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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”.

Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

“Vivemos uma época de fascismos


derivativos”. Entrevista especial com
Óscar Guardiola-Rivera

Facismo en Mexico | Foto: Francisco/Flickr CC

Por: João Vitor Santos | Tradução: Isaque Gomes Correa | 19 Fevereiro 2020

Quando nos vemos diante de elementos tais como plágio de discursos de Joseph Goebbels
e rompantes totalitários, racistas, machistas, xenofóbicos e homofóbicos, parece não haver
dúvida: estamos bem próximos do que conhecemos por fascismo. Mas não o do passado,
uma espécie de neofascismo, ou um fascismo do século XXI. Mas, especificamente, do que
se trata? Para o filósofo e jurista colombiano Óscar Eduardo Guardiola-Rivera, trata-
se de “uma época de fascismos derivativos”. “Emprego o termo ‘derivativo’ aqui em seu
sentido capitalista financeiro”, explica. “Um derivativo é algo que pode ser precificado com
base no valor de algo mais que permanece subjacente e, como tal, pode ser negociado
como uma aposta contra alguém em relação a um preço futuro especulativo”, completa. E,
logo, compreende que “as nossas políticas não mais se sustentam com base em contratos
sociais e naturais, mas também, ou antes ainda, com base em contratos derivativos”.

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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Ao longo da entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Guardiola-Rivera se



detém a observar como o fascismo, o nazismo e o totalitarismo do passado usaram das
imagens para sustentar suas narrativas e como essas práticas vêm se ressignificando no
neofascismo. “Versões anteriores do fascismo, o tipo hitleriano e mussoliniano da
década de 1930, ou mesmo o tipo das décadas de 1960 e 1970 que conhecemos tão bem no
Brasil e noutros lugares das Américas, não são o que conhecemos hoje”, reitera. No
entanto, percebe que funcionam não como um cadáver, mas uma espécie de “morto-vivo”
que ainda impõe força à sua presença. “Funcionam como aquilo que subjaz, subordinado,
que morreu impregnado com o renovado contrato de morte entre o nosso capitalismo atual
em crise quase terminal e os teatros da política repletos de espetáculo com uma ‘esfera
pública’ moribunda”.

Estudioso da realidade latino-americana, Guardiola-Rivera também analisa os


movimentos ao sul do continente em 2019 em perspectiva a esse avanço do “fascismo
derivativo” pelo mundo. Aliás, movimentos que podem inspirar saídas ou mesmo revelar
resignações. “O Chile e a Colômbia mostram o caminho para os filhos e filhas,
especialmente as filhas, despertando dos sonhos dos nossos pais. A Bolívia foi um golpe.
Agora está sob uma forte panelinha viciosa, racista, religiosamente fanática. Enquanto
isso, os intelectuais falam da pureza das definições”, avalia. Já o caso da Venezuela, para
ele, é de um golpe abortado, ainda agravado pelo “risco de uma catástrofe humanitária,
como as sanções desumanizantes impostas pelos EUA aprofundam as condições que já
podem estar havendo”. “As Américas estão em chamas neste momento. Uma tentativa de
traçar uma nova linha global. É um tempo de conflitos”, resume.

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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Guardiola-Riv era (Foto: Renegadeinc)

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera é filósofo, jurista e escritor colombiano crítico da


globalização e do colonialismo. Seu livro “Si Latinoamérica gobernase el mundo” (RBA
Libros, 2012) ganhou o Prêmio Frantz Fanon em 2010, quando da publicação das
primeiras edições.

Atualmente é professor de filosofia política, estudos latino-americanos, política e direito


internacional na Birkbeck College, Universidade de Londres.

Estudou direito na Pontificia Universidad Javeriana e, ainda quando universitário,


participou da mobilização estudantil denominada "Sétima cédula" que influenciou
especialmente a abertura política, social e institucional a um novo processo constituinte na
Colômbia em 1991. É doutor em Filosofia pela Universidade de Aberdeen, na Escócia,
onde defendeu uma tese sobre Marx, a consciência e problemas de ética. É colaborador de
diversos jornais, entre ele The Guardian e El Espectador.

A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU,


no dia 31-01-2020.

Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Qual a relação entre o fascismo e as imagens desde a



modernidade?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Sabemos que os fascistas das décadas de 1930 e


1970 não poderiam ter angariado o apoio que tiveram sem suas imagens e gestos teatrais
amplificados por meio das ondas de rádio e televisão. O fascismo é coterminal com a
degradação do ser para dentro do ter e, então, para o parecer, motivo pelo qual, longe de
ser anticapitalista, ele pareceu se enervar contra o dinheiro e o desejo, ao mesmo tempo
que se aproveitou da miséria do desejo provocada entre a classe média, em particular pela
percepção dela de que ter mais dinheiro permite desejar as oportunidades de contornar
todas as proibições morais impostas à maioria dos que não o têm pela maioria dos que têm
quando estes assumiram o poder.

Hoje, as imagens tornaram-se imagens de si mesmas, e os neofascistas são cópias dos


fascistas do passado, investindo em formas derivativas do fascismo. Para evitar
analogias impróprias entre estes e aqueles, devemos enquadrar as transformações em
rádio, imprensa e, especialmente, os dados demográficos da televisão. Em particular, a
fragmentação ou “dividuação” (em oposição à individualização, mas mais próximo do
fatiamento dos indivíduos por classificação de crédito e outros esquemas de seguro) da
massa-público do entretenimento de massa tecnicamente reproduzido ao longo de linhas
de classe e estratificação educacional. De modo crucial, isto ficou marcado pela ascensão da
programação a cabo e, mais tarde, da mediação social digital, em dança balética com a
tribalização política fomentada pelos proprietários oligopolistas de meios de comunicação
como Fox News, O Globo ou Facebook.

Hoje, as imagens tornaram-se imagens de si


mesmas, e os neofascistas são cópias dos fascistas
do passado - Óscar Eduardo Guardiola-Rivera

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As pessoas esquecem que é daí que alguém como Donald J. Trump vem. A sua primeira
aparição foi no “Today Show”, com Tom Brokaw, em 1980, trazendo uma versão
amansada de si mesmo. Isto já era passado quando ele recebeu o segmento “Mondays
with Trump” na Fox & Friends, tornando-se o principal apresentador de O Aprendiz,
que ficou 14 anos no ar. Este último antecipou o modus operandi do atual regime [do

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programa televisivo da MSNBC] “1600 Pennsylvania Avenue”. Paulo Ghiraldelli


traçou uma ascensão semelhante no caso de Jair Bolsonaro. Mas a lição é não os
classificar
como meros idiotas. Eles não são. Os seus gestuais e a imagem da imagem gestual devem
ser levados muito a sério.

IHU On-Line – De que forma o fascismo se apropria dos discursos imagéticos


para propagar e consolidar seus valores e perspectivas?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Do mesmo modo, a imagética é a máscara que


permite que os públicos esqueçam as batalhas pelo dinheiro após os beijos e após “ocultar
– como se fosse suja – a necessidade de amor e prazer”, conforme observou Pierre
Yoyotte. O fenomenólogo latino-americano foi um dos melhores comentadores e críticos
do fascismo. O argumento que ele traz é o de que as emoções sobrevivem a partir de
máscaras, não de realidades. Sabendo que são incapazes ou não estão dispostos a dar
muito em termos de satisfações materiais aos eleitorados potenciais e reais, recorrem ao
emocional ou ao tipo falsamente religioso. Este último têm a vantagem de uma “pré-
história”. Escondida atrás da letra da lei, uma tal pré-história (de soberanos reais, heróis de
guerra e líderes fálicos a gritar com toda a força) domina o presente de forma ainda mais
implacável.

A imagética é a máscara que permite que os


públicos esqueçam as batalhas pelo dinheiro após
os beijos e após “ocultar – como se fosse suja – a
necessidade de amor e prazer” - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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Walter Benjamin, talvez o crítico e analista mais afiado da imagem entre os séculos, notou
isto quando falou a propósito dos escritos de Kafka sobre violência preservadora do direito.
Que os fascistas e neofascistas pouco podem dar em termos de bem-estar material é, no
entanto, exatamente o ponto central. A igualdade capitalista não é, na realidade, inimiga,
de forma alguma, da exaltação histérica das pessoas que temem que, ao escapar do feitiço
do ocularcentrismo (cartesiano, colonial) das nossas sociedades de finanças e espetáculos,
irão perder tudo. O fato é: este último desconhece a felicidade do pensamento quando este
se liberta da dependência de uma ontologia de apego a algo.

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Na verdade, trata-se de uma ontologia da anexação por adesão, que também significa que o

nosso fascínio pela abominação com a imagem pode remontar até às gravuras e aos mapas
feitos sob as convenções da perspectiva linear da Renascença, como os mapas e as
crônicas de Américo Vespúcio ou como a gravura que Theodor de Bry fez para o livro
“Warhaftige Historia”, de Hans Staden. Para que não nos esqueçamos, este último foi
o “livro iluminado” mais popular de sua época na Europa. Kant e outros podem ter baseado
os seus escritos geográficos e pedagógicos no poder destas imagens, as quais condenavam
os apetites supostamente excessivos e culinários dos homens e mulheres ameríndios,
quem, aos olhos dos europeus, eram considerados menos do que humanos ou, em todo
caso, infantis. A obra foi também a base para a justificação da guerra e da pilhagem nas
Américas, sob observação (quer dizer, visual) puramente “pragmática” e “empírica”. De
certo modo, o segundo escolasticismo nos brinda com antecedentes obscuros para as
justificações contemporâneas das guerras “híbridas” e dos golpes políticos “suaves”.

