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Por: João Vitor Santos | Tradução: Isaque Gomes Correa | 19 Fevereiro 2020
Quando nos vemos diante de elementos tais como plágio de discursos de Joseph Goebbels
e rompantes totalitários, racistas, machistas, xenofóbicos e homofóbicos, parece não haver
dúvida: estamos bem próximos do que conhecemos por fascismo. Mas não o do passado,
uma espécie de neofascismo, ou um fascismo do século XXI. Mas, especificamente, do que
se trata? Para o filósofo e jurista colombiano Óscar Eduardo Guardiola-Rivera, trata-
se de “uma época de fascismos derivativos”. “Emprego o termo ‘derivativo’ aqui em seu
sentido capitalista financeiro”, explica. “Um derivativo é algo que pode ser precificado com
base no valor de algo mais que permanece subjacente e, como tal, pode ser negociado
como uma aposta contra alguém em relação a um preço futuro especulativo”, completa. E,
logo, compreende que “as nossas políticas não mais se sustentam com base em contratos
sociais e naturais, mas também, ou antes ainda, com base em contratos derivativos”.
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19/02/2020 “Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU
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Confira a entrevista.
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As pessoas esquecem que é daí que alguém como Donald J. Trump vem. A sua primeira
aparição foi no “Today Show”, com Tom Brokaw, em 1980, trazendo uma versão
amansada de si mesmo. Isto já era passado quando ele recebeu o segmento “Mondays
with Trump” na Fox & Friends, tornando-se o principal apresentador de O Aprendiz,
que ficou 14 anos no ar. Este último antecipou o modus operandi do atual regime [do
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Walter Benjamin, talvez o crítico e analista mais afiado da imagem entre os séculos, notou
isto quando falou a propósito dos escritos de Kafka sobre violência preservadora do direito.
Que os fascistas e neofascistas pouco podem dar em termos de bem-estar material é, no
entanto, exatamente o ponto central. A igualdade capitalista não é, na realidade, inimiga,
de forma alguma, da exaltação histérica das pessoas que temem que, ao escapar do feitiço
do ocularcentrismo (cartesiano, colonial) das nossas sociedades de finanças e espetáculos,
irão perder tudo. O fato é: este último desconhece a felicidade do pensamento quando este
se liberta da dependência de uma ontologia de apego a algo.
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Na verdade, trata-se de uma ontologia da anexação por adesão, que também significa que o
nosso fascínio pela abominação com a imagem pode remontar até às gravuras e aos mapas
feitos sob as convenções da perspectiva linear da Renascença, como os mapas e as
crônicas de Américo Vespúcio ou como a gravura que Theodor de Bry fez para o livro
“Warhaftige Historia”, de Hans Staden. Para que não nos esqueçamos, este último foi
o “livro iluminado” mais popular de sua época na Europa. Kant e outros podem ter baseado
os seus escritos geográficos e pedagógicos no poder destas imagens, as quais condenavam
os apetites supostamente excessivos e culinários dos homens e mulheres ameríndios,
quem, aos olhos dos europeus, eram considerados menos do que humanos ou, em todo
caso, infantis. A obra foi também a base para a justificação da guerra e da pilhagem nas
Américas, sob observação (quer dizer, visual) puramente “pragmática” e “empírica”. De
certo modo, o segundo escolasticismo nos brinda com antecedentes obscuros para as
justificações contemporâneas das guerras “híbridas” e dos golpes políticos “suaves”.
Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Por um lado, para relegar estes recursos retóricos
como tolice. Por outro, para acreditar que basta parar de assistir à TV Trump para acordar
do sono no sofá. Nada disso funciona. Na verdade, estas coisas não se opõem. Levar a sério
tais recursos retóricos não nos torna conformistas ou conservadores. Assim como manter
uma distância segura ou irônica da TV Trump e do espetáculo não nos torna
progressistas, muito menos um revolucionário.
É por isso que os pseudoargumentos de críticos falsos como Mario Vargas Llosa contra
aquilo que ele chama de “sociedades do espetáculo” erram totalmente o alvo (parece que
ele não leu os situacionistas, muito embora empregue a terminologia deles; e se leu, pior
ainda). Como diz o meu amigo e colega da Birkbeck College Slavoj Žižek, a marca
própria da ideologia, hoje, é exatamente a coincidência destes supostos contrários. Eles
não são contrários, de forma alguma, mas aspectos da mesma ideologia: a ideologia da não
ideologia.
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A interseção de tais opostos é o fato de que aqueles que nos abordam com as suas
afirmações e notas supostamente não ideológicas não precisam acreditar em seus “valores”
e restrições morais. Este não só é o caso de que estes são para os outros, as pessoas que
eles consideram ignorantes o suficiente para precisar de espetáculo e salvação do
espetáculo. Mas também, ou antes, eles podem sempre suspender ou contornar a
confiança destas pessoas em tais valores e costumes. O dinheiro oferece tantas
oportunidades de desejo como a abundância de oportunidades que frequentemente se
sobrepõe às restrições morais. Para dizer nos termos de um famoso pregador, ou pastor,
episcopaliano: “Não acredito; tenho fé”. Apenas que o objeto real da fé não é o Filho –
Jesus, o judeu que ficou ao lado dos pobres contra o império –, mas o Pai vingativo e
zangado ou, mais precisamente, o dinheiro (Mamom, para os antigos).
