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Revista Brasileira de Agroecologia

Rev. Bras. de Agroecologia. 9(1): 51-71 (2014)


ISSN: 1980-9735

Conhecendo a trajetória de emergência de ‘novidades’: agricultores familiares,


recriações e transformações no meio rural do sul do Rio Grande do Sul

Knowing the trajectory of the emergence of 'novelties': family farmers, recreations and
transformations in rural areas of southern Rio Grande do Sul

MEDEIROS, Monique1; MARQUES, Flávia Charão2

1 MSc. Desenvolvimento Rural, EMATER-RS, Três Forquilhas/RS, Brasil, mmedeiros@ymail.com; 2 Dr.


Desenvolvimento Rural, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) e Faculdade de Agronomia.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS, Brasil, flavia.marques@ufrgs.br

RESUMO: Adaptações e rearranjos em relações sociais e de trabalho, de novas formações de sentido e de


reinvenções de práticas e técnicas constantemente ocorrem no cotidiano dos agricultores familiares, o que
abre espaço neste cenário para a emergência de ‘novidades’. Alicerçado nestas ideias e à luz da
Perspectiva Orientada ao Ator, este artigo, que se baseia em uma pesquisa de caráter qualitativo realizada
nos municípios de São Lourenço do Sul e Pelotas, identifica a emergência de três ‘novidades’, que podem
ser evidenciadas pela constituição da Cooperativa Sul Ecológica; pela construção de novos mercados, o
institucional (merenda escolar) e o local (feiras livres); e o estabelecimento da Agroindústria Figueira do
Prado, e analisa a trajetória de emergência dessas ‘novidades’, indicando que essas ‘novidades’ que estão
amplamente relacionadas com o compartilhamento de conhecimentos, especificidades locais,
heterogeneidade e dinamismo da ação social, parecem indicar uma alteração do desenvolvimento no
espaço rural na região sul do Rio Grande do Sul.

PALAVRAS-CHAVE: emergência de novidades; conhecimento local; agricultura familiar; agricultura de


base ecológica; sustentabilidade.

ABSTRACT: Adjustments and rearrangements in social relationships and work, new configurations of
meaning and reinventions of practices and techniques are constantly taking place in the daily lives of
farmers, which leaves room in this scenario for the emergence of 'news'. Grounded in these ideas and in
light of the Actor-Oriented Perspective, this article, which is based on a qualitative research study
conducted in the municipalities of São Lourenço do Sul and Pelotas, identifies the emergence of three
'news', which can be evidenced by the constitution South of the Cooperative Ecological, by building new
markets, institutional (school meals) and local (fairs) and the establishment of the Agribusiness Figueira do
Prado, and analyzes the history of emergence of these 'news', indicating that these 'news' that are largely
related to the sharing of knowledge, local characteristics, heterogeneity and dynamism of social action,
seem to indicate a change of development in rural areas in the southern region of Rio Grande do Sul.

KEY WORDS: emergence of novelties; local knowledge; family farm; ecological production; sustainability.

Correspondências para: mmedeiros@ymail.com


Aceito para publicação em 05/05/2012
Medeiros & Marques

Introdução familiares e outros atores sociais relacionados à


Este artigo é construído sobre um repensar do produção ecológica de alimentos nos Municípios de
papel dos agricultores familiares no Pelotas e São Lourenço do Sul, ambos localizados
desenvolvimento de projetos de desenvolvimento no sul do Estado do Rio Grande do Sul.
rural. Esse repensar passa pelo entendimento de Vale salientar que para a realização dessa
que são relevantes suas iniciativas, muitas vezes, pesquisa, essencialmente qualitativa, foram
autônomas e resistentes, e que são elas que utilizadas ferramentas tais como: observação,
acabam por incidir diretamente na configuração do diário de campo, entrevistas semi-estruturadas4,
espaço social e material, provocando adaptações, fotografias e pesquisa documental.
recriações e transformações no rural. Tais Acompanhando visitas técnicas programadas
transformações resultam em uma gama de práticas ou agendando visitas específicas, por algumas
e processos percebidos na heterogeneidade da semanas entre os meses de março e junho de
agricultura dos dias atuais e, ainda, nas mais 2010, foi possível conviver no dia a dia com as
variadas formas e faces do desenvolvimento rural. famílias e observar suas atividades cotidianas,
Neste cenário, é que são abertos espaços e como o trabalho nas feiras livres, os eventos
condições sociais e técnicas favoráveis ao regionais da agricultura familiar, os encontros e
processo que se compreende como “Produção de reuniões entre agricultores, as atividades nas
Novidades”1na agricultura. Este é um termo-chave lavouras e na produção agroindustrial.
proposto a partir da necessidade de particularizar
ou evidenciar fenômenos inovadores em curso nos O recorte empírico e a problemática que
espaços rurais, que pode ser entendido como uma direcionou o estudo
modificação ou uma quebra em rotinas existentes, Na região sul do estado do Rio Grande do Sul,
assim como, pode consistir em uma nova prática não diferente de outros lugares do país, a
ou modo de fazer, presumivelmente com potencial agricultura familiar sofreu severas transformações
para promover melhorias nas rotinas existentes produtivas e tecnológicas com a chegada da
(PLOEG et al., 2004). modernização ao espaço rural5, o que influenciou a
Tendo claro que o surgimento de novidades é, organização e a vida comunitária.
na agricultura, um processo localizado, dependente Principalmente nas décadas de 1980 e 1990,
das condições naturais e dos repertórios culturais quando os debates que questionavam essas
associados, no qual a organização do trabalho está diretrizes ‘modernas’ estavam mais amadurecidos,
envolvida (PLOEG et al., 2004), este artigo procura a Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Diocese de
contribuir com a reflexão geral sobre necessárias Pelotas iniciou alguns trabalhos, que se pode
transformações nos processos envolvidos na identificar como ‘contra a corrente’, incentivando a
agricultura, em especial a familiar2, que podem produção agrícola ecológica entre os agricultores
auxiliar na identificação e compreensão dos familiares do município. A necessidade de ampliar
diversos aspectos envolvidos no surgimento de fronteiras e de contar com apoio, principalmente
novidades e sua relação com o desenvolvimento técnico, fez com que a CPT, poucos anos depois,
rural. firmasse um convênio com o Centro de Apoio ao
Essas reflexões foram facilitadas à luz de Pequeno Agricultor (CAPA), uma organização não
alguns aportes teóricos vinculados à Perspectiva governamental vinculada à Igreja Evangélica de
Orientada ao Ator, denominada POA3, Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Como o
essencialmente qualitativa, que compreende CAPA já desenvolvia atividades nesse âmbito no
relações e processos que envolvem agricultores município de São Lourenço do Sul, desde 1982, as