IHU On-Line – Quais os desafios para desvelar os discursos fascistas


orquestrados através de imagens?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Por um lado, para relegar estes recursos retóricos
como tolice. Por outro, para acreditar que basta parar de assistir à TV Trump para acordar
do sono no sofá. Nada disso funciona. Na verdade, estas coisas não se opõem. Levar a sério
tais recursos retóricos não nos torna conformistas ou conservadores. Assim como manter
uma distância segura ou irônica da TV Trump e do espetáculo não nos torna
progressistas, muito menos um revolucionário.

É por isso que os pseudoargumentos de críticos falsos como Mario Vargas Llosa contra
aquilo que ele chama de “sociedades do espetáculo” erram totalmente o alvo (parece que
ele não leu os situacionistas, muito embora empregue a terminologia deles; e se leu, pior
ainda). Como diz o meu amigo e colega da Birkbeck College Slavoj Žižek, a marca
própria da ideologia, hoje, é exatamente a coincidência destes supostos contrários. Eles
não são contrários, de forma alguma, mas aspectos da mesma ideologia: a ideologia da não
ideologia.

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Beyond Borders Scotland Interviews 2013 - Dr Oscar G…


G… 

A interseção de tais opostos é o fato de que aqueles que nos abordam com as suas
afirmações e notas supostamente não ideológicas não precisam acreditar em seus “valores”
e restrições morais. Este não só é o caso de que estes são para os outros, as pessoas que
eles consideram ignorantes o suficiente para precisar de espetáculo e salvação do
espetáculo. Mas também, ou antes, eles podem sempre suspender ou contornar a
confiança destas pessoas em tais valores e costumes. O dinheiro oferece tantas
oportunidades de desejo como a abundância de oportunidades que frequentemente se
sobrepõe às restrições morais. Para dizer nos termos de um famoso pregador, ou pastor,
episcopaliano: “Não acredito; tenho fé”. Apenas que o objeto real da fé não é o Filho –
Jesus, o judeu que ficou ao lado dos pobres contra o império –, mas o Pai vingativo e
zangado ou, mais precisamente, o dinheiro (Mamom, para os antigos).
Deus dinheiro
É evidente que Deus não está morto. Ele simplesmente se transformou em dinheiro, que é
um “equivalente universal”. Isto é, a imagem de uma imagem capaz de transformar tudo e
todos em uma imagem deles mesmos. De novo, aqui reside a raiz daquilo que a imprensa e
o pseudojudiciário (falso exatamente porque também não é independente) chamam,
moralizando-o, de “corrupção”. Prefiro evitar a moralização da política, tanto quanto evito
a sua estetização. Não é o caso de que as pessoas e os políticos, de direita e esquerda, são
corruptos porque carecem de um código básico de ética. Este tipo de visão abstrata da ação
corresponde meramente à abstração e ao encerramento da imaginação em nossas
sociedades de finanças e do espetáculo. Pelo contrário, é o motor das nossas sociedades

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atuais – adquirir cada vez mais dinheiro para contornar as proibições morais que nos
impusemos sobre nós mesmos e sobre as pessoas – que explica a “corrupção”. 

É evidente que Deus não está morto. Ele


simplesmente se transformou em dinheiro, que é
um “equivalente universal” - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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É o mesmo negócio de sempre, com o perdão do trocadilho. Isto também explica por que as
medidas gradualistas de melhorias da pobreza não bastam. Pois, tão logo colocamos
dinheiro no bolso das pessoas, trazendo-as para além de algum (imaginariamente criado)
limiar da pobreza, elas agirão conforme o movimento impulsionado daquele mesmo
motor. Ou seja, irão querer mais e ser mais como os bilionários que, por causa da riqueza,
podem passar por cima das restrições morais. Não estou dizendo que a pobreza não é real.
Ela é muito real, e o sofrimento que ela provoca é bastante real. O que digo é, em primeiro
lugar, que a pobreza não é só um problema socioeconômico determinado pela privação de
dinheiro, mas também um tormento sociopsicológico que tem relação com – mas que deve
ser diferenciado do – problema anterior em sua essência e em seus procedimentos.
Cultura do consumo de imagem
Movimentos e partidos progressistas devem se perguntar como lidar com esses dois casos;
as soluções para eles não são as mesmas. Na verdade, remediar somente o primeiro pode
agravar o segundo. O Partido dos Trabalhadores, no Brasil, está aprendendo esta lição à
maneira difícil. Mas não são os únicos. Em segundo lugar, digo que temos testemunhado
em nossos dias a transposição dos próprios direitos humanos do reino da mobilização
política para o da cultura popular em massa. Esta cultura, que é uma cultura do consumo
de imagem, supõe e espera que a proliferação das imagens de agonia e sofrimento levarão
as pessoas da apatia à empatia.

Mas esta mesma cultura também diz aos públicos de consumidores de imagens que eles
realmente não devem ser culpados por causa da relação que têm com os perpetradores e
beneficiários das injustiças do passado ou pelo locus que ocupam em relação aos eventos
históricos de pilhagem e genocídio (incluo o tipo cultural, muito embora o direito
internacional atual tende a reduzir o significante “genocídio” ao tipo físico). Ela processa a
responsabilidade das pessoas em termos de não estarem sendo empáticas ou atenciosas
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para com os fatos. Aprisiona a responsabilidade ético-política e a possibilidade de corrigir


erros históricos nas imagens do noticiário, das classificações e distinções entre ascoisas
“superflua, ephemera e utilitas” (que são, na verdade, originalmente teológicas,
remontáveis à obra de Agostinho).

Temos testemunhado em nossos dias a


transposição dos próprios direitos humanos do
reino da mobilização política para o da cultura
popular em massa - Óscar Eduardo Guardiola-
Rivera

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Isto nos coloca em rota de colisão com a história. Encerra o futuro assim como encerra a
nossa capacidade de memorializar e imaginar modos mais ricos, utópicos ou “eucrônicos”,
se me permitem usar este meu neologismo (de eucronia). O incêndio no Museu Nacional
de Antropologia, do Rio de Janeiro, os incêndios na Amazônia este ano, o fato de que
proprietários de terras no Rio Grande do Sul estão realizando leilões enquanto falamos
para comprar armamentos visando armar milícias (ou “paramilitares”, como dizemos na
Colômbia) a fim de sair e “caçar” indígenas, o fato de que o mesmo há pouco aconteceu
na vizinha Bolívia e tudo o que intelectuais e jornalistas (esquerda, direita, decoloniais,
nem tão decoloniais, etc. ad nauseam) puderam fazer foi debater se foi ou não golpe e
quem era mais puro no próprio raciocínio do que os outros, são reveladores a respeito do
estado em que se encontram os mais pobres em relação à indigência do nosso desejo e da
nossa imaginação.

IHU On-Line – Atualmente, vivemos uma ameaça de reedição do fascismo?


Por quê? E no que consiste esta ideia de neofascismo?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Como dito acima, em vez da reedição do


fascismo, vivemos uma época de fascismos derivativos. Emprego o termo “derivativo”
aqui em seu sentido capitalista financeiro. Um derivativo é algo que pode ser precificado
com base no valor de algo mais que permanece subjacente e, como tal, pode ser negociado
como uma aposta contra alguém em relação a um preço futuro especulativo. Um derivativo
é um contrato. As nossas políticas não mais se sustentam com base em contratos sociais e
naturais, mas também, ou antes ainda, com base em contratos derivativos.

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O neofascismo é o mais recente a erguer a sua cara feia. Nesse sentido, não precisamos de

fato acreditar em nada do que sua boca de merda fascista jorra aqui ou ali. Podemos
acreditar ou não. Podemos acreditar, se formos Luis Alfredo Camacho ou Jeanine
Añez – a “presidente” autodeclarada da Bolívia –, ou podemos não acreditar. Uns dizem
que Trump, na realidade, não acredita. Outros, como Cornel West, afirmam que
Trump é um supremacista branco e não tenho motivos para duvidar do brilhante Doctor
West (quem, aliás, apareceu num filme; a saber, The Matrix). Em todo caso, versões
anteriores do fascismo, o tipo hitleriano e mussoliniano da década de 1930, ou mesmo o
tipo das décadas de 1960 e 1970 que conhecemos tão bem no Brasil e noutros lugares das
Américas, não são o que conhecemos hoje. Funcionam como aquilo que subjaz,
subordinado, que morreu impregnado com o renovado contrato de morte entre o nosso
capitalismo atual em crise quase terminal e os teatros da política repletos de espetáculo
com uma “esfera pública” moribunda.

