Você está na página 1de 18

As determinações da prática

discursiva da escrita
Freda Indursky*

Resumo
Escrever implica repetição que pode ser
entendida como um retorno ao mesmo,
O presente artigo propõe uma refle-
mas pelo fato de aparecer em outro lugar
xão sobre a prática discursiva da es-
crita à luz do dispositivo teórico da e em outro momento, torna-se uma prática única.
análise do discurso, levando em con- (SCHONS, 2005)
sideração que a escrita, neste qua-
dro teórico, é a prática de um sujeito
atravessado pelo inconsciente e afe-
Produzindo um
tado pela ideologia, por um lado, e, efeito-início1
por outro, ela se produz com base na
retomada de saberes inscritos no in- O presente trabalho inscreve-se em
terdiscurso pelo trabalho entrecruza-
um dossiê da revista Desenredo da Uni-
do da interpretação, da memória e do
esquecimento. Essa é a moldura teó- versidade de Passo Fundo, organizado
rica que estabelece as condições para por Evandra Grigoletto, da Universi-
levantar e examinar os elementos que dade Federal de Pernambuco, e Márcia
determinam essa prática discursiva. Helena S. Barbosa, da Universidade de
Palavras-chave: Determinações histó- Passo Fundo, com o objetivo de prestar
ricas e sociais. Interpretação. Língua. homenagem a Carme Regina Schons, a
Memória e esquecimento. Materialida- querida professora Carme da Universi-
de linguístico-discursiva. dade de Passo Fundo, que recentemente
nos deixou. Em função disso, reli alguns
textos de Carme e voltei a me emocionar,

*
Doutora em Estudos da Linguagem, Professora Titular,
atua como professora convidada do Programa de Pós-
-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. E-mail: freda.indursky@gmail.com

Data de submissão: mar. 2016 – Data de aceite: maio 2016


http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v12i1.5954

30

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
antes de mais nada, pela paixão com que [...] quando escrevemos, estamos sempre
ela se dedicava à escrita de seus textos, fazendo rascunhos em nossas vidas, os quais
se cruzam com tantas outras vidas rascu-
fossem eles da ordem do político ou da nhadas e (re)desenhadas e a nossa escrita
linguagem. Diante desses dois eixos – o implica escolhas, talvez diferentes daquelas
político e a linguagem –, que também que já estão legitimadas (2005, p. 139).
atravessam meu próprio trabalho, deci- Tomo essa citação como mote para
di-me, quase sem me dar conta, a colocar apontar os caminhos que vou percorrer
meu foco sobre uma questão essencial da na produção deste artigo. Certamente
linguagem: a escrita. vou tangenciar questões já tratadas em
O que teria me dirigido nessa direção, textos anteriores, desfazendo a ilusão de
logo de início, não estava claro para mim. estabilidade dos sentidos que a função
Mas, à medida que fui escrevendo, fui discursiva do “ponto final” lhes conferiu.
dando-me conta de que este artigo, de Em artigo anterior, afirmei que um
fato, e antes de mais nada, reúne em texto é uma unidade provisoriamente
si, tanto o político como o linguageiro, estruturada que pode ser desestrutura-
como veremos a seguir. E, certamente, da a qualquer momento sob o efeito do
inscreve-se na temática deste número trabalho de leitura de um sujeito leitor
da revista Desenredo, dedicado à reflexão (INDURSKY, 2001). Volto, agora, a essa
sobre subjetividade e alteridade, tema questão, mas, no presente artigo, não é
que diz muito de perto à análise do dis- sobre o trabalho de leitura realizado por
curso, quadro teórico em que me inscrevo um sujeito-leitor outro que vou lançar
como professora e pesquisadora. E, no meu olhar. O que me move agora com
mesmo movimento, estarei abordando esta retomada é a possibilidade que
os caminhos trilhados por Carme, pois o sujeito-autor tem de ocupar o lugar
seus escritos estarão no horizonte de discursivo do outro, do leitor, retornan-
minha reflexão. do a seu próprio texto para sobre ele
fazer uma leitura desestabilizadora de
Apresentando as trilhas seu efeito de completude, seja para se
autocorrigir, seja para trazer outros fios
Nunca esgotamos de nos inscrever.
discursivos que, por diversos motivos,
(SCHONS, 2005)
não puderam ser contemplados ante-
riormente e tramá-los àqueles que aí já
Exponho, a seguir, os propósitos do
se encontravam. Sobre esse fazer, trago
presente artigo. Nele pretendo deter-me
de Orlandi o entendimento de que “a
sobre uma prática específica do sujeito
incompletude não deve ser pensada em
– a escrita – e sua relação com a exterio-
relação a algo que seria (ou não) inteiro,
ridade. Muito já se escreveu, e eu mesma
mas antes em relação a algo que não se
já percorri mais de uma vez essas trilhas,
fecha” (1996, p. 11).
mas, como diz Carme Schons:

31

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
Parto dessa reflexão sobre incom- estancando-lhe o fluxo. O que procuro
pletude para pensar a escrita. Ela examinar no presente artigo vai justa-
permite-me distinguir escrita de texto. mente em direção contrária a esse efeito
Este apresenta começo, meio e fim. Já a de fronteira. O que estou propondo é a
escrita, ao contrário, não é um produto desconstrução dessa ilusão que separa o
acabado, mas um processo. À luz da aná- externo do interno; que trabalha em um
lise do discurso,2 pode-se entender um tempo diferente, o tempo da reflexão e da
processo como algo em movimento, que elaboração teórica e não o tempo objetivo
não se fecha. Ele pode ser suspenso, pode da produção acadêmica, para a qual não
ser pausado, pode ser interrompido, mas apenas o tempo é um fator determinante,
não tem um fim. Pensar a escrita como mas também o espaço medido em núme-
processo implica dizer que ela pode sem- ro de páginas, palavras ou caracteres.
pre ser retomada e receber continuidade. Para dar continuidade à escrita de
Trata-se de um processo que o ponto final um texto já publicado, o sujeito-autor
não pode deter, ao contrário do que ocorre precisa desestabilizar a função discursi-
com o ponto final de um texto, que marca va do ponto final, devolvendo-o ao fluxo
simbolicamente seu término. do interdiscurso e ao processo de escrita.
Ao proceder à retomada de seus A questão teórica inicial que o presente
escritos, o sujeito-autor transforma-os artigo coloca é o estabelecimento de uma
em rascunho(s) de novo(s) texto(s). Não distinção entre texto (enquanto produto)
estou aqui me referindo a um texto que e escrita (enquanto processo): efeito de
ainda se encontra sob a guarda do sujei- fechamento e completude versus efeito
to-autor, no aconchego protegido de seu de abertura e incompletude.
arquivo, pois, nesse caso, o efeito de esta- Esse é um trabalho discursivo que
bilização dos sentidos ainda não ocorreu pode ser produzido em diferentes situa-
e, por conseguinte, o autor poderá voltar ções. Um primeiro caso, e o mais simples
a seu texto quantas vezes quiser, antes de todos, é, por exemplo, o de um texto
de lhe apor o ponto final que vai produzir esgotado que, antes de sua nova publica-
o efeito de completude e de estabilização ção, o autor revisa-o e o republica como
dos sentidos. Ao contrário. Refiro-me a uma edição revista e aumentada. Mesmo
um texto que já foi publicado, fato que que o sujeito-autor não realize grandes
está na origem da ilusão de que tudo o alterações, o referido texto voltou a ser
que precisava ser dito nele se encontra. aberto, voltou a ser rascunhado, e seus
O ponto final, em textos publicados, sentidos puderam ser desestabilizados e
produz um efeito de fronteira, que separa alterados antes de sua nova publicação.3
ilusoriamente o texto do que ficou fora Mas esse não é o único caso em que
de seus limites internos, produzindo um texto pode voltar ao estatuto de
um corte entre o texto e o interdiscurso, rascunho. Há várias situações em que