Deus dinheiro
É evidente que Deus não está morto. Ele simplesmente se transformou em dinheiro, que é
um “equivalente universal”. Isto é, a imagem de uma imagem capaz de transformar tudo e
todos em uma imagem deles mesmos. De novo, aqui reside a raiz daquilo que a imprensa e
o pseudojudiciário (falso exatamente porque também não é independente) chamam,
moralizando-o, de “corrupção”. Prefiro evitar a moralização da política, tanto quanto evito
a sua estetização. Não é o caso de que as pessoas e os políticos, de direita e esquerda, são
corruptos porque carecem de um código básico de ética. Este tipo de visão abstrata da ação
corresponde meramente à abstração e ao encerramento da imaginação em nossas
sociedades de finanças e do espetáculo. Pelo contrário, é o motor das nossas sociedades
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atuais – adquirir cada vez mais dinheiro para contornar as proibições morais que nos
impusemos sobre nós mesmos e sobre as pessoas – que explica a “corrupção”.
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É o mesmo negócio de sempre, com o perdão do trocadilho. Isto também explica por que as
medidas gradualistas de melhorias da pobreza não bastam. Pois, tão logo colocamos
dinheiro no bolso das pessoas, trazendo-as para além de algum (imaginariamente criado)
limiar da pobreza, elas agirão conforme o movimento impulsionado daquele mesmo
motor. Ou seja, irão querer mais e ser mais como os bilionários que, por causa da riqueza,
podem passar por cima das restrições morais. Não estou dizendo que a pobreza não é real.
Ela é muito real, e o sofrimento que ela provoca é bastante real. O que digo é, em primeiro
lugar, que a pobreza não é só um problema socioeconômico determinado pela privação de
dinheiro, mas também um tormento sociopsicológico que tem relação com – mas que deve
ser diferenciado do – problema anterior em sua essência e em seus procedimentos.
Cultura do consumo de imagem
Movimentos e partidos progressistas devem se perguntar como lidar com esses dois casos;
as soluções para eles não são as mesmas. Na verdade, remediar somente o primeiro pode
agravar o segundo. O Partido dos Trabalhadores, no Brasil, está aprendendo esta lição à
maneira difícil. Mas não são os únicos. Em segundo lugar, digo que temos testemunhado
em nossos dias a transposição dos próprios direitos humanos do reino da mobilização
política para o da cultura popular em massa. Esta cultura, que é uma cultura do consumo
de imagem, supõe e espera que a proliferação das imagens de agonia e sofrimento levarão
as pessoas da apatia à empatia.
Mas esta mesma cultura também diz aos públicos de consumidores de imagens que eles
realmente não devem ser culpados por causa da relação que têm com os perpetradores e
beneficiários das injustiças do passado ou pelo locus que ocupam em relação aos eventos
históricos de pilhagem e genocídio (incluo o tipo cultural, muito embora o direito
internacional atual tende a reduzir o significante “genocídio” ao tipo físico). Ela processa a
responsabilidade das pessoas em termos de não estarem sendo empáticas ou atenciosas
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Isto nos coloca em rota de colisão com a história. Encerra o futuro assim como encerra a
nossa capacidade de memorializar e imaginar modos mais ricos, utópicos ou “eucrônicos”,
se me permitem usar este meu neologismo (de eucronia). O incêndio no Museu Nacional
de Antropologia, do Rio de Janeiro, os incêndios na Amazônia este ano, o fato de que
proprietários de terras no Rio Grande do Sul estão realizando leilões enquanto falamos
para comprar armamentos visando armar milícias (ou “paramilitares”, como dizemos na
Colômbia) a fim de sair e “caçar” indígenas, o fato de que o mesmo há pouco aconteceu
na vizinha Bolívia e tudo o que intelectuais e jornalistas (esquerda, direita, decoloniais,
nem tão decoloniais, etc. ad nauseam) puderam fazer foi debater se foi ou não golpe e
quem era mais puro no próprio raciocínio do que os outros, são reveladores a respeito do
estado em que se encontram os mais pobres em relação à indigência do nosso desejo e da
nossa imaginação.
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O neofascismo é o mais recente a erguer a sua cara feia. Nesse sentido, não precisamos de
fato acreditar em nada do que sua boca de merda fascista jorra aqui ou ali. Podemos
acreditar ou não. Podemos acreditar, se formos Luis Alfredo Camacho ou Jeanine
Añez – a “presidente” autodeclarada da Bolívia –, ou podemos não acreditar. Uns dizem
que Trump, na realidade, não acredita. Outros, como Cornel West, afirmam que
Trump é um supremacista branco e não tenho motivos para duvidar do brilhante Doctor
West (quem, aliás, apareceu num filme; a saber, The Matrix). Em todo caso, versões
anteriores do fascismo, o tipo hitleriano e mussoliniano da década de 1930, ou mesmo o
tipo das décadas de 1960 e 1970 que conhecemos tão bem no Brasil e noutros lugares das
Américas, não são o que conhecemos hoje. Funcionam como aquilo que subjaz,
subordinado, que morreu impregnado com o renovado contrato de morte entre o nosso
capitalismo atual em crise quase terminal e os teatros da política repletos de espetáculo
com uma “esfera pública” moribunda.