O neofascismo é o mais recente a erguer a sua


cara feia. Nesse sentido, não precisamos de fato
acreditar em nada do que sua boca de merda
fascista jorra aqui ou ali - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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Os situacionistas previram isso, os surrealistas negros, antes deles e Jürgen Habermas


depois, entre outros. Nas Américas, eles se apresentam vestidos de terno e gravata (não
mais em uniformes verdes e de tons escuros), destacando o não rosto dos âncoras dos
noticiários televisivos padronizados e carregando a cruz e a bandeira nacional em lugar da
suástica. Estas pessoas não precisam mais apagar a cruz de Jesus nem bombardear
estações de rádio, como Pinochet e seus capangas em 1973. Pelo contrário, simplesmente
guardam os seus bastões policiais dentro da cruz, segurando nas mãos os Evangelhos
enquanto ordenam que a polícia use suas armas e cassetetes para massacrar indígenas e
outros “indesejáveis”, e assim o fazem diante da imprensa. Eles sabem que mesmo se o
público ou parte dele considerar esta postura “politicamente incorreta” ou mesmo racista e
nojenta, muito rapidamente a imprensa e estas pessoas irão esquecer e seguir em frente
para a próxima fotografia a mostrar a agonia de outro alguém (normalmente, em algum
outro lugar no sul global).
O conforto da distância, os deslocados, os mortos e os desaparecidos
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O que significa que nós, como parte do tipo público, podemos permanecer no conforto

seguro da nossa distância irônica, olhando para todas estas coisas em nossos aparelhos de
TV. Pelo menos até que, por coincidência ou não, acabemos no outro lado. Então, é claro,
será tarde demais. Nós colombianos deveríamos saber. Aqui estamos nós. Sete milhões de
deslocados. Duzentos mil mortos. Oitenta mil desaparecidos, se não mais, mais do que
todas as ditaduras do cone sul juntas. E somente agora alguns de nós começam a despertar
do sonho dos nossos pais. De novo, nunca é tarde para começar. Contra Horkheimer, que
ensinava que o passado estava acabado, que o sofrimento estava acabado, a nossa relação
com a memória e a história é uma relação de incompletude. Os projetos interrompidos do
passado podem ser intensificados e reativados precisamente porque a história não acabou,
não ainda.

De novo, nunca é tarde para começar. Os projetos


interrompidos do passado podem ser
intensificados e reativados precisamente porque
a história não acabou, não ainda - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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Recorro não à esperança, mas a um princípio-esperança. No sentido forte do termo


“princípio”: não só um novo, mas também diferente começo, e um começo capaz de
conduzir este princípio à sua futura realização, dando-lhe consistência. Eis uma concepção
bastante diferente da imagem, da memória e da história. Devemos ela aos nossos
ancestrais ameríndios e aos nossos ancestrais afro-latino-americanos em interlocução com
antropólogos como Manuela Carneiro da Cunha ou sociólogos como Orlando Fals
Borda e filósofos como Enrique Dussel. Alguns destes estão realizando “viradas
estéticas” por si próprios. No sentido das práticas artísticas de pessoas como Oscar
Murillo, Carlos Motta, Gabriela Cunha, Marcia Wayna Kambeba e DJ Nkisi. Os sons e
as representações performativas deste último nos devolvem a visibilidade que o
ocularcentrismo tirou e saqueou.

IHU On-Line – Como analisa o avanço da ultradireita no mundo?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Como o momento da maior fraqueza do


capitalismo de hoje, que também é o momento do nascimento e renascimento dos sujeitos

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larvais. O segundo caso, em sua fraqueza aparente (tornada aparente pela imprensa
convencional a desaparecer) não apenas sobreviveu aos ataques mais violentos, mas pode
transcender a formas econômicas e políticas sem a necessidade de destruição.
Recentemente invoquei um dos meus orientadores, o ex-reitor da Birkbeck College e
historiador latino-americanista Eric Hobsbawm, quem está entre os pouquíssimos que
interpretaram esta figuração fundamental do interesse perene de Karl Marx nas chamadas
“formações arcaicas”. Algo do tipo pode surpreender muitos dos “autonomistas” e
“decolonialistas” da esquerda desencantada, também não poucos marxistas típicos e,
evidentemente, os próprios neofascistas. Todos eles gostam de usar as cartas antimarxistas
e antiesquerdistas, exatamente no momento em que o “socialismo” – ou mesmo o
“comunismo” – se torna assunto entre as conversas mais uma vez ou pela primeira vez em
muitos anos em lugares como os EUA e a Inglaterra.

Não importa o que aconteça nas eleições destes países, esta paisagem diferente que surge
não irá embora. Essa é a maneira como o capitalismo aumenta os esforços nas suas
apostas remanescentes. Eis como vejo a “ascensão” da ultradireita no mundo. Isso quer
dizer que não podemos ignorá-los e não podemos esperar que vão embora porque as
nossas estruturas democráticas farão o que devem fazer (impeachment, deliberação,
imprensa responsável etc.). As nossas estruturas estão também muito fracas. Cabe a nós
intensificar o valor e a importância delas, e o valor e a importância de tudo o que existe.
Especialmente aquilo que é, mas não ainda. São os desejos do passado, que servem como
significado, contexto e orientação das nossas ações no presente de forma a produzir o
futuro diferente.

OSCAR GUARDIOLA-RIVERA on "Humanitarian" Interes…


Interes…

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A resposta ao problema do avanço da alt-right e da ultradireita é nossa, é uma inventio. É



preciso criar instituições diferentes e reinventar aquelas que existem em estado de
incompletude ou mesmo de fracasso. Nesse caso, então poderemos optar pela “pureza”
(ideológica ou não ideológica), como no puro horizontalismo, ou na pura ecologia
profunda, ou ainda no puro não extrativismo, ou teremos condição de pedir por uma
pureza moral no estilo da esquerda e centro-esquerda “mais santa do que vós”,
característico das nossas culturas de destaque, dos direitos humanos e da impunidade.
Atitudes assim acabam, quase sempre, levando água aos bastardos. Não existe
autoafirmação alguma antes de deliberar com eles. Se formos empregar o termo
“negociações” aqui, seria no sentido derridiano: tomar posição. No caso de o leitor não ter
percebido, já estamos em guerra. Mas não podemos lutá-la de acordo com as regras deles.
Fazer isso seria concordar com a derrota mesmo antes de entrar no campo de batalha.

Já estamos em guerra. Mas não podemos lutá-la


de acordo com as regras deles. Fazer isso seria
concordar com a derrota mesmo antes de entrar
no campo de batalha - Óscar Eduardo Guardiola-
Rivera

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IHU On-Line – Se as imagens foram importantes para a propagação de ideais


fascistas, podemos considerar que as redes sociais e a internet têm papel
central nas estratégias da ultradireita?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Os casos da Cambridge Analytica (cujas práticas


já se normalizaram) e as atuais encarnações da aliança de vigilância conhecida como Five
Eyes [1] , bem como aquilo que muitos chamam Condor II nas Américas, lançaram luz
suficiente sobre o papel das redes sociais e da internet. Esta última, nas mãos de oligarcas e
oligopólios, serve como câmara de eco e para os propósitos de direcionamentos capilares
de grandes públicos em nível mundial. A solução, uma vez mais, não é desligar a TV
Trump, o Facebook e o Instagram. Mas produzir câmaras de eco por nós próprios,
novas ressonâncias sonoras juntamente com cerimoniais e cosmologias diferentes
acompanhadas por estados intensificados ou alterados, ou mesmo psicodélicos, de
consciência no combate à inconsciência capitalista/colonial.

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Por que não? Pesquisas recentes mostram que saturar estruturas cerebrais em altos níveis

com neurotransmissores reduz a capacidade delas de regular a atividade de baixo nível. O
resultado é uma maior conectividade entre partes diferentes do cérebro. O farmacólogo
Robert Carhart-Harris traçou um paralelo entre o controle excessivo de cima para
baixo dos processos cognitivos que os agentes psicodélicos interrompem e a influência
destrutiva do capitalismo impulsionado pela imagem industrial sobre os ecossistemas
cognitivos e planetários. Também, em um congresso realizado recentemente na Europa,
Gal Bradbrook, um dos fundadores da Extinction Rebellion, propôs uma ingestão
massiva de remédios psicodélicos como um ato de desobediência civil contra o sistema
baseado na “escassez, separação e impotência”.

A solução, uma vez mais, não é desligar a TV


Trump, o Facebook e o Instagram. Mas produzir
câmaras de eco por nós próprios - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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É claro que as crises são questões políticas, econômicas, jurídicas e sistêmico-culturais, e


que as soluções devem igualmente ser políticas, econômicas, jurídicas e culturais. Mas a
forma como concebemos as soluções e os princípios que podem orientar estas soluções
exigem que vejamos que, neste sistema de coordenadas, as coisas não mais recaem em
seus supostos lugares próprios. Além disso, que um tal sistema está dentro de nós, em
nossa autovitimização constante, acompanhada da autoafirmação do tipo Jordan Peterson.
Mudança de perspectivas e consciência
Se sim, os remédios psicodélicos, as experiências sônicas, os novos cerimoniais, as práticas
artísticas são oportunidades para nos ajudar na mudança de nossas perspectivas e
consciência. Que tal um ato massivo de obediência como aquele, guiado por nossos
mamos [2], nossos palabreros [3] e nossos homens e mulheres médicos aqui nas
Américas? Que tal realizarmos eventos como o festival “Nature Loves Courage” [4],
transformados através dos nossos rituais, não mais como mera distração ou zona
autônoma temporária? O objetivo? Descolonizar a imagem como disse Silvia Rivera.