32

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
isso pode ocorrer. Dentre elas, podemos afirma Orlandi, “o dizer não tem começo
pensar no trabalho didático de sala de verificável: o sentido está (sempre) em
aula ou, ainda, no trabalho acadêmico, curso” (1996, p. 11). Diria que é nesse
que retornam ao processo de escrita, am- último caso que enquadro o presente
bos sob a determinação de um professor. artigo. Vou retomar algumas questões
Penso que esse processo ocorre tam- desenvolvidas em meus trabalhos sobre
bém no trabalho literário, e, nesse leitura e escrita, transformá-las em
campo, destaco, como exemplo, Borges. rascunhos para poder agregar novos
Em determinado momento de sua vida, fios discursivos a serem tramados aos
seus editores se deram conta que ele anteriores, pois, como afirma Schons,
tinha um número considerável de con- [...] o fato de desconfiarmos de nosso primei-
tos dispersos em diferentes revistas ro rascunho e inventarmos sempre outro, a
literárias. Pediram-lhe então que fizes- partir daquele que já fora refeito, implica
esforços heterogêneos e, ao mesmo tempo,
se uma seleção, para reuni-los em um únicos (2005, p. 146).
livro. Borges aceitou a tarefa e quando
finalmente encaminhou seus contos, os Desse modo, o que estará em jogo na
editores constataram que Borges não prática discursiva da escrita são dois
havia feito uma revisão, mas os havia aspectos da exterioridade. Por um lado,
reescrito inteiramente. Estavam diante rascunhar sobre os próprios textos pode
de uma coletânea de textos originais. Ou ser visto pelo viés da intertextualidade,
seja: Borges tomou seus textos, abriu-os, modalidade própria da escrita acadêmica
fez deles rascunhos, desestabilizou sua e que, no presente artigo, consistirá em
provisória estruturação e seus efeitos de dialogar com textos de Pêcheux, Courtine
sentido, reescrevendo-os novamente, an- e Orlandi. E, por outro lado, esse processo
tes de produzir o efeito de estabilização de rascunhar pode conduzir o texto ao
dos sentidos que decorre do efeito-fecho interdiscurso, que funciona como “preen-
(GALLO, [1994] 2008),4 a partir da aposi- chimento do formulável”, como diz Cour-
ção de um ponto final (ORLANDI, 2001). tine ([1983] 1999). Ou seja: essa nova
A esse propósito, cito Orlandi: abertura ao interdiscurso vai devolver o
texto à incompletude e o sujeito-autor à
[...] um mesmo texto volta sempre, fazendo
seu retorno em várias retomadas por um busca ilusória de completude.
sujeito autor que trabalha diferentes formu- As novas versões de um texto colocam
lações (versões) em uma história inacabada o sujeito-autor frente à inexorabilidade
de diferentes textualizações possíveis (2001,
p. 96).
da incompletude, visto que, em toda
escrita, há lacunas e esquecimentos e “a
Pesquisadores, por sua vez, também falta é o lugar do possível na linguagem.
retomam seus escritos e voltam a abri-los É isso que chamamos a abertura do sim-
e devolvê-los à categoria de rascunhos bólico” (ORLANDI, 2001, p. 19).
para produzir novos textos, pois, como

33

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
Essas diferentes versões jogam com nessa mesma seção. No presente traba-
a ilusão do sujeito-autor em busca de lho, pretendo retornar a alguns de meus
preencher as “brechas” e, desse modo, textos para refletir especificamente
encontrar a tão desejada completude, sobre a prática discursiva da escrita. Já
bem como controlar os sentidos que estão me ocupei dessa prática isoladamente ou
em movimento e que, em função disso, em justaposição com a prática da leitu-
insistem em lhe escapar. Habitualmente, ra. Retorno com frequência às práticas
associamos a movimentação dos sen- discursivas do sujeito como se fossem
tidos ao processo discursivo de leitura um caleidoscópio: o movimento giratório,
de um sujeito-leitor, o outro com quem a cada vez, revela novas formas, novas
o sujeito-autor estabelece uma interlo- configurações, novas combinações de
cução discursiva. Mas o que trago aqui, cores. E não consigo resistir ao apelo de
neste trabalho, é a movimentação dos meu imaginário caleidoscópio. O caso
sentidos realizada pelo próprio sujeito- específico que aqui trago consiste em
-autor a partir da leitura de um texto tornar-me leitora de meus próprios tex-
por ele produzido. Trata-se da necessária tos, transformar em rascunho algumas
ilusão de que, com a nova versão, tudo o de suas passagens para a produção de
que ainda não havia sido dito finalmente um novo texto com o propósito específico
será formulado. Essa é a grande ilusão de refletir sobre a prática discursiva da
do sujeito-autor ao voltar à escrita de escrita e os elementos que a determinam.
textos seus. Seu texto é uma formulação Essa é a questão que me move a retomar
dentre as diversas outras que poderia ter
meus textos e voltar a rascunhá-los.
produzido, razão pela qual retorna ao
Contudo, cabe aqui um esclarecimen-
processo de escrita, em busca da formu-
to: este texto não se propõe a refletir
lação ideal que deixou de fazer.
sobre A escrita da análise do discurso.
Trata-se de um movimento incontor-
Esse é o título de um capítulo do livro
nável do sujeito ao formular uma nova
Discurso e texto, de Eni Orlandi (2001,
versão de um texto. É em Orlandi, ain-
p. 31-57). Meu propósito aqui é refletir
da, que nos apoiamos para pensar essa
sobre a escrita à luz da teoria da análise
questão:
do discurso. Tomo a escrita porque ela
Ao longo de toda uma vida não é talvez se-
promove a textualização de diferentes
não o mesmo texto que trabalhamos inces-
santemente, acrescentando, transformando, discursividades, ou seja, por seu viés,
repetindo, à busca de uma forma mais aca- dá-se a materialização do interdiscurso.
bada (2001, p. 95-96).
Com isso, não pretendo que a escrita
Explicitados todos esses elementos seja a única via para a materialização
que fazem parte das condições de pro- do discurso, mas, certamente, ela é uma
dução da escrita do presente artigo, vol- das formas de fazê-lo. E, também, faz-se
temos ao que já afirmei anteriormente, mister lembrar que ela é uma das fun-