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O que significa que nós, como parte do tipo público, podemos permanecer no conforto
seguro da nossa distância irônica, olhando para todas estas coisas em nossos aparelhos de
TV. Pelo menos até que, por coincidência ou não, acabemos no outro lado. Então, é claro,
será tarde demais. Nós colombianos deveríamos saber. Aqui estamos nós. Sete milhões de
deslocados. Duzentos mil mortos. Oitenta mil desaparecidos, se não mais, mais do que
todas as ditaduras do cone sul juntas. E somente agora alguns de nós começam a despertar
do sonho dos nossos pais. De novo, nunca é tarde para começar. Contra Horkheimer, que
ensinava que o passado estava acabado, que o sofrimento estava acabado, a nossa relação
com a memória e a história é uma relação de incompletude. Os projetos interrompidos do
passado podem ser intensificados e reativados precisamente porque a história não acabou,
não ainda.
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larvais. O segundo caso, em sua fraqueza aparente (tornada aparente pela imprensa
convencional a desaparecer) não apenas sobreviveu aos ataques mais violentos, mas pode
transcender a formas econômicas e políticas sem a necessidade de destruição.
Recentemente invoquei um dos meus orientadores, o ex-reitor da Birkbeck College e
historiador latino-americanista Eric Hobsbawm, quem está entre os pouquíssimos que
interpretaram esta figuração fundamental do interesse perene de Karl Marx nas chamadas
“formações arcaicas”. Algo do tipo pode surpreender muitos dos “autonomistas” e
“decolonialistas” da esquerda desencantada, também não poucos marxistas típicos e,
evidentemente, os próprios neofascistas. Todos eles gostam de usar as cartas antimarxistas
e antiesquerdistas, exatamente no momento em que o “socialismo” – ou mesmo o
“comunismo” – se torna assunto entre as conversas mais uma vez ou pela primeira vez em
muitos anos em lugares como os EUA e a Inglaterra.
Não importa o que aconteça nas eleições destes países, esta paisagem diferente que surge
não irá embora. Essa é a maneira como o capitalismo aumenta os esforços nas suas
apostas remanescentes. Eis como vejo a “ascensão” da ultradireita no mundo. Isso quer
dizer que não podemos ignorá-los e não podemos esperar que vão embora porque as
nossas estruturas democráticas farão o que devem fazer (impeachment, deliberação,
imprensa responsável etc.). As nossas estruturas estão também muito fracas. Cabe a nós
intensificar o valor e a importância delas, e o valor e a importância de tudo o que existe.
Especialmente aquilo que é, mas não ainda. São os desejos do passado, que servem como
significado, contexto e orientação das nossas ações no presente de forma a produzir o
futuro diferente.
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Por que não? Pesquisas recentes mostram que saturar estruturas cerebrais em altos níveis
com neurotransmissores reduz a capacidade delas de regular a atividade de baixo nível. O
resultado é uma maior conectividade entre partes diferentes do cérebro. O farmacólogo
Robert Carhart-Harris traçou um paralelo entre o controle excessivo de cima para
baixo dos processos cognitivos que os agentes psicodélicos interrompem e a influência
destrutiva do capitalismo impulsionado pela imagem industrial sobre os ecossistemas
cognitivos e planetários. Também, em um congresso realizado recentemente na Europa,
Gal Bradbrook, um dos fundadores da Extinction Rebellion, propôs uma ingestão
massiva de remédios psicodélicos como um ato de desobediência civil contra o sistema
baseado na “escassez, separação e impotência”.
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Neste momento, essa ajuda tem sido decisiva nas Américas. Vejamos a Venezuela, a
Bolívia e o Brasil. Mas também em uma direção inteiramente diferente no Chile e na
Colômbia, mais recentemente. O caso de Álvaro Velez mostra que estas pessoas não são
eternas, apenas contingentes, do tipo estátuas de Ramsés à luz do espetáculo, mas com os
pés de barro... Estão desmoronando. Vejamos a “Colectiva Feminista en
Construcción”, em Porto Rico, no começo deste ano e a “Colectiva Lastesis”, nas ruas
do Chile também este ano. O dedo a apontar para o líder fálico, a gritar com toda a força de
seus pulmões, revela-lhe aquilo que todos são: imperadores sem roupas.