IHU On-Line – Qual a sua análise do avanço da direita conservadora na


América Latina? Existe uma relação mais próxima com a ascensão da
ultradireita na Europa ou nos EUA?
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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Na realidade, a ultradireita latino-americana  do


sul pode ter se inspirado nas ultradireitas do norte global. A filósofa Linda Martin Alcoff
publicou certa vez que, apesar de todo este ódio declarado pela comunidade latina,
Donald J. Trump foi influenciado e inspirou-se nos “homens fortes” do sul do Rio
Bravo. Pessoas como o notório Álvaro Uribe Vélez, da Colômbia. Em troca, Trump e
Bannon, com a imensidão dos recursos que têm ao dispor, ajudam, mais certamente, no
avanço dos ultraconservadores em nosso meio, de uma maneira que nem sequer ainda
conhecemos.

Neste momento, essa ajuda tem sido decisiva nas Américas. Vejamos a Venezuela, a
Bolívia e o Brasil. Mas também em uma direção inteiramente diferente no Chile e na
Colômbia, mais recentemente. O caso de Álvaro Velez mostra que estas pessoas não são
eternas, apenas contingentes, do tipo estátuas de Ramsés à luz do espetáculo, mas com os
pés de barro... Estão desmoronando. Vejamos a “Colectiva Feminista en
Construcción”, em Porto Rico, no começo deste ano e a “Colectiva Lastesis”, nas ruas
do Chile também este ano. O dedo a apontar para o líder fálico, a gritar com toda a força de
seus pulmões, revela-lhe aquilo que todos são: imperadores sem roupas.

IHU On-Line – O avanço da direita sobre a América Latina é estratégico no


controle geopolítico? Por quê?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Porque, durante a última década de meia, a


América Latina mostrou que existe uma outra forma de liderar o mundo em direção a um
mundo diferente, governar no sentido próprio de “guiar” e “mediar”, ou facilitar, como
afirmo em meu livro What if Latin America Ruled the World [E se a América Latina
governasse o mundo]. Este livro recebeu todo o tipo de elogio, prêmios e aclamação da
crítica na Europa; foi traduzido no todo ou em parte e é uma vergonha que não tenha
alcançado o público brasileiro com uma tradução apropriada. Eu adoraria a oportunidade
de atualizar as suas teses em termos dos desdobramentos mais recentes aqui, no Brasil e
em outros lugares. Pois há, evidentemente, uma lógica estratégica para fazer avançar a ala
ultradireitista na América Latina com a finalidade de recuperar o controle sobre o
hemisfério ocidental, e domar/conter as iniciativas de integração regional da fronteira sul
dos EUA.

Esta lógica é bastante simples: cada um por si, divididos e isolados, os países e povos das
Américas perdem-se e se submetem por outros cem anos de alienação exploradora, como
Gabriel Garcia Márquez tão bem explorou em sua literatura. Nenhum outro escritor nas
Américas alcançou alturas literárias e político-históricas como este. Talvez com a exceção
de Chico Buarque, que está dando o seu melhor e que é bem-conhecido por isso. Mas
certamente não os escritores do tipo Vargas Llosa, cuja obra empalidece se comparada, não
importando os elogios ou títulos reais espanhóis, especificamente quando se trata de suas
pretensões político-filosóficas – que são apenas isso, pretensões.
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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Felizmente, existem pensadores e teóricos atuais muito melhores entre nós. Todos nos
ajudam a entender que isto é o controle, mas não no sentido do marionetista e de suas
marionetes. Claramente não em sentido antiamericano, ou da teoria da conspiração. Isso é
o escopo de uma ficção ruim. Em vez disso, os porquês e para-quês da geopolítica do
hemisfério ocidental têm tanto a ver com a política dos “nossos dedos para todos os lados,
as nossas digitais em lugar algum” de Washington desde, pelo menos, o auge com Henry
Kissinger, quanto com as inclinações das nossas próprias elites que parecem incapazes de
coexistir com as regras democráticas ou mesmo existir em seus próprios lugares.
Incapacidade para existir
Inferno, eles parecem incapazes de existir! Existir aqui, quero dizer, em suas próprias rotas
históricas cultural e existencialmente criolizadas. Eles parecem querer ser espanhóis,
portugueses, ingleses ou americanos, loiros clareados ou brancos mascarados. Nunca
ameríndios nem negros, nunca crioulos. Motivo pelo qual o nacionalismo deles é imitação
barata, uma outra máscara, simbolizando a “armadilha” da qual Frantz Fanon nos advertia.
Querem transar com a esposa do senhor. Pedem pela intervenção do senhor. Clareiam os
cabelos, usam máscaras e vão às ruas protestar com a babá negra a reboque, esta
carregando o carrinho de bebê, todos do tipo “Poder Femenino”, “Liga Crucenista”,
“fascismo nos trópicos”, “Tradição, Família e Propriedade”, “professores antiesquerdistas”,
“machões com armas em punho de pinto pequeno”, temendo a castração pelas verdadeiras
feministas e devorando os próprios filhos e filhas como uma antropogafia de Saturno.
Aquela sobre a qual Gabriel Garcia Márquez escreveu nos anos 1950, quando disse das
“posibilidades de la Antropofagia”.

Parecem querer ser espanhóis, portugueses,


ingleses ou americanos, loiros clareados ou
brancos mascarados. Nunca ameríndios nem
negros, nunca crioulos - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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Este tipo de controle não é o da vulgata marxista. É mais a do tipo que Fichte denunciava
na Alemanha, quando alertou que as guerras expansionistas tendem ao combate por duas
razões: primeiro, para tornar as classes média e outras cúmplices nas vitórias infantis do
tipo marciais contra os desejos primários, que dotam o líder fálico e suas hordas ou
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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

satisfações místicas com a aparência de um paraíso. Segundo, para distraí-los da carência


a um
de satisfações materiais em casa pelo gesto enganador de criar um bode expiatório
“inimigo da nação” imaginário, interno ou externo. Como o dos “professores comunistas”
ou “Leo Di Caprio”. Suely Rolnik está certa: eis o controle no nível da inconsciência
capitalista/colonial. O que é, evidentemente, o anverso perverso da pilhagem bem
consciente a fim de manter vivas as economias enfermas do norte no norte e no sul, ao
mesmo tempo pacificando o sul no norte e o sul no sul. Não sou eu quem diz isso. Mas o
próprio Trump.

IHU On-Line – Como analisa o caso brasileiro neste contexto?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Esta resposta precisaria de um livro


especialmente dedicado a ela, o que eu ficaria feliz de fazer se tivesse a oportunidade. Por
enquanto, digamos apenas que o Brasil se tornou a quinta ou sexta maior economia do
mundo durante a última década e meia; que Lula, independentemente do que as pessoas
pensem de sua “pureza”, foi e ainda é, de acordo com muitos, o político mais popular do
mundo, o que é um grande feito numa época de políticos profundamente impopulares;
que, se estivéssemos em uma praia em algum lugar do mundo, se olhássemos para baixo
veríamos chinelos Havaianas, e se olhássemos para cima, veríamos um avião da Embraer;
que os alunos brasileiros de doutorado brilhavam nas universidades inglesas e francesas
(eles ainda brilham, com grande sacrifício pessoal); que o BRICS estava prestes a ficar de
pé por suas próprias forças, que é aquilo que toda sociedade madura faria; que fui
convidado pela Intelligence Squared [empresa de mídia que organiza debates e eventos
culturais em todo o mundo] para falar sobre se o próximo capítulo na história do mundo
seria escrito pelo Brasil ou pela China (sinto muito, fui um defensor terrível, não acredito
em história linear).

Também, que não haveria nenhum Podemos na Espanha e nenhum Corbyn na Inglaterra,
nenhum Syriza na Grécia sem as visitas de Costas Douzinas ao Brasil e sem a “inspiração
latino-americana”; que há tanto no Brasil que pode ser (a) privatizado, (b) vendido para a
oferta mais alta de apostas, (c) saqueado; que o Brasil não é exatamente um país quanto o
é um subcontinente; que o Bolsa Família poderia ter sido transformado em um grande
experimento em nível nacional na questão dos serviços básicos universais e da Renda
Básica Universal, caso o PT tivesse mantido o foco; que este programa tirou milhões de
pessoas da linha da pobreza – o que é um evento a entrar para a história –, mas depois não
pensou o dia seguinte; que, mais uma vez, confundimos a miséria econômica com a
miséria do desejo, e assim fazendo acabamos cometendo (o PT, em particular) um erro
fundamental.