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fronteiras foram ampliadas e ambos os municípios sociais organizados nessa cooperativa têm
passaram a ser foco dos trabalhos. Esses trabalhos ampliado processos de aprendizagem coletiva, já
acabaram por favorecer a organização dos que a dinamização de vínculos e redes sociais
agricultores familiares locais em associações, construídas aumentam possibilidades de trocas de
cooperativas e mesmo grupos de trabalho, o que um relevante ‘saber-fazer’, rompendo o isolamento
abriu portas para uma integração ampliada a outras de muitos avanços em andamento.
formas de comercialização para seus produtos. A iniciativa dos agricultores em buscar vias para
Uma dessas formas foi através do Programa de o acesso aos mercados de cadeia curta (como
Aquisição de Alimentos, implementado pelo feiras locais) e institucional, se opondo à
governo federal em 2004. O mais relevante é que dependência de mercados oligopolizados e/ou de
esta comercialização acabou por constituir-se em cadeia longa, foi considerada como uma segunda
um dos mais importantes mercados consumidores novidade emergente a ser investigada. Segundo os
para a venda da produção ecológica das famílias entrevistados, esta iniciativa tem entre seus
cooperadas. objetivos tornar as unidades produtivas mais
Dessa forma, em meio a relações e processos autônomas em relação aos recursos externos e,
de reação e adaptação, aprendizagem, busca por também, inserir dinamicamente a produção
autonomia e, consequentemente, transformações ecológica de alimentos em mercados em expansão.
sociais, econômicas, culturais e ambientais, esses A terceira iniciativa em questão se insere na
agricultores ecologistas estão, através de políticas estratégia de industrialização da produção dos
públicas, ação de projetos de apoio técnico e, próprios agricultores familiares de base ecológica.
principalmente, intercâmbio de conhecimento, Esta é representada pela agroindústria familiar
buscando melhorias em suas condições de vida, e rural Figueira do Prado, que se ocupa da
dessa forma, a cada dia, favorecendo a elaboração de sucos e schimiers. A constituição
emergência de distintas ‘novidades’, as quais são dessa agroindústria está associada, em grande
aqui neste trabalho compreendidas como três medida, ao desejo dos agricultores de agregar
iniciativas que estão sendo colocadas em prática valor à sua produção agrícola e a eliminar
por alguns agricultores familiares e mediadores intermediários na comercialização de seus
sociais dos municípios de São Lourenço do Sul e produtos.
Pelotas. Embora distintas, as iniciativas podem ser inter-
A primeira iniciativa refere-se a uma novidade relacionadas a todo o momento, já que estão
organizacional que está se consolidando na região. inseridas em um mesmo contexto e fazem parte de
Esta iniciativa se constitui na criação da um processo mais amplo de construção de
Cooperativa Sul Ecológica, os principais motivos espaços de manobra na luta constante por
que levam a considerar a organização dos autonomia.
agricultores familiares em cooperativa como
novidade são, em primeiro lugar, o fato de que a A dinâmica trajetória de emergência de
criação da cooperativa tem deflagrado uma nova “novidades”
dinâmica de relacionamento com a sociedade local, Uma ‘novidade’ é, essencialmente, um
neste caso, um contato mais direto na potencial, uma expectativa, assim como uma
comercialização entre agricultor e consumidor; semente. Esta é a metáfora utilizada por Ploeg e
outro motivo se refere ao fato de que os atores colaboradores já nas primeiras páginas do livro

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Seeds of Transitions, de 2004. Esta figura auxilia a compreendidas totalmente, pois são desvios às
destacar três aspectos essenciais à novidade. Em regras que vão além das regularidades existentes,
primeiro lugar, as novidades necessitam de tempo explicadas e aceitas. Por esse motivo, uma
– exatamente como as sementes requerem o cultivo novidade não pode ser facilmente transportada de
para germinar, crescer, florescer e produzir frutos. seu contexto de emergência para outros. Desta
Elas seguem um desdobramento específico através maneira, vale ressaltar que, embora as novidades
do tempo antes que seu resultado final possa ser sejam processos inovadores, elas diferem
avaliado. Igualmente, as novidades requerem um fundamentalmente das chamadas ‘inovações’ em
tempo para mostrar se as promessas nelas seu sentido normativo. Oostindie e Broekhuizen
envolvidas podem materializar-se realmente. Em (2008) enfatizam que uma novidade está associada
segundo lugar, as sementes requerem um espaço ao conhecimento local e, por isso, é altamente
particular, ou, mais especificamente, um contexto vinculada a um determinado contexto. Ao contrário,
particular de organização. É necessário um solo a ‘inovação’, que tem sido utilizada para designar
bem preparado, uma distribuição uniforme de água, algo novo como expressão do conhecimento
uma condução apropriada do cultivo e assim por científico, é construída primeiramente em um
diante. Traduzido para as novidades, isto implica mundo externo ao da produção, e o conhecimento
que uma mudança em rotinas existentes, incorporado aos artefatos e/ou processos
frequentemente, implicará mudanças intrínsecos a ela podem ser transpostos de um local
subsequentes. As primeiras melhorias estimulam para outro.
um segundo aperfeiçoamento. Isto é, uma novidade O termo-chave ‘Emergência de Novidades’ é
raramente permanece isolada; uma resultará em derivado de uma rica tradição de estudos
um programa mais amplamente relacionado e dedicados à compreensão das mudanças
reforçará outras novidades. Em terceiro lugar, a tecnológicas (PLOEG et al., 2004) amparados pela
insegurança inerente a elas necessita ser Perspectiva Multinível6 (PMN) que, de acordo com
enfatizada. Exatamente como as colheitas podem Geels e Schot (2007), é um modelo
falhar, as novidades também podem. As novidades multidimensional de agência, que assume que os
estão relacionadas com expectativas, entretanto, atores têm interesses próprios, agem
está longe de ser evidente que os eventuais estrategicamente, mas são limitados pelo tempo e
resultados sejam iguais às expectativas iniciais. por distintos tipos de regras (regulamentadoras,
Uma novidade é definida como uma maneira normativas e cognitivas), sejam elas partilhadas ou
diferente de pensar, que incorpora novas ideias, não com os demais atores.
artefatos e/ou combinação de recursos, de Essas ações e estratégias são direcionadas por
procedimentos tecnológicos e de diferentes um conhecimento gerado pelo acúmulo de
campos do conhecimento, envolvendo habilidades e capacidades tecnológicas ao longo
constelações específicas de fatores que, de situações dinâmicas na linha do tempo. Este
presumivelmente, podem funcionar de maneira conhecimento, que é denominado por Belussi e
melhor como, por exemplo, um processo de Pilloti (2000 apud OOSTINDIE e BROEKHUIZEN,
produção, uma rede, combinação de diferentes 2008), de ‘contextual’, pode ser constituído por
atividades, etc. (OOSTINDIE e BROEKHUIZEN, quatro importantes processos: a) socialização, pela
2008). qual há trocas de conhecimento local entre os
As novidades, frequentemente, não são indivíduos através de processos de

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compartilhamento; b) externalização, pelo qual o crescimento mais limitante a uma dada atividade
conhecimento local é transformado em agrícola é também limitante de todo o processo de
conhecimento científico e, assim, pode se difundir desenvolvimento da agricultura naquela localidade.
globalmente; c) recombinação, processo que Portanto, a sintonia fina no ajuste desse fator
implica na reutilização dos vários tipos e fontes do limitante, muitas vezes, é o que propicia a
conhecimento local e científico, através de redes e emergência de uma novidade. Trata-se de um
outras conexões, para a criação de novos processo dinâmico, pois, uma vez que o fator
conhecimentos; e d) internalização: processo pelo limitante original tenha sido corrigido, outro pode
qual alguns aspectos do conhecimento externo são surgir em seu lugar.
absorvidos. Uma terceira trajetória na emergência de
Oostindie e Broekhuizen (2008) explicam que a novidades está associada à “transposição de
emergência de novidades está relacionada à fronteiras”, ou seja, a inclusão de novos domínios e
coprodução, a qual é entendida como a reconexão atividades por parte dos agricultores como, por
da sociedade, através do desenvolvimento da exemplo, a transformação e comercialização de
agricultura com a natureza, ou seja, da interação e alimentos, medidas e estratégias relacionadas à
transformação recíproca do social e do natural. proteção da natureza, entre outras. Implica na
Dessa maneira, nessa reconexão, ao mesmo tempo expansão de suas ações para além das unidades
em que são utilizados os recursos naturais de produção, alcançando, assim, organizações e
disponíveis localmente, estes são fortalecidos e redes sociais bem mais complexas. O que abre
recriados para novas utilizações, realimentando o caminho para a quarta trajetória, que se refere ao
sistema ciclicamente (PLOEG, 2006; OOSTINDIE “reordenamento do uso de recursos”, processo que
e BROEKHUIZEN, 2008). pode ser considerado intrínseco à emergência de
A partir da análise de vários estudos dedicados novidades, no entanto, não se restringe aos limites
a investigar processos inovadores endógenos em da unidade de produção, tampouco às atividades
espaços rurais, os autores propõem um quadro agrícolas em si mesmas. Reordenar o uso dos
analítico que identifica quatro distintas trajetórias na recursos significa, primeiramente, conectar
emergência de novidades. A primeira se refere ao elementos de modo inovador.
“melhoramento dos recursos”, em que a natureza é A seguir serão apresentados e discutidos alguns
construída, reconstruída e diferenciada dentro de exemplos de trajetórias identificadas como parte de
um longo processo histórico, do qual emergem um processo de emergência de novidades,
particularidades que caracterizam o relacionando uma série de múltiplas e
comportamento dos recursos envolvidos. heterogêneas dinâmicas sociotécnicas, que foram
Concretamente, os recursos são resultado da evidenciadas durante a pesquisa em Pelotas e São
coprodução, sendo moldados e remodelados por Lourenço do Sul. Aquelas, aqui analisadas, foram
intermédio da constante interação humanos - escolhidas em função de características comuns,
natureza. tais como: a contribuição na melhoria do
A segunda trajetória na emergência de desempenho e autonomia econômica dos
novidades diz respeito à “sintonia fina” entre o agricultores familiares; a identificação de uma
agricultor e uma extensa lista de fatores de preocupação ambiental e, nesse sentido, a busca
crescimento7, continuamente identificados e pela sustentabilidade, além da interação de
corrigidos. O que está implícito aqui é que o fator de conhecimentos presente nos processos de

