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Knowing the trajectory of the emergence of 'novelties': family farmers, recreations and
transformations in rural areas of southern Rio Grande do Sul
ABSTRACT: Adjustments and rearrangements in social relationships and work, new configurations of
meaning and reinventions of practices and techniques are constantly taking place in the daily lives of
farmers, which leaves room in this scenario for the emergence of 'news'. Grounded in these ideas and in
light of the Actor-Oriented Perspective, this article, which is based on a qualitative research study
conducted in the municipalities of São Lourenço do Sul and Pelotas, identifies the emergence of three
'news', which can be evidenced by the constitution South of the Cooperative Ecological, by building new
markets, institutional (school meals) and local (fairs) and the establishment of the Agribusiness Figueira do
Prado, and analyzes the history of emergence of these 'news', indicating that these 'news' that are largely
related to the sharing of knowledge, local characteristics, heterogeneity and dynamism of social action,
seem to indicate a change of development in rural areas in the southern region of Rio Grande do Sul.
KEY WORDS: emergence of novelties; local knowledge; family farm; ecological production; sustainability.
fronteiras foram ampliadas e ambos os municípios sociais organizados nessa cooperativa têm
passaram a ser foco dos trabalhos. Esses trabalhos ampliado processos de aprendizagem coletiva, já
acabaram por favorecer a organização dos que a dinamização de vínculos e redes sociais
agricultores familiares locais em associações, construídas aumentam possibilidades de trocas de
cooperativas e mesmo grupos de trabalho, o que um relevante ‘saber-fazer’, rompendo o isolamento
abriu portas para uma integração ampliada a outras de muitos avanços em andamento.
formas de comercialização para seus produtos. A iniciativa dos agricultores em buscar vias para
Uma dessas formas foi através do Programa de o acesso aos mercados de cadeia curta (como
Aquisição de Alimentos, implementado pelo feiras locais) e institucional, se opondo à
governo federal em 2004. O mais relevante é que dependência de mercados oligopolizados e/ou de
esta comercialização acabou por constituir-se em cadeia longa, foi considerada como uma segunda
um dos mais importantes mercados consumidores novidade emergente a ser investigada. Segundo os
para a venda da produção ecológica das famílias entrevistados, esta iniciativa tem entre seus
cooperadas. objetivos tornar as unidades produtivas mais
Dessa forma, em meio a relações e processos autônomas em relação aos recursos externos e,
de reação e adaptação, aprendizagem, busca por também, inserir dinamicamente a produção
autonomia e, consequentemente, transformações ecológica de alimentos em mercados em expansão.
sociais, econômicas, culturais e ambientais, esses A terceira iniciativa em questão se insere na
agricultores ecologistas estão, através de políticas estratégia de industrialização da produção dos
públicas, ação de projetos de apoio técnico e, próprios agricultores familiares de base ecológica.
principalmente, intercâmbio de conhecimento, Esta é representada pela agroindústria familiar
buscando melhorias em suas condições de vida, e rural Figueira do Prado, que se ocupa da
dessa forma, a cada dia, favorecendo a elaboração de sucos e schimiers. A constituição
emergência de distintas ‘novidades’, as quais são dessa agroindústria está associada, em grande
aqui neste trabalho compreendidas como três medida, ao desejo dos agricultores de agregar
iniciativas que estão sendo colocadas em prática valor à sua produção agrícola e a eliminar
por alguns agricultores familiares e mediadores intermediários na comercialização de seus
sociais dos municípios de São Lourenço do Sul e produtos.