Esta lógica é bastante simples: cada um por si, divididos e isolados, os países e povos das
Américas perdem-se e se submetem por outros cem anos de alienação exploradora, como
Gabriel Garcia Márquez tão bem explorou em sua literatura. Nenhum outro escritor nas
Américas alcançou alturas literárias e político-históricas como este. Talvez com a exceção
de Chico Buarque, que está dando o seu melhor e que é bem-conhecido por isso. Mas
certamente não os escritores do tipo Vargas Llosa, cuja obra empalidece se comparada, não
importando os elogios ou títulos reais espanhóis, especificamente quando se trata de suas
pretensões político-filosóficas – que são apenas isso, pretensões.
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Felizmente, existem pensadores e teóricos atuais muito melhores entre nós. Todos nos
ajudam a entender que isto é o controle, mas não no sentido do marionetista e de suas
marionetes. Claramente não em sentido antiamericano, ou da teoria da conspiração. Isso é
o escopo de uma ficção ruim. Em vez disso, os porquês e para-quês da geopolítica do
hemisfério ocidental têm tanto a ver com a política dos “nossos dedos para todos os lados,
as nossas digitais em lugar algum” de Washington desde, pelo menos, o auge com Henry
Kissinger, quanto com as inclinações das nossas próprias elites que parecem incapazes de
coexistir com as regras democráticas ou mesmo existir em seus próprios lugares.
Incapacidade para existir
Inferno, eles parecem incapazes de existir! Existir aqui, quero dizer, em suas próprias rotas
históricas cultural e existencialmente criolizadas. Eles parecem querer ser espanhóis,
portugueses, ingleses ou americanos, loiros clareados ou brancos mascarados. Nunca
ameríndios nem negros, nunca crioulos. Motivo pelo qual o nacionalismo deles é imitação
barata, uma outra máscara, simbolizando a “armadilha” da qual Frantz Fanon nos advertia.
Querem transar com a esposa do senhor. Pedem pela intervenção do senhor. Clareiam os
cabelos, usam máscaras e vão às ruas protestar com a babá negra a reboque, esta
carregando o carrinho de bebê, todos do tipo “Poder Femenino”, “Liga Crucenista”,
“fascismo nos trópicos”, “Tradição, Família e Propriedade”, “professores antiesquerdistas”,
“machões com armas em punho de pinto pequeno”, temendo a castração pelas verdadeiras
feministas e devorando os próprios filhos e filhas como uma antropogafia de Saturno.
Aquela sobre a qual Gabriel Garcia Márquez escreveu nos anos 1950, quando disse das
“posibilidades de la Antropofagia”.
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Este tipo de controle não é o da vulgata marxista. É mais a do tipo que Fichte denunciava
na Alemanha, quando alertou que as guerras expansionistas tendem ao combate por duas
razões: primeiro, para tornar as classes média e outras cúmplices nas vitórias infantis do
tipo marciais contra os desejos primários, que dotam o líder fálico e suas hordas ou
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Também, que não haveria nenhum Podemos na Espanha e nenhum Corbyn na Inglaterra,
nenhum Syriza na Grécia sem as visitas de Costas Douzinas ao Brasil e sem a “inspiração
latino-americana”; que há tanto no Brasil que pode ser (a) privatizado, (b) vendido para a
oferta mais alta de apostas, (c) saqueado; que o Brasil não é exatamente um país quanto o
é um subcontinente; que o Bolsa Família poderia ter sido transformado em um grande
experimento em nível nacional na questão dos serviços básicos universais e da Renda
Básica Universal, caso o PT tivesse mantido o foco; que este programa tirou milhões de
pessoas da linha da pobreza – o que é um evento a entrar para a história –, mas depois não
pensou o dia seguinte; que, mais uma vez, confundimos a miséria econômica com a
miséria do desejo, e assim fazendo acabamos cometendo (o PT, em particular) um erro
fundamental.
Ainda, que a esquerda brasileira, como um todo, caiu na armadilha da esquerda “mais
santa do que vós” e no horizontalismo e desencantamento no primeiro sinal de fracasso ou
carência; que, por causa de tudo isso acima e apesar da minha hipérbole, o Brasil não é um
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caso singular, mas em sua especificidade faz parte do quadro mais amplo descrito acima.
ético e
Que, por causa disso tudo, os brasileiros têm tudo para evitar cair no buraco negro
político em que nós colombianos caímos. Que os brasileiros podem agir assim. Que não é
tarde demais. Nunca é tarde. Pois ninguém conhece o final da história antes de ele
acontecer.
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IHU On-Line – Como a história da globalização se atualiza hoje na América
Latina? E de que forma as novas tecnologias impactam neste novo capítulo na
história da globalização?
Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Pode ser uma boa ideia fazer uso do projeto de
Enrique Dussel para a destruição da moral formalista e da história da ética, e defender uma
“virada estética” no projeto e na mudança decolonial como um todo. Este é o tema de um
livro que estou preparando, que é bastante adequado para conectarmos as histórias da
globalização atualizadas nas Américas e a questão das chamadas novas tecnologias.
Podemos reinterpretar o critério material de Dussel de uma ética da libertação, o corpo
vivo, sensível e inteligente, de acordo com esta ideia benjaminiana. Isto é, em termos da
conexão do corpo com o tipo de imagética cosmológica evocada na esteira de sua palestra
na Universidade de Murcia.
