Você está na página 1de 14

AULA 3

DISCIPLINA:

A LUTA DOS AFRO-


BRASILEIROS E DOS POVOS
INDÍGENAS NO BRASIL

Prof. Yuri Berrí Afonso


CONVERSA INICIAL
Nessa aula abordaremos alguns temas relativos aos direitos humanos dos
povos indígenas no Brasil. O primeiro tema fala sobre a relação entre a
antropologia e como podem ser os aspectos humanos da cultura indígena.
Depois, destacamos como a etnoecologia tem se tornado um campo de diálogo
entre a ciência indígena e a ciência ocidental, praticada por nós. O terceiro tema
aborda o relativismo cultural, seus principais conceitos e as contradições que
existem numa tentativa de se dialogar com uma cultura que tem outros valores e
perspectivas. Na sequência, falamos das mazelas históricas que assolam os
povos indígenas brasileiros. Para finalizar, discutimos alguns conceitos
relacionados às artes indígenas, e os comparamos aos da arte sob perspectiva
ocidental.

CONTEXTUALIZANDO
Apesar dos avanços em relação à legislação sobre os direitos dos povos
indígenas, e de existirem as declarações universais dos direitos humanos, existem
muitos fatores que precisam ser compreendidos nas diferenças culturais no que
se refere ao que são, de fato, os direitos humanos. Esses estão muito além das
leis e das regras, geralmente são estabelecidos e formalizados a partir de uma
concepção universal. Porém, para entender os diferentes significados do que são
os direitos humanos, precisamos compreender o funcionamento das
singularidades de cada etnia. Nós, da sociedade envolvente, e eles, povos
indígenas, precisamos aprender um novo “idioma científico” se quisermos
valorizar as diferenças, e fazer com que elas contribuam com nosso dia a dia. A
vida dos povos indígenas não está baseada no acúmulo de bens, de modo que
seus anseios e perspectivas são diferentes dos nossos. É o que percebemos
quando tentamos comparar nossa perspectiva sobre o que é arte e o que não é.
O relativismo cultural tenta, de certa forma, promover uma forma respeitosa
ao dialogarmos com culturas diferentes. E o diálogo é um dos caminhos mais
importantes para a solução de conflitos e a compreensão das diferenças.

TEMA 1 – ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS


Atualmente, existe um cenário muito complexo em relação à criação de um
padrão que proteja e garanta os direitos humanos dos povos ao redor do mundo.