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construção das características anteriores. emergência de ‘novidades’ na agricultura


(MEDEIROS, 2011).
Coprodução e melhoria dos recursos: as Ferramentas para semeadura de pequenas
‘retroinovações’ na agricultura familiar de sementes, como as de hortaliças, são
base ecológica
confeccionadas por estes agricultores com
Nos municípios de São Lourenço do Sul e materiais reutilizados, como uma mangueira de
Pelotas, os agricultores ‘inventam’ maneiras de borracha, pedaços de madeira descartados e um
viabilizar semeaduras, plantios, fertilizações de simples recipiente de metal cortado e adaptado
solo, métodos de colheita, entre outros. O fato de (uma lata de sementes) (figura 1). Sistemas de
os agricultores se ocuparem com a adaptação e irrigação são elaborados com grandes barris de
melhoria de suas técnicas tidas como ‘antigas’ e, plástico, antes descartados, com os quais os
com isto, acumularem conhecimento sobre formas agricultores fazem a captação da água das chuvas,
de trabalho localizadas, contribui para a que é transportada através de mangueiras de
reconstrução de habilidades que estavam em borracha por gravidade, tirando proveito da
desuso ou que eram circunscritas ao âmbito diferença de nível encontrada no terreno. Restos de
doméstico individual. Segundo Stuiver (2006), frutas e hortaliças são incorporados ao solo com
pode-se reconhecer no resgate desse objetivo de não perder fertilidade pela exportação
conhecimento, nas suas ampliações e de nutrientes, etc. Estes são apenas alguns dos
modificações, transferências para vizinhos e exemplos de práticas e técnicas que, com a
membros de grupo de trabalho uma espécie de finalidade de poupar capital e energia, são
‘retroinovação’. desenvolvidas pelo resgate de conhecimentos,
A retroinovação pode ser visualizada como ativo incorporando criatividade e, desta forma,
potencial transformador do futuro. Embora baseada retroinovando.
em redes locais, muda a dialética global-local pelas Sendo a coprodução a aproximação e
novas formas de relação que estabelece. Por interligação mútua entre sociedade e natureza,
exemplo, ela depende de agricultores que têm forjada através do desenvolvimento de técnicas e
experiências globais, mas que seguem aplicando mediada pela aprendizagem, destaca-se que a
suas experiências ancestrais. Esses agricultores emergência da agricultura de base ecológica é
são compreendidos como agentes chave por marcada pela geração dos insumos dentro do
desenvolverem ativamente conceitos e práticas próprio sistema.
relevantes que estavam esquecidos, reintegrando a Essa forma de se praticar agricultura, orientada
agricultura ao desenvolvimento rural (STUIVER, pela coprodução, busca por melhoria de recursos
2006). naturais e sociais, e concomitantemente níveis mais
Esse é o caso de muitos agricultores familiares equilibrados de sustentabilidade e produtividade,
que participaram da pesquisa, que, enfrentando as supõe a interação de três esferas articuladas entre
adversidades trazidas pelo ritmo marcado pelos si, porém, em constante processo de adaptação e
avanços da agricultura moderna, dentre elas a retroalimentação, são elas: ambiental, econômica e
dificuldades econômicas, optam por resgatar do sociocultural (Figura 2). As articulações entre as
passado e adaptar ao presente diversas formas esferas funcionam favorecendo o estabelecimento
técnicas e produtivas poupadoras de capital e de uma inter-relação entre os propósitos e metas
energia, o que ciclicamente, abre caminhos para a estabelecidos por dentro das distintas dimensões

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A B

Figura1 : A - Ferramenta utilizada na semeadura de pequenas sementes de hortaliças; B – Detalhe


para a peça principal da ferramenta. Comunidade quilombola Monjolo - São Lourenço do Sul/RS –
Maio/2010.
Fonte: acervo da pesquisa.

do processo em curso, o que pode gerar, em heterogêneo, constituído pela inter-relação de


alguns pontos, elementos de conflito entre elas. distintas esferas e conhecimentos diversos.
A dimensão ambiental é aqui representada e Dessa forma, referir-se à esfera ambiental sem
movida pelos interesses dos atores locais a favor ir ao encontro da sociocultural, é inevitável, uma
da conservação do ambiente, assim como contra a vez que uma das propostas da agricultura de base
perda da capacidade produtiva do meio utilizado ecológica é a retomada de algumas valias culturais,
para fins agrícolas. É essencial levar em conta que como as técnicas passadas de geração a geração,
a agricultura familiar de base ecológica supõe ou mesmo hábitos alimentares abandonados no
também a mobilização de uma maior diversidade período pós-modernização. Como consequência,
social, oportunizando a abertura de espaço para cresce a expectativa de agricultores e
um maior protagonismo dos atores sociais locais na consumidores a respeito do aumento da qualidade
busca e geração de alternativas técnicas e da saúde, em função da produção e consumo de
organizacionais com base nas necessidades, alimentos isentos de agroquímicos, assim como em
capacidades, potencialidades e limitações relação à melhoria das condições de trabalho
(COSTABEBER, 2001). mediante a redução ou eliminação do uso de
As articulações entre as esferas funcionam agrotóxicos no processo produtivo.
favorecendo o estabelecimento de uma inter- Considerando o inevitável imbricamento das
relação entre os propósitos e metas estabelecidos esferas, é possível antever possibilidades também
por dentro das distintas dimensões do processo em de melhorias sociais e culturais mais amplas,
curso, o que pode gerar, em alguns pontos, intervindo desde o conjunto da comunidade até o
elementos de conflito entre elas. O que reforça a da sociedade. Com a oferta destes produtos no
ideia de que a agricultura de base ecológica mercado, o agricultor possibilita aos consumidores
incorpora características de um projeto acessarem alimentos de maior qualidade biológica,

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Figura 2: Representação esquemática da agricultura de base ecológica em emergência como


coprodução, abrangendo as esferas ambiental, econômica e sociocultural.
Fonte: Medeiros (2011, p. 69)

não raro instigando-os a questionar, querer saber peculiaridades culturais e hábitos locais. As
mais sobre as práticas e ideologias que existem práticas de consumo estão inseridas nas
por trás da produção de sua comida. sociedades sob várias manifestações.
Ao se pensar a questão do consumo, Mercados diferenciados, produtos artesanais e
compreende-se que o cotidiano do consumidor ecológicos são alternativas para o consumidor.
está condicionado à sociedade contemporânea e Nessa perspectiva, ganha corpo o “consumo do
vice-versa. Entre os consumidores, há diferenças verde”, seja na forma de produtos, ou na forma de
no modo de consumir, seja quanto à maneira de imagens, ambientes ou espaços. Os alimentos
satisfazer suas necessidades, seja quanto aos ecológicos ganham lugar diferenciado e começam
seus ideais e visões de mundo. À sociedade de a disputar espaços nas redes de mercados, até a
consumo não está atrelada somente uma simples pouco tempo, de domínio exclusivo da produção
relação de oferta e procura, mas também suas convencional. O consumidor de alimentos