34

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
ções discursivas do sujeito, por meio da As determinações da
qual podemos capturar marcas de sua
subjetividade, e é por meio dela que se dá escrita
entrada no simbólico da discursividade
em circulação.
O que é a escrita?
Da mesma forma que é possível re- A escrita como “novidade”
é apenas efeito do trabalho de
fletir teoricamente sobre leitura e sobre
interpretação e de memória,
texto, julgo importante fazer uma refle-
visto que o que dizemos reaparece
xão teórica sobre a escrita como prática e sempre retorna em outro lugar.
discursiva do sujeito. Nesse ponto, faz- (SCHONS, 2005)
-se necessário outro reparo: tampouco
pretendo voltar a refletir sobre a noção A escrita é um dos modos de que o
de texto propriamente dito, mas sobre sujeito lança mão para relacionar-se
a prática da escrita que lhe subjaz, pois com a história, com seu tempo, com a
entendo, como já explicitei, que escrita sociedade, em suma, para inscrever-se
não se confunde com texto, embora sejam no corpo social. E, é por meio desse fazer
noções muito próximas. No presente ar- do sujeito que sua escrita inscreve-se
tigo, meu foco vai incidir sobre a prática também na memória social.
discursiva da escrita à luz da teoria da A escrita consiste em um trabalho
análise do discurso. de tramar fios discursivos provenientes
Ao pensar sobre a prática da escrita, do intertexto e/ou do interdiscurso. Em
que está relacionada a uma das funções função disso, podemos entender que da
discursivas do sujeito, não há como dei- escrita resulta um texto que é tecido de
xar de fazer referência ao sujeito em sua citações – relações com o intertexto –
função de autoria. Isso vai ocorrer em de glosas, de paráfrases discursivas e
determinados momentos deste artigo, fragmentos discursivos que, em outro
entretanto, o foco deste trabalho também trabalho, designei de incisas discursivas
não é o sujeito, mas sua prática discursi- (INDURSKY, [1997] 2013), modalidades
va de escrita propriamente dita. que estabelecem diferentes modos de
Apresentadas as trilhas, passemos, se relacionar com o interdiscurso. Vale
então, a percorrê-las. dizer: a escrita consiste em um tecer
e retecer de fragmentos de discursos
outros. Ela trabalha com o simbólico e
produz um espaço simbólico, em que di-
ferentes vozes anônimas (ou não) ecoam,
se entrelaçam e, mesmo, por vezes, se
contradizem.

35

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
Uma textualidade assim realizada Mas observemos mais de perto nosso
é resultado do trabalho discursivo pro- objeto de reflexão, a escrita.
duzido por um sujeito que supõe estar
na origem de seu dizer. Essa crença A escrita como prática
ocorre porque o sujeito é afetado pelo
inconsciente e interpelado pela ideologia.
social e política
Desse modo, o sujeito do discurso pensa O texto corporifica o encontro entre
que seu dizer tem origem nele mesmo sujeito, sentido e história.
quando, de fato, os fios discursivos que (SCHONS, 2005)
mobiliza para tecer seu texto procedem
da exterioridade. Dito diferentemente: Ao entender a escrita como acabamos
a escrita, ao incorporar a exterioridade, de apresentá-la, podemos afirmar que
torna-a constitutiva do texto. toda escrita é resultante de um processo
Pêcheux já nos alertava que, em fun- de reescrita de fios discursivos prove-
ção da dupla determinação do sujeito nientes de um discurso-outro, inscrito
– pelo inconsciente e pela ideologia –, a no interdiscurso. Conforme nos ensina
autonomia da língua com que o sujeito do Pêcheux,
discurso se identifica e produz discursivi- [...] os elementos do interdiscurso [...] que
constituem, no discurso do sujeito, os traços
dade é relativa. Penso que isso se aplica daquilo que o determina, são re-inscritos
à escrita também, pois ela é a prática de no discurso do próprio sujeito ([1975] 1988,
um sujeito assim constituído, de modo p. 163, grifo do autor).
que essa prática consiste em um processo Dito de outra forma: a escrita de um
de produção que dá materialidade lin- texto dá corpo e materialidade a saberes
guística a saberes dessintagmatizados/ que já estão em circulação, inscritos tan-
desnivelados provenientes do interdis- to do interdiscurso quanto na memória
curso. E mais: no mesmo movimento em discursiva de formações discursivas.
que se dá essa interiorização, esses fios Conceber a escrita dessa forma con-
discursivos são sintagmatizados/nivela- siste, pois, em pensá-la como uma práti-
dos pelo trabalho discursivo do sujeito do ca social, determinada pelo interdiscurso
qual resulta o apagamento das marcas que representa a memória do dizer: tudo
da interdiscursividade/exterioridade. que já foi produzido lá se encontra. E o
Esse é o efeito que a prática discursiva resultado dessa prática discursiva da
da escrita persegue: apagar os vestígios escrita vai necessariamente retornar ao
da exterioridade no interior do texto. E interdiscurso que é a memória do dizer.
é esse trabalho discursivo da escrita que É em função desse ciclo interdiscurso –
inscreve o sujeito ao mesmo tempo nas escrita – interdiscurso que a escrita pode
redes discursivas de memória e na fun- ser entendida como uma prática social.
ção autoral (INDURSKY, 2001, 2009). Ou, como afirma Orlandi, “A escrita é