02
Porém, existe uma grande contradição quando avaliamos as ideias propostas por
esses movimentos e as relações éticas que existem dentro de cada população.
Uma pergunta frequente nessa discussão é a possibilidade dos valores morais de
um determinado povo substituir as propostas de leis e as validades do que se
considera direitos humanos. Cada população tem seus próprios valores morais,
que muitas vezes não estão de acordo com as regras criadas fora dessas
comunidades.
Se observarmos a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) sobre os povos tribais e indígenas em países independentes, que
foi ratificada no Brasil em 2002, podemos notar que, embora seja prevista a
aceitação dos costumes das sociedades indígenas, esses costumes não podem
contradizer os direitos definidos pelo sistema jurídico nacional nem os direitos
humanos reconhecidos internacionalmente. Dessa forma, existe um certo grau de
indefinição, ao se embarcar no pluralismo que a própria convenção define. Faz-
se, assim, a necessidade de negociação quando as características das regras,
leis e dos direitos humanos consideram algumas práticas indígenas intoleráveis.
Segundo Segato (2006) apesar das recomendações específicas e do
pluralismo no reconhecimento das formas tradicionais de resolução de conflitos,
a Convenção não percebe como equivalentes, ou do mesmo nível, as normas
tradicionais baseadas em práticas e valores culturais dos povos indígenas e as
leis de âmbito estatal. Ressalte-se que o tema do pluralismo jurídico é muito
complexo e inclui polêmicas fundamentais para o uso regular da Constituição.
Para Segato (2006), apesar do interesse pela regulamentação de
procedimentos jurídicos que considera a pluralidade de concepções dos diversos
povos que habitam nosso país, devemos salientar que o direito moderno se
encontra em conflitos com alguns costumes dos povos originários, sociedades
simples, e também na própria cultura ocidental. Realmente, a lei entra em colisão
com a moral estabelecida em sociedades que consideramos “modernas”. É o caso
da consideração de uma sociedade patriarcal em detrimento da mulher, ou em
relação à discriminação de povos negros, ou pessoas com deficiência física.
Diversas leis e regras foram criadas para diminuir as discriminações. Essas leis
entram em conflito com os valores da sociedade que costuma, por exemplo,
discriminar as pessoas por sua orientação sexual. Nesse sentido, segundo Segato
(2006), a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher das Nações Unidas, adotada pela Assembleia Geral da ONU em
1979, é clara ao determinar, no art. 5º, que
03
[...] os Estados-Parte tomarão todas as medidas apropriadas para [...]
modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres,
com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas
consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na
ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em
funções estereotipadas de homens e mulheres. (ONU, 1979)
De acordo com Segato (2006), querendo ou não, esse artigo expressa
normas e regras que são contraditórias com os valores morais da sociedade
ocidental, que sempre teve como objetivo inferiorizar a mulher quanto a seu papel
na sociedade. Dessa forma caímos em um dilema. As regras morais estabelecidas
por sociedades originárias também devem ser alteradas pela perspectiva
universal de igualdade? Nesse caso, percebe-se que é difícil alterar os direitos de
um dos gêneros, ou das sociedades originárias, sem consequências para a
sobrevivência e a continuidade de todo o grupo como unidade política e
econômica (Segato, 2006).

Hoje, mais do que nunca, com todas as evidências incontestáveis da


diversidade sistemas de valores e visões de mundo, reunidas pelos
etnógrafos durante um século de antropologia, devemos perceber
claramente a distância e a diferença entre moral e lei, entra sociedade
nacional e comunidades morais. O costume “nativo”, tanto dos povos
originários quanto da sociedade ocidental, não pode ser considerado
equivalente à lei que é constantemente gerada e alterada como
consequência das lutas entre grupos de interesse dentro das sociedades
nacionais e da comunidade internacional (Segato, 2006).
Para efeito de reflexão, podemos considerar que as leis estão, em
relação à moral, como mecanismos a fins de resolver alguns problemas de
desigualdades sofridas por determinados grupos. Porém, a lei prevê uma
alteração do comportamento moral. Nessa perspectiva, podemos entender que a
formulação das novas leis altera o comportamento da sociedade, alterando
também suas formas de reproduzir valores sociais e, por fim, suas formas de
produção econômica.

TEMA 2 – ETNOECOLOGIA E DIREITOS DOS POVOS: ELEMENTOS DE UMA


NOVA AÇÃO INDIGENISTA
De acordo com Peter Little (2002), nos últimos quinhentos anos passamos
por diversas formas de governo em nosso país, como: a era colonial, o
imperialismo e a república. Durante esses períodos elaboramos diversas
maneiras de lidar com a diversidade sociocultural representada pelos povos
indígenas. Segundo Little (2002), durante esse longo período, houve uma grande
oscilação entre a desvalorização quase total dessa diversidade, através de
guerras de conquista, escravização e extermínio, até sua supervalorização