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ecológicos inclui em seu ‘poder’ de escolha, além (ou, de ‘sintonia fina’) entre os fatores de
da relação qualidade/preço, os critérios ambientais crescimento inerentes à produção agrícola, as
e sociais. Mediante sua atitude individual, o ‘novidades’ podem conquistar espaços.
consumidor pode ser considerado Vale reiterar que tais fatores de crescimento
significativamente responsável pelas mudanças não são constantes ao longo do tempo, eles não só
nas matrizes energéticas e tecnológicas do sistema dependem intrinsecamente da atuação dos
de produção (BRANDENBURG et al., 2008). agricultores, como variam de acordo com as suas
Vale observar que, dessa forma, produção e ações e decisões (OOSTINDIE e BROEKHUIZEN,
consumo ciclicamente iniciam um processo de 2008), além disso, são integrantes de uma relação
reconstrução da realidade social. Essa natural e humana bem visível na prática. A
reconstrução, que não se restringe somente a composição e distribuição de nutrientes em um
fatores como solo, água, fauna e flora, entre outros solo, por exemplo, dependerá de fatores físicos
fatores ambientais, abrange questões que específicos do solo de uma determinada lavoura,
envolvem aspectos sociais, culturais e econômicos. porém poderá ser melhorado ou enriquecido com
O consumo de alimentos ecológicos, ao mesmo nutrientes por meio da atuação do agricultor que
tempo em que reconstrói relações com o ambiente nele trabalhar. Outro exemplo que pode ser
natural e promove a estratégia de sobrevivência de aplicável é o que se refere à disponibilidade de
agricultores no espaço agrário, se apresenta como água para plantas em um determinado local ou
alternativa para a segurança alimentar do cultivo, que dependerá de fatores como clima, tipo
consumidor e restabelece formas solidárias de de solo e relevo, fatores aos quais essas plantas
relação entre produtores e consumidores estiverem sujeitas, porém a disponibilidade de
(BRANDENBURG et al., 2008). água poderá ser ‘corrigida’ por meio de práticas e
Sendo assim, são impulsionadas constantes técnicas de interferência humana, tais como
ressignificações nas formas de consumir e de irrigação, drenagem, cultivo de plantas em locais
produzir alimentos, o que coloca, gradativamente, protegidos, dentre outras.
em xeque a lógica produtivista ainda vigente, ao Na agricultura sempre existirá um fator natural
mesmo tempo que consolida mecanismos que e/ou social limitando o rendimento da produção e o
propiciam a adoção de princípios e valores da rendimento agrícola dependerá essencialmente do
sustentabilidade, muitas vezes pelo resgate de fator de crescimento mais limitante. Para entender
velhas técnicas e práticas, agora associadas a este argumento, se pode tomar como inspiração a
novos ideais. ilustração da ‘Lei dos Mínimos’ de Justus Von
Liebig (1855), lembrada por Ploeg et al. (2004) e
Na sintonia fina: à procura do equilíbrio entre Oostindie e Broekhuizen (2008), em que os fatores
as aduelas do barril de crescimento são representados como as
A agricultura, em especial a familiar, conta com aduelas de um barril, cuja capacidade volumétrica
uma gama de situações adversas que se depende da extensão da aduela mais curta,
apresenta aos agricultores diariamente. Nesses independentemente se há aduelas bem mais
enfrentamentos de adversidades econômicas, longas. Por exemplo, o nível de água de dentro
sociais e técnicas, a produção de novidades pode deste barril representa o nível de rendimento da
encontrar condições para se efetivar. Em meio a produção agrícola, que estará condicionado à
uma série de adaptações e processos de ajustes aduela mais curta, que pode ser a quantidade de

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nutrientes disponível no solo, a disponibilidade de limitantes. Através de ciclos complexos de


água para as plantas (Figura 3), ou até mesmo cuidados, a observação, interpretação,
fatores como mão de obra disponível para o reorganização, muitas vezes, inicialmente
trabalho com a agricultura e conhecimento sobre experimentais, as novidades são criadas, fazendo
práticas especificas de cultivos agrícolas. com que as rotinas existentes sejam alteradas.
No cotidiano de suas práticas agrícolas, os Este é um processo em curso: uma vez que o fator
agricultores estão continuamente à procura do limitante original for corrigido outro emergirá como
equilíbrio entre essas aduelas, entre esses fatores limite e assim por diante (PLOEG et al., 2004).

Figura 3: ‘À procura do equilíbrio entre as aduelas do barril’: exemplos de fatores de crescimento que
influenciam no processo de rendimento da produção agrícola.
Fonte: figura adaptada de Oostindie e Broekhuizen (2008, p.78).

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Ao longo de muitos anos foram os agricultores de socialização, internalização e recombinação de


que buscaram encontrar e, em seguida, ajustar, novidades e localidades, os conhecimentos que se
melhorar e corrigir, os fatores limitantes (ou as inter-relacionam são base elementar nesta
‘aduelas curtas’) que influenciavam sua produção trajetória complexa (OOSTINDIE e
agrícola, porém, com o advento da modernização, BROEKHUIZEN, 2008).
a tecnociência8 passou a assumir este papel, Muito do esforço dos agricultores, os quais
provocando uma série de transformações. A colaboraram com a pesquisa em São Lourenço do
tecnociência pode, então, mudar a configuração da Sul e Pelotas em desenvolver a agricultura de base
natureza de modo muito mais intenso, ecológica pode ser identificado como tentativas de
possibilitando uma produção em maior quantidade, superação da desconexão entre agricultura e
em intervalos de tempo cada vez menores e em localidade. Isso vem sendo feito, através do
locais antes impensáveis para a prática da trabalho conjunto com extensionistas e agentes de
agricultura. Dessa forma, a natureza passou a ser políticas públicas, o que coloca em jogo a interação
um limitante cada vez mais passível de ser de saberes, conhecimentos e práticas, oriundos de
sobrepassado pela tecnociência, o que fez com diversificadas fontes. Esses agricultores estão
que a agricultura se tornasse uma atividade sempre em busca dessa ‘menor ‘aduela’, de
crescentemente desconectada das alguma maneira limitante, seja diretamente no
disponibilidades e características locais. rendimento de suas produções ou em suas metas e
Com o avanço dos ideais ‘modernizantes’ e ideais.
dessa desconexão da agricultura com o espaço Pode-se identificar que umas dessas ‘aduela
local, as novidades ficaram fadadas a dificuldades curtas’ é o empobrecimento dos solos sobre os
cada vez maiores em sua emergência, já que sua quais esses agricultores familiares realizam seus
lógica é voltada aos processos altamente cultivos ecológicos. Esse processo de perda de
localizados, extremamente dependentes de fertilidade e qualidade física está associado ao uso
ecossistemas locais e de repertórios culturais anterior, com monocultivos como o fumo e o
específicos. pêssego. No sentido de superarem esse fator
Este caráter localizado das novidades implica limitante, os agricultores têm investido em práticas
que uma novidade emergente em um lugar, e em como a rotação de cultivos, incorporação de
um determinado momento, provavelmente não irá compostos orgânicos e húmus ao solo, assim como
aparecer em outro, pois existem especificidades o plantio dos chamados adubos verdes, que se
envolvidas em sua produção. As novidades são constituem em espécies vegetais especialmente
geralmente construídas embasadas por uma cultivadas para incorporação ao solo. Com o
contextualização do conhecimento, ou seja, pela objetivo de repor nutrientes, os agricultores
relação existente entre o conhecimento local e o estimulam constantemente o processo de gênese
técnico-científico. Antes que elas possam migrar de do solo, através da ativação de sua biologia com
um local a outro, elas devem ser ‘desembaladas’ uso intensivo de matéria orgânica e o cultivo de
de suas especificidades locais, inclusive do plantas recuperadoras do solo, como é o caso de
conhecimento local no qual sua produção foi alguns agricultores familiares entrevistados, que
embasada, para posteriormente serem ‘re- desenvolvem práticas de compostagem,
embaladas’ por outros conhecimentos e vermicompostagem e utilização de leguminosas
especificidades de determinada realidade local para adubação verde, dentre as quais a mais
para onde ela foi transportada. Nesses processos utilizada é o feijão guandu9.