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pode se redimir no sentido material próprio das nossas práticas financeiras: extraindo um
preço do governo e beneficiários atuais das injustiças passadas como um prêmio com o
qual apoiar a realização dos desejos passados hoje. As reivindicações históricas inacabadas
ou não realizadas do passado funcionam como o elemento subjacente de uma opção que
pode ser negociada na atualidade.
Em outras palavras, aos que dizem “as injustiças do passado ocorreram, uma e outra vez; a
história está acabada, viremos a página”, podemos responder: “Dizem que a história se
repete. Mas a história é uma his-story [história de alguém], e vocês não ouviram a minha
ainda”, como Sun Ra diz no vídeo de arte coletiva “Race for Space”, de Soda_Jerk. A
reativação de possibilidades e desejos específicos do passado, encarnados nos corpos reais
a protestar nas ruas, põe um risco aos mercados de capitais tal que estes logo se
prontificariam a pagar para resolver as injustiças históricas, o que pode financiar uma
maior justiça aqui e agora, em troca daqueles corpos ou partes deles que não provocam
julgamento final ou revolução, pelo menos não por enquanto.
A descrição que faço da justiça histórica, como uma opção, e da política democrática, como
negociações, reúne elementos daquilo que Dussel chamaria de teologia da libertação em
combate com as chamadas teologias da austeridade e prosperidade, mas não em termos da
palavra reveladora de Deus. Antes, ela rearticula esta dimensão reveladora em termos do
testemunho e da denúncia da carência em nossas sociedades e instituições atuais (que é o
que os defensores dos direitos humanos e as comunidades lutam para ter), combinadas
com a visualização de como seria a plenitude nestas sociedades, o que é o que os artistas e
líderes comunitários “proféticos” fazem – contadores orais de histórias, palabreros, xamãs
etc. –, mas também historiadores imaginativos e cientistas sociais ou teóricos investidos
quando escrevem utopias ou retratam outros mundos e uma eucronia alternativa via
imagens chocantes.
Nesse sentido, refiro-me a imagens do “mundo de cabeça para baixo” ou performances que
deslocam a normalidade espaçotemporal dos espectadores abordando-os como
participantes, um outro público diferente daquele que é espectador do espetáculo do
consumo, e produzindo um futuro diferente. Estas imagens são mais eficazes quando
invocam o modelo do corpo vivo: os desaparecidos, os mortos resistentes, os combatentes
da liberdade e os corpos que se unem nas ruas para protestar. Não como simples vítimas
com as quais simpatizar, mas como agentes de um curso diferente da história que começa a
aparecer nos seus atos sem nenhuma garantia de sucesso ou acabamento. Tais corpos são,
como diria Dussel, um modelo.
Corpo como fonte de analogia
Isso não equivale a dizer que o corpo pode ser lido como uma simples metáfora poética ou
simplesmente em analogia com o criado em relação com a palavra criativa de Deus. Em
nossos tempos, este tipo de poesia tende a ser confuso ou mesmo “demoníaco” se – e
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quando – enfatiza uma condição generalizada da vitimização. Uma condição como esta traz
consigo, com bastante frequência, um olhar eterno ad pessimum – uma perspectiva
negativa, um pessimismo existencial. Em vez disso, equivale a dizer que o corpo é a fonte
das analogias e um modelo particularmente apto para uma semiótica cósmica ou história
universal.
Uma tal semiótica da história pode começar com certos binários analógicos (acima/abaixo,
norte/sul, 1%/99%), mas logo parte e encarna em corpos presentes e ausentes que buscam
negociações específicas ou determinadas em sociedade (limitações e lacunas ou faltas
concretas) que podem se comparar com uma plenitude visualizada ou uma imagem
dialética atrativa a fim de unir-se em combate com eles. Esta seria uma imagem capaz de
deslocar coordenadas espaçotemporais e de normalidade. Uma imagem dialética retém a
distinção entre “verdade” como indelével ou irredutível ao mero capricho humano ou
intenção transitória e imagens e discursos “falsos” ou mesmo “demoníacos”. Uma tal
distinção pode ser teológica em suas origens ou mesmo cosmológica. No entanto, em
termos da virada estética que queremos traçar aqui, o segundo termo designa mais
exatamente o tipo de valor ou exibição expositivo (especificamente, a exibição de obras de
arte) que funciona como um trabalho corretivo na socialização: venha e brinque com a
gente, converse, assista, agite, envolva-se em disputas implacáveis.
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Aqui, como em outras ocasiões, a familiaridade de Dussel com a obra de Benjamin e com
o escolasticismo tardio é útil. No segundo caso, estão os mestres modernos originais do
jogo de cartas da inevitabilidade e do gradualismo, como creio que pode ser visto em suas
argumentações relativas à “justiça” da escravidão (africana) e da guerra expansionista que,
com razão, servem como os precursores obscuros das nossas justificações atuais das
formas “zero-hora” de exploração e golpes políticos “soft”, bem como para a nossa
supercompensação da “estética relacional” no mundo da arte e da religião em massa
voltadas às exibições assim como o entretenimento.