Pelotas. Embora distintas, as iniciativas podem ser inter-
A primeira iniciativa refere-se a uma novidade relacionadas a todo o momento, já que estão
organizacional que está se consolidando na região. inseridas em um mesmo contexto e fazem parte de
Esta iniciativa se constitui na criação da um processo mais amplo de construção de
Cooperativa Sul Ecológica, os principais motivos espaços de manobra na luta constante por
que levam a considerar a organização dos autonomia.
agricultores familiares em cooperativa como
novidade são, em primeiro lugar, o fato de que a A dinâmica trajetória de emergência de
criação da cooperativa tem deflagrado uma nova “novidades”
dinâmica de relacionamento com a sociedade local, Uma ‘novidade’ é, essencialmente, um
neste caso, um contato mais direto na potencial, uma expectativa, assim como uma
comercialização entre agricultor e consumidor; semente. Esta é a metáfora utilizada por Ploeg e
outro motivo se refere ao fato de que os atores colaboradores já nas primeiras páginas do livro
Seeds of Transitions, de 2004. Esta figura auxilia a compreendidas totalmente, pois são desvios às
destacar três aspectos essenciais à novidade. Em regras que vão além das regularidades existentes,
primeiro lugar, as novidades necessitam de tempo explicadas e aceitas. Por esse motivo, uma
– exatamente como as sementes requerem o cultivo novidade não pode ser facilmente transportada de
para germinar, crescer, florescer e produzir frutos. seu contexto de emergência para outros. Desta
Elas seguem um desdobramento específico através maneira, vale ressaltar que, embora as novidades
do tempo antes que seu resultado final possa ser sejam processos inovadores, elas diferem
avaliado. Igualmente, as novidades requerem um fundamentalmente das chamadas ‘inovações’ em
tempo para mostrar se as promessas nelas seu sentido normativo. Oostindie e Broekhuizen
envolvidas podem materializar-se realmente. Em (2008) enfatizam que uma novidade está associada
segundo lugar, as sementes requerem um espaço ao conhecimento local e, por isso, é altamente
particular, ou, mais especificamente, um contexto vinculada a um determinado contexto. Ao contrário,
particular de organização. É necessário um solo a ‘inovação’, que tem sido utilizada para designar
bem preparado, uma distribuição uniforme de água, algo novo como expressão do conhecimento
uma condução apropriada do cultivo e assim por científico, é construída primeiramente em um
diante. Traduzido para as novidades, isto implica mundo externo ao da produção, e o conhecimento
que uma mudança em rotinas existentes, incorporado aos artefatos e/ou processos
frequentemente, implicará mudanças intrínsecos a ela podem ser transpostos de um local
subsequentes. As primeiras melhorias estimulam para outro.
um segundo aperfeiçoamento. Isto é, uma novidade O termo-chave ‘Emergência de Novidades’ é
raramente permanece isolada; uma resultará em derivado de uma rica tradição de estudos
um programa mais amplamente relacionado e dedicados à compreensão das mudanças
reforçará outras novidades. Em terceiro lugar, a tecnológicas (PLOEG et al., 2004) amparados pela
insegurança inerente a elas necessita ser Perspectiva Multinível6 (PMN) que, de acordo com
enfatizada. Exatamente como as colheitas podem Geels e Schot (2007), é um modelo
falhar, as novidades também podem. As novidades multidimensional de agência, que assume que os
estão relacionadas com expectativas, entretanto, atores têm interesses próprios, agem
está longe de ser evidente que os eventuais estrategicamente, mas são limitados pelo tempo e
resultados sejam iguais às expectativas iniciais. por distintos tipos de regras (regulamentadoras,
Uma novidade é definida como uma maneira normativas e cognitivas), sejam elas partilhadas ou
diferente de pensar, que incorpora novas ideias, não com os demais atores.