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Medeiros & Marques

Muito do conhecimento necessário para a fronteiras. No contexto vinculado ao


promoção de mudanças nas práticas levadas a desenvolvimento rural, pode-se comparar a
cabo pelos agricultores circula entre eles durante transposição de fronteiras a uma ‘imersão no
encontros, reuniões, feiras ou outros momentos de desconhecido’. Novas experiências são traduzidas
convívio. Alguns destes eventos são promovidos em novos conhecimentos, que por sua vez
pelo CAPA e pela Cooperativa Sul Ecológica. inspiram novas práticas. Nesta dinâmica, novas
Durante a pesquisa a campo, foi possível técnicas e novas redes têm de ser desenvolvidas e,
acompanhar a relação dos agricultores familiares para isso, novos conhecimentos são necessários.
com os mediadores sociais, desde encontros com Isto se aplica não só à criação de novas atividades
enfoque no acesso a políticas públicas e e novas redes que agregam renda e oportunidades
planejamento de atividades futuras, até encontros de emprego no rural, como também à construção
mais técnicos, quando o objetivo era a assistência de novas respostas à evolução das necessidades e
técnica acerca de determinadas práticas expectativas da sociedade, em geral na
relacionados a cultivos. reconfiguração dos recursos rurais (OOSTINDIE e
Através desses acompanhamentos, foi possível BROEKHUIZEN, 2008).
evidenciar que esses encontros são espaços ricos Com base na reconfiguração constante de
para trocas de informações técnicas entre os recursos sociais e naturais elaboradas pelos
agricultores que, muitas vezes, se encontram agricultores, processos de desenvolvimento rural
distantes fisicamente entre si. O intercâmbio de constituídos por aprendizagem e partilha de
ideias, já testado em uma dada localidade, pode conhecimentos podem fazer emergir novidades,
servir de base ou inspiração para práticas que retro-alimentam o processo, podendo vir a
inovadoras em outra. Foi dessa forma que um dos resultar em outras. Assumindo-se, desta forma,
agricultores de Pelotas, preocupado com o bom que as novidades carregam em si conhecimento e
desenvolvimento das plantas do seu cultivo de são constituídas em dinâmicas de aprendizagem,
tomates ecológicos, adaptou em sua propriedade o para que existam relações permanentes que
uso do cultivo protegido10. contribuam para o fluxo de conhecimentos, é
Ao utilizar essa técnica, controlou a temperatura importante que os agricultores estendam suas
incidente, reduziu a aplicação de água e verificou ações e relações sociotécnicas para fora da
que foi menor a incidência de danos causados por unidade de produção, fazendo assim com que as
insetos. Voltando à figura do barril, pode-se dizer fronteiras sejam transpostas (MEDEIROS, 2011).
que o agricultor pôde descobrir e superar algumas Essas formas de transposição de fronteiras são
das menores ‘aduelas do barril’. constantemente criadas, recriadas e adaptadas no
decorrer das vidas desses agricultores. A
Transposição de fronteiras nos processos de elucidação deste fato pode ser feita através da
desenvolvimento rural: uma necessidade análise da iniciativa de criação da Cooperativa Sul
A inclusão de novos domínios e atividades Ecológica por agricultores familiares da zona sul do
associadas à unidade de produção agrícola, como Rio Grande do Sul. A iniciativa desses agricultores
a transformação e comercialização de alimentos, na busca por um dispositivo coletivo como
as medidas e estratégias relacionadas à proteção estratégia pode ser entendida como a efetivação
ambiental, ao desenvolvimento do agroturismo11, da agência12, realizada através das relações
entre outras, implicam em transposição de sociais estabelecidas, ultrapassando a capacidade

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Conhecendo a trajetória de emergência

individual por requerer organização e conseguindo transpor as fronteiras de suas


compromissos coletivos. unidades de produção e estabelecer relações
Os agricultores cooperados se apóiam sobre sociotécnicas entre si e com diferentes atores, de
práticas de ajuda mútua, principalmente com maneira a facilitar seu acesso a melhores
relação à troca de conhecimentos e práticas condições de vida no espaço rural. Aqui, estão
relacionados ao desenvolvimento de novas formas destacadas algumas dessas relações dos
de trabalho com a agricultura. Esses dispositivos agricultores: com o CAPA, como já mencionado;
estão fundados no princípio de “reciprocidade”, ou com algumas cooperativas e associações, como a
seja, princípios de relações estruturadas em função Cooperativa Mista dos Pequenos Agricultores da
do interesse da totalidade do grupo. Organizados Região Sul (COOPAR), a UNAIC, a Associação
em cooperativa os agricultores tomam iniciativas, Regional de Produtores Agroecologistas da Região
assumem uma postura de proposição ou de gestão Sul (ARPA-SUL), a Cooperativa dos pescadores
e não apenas de reivindicação e dessa maneira profissionais artesanais Lagoa Viva, a Rede de
vêm negociando reconhecimentos e apoios por Cooperação Solidária, a Rede Ecovida de
parte de outras organizações não governamentais Certificação Solidária; e, ainda, com o Programa
e também do setor público (SABOURIN, 2006). de Aquisição de Alimentos (PAA)13.
Dentro da dinâmica organizacional da Certamente as relações sociotécnicas
cooperativa, os agricultores estão organizados em desenvolvidas por estes agricultores vão além das
grupos, formados, em geral, por proximidade de listadas, porém procurou-se evidenciar estas, pois
moradias. Esta forma de arranjo acabou por foram as relações que tiveram maior proximidade
facilitar encontros mensais com os grupos, com a pesquisa, já que, durante as atividades
impulsionados pelo CAPA, onde são realizados acompanhadas como reuniões de grupo, feiras
dias de campo, oficinas, palestras e diversas livres e feiras expositivas, foi possível visualizar
atividades relacionadas às práticas da agricultura que os agricultores, principalmente dessas
ecológica. É importante destacar que este espaço organizações, se ajudavam mutuamente, desde a
técnico é também um ambiente repleto de troca de organização do espaço a ser utilizado até o pensar
práticas e conhecimentos, não somente entre em alternativas conjuntas de acesso a políticas
técnicos e agricultores, como entre os próprios públicas em geral.
agricultores. Nesse espaço os agricultores que Essa dinâmica que amplia horizontes, pela
participam de uma determinada organização se transposição das fronteiras individuais, tem sido
comunicam com outros agricultores de outras responsável pela visualização de oportunidades
organizações, o que favorece o estabelecimento de estratégicas por parte desses agricultores. Um dos
vínculos inter-organizacionais e, melhores exemplos observados é o da
consequentemente, possibilita a construção de comercialização de seus produtos dentro do PAA.
redes capazes de superar as fronteiras das Este Programa adquire alimentos das entidades
unidades individuais de produção agrícola. participantes sem a necessidade de licitação, por
Essas construções de redes entre os preços de referência estabelecidos com base em
agricultores de São Lourenço do Sul e Pelotas, uma média daqueles praticados nos mercados
também são facilitadas pelo fato desses regionais.
agricultores possuírem vínculos com mais de uma Os alimentos adquiridos pelo programa são
organização, que envolvem diferentes atores destinados à população atendida por programas
sociais. Dessa maneira, esses agricultores vêm sociais locais, situação que demanda uma