Ainda, que a esquerda brasileira, como um todo, caiu na armadilha da esquerda “mais
santa do que vós” e no horizontalismo e desencantamento no primeiro sinal de fracasso ou
carência; que, por causa de tudo isso acima e apesar da minha hipérbole, o Brasil não é um

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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

caso singular, mas em sua especificidade faz parte do quadro mais amplo descrito acima.
ético e
Que, por causa disso tudo, os brasileiros têm tudo para evitar cair no buraco negro
político em que nós colombianos caímos. Que os brasileiros podem agir assim. Que não é
tarde demais. Nunca é tarde. Pois ninguém conhece o final da história antes de ele
acontecer.

A esquerda brasileira, como um todo, caiu na


armadilha da esquerda “mais santa do que vós” e
no horizontalismo e desencantamento no
primeiro sinal de fracasso ou carência - Óscar
Eduardo Guardiola-Rivera

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IHU On-Line – O ano de 2019 foi extremamente intenso na América Latina.


Como analisa os cenários do Chile, da Venezuela, do Equador, da Colômbia e
da Bolívia?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – O Chile e a Colômbia mostram o caminho para os


filhos e filhas, especialmente as filhas, despertando dos sonhos dos nossos pais. A Bolívia
foi um golpe. Agora está sob uma forte panelinha viciosa, racista, religiosamente fanática.
Enquanto isso, os intelectuais falam da pureza das definições. A Venezuela passou por um
golpe (abortado), mas o risco de uma catástrofe humanitária, como as sanções
desumanizantes impostas pelos EUA aprofundam as condições que já podem estar
havendo, permanece tão real quanto a dignidade dos que permaneceram e dos que saíram.
As Américas estão em chamas neste momento. Uma tentativa de traçar uma nova linha
global. É um tempo de conflitos.

As Américas estão em chamas neste momento.


Uma tentativa de traçar uma nova linha global. É
um tempo de conflitos - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU


IHU On-Line – Como a história da globalização se atualiza hoje na América
Latina? E de que forma as novas tecnologias impactam neste novo capítulo na
história da globalização?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Pode ser uma boa ideia fazer uso do projeto de
Enrique Dussel para a destruição da moral formalista e da história da ética, e defender uma
“virada estética” no projeto e na mudança decolonial como um todo. Este é o tema de um
livro que estou preparando, que é bastante adequado para conectarmos as histórias da
globalização atualizadas nas Américas e a questão das chamadas novas tecnologias.
Podemos reinterpretar o critério material de Dussel de uma ética da libertação, o corpo
vivo, sensível e inteligente, de acordo com esta ideia benjaminiana. Isto é, em termos da
conexão do corpo com o tipo de imagética cosmológica evocada na esteira de sua palestra
na Universidade de Murcia.

Como um reconhecimento de que, fundado em uma variedade de contrastes (como eu-


você, acima-abaixo, leste-oeste, norte-sul), o corpo humano, suas partes e funções, irá
aparecer ou vir a estar presente como signos icônicos, não meros símbolos ou imagens de
imagens, mas semelhanças prováveis ou imagens verdadeiras (cf. o coração como o lugar
do desejo e da iluminação do sol, segundo a analogia “assim na terra como no céu”), que
são indicadores de verdade e vetores da memória-habilidade para atos históricos ou
eventos.

Isto é extremamente importante para o propósito da nossa investigação sobre as condições


da redenção dos erros históricos fora dos contextos dados da cultura popular e do
espetáculo em massa. Pois assumir o corpo vivo como paradigmático, um modelo de
imagens que fazem justiça histórica às injustiças do passado, é compreender que a
memória nunca é uma relação com um passado acabado ou uma história que já findou.
Contra Horkheimer, mas também contra a cultura atual dos direitos humanos e da
justiça transicional (para os quais “a injustiça passada ocorreu e está acabada”), a história
de Dussel, inspirada em Benjamin, não é simplesmente uma narrativa linear, feita e
polvilhada, calculável e previsível ou gerenciável de acordo com as convenções da
perspectiva linear. É também uma história, forma teatral da memória (Eingedenken); uma
rememoração que “pode transformar o inacabado (a felicidade) em algo acabado, e o
acabado (o sofrimento) em algo inacabado”, como Benjamin diria (Benjamin, Arcades, n.
8, 1, 471).
Ação para correção de erros históricos
Mas, diferentemente de Benjamin (pelo menos, em sua primeira fase), não necessitamos
de teologia para fundamentar uma perspectiva sobre a história como redenção. Podemos
pensar a respeito e agir para corrigir os erros históricos do passado como uma opção que

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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

pode se redimir no sentido material próprio das nossas práticas financeiras: extraindo um
preço do governo e beneficiários atuais das injustiças passadas como um prêmio com o
qual apoiar a realização dos desejos passados hoje. As reivindicações históricas inacabadas
ou não realizadas do passado funcionam como o elemento subjacente de uma opção que
pode ser negociada na atualidade.

Em outras palavras, aos que dizem “as injustiças do passado ocorreram, uma e outra vez; a
história está acabada, viremos a página”, podemos responder: “Dizem que a história se
repete. Mas a história é uma his-story [história de alguém], e vocês não ouviram a minha
ainda”, como Sun Ra diz no vídeo de arte coletiva “Race for Space”, de Soda_Jerk. A
reativação de possibilidades e desejos específicos do passado, encarnados nos corpos reais
a protestar nas ruas, põe um risco aos mercados de capitais tal que estes logo se
prontificariam a pagar para resolver as injustiças históricas, o que pode financiar uma
maior justiça aqui e agora, em troca daqueles corpos ou partes deles que não provocam
julgamento final ou revolução, pelo menos não por enquanto.

A descrição que faço da justiça histórica, como uma opção, e da política democrática, como
negociações, reúne elementos daquilo que Dussel chamaria de teologia da libertação em
combate com as chamadas teologias da austeridade e prosperidade, mas não em termos da
palavra reveladora de Deus. Antes, ela rearticula esta dimensão reveladora em termos do
testemunho e da denúncia da carência em nossas sociedades e instituições atuais (que é o
que os defensores dos direitos humanos e as comunidades lutam para ter), combinadas
com a visualização de como seria a plenitude nestas sociedades, o que é o que os artistas e
líderes comunitários “proféticos” fazem – contadores orais de histórias, palabreros, xamãs
etc. –, mas também historiadores imaginativos e cientistas sociais ou teóricos investidos
quando escrevem utopias ou retratam outros mundos e uma eucronia alternativa via
imagens chocantes.

Nesse sentido, refiro-me a imagens do “mundo de cabeça para baixo” ou performances que
deslocam a normalidade espaçotemporal dos espectadores abordando-os como
participantes, um outro público diferente daquele que é espectador do espetáculo do
consumo, e produzindo um futuro diferente. Estas imagens são mais eficazes quando
invocam o modelo do corpo vivo: os desaparecidos, os mortos resistentes, os combatentes
da liberdade e os corpos que se unem nas ruas para protestar. Não como simples vítimas
com as quais simpatizar, mas como agentes de um curso diferente da história que começa a
aparecer nos seus atos sem nenhuma garantia de sucesso ou acabamento. Tais corpos são,
como diria Dussel, um modelo.
Corpo como fonte de analogia
Isso não equivale a dizer que o corpo pode ser lido como uma simples metáfora poética ou
simplesmente em analogia com o criado em relação com a palavra criativa de Deus. Em
nossos tempos, este tipo de poesia tende a ser confuso ou mesmo “demoníaco” se – e

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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

quando – enfatiza uma condição generalizada da vitimização. Uma condição como esta traz
consigo, com bastante frequência, um olhar eterno ad pessimum – uma perspectiva
negativa, um pessimismo existencial. Em vez disso, equivale a dizer que o corpo é a fonte
das analogias e um modelo particularmente apto para uma semiótica cósmica ou história
universal.

Uma tal semiótica da história pode começar com certos binários analógicos (acima/abaixo,
norte/sul, 1%/99%), mas logo parte e encarna em corpos presentes e ausentes que buscam
negociações específicas ou determinadas em sociedade (limitações e lacunas ou faltas
concretas) que podem se comparar com uma plenitude visualizada ou uma imagem
dialética atrativa a fim de unir-se em combate com eles. Esta seria uma imagem capaz de
deslocar coordenadas espaçotemporais e de normalidade. Uma imagem dialética retém a
distinção entre “verdade” como indelével ou irredutível ao mero capricho humano ou
intenção transitória e imagens e discursos “falsos” ou mesmo “demoníacos”. Uma tal
distinção pode ser teológica em suas origens ou mesmo cosmológica. No entanto, em
termos da virada estética que queremos traçar aqui, o segundo termo designa mais
exatamente o tipo de valor ou exibição expositivo (especificamente, a exibição de obras de
arte) que funciona como um trabalho corretivo na socialização: venha e brinque com a
gente, converse, assista, agite, envolva-se em disputas implacáveis.