36

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
uma forma de inscrever o sujeito na A linguagem e o processo
ordem social” (2012, p. 169).
Com base no que precede, entendo de materialização da
que a escrita, além de ser uma prática interpretação
social, também é uma prática política,
pois o sujeito-autor é um sujeito inter- Trabalhar a linguagem, mais
exatamente a língua,
pelado pela ideologia e seu trabalho
na perspectiva da Análise do Discurso
discursivo de escrita dá-se à luz de sua constitui-se num desafio e, também,
determinação ideológica. O político, por numa forma de resistência.
conseguinte, determina a escrita que (SCHONS, 2006)
vai carregar em si os vestígios dessa
determinação. A prática discursiva da escrita, como
O sujeito realiza sua prática discur- vimos na seção anterior, é afetada pela
siva de escrita inscrevendo-se na discur- história. Na presente seção, examinare-
sividade (interdiscurso) e na memória mos uma outra determinação que essa
de uma formação discursiva (memória prática sofre. Trata-se da língua. Mas
discursiva). Tal fato irá determinar não uma língua fechada, sem ambigui-
inexoravelmente o modo como os fios dades. A prática discursiva da escrita
discursivos provenientes do exterior irão vai convocar uma língua sujeita a jogos
se articular e textualizar, permitindo e equívocos. Como afirma Orlandi:
vislumbrar o encontro da linguagem com A linguagem é um trabalho, uma prática.
a ideologia, possibilitando observar como O que ela tem de específico é que ela é um
trabalho simbólico. [...]
a ideologia materializa-se na escrita de A prática, que é a linguagem, se relaciona
um sujeito, nela imprimindo uma direção com as práticas em geral. Para fazer sen-
tido, a língua, sujeita a falhas (divisão), se
de sentidos e seus efeitos de evidência,
inscreve na história, produzindo discursivi-
pois, como salienta Pêcheux, dade (2012, p. 152, grifo da autora).
[...] toda prática discursiva está inscrita no
Como já foi apontado, a escrita é uma
complexo contraditório-desigual-sobrede-
terminado das formações discursivas que prática social, tecida de discurso, por in-
caracteriza a instância ideológica em condi- termédio da qual a ideologia se materia-
ções históricas dadas ([1975] 1988, p. 213). liza. Acrescentemos, agora, que a escrita,
E, se toda prática discursiva inscreve- por sua vez, ganha materialidade por meio
-se nesse complexo, a escrita, por ser da língua, razão pela qual dela vamos nos
uma prática discursiva, nele também ocupar mais detidamente a seguir.
encontra sua inscrição, razão pela qual A língua, historicamente determina-
entendemos tratar-se de uma prática po- da, “constitui o lugar material onde se
lítica. Vejamos de que modo isso ocorre. realizam os efeitos de sentido” ([1975]
1990, p. 172, grifo dos autores), como
nos dizem Pêcheux e Fuchs. Ou seja,

37

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
a língua, por meio das estruturas que luz da formação discursiva com que se
lhe são próprias, dá materialidade à identifica e é em função de sua captura
escrita, podendo entrar, nesse processo ideológica que vai posicionar-se e inter-
de textualização, em relação com o “não pretar tais saberes para poder produzir
está” ou ainda com o “ainda não está”, sua escrita. Ou seja: a escrita coloca o
de que nos fala Pêcheux ([1982] 1990, sujeito forçosamente diante da injunção
p. 8). São esses traços que atribuem à de interpretar para produzir um efeito
língua seu estatuto de não fechamento, de sentido como se fosse o sentido. Vale
que vão sustentar suas transformações dizer que a escrita, enquanto prática dis-
e seus equívocos. cursiva, trabalha para produzir a ilusão
De outro modo, se a língua é sujeita de sentido único.
a falhas, como estamos vendo neste É, pois, pelo viés da língua que seu
início de seção, podemos considerar que gesto de interpretação, materializado
ela não é transparente. De modo que é na escrita, trará o político para a escrita
com uma língua opaca, sujeita a jogos, e produzirá sentido. Isto é: não se trata
deslizamentos que a escrita é produzida, apenas de recortar e sintagmatizar fios
sendo, em consequência disso, também discursivos dispersos e provenientes do
ela afetada por esses traços de opacidade interdiscurso, mas de fazê-lo a partir de
que determinam a língua com a qual é um determinado lugar discursivo afe-
produzida. Em função disso, o sujeito tado pela ideologia, de modo que nada
que produz a escrita é instado a inter- garante um sentido a priori, isto é, os
pretar, pois “o sentido não preexiste à fios discursivos não são portadores de
sua constituição nos processos discursi- sentidos previamente produzidos e cris-
vos” (GADET; PÊCHEUX, [1981] 2004, talizados, embora estejam associados a
p. 158). O sentido decorre, assim, do uma rede de memória, pois, dependendo
trabalho de interpretação realizado por do posicionamento do sujeito da escrita
um sujeito historicamente determinado, e de seu processo de interpretação, ele
e essa interpretação é resultante da poderá entretecer tais fios, conduzindo-
relação que se estabelece entre a língua -os em determinada direção de sentidos
e a ideologia. Esse trabalho antecede a ou a uma outra direção que antagonize
escrita propriamente dita, pois, como com a primeira.
Orlandi sublinha: Logo, é pelo trabalho sobre os senti-
Não há sentido sem interpretação e a inter- dos, por meio da língua, feito por um su-
pretação é um gesto do sujeito carregado de jeito ideologicamente identificado, que os
ideologia, que torna evidente o que, na reali- fios discursivos ganharão materialidade
dade se produz por complexas relações entre
sujeito, língua e história (2012, p. 153). linguístico-discursiva e produzirão um
determinado efeito de sentido. Melhor
Em outras palavras, frente a saberes dizendo: a identificação ideológica deter-
em circulação, o sujeito os interpreta à mina a interpretação que, por sua vez,