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Medeiros & Marques

complexa articulação entre os atores envolvidos, reforma agrária, grupos informais de produtores de
pois, já na apresentação de propostas de projetos leite do município de Pelotas e associados da
por parte das organizações locais, é necessário o ARPA-SUL.
ajuste entre os alimentos que serão produzidos e Essa comunicação entre as organizações abre
os que são demandados pelos programas sociais, possibilidades para margens de manobra que
envolvendo desde o planejamento da produção até permitem algumas negociações, de acordo com
a entrega sistemática dos produtos aos especificidades e limitações locais, por exemplo,
beneficiados. Esta exigência compulsória da em relação à sazonalidade da produção. Permitem
articulação coletiva compõe uma diferença ainda, ter incluídos nos projetos os produtos locais,
significativa em relação aos demais programas que em outras vias de comercialização não teriam
destinados à agricultura familiar (PINHEIRO, aceitação (SCHMITT e GUIMARÃES, 2008).
2010). Grande parte destes alimentos são obtidos em
A participação dos agricultores ligados a Sul sistemas de produção de base ecológica, desta
Ecológica no PAA abriu espaço para que eles forma os agricultores têm se beneficiado pela
ampliassem inter-relações com outras formas de proposta de diferenciação de preços dentro do
organizações de distintos agricultores. Em 2003, PAA, pela qual os produtos ‘ecológicos’ ou
organizações regionais, que estavam operando ‘orgânicos’15 recebem um adicional de 30% em
através do Programa Fome Zero14, formaram a relação aos demais.
‘Rede de Cooperação e Comercialização
Solidária’, organizada a partir do projeto Reordenando o uso de recursos: os
“Segurança Alimentar: Alimentando a Cidadania”, agricultores e suas conexões
implementado pela Prefeitura Municipal de Pelotas, A emergência de novidades na agricultura
com o objetivo de organizar e melhorar o processo também pode se referir a um ativo reordenamento
de compra de alimentos da prefeitura, reunindo as da utilização dos recursos. A busca por autonomia
demandas das diferentes secretarias por que permeia as lógicas da agricultura familiar tem
alimentos, e potencializar a compra dos produtos como objetivo e materializa-se na criação e no
da agricultura familiar. Após serem adquiridos desenvolvimento de uma base de recursos
conjuntamente, os produtos das diversas autogerida, envolvendo tanto recursos sociais
organizações eram destinados para os diferentes como naturais (conhecimento, força de trabalho,
programas assistenciais das secretarias (FROÉS terra, gado, canais de irrigação, esterco, cultivos,
et al., 2008). etc.) (PLOEG, 2009).
A Rede atualmente é composta por diversas Muitas das iniciativas desenvolvidas pelos
organizações, tais como a COOPAR, composta agricultores e que acabam por resultar em um
por agricultores familiares e quilombolas, grupos reordenamento no uso de recursos são realizadas
informais, dos quais fazem parte produtores de por meio do estabelecimento de “conexões”, às
hortaliças assistidos pela Empresa de Assistência vezes inesperadas, entre elementos antes
Técnica e Extensão Rural (EMATER); UNAIC, afastados entre si (MEDEIROS, 2011). Neste
integrada por agricultores familiares, assentados sentido, destacam-se quatro conexões
da reforma agrária e quilombolas; Lagoa Viva, evidenciadas a partir da análise de algumas
formada por pescadores; COOPAL, constituída por dinâmicas sociotécnicas levadas a cabo pelos
agricultores familiares, e a Sul Ecológica, que atores sociais relacionados à emergência da
abrange agricultores familiares assentados da agricultura de base ecológica em São Lourenço do

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Conhecendo a trajetória de emergência

Sul e Pelotas. A primeira conexão se refere à inter- ONGs presentes no local.


relação estabelecida entre as organizações dos O desenvolvimento da agricultura de base
agricultores familiares e as organizações não ecológica na região, sequencialmente, gerou a
governamentais de apoio técnico e organizacional. ampliação do volume de produção, fato que
A segunda conexão se refere à ligação direta entre acabou por atingir um limite na comercialização, ou
a produção de base ecológica e os consumidores seja, os canais de escoamento da produção se
(moradores de áreas urbanas). Uma terceira tornaram insuficientes. Sendo assim, agricultores e
conexão que pode ser percebida é a relação entre mediadores perceberam que era necessário
a produção de base ecológica e a merenda escolar viabilizar a ampliação do mercado, uma vez que,
em escolas públicas da região. A certificação da aparentemente, havia demanda para tais
produção e o sistema de acreditação realizado alimentos. Este processo parece ter sido o
pelos próprios agricultores se colocam como uma incentivo para a ampliação e consolidação de
quarta conexão a ser evidenciada. diversas formas de organização social. Assim, o
Desde meados dos anos 1990, alguns objetivo de reunir as produções para atender (e
agricultores dos municípios de São Lourenço do criar) novos mercados foi fundamental para a
Sul e Pelotas, por intermédio da CPT e do CAPA, fundação da Cooperativa Sul Ecológica, mas
começaram a buscar alternativas ecológicas de também para o estabelecimento de redes de
produção de alimentos que fossem oportunas ao relações entre outras organizações de agricultores,
desenvolvimento de suas unidades agrícolas. além das governamentais e não governamentais.
Analisando-se o objetivo inicial da iniciativa, pode- Organizados, os agricultores conquistaram os
se identificar que os projetos de apoio técnico que espaços das feiras livres em locais de grande
se iniciavam constituíram-se como base do circulação nas sedes dos municípios e,
reordenamento de recursos que se seguiu. Isto posteriormente, criaram um selo, uma marca que
porque tais projetos mobilizaram processos de passou a caracterizar seus produtos. O selo da Sul
aprendizagem que puseram lado a lado Ecológica estampado nas embalagens dos
conhecimentos locais e técnico-científicos e produtos fez com que os consumidores passassem
facilitaram o aprimoramento dos mecanismos de a identificar esses produtos, atribuindo-lhes maior
organização dos agricultores. valor por sua qualidade e credibilidade.
As alternativas tecnológicas que foram sendo Isto remete à segunda conexão fundamental
desenvolvidas, segundo os entrevistados e para o reordenamento no uso dos recursos, que se
documentos analisados, eram baseadas em refere às ligações estabelecidas entre a agricultura
princípios da agricultura de base ecológica, de base ecológica e o consumo urbano. Essa
promovendo o resgate dos conhecimentos locais, conexão traz, por exemplo, mudanças no uso de
como o acompanhamento das fases da lua para recursos ‘naturais’ ou ‘materiais’, como é o caso de
realização de práticas como plantio e colheita ou a alguns cultivos, antes circunscritos ao auto-
utilização de resíduos orgânicos para fertilização consumo nas zonas rurais, que passam a constituir
do solo. Inúmeras práticas e técnicas foram sendo produtos comercializáveis, uma vez que o
desenvolvidas e sistematizadas, promovendo o consumidor passa a reconhecer seu valor como
reordenamento de recursos diversos e, com isto, alimento, pelas características nutricionais que
mudando a forma de fazer agricultura, mas, contém, ou como retomada de hábitos alimentares
sobretudo, transformando a relação entre as perdidos, tornando os repertórios culturais outra
organizações de agricultores pré-existentes e as vez importantes no ato de consumir. Também,