04
romântica, que caracteriza as sociedades indígenas como formas de uma pureza
natural não contaminadas pela civilização.
No final do século XIX e início do século XX ocorreu o surgimento das
ciências sociais. Com isso, essa enorme diversidade sociocultural passou a
receber documentação etnográfica em estudos realizados por antropólogos,
missionários e exploradores. Esses estudos estavam relacionados à ideia de
resgate cultural, a fim de registrar mitos, línguas e práticas das sociedades
indígenas antes de seu total desaparecimento.
Porém, um aspecto pouco analisado nos primeiros contatos entre europeus
e povos indígenas foi sua capacidade de interação com o meio ambiente, isso não
está contido na questão da interculturalidade, mas da intercientificidade. Da
mesma forma que a cultura indígena era rejeitada pelos povos europeus, sua
ciência também foi tratada como inferior, porém o intercâmbio científico entre
esses povos também teve suas características próprias. Apesar de o europeu
considerar sua ciência única e inquestionável, em determinado momento o
intercâmbio científico teve duas vias. Afinal, para se adaptar e sobreviver os
europeus precisaram recorrer ao conhecimento expressado pelos povos
indígenas, pois sua sobrevivência e continuidade de exploração do território
brasileiro dependia desses conhecimentos.

Na atualidade, ainda existe uma bifurcação em relação ao conhecimento


científico apresentado por povos indígenas e a sociedade dominante. Na
perspectiva das ciências naturais e de seus praticantes – agrônomos,
engenheiros florestais, médicos etc. –, o discurso da superioridade da
ciência ocidental continua predominando, e é ele que fundamenta as
práticas de extensão dos técnicos ligados ao âmbito tanto
governamental quanto missionário. Ao mesmo tempo, surgiu uma
variante ecológica de romanticismo que postula que as sociedades
indígenas representam um exemplo vivo de harmonia com a natureza, o
que, discursivamente, transformou-as em uma espécie de “selvagem
ecologicamente nobre”. Esse romanticismo é problemático porque
propõe novamente uma naturalização das sociedades indígenas,
grosseira simplificação que dificulta a compreensão das complexas e às
vezes contraditórias relações ecológicas mantidas pelas diferentes
sociedades indígenas. (Little, 2002, p. 40).
Ainda para Little (2002), um guia, considerado mais efetivo, é o estudo
etnográfico relacionado à ecologia, conhecido como etnoecologia. A etnoecologia
faz parte de um campo maior, conhecido como etnometodologia, que propõe a
suspensão de valores e pré-conceitos do pesquisador para a compreensão mais
profunda das lógicas e estruturas internas de determinada sociedade. Embora os
primeiros conceitos sobre etnociência tenham sido criados na década de
cinquenta, foi nos anos de 1980 que começaram a florescer novas áreas de

05
pesquisas correlatas, como: a etnoecologia, a etnoastronomia, a etnomedicina e
a etnozoologia.
Little (2002) ainda destaca que o diálogo como princípio de interação entre
a sociedade brasileira dominante e as sociedades indígenas gera questões éticas
que ainda não foram confrontadas. Em alguns casos, isso é explicável pela
conjuntura, particularmente no que se refere ao campo da biotecnologia, que criou
novos “direitos” vinculados às novas tecnologias de etnodesenvolvimento e
políticas públicas. Em outros casos, a ação indigenista no Brasil foi desenvolvida
em torno dos interesses e necessidades da sociedade envolvente, que procurava
resolver seus problemas com os indígenas. Entretanto, quando a ação indigenista
tem como início as aspirações das mesmas sociedades indígenas, fazendo do
problema uma oportunidade, as questões éticas voltam para o primeiro plano. Na
tentativa de construir um diálogo, as questões éticas se transformam em um tipo
de limiar: se uma atividade indigenista viola normas éticas básicas, não deve ser
concebida (Little, 2002).

Nesse sentido, a implementação de atividades de treinamento em


etnoecologia e direito forma a base de uma nova ação indigenista que,
pela primeira vez na história do país, procura o estabelecimento de um
verdadeiro diálogo intercientífico. No processo, novos atores sociais
seriam incorporados por ambos os lados do atual abismo intercultural.
Um possível resultado dessa implementação seria a geração de novos
conhecimentos e tecnologias a serem utilizados por ambas as partes.
Em suma, uma nova ação indigenista deve representar uma contribuição
tanto para a autonomia e a auto sustentabilidade das terras indígenas
quanto para a dignidade e a sustentabilidade da sociedade brasileira
como um todo. (Little, 2002, p. 47).
Como base para reflexão, entendemos que a etnoecologia deve ser tratada
como uma via de duas mãos. O diálogo entre cientistas ocidentais e as
comunidades indígenas deve se dar de forma mútua. Apesar das tecnologias
indígenas não serem formalizadas dentro do nosso modelo de ciências, elas
devem ser estudadas sem o preconceito contra os conhecimentos tradicionais.
Porém, para validação dentro da cultura ocidental, os conhecimentos tradicionais
devem confrontar o método científico para que sejam aceitos pelos nossos
cientistas e sociedade.