38

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
vai determinar o jogo com a língua. Há A prática discursiva
um jogo sobredeterminado que subjaz à
escrita de um sujeito e que lhe permite da escrita e seu
identificar-se ou contraidentificar-se com atravessamento pela
determinados sentidos, podendo mesmo
cultura
chegar a deslocamentos importantes
que serão a marca de sua resistência A repetição, entre tantas coisas,
por meio da materialização que a língua requer interpretação e memória ao
produzirá em sua escrita. mesmo tempo.
(SCHONS, 2005)
É, pois, pelo viés de uma língua assim
concebida – sujeita a falhas e ao equívo-
co – que a discursividade inscreve-se na Para pensar a noção de cultura, penso
escrita de um sujeito. No entanto, tais ser necessário, antes, passar por outra
determinações históricas não garantem noção, a de formação social. Não pre-
a estabilidade dos sentidos. Como colo- tendo mergulhar na densa e complexa
ca Pêcheux, “só há prática através de literatura que existe sobre essa noção.
e sob uma ideologia” da mesma forma Mas, de qualquer forma, necessito sina-
que “só há ideologia pelo sujeito e para lizar que são vários os caminhos teóricos
os sujeitos” ([1975], 1988, p. 149). Por para dela tratar.
conseguinte, a prática da escrita é ide- Via de regra, minha abordagem dessa
ológica, e seu trabalho consiste em dar noção é a que encontramos nos textos
materialidade linguística à materialida- marxistas, isto é, tomo-a como uma for-
de discursiva, que é a matéria-prima com mação econômico-social que trata das
a qual a escrita se defronta e trabalha, relações sociais a partir dos modos de
interpretando e dando-lhe materialidade produção e de reprodução que caracte-
(INDURSKY, 2009). Trata-se do trabalho rizam uma sociedade. Entretanto, para
dos sentidos sobre os sentidos pelo viés pensar a prática discursiva da escrita,
da interpretação e da resistência que vão entendo ser preciso repensar essa noção,
se fazer presentes na prática discursiva tornando-a mais abrangente. Faço isso,
da escrita produzida por um sujeito. com base nos aparelhos ideológicos de
Portanto, não há interpretação ingênua Estado formulados por Althusser, dentre
nem, tampouco, a escrita o é. É o gesto os quais se encontra o aparelho ideológi-
de interpretação que estabelece a relação co cultural (ALTHUSSER, [1970] 1996).
entre a historicidade dos sentidos e o É em função desse aparelho cultural
trabalho discursivo da escrita. que proponho a retomada da noção de
Por tudo quanto precede, percebe-se formação social, considerando-a como
um denso imbricamento entre ideologia, um sistema complexo, historicamente
interpretação e língua na prática discur- determinado, em que entra em jogo,
siva da escrita. além dos sistemas político e econômico,

39

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
o sistema sociocultural de uma socieda- Mas, como afirma Carme Schons, na
de, de modo que a cultura passe a ser epígrafe desta seção, “a repetição requer
considerada, par e passo, com os demais interpretação e memória ao mesmo tempo”
elementos que a constituem e, em função (2005, p. 152). Ou seja, quando uma práti-
disso, possa ser tomada como um dos ca cultural é mobilizada em uma prática
elementos determinantes da prática de escrita, ela está sujeita à interpretação
discursiva da escrita. produzida a partir do lugar discursivo
Cabe, pois, formular uma noção dis- em que se inscreve o sujeito, que poderá
cursiva de cultura, mesmo que tomada vir a questioná-la e, mesmo, resistir-lhe.
em sua provisoriedade, e relacioná-la às Ou seja, “não há ritual sem falha” e, por
noções do dispositivo teórico da análise conseguinte, “o ritual pode quebrar-se no
do discurso.5 Partindo do fato de que a lapso ou no ato falho” ([1982] 1990, p. 17),
cultura pode ser apreendida em “ma- como nos lembra Pêcheux. Quando isso
terialidades discursivas implicadas em ocorre, o efeito de evidência se opacifica,
rituais ideológicos, nos discursos filosófi- podendo mesmo instaurar-se a dúvida e a
cos, em enunciados políticos, nas formas possibilidade de deslocar seu efeito de sen-
culturais e estéticas” (PÊCHEUX, [1983] tido. Por conseguinte, práticas culturais,
1990, p. 49), pode-se inferir que ela é tal como qualquer outro saber inscrito
constituída de um conjunto de práticas em formações discursivas, funcionam ao
diversificadas, desiguais e não homogê- abrigo tanto da repetibilidade quanto
neas que fazem parte da memória de um da deriva dos sentidos. Podemos dizer,
corpo social, inscrevendo-se, por conse- juntamente com De Nardi, que a cultura,
guinte, no interdiscurso e funcionando ao revestir-se de uma dimensão político-
sob o efeito da ideologia, isto é, seus -histórico-social, traz a “possibilidade de
saberes e seus efeitos de sentido são por ser dinâmica e crítica, de propor rupturas,
ela regulados. de produzir outros dizeres” (DE NARDI,
Os efeitos de sentido que as práticas 2007, p. 63-64).
culturais produzem no âmbito do corpo Porém, em qualquer dos dois casos
social têm um funcionamento ideológico (identificação ou questionamento/resis-
similar ao de uma formação discursiva. tência), as práticas culturais, ao passa-
O sujeito da escrita pode com eles se rem pela interpretação e, posteriormente
identificar e tomá-los como transparen- pela discursivização, tornam-se saberes
tes e cristalizados. Nesse caso, essas culturais que se inscrevem em formações
práticas são naturalizadas e inscrevem- discursivas diversas das quais recebem
-se na ordem da repetibilidade, e funcio- sentido.
nam em rituais que produzem um efeito Assim sendo, saberes/práticas cultu-
de evidência, decorrente da regulação rais não significam a priori. Necessitam
dos sentidos que a repetição produz passar pela interpretação e pela língua
(INDURSKY, 2011, p. 71). para fazerem sentido e, desse modo,

40

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
inscreverem-se em uma prática discur- conjuntamente a memória e o esqueci-
siva da escrita, participando, assim, de mento. Ou seja: o sujeito, em sua prática
sua determinação. da escrita, retoma saberes, o que aponta
para sua inscrição no interdiscurso e na
Interpretação, memória e ordem da repetibilidade. Mas, para es-
crever, o sujeito necessita esquecer que
esquecimento na prática esses sentidos já estão postos. De modo
discursiva da escrita que, ao retomá-los em sua escrita, o faz
como se fossem seus. A prática da escrita,
A escrita, lugar de interpretação,
como se pode ver, põe em jogo, no mesmo
se forma em espaço simbólico
em que a memória trabalha. movimento, a memória discursiva com os
(SCHONS, 2005) sentidos já lá inscritos, que são retoma-
dos e/ou rememorados, e o esquecimento,
Há ainda mais uma articulação teóri- pois é preciso esquecer que os sentidos
ca que vai fazer laço nessa reflexão sobre preexistem para poder dizer.
as determinações da prática discursiva Mas não só. Voltemos a Pêcheux, mais
da escrita. Trata-se da articulação entre uma vez:
memória e esquecimento. Courtine cha- A condição essencial da produção e inter-
mou a atenção sobre o jogo que se trava pretação de uma sequência não é passível
de inscrição na esfera individual do sujeito
entre o lembrar e o esquecer, quando psicológico. Ela reside de fato na existência
afirmou que: “Memória e esquecimento de um corpo histórico de traços discursivos
são indissociáveis na enunciação do que constituem o espaço de memória da
político” ([1983] 1999, p. 22). A medida sequência ([1983] 2011, p. 145).