Se o cerimonial para um ajuntamento e participação parecer ameaçado em outras esferas


(públicas), compensar privilegiando práticas participativas e a coletividade na arte seria um
substituto pálido – falso, até mesmo demoníaco. Uma imagem verdadeira em nossas
sociedades do espetáculo seria uma imagem capaz de questionar ou, pelo menos, de nos
ajudar a fazer um melhor sentido da combinação específica entre os meios de comunicação
da reprodutibilidade tecnológica tais como a TV a cabo ou as mídias sociais digitais, e as
mudanças na demografia (por exemplo, na fragmentação e na estratificação por
classe/formação do entretenimento em massa) e o papel de tais meios (incluindo o
formato dos programas de reality show) na promoção de uma visão de mundo
implacavelmente hobbesiana e politicamente pessimista. Enquanto isso, esta imagem
condensa a sua consciência sobre a atual crise da maneira como juízos, vereditos e
pronunciamentos (justos) são alcançados com o preconceito frequentemente inconsciente
do nosso imaginário em favor da harmonia contra o conflito, a fim de despertarmos dele.

O preconceito inconsciente do nosso imaginário, buscando anatematizar o conflito, ressoa,


mais ou menos de forma secreta, com o sonho (atual, neoliberal) de proibir qualquer outro
regime de governo ou ideologia que não aquele atualmente em vigor. O que é reprimido ou
negado, hoje, é o conhecimento de que não é tarefa fácil persuadir pessoas concretas de
que a escravidão é justa ou que a exploração é agradável. Em vez disso, é melhor
acreditarmos que as coisas são simplesmente assim, inevitavelmente, e que é a única
maneira que elas podem ser.

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Aqui, como em outras ocasiões, a familiaridade de Dussel com a obra de Benjamin e com

o escolasticismo tardio é útil. No segundo caso, estão os mestres modernos originais do
jogo de cartas da inevitabilidade e do gradualismo, como creio que pode ser visto em suas
argumentações relativas à “justiça” da escravidão (africana) e da guerra expansionista que,
com razão, servem como os precursores obscuros das nossas justificações atuais das
formas “zero-hora” de exploração e golpes políticos “soft”, bem como para a nossa
supercompensação da “estética relacional” no mundo da arte e da religião em massa
voltadas às exibições assim como o entretenimento.
Imagem dialética
O que uma imagem dialética pode fazer a este respeito? Além de ajudar a melhor
compreendermos estas conexões – históricas, econômicas, sociológicas etc. –, uma
imagem como esta pode ser um indicativo da verdade. Pelo menos na medida em que pode
neutralizar o sentido atual de desorientação e mal-estar sociopolítico. Como? Em primeiro
lugar, como dito acima, ajudando-nos a melhor entender o fato de que o nosso sentimento
de desorientação é um efeito da percepção gradual de que inexiste um ponto de referência
último, nem redenção no final da história, tampouco predestinação.

A experiência que se segue à percepção é vertiginosa – uma experiência de inexistência do


fundamento, de nadidade ou “choque do aberto”, como diria Theodor Adorno. Como tal,
esta experiência e o sentimento que traz consigo podem estar mascarados ou equivocados.
Podem ser cobertos, reembalados, tomados como mais uma commodity na era das
commodities-imagens. E são revendidos para nós como um outro ponto de referência
final.

Mas transformar a nadidade ou a falta de fundamento em um outro fundamento ulterior é


nos sujeitar a um feitiço. O feitiço do imutável. Ele diz: não importa o que fizer, somente
será uma gota de água no oceano. Aquilo que é, é inevitável. Não nos preocupemos em
tentar. Nada muda. Façamos nada. Desejemos nada. Não é este exatamente o feitiço que
os neofascistas e populistas de direita empregam hoje para nos manter acorrentados a um
sistema cujos elementos não se encaixam mais? O nome deste feitiço é niilismo. Um
desejo assim pela nadidade toma conta de nós. Ele age sempre que sabe que não gostamos
da maneira como as coisas são; apenas somos levados a acreditar que esse é o único
arranjo viável e porque este é supostamente o único sistema possível de ordem no mundo,
devemos querê-lo, escolhendo-o sempre de novo. Caso contrário, seríamos os culpados
pelas consequências e merecedores de punição.
Classes média e sua culpa moral
Observemos como, neste caso, uma equivalência de culpa e penitência transfere-se para a
sequência de pensamentos e sentimentos, tornando-nos maduros para uma
contrarrevolução das emoções e ideais reforçados contra o desejo e ridicularizados pelo
dinheiro. Este é especialmente o caso, o estado da situação, para as classes médias

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sobrecarregadas pela culpa moral e pelo desejo de adquirir mais dinheiro e poder de
compra de forma a serem capazes de contornar as proibições morais. Assim como os muito
ricos podem fazer. Aí jaz a raiz da nossa corrupção, se é que podemos empregar uma
linguagem moralizante. Esta situação é o que precisa ser visto.
A resposta da arte
A função da arte nestas circunstâncias é, precisamente, ver através da situação. Mas essa
seria uma arte bastante diferente, uma arte enraizada na classe, uma arte radical, em
combate com o chamado quadro de referência que emerge da geometria analítica de
Descartes e do sistema de coordenadas dos cosmógrafos imperiais em que todos e tudo
teriam o seu lugar próprio; contra o ocularcentrismo cartesiano. Nesse caso, o que uma
arte diferente deve fazer através de suas imagens impressionantes é experimentar com as
demais formas de desejo e explorar um leque muito mais rico de possibilidades. Mais rico
do que aquele que os filósofos (Kant, Hegel e assim por diante) pensavam como possíveis.

Este último tende a reter o ponto de discórdia, o ponto-zero da perspectiva, no sujeito


absolutamente ancorado no lado de fora do quadro teórico, e a reter o imutável
(objetividade) deste quadro. Através deste enquadramento, dentro dele, tudo é capturado e
fica contido. Daí a importância da ideia de imanência, mas também a importância de se
questionar uma ênfase exagerada na imanência. Walter Benjamin, para mencionar uma
das fontes de inspiração de Dussel, não foi somente um pensador da imanência pura. Foi,
como Adorno, um pensador da verdade e transcendência. Para eles e para Dussel, a
verdade é para ser encontrada somente no ato que se lança para longe sem um cinto de
segurança, sem uma cobertura de suas apostas, à fonds perdu. Assim concebida, a
vertigem trazida à existência pelo pensamento e pelo ato (estético e político) que não
consegue acabar e fundamentar-se completamente, ou não consegue se reafirmar, é o
indicador da verdade.

Um tal ato e a verdade de um tal ato não podem garantir, antecipadamente, as coordenadas
da sua presentificação ou realização. É mais como aquilo que, sem cessar, forma a si
mesmo. Autopoiético, no sentido dado ao termo pelos biólogos latino-americanos. É
também a salvação do empirismo, ou melhor, um empirismo da salvação/resgate. Salvar
não é uma questão de pensar sobre o concreto e os detalhes concretos da história. Os atos
de salvação performam e filosofam a partir deles, reunindo conceitos em torno, como
dizem os críticos.

A famosa asserção de Hegel de que o particular é o universal adquire o seu sentido mais
poderoso aqui, na crítica do clichê segundo o qual “a verdade é concreta”, o que muitas
vezes está associado a imagens em nossas sociedades do espetáculo. Estas sociedades
preferem imagens que apenas comunicam a mensagem da realidade predominante.

Nesse caso então a arte não deve atender à mensagem carregada pelo seu conteúdo. E os
artistas não devem desempenhar o papel de preencher as fendas dos vínculos sociais. Isso
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só duplicaria as apostas dos ricos na sociedade do espetáculo em se tornar uma sociedade


dos extras ou, na melhor das hipóteses, dos participantes de um reality show emque
cada um repete as tramas pesadamente roteirizadas da interatividade ilusória (ou
democracia interativa) em canais ainda mais truncados de comunicação.

A arte não deve atender à mensagem carregada


pelo seu conteúdo. E os artistas não devem
desempenhar o papel de preencher as fendas dos
vínculos sociais - Óscar Eduardo Guardiola-
Rivera

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O papel e ação da horda


É claro que não há nada interativo em tais tipos de comunicação, que em geral são mais
interpassivos. Neles, as pessoas desempenham o papel da horda. E a horda considera
como bruxaria tudo o que difere da realidade predominante, como diz Adorno,
preferindo, sob o feitiço, a vantagem de todas as coisas familiares, o lar e a segurança. No
entanto, o lar e a segurança são precisamente as imagens daquele falso mundo. “As
pessoas temem que, ao escapar do feitiço, perderão tudo porque desconhecem a felicidade,
nem mesmo a felicidade do pensamento, além da capacidade de se apegar a algo”, observa
Adorno. Esta “falta de liberdade em perpetuidade” é o que os neofascistas aproveitam e
reinventam (Adorno, [2003] 2008, p. 146).

O que antes o sistema desejava obter para eles, um senso de que tudo recai em seu devido
lugar, um pouco de ontologia em meio à crítica deles contra ela, pode ser encontrado
somente como o outro qualitativamente na arte (política, de origem de classe) que estamos
propondo aqui. Ou seja, dentro de fatos concretos e das ruínas do sistema histórico a
desmoronar, indo de uma catástrofe para a próxima. Tudo está ruindo, mas não há nada
em sentido do qual ruir. Nesta situação, o risco é crer que tudo é estático, que o fim
chegou. Aproveitar-nos deste risco não exige um choque, uma sacudida, como aquela da
consciência psicodélica ou do investimento radical dos místicos, profetas e xamãs.