artefatos e/ou combinação de recursos, de Essas ações e estratégias são direcionadas por
procedimentos tecnológicos e de diferentes um conhecimento gerado pelo acúmulo de
campos do conhecimento, envolvendo habilidades e capacidades tecnológicas ao longo
constelações específicas de fatores que, de situações dinâmicas na linha do tempo. Este
presumivelmente, podem funcionar de maneira conhecimento, que é denominado por Belussi e
melhor como, por exemplo, um processo de Pilloti (2000 apud OOSTINDIE e BROEKHUIZEN,
produção, uma rede, combinação de diferentes 2008), de ‘contextual’, pode ser constituído por
atividades, etc. (OOSTINDIE e BROEKHUIZEN, quatro importantes processos: a) socialização, pela
2008). qual há trocas de conhecimento local entre os
As novidades, frequentemente, não são indivíduos através de processos de
compartilhamento; b) externalização, pelo qual o crescimento mais limitante a uma dada atividade
conhecimento local é transformado em agrícola é também limitante de todo o processo de
conhecimento científico e, assim, pode se difundir desenvolvimento da agricultura naquela localidade.
globalmente; c) recombinação, processo que Portanto, a sintonia fina no ajuste desse fator
implica na reutilização dos vários tipos e fontes do limitante, muitas vezes, é o que propicia a
conhecimento local e científico, através de redes e emergência de uma novidade. Trata-se de um
outras conexões, para a criação de novos processo dinâmico, pois, uma vez que o fator
conhecimentos; e d) internalização: processo pelo limitante original tenha sido corrigido, outro pode
qual alguns aspectos do conhecimento externo são surgir em seu lugar.
absorvidos. Uma terceira trajetória na emergência de
Oostindie e Broekhuizen (2008) explicam que a novidades está associada à “transposição de
emergência de novidades está relacionada à fronteiras”, ou seja, a inclusão de novos domínios e
coprodução, a qual é entendida como a reconexão atividades por parte dos agricultores como, por
da sociedade, através do desenvolvimento da exemplo, a transformação e comercialização de
agricultura com a natureza, ou seja, da interação e alimentos, medidas e estratégias relacionadas à
transformação recíproca do social e do natural. proteção da natureza, entre outras. Implica na
Dessa maneira, nessa reconexão, ao mesmo tempo expansão de suas ações para além das unidades
em que são utilizados os recursos naturais de produção, alcançando, assim, organizações e
disponíveis localmente, estes são fortalecidos e redes sociais bem mais complexas. O que abre
recriados para novas utilizações, realimentando o caminho para a quarta trajetória, que se refere ao
sistema ciclicamente (PLOEG, 2006; OOSTINDIE “reordenamento do uso de recursos”, processo que
e BROEKHUIZEN, 2008). pode ser considerado intrínseco à emergência de
A partir da análise de vários estudos dedicados novidades, no entanto, não se restringe aos limites
a investigar processos inovadores endógenos em da unidade de produção, tampouco às atividades
espaços rurais, os autores propõem um quadro agrícolas em si mesmas. Reordenar o uso dos
analítico que identifica quatro distintas trajetórias na recursos significa, primeiramente, conectar
emergência de novidades. A primeira se refere ao elementos de modo inovador.
“melhoramento dos recursos”, em que a natureza é A seguir serão apresentados e discutidos alguns
construída, reconstruída e diferenciada dentro de exemplos de trajetórias identificadas como parte de
um longo processo histórico, do qual emergem um processo de emergência de novidades,
particularidades que caracterizam o relacionando uma série de múltiplas e
comportamento dos recursos envolvidos. heterogêneas dinâmicas sociotécnicas, que foram
Concretamente, os recursos são resultado da evidenciadas durante a pesquisa em Pelotas e São
coprodução, sendo moldados e remodelados por Lourenço do Sul. Aquelas, aqui analisadas, foram
intermédio da constante interação humanos - escolhidas em função de características comuns,
natureza. tais como: a contribuição na melhoria do
A segunda trajetória na emergência de desempenho e autonomia econômica dos
novidades diz respeito à “sintonia fina” entre o agricultores familiares; a identificação de uma
agricultor e uma extensa lista de fatores de preocupação ambiental e, nesse sentido, a busca
crescimento7, continuamente identificados e pela sustentabilidade, além da interação de
corrigidos. O que está implícito aqui é que o fator de conhecimentos presente nos processos de
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A B
não raro instigando-os a questionar, querer saber peculiaridades culturais e hábitos locais. As
mais sobre as práticas e ideologias que existem práticas de consumo estão inseridas nas
por trás da produção de sua comida. sociedades sob várias manifestações.