TEMA 3 – INFANTICÍDIO, RELATIVISMO CULTURAL E DIREITOS HUMANOS


A autora Ana Keila Pinezi (2010) destaca que um rastro terrível de sangue
indígena acompanhou a história da colonização de toda a América Latina. O
genocídio e também o etnocídio, levados a cabo por portugueses e espanhóis,
deixaram uma marca eterna na vida dos povos indígenas.

06
Ainda, segundo a autora, de maneira geral, podemos ver que o contato
entre povos, entre etnias diferentes, aumenta as divergências e, não raro, o
conflito violento. O contato entre etnias, como os portugueses e os povos
indígenas, provocou a destruição de boa parte da população e da sociedade
indígena, sem contar a matança feita pelos colonizadores, seja pelas armas de
fogo, seja pelas doenças por eles disseminadas (Pinezi, 2010).
Como se não fosse suficiente tudo o que ocorreu no passado, a situação
do índio no Brasil é bastante precária. O indígena tem sido excluído da condição
básica de cidadania e do acesso às formas mais básicas de sobrevivência, como
direito a terra, educação e saúde.
Apesar de o encontro cultural entre colonizadores e povos indígenas ter
marcado um período de dominação, houve, sem dúvida, uma relação de troca de
elementos culturais, em que etnias em contato assimilaram determinados
costumes e valores umas das outras, em um processo de dinâmica cultural
(Pinezi, 2010). O que pretendemos demonstrar diante disso é que apesar de o
índio ter se submetido aos colonizadores, eles não apenas receberam a cultura
do europeu, como também influenciaram a cultura dos colonizadores. Os padrões
culturais foram alterados, tanto dos colonizadores, quanto dos povos indígenas.
Pinezi (2010) ainda afirma que a mudança cultural faz parte da cultura viva.
A mudança pode ocorrer intrínseca à própria cultura, se adaptando a novos
valores morais, necessidades naturais, novas leis e regras, ou por meio de
influência externa, como o contato com outras culturas.
As trocas culturais entre sociedades diferentes é algo bastante comum e
importante, pois permite que os membros de uma determinada sociedade pensem
sobre como organizam sua vida social, sobre seus preconceitos e revejam seus
modus vivendi. A dinâmica cultural significa um dado fundamental para toda e
qualquer sociedade e é um sinal de que a cultura está viva, em plena saúde. Ao
se falar em relação interétnica, há uma questão que se relaciona diretamente com
ela que é o relativismo cultural (Pinezzi, 2010).

O relativismo cultural é uma teoria que implica a ideia de que é preciso


compreender a diversidade cultural e respeitá-la, reconhecendo que
todo sistema cultural tem uma coerência interna própria. Originalmente,
a concepção de relativismo cultural tinha seu uso relacionado a um
princípio operacional, metodológico. Assim, o relativismo cultural é um
instrumento metodológico fundamental para que o pesquisador realize,
em culturas diferentes da sua, um trabalho antropológico sério,
compreendendo que os traços culturais têm um significado e compõem
o sistema cultural daquele grupo social, ou sociedade. (Pinezi, 2010, p.
3).