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Medeiros & Marques

cultivares de milho, feijões, arroz, frutas nativas, ano de 1978, aproximando consumidores e
que não tiveram vez nos processos de produção produtores. Os agricultores ecologistas, apoiados
homogeneizadores da modernização e por ONGs, iniciaram essa nova maneira de encarar
industrialização, passam a ocupar, não só maiores a comercialização. Nessa época, produtores e
áreas de cultivo, mas também as mesas dos consumidores estavam em contato direto, via feiras
consumidores. livres e entregas de cestas em domicílio, o que
Com os espaços para a troca de informações e proporcionava confiança ao processo. Estava
aprendizagem ampliados, agricultores e os demais criada a rede de credibilidade de produção e
atores envolvidos passaram a estabelecer a comercialização dos alimentos ecológicos,
terceira conexão em destaque, que se refere a envolvendo produtores, consumidores e
relacionar agricultura familiar e o fornecimento de mediadores sociais, profissionais das ciências
merenda escolar. O processo se inicia quando os naturais e agrárias, que avalizavam o sistema
agricultores e mediadores perceberam que havia a saudável de produção de alimentos (FONSECA,
possibilidade da produção de base ecológica 2000).
abastecer a demanda de merenda escolar de uma Diante da ampliação dos mercados de
escola da rede pública estadual em São Lourenço comercialização dos produtos orgânicos houve a
do Sul. Dessa forma, entre os anos de 1999 e necessidade de regulamentação de sua produção
2002, o governo estadual realizou uma e comercialização, o que, consequentemente,
experiência, envolvendo a compra de produtos levou ao distanciamento entre agricultor e
ecológicos para fornecimento da merenda. Esta consumidor. Nos primeiros passos desse
conexão gerou, e vem gerando, uma série de processo, no Brasil, a normatização era
transformações no uso dos recursos, como é caso estabelecida pelas próprias organizações de
do estabelecimento e consolidação de agricultores, ONGs e até mesmo cooperativas de
agroindústrias familiares, que passam a processar consumidores. Porém, no início de 1991, a
alimentos (sucos, bolos, biscoitos, doces, leite) Comunidade Econômica Européia (CEE)
especialmente para atender a demanda da regulamentou o comércio de produtos orgânicos no
merenda escolar. Dessa forma, pode-se âmbito dos seus países afiliados. Segundo essa
compreender que por meio dessas conexões, há regulamentação, a importação de produtos
também mudanças organizacionais e institucionais orgânicos de países não pertencentes à CEE só
relacionadas, ou seja, não se trata apenas de seria permitida caso existissem, nesses últimos,
redirecionar a produção de alimentos ecológicos regulamentações normativas equivalentes
de um mercado a outro, trata-se da inserção em (FONSECA, 2000).
processos mais amplos que, embora A partir de setembro de 1994, o Ministério da
precocemente, pode-se começar a vislumbrar Agricultura reuniu-se com representantes de
como contribuições à mudança no regime da entidades ligadas à produção e ao consumo de
agricultura convencional. alimentos orgânicos com o propósito de criar
Com relação a isto, pode-se mencionar normas para a produção orgânica em todo o
algumas transformações que começam a ficar território nacional, abrindo maiores possibilidades
evidentes, por exemplo, o fato de que as primeiras de exportação. A discussão continuou nos anos
iniciativas de produção e comercialização de seguintes e, em 2007, reunindo dentro da categoria
produtos orgânicos no país foram estabelecidas de ‘orgânicos’ as diferentes vertentes que
por cooperativas de consumidores em meados do englobam a produção de base ecológica, a

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Conhecendo a trajetória de emergência

legislação que rege a certificação foi estabelecida de reordenamento no uso de recursos. Os


pela Lei Federal 10.83116 e regulada por cinco agricultores foram avançando com a produção de
Instruções Normativas. base ecológica e angariando credibilidade pessoal,
A partir da Lei Federal, foi criado o Sistema inclusive pela utilização do selo da cooperativa.
Brasileiro de Avaliação de Conformidade Orgânica Com a experiência adquirida resolveram dedicar-
(SISORG). Dele fazem parte dois tipos de se e realizar a certificação eles mesmos,
Organismos de Avaliação da Conformidade conectando-se então ao sistema de certificação
Orgânica (OAC): a) as Certificadoras Comerciais, ainda emergente.
chamadas de terceira parte, por não integrarem os A opção foi por certificar a produção através de
agricultores e trabalharem por sistema de Organismos Participativos de Avaliação de
auditagem; b) os Organismos Participativos de Conformidade ao invés da contratação de
Avaliação de Conformidade (OPACs), que, assim empresas de certificação por auditagem. A
como as certificadoras, precisam ter escolha, em parte, se deve aos altos preços
credenciamento a ser feito pelo Ministério da praticados pelas empresas certificadoras, mas
Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), também à inconformidade com a metodologia de
mas têm o sistema de acreditação feito por grupos trabalho, já que a credibilidade ‘concedida’ aos
compostos de agricultores e outros atores produtos de base ecológica por pessoas e
interessados, como consumidores, técnicos e estruturas alheias à comunidade não criam um
organizações sociais (PINHEIRO, 2010). Embora processo de autonomia da família agricultora ou da
ainda haja uma série de conflitos e contradições comunidade (MEIRELES, 2003).
relacionadas às questões da certificação, o A partir do conhecimento e compreensão do
percurso das transformações já deixa antever funcionamento dos OPACs, os agricultores
mudanças no regime, embora não esteja muito familiares dos municípios analisados
claro o que ainda está por vir. estabeleceram uma relação com a Rede Ecovida
De qualquer maneira, para os agricultores de Agroecologia17, cujo objetivo enfoca a
organizados na Cooperativa Sul Ecológica, a construção de um processo distinto de certificação
importância da certificação está também denominado “participativo em rede”, o qual
relacionada ao fato de que podem receber valores contrapõe o modelo mais comum realizado pelas
adicionais nos produtos destinados ao mercado demais certificadoras, o modelo de auditoria por
institucional e, para além dos possíveis ganhos inspeção externa.
econômicos, é necessário sublinhar que o fato de É importante ressaltar, que de maneira
haver uma nova institucionalidade que reconhece a simultânea ao estabelecimento destas conexões,
certificação participativa ou solidária é um avanço ocorre a todo instante o reordenamento do uso dos
importante, lembrando que na agricultura ecológica recursos também (ou principalmente) dentro de
o objetivo é buscar uma dinâmica de cada unidade de produção dos agricultores
desenvolvimento em que o agricultor tenha familiares, cuja complexidade e dinâmica permite
garantido seu espaço de representação política e afirmar que são muitas as conexões construídas
reprodução social, bem como autonomia na pelos agricultores e outros atores.
gestão, tomada de decisões e escolhas
tecnológicas. Considerações finais
Baseada nestas mudanças é que se pode A trajetória de emergência das novidades aqui
delinear uma quarta conexão, que leva a processos compreendidas como a criação da Agroindústria

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Familiar Figueira do Prado e da Cooperativa Sul das adversidades que lhes aparecem. Confirma-se
Ecológica, ou o acesso a mercados de cadeia curta então a necessidade de criar novas formas e novos
e institucional, está relacionada ao descobrimento espaços de articulação de conhecimentos (técnico-
de novos e relevantes recursos para a científicos e locais), no sentido de criar ambientes
transformação dos sistemas de produção favoráveis à emergência de novidades, sem
convencionais em outros, cuja base é ecológica. negligenciar que elas estão fortemente
Também, é perceptível o desenvolvimento de uma relacionadas ao contexto local onde emergem, e
‘sintonia fina’ no uso de tais recursos, bem como o que seu isolamento é altamente prejudicial à sua
reordenamento de muitos deles pelo consolidação.
estabelecimento de conexões entre elementos
antes ignorados ou afastados entre si. Notas
A evidência empírica das novidades também 1 Originalmente, em inglês, denominado Novelty
mostrou que há processos inovadores associados Production.
ao estabelecimento de vínculos, fundamentalmente 2 Nesta visão relacionada à agricultura familiar
geradores de redes e fluxos de conhecimento, compreende-se o papel preponderante da família
informação e aprendizagem, elementos estes que como estrutura fundamental de organização da
promovem a transposição das fronteiras das reprodução social através da formulação de
unidades de produção e da ação individual dos estratégia (conscientes ou não) familiares e
agricultores, assim como de outros atores individuais que remetem diretamente à
envolvidos, como diversos tipos de mediadores transmissão do patrimônio material e cultural (a
sociais, dentre eles as lideranças locais e os herança) e à transmissão da exploração agrícola (a
agentes públicos. A reação criativa por parte dos sucessão) (CARNEIRO, 1999). Desta forma, a
agricultores familiares cria não só transformações utilização do termo agricultura familiar, com o
técnicas que ampliam o acervo tecnológico da significado e abrangência que lhe tem sido
agricultura de base ecológica, mas também criam atribuído nos últimos anos, no Brasil, assume ares
espaços de manobra que levam à geração de não somente de retomada de práticas agrícolas,
novidades, especialmente aquelas relacionadas à como também de novidade e renovação
organização da produção e sua inserção ao (WANDERLEY, 2001).
mercado. Exemplo disto é a identificação da 3 A POA assume que os diferentes padrões
construção de dispositivos coletivos pelos emergentes de desenvolvimento são, em parte,
agricultores de São Lourenço do Sul e Pelotas. criação dos próprios atores sociais, isso sugere
Não se pode ignorar, porém, que tem havido que as análises sejam mais centradas nos próprios
algumas mudanças institucionais capazes de atores sociais e menos nas forças externas
retroalimentar as transformações das próprias (LONG, 2007). A perspectiva considera que as
organizações envolvidas ou a ampliar a variações culturais e as diferenças organizacionais
participação de outras, como identificado no caso são resultados das distintas formas que os atores
do CAPA e de prefeituras de distintos municípios, respondem às situações problemáticas e
que passaram também a compor, de alguma interações com outros atores (LONG e PLOEG,
forma, o projeto da agricultura de base ecológica. 1994). Ainda, ressalta-se que, mesmo
Dessa forma, é necessário refletir e criar meios considerando os limites colocados pelas
para que esses agricultores possam ter cada vez estruturas, essas não são abordadas de modo
mais a possibilidade de ir além no enfrentamento determinista (MARQUES, 2008).

