foi promovido pela Federação das
Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil e pela Associação dos Engenheiros Agrônomos do
Estado do Rio de Janeiro. Obteve apoio de diversas instituições como: CNPq, EMATER-RIO,
EMBRAPA, PESAGRO-RIO, UFRRJ. Participaram do evento cerca de 1800 pessoas, dentre
pesquisadores, professores, ambientalistas, agricultores, estudantes, técnicos, políticos etc. Muitos atores
criticavam o modelo agrícola vigente no Brasil, afirmando não ser este compatível com a realidade
nacional. No encontro foram debatidos os problemas decorrentes do uso indiscriminado de agrotóxicos.
Diversas autoridades assumiram o compromisso de coibir o uso excessivo destas substâncias, apontando
o início de análises laboratoriais dos alimentos, além de instituir a obrigatoriedade de um receituário
agronômico estadual, onde produtores só poderiam utilizar agrotóxicos com a receita de um agrônomo.
Um desdobramento do encontro foi o Protocolo de intenções: a Carta de Petrópolis- Assinada por
secretários de Agricultura, Saúde e Ambiente de 12 Estados; Objetivo: “Dar prioridade ao controle de
agrotóxicos e ao desenvolvimento de agricultura alternativa (...)”
4
A ABIO- Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio Janeiro fora criada em 1985, com o
objetivo de trabalhar pela promoção e difusão de uma agricultura que se baseasse em métodos
alternativos de produção e que não admitisse o uso de insumos químicos e práticas que pudessem
representar riscos à saúde, poluição e agressão ambiental ou desequilíbrios de ordem social. A ABIO teve
papel fundamental no estabelecimento da agricultura orgânica em todo o Estado do Rio, tornando-se a
maior certificadora de alimentos orgânicos no Estado e, além disso, participou ativamente da formulação
da legislação de regulamentação da prática, que é uma lei de 2003, vigente até os dias atuais.
Observamos neste processo, o papel de jovens (a maioria universitários, ligados
a diversas áreas das ciências agrárias), como impulsores da prática orgânica na região
destacada. Eram jovens que viviam na “cidade grande”, que se voltaram ao campo para
difundir o conhecimento adquirido no espaço acadêmico. Em um primeiro momento, a
agricultura orgânica foi impulsionada por pessoas que possuíam conhecimento
acadêmico sobre os seus conceitos e estavam imbuídos de valores ideológicos, nutrindo
preocupações com a conservação do meio ambiente e a saúde. Devemos levar em
consideração o contexto internacional, onde ecologistas de todo o mundo defendiam
novas percepções e ações em relação à natureza5.

A partir do início da agricultura orgânica nas cidades serranas, estes mesmos


atores, que buscaram impulsionar a prática, empenharam-se em estabelecer uma rede
que possibilitasse o escoamento da produção de alimentos que começava a sair. Neste
mesmo momento, na cidade do Rio de Janeiro, a busca por este tipo de alimento crescia.
Então, teve inicio a venda dos alimentos produzidos na região serrana do Rio de Janeiro.
Neste início, teve destaque a formação de cooperativas e associações de consumidores,
que se comprometiam em auxiliar os produtores orgânicos.

A Coonatura impulsiona a produção orgânica

Como dito anteriormente, a Coonatura, criada em 1979, foi a primeira


cooperativa autogestora de consumidores orgânicos do estado do Rio. Possuía o
objetivo de abrir um espaço para a troca de ideias e criação de projetos. A criação desta
cooperativa ocorreu em um momento em que crescia a busca por uma alimentação
natural, livre de agrotóxicos, à medida que as pessoas tomavam conhecimento dos
malefícios causados pelo uso dos agrotóxicos e também a partir do crescimento de uma
“consciência ecológica”. Havia a procura por alimentos orgânicos, porém, os associados
da Coonatura percebiam a falta de alimentos deste gênero. Um dos fundadores desta
cooperativa, o estudante de engenharia agrônoma da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, Paulo Agnaga, teria tomado a iniciativa de buscar um local para a produção

5
De acordo com Pádua (2010), a partir da década de 1970 emerge um “ambientalismo complexo e
multissetorial”, tendo sido um dos maiores fenômenos sociológicos da história contemporânea. Este
movimento teria atingido diferentes campos do saber, tendo a ideia de “ecologia” rompido os domínios
acadêmicos, inspirando comportamentos sociais, ações coletivas e políticas públicas em nível mundial.
Além disso, estas ideias influenciaram estruturas educacionais, foram difundidas por meios de
comunicação de massa, penetrou no imaginário coletivo e em diversos aspectos culturais e artísticos. Ver:
PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. Estudos avançados, volume 24, 2010.
de orgânicos. Chegou então ao Brejal, em Petrópolis e aos poucos buscou estimular a
adesão de produtores convencionais à agricultura orgânica. O núcleo de produção
orgânica do Brejal passou a ser fortalecido pela Coonatura. No processo de
convencimento dos produtores à conversão para a prática orgânica destaca-se o papel
das mulheres, que possuíam hortas caseiras isentas de agrotóxicos para o consumo da
própria família. Buscando produção para atender aos associados, a Coonatura passou a
comercializar os alimentos produzidos por estas mulheres. Aos poucos, os maridos e
familiares passaram a observar a rentabilidade de fornecer alimentos orgânicos à
Coonatura, uma vez que estes alimentos possuíam maior valor em relação aos
convencionais. Este fator teria contribuído para o processo de conversão de muitos
agricultores à agricultura orgânica. Até os dias atuais é possível observar uma grande
atuação de mulheres nos processos de cultivo, plantação, colheita e venda dos
orgânicos, o que reflete o caráter familiar da prática, ao englobar todos ou a maioria dos
membros familiares dos agricultores.