07
Os problemas surgem quando o relativismo cultural é tratado de forma
radical ou absoluta, e assim seus princípios são retirados do processo
metodológico. Pinezi (2010) explica que essa forma radical e extremada de
encarar o contato intercultural prevê que o mesmo não deve ocorrer, pois
considera que o contato intercultural sempre é maléfico para uma das duas partes
devido à imposição cultural. Dessa forma, não é raro posições contrárias às
relações entre sociedade envolvente e etnias indígenas. Essas relações, passam
a ser sempre vistas como destrutivas para o elo mais fraco da relação, no caso,
as etnias indígenas. Isso acarreta que: uma relação dialógica pode ser obstruída
se tiver como base a suposta preservação de uma pureza cultural (Pinezi, 2010).
No entanto, isso nos leva a uma pergunta: Como devemos tratar as etnias que
ainda não foram sondadas e não sofrem pressões da sociedade envolvente?
Devemos dialogar com elas? Ou preservar sua pureza? Dessa forma, a
radicalização do relativismo cultural deve prevalecer?
Sobre diferentes olhares possíveis em relação ao relativismo cultural,
podemos alegar que eles seriam uma medida ética no processo de pesquisa, pois
prioriza a neutralidade entre as culturas que se relacionam. Em relação a esse
ponto de vista, Cuche (2002, p. 240) diz que:

O relativismo ético pode corresponder às vezes à atitude reivindicadora


dos defensores das culturas minoritárias que, contestando as
hierarquias de fato, defendem a igualdade de valor das culturas
minoritárias e da cultura dominante. Mas, geralmente, ele aparece como
a atitude elegante do forte em relação ao fraco. Atitude daquele que,
assegurado da legitimidade da sua própria cultura, pode se dar ao luxo
de uma certa abertura condescendente para a alteridade. (Cuche, 2002,
p. 240).
Como afirma Ana Keila Pinezi (2010), pensarmos sobre a relação entre os
colonizadores e os povos indígenas nos leva, automaticamente, a pensar em
todas as explorações que os povos indígenas sofreram durante esse processo, e
também em outro momento, quando as sociedades indígenas sofreram pressões
culturais de outros grupos, como os religiosos, os militares e a república, sempre
com a visão de produção de lucros, ou vantagens. No entanto, a questão que se
coloca é que seria justo e expressão de respeito aos direitos fundamentais das
etnias indígenas que, na atualidade, esses povos pudessem usufruir dos
benefícios dos “civilizados” e ter acesso às condições fundamentais de cidadania.
No entanto, há uma contradição entre direitos humanos e o relativismo
cultural. Enquanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
estabelece direitos universais (como o direito à vida), que estão acima das

08
particularidades de nação, ou etnia, o relativismo cultural dá ênfase à
particularidade das culturas e seus valores (como a prática do infanticídio). Esse
confronto tem defensores nos dois lados. Uma das formas de se resolver essa
polarização de ideia é através do relativismo cultural, ou seja, o diálogo entre as
partes, que torna possível a superação de conflitos e o comum acordo entre
diferentes culturas.
Quando duas culturas diferentes dialogam pressupõe-se que existe um
contato entre elas, esse contato origina uma troca de informações e alteração
cultural, ao contrário do que postula o relativismo cultural. Por isso, não se pode
caracterizar o relativismo cultural como princípio absoluto, mas como uma forma
que possibilita o encontro cultural de forma respeitável. Ou seja, no contato entre
duas culturas ocorre, muitas vezes, a transformação cultural, porém, se o direito
a essa transformação cultural não for respeitado, entendemos que o direito à
diferença se torna um dever. Segundo Pinezi (2010):

As culturas não são totalmente dependentes ou totalmente autônomas.


Na verdade, quando se pensa em relação dialógica entre culturas
diferentes, a ideia é a de que as sociedades são interdependentes e de
que a dinâmica cultural tem a ver, em grande parte, com o contato entre
elas. (Pinezi, 2010, p. 5).
Portanto, o relativismo cultural deve ser relativizado a um ponto em que o
diálogo entre duas culturas permita o respeito e suas alterações provocadas por
esse contato.