A atual geração de artistas tem menos medo destes estados de consciência e investimento
radical, que são incompatíveis com o fechamento atual da imaginação. É evidente que eles
e nós seremos acusados de “bruxaria” e de envolvimento em pensamento mágico como o
das mulheres romanas e ameríndias. É o líder fálico a gritar a toda força e a sua “base”, a
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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

horda, quem nos acusa. A propensão dele pela simplificação é a inverdade; a mesma coisa
que fingir ser estúpido. Este esquema tem mercado em nível mundial hoje. 
Artista em oposição
Os artistas que se posicionam contra o mercado, contra o império do mercado no mundo
da arte, e contra “fingir ser estúpido” combatem o feitiço. Certas práticas artísticas e
estratégias estéticas podem forjar uma conceitualização diferente de justiça. Uma
conceitualização liberta da determinação histórica sufocante bem como do feitiço do
ocularcentrismo (pós-)colonial, ou da ontologia da aparência eterna ad pessimum. Eles
não temem escapar do feitiço porque, como os seus irmãos e irmãs que protestam nas
ruas, foram roubados de tudo e nada mais têm a perder. Esperam, ao modo de Bertholt
Brecht, chocar-nos contra uma visão e uma postura exterior a partir das quais a
arbitrariedade e a contingência de qualquer sistema se revelam. Esperam sistematizar a
tradição da revolta, exatamente no sentido do qualitativamente outro: uma alteridade
social. Como pode estar já aparente para os leitores desta entrevista, acredito que as
práticas e os processos artísticos de pessoas como Oscar Murillo e Carlos Motta mais
que alcançam esta qualidade: a veracidade.

Esta veracidade – utopia, festa na natureza que ama a coragem, a eucronia – é sempre
possível ou alcançável, mesmo não sendo compossível nas atuais condições, mesmo
induzindo a uma forma de vertigem existencial. Contra a aparência eterna ad pessimum
que é a moeda hoje, essa visão vertiginosa (a visão do outro) focaliza-se nas fendas
concretas do sistema em ruínas, não preenchidas. Este olhar é metódico, do tipo detetive.
Assim, propusemos também extrair um método para uma ciência do sentido de libertação,
a partir da perspectiva analógico-dialética, de contraste, de Dussel, sobre o corpo como
organismo vivo, faminto, sedento, forçosamente deslocado, rompido e rompedor, tanto
um sistema de sinais quanto aquilo que os sistemas de sinais significam.

IHU On-Line – Qual o papel do Direito, hoje, na consolidação das


democracias latino-americanas? Por que é importante que os operadores do
Direito saibam identificar estas mensagens e ideais totalitários, fascistas e
neofascistas? Como isto pode contribuir para a garantia do Estado
democrático de direito?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – O nosso foco principal no Direito e nas


tecnologias jurídicas de negociação estão nas leis escritas e na persuasão retórica,
especialmente no caso das chamadas democracias de “consolidação” nas Américas. Mas a
“consolidação” e as “culturas dos direitos humanos” agora deram lugar ao lawfare e, talvez
por algum tempo já, também ao “imperialismo legalista”. Importa aos operadores jurídicos
e alunos de direito, como também os demais participantes do sistema jurídico, que
aprendam a identificar e distinguir bem como a ler criticamente as mensagens da alt-right e
de grupos neofascistas, porque o que está em jogo é a própria ideia de Estado de direito.

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Não nos enganemos: apesar de todas as mensagens em contrário, os neofascistas não



fazem justiça, em vez disso eles destroem as instituições. Somos nós que desejamos fazer
justiça e que respeitamos o Estado de direito. Proponho que, para alcançar esta mudança
de ponto de vista, devemos nós nos educar e educar os nossos operadores da lei bem como
os estudantes na arte de ler criticamente as imagens e os emblemas jurídicos uma vez
mais. Como? O nosso foco específico deve estar em formar, daqui em diante, a ideia de que
o ver vem antes das palavras, que podemos aprender a olhar e reconhecer antes de falar,
mas também – e isso é importante – que o ver estabelece o nosso lugar no mundo
circundante precisamente através da exploração da recorrência dos ritmos nos padrões e
sistemas de um mundo no qual os nossos corpos e tudo mais ressoam uns com os outros.
Nesse sentido pelo menos, ver é também ouvir, escutar ondas, e ver é sentir bem como
recursivamente refletir. Daí a importância da ideia da inteligência sensorial, lo
sentipensante, em nossas explorações.

Apesar de todas as mensagens em contrário, os


neofascistas não fazem justiça, em vez disso eles
destroem as instituições - Óscar Eduardo
Guardiola-Rivera

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Afinal, seja audível, seja visual, toda a comunicação é rítmica, como uma dança, em que
recebemos e emitimos partículas em forma de ondas, movimentos. Isto são atos,
transmitindo e recebendo informação através de formas com e sem voz. Se estes atos não
se reduzem a atos de fala (pois podem ser sem voz ou apofáticos), então a força deles não
pode ser compreendida unicamente em termos de performance linguística ou força
repetitiva das convenções estabelecidas, ou outros pontos de referência pragmático-
transcendentais ulteriores.

Em lugar de uma questão de fundamento, de persuasão, a força destes atos reside não
simplesmente na capacidade que têm de resolver o nosso comportamento em relação aos
padrões das convenções, mas na capacidade deles de nos perturbar. E não somente na
capacidade de nos impelir à ação, mas também na capacidade de nos impelir a funcionar
como vetores de transição, um vetor intervalar ou um campo vetorial que assinala a
direção para cada ponto no espaço, abrindo assim o espaço-tempo entre, digamos, este

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ponto e um outro, entre o som e o silêncio, ou entre a ausência e a plenitude. Falamos,


pois, de um retorno a se fazer presente. Um ato nos produz. E o futuro. 
Justiça histórica
Acredito que este insight importa para a questão da justiça em geral, e em particular para a
justiça histórica. Isso porque podemos explicar a justiça em geral em termos da distância
entre o que está em falta na ordem presente e uma ordenação mais completa por vir, bem
como a ressonância no presente entre tal ordenação por vir e ordens normativas
existentes. A justiça histórica em particular lida com os erros históricos do passado que
continuam no presente e como corrigir tais erros. Conforme mostraram teóricos como
Robert Meister, isto requer uma opcionalidade. A justiça histórica é, em si, uma opção
que tem valor hoje, muito embora não seja uma opção que se possa exercitar, pelo menos
não ainda. Em vez disso, o seu valor ou preço vem a se fazer presente na ressonância entre
a possibilidade de se exercitá-lo no futuro e na escolha de não o realizar agora, ou na
distância, que age como uma câmara de eco ou amplificador.

A justiça histórica em particular lida com os


erros históricos do passado que continuam no
presente e como corrigir tais erros - Óscar
Eduardo Guardiola-Rivera

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Esta distância importa, o intervalo histórico em que uma realidade antecipada, vista ou
ouvida, real ou não ainda, vem a estar presente. Em uma sociedade tal como a nossa (uma
sociedade do valor expositório, da disposição e da especulação), fazer justiça em ambientes
democráticos pode ser melhor compreendido como um projeto de intensificação e
realização do valor presente da justiça histórica como uma opção em cenários não
revolucionários. Movimentos de protesto e progressistas fazem isto introduzindo um
choque no sistema, o risco político de o Estado não restaurar a liquidez para os mercados
financeiros, que podem ser precificados e, portanto, segundo Meister, tornam-se o
prêmio político disponível para financiar uma maior justiça que se pode extrair para
permitir ganhos cumulativos das injustiças passadas visando permanecer, ou postergar, a
redistribuição em larga escala por enquanto (Meister, 2011; 2016; 2018).
Diferença

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Chamamos esta distância de diferença. A abertura entre a experiência de repressão, falta e



exclusão, e a visualização da plenitude por vir, que pode dar às vítimas motivos para exigir
a perturbação da ordem estabelecida. A questão crucial para uma política de justiça na área
dos direitos humanos, da recolonização e da financialização é o que acontece neste
intervalo. Ou, em outras palavras, como domar a diferença protegendo-se, desse modo,
contra o risco de que as vítimas ajam radicalmente com base na memória de suas
experiências de repressão ou nos sentimentos de falta e anseio por justiça histórica.

Lembremos, no entanto, que sob as atuais configurações dos direitos humanos e da justiça
transicional é fundamental que as vítimas sejam vistas como dóceis, carentes, exigentes,
sem voz e invisíveis, ou como um sujeito interpassivo. Isso é um indicativo da transposição
dos direitos humanos em si a partir do registro da mobilização política (revolucionária) em
massa para aquele do espetáculo (interpassivo) na cultura popular mundial. Nessa cultura,
a apatia que acabamos sentindo para com a fotografia da agonia e da denúncia sentimental
que domina o noticiário e o marketing das ONGs/direitos humanos deveria ser substituída
pela empatia, a virtude moralmente induzida para sentir a dor dos outros como a nossa
própria dor.