Ao se pensar a questão do consumo, Mercados diferenciados, produtos artesanais e
compreende-se que o cotidiano do consumidor ecológicos são alternativas para o consumidor.
está condicionado à sociedade contemporânea e Nessa perspectiva, ganha corpo o “consumo do
vice-versa. Entre os consumidores, há diferenças verde”, seja na forma de produtos, ou na forma de
no modo de consumir, seja quanto à maneira de imagens, ambientes ou espaços. Os alimentos
satisfazer suas necessidades, seja quanto aos ecológicos ganham lugar diferenciado e começam
seus ideais e visões de mundo. À sociedade de a disputar espaços nas redes de mercados, até a
consumo não está atrelada somente uma simples pouco tempo, de domínio exclusivo da produção
relação de oferta e procura, mas também suas convencional. O consumidor de alimentos
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ecológicos inclui em seu ‘poder’ de escolha, além (ou, de ‘sintonia fina’) entre os fatores de
da relação qualidade/preço, os critérios ambientais crescimento inerentes à produção agrícola, as
e sociais. Mediante sua atitude individual, o ‘novidades’ podem conquistar espaços.
consumidor pode ser considerado Vale reiterar que tais fatores de crescimento
significativamente responsável pelas mudanças não são constantes ao longo do tempo, eles não só
nas matrizes energéticas e tecnológicas do sistema dependem intrinsecamente da atuação dos
de produção (BRANDENBURG et al., 2008). agricultores, como variam de acordo com as suas
Vale observar que, dessa forma, produção e ações e decisões (OOSTINDIE e BROEKHUIZEN,
consumo ciclicamente iniciam um processo de 2008), além disso, são integrantes de uma relação
reconstrução da realidade social. Essa natural e humana bem visível na prática. A
reconstrução, que não se restringe somente a composição e distribuição de nutrientes em um
fatores como solo, água, fauna e flora, entre outros solo, por exemplo, dependerá de fatores físicos
fatores ambientais, abrange questões que específicos do solo de uma determinada lavoura,
envolvem aspectos sociais, culturais e econômicos. porém poderá ser melhorado ou enriquecido com
O consumo de alimentos ecológicos, ao mesmo nutrientes por meio da atuação do agricultor que
tempo em que reconstrói relações com o ambiente nele trabalhar. Outro exemplo que pode ser
natural e promove a estratégia de sobrevivência de aplicável é o que se refere à disponibilidade de
agricultores no espaço agrário, se apresenta como água para plantas em um determinado local ou
alternativa para a segurança alimentar do cultivo, que dependerá de fatores como clima, tipo
consumidor e restabelece formas solidárias de de solo e relevo, fatores aos quais essas plantas
relação entre produtores e consumidores estiverem sujeitas, porém a disponibilidade de
(BRANDENBURG et al., 2008). água poderá ser ‘corrigida’ por meio de práticas e
Sendo assim, são impulsionadas constantes técnicas de interferência humana, tais como
ressignificações nas formas de consumir e de irrigação, drenagem, cultivo de plantas em locais
produzir alimentos, o que coloca, gradativamente, protegidos, dentre outras.