TEMA 4 – MAZELAS HISTÓRICAS


Se acharmos que nosso objetivo aqui, na nossa rápida passagem pela
Terra, é acumular riqueza, então não temos nada a aprender com os
índios. Mas se acreditarmos que o ideal é o equilíbrio do homem dentro
de sua família e dentro da comunidade, então os índios têm lições
extraordinárias para nos dar (Villas-Bôas; Villas-Bôas, 1994).
Segundo Bueno (2016), a partir do advento da Constituição de 1988, um
novo paradigma foi positivado no direito brasileiro: a palavra interação consolidou-
se no lugar das expressões integração ou assimilação. Isso foi extremamente
significativo para o estabelecimento de respeito aos direitos dos povos indígenas
pela sociedade envolvente e pela própria Justiça, tendo esta última a obrigação
legal de enxergá-la como detentora de direitos diferenciados.
O universo indígena ainda não é valorizado como deveria. Infelizmente, a
invisibilidade indígena persiste, o que contribui para o surgimento e manutenção
de várias mazelas criadas pelos não índios.

09
As ideias de que os costumes, conhecimentos e hábitos da cultura dos não
índios são superiores, e que, portanto, o modo integracionista seria o caminho
correto, não foi abandonado. Muitos políticos, intelectuais e boa parte da
sociedade sustentam a predominância de nossos costumes sobre os costumes
indígenas, numa postura preconceituosa e arrogante.
Pessoas do meio rural, os sertanistas e os caboclos, sempre sinalizaram
que temos muito a aprender com os povos indígenas. Desde sua relação com a
ecologia, as curas por meio das plantas, a falta de angústia e de pressa entre
tantos outros conhecimentos. Basta sermos mais humildes para recepcioná-los.
Todas essas características, além de serem ignoradas pela sociedade,
muitas vezes são ignoradas pelos próprios profissionais da Justiça. Essa inércia
é muito maior no Ministério Público Estadual, que em geral não enxerga as
comunidades indígenas, e quando enxerga atribui as ações ao Ministério Público
Federal. É preciso demonstrar a importância da atuação do Ministério Público
Estadual nas causas indigenistas.
Além de abordar a questão da competência, cabendo à Justiça Federal as
hipóteses elencadas no art. 231 da Constituição Federal (sendo que os demais
cabem à Justiça Estadual), surgem, diante disso, inúmeras situações em que o
poder Estadual pode contribuir para que os direitos das comunidades indígenas
sejam implementados e as várias dificuldades, ainda hoje tão presentes, como
carência alimentar, alcoolismo e saúde abandonada, deem lugar a um sistema de
autossustentabilidade, tanto na saúde como na educação, sem retirar o direito
desses povos aos saberes tradicionais.
Enfim, é importante garantir que as populações indígenas tenham acesso
aos mesmos benefícios que os não indígenas já usufruem. No entanto, é
importante isso não represente o que as políticas integracionistas representavam,
impondo nossos valores sobre os indígenas para que passem a fazer parte de
nossa forma de produção econômica e de poder. Precisamos oferecer
oportunidades dentro de uma concepção interacionista, na qual uma sociedade
não se julga superior à outra.
O indígena não deve ser compreendido como um ser humano parcialmente
capaz. Especialmente após a Constituição de 1988, ele deve ser visto como
totalmente capaz. Nem por isso a Funai deixa de ser importante para os indígenas;
porém, a instituição precisa ser pensada de outra forma, não como uma tutora que
substitui a vontade deles, mas sim como um órgão de assessoramento.