que passei a refletir teoricamente sobre a A concepção de memória de que trata


análise do discurso, ousei reescrever essa a análise do discurso não é a memória
afirmação, entendendo que memória e subjetiva de um indivíduo, mas o espaço
esquecimento são indissociáveis de todo de memória próprio a uma sequência
e qualquer discurso (INDURSKY, [1997] discursiva. Entretanto, isso não significa
2013). E, no presente artigo, convoco no- que tais sentidos estejam cristalizados.
vamente essa articulação, por entender É ainda Pêcheux que explica:
que memória e esquecimento estão for- [...] “reprodução” nunca significou “repetição
temente presentes na prática discursiva do mesmo”. [...] de tal forma que os processos
da escrita de um sujeito. de reprodução ideológicos também sejam
abordados como local de resistência múlti-
Por essa razão, retomo a epígrafe que pla. Um local no qual surge o imprevisível
abre esta seção, assim, reescrevendo a contínuo porque cada ritual ideológico con-
afirmação de Schons: a prática da es- tinuamente se depara com relações e atos
falhos de todos os tipos, que interrompem a
crita, lugar de interpretação, se forma
perpetuação das reproduções ([1982] 2011,
em espaço simbólico em que trabalham p. 115, grifo do autor).

41

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
O sujeito, em suas práticas discur- lidade ao modo como o sujeito é afetado
sivas de retomada, pode fazê-lo como pela ideologia.
uma rememoração ou pode fazê-lo para Nesse passo, entretanto, é preciso ob-
resistir aos sentidos que sua identifi- servar que quem vai dar conta dessa tra-
cação ideológica lhe apresenta como jetória dos saberes, de suas retomadas,
evidentes e passar a questioná-los pelo apropriações, deslocamentos e derivas
viés da interpretação, que os lançará à é o analista de discurso e não o sujeito
deriva, interrompendo, assim, um ciclo em sua prática discursiva de escrita,
de repetibilidade (INDURSKY, 2011) para quem retomadas e deslizamentos
e fazendo trabalhar os sentidos sobre são da ordem do inconsciente. E é exa-
os sentidos. A repetibilidade, como nos tamente porque o sujeito é atravessado
ensina Pêcheux, não é apenas o lugar da pelo inconsciente que tais deslizamentos
reprodução dos sentidos, mas também tornam-se possíveis, pois o sujeito não
tem controle sobre eles, nem sobre sua
o lugar de produção de resistências. O
relação com a ideologia. Essa é a ques-
sujeito da escrita pode apropriar-se de
tão que me fez interrogar a natureza
sequências discursivas (fios discursivos)
da memória com que o sujeito trabalha
e, ao mesmo tempo, resistir a seus efeitos
sua escrita, ou seja, qual a relação da
de sentido, dando origem, pelo viés da in-
memória social com o modo com que o
terpretação, a deslocamentos e derivas.
sujeito pratica a escrita.
E, assim procedendo, esses novos efeitos
Courtine ([1983] 1999, [1981] 2009),
de sentidos irão se inscrever no espaço
ao tratar da noção de formação discursi-
de memória da sequência e materializar-
va e da memória discursiva que nela se
-se em sua prática discursiva da escrita.
constitui, considera que essa memória é
É a memória discursiva, enquan- lacunar, marcada por interditos, esque-
to categoria de análise (INDURSKY, cimentos, recalcamentos.
[1997] 2013), que permite acompanhar No meu entendimento, o sujeito,
a trajetória de um enunciado, suas re- por sua vez, ao identificar-se com uma
petições bem como suas transformações. formação discursiva, também passa por
E certamente tanto as retomadas como um processo semelhante: identifica-se de
seus deslizamentos subjazem às práticas forma inconsciente e fortemente lacunar
discursivas do sujeito, dentre elas, a com os saberes da memória discursiva.
escrita de que aqui nos ocupamos. Ela Ou seja, sua identificação também é da
constitui o lugar em que as “evidências” ordem da incompletude. Essa memória
dos sentidos materializam o funciona- não é individual nem plena. Esse modo
mento da ideologia, tornando possível lacunar do sujeito relacionar-se com
captar sua reprodução bem como seus essa memória é o que tenho chamado de
deslocamentos. É a escrita que dá visibi- memória fluida.6

42

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
Vejamos esse funcionamento mais cionamento da articulação entre memó-
de perto. O sujeito do discurso, em suas ria e esquecimento. Esses movimentos
práticas discursivas, relaciona-se com da memória fluida, na constituição da
uma memória social inscrita em práti- subjetividade do sujeito, precedem o tra-
cas. Trata-se de uma memória que não balho da escrita, mas é a escrita que vai
é objeto de ensino nem, tampouco, está consolidar essa movimentação, dar-lhe
registrada em compêndios que possam materialidade e visibilidade.
ser consultados. Sobre essa memória Assim procedendo, o sujeito da escrita
não temos controle, pois ela é construída estará produzindo gestos de resistência,
socialmente pelo viés de diferentes prá- e é por meio deles que novos sentidos
ticas sociais. Trata-se de uma memória poderão ser produzidos e inscritos no
fluida, esburacada, esgarçada, marcada espaço de memória das sequências
pela vagueza. Essa memória inscreve-se discursivas. Portanto, a escrita, como
em práticas sociais e é constituída a par- prática social e política, é determinada
tir de fragmentos anônimos de discurso por esse conjunto de relações complexas
mais ou menos completos. Desse modo, o entre língua, história e interpretação,
sujeito-autor, em sua prática discursiva que, por sua vez, são mediadas por uma
da escrita, funciona sob o efeito desse memória fluida.
tipo muito particular de memória, que se Essas são as condições de produção
relaciona lacunarmente com a memória da prática discursiva da escrita.
discursiva, com o interdiscurso, com as
redes discursivas de memória, com os Alinhavando algumas
discursos em circulação. Ou seja: quanto
mais lacunar e esgarçada for a memória
considerações (não)
fluida, mais a prática discursiva da es- conclusivas
crita está sujeita ao equívoco e, mesmo,
A repetição, entre tantas coisas,
ao desconhecimento. requer interpretação e memória ao
Se a prática discursiva da escrita mesmo tempo.
é marcada pelo esquecimento e pelas (SCHONS, 2005)
lacunas da memória fluida, o sujeito em
sua prática é suscetível de se desviar Inicio essas considerações (não)con-
de sentidos com que se identifica, pro- clusivas, comentando seu título: sei,
duzindo deslocamentos entre formações desde já, que vou voltar a girar meu ima-
discursivas. Tais movimentos do sujeito ginário caleidoscópio em outras direções,
abrem a possibilidade de mobilizar fios pois à medida que escrevia este texto
discursivos estranhos à formação discur- pensava outras tantas questões que se
siva que afeta o sujeito e incorporá-los relacionam ao processo da escrita. Mas,
a sua escrita, entrelaçando o memorável agora, é hora de produzir um ponto final
ao estranho, ao desconhecido, sob o fun- para este texto e, para isso, vou alinha-