em xeque a lógica produtivista ainda vigente, ao Na agricultura sempre existirá um fator natural
mesmo tempo que consolida mecanismos que e/ou social limitando o rendimento da produção e o
propiciam a adoção de princípios e valores da rendimento agrícola dependerá essencialmente do
sustentabilidade, muitas vezes pelo resgate de fator de crescimento mais limitante. Para entender
velhas técnicas e práticas, agora associadas a este argumento, se pode tomar como inspiração a
novos ideais. ilustração da ‘Lei dos Mínimos’ de Justus Von
Liebig (1855), lembrada por Ploeg et al. (2004) e
Na sintonia fina: à procura do equilíbrio entre Oostindie e Broekhuizen (2008), em que os fatores
as aduelas do barril de crescimento são representados como as
A agricultura, em especial a familiar, conta com aduelas de um barril, cuja capacidade volumétrica
uma gama de situações adversas que se depende da extensão da aduela mais curta,
apresenta aos agricultores diariamente. Nesses independentemente se há aduelas bem mais
enfrentamentos de adversidades econômicas, longas. Por exemplo, o nível de água de dentro
sociais e técnicas, a produção de novidades pode deste barril representa o nível de rendimento da
encontrar condições para se efetivar. Em meio a produção agrícola, que estará condicionado à
uma série de adaptações e processos de ajustes aduela mais curta, que pode ser a quantidade de
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Figura 3: ‘À procura do equilíbrio entre as aduelas do barril’: exemplos de fatores de crescimento que
influenciam no processo de rendimento da produção agrícola.
Fonte: figura adaptada de Oostindie e Broekhuizen (2008, p.78).
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complexa articulação entre os atores envolvidos, reforma agrária, grupos informais de produtores de
pois, já na apresentação de propostas de projetos leite do município de Pelotas e associados da
por parte das organizações locais, é necessário o ARPA-SUL.
ajuste entre os alimentos que serão produzidos e Essa comunicação entre as organizações abre
os que são demandados pelos programas sociais, possibilidades para margens de manobra que
envolvendo desde o planejamento da produção até permitem algumas negociações, de acordo com
a entrega sistemática dos produtos aos especificidades e limitações locais, por exemplo,
beneficiados. Esta exigência compulsória da em relação à sazonalidade da produção. Permitem
articulação coletiva compõe uma diferença ainda, ter incluídos nos projetos os produtos locais,
significativa em relação aos demais programas que em outras vias de comercialização não teriam
destinados à agricultura familiar (PINHEIRO, aceitação (SCHMITT e GUIMARÃES, 2008).
2010). Grande parte destes alimentos são obtidos em
A participação dos agricultores ligados a Sul sistemas de produção de base ecológica, desta
Ecológica no PAA abriu espaço para que eles forma os agricultores têm se beneficiado pela
ampliassem inter-relações com outras formas de proposta de diferenciação de preços dentro do
organizações de distintos agricultores. Em 2003, PAA, pela qual os produtos ‘ecológicos’ ou
organizações regionais, que estavam operando ‘orgânicos’15 recebem um adicional de 30% em
através do Programa Fome Zero14, formaram a relação aos demais.
‘Rede de Cooperação e Comercialização
Solidária’, organizada a partir do projeto Reordenando o uso de recursos: os
“Segurança Alimentar: Alimentando a Cidadania”, agricultores e suas conexões
implementado pela Prefeitura Municipal de Pelotas, A emergência de novidades na agricultura
com o objetivo de organizar e melhorar o processo também pode se referir a um ativo reordenamento
de compra de alimentos da prefeitura, reunindo as da utilização dos recursos. A busca por autonomia
demandas das diferentes secretarias por que permeia as lógicas da agricultura familiar tem
alimentos, e potencializar a compra dos produtos como objetivo e materializa-se na criação e no
da agricultura familiar. Após serem adquiridos desenvolvimento de uma base de recursos
conjuntamente, os produtos das diversas autogerida, envolvendo tanto recursos sociais
organizações eram destinados para os diferentes como naturais (conhecimento, força de trabalho,
programas assistenciais das secretarias (FROÉS terra, gado, canais de irrigação, esterco, cultivos,
et al., 2008). etc.) (PLOEG, 2009).