010
Ao longo da história, as comunidades indígenas do Brasil foram, na maioria
das vezes, desconsideradas pelos governantes e também pela sociedade
envolvente. Quando o indígena era lembrado, o objetivo era lhe tomar as terras,
escravizá-lo, civilizá-lo sob a visão etnocentrista, o fazendo sofrer grandes
perversidades.
As mazelas dos povos indígenas contêm diversos episódios que ocorreram
no período colonial, imperial e republicano. Basta lembrarmos que para alguns
estudiosos o índio representava um obstáculo para a exploração, e que deveria
ser exterminado. Também lembramos que entre 1920 e 1930, na região de Itajaí,
Santa Catarina, existiam os “bugreiros”, que eram indivíduos contratados pelo
poder público, verdadeiros matadores de índios, e que esses banhos de sangue
eram celebrados por autoridades oficiais.
No ano de 1963, em Mato Grosso, uma aldeia foi bombardeada por
dinamites lançadas a partir de um avião. Esse episódio matou diversos indígenas
da etnia Cintas-Largas.
A justiça brasileira, ao longo desses cinco séculos, pouco ou quase nada
fez em relação às comunidades indígenas. Advogados, membros do Ministério
Público Magistrados, ao saberem desses massacres, costumeiramente fechavam
os olhos, como se esses seres não fossem humanos, tal qual se fazia na época
da colonização portuguesa, quando se dizia que os indígenas não tinham alma.
Felizmente, essa letargia da nossa justiça soreu uma modificação,
podendo-se constatar uma postura mais proativa em relação a casos envolvendo
os indígenas. Desde a Constituição Federal de 1988, os indígenas passaram a ter
direitos na qualidade de indígenas e também como cidadãos brasileiros.
Não resta dúvida de que, com o advento da Constituição Federal de 1988,
os indígenas saíram da invisibilidade, passando a ter direitos na qualidade de
indígenas e também de cidadãos brasileiros.

TEMA 5 – ARTE E ARTESANATO INDÍGENA


Quando falamos em arte e artesanato indígena, precisamos reconhecer
alguns conceitos fundamentais sobre o tema. Em primeiro lugar, precisamos
refletir sobre o valor simbólico da arte, tanto para indígenas quanto para
ocidentais. Nossas obras de arte e nossos artesanatos, além de conceitos
artísticos e estéticos, tem um valor simbólico que, muitas vezes, também
representa um valor material. Os povos indígenas têm outra relação com artefatos

011
ou linguagens gráficas produzidas por eles. Além disso, é importante lembrar que
as palavras arte e artesanato por vezes nem existem nos vocabulários de algumas
etnias. Também é valido destacar que nós (de cultura ocidental) fazemos uma
diferenciação entre arte e artefato, enquanto os indígenas não distinguem
nomenclatura entre objetos que podem ser utilizados e objetos que servem
apenas para serem contemplados.
Segundo Cremoneze (2016):

Podemos falar em artes indígenas, dadas as singularidades da


manifestação de cada povo indígena, seja quanto às formas de
manipular. Também podemos reconhecer, e chamar de arte, as formas
de manipular os componentes dessas produções (pigmentos, plumas,
fibras vegetais, argilas, sementes), quanto aos suportes dessas
expressões (além de artefatos, construções paredes rochosas e o
próprio corpo). Também não podemos deixar de mencionar a arte
material (construções, artefatos) e da cultura imaterial (música e dança).
(Cremoneze, 2016, p. 48).
Nós, da sociedade ocidental, costumamos nos referir às artes indígenas
como artesanato. Esse termo pode estar relacionado ao fato de minimizarmos as
expressões e os símbolos contidos na produção indígena. Na perspectiva do
artesanato está incutida a ideia de que o artesão não produz nada novo, apenas
reproduz a expressão tradicional.
O desconhecimento da diversidade de significados e singularidades do
universo indígena quando nos referimos à arte tem favorecido a ideia de que os
indígenas não produzem arte, mas artesanato. No entanto, a partir da análise de
artefatos, percebemos que esse campo de pesquisa é muito vasto, e tem
desconstruído essa premissa, ao notarmos que as produções indígenas, além de
uma linguagem própria, também demonstram uma grande dinâmica cultural.
Quando a discussão se volta ao que produz (artesão, ou artista), não
percebemos a especialização de um membro da comunidade em relação à
produção artística, eles continuam a exercer as mesmas funções que os demais.
Todos os indivíduos de uma sociedade podem se tornar artistas, no entanto,
existem os que se destacam, esses ganham status de mestres (Lagrou, 2010).
O uso de artefatos, adornos ou pinturas corporais também encontra uma
regra lógica dentro do grupo. Alguns adornos e pinturas são determinados pela
faixa etária, gênero, função específica de cada indivíduo. Certos enfeites,
inclusive, são de uso determinado pelo nome da pessoa.
A arte estabelece uma ligação entre o profano e o sagrado, tendo em vista
que as expressões artísticas não estão presentes apenas nos artefatos sagrados,
mas também nos objetos que são usados no dia a dia (Langdon, 1992). Podemos

