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Num país marcado por uma certa incompreensão relativamente à crítica técnica sobre obras científicas, ter
a oportunidade de tecer uma análise sobre uma obra de um académico consagrado é um labor que parece
aproximar-se de um marco. Sobretudo por contar com o apoio do próprio autor.
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“Exortação em Busca de um lugar entre a Modernidade e a “Tradição” em África” (i); “Democracia, Boa
Governação e Desenvolvimento em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe
e Timor-Leste” (ii); “Liberdade de Religião e de Culto em Angola” (iii); “Comités Técnicos Especializados
da União Africana (Comentário aos Artigos 14.º, 15.º, 16.º do Acto constitutivo da União Africana)” (iv);
“A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Jus Cogens” (v); “O Valor Jurídico da Liberdade na
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e nas Constituições dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa” (vi); “Relevância Penal do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Costume em
Angola” (vii); e “O Reconhecimento do Costume pela Constituição e o Ensino do Direito Consuetudinário
nas Faculdades de Direito” (viii).
alheios, num mimetismo metodológico erradamente aplicado a realidades linguísticas, axiológicas e, até
mesmo, ontológicos diferentes” (Feijó, 2022: 9)
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Vide, por exemplo, a abordagem de David Easton sobre a questão linguística e o incentivo aos movimentos
de guerrilha na sua obra Nations, States, and Violence. Sobre o estado da língua na realidade africana, pode
ser consultada a obra de Language and National Identity in Africa.
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De facto, nas teorias sobre o processo constitutivo do Estado-nação, os povos utilizaram a sua língua para
designar o futuro Estado, o que significou também um processo de homogeneização nas sociedades
multiculturais e multilinguísticas dos impérios que passaram a ser, mais tarde, Estados-nação.
Excecionalmente alguns casos deram lugar ao Nação-Estado (vide, por exemplo, a obra seminal The
Formation of National States in Western Europe).
pensamento ocidental ou ocidentalizado. Como escreve Feijó (2022: 197), “o jurista já
não deve ignorar a realidade consuetudinária escudando-se na ignorância ou nas balizas
dos cânones do pensamento clássico de origem romano-germânica que aprendemos nos
“bancos” da Faculdade de Direito ou com que, no dia-a-dia, confrontamos ao ler as
dezenas de diplomas que manifestam o Direito de cunho estadual”.
Feijó propõe como caminho académico uma abordagem pluralista e eclética de saberes
dialogantes, defendendo, igualmente, uma abordagem harmoniosa e articulada entre o
direito positivo e o costume, o que garantiria um maior grau de legitimidade ao Estado
africano. Porquanto este Estado padece de algumas enfermidades em termos de
legitimidade na sua construção, continuando a apresentar uma fraca penetração
territorial, ainda hoje, conforme mostra a literatura especializada no processo de
construção do Estado (Jackson e Rosberg, 1982; Mbembe, 1992; Christopher, 1996;
Herbst, 1999, 2000; Boone, 2003).
Em nosso entender, qualquer abordagem sobre o costume na realidade pós-colonial,
conforme propõe Feijó, deve partir da tipologia de Estado africano do pós-colonial no
que diz respeito ao legado colonial em matéria do costume: a) os Estados conservadores
adoptaram o costume como parte do seu ordenamento jurídico; b) os Estados radicais
rejeitaram o costume dentro do seu ordenamento jurídico – sendo o caso moçambicano
apresentado como exemplo da expressão máxima de rejeição da tradição, porque,
segundo Samora Machel, era necessário matar a tribo para fazer nascer a nação (Mandani,
1996; Boone, 2003; Menezes, 2009).
A problemática sobre o costume gerou duas perspectivas académicas e posicionamentos
políticos: i) uma perspectiva crítica do costume, sobretudo no que diz respeito aos
guardiões desses instrumentos normativos, precisamente, as autoridades tradicionais que
manipulam os costumes para a realização dos seus interesses (Mamdani, 1996). Esta
posição é, igualmente, adoptada por Mandami (1996), que considera “o chefe tradicional-
administrativo como sendo um agente político que emergiu durante o período colonial”;
ii) outra perspectiva, diametralmente oposta, mostra-se favorável aos valores costumeiros
como parte cosmológica dos povos africanos (Hyden, 2006; Lourenço, 2007; Feijó, 2022).