Imagem dialética
O que uma imagem dialética pode fazer a este respeito? Além de ajudar a melhor
compreendermos estas conexões – históricas, econômicas, sociológicas etc. –, uma
imagem como esta pode ser um indicativo da verdade. Pelo menos na medida em que pode
neutralizar o sentido atual de desorientação e mal-estar sociopolítico. Como? Em primeiro
lugar, como dito acima, ajudando-nos a melhor entender o fato de que o nosso sentimento
de desorientação é um efeito da percepção gradual de que inexiste um ponto de referência
último, nem redenção no final da história, tampouco predestinação.
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sobrecarregadas pela culpa moral e pelo desejo de adquirir mais dinheiro e poder de
compra de forma a serem capazes de contornar as proibições morais. Assim como os muito
ricos podem fazer. Aí jaz a raiz da nossa corrupção, se é que podemos empregar uma
linguagem moralizante. Esta situação é o que precisa ser visto.
A resposta da arte
A função da arte nestas circunstâncias é, precisamente, ver através da situação. Mas essa
seria uma arte bastante diferente, uma arte enraizada na classe, uma arte radical, em
combate com o chamado quadro de referência que emerge da geometria analítica de
Descartes e do sistema de coordenadas dos cosmógrafos imperiais em que todos e tudo
teriam o seu lugar próprio; contra o ocularcentrismo cartesiano. Nesse caso, o que uma
arte diferente deve fazer através de suas imagens impressionantes é experimentar com as
demais formas de desejo e explorar um leque muito mais rico de possibilidades. Mais rico
do que aquele que os filósofos (Kant, Hegel e assim por diante) pensavam como possíveis.
Um tal ato e a verdade de um tal ato não podem garantir, antecipadamente, as coordenadas
da sua presentificação ou realização. É mais como aquilo que, sem cessar, forma a si
mesmo. Autopoiético, no sentido dado ao termo pelos biólogos latino-americanos. É
também a salvação do empirismo, ou melhor, um empirismo da salvação/resgate. Salvar
não é uma questão de pensar sobre o concreto e os detalhes concretos da história. Os atos
de salvação performam e filosofam a partir deles, reunindo conceitos em torno, como
dizem os críticos.
A famosa asserção de Hegel de que o particular é o universal adquire o seu sentido mais
poderoso aqui, na crítica do clichê segundo o qual “a verdade é concreta”, o que muitas
vezes está associado a imagens em nossas sociedades do espetáculo. Estas sociedades
preferem imagens que apenas comunicam a mensagem da realidade predominante.
Nesse caso então a arte não deve atender à mensagem carregada pelo seu conteúdo. E os
artistas não devem desempenhar o papel de preencher as fendas dos vínculos sociais. Isso
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O que antes o sistema desejava obter para eles, um senso de que tudo recai em seu devido
lugar, um pouco de ontologia em meio à crítica deles contra ela, pode ser encontrado
somente como o outro qualitativamente na arte (política, de origem de classe) que estamos
propondo aqui. Ou seja, dentro de fatos concretos e das ruínas do sistema histórico a
desmoronar, indo de uma catástrofe para a próxima. Tudo está ruindo, mas não há nada
em sentido do qual ruir. Nesta situação, o risco é crer que tudo é estático, que o fim
chegou. Aproveitar-nos deste risco não exige um choque, uma sacudida, como aquela da
consciência psicodélica ou do investimento radical dos místicos, profetas e xamãs.
A atual geração de artistas tem menos medo destes estados de consciência e investimento
radical, que são incompatíveis com o fechamento atual da imaginação. É evidente que eles
e nós seremos acusados de “bruxaria” e de envolvimento em pensamento mágico como o
das mulheres romanas e ameríndias. É o líder fálico a gritar a toda força e a sua “base”, a
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horda, quem nos acusa. A propensão dele pela simplificação é a inverdade; a mesma coisa
que fingir ser estúpido. Este esquema tem mercado em nível mundial hoje.
Artista em oposição
Os artistas que se posicionam contra o mercado, contra o império do mercado no mundo
da arte, e contra “fingir ser estúpido” combatem o feitiço. Certas práticas artísticas e
estratégias estéticas podem forjar uma conceitualização diferente de justiça. Uma
conceitualização liberta da determinação histórica sufocante bem como do feitiço do
ocularcentrismo (pós-)colonial, ou da ontologia da aparência eterna ad pessimum. Eles
não temem escapar do feitiço porque, como os seus irmãos e irmãs que protestam nas
ruas, foram roubados de tudo e nada mais têm a perder. Esperam, ao modo de Bertholt
Brecht, chocar-nos contra uma visão e uma postura exterior a partir das quais a
arbitrariedade e a contingência de qualquer sistema se revelam. Esperam sistematizar a
tradição da revolta, exatamente no sentido do qualitativamente outro: uma alteridade
social. Como pode estar já aparente para os leitores desta entrevista, acredito que as
práticas e os processos artísticos de pessoas como Oscar Murillo e Carlos Motta mais
que alcançam esta qualidade: a veracidade.