A Coonatura se manteve por anos como a principal intermediária entre


consumidores e produtores, estabelecendo pontos de venda na cidade do Rio de Janeiro.

Um espaço para produtores e consumidores: a Feira Orgânica da Glória


Há pouco mais de 24 anos, no dia 15 de outubro de 1994 era realizada a primeira
feira orgânica da Glória, que, naquele momento fora chamada de Feira Ecológica
Cultural. A feira realizada àquele dia era um evento experimental, que possuía o
objetivo de estimular a sociedade a consumir alimentos naturais produzidos por
pequenos produtores, a maioria do interior do estado do Rio de Janeiro. Foi a primeira
iniciativa deste tipo em toda a cidade do Rio de Janeiro.
A primeira Feira da Glória contou com 20 barracas, que foram divididas entre
produtores e cinco órgãos públicos que estavam apoiando a iniciativa: A Embrapa,
Emater, Secretaria Estadual de Agricultura, UFRRJ e Instituto Estadual de Florestas. O
evento foi promovido pela Coonatura e pela Abio.

A criação da Feira da Glória, assim como a criação de instituições e entidades


como a Coonatura e a Abio esteve relacionada a um contexto nacional e internacional de
atores e ideias que criticavam projetos desenvolvimentistas e questionavam o modelo
agrícola vigente, calcado no uso de agrotóxicos e adubos químicos, na mecanização do
campo, na monocultura, etc.
No contexto destas discussões, surge a agroecologia, enquanto uma teoria
crítica, que formulou um questionamento radical à agricultura industrial, fornecendo as
bases conceituais e métodos para o desenvolvimento de agriculturas que cumpram
funções de interesse público para as sociedades atuais. O enfoque da agroecologia
impõe a superação da perspectiva do produtivismo economicista que leva à ocupação do
campo com monoculturas extensivas e a criação de agroecossistemas ecologicamente
vulneráveis e químico-dependentes. A agroecologia busca demonstrar que paisagens
rurais biologicamente diversificadas mantém infraestruturas ecológicas que equilibram e
regulam, naturalmente, populações de organismo espontâneos, como as chamadas
“pragas” e insetos.6

A década de 1990 trouxe um novo ânimo às discussões. A Realização da II


Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e desenvolvimento,
mais conhecida como ECO 92, foi realizado aqui, na cidade do Rio, que foi nomeada
como a capital mundial da ecologia nesta ocasião. O evento contou com a presença de
representantes de 170 países, com o objetivo de equilibrar o progresso com a
preservação do meio ambiente. Solidariedade ecológica planetária, investimento em
tecnologias limpas e ecologicamente seguras, mudanças nos padrões de produção e de
consumo e mudança nos modos de vida foram pontos abordados pelo evento. A Eco 92
colocou em destaque para uma maior parcela da população uma série de valores que já
vinham sendo difundidos por ecologistas de todo o país e de todo o mundo. O destaque
para a alimentação natural e o risco que os agrotóxicos causavam ao meio ambiente e à
saúde humana fez com que se fortalecesse cada vez mais uma rede de compradores
interessados em consumir produtos naturais.

Em meio à euforia da ECO 92, a ação da Coonatura tomou ainda mais força. Ao
longo do tempo, o número de associados aumentou cada vez mais. O número de
produtores orgânicos também aumentava, ainda que em uma escala lenta. Neste
contexto é então criada a Feira da Glória, como um espaço de troca de conhecimentos
entre produtores e consumidores, uma ampliação da disponibilidade e visibilidade dos
alimentos orgânicos. Como visto, a primeira edição da feira foi um evento experimental

6
ASSIS, Renato Linhares de. Desenvolvimento rural sustentável no Brasil: perspectivas a partir da
integração de ações públicas e privadas com base na agroecologia. Econ. Apl., Ribeirão Preto , v. 10, n.
1, p. 75-89, Mar. 2006 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
80502006000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 27 de janeiro de 2019.
realizado em outubro de 1994. Havia a preocupação por parte dos idealizadores da feira,
com a rejeição por parte dos moradores do entorno, assim como havia entraves legais
em relação à prefeitura, que só havia concedido um avará para o evento experimental.

A experiência deu certo e, de um evento, a Feira da Glória resistiu e foi a única


feira orgânica do estado por aproximadamente 16 anos. Neste período, observou-se um
gradativo aumento da prática. Ainda na década de 1990 teve início a formulação de uma
legislação voltada a regulamentar a prática orgânica, que antes era fiscalizada de
maneira informal, pela iniciativa privada. Em 1999 é aprovada a Instrução Normativa nº
00615 e em 2003 é decretada a lei nº 10.831, de 23 de dezembro de 2003 7, que
regulamenta a prática orgânica e está em vigor até os dias atuais.