A Rede atualmente é composta por diversas Muitas das iniciativas desenvolvidas pelos
organizações, tais como a COOPAR, composta agricultores e que acabam por resultar em um
por agricultores familiares e quilombolas, grupos reordenamento no uso de recursos são realizadas
informais, dos quais fazem parte produtores de por meio do estabelecimento de “conexões”, às
hortaliças assistidos pela Empresa de Assistência vezes inesperadas, entre elementos antes
Técnica e Extensão Rural (EMATER); UNAIC, afastados entre si (MEDEIROS, 2011). Neste
integrada por agricultores familiares, assentados sentido, destacam-se quatro conexões
da reforma agrária e quilombolas; Lagoa Viva, evidenciadas a partir da análise de algumas
formada por pescadores; COOPAL, constituída por dinâmicas sociotécnicas levadas a cabo pelos
agricultores familiares, e a Sul Ecológica, que atores sociais relacionados à emergência da
abrange agricultores familiares assentados da agricultura de base ecológica em São Lourenço do
cultivares de milho, feijões, arroz, frutas nativas, ano de 1978, aproximando consumidores e
que não tiveram vez nos processos de produção produtores. Os agricultores ecologistas, apoiados
homogeneizadores da modernização e por ONGs, iniciaram essa nova maneira de encarar
industrialização, passam a ocupar, não só maiores a comercialização. Nessa época, produtores e
áreas de cultivo, mas também as mesas dos consumidores estavam em contato direto, via feiras
consumidores. livres e entregas de cestas em domicílio, o que
Com os espaços para a troca de informações e proporcionava confiança ao processo. Estava
aprendizagem ampliados, agricultores e os demais criada a rede de credibilidade de produção e
atores envolvidos passaram a estabelecer a comercialização dos alimentos ecológicos,
terceira conexão em destaque, que se refere a envolvendo produtores, consumidores e
relacionar agricultura familiar e o fornecimento de mediadores sociais, profissionais das ciências
merenda escolar. O processo se inicia quando os naturais e agrárias, que avalizavam o sistema
agricultores e mediadores perceberam que havia a saudável de produção de alimentos (FONSECA,
possibilidade da produção de base ecológica 2000).
abastecer a demanda de merenda escolar de uma Diante da ampliação dos mercados de
escola da rede pública estadual em São Lourenço comercialização dos produtos orgânicos houve a
do Sul. Dessa forma, entre os anos de 1999 e necessidade de regulamentação de sua produção
2002, o governo estadual realizou uma e comercialização, o que, consequentemente,
experiência, envolvendo a compra de produtos levou ao distanciamento entre agricultor e
ecológicos para fornecimento da merenda. Esta consumidor. Nos primeiros passos desse
conexão gerou, e vem gerando, uma série de processo, no Brasil, a normatização era
transformações no uso dos recursos, como é caso estabelecida pelas próprias organizações de
do estabelecimento e consolidação de agricultores, ONGs e até mesmo cooperativas de
agroindústrias familiares, que passam a processar consumidores. Porém, no início de 1991, a
alimentos (sucos, bolos, biscoitos, doces, leite) Comunidade Econômica Européia (CEE)
especialmente para atender a demanda da regulamentou o comércio de produtos orgânicos no
merenda escolar. Dessa forma, pode-se âmbito dos seus países afiliados. Segundo essa
compreender que por meio dessas conexões, há regulamentação, a importação de produtos
também mudanças organizacionais e institucionais orgânicos de países não pertencentes à CEE só
relacionadas, ou seja, não se trata apenas de seria permitida caso existissem, nesses últimos,
redirecionar a produção de alimentos ecológicos regulamentações normativas equivalentes
de um mercado a outro, trata-se da inserção em (FONSECA, 2000).