Esta veracidade – utopia, festa na natureza que ama a coragem, a eucronia – é sempre
possível ou alcançável, mesmo não sendo compossível nas atuais condições, mesmo
induzindo a uma forma de vertigem existencial. Contra a aparência eterna ad pessimum
que é a moeda hoje, essa visão vertiginosa (a visão do outro) focaliza-se nas fendas
concretas do sistema em ruínas, não preenchidas. Este olhar é metódico, do tipo detetive.
Assim, propusemos também extrair um método para uma ciência do sentido de libertação,
a partir da perspectiva analógico-dialética, de contraste, de Dussel, sobre o corpo como
organismo vivo, faminto, sedento, forçosamente deslocado, rompido e rompedor, tanto
um sistema de sinais quanto aquilo que os sistemas de sinais significam.
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Afinal, seja audível, seja visual, toda a comunicação é rítmica, como uma dança, em que
recebemos e emitimos partículas em forma de ondas, movimentos. Isto são atos,
transmitindo e recebendo informação através de formas com e sem voz. Se estes atos não
se reduzem a atos de fala (pois podem ser sem voz ou apofáticos), então a força deles não
pode ser compreendida unicamente em termos de performance linguística ou força
repetitiva das convenções estabelecidas, ou outros pontos de referência pragmático-
transcendentais ulteriores.
Em lugar de uma questão de fundamento, de persuasão, a força destes atos reside não
simplesmente na capacidade que têm de resolver o nosso comportamento em relação aos
padrões das convenções, mas na capacidade deles de nos perturbar. E não somente na
capacidade de nos impelir à ação, mas também na capacidade de nos impelir a funcionar
como vetores de transição, um vetor intervalar ou um campo vetorial que assinala a
direção para cada ponto no espaço, abrindo assim o espaço-tempo entre, digamos, este
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Esta distância importa, o intervalo histórico em que uma realidade antecipada, vista ou
ouvida, real ou não ainda, vem a estar presente. Em uma sociedade tal como a nossa (uma
sociedade do valor expositório, da disposição e da especulação), fazer justiça em ambientes
democráticos pode ser melhor compreendido como um projeto de intensificação e
realização do valor presente da justiça histórica como uma opção em cenários não
revolucionários. Movimentos de protesto e progressistas fazem isto introduzindo um
choque no sistema, o risco político de o Estado não restaurar a liquidez para os mercados
financeiros, que podem ser precificados e, portanto, segundo Meister, tornam-se o
prêmio político disponível para financiar uma maior justiça que se pode extrair para
permitir ganhos cumulativos das injustiças passadas visando permanecer, ou postergar, a
redistribuição em larga escala por enquanto (Meister, 2011; 2016; 2018).
Diferença
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Lembremos, no entanto, que sob as atuais configurações dos direitos humanos e da justiça
transicional é fundamental que as vítimas sejam vistas como dóceis, carentes, exigentes,
sem voz e invisíveis, ou como um sujeito interpassivo. Isso é um indicativo da transposição
dos direitos humanos em si a partir do registro da mobilização política (revolucionária) em
massa para aquele do espetáculo (interpassivo) na cultura popular mundial. Nessa cultura,
a apatia que acabamos sentindo para com a fotografia da agonia e da denúncia sentimental
que domina o noticiário e o marketing das ONGs/direitos humanos deveria ser substituída
pela empatia, a virtude moralmente induzida para sentir a dor dos outros como a nossa
própria dor.
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Em outras palavras, o passado como futuro ressoa com o presente e o futuro no passado
pode ser ouvido ou visto. Ele ou ela que age (o espectador-agente, não mais um mero
observador, digamos um manifestante nas ruas da Colômbia em fins de 2019, um
participante em um dos “atos” de Carlos Motta, ou um poeta) não é contemporâneo
porque está familiarizado com o passado, pode restaurá-lo ou rejeitá-lo. Em vez disso, é
contemporâneo porque existe como o resultado de uma série de ressonâncias nas câmaras
de eco da história, movendo-se entre o passado como futuro e o futuro no passado. Este
espectador-agente existe como um “resultado dialético” daqueles conjuntos da existência
passada, para pôr na linguagem hegeliana do teórico do jazz e filósofo surrealista negro
René Ménil. Desse modo, explica ele, ao mesmo tempo o ator ou poeta “é uma negação
viva e uma preservação viva de todas as velhas formas culturais. O seu aspecto
contemporâneo será de um valor mais amplo e maior por causa do fato de ser uma
totalidade do passado”, em ressonância com o futuro.