O argumento segue dizendo que se mudassem da apatia para a empatia, os consumidores


de tais imagens iriam se responsabilizar pela permissão da ocorrência da vitimização e pelo
fato de existirem vítimas. A cultura também lhes assegura que eles mesmos podem não ser
diretamente os responsáveis, pois não foram os perpetradores nem eram as vítimas, mas
meros espectadores, os quais simplesmente não demonstraram compaixão alguma ou não
estiveram atentos aos fatos. Em suma, os consumidores nos mercados (das imagens) dos
direitos humanos recebem uma satisfação emocional em oposição a conceder satisfação
material aos desejos das vítimas históricas. As vitórias dos direitos humanos são
emocionais e neste respeito, pelo menos, são vitórias infantis sobre desejos primários, mas
também vitórias que dotam estas emoções e vitórias (como na guerra) com a aparência de
paraíso (Meister, 2011:213; Yoyotte, 2009, p. 43).
Vítimas
É assim que, através de um tal deslocamento, as atuais configurações da política e dos
direitos humanos conseguiram conter todas as antecipações e desejos afetivos de gerações
sucessivas de vítimas. Nesse caso, a questão que os atos estéticos do distanciamento que
nossos críticos e artistas põem em prática e conversam a respeito é a de mostrar-lhes sob
uma nova luz. Não mais como meras vítimas, mas como a própria encarnação da
possibilidade histórica de chocar o sistema. E, como tal, do valor.

Como? Intensificando os seus efeitos anexados às ocorrências e projetos interrompidos do


passado, cursos alternativos da história, ainda latentes mas ainda não realizados. O tempo
se faz presente como incompleto, um intervalo diferencial. No intervalo, aqueles que
sofreram injustiça no passado passam a se ver como uma possibilidade não realizada (a
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possibilidade de trazer plenitude ao invés de uma falta ou de preenchimento da lacuna).


Mesmo se aos olhos dos atuais beneficiários das injustiças passadas eles só podem
aparecer com um risco. Fundamentalmente, em nossas sociedades um tal risco pode ser
precificado. E as antigas vítimas podem negociar as suas reivindicações históricas como se
fossem opções com o Estado e os beneficiários a fim de extrair os prêmios que podem
financiar uma maior justiça em troca de se postergar a revolução por enquanto.

As antigas vítimas podem negociar as suas


reivindicações históricas como se fossem opções
com o Estado e os beneficiários a fim de extrair os
prêmios em troca de se postergar a revolução -
Óscar Eduardo Guardiola-Rivera

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Em outras palavras, o passado como futuro ressoa com o presente e o futuro no passado
pode ser ouvido ou visto. Ele ou ela que age (o espectador-agente, não mais um mero
observador, digamos um manifestante nas ruas da Colômbia em fins de 2019, um
participante em um dos “atos” de Carlos Motta, ou um poeta) não é contemporâneo
porque está familiarizado com o passado, pode restaurá-lo ou rejeitá-lo. Em vez disso, é
contemporâneo porque existe como o resultado de uma série de ressonâncias nas câmaras
de eco da história, movendo-se entre o passado como futuro e o futuro no passado. Este
espectador-agente existe como um “resultado dialético” daqueles conjuntos da existência
passada, para pôr na linguagem hegeliana do teórico do jazz e filósofo surrealista negro
René Ménil. Desse modo, explica ele, ao mesmo tempo o ator ou poeta “é uma negação
viva e uma preservação viva de todas as velhas formas culturais. O seu aspecto
contemporâneo será de um valor mais amplo e maior por causa do fato de ser uma
totalidade do passado”, em ressonância com o futuro.

Pode-se entender isto no sentido de que as tradições culturais refletidas pelo poeta, pelos
artistas ou manifestantes não podem servir como um modelo, dado que inexiste um
modelo daquilo que ainda não se tornou realidade em existência plena. Ele existirá,
entretanto, numa espécie de estado ressonante, vibratório ou ao modo de onda do estado
do passado, situando o poeta, o artista ou o manifestante, inflexivelmente, em seu tempo;
transforma esta pessoa em um agente moderno numa época moderna, ou perigoso em
uma época perigosa. Esta ressonância desbanca as ordens normativas estabelecidas,
reorientando elas e a nós. Um choque para o sistema. É muito para a liberdade e para a
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defesa das liberdades na arte e na política: “diante de nós o futuro, ainda sem forma”
(Ménil, 2009, p. 85). 
Tradição de revolta
Precisamos fazer mais para sistematizar esta tradição poética de ressonância e
deslocamento que é uma tradição de revolta, a qual também acontece de ser uma tradição
ética extremamente relevante para as nossas conjunturas atuais dos direitos humanos,
espetáculo de imagens e financialização. Precisamos trabalhar mais para descompactar
aquilo que se entende por poder de tropos e imagens, vibrações e ressonâncias do tipo
relâmpago. Especialmente na sequência que vai dos deslocamentos brechtianos de
Benjamin, do choque de sistematização da tradição poética da revolta por negros
surrealistas como Ménil ou Simone e Pierre Yoyotte no século XX, até os
deslocamentos acumulados no espaço-tempo da pintura, fotografia, do cinema, das
paisagens sonoras e performances de artistas como Carlos Motta, Melika Ngombe
Kolongo e Oscar Murillo nas Américas de hoje e alhures.

Esta tradição foi passada através dos séculos “pelos poucos rebeldes que contrariaram a
invasão monstruosa” da especulação nos altares do dinheiro, como diz Yoyotte. Ela nos
insta a olhar para a música, o cinema e as artes visuais fora da indústria do entretenimento
não só como uma forma remedial material como também uma terapia de choque com base
no conceito de classe para o sistema capaz de se expandir rapidamente às fronteiras entre
espaços de exibição e espaços de posição e disposição, para fins de negociação em que os
riscos podem ser altíssimos, se não absolutos.
Tradição poética, ética e política
Por meio deste trabalho experimental, descobrimos que esta tradição poética igualmente
acontece de ser uma tradição ética e política. Se estes novos casos parecem “limitados” do
ponto de vista histórico calculista diante de perversões e violações mais numerosas da
dignidade humana, de forma alguma eles são excepcionais. O próprio sucesso do
surrealismo, e a obra de pessoas como Yoyotte, Rivera e Dussel, ou Motta e Murillo,
tendem a demonstrá-lo. Não devemos esquecer – e isto é importante – do retorno dos
rebeldes às ruas das Américas e em outros lugares no fim de 2019.

Começando com uma repressão emocional, “parte ainda pungente da realidade de hoje”,
os negros surrealistas, seus sucessores, e os artistas e críticos que vieram depois dirigiram-
se imediatamente para a “defesa do desejo”, para a inspiração individual em lugar da
aspiração, a soluções e, mais do que isso, a princípios diametralmente opostos ao
mussolinismo da época deles e dos fascismos derivativos dos nossos tempos. Em combate
com a militarização racista de nossos dias, por valor e justiça como uma opção.

Neste empreendimento, o conceito de destruição dos ideais morais, que pego emprestado
de Yoyotte e de Dussel para reinventá-lo na era do espetáculo e das finanças, deveria ser
entendido com sensibilidade e inteligência. Como observa Yoyotte, é profundamente
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contraditório haver uma sociedade sem nenhuma exaltação coletiva ou viver e conformar-
 pela
se com um senso degradado da importância e do valor de tudo o que existe, a começar
dignidade humana. Como revolucionário, como alguém que não se apressa a dar voltas
para garantir a nossa falsa harmonia, mas sim que olha para o movimento do cosmos na
busca de inspiração, eu prefiro a ideia de não apenas uma consciência e uma sociedade
toleráveis, mas historicamente saltitantes e ampliadas.

“A ética do futuro não consistirá na supressão das emoções irracionais”, escreve Yoyotte.
Concordamos com ele. Em vez disso, devemos aproveitá-las para uma política do desejo no
interesse de uma maior justiça, para caminhar de peito erguido e dançar para frente (ao
som das fortes vibrações do échos-monde, de Nkisi) em direção a uma história cheia de
anseios. A fim de aprender a escutar o que os nossos olhos nos falam sobre os padrões e
sistemas de um mundo no qual tudo está em ressonância rítmica, o som pode nos dar de
volta a visualidade e a visibilidade que o ocularcentrismo reprimiu, como diz Nkisi.■

Notas

[1] Ou “Cinco Olhos”, acordo entre Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e
Estados Unidos que visou a cooperação entre os centros de inteligência destes países.
(Nota do tradutor)

[2] Líderes espirituais altamente treinados do povo indígena da Sierra Nevada de Santa
Marta, cadeia montanhosa da Colômbia. (Nota do tradutor)

[3] Figuras centrais na administração da justiça, mediando e negociando conflitos entre


diferentes clãs, pessoas ou organizações do povo Wayuu. (Nota do tradutor)

[4] Evento de dois dias que acontece no sul de Creta, um dos pontos europeus mais
próximos do continente africano. (Nota do tradutor)

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