processos mais amplos que, embora A partir de setembro de 1994, o Ministério da
precocemente, pode-se começar a vislumbrar Agricultura reuniu-se com representantes de
como contribuições à mudança no regime da entidades ligadas à produção e ao consumo de
agricultura convencional. alimentos orgânicos com o propósito de criar
Com relação a isto, pode-se mencionar normas para a produção orgânica em todo o
algumas transformações que começam a ficar território nacional, abrindo maiores possibilidades
evidentes, por exemplo, o fato de que as primeiras de exportação. A discussão continuou nos anos
iniciativas de produção e comercialização de seguintes e, em 2007, reunindo dentro da categoria
produtos orgânicos no país foram estabelecidas de ‘orgânicos’ as diferentes vertentes que
por cooperativas de consumidores em meados do englobam a produção de base ecológica, a
Familiar Figueira do Prado e da Cooperativa Sul das adversidades que lhes aparecem. Confirma-se
Ecológica, ou o acesso a mercados de cadeia curta então a necessidade de criar novas formas e novos
e institucional, está relacionada ao descobrimento espaços de articulação de conhecimentos (técnico-
de novos e relevantes recursos para a científicos e locais), no sentido de criar ambientes
transformação dos sistemas de produção favoráveis à emergência de novidades, sem
convencionais em outros, cuja base é ecológica. negligenciar que elas estão fortemente
Também, é perceptível o desenvolvimento de uma relacionadas ao contexto local onde emergem, e
‘sintonia fina’ no uso de tais recursos, bem como o que seu isolamento é altamente prejudicial à sua
reordenamento de muitos deles pelo consolidação.
estabelecimento de conexões entre elementos
antes ignorados ou afastados entre si. Notas
A evidência empírica das novidades também 1 Originalmente, em inglês, denominado Novelty
mostrou que há processos inovadores associados Production.
ao estabelecimento de vínculos, fundamentalmente 2 Nesta visão relacionada à agricultura familiar
geradores de redes e fluxos de conhecimento, compreende-se o papel preponderante da família
informação e aprendizagem, elementos estes que como estrutura fundamental de organização da
promovem a transposição das fronteiras das reprodução social através da formulação de
unidades de produção e da ação individual dos estratégia (conscientes ou não) familiares e
agricultores, assim como de outros atores individuais que remetem diretamente à
envolvidos, como diversos tipos de mediadores transmissão do patrimônio material e cultural (a
sociais, dentre eles as lideranças locais e os herança) e à transmissão da exploração agrícola (a
agentes públicos. A reação criativa por parte dos sucessão) (CARNEIRO, 1999). Desta forma, a
agricultores familiares cria não só transformações utilização do termo agricultura familiar, com o
técnicas que ampliam o acervo tecnológico da significado e abrangência que lhe tem sido
agricultura de base ecológica, mas também criam atribuído nos últimos anos, no Brasil, assume ares
espaços de manobra que levam à geração de não somente de retomada de práticas agrícolas,
novidades, especialmente aquelas relacionadas à como também de novidade e renovação
organização da produção e sua inserção ao (WANDERLEY, 2001).
mercado. Exemplo disto é a identificação da 3 A POA assume que os diferentes padrões
construção de dispositivos coletivos pelos emergentes de desenvolvimento são, em parte,
agricultores de São Lourenço do Sul e Pelotas. criação dos próprios atores sociais, isso sugere
Não se pode ignorar, porém, que tem havido que as análises sejam mais centradas nos próprios
algumas mudanças institucionais capazes de atores sociais e menos nas forças externas
retroalimentar as transformações das próprias (LONG, 2007). A perspectiva considera que as
organizações envolvidas ou a ampliar a variações culturais e as diferenças organizacionais
participação de outras, como identificado no caso são resultados das distintas formas que os atores
do CAPA e de prefeituras de distintos municípios, respondem às situações problemáticas e
que passaram também a compor, de alguma interações com outros atores (LONG e PLOEG,
forma, o projeto da agricultura de base ecológica. 1994). Ainda, ressalta-se que, mesmo
Dessa forma, é necessário refletir e criar meios considerando os limites colocados pelas
para que esses agricultores possam ter cada vez estruturas, essas não são abordadas de modo
mais a possibilidade de ir além no enfrentamento determinista (MARQUES, 2008).