Para Lourenço (2007: 58-9), “quer sejam ou não legítimos aos olhos dos investigadores
quer tenham ou não sido criadas pelos funcionários coloniais, as Autoridades
Tradicionais constituem um importante factor nos jogos políticos locais em África, que
não deve, nem pode, ser ignorado”.
Este debate clássico, apesar não ser abordado por Feijó nos seus ensaios, surge na
proposta de programa académico para “(…) o Ensino do Direito Consuetudinário nas
Faculdades de Direito”. Aí refere-se que um dos conteúdos a abordar seria o das
“Instituições tradicionais (as instituições consuetudinárias e as instituições inventadas)”.
No caso angolano, Feijó demonstra em diversos ensaios que existe um acolhimento do
costume no plano constitucional, porquanto o artigo 7.º determina que “é reconhecida a
validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à Constituição nem atente
contra a dignidade da pessoa humana”. Esta formulação da regra de reconhecimento do
costume na ordem jurídica angolana não encara alguns factores problemáticos. Vejamos a
perspectiva de Hart sobre a regra de reconhecimento, visto que o autor explica que “a própria
regra de reconhecimento que faculta os critérios (de validação do costume) não pode ser
válida ou inválida, mas é simplesmente aceite como apropriada para tal utilização” (Hart,
2011: 120).
Igualmente a questão de subordinação do costume à Constituição acaba por trazer outra
problemática de natureza filosófica, sobretudo a problemática questão de Grundnorm, que,
segundo Aurélio (2015: 179), “opera, apenas, dado o seu carácter de “hipótese
transcendental (perspectiva kantiana)””. Ou seja, qual é a fonte jurídica a priori que
confere um valor reforçado (e primazia) ao texto constitucional face às demais leis
(ordinárias), tendo em conta que Kelsen, tal como Kant, rejeita a vontade geral como base
para a produção da constituição.
Quer a regra de reconhecimento quer a supremacia da constituição são elementos
insuficientemente fundamentados dentro da produção intelectual ocidental. Podem ser
encarados como elementos mais operacionais para a estruturação de uma ordem jurídica
efectiva e prática na organização do Estado moderno europeu. Estando, por isso, mais
próximos de uma lógica de razão prática das coisas do que de uma explicação,
teoricamente, bem estruturada ou logicamente bem organizada do ponto de vista
explicativo dos factos.
Esta insuficiência paira em toda a teorização jurídica moderna (Hart, 2011). Conforme
escreve Hart (2011: 123), “as disposições fundamentais de uma constituição, que são sem
dúvida direito, o que são realmente? Outros respondem com a insistência em que na base
dos sistemas jurídicos está algo que é “não direito”, que é “pré-jurídico”, “meta-jurídico”
ou é apenas “facto político”. Tal desconforto é um sinal seguro de que as categorias
usadas para a descrição desta característica muito importante em qualquer sistema de
direito são demasiado grosseiras”.
Feijó (2022) reconhece a insuficiência teórica ocidental em matéria de filosofia jurídica e de
produção do conhecimento, em particular na parte introdutória, propondo, como
alternativa, uma ruptura ou “(…) reconstrução das categorias ontológicas, epistemológicas,
metodológicas e hermenêuticas próprias” (Feijo, 2022: 8-9). Mas, em alguns ensaios, Feijó
adopta alguns pressupostos teóricos ocidentais, sobretudo no que diz respeito à qualidade
supra-ordenadora da CRA na ordem jurídica plural (ibid.: 183). Assumindo, por
conseguinte, uma “hipótese transcendental” – dentro da lógica universal kantiana – para a
supremacia constitucional.
Feijó acaba por adoptar a regra de reconhecimento sem questionar a sua insuficiência em
termos de validade, ao contrário do que propõe Hart. Pois, para Feijó, é mais relevante
encontrar uma solução técnica-operacional do costume dentro da ordem jurídica vigente
africana. Por isso, Feijó (2022: 188) afirma que “nem a CRA nem o pluralismo nos
orientam para uma fiscalização abstracta (sucessiva ou concreta) das normas
consuetudinárias, mas que ao abrigo do caso concreto pode e deve haver recurso para
averiguar da compatibilidade constitucional da norma aplicada. Cabe ao juiz averiguar se
certa aplicação da regra consuetudinária foi (…) compatível com a CRA”. No entanto,
Feijó (2002: 187) observa, de forma crítica, que o “Código Penal acaba desvalorizando e
não retirando consequências normativas da constitucionalização do Direito
Consuetudinário”.