43

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
var algumas questões que foram sendo os sujeitos se relacionam com os saberes
apresentadas ao longo deste artigo. que são historicamente determinados, e,
Em busca das determinações da dessa forma, essa superfície linguística
prática discursiva da escrita, fui encon- pode se constituir em um observatório
trando relações que, aqui, neste espaço da ideologia. Terceiro: é pela língua que
de fechamento, vou chamar de formas a interpretação do sujeito, que é ideoló-
de articulação. gica, ganha materialidade para produzir
A primeira dessas articulações e a sentido em sua escrita. Quarto: a língua
mais evidente, dentre elas, porque já é opaca e sujeita a falhas, e, em função
há muito tempo trabalhada no campo disso, a escrita do sujeito pode provocar
teórico da análise do discurso, é o ponto deslizamentos e deriva dos sentidos.
de encontro do interdiscurso com o in- A terceira articulação trabalhada nes-
tradiscurso (COURTINE, [1981] 2009; te artigo é a da ideologia com a cultura.
PÊCHEUX, [1975] 1988). Essa articu- Os saberes culturais, que constituem a
lação é extremamente importante para cultura de um corpo social, são da ordem
refletir sobre a prática discursiva da da repetibilidade e da ressignificação.
escrita, porque é nesse ponto que se dá a Por conseguinte, são afetados pela ideo-
passagem dos fios discursivos provenien- logia e à sua luz são interpretados.
tes do interdiscurso e que serão tecidos A quarta articulação examinada esta-
pela língua e materializados na escrita. belece-se entre memória e esquecimento.
É nesse ponto de articulação que o su- Para que haja escrita, o sujeito inscreve-
jeito da escrita apropria-se de saberes -se na discursividade. Ele necessita de
e sintagmatiza-os, promovendo, dessa uma memória prévia para poder dizer.
forma, a atualização de uma memória Mas, paradoxalmente, para que a prática
(PÊCHEUX, [1983] 1990). da escrita se constitua, a retomada de
A segunda articulação examinada discursos e sentidos já-lá precisa ser es-
neste artigo foi a da língua com a ideo- quecida, abrindo espaço, dessa forma, às
logia. Essa articulação foi considerada retomadas (identificações), às reformu-
sob cinco aspectos. Primeiro: é por meio lações (contraidentificações) e, também,
da língua que os saberes provenientes da às transformações (desidentificações). A
formação discursiva e do interdiscurso prática da escrita enlaça inexoravelmen-
são sintagmatizados e materializados, ou te memória e esquecimento pelo viés de
seja, é por intermédio de uma sintaxe dis- uma memória fluida.
cursiva que tais saberes ganham mate- É por meio desses entrecruzamentos
rialidade na escrita, apontando direções tão diversificados que a prática discur-
de sentido. Segundo: a carpintaria lin- siva da escrita se tece e se produz. Mas
guístico-discursiva da língua vai permitir não é só isso que subjaz a essa prática.
observar os diferentes modos com que Passemos, então, às determinações pro-
priamente ditas.

44

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
Como vimos, pelas diferentes articula- Como podemos perceber, a prática
ções que se atravessam e se materializam discursiva da escrita é uma prática polí-
na escrita do sujeito, essa prática é tecida tica e social, sobredeterminada pelo im-
de discursos e saberes culturais e inscreve bricamento entre ideologia, interpreta-
o sujeito no corpo social e na discursivi- ção e a língua, que, como vimos no corpo
dade em circulação. Esse é o papel da deste artigo, é marcada pela opacidade,
rememoração nos processos de escrita. sujeita a falhas e equívocos. Assim, a es-
Por conseguinte, ela é uma prática deter- crita, tecida de discurso e materializada
minada socialmente. E, também, por ser pela língua, sofre várias determinações
uma prática de sujeitos ideologicamente antes de desaguar na textualização, que
constituídos, ela carrega, em sua materia- vai carregar em si as marcas de uma
lidade, os vestígios de sua determinação língua não fechada e sujeita a falhas.
histórica. Portanto, a prática discursiva Uma escrita assim pensada é um espaço
da escrita é politicamente determinada. simbólico, resultante de encontros, de-
Com base no que precede, entendemos sencontros e confrontos mediados pela
que o sujeito, em sua prática discursiva memória e o esquecimento.
da escrita, passa por um conjunto de de-
terminações que subjazem à sua prática Produzindo um
da escrita. Essas determinações do su-
jeito podem ser desenhadas como segue.
efeito-fecho
E, assim, ao chegar ao término deste
Interpelação ideológica → interpretação artigo, este efeito-fecho, na verdade,
das discursividades e das práticas/ devolve-me ao início deste trabalho e
saberes culturais → materialização para meu propósito. Escrever sobre a
pela língua → escrita prática discursiva da escrita foi o modo
de homenagear Carme e sua reflexão. De
Observando tais determinações do su- seus escritos, tomei a noção de escrita,
jeito em sua prática discursiva e o modo para com Carme estabelecer um diálogo
como elas estão encadeadas, percebe-se teórico, pois esse é um tema de que ela
que há uma ordem que não é aleatória se ocupou em um artigo do qual me fiz
e que é determinante do processo da acompanhar ao longo deste trabalho. Em
escrita. Entendemos tratar-se de um um determinado ponto de seu artigo, a
processo de determinação do sujeito que, autora afirma que:
por sua vez, determina sua prática da
[...] o trabalho da escrita nem sempre se
escrita, ou seja, trata-se de um processo constrói em torno de sujeitos e espaços
complexo que inicia no sujeito e se esten- definidos e a ausência de um interlocutor
de à sua prática discursiva da escrita, remete a uma fronteira não localizável
(2005, p. 139).
sobredeterminando-a.