A ampliação dos pontos de venda de orgânicos: O Circuito Carioca de Feiras


Orgânicas

Outro marco importante para a história da agricultura orgânica no estado foi a


criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas 8. Criado em 2010, o circuito é uma
parceria entre organizações da sociedade civil, como a ABIO, e a prefeitura do Rio de
Janeiro. No ano de criação do circuito, o número de produtores orgânicos associados à
ABIO era de 1909. De acordo com a socióloga Cristina Ribeiro, uma das fundadoras da
ABIO, a criação do circuito e a criação de novas feiras possibilitou a ampliação do
mercado de orgânicos, o que teria estimulado o aumento significativo de produtores
certificados, o que pode ser percebido em número disponibilizados pela ABIO e pelo
MAPA. No ano de 2017 a ABIO contava com 626 produtores orgânicos certificados. Se
compararmos o crescimento de 1999, com 60 associados10 até 2010, com 190, em um
período de menor tempo (2010-2017), o número de associados cresceu em uma escala
muito maior. Portanto, o ano de 2010 e a criação do Circuito Carioca de Feiras
7
Lei nº 10.831 de 23 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a agricultura orgânica e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.831.htm. Acesso em 25 de janeiro de
2019.
8
Atualmente o Circuito Carioca de Feiras Orgânicas conta com 20 Feiras Orgânicas espalhadas pela
cidade do Rio, são elas: Feira Orgânica da Barra da Tijuca I, Feira Orgânica da Barra da Tijuca II, Feira
Orgânica da Freguesia, Feira Orgânica Leopoldina; Feira Orgânica Ilha do Governador; Feira Orgânica
do Grajaú; Feira Orgânica da Tijuca I; Feira Orgânica da Tijuca II; Feira Orgânica da Gloria; Feira
Orgânica do Flamengo; Feira Orgânica de Laranjeiras; Feira Orgânica de Botafogo; Feira Orgânica da
Urca; Feira Orgânica do Leme; Feira Orgânica do Bairro Peixoto – Copacabana; Feira Orgânica Ipanema
I; Feira Orgânica Ipanema II; Feira Orgânica Leblon; Feira Orgânica Gávea; Feira Orgânica Jardim
Botânico. Informações disponibilizadas pela ABIO.
9
OLIVEIRA, Fernanda Hamann de. Cultura Orgânica. Op.cit. p. 66.
10
Ibdem.
Orgânicas do Rio de Janeiro foram impactantes no cenário de produção orgânica
fluminense, por permitir um maior acesso aos meios de comercialização da produção, o
que contribuiu diretamente para o aumento do número de produtores orgânicos no
Estado do Rio de Janeiro.
As feiras do circuito carioca reúnem produtores de diversos municípios do
estado, o que permite uma variação de alimentos a serem comercializados nesses
espaços.
A produção orgânica é influenciado pela sazonalidade e pelo clima do local onde
ocorre: a região serrana, por exemplo, é maior fornecedora de verduras do estado. Já
cidades como Seropédica, localizada na Baixada Fluminense, são responsáveis pelo
abastecimento, na maior parte do ano, de frutas e legumes, como aipim, batata doce,
inhame etc. Não que não seja possível produzir frutas na região serrana ou verduras na
Baixada Fluminense, no entanto, o fato do clima ser mais ameno na maior parte do ano
na Serra, favorece uma constância na produção de verduras. O mesmo ocorre na
Baixada: o clima mais quente favorece uma maior constância na produção de frutas e
legumes.
O consumidor de orgânicos deve compreender toda essa lógica e ainda se
habituar a consumir alimentos específicos de cada época do ano: a agricultura orgânica
depende excessivamente dos aspectos climáticos e sazonais. Alguns alimentos podem
ser produzidos por todo o ano (exceto por adversidades, como a falta d’água, enxurradas
etc). Podemos citar a alface, a couve, o aipim, o coco verde, banana, inhame, cenoura
etc. Outros podem ser vistos nas feiras orgânicas somente em determinado período do
ano. É o caso do caqui, maracujá, jabuticaba, milho verde, morango, pêssego, goiaba
etc.
Apesar da limitação na produção de orgânicos, justamente por fatores como o
clima e a sazonalidade, a disponibilidade de alimentos deste tipo aumenta
consideravelmente a cada ano. A criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas tem
um papel fundamental neste processo, pois possibilitou a ampliação dos espaços de
comercialização de alimentos orgânicos com baixo custo para os produtores. Antes,
muitos agricultores acabavam desistindo do plantio orgânico pelo fato de encontrar
dificuldades na comercialização de sua produção, que só poderia ser feita através de
lojas especializadas – que ainda eram poucas -, entregas realizadas por cooperativas,
como era o caso da Coonatura, ou através da Feira da Glória, que, no entanto, não
absorvia todos os produtores, pois sempre teve uma quantidade limitada de barracas.

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