Para Hart (2011), a regra de reconhecimento é em si insuficiente para vincular o legislador
e os juízes na aplicação do costume. Porque, de acordo com a (feliz) asserção de Hart
(2011: 124-5), “em nenhum sentido comum de “obedecer”, estão os legisladores a
obedecer a regras quando, ao aprovarem leis, acatam as regras que lhes conferem poderes
legislativos, excepto evidentemente quando as regras que conferem tais poderes estão
reforçadas por regras que impõem um dever de as cumprir. (….). Nem a palavra obedecer
descreve bem o que fazem os juízes quando aplicam a regra de reconhecimento do sistema
e reconhecem uma lei como direito válido e a usam na resolução de conflitos”. Hart
reforça o seu argumento, considerando que “podemos, se quisermos, preservar a
terminologia simples da “obediência” perante estes factos, através de muitos artifícios.
Um desses artifícios consiste em descrever, por exemplo, o uso feito pelos juízes dos
critérios gerais de validade ao reconhecerem uma lei, como um caso de obediência a
ordens dadas pelos “Fundadores da Constituição”, ou (onde não haja “Fundadores”)
como obediência a um “comando desprovido de qualquer conotação psicológica”, isto é,
um comando desprovido de respectivo autor. Mas este último artifício talvez não mereça
mais a nossa atenção do que a noção de um sobrinho sem tio” (Hart, 2011: 125).
Fica, pois, evidente que a regra de reconhecimento do ponto de vista de vinculação efectiva
não tem uma ordem de comando ou de imposição ao legislador ordinário ou aos juízes
que actuam, de acordo com o princípio de autonomia, conforme demonstrou Hart. Por isso
mesmo, não assegura e não garante que o costume seja, de facto, aplicado num caso
concreto ou constem nos códigos, conforme reconheceu Feijó. Para reforçar a aplicação
do costume, seria, por conseguinte, necessário que a própria CRA de 2010 densificasse a
aplicação do costume, através da combinação da regra do reconhecimento com a regra de
obrigatoriedade efectiva, determinando o âmbito da sua aplicação efectiva.
Apesar deste aspecto crítico na operacionalização do costume presente na obra de Feijó,
pensamos que o autor, acima de tudo, apresenta argumentos no sentido da defesa
intelectual da aglutinação do costume e dos valores intrínsecos dos sujeitos africanos na
ordem jurídico-política africana de forma a auxiliar no processo de construção do Estado.
Deste modo, a perspectiva intelectual de Feijó aproxima-se da perspectiva arqueológica de
Estado e de poder de Foucault, porque, segundo Foucault, o poder não se exerce pelo
direito, mas pela técnica. O poder já não se faz valer da lei, mas pela sua normalização,
deixando este poder de [ter um carácter] punitivo, mas sim [a ser exercido] pelo controlo, e que
[estes controlos] se exercem em níveis e formas que ultrapassam o Estado e os seus aparelhos
(Martins e Neves, 2000: 4). Assim, para Feijó, é vital que o costume passe a ser estudado e
adoptado dentro de uma perspectiva institucional e inserido nos dispositivos cognitivos
do Estado africano.
Esta ordem lógica de actuação do Estado não altera o lastro efectivo do Estado como o
elemento, por excelência, de domesticação do meio societal, apenas transformando este
exercício de poder numa performance menos autoritária e coerciva, reduzindo, por
conseguinte, o custo de penetração e legitimação do Estado africano, sobretudo nas
regiões rurais e periféricas. Contudo, o exercício intelectual de Feijó reflectido na obra
não encara, talvez, o maior desafio africano, que é o de compreender se as suas elites são
capazes de alterar o modus operandi, visando um devir africano cujo modus vivendi passa,
necessariamente, por um diálogo entre os valores internos e externos, em plena
articulação intelectual e de pensamento originário. Ou seja, as actuais elites africanas são
capazes ou não de empreender um Estado africano numa realidade complexa e desafiante
em termos culturais, sociais e económicos.
Luanda, 2023