012
perceber isso ao constatar que a linguagem artística encontrada em objetos do
cotidiano está relacionada com os mitos criacionistas (Cremoneze, 2016).
Em relação à reprodução e continuidade da cultura, também existe a
preocupação com o ensino de técnicas e conceitos aos mais jovens. Nesse
sentido, os mais velhos são responsáveis não somente por ensinar as técnicas de
produção, mas também devem orientar em relação à matéria-prima utilizada para
cada tipo de artefato, ou pintura.
Na cultura Guarani, a casa de reza é um elemento muito importante, pois
dentro dela são realizados os rituais, os cânticos e as danças. A casa de reza
também é um local muito importante para a formação da pessoa. A própria
construção da casa é um processo de produção de um artefato que segue os
conceitos da cosmovisão guarani. Em seu interior, diversos elementos são
indispensáveis, como os instrumentos musicais para realização de rituais.
Quando falamos de arte indígena não podemos ignorar a arte rupestre
(pinturas e gravuras). Além de conterem relatos sobre as experiências vividas,
lições do dia a dia e representações simbólicas, elas também são de grande
importância no resgate arqueológico e foram fundamentais na tentativa de
compreender como as Américas foram povoadas.

FINALIZANDO
Nessa aula abordamos alguns aspectos que nos levam a entender a
relação entre culturas diferentes. Esses aspectos nos levam a diversas questões,
como: Os direitos humanos universais podem ignorar a singularidade de cada
etnia? Nesse confronto existem opiniões divergentes sobre os verdadeiros valores
dos direitos humanos, pois, ao determinar direitos humanos universais, estamos
agindo de forma etnocentrista, e não respeitamos as minorias culturais, que
continuam caladas diante da manifestação desses direitos.

013
REFERÊNCIAS

AFONSO, G.; CREMONEZE, C.; BUENO, L. Ensino de história e cultura


indígenas. Curitiba: Intersaberes, 2017.

BUENO, l. As lutas dos povos indígenas no Brasil. In. AFONSO, G. B. (Org.).


Ensino de história e cultura indígenas. Curitiba: InterSaberes, 2016.

CREMONEZE, C. Princípios norteadores para o ensino de história e cultura


indígenas. In. AFONSO, G. B. (Org.) Ensino de história e cultura indígenas.
Curitiba: InterSaberes, 2016.

CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002.

LITTLE, P. E. Etnoecologia e direito dos povos: elementos de uma nova ação


indigenista. In: LIMA, A. C. S.; BARROSO-HOFFMANN, M. (Orgs.).
Etnodesenvolvimento e políticas públicas. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria/LACED, 2002. p. 39-48. Disponível em:
<http://laced.etc.br/site/arquivos/03-Etnodesenvolvimento.pdf>. Acesso em: 26
maio 2017.

PINEZI, A. K. M. Infanticídio indígena, relativismo cultural e direitos humanos:


elementos para reflexão. Revista Aurora, São Paulo, 2010. Disponível em
<http://www.pucsp.br/revistaaurora/ed8_v_maio_2010/artigos/ed/2_artigo.htm>.
Acesso em: 26 maio 2017.

SEGATO, R. L. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento


da expansão dos direitos universais. Maná, n. 12 v. 1, 2006, pp. 207-236.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v12n1/a08v12n1.pdf>. Acesso em:
26 maio 2017.

014

Você também pode gostar