Pode-se entender isto no sentido de que as tradições culturais refletidas pelo poeta, pelos
artistas ou manifestantes não podem servir como um modelo, dado que inexiste um
modelo daquilo que ainda não se tornou realidade em existência plena. Ele existirá,
entretanto, numa espécie de estado ressonante, vibratório ou ao modo de onda do estado
do passado, situando o poeta, o artista ou o manifestante, inflexivelmente, em seu tempo;
transforma esta pessoa em um agente moderno numa época moderna, ou perigoso em
uma época perigosa. Esta ressonância desbanca as ordens normativas estabelecidas,
reorientando elas e a nós. Um choque para o sistema. É muito para a liberdade e para a
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defesa das liberdades na arte e na política: “diante de nós o futuro, ainda sem forma”
(Ménil, 2009, p. 85).
Tradição de revolta
Precisamos fazer mais para sistematizar esta tradição poética de ressonância e
deslocamento que é uma tradição de revolta, a qual também acontece de ser uma tradição
ética extremamente relevante para as nossas conjunturas atuais dos direitos humanos,
espetáculo de imagens e financialização. Precisamos trabalhar mais para descompactar
aquilo que se entende por poder de tropos e imagens, vibrações e ressonâncias do tipo
relâmpago. Especialmente na sequência que vai dos deslocamentos brechtianos de
Benjamin, do choque de sistematização da tradição poética da revolta por negros
surrealistas como Ménil ou Simone e Pierre Yoyotte no século XX, até os
deslocamentos acumulados no espaço-tempo da pintura, fotografia, do cinema, das
paisagens sonoras e performances de artistas como Carlos Motta, Melika Ngombe
Kolongo e Oscar Murillo nas Américas de hoje e alhures.
Esta tradição foi passada através dos séculos “pelos poucos rebeldes que contrariaram a
invasão monstruosa” da especulação nos altares do dinheiro, como diz Yoyotte. Ela nos
insta a olhar para a música, o cinema e as artes visuais fora da indústria do entretenimento
não só como uma forma remedial material como também uma terapia de choque com base
no conceito de classe para o sistema capaz de se expandir rapidamente às fronteiras entre
espaços de exibição e espaços de posição e disposição, para fins de negociação em que os
riscos podem ser altíssimos, se não absolutos.
Tradição poética, ética e política
Por meio deste trabalho experimental, descobrimos que esta tradição poética igualmente
acontece de ser uma tradição ética e política. Se estes novos casos parecem “limitados” do
ponto de vista histórico calculista diante de perversões e violações mais numerosas da
dignidade humana, de forma alguma eles são excepcionais. O próprio sucesso do
surrealismo, e a obra de pessoas como Yoyotte, Rivera e Dussel, ou Motta e Murillo,
tendem a demonstrá-lo. Não devemos esquecer – e isto é importante – do retorno dos
rebeldes às ruas das Américas e em outros lugares no fim de 2019.
Começando com uma repressão emocional, “parte ainda pungente da realidade de hoje”,
os negros surrealistas, seus sucessores, e os artistas e críticos que vieram depois dirigiram-
se imediatamente para a “defesa do desejo”, para a inspiração individual em lugar da
aspiração, a soluções e, mais do que isso, a princípios diametralmente opostos ao
mussolinismo da época deles e dos fascismos derivativos dos nossos tempos. Em combate
com a militarização racista de nossos dias, por valor e justiça como uma opção.
Neste empreendimento, o conceito de destruição dos ideais morais, que pego emprestado
de Yoyotte e de Dussel para reinventá-lo na era do espetáculo e das finanças, deveria ser
entendido com sensibilidade e inteligência. Como observa Yoyotte, é profundamente
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contraditório haver uma sociedade sem nenhuma exaltação coletiva ou viver e conformar-
pela
se com um senso degradado da importância e do valor de tudo o que existe, a começar
dignidade humana. Como revolucionário, como alguém que não se apressa a dar voltas
para garantir a nossa falsa harmonia, mas sim que olha para o movimento do cosmos na
busca de inspiração, eu prefiro a ideia de não apenas uma consciência e uma sociedade
toleráveis, mas historicamente saltitantes e ampliadas.
“A ética do futuro não consistirá na supressão das emoções irracionais”, escreve Yoyotte.
Concordamos com ele. Em vez disso, devemos aproveitá-las para uma política do desejo no
interesse de uma maior justiça, para caminhar de peito erguido e dançar para frente (ao
som das fortes vibrações do échos-monde, de Nkisi) em direção a uma história cheia de
anseios. A fim de aprender a escutar o que os nossos olhos nos falam sobre os padrões e
sistemas de um mundo no qual tudo está em ressonância rítmica, o som pode nos dar de
volta a visualidade e a visibilidade que o ocularcentrismo reprimiu, como diz Nkisi.■
Notas
[1] Ou “Cinco Olhos”, acordo entre Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e
Estados Unidos que visou a cooperação entre os centros de inteligência destes países.
(Nota do tradutor)
[2] Líderes espirituais altamente treinados do povo indígena da Sierra Nevada de Santa
Marta, cadeia montanhosa da Colômbia. (Nota do tradutor)
[4] Evento de dois dias que acontece no sul de Creta, um dos pontos europeus mais
próximos do continente africano. (Nota do tradutor)
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