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Conhecendo a trajetória de emergência

4 Ao todo, no desenvolvimento da pesquisa, foram como adubação verde. A planta possui um sistema
entrevistados vinte e um agricultores familiares e radicular profundo e ramificado, que aumenta sua
seis mediadores sociais. resistência ao estresse hídrico e possibilita o
5 O que se convencionou chamar de modernização rompimento de camadas adensadas de solos.
do espaço rural ou “modernização da agricultura” 10 O uso do plástico na agricultura tem sido
refere-se a um complexo processo de popularmente chamado de “plasticultura”, podendo
transformações nos espaços agrícola e rural do ser utilizado na construção de estufas ou casas de
mundo desencadeado a partir da década de 50, no vegetação, no sombreamento de cultivos e na
Brasil especialmente a partir de meados da década instalação de quebra-ventos. Há ainda telas
de 60 que correspondia, efetivamente, a integração chamadas anti-insetos, filmes plásticos para
da agricultura ao processo de acumulação de cobertura do solo, embalagens e recipientes
capital (ALMEIDA, 2009). diversos, dentre vários outros. O cultivo protegido,
6 Para uma discussão mais detalhada, onde são propriamente dito, tem como objetivo condicionar
expostos elementos teórico-conceituais sobre a um ou mais fatores ambientais na produção de
Perspectiva Multinível (PMN), consultar Marques plantas, proporcionando o aumento do controle do
(2008). agricultor sobre tais fatores.
7 Como fatores de crescimento para agricultura 11 O agroturismo trata-se de uma das diferentes
entende-se o conjunto de características modalidades de turismo desenvolvida no espaço
determinantes de limitações e potencialidades de rural, é praticada por famílias de agricultores
processos de produção agrícola. São exemplos: dispostos a compartilhar seus modos de vida e,
inclusão de nutrientes na composição do solo, a muitas vezes, suas casas com visitantes vindos,
capacidade de absorção desses nutrientes pelas em geral, de áreas urbanas.
raízes das plantas, a disponibilidade de água no 12 A noção de agência atribui ao ator (individual ou
solo ao longo do tempo, entre outros (OOSTINDIE grupo social) a capacidade de processar a
e BROEKHUIZEN, 2008). experiência social e traçar caminhos alternativos
8 Conceito utilizado na comunidade interdisciplinar para o enfrentamento das situações problemáticas,
de estudos de ciência e tecnologia para designar o sob diversificadas formas de coerção. Não sendo
contexto social e tecnológico da ciência. De acordo somente o simples resultado da posse de certas
com Latour (1987), a tecnociência desenvolve-se habilidades cognitivas, poderes persuasivos e
pela progressiva construção de fatos científicos formas de carisma, a noção de agência requer a
cuja verdade ou adequação é dada como certa organização de capacidades e a estratégica
para os que as utilizam como ponto de partida para geração/manipulação da rede de relações sociais
outros estudos, mas cuja natureza problemática (LONG e PLOEG, 1994).
pode sempre ser ressaltada quando examinadas 13 Trata-se de uma política pública proposta pelo
em suas origens. Este termo "tecnociência" foi governo federal para estender o mercado
criado pelo filósofo belga Gilbert Hottois em fins institucional até à agricultura familiar, maiores
dos anos 1970 e é bem usual nos textos do filófoso detalhamentos do programa serão apresentados
francês Bruno Latour. no capítulo seguinte.
9 O feijão guandu ou “Guandu”, como é 14 O Programa Fome Zero é uma estratégia
popularmente conhecido, tem se destacado com impulsionada pelo governo federal para assegurar
relação às melhorias na fertilidade dos solos o direito à alimentação às pessoas com
brasileiros, sendo uma das plantas de maior uso dificuldades de acesso aos alimentos. Tal

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estratégia se insere na promoção da segurança pública Federativa do Brasil, Poder


alimentar e nutricional, e consiste em um conjunto Executivo, Brasília, DF, 2007.
de mais de 30 programas complementares CARNEIRO M. J. Agricultores familiares e
pluriatividade: tipologias e políticas. In: COSTA,
implementados pelo ou com o apoio do Governo L. F. C.; BRUNO, R.; MOREIRA, R. J. (Orgs).
Federal, dentre eles o PAA. (PROGRAMA FOME Mundo rural e tempo presente. Rio de
ZERO, 2010). Janeiro: Mauad, 1999, p. 323-344.
15 Alimentos orgânicos são produtos de origem FONSECA, M. F. A. C. A construção social do
mercado de alimentos orgânicos: estratégias
vegetal ou animal, produzidos sem a utilização de dos diferentes atores sociais da rede de
agrotóxicos ou qualquer outro tipo de produto produção e comercialização de frutas, legumes
químico cujas práticas culturais buscam e verduras in natura do estado do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ/ICHS/ CPDA,
estabelecer o equilíbrio ecológico do sistema 2000. (Dissertação de mestrado em Sociologia
agrícola. na área de Desenvolvimento, Agricultura e
16 No artigo 2º da lei apresenta-se como Sociedade). 289 p.
certificação orgânica o ato pelo qual um organismo FROÉS, J. C., DOS SANTOS, F. J. e RECH, C. M.
Alimentando a cidadania: a força da
de avaliação da conformidade credenciado dá sociedade civil junto a políticas públicas.
garantia por escrito de que uma produção ou um Relato sobre a Rede de Cooperação e
processo claramente identificado foi Comercialização Solidária. Pelotas: CAPA,
2008. 104 p.
metodicamente avaliado e está em conformidade
LATOUR, B., Science in Action, Cambridge,
com as normas de produção orgânica vigentes Harvard University Press, 1987.
(BRASIL, 2007). LONG, N. Sociología del desarrollo: una
17 Essa Rede abrange os estados de Paraná, perspectiva centrada en el actor. México:
Santa Catarina e Rio Grande do Sul e é formada Centro de Investigaciones y Estudios Superiores
en Antropología Social, El Colegio de San Luis.
por núcleos regionais. São atualmente 21 núcleos
2007. 504 p.
que reúnem em torno de 170 municípios. Dentre LONG, N. e PLOEG, J. D. van der. Heterogeneity,
estes núcleos, destacam-se pela participação e actor and structure: towards a reconstitution of
atuação, na região sul do Rio Grande do Sul, os de the concept of structure. In: BOOTH, D.
Rethinking social development theory,
Pelotas e São Lourenço do Sul. O trabalho da
research and practice. England, Longman
Rede reúne aproximadamente 200 grupos de Scientific & Technical, 1994, p. 62-90.
agricultores, 20 ONGs e 10 cooperativas de MARQUES, F. C. O Nicho e Novidade: nuanças de
consumidores. Dentre esse número de ONGs e uma possível radicalização inovadora na
agricultura. In: Colóquio sobre Agricultura
cooperativas vinculados, se encontram,
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