4 Ao todo, no desenvolvimento da pesquisa, foram como adubação verde. A planta possui um sistema
entrevistados vinte e um agricultores familiares e radicular profundo e ramificado, que aumenta sua
seis mediadores sociais. resistência ao estresse hídrico e possibilita o
5 O que se convencionou chamar de modernização rompimento de camadas adensadas de solos.
do espaço rural ou “modernização da agricultura” 10 O uso do plástico na agricultura tem sido
refere-se a um complexo processo de popularmente chamado de “plasticultura”, podendo
transformações nos espaços agrícola e rural do ser utilizado na construção de estufas ou casas de
mundo desencadeado a partir da década de 50, no vegetação, no sombreamento de cultivos e na
Brasil especialmente a partir de meados da década instalação de quebra-ventos. Há ainda telas
de 60 que correspondia, efetivamente, a integração chamadas anti-insetos, filmes plásticos para
da agricultura ao processo de acumulação de cobertura do solo, embalagens e recipientes
capital (ALMEIDA, 2009). diversos, dentre vários outros. O cultivo protegido,
6 Para uma discussão mais detalhada, onde são propriamente dito, tem como objetivo condicionar
expostos elementos teórico-conceituais sobre a um ou mais fatores ambientais na produção de
Perspectiva Multinível (PMN), consultar Marques plantas, proporcionando o aumento do controle do
(2008). agricultor sobre tais fatores.
7 Como fatores de crescimento para agricultura 11 O agroturismo trata-se de uma das diferentes
entende-se o conjunto de características modalidades de turismo desenvolvida no espaço
determinantes de limitações e potencialidades de rural, é praticada por famílias de agricultores
processos de produção agrícola. São exemplos: dispostos a compartilhar seus modos de vida e,
inclusão de nutrientes na composição do solo, a muitas vezes, suas casas com visitantes vindos,
capacidade de absorção desses nutrientes pelas em geral, de áreas urbanas.
raízes das plantas, a disponibilidade de água no 12 A noção de agência atribui ao ator (individual ou
solo ao longo do tempo, entre outros (OOSTINDIE grupo social) a capacidade de processar a
e BROEKHUIZEN, 2008). experiência social e traçar caminhos alternativos
8 Conceito utilizado na comunidade interdisciplinar para o enfrentamento das situações problemáticas,
de estudos de ciência e tecnologia para designar o sob diversificadas formas de coerção. Não sendo
contexto social e tecnológico da ciência. De acordo somente o simples resultado da posse de certas
com Latour (1987), a tecnociência desenvolve-se habilidades cognitivas, poderes persuasivos e
pela progressiva construção de fatos científicos formas de carisma, a noção de agência requer a
cuja verdade ou adequação é dada como certa organização de capacidades e a estratégica
para os que as utilizam como ponto de partida para geração/manipulação da rede de relações sociais
outros estudos, mas cuja natureza problemática (LONG e PLOEG, 1994).
pode sempre ser ressaltada quando examinadas 13 Trata-se de uma política pública proposta pelo
em suas origens. Este termo "tecnociência" foi governo federal para estender o mercado
criado pelo filósofo belga Gilbert Hottois em fins institucional até à agricultura familiar, maiores
dos anos 1970 e é bem usual nos textos do filófoso detalhamentos do programa serão apresentados
francês Bruno Latour. no capítulo seguinte.
9 O feijão guandu ou “Guandu”, como é 14 O Programa Fome Zero é uma estratégia
popularmente conhecido, tem se destacado com impulsionada pelo governo federal para assegurar
relação às melhorias na fertilidade dos solos o direito à alimentação às pessoas com
brasileiros, sendo uma das plantas de maior uso dificuldades de acesso aos alimentos. Tal
70
Rev. Bras. de Agroecologia. 9(1): 51-71 (2014)
Conhecendo a trajetória de emergência