45

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
No caso aqui presente, este artigo Notas
constrói-se com sujeitos definidos e tendo
1
Carme como o interlocutor primeiro. Ela Efeito-início é uma noção formulada por Noeli
Tejera Lisbôa em sua dissertação de mestrado A
foi uma presença-ausente ao longo de pontuação do silêncio: uma análise discursiva da
minha escrita. Carme, que passou por escritura de Clarice Lispector, defendida na Uni-
nossas vidas e cuja escrita engajada e versidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2008.
2
Em trabalho anterior, A escrita à luz da análise
apaixonada se entrelaçou à de muitos de do discurso (2009), busquei opor escrita a escri-
nós, e que neste artigo veio entrelaçar- tura para abordar as duas faces de um mesmo
trabalho discursivo que se materializa no texto.
-se à minha. Carme que conduziu meus Embora escrita, aqui, não traga o mesmo enfoque
passos, levando-me a retomar meus teórico que lá assumia, tem, como ponto de conta-
textos e rascunhá-los novamente para, to, o fato de que em ambos os textos, escrita não
trata de uma atividade empírica, tomada como
junto com ela, refletir sobre a prática ato concreto de escrever, mas de uma prática
discursiva da escrita. discursiva do sujeito interpelado pela ideologia.
3
Andriana Pozzani de la Vieille e Silva traba-
lhou sobre essa questão em sua dissertação de
Les déterminations de mestrado, Entretextualidade nas fronteiras do
enunciável: um olhar sobre o processo discursivo
la pratique discursive de de reformulação de livros, defendida na Univer-
l´écriture 4
sidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2008.
A noção de efeito-fecho foi formulada por Solange
Maria Leda Gallo em sua tese de doutorado intitu-
Résumé lada Texto: como apreender esta matéria, defendida
Cet article propose la refléxion sur na Unicamp; publicada, posteriormente, em 2008,
com o título Como o texto se produz: uma perspec-
la pratique discursive de l´écriture
tiva discursiva.
à la lumière du dispositif théorique 5
Maria Cristina Leandro Ferreira reflete sobre o
de l´analyse du discours, prenant en lugar da cultura no âmbito do dispositivo teórico
considération que l´écriture, dans ce da análise do discurso. Conferir: FERREIRA,
domaine théorique, est la pratique Maria Cristina Leandro. O lugar do social e da cul-
d´un sujet traversé par l´inconscient tura numa dimensão discursiva. In: INDURSKY,
et interpellé par l´idéologie, d´un côté F., MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L. (Org.).
Memória e história na/da análise do discurso.
et, de l´autre, elle se produit à partir
Campinas: Mercado das Letras, 2011. p. 55-64.
de la reprise de savoirs inscrits dans 6
A noção foi desenvolvida no texto O ciclo da
l´interdiscours, par le travail discursif autoria nas práticas discursivas do sujeito, a
de la l´interpretation, la mémoire et ser publicado em livro organizado por Filomena
l´oubli. Voilà l´encadrement qui établit Elaine Assolini e publicado pela Pontes.
les conditions pour définit et examiner
les éléments qui déterminent cette
pratique discursive. Referências
Mots-clé: Déterminations historiques ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos
et sociales. Interprétation. Langue. de Estado. In: ZIZEK, Slavoj. Um mapa da
Mémoire et oubli. Matérialité linguis- ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
tique-discursive. p. 105-142. (Originalmente publicado em 1970).
COURTINE, Jean-Jacques. Análise do dis-
curso político. São Carlos: Edufscar, 2009.

46

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016
Traduzido de: Analyse du discours politique. _______. Discurso e texto. Campinas: Pontes,
(Originalmente publicado em 1981). 2001.
_______. O chapéu de Clémentis: observações _______. Discurso em análise: sujeito, senti-
sobre a memória e o esquecimento na enun- do, ideologia. Campinas: Pontes, 2012.
ciação do discurso político. In: INDURSKY,
Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro PÊCHEUX, Michel. Delimitações, inversões,
(Org.). Os múltiplos territórios da análise do deslocamentos. Cadernos de Estudos Lin-
discurso. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1999. guísticos, Campinas, n. 19, p. 7-24, jul./dez.
p. 15-22. (Originalmente publicado em 1983). 1990. (Originalmente publicado em 1982).

DE NARDI, Fabiele S. Um olhar discursivo _______. Discurso: estrutura ou acontecimen-


sobre língua, cultura e identidade: Refle- to. Campinas: Pontes 1990. (Originalmente
xões sobre o livro didático para o ensino publicado em 1983).
de espanhol como língua estrangeira. Tese _______. Ideologia: aprisionamento ou campo
(Doutorado em Teorias do texto e do discur- paradoxal? In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Aná-
so) – Programa de Pós-Graduação em Letras, lise de discurso: Michel Pêcheux. Campinas:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pontes, 2011. p. 107-119. (Originalmente
Porto Alegre, 2007. publicado em 1982).
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A _______. Leitura e memória: projeto de pes-
língua inatingível: o discurso na história e na quisa. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Análise de
linguística. Campinas: Pontes, 2004. (Origi- discurso: Michel Pêcheux. Campinas: Pontes:
nalmente publicado em 1981). 2011. p. 141-150. (Originalmente publicado
GALLO, Solange. Como o texto se produz: em 1983).
uma perspectiva discursiva. Blumenau: _______. Semântica e discurso. Campinas:
Nova Letra, 2008. (Originalmente publicado Unicamp, 1988. (Originalmente publicado
em 1994). em 1975).
INDURSKY, Freda. Da heterogeneidade PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. A
do discurso à heterogeneidade do texto e propósito da análise automática do discurso:
suas implicações no processo de leitura. In: atualização e perspectivas. In: GADET, Fran-
ERNST-PEREIRA, Aracy; FUNCK, Suzana çoise; HAK, Tony (Org.). Por uma análise auto-
B. (Org.). A leitura e a escrita como práticas mática do discurso: uma introdução à obra de
discursivas. Pelotas: Educat, 2001. p. 27-42. Michel Foucault. Campinas: Unicamp, 1990. p.
_______. A fala dos quartéis e as outras vozes. 163-252. (Originalmente publicado em 1975).
2. ed. Campinas: Unicamp, 2013. (Original- SCHONS, Carme Regina. Escrita, efeito
mente publicado em 1997). de memória e produção de sentidos. In:
_______. A escrita à luz da análise do discur- SCHONS, Carme Regina; RÖSING, Tania M.
so. In: CORTINA, Arnaldo; NASSER, Sílvia K. (Org.). Questões de escrita. Passo Fundo:
Maria Gomes (Org.). Sujeito e linguagem. São UPF Editora, 2005. p. 138-156.
Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. p. 117-131. _______. “Adoráveis” revolucionários: produ-
_______. A memória na cena do discurso. In: ção e circulação de práticas político-discursi-
INDURSKY, Freda; MITTMANN, Solange; vas no Brasil da Primeira República. 2006.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro (Org.). Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem)
Memória e história na/da análise do discurso. – Programa de Pós-Graduação em Letras,
Campinas: Mercado de Letras, 2011. p. 67-89. Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2006.
ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria,
leitura e efeitos do trabalho simbólico. Pe-
trópolis: Vozes, 1996.

47

Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 30-47 - jan./jun. 2016

Você também pode gostar