Você está na página 1de 8

ENUNCIAÇÃO, AUTORIA E ESTILO

Sírio Possenti
Professor da Universidade Estadual de CAMPINAS – UNICAMP

RESUMO

Este trabalho defende a hipótese de que os conceitos de enunciação, de autoria


e de estilo podem ser conjugados numa teoria do discurso e que é possível
articulá-los não só para análise de textos, mas também para fundamentar
práticas pedagógicas.
Palavras-Chave: enunciação – autoria – estilo – escrita escolar

ABSTRACT

ENUNCIATION, AUTHORSHIP AND STYLE


This paper defends the hypothesis that the concepts of enunciation, authorship
and style can form a nexus within a theory of discourse and that these concepts
can be articulated not only for the purpose of textual analysis, but also to support
pedagogical procedures in the teaching of composition.
Key words: enunciation – authorship – style – school composition

O objetivo deste trabalho é tentar mostrar que ço “pessoal”, a ser tratado possivelmente no domí-
enunciação, autoria e estilo, conceitos que, supos- nio que se tem chamado, em mais de um lugar, de
tamente, não poderiam conviver numa mesma teo- singularidade. A tentativa de tornar esses concei-
ria, podem ser reinterpretados de maneira produti- tos produtivos e relevantes em conjunto será
va, sem qualquer violência teórica, ou seja, podem esboçada (apenas esboçada) em relação a textos
ser compatibilizados entre si e com a Análise do escolares, considerados mal acabados pelos mais
Discurso. Isso exige, no entanto, em primeiro lugar, óbvios parâmetros usuais, especialmente os esco-
que se retire o estilo do domínio, para uns exclusi- lares.
vo, do romantismo; em seguida, que se redefina 1. A noção de estilo mais corrente é, a rigor,
autoria, de modo a fazer com que o conceito não se romântica, e só fez sentido na medida em que foi
aplique apenas a personalidades (os próprios “au- compreendida como a expressão de uma subjetivi-
tores”), ou seja, para que não funcione apenas em dade (unitária, psicológica). Tanto a estratégia do
determinada relação de autor-obra, por um lado, e desvio quanto a da escolha, categorias alternati-
que não seja concebido apenas como idiossincrasia, vamente utilizadas na tradição da estilística, tanto
por outro; finalmente, requer-se uma concepção de para descrever um fato de língua (ou de texto)
enunciação tal que possa dar conta simultaneamente quanto para descrever uma atividade psicológica,
da produção de discurso a partir de uma posição confirmam basicamente esta inscrição romântica.
(institucional, por exemplo) e como acontecimento A escolha tem sido entendida, talvez injustamente,
irrepetível, marcado eventualmente por algum tra- como uma opção entre alternativas dadas, seja en-

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 15-21, jan./jun., 2001 15


tre palavras, seja entre construções, feita com ple- palavras...), desde que seja entendido como um certo Organzação
na consciência, quer das alternativas, quer do efei- modo de organizar uma seqüência (de qualquer da
to (de sentido) que cada uma delas produziria (tam- extensão), focando-se como fundamental a rela- sequência ->
bém imaginado uniforme, independentemente do ção entre esta organização e um determinado efei- efeito de
sentido
processo de leitura e, evidentemente, do leitor). Um to de sentido, sem compromissos com psicologismos
autor onisciente escolheria a melhor das alternati- e com concepções simplórias de língua e de lingua-
vas para cada caso, calcularia detalhadamente os gem (e de texto, de gênero, etc.). Para ficar um
desvãos e os detalhes de sentido, suporia leitores pouco mais claro que se pode reformular a noção:
que se dariam conta exatamente de suas manobras se, em um novo quadro teórico, se continuar dizen-
(o que pode parecer compatível com a concepção do que (isto é, se as palavras forem estas), no que
de sentido como intenção). A noção de desvio, além se refere ao estilo, a escolha é sim uma categoria
de fundar-se também, em boa medida, no mesmo constitutiva, tal escolha não poderá ser definida
fator, a consciência, já que o desvio seria efeito de como um gesto que decorre simplesmente de uma
Decisões
conscientes uma decisão pensada do autor, opera com uma con- avaliação do peso das alternativas por parte de um
cepção de língua mais ou menos uniforme, ou, pelo sujeito/autor onisciente e todo-poderoso, livre de
menos, com uma noção de língua típica, modelar, qualquer amarra institucional. Pois é inevitável, a
talvez com uma noção de estilo típico, característi- não ser que se pense que uma língua é efetivamen-
Concepção
co, o que, convenhamos, coincide com uma con- te congelada e uniforme para todos os falantes, to-
de língua
uniforme cepção de língua ou de linguagem uniforme, para dos os gêneros e todas as circunstâncias, aceitar
todos os efeitos. Poder-se-ia dizer, talvez, que, se- que dizer de um certo modo implica não dizer de
gundo essa concepção, apenas e de fato tem-se outro. Ou seja, a escolha é uma necessidade estru- Enquanto
estilo quando há um desvio (decorrente talvez de tural (qual seja ela, ou entre que ingredientes a es- necessidade
estrutrual,
uma escolha) em relação a uma linguagem, que seria colha se dá é um efeito de condicionantes específi- então, não
não marcada (aliás, a noção de “marca” é certa- cos), um dos efeitos da multiplicidade de recursos existe
mente uma forma instigante de tentar desembru- de expressão disponíveis, tanto no caso das línguas discurso/text
lhar este problema). Como se pode ver, essas con- naturais quanto no de outras linguagens, sejam elas o/língua sem
cepções têm tudo para ser consideradas mais ou as matemáticas ou qualquer um dos demais siste- estilo (?)
menos simplórias e ingênuas, seja no que se refere mas “semiológicos” – figuras, cores, fotos, sinais,
a falante/locutor/autor – hoje todos crêem que ele etc. Deste modo, pode-se recolocar a questão da
escolhe pouco, ou nada, seja no que se refere a escolha no interior de uma concepção de língua, de
língua/texto/estilo – hoje mais ou menos corrente- enunciado e de gênero, tais como desenhadas, di-
mente concebidos como heterogêneos. Sendo as- gamos, pelo menos à moda bakhtiniana (fugindo das
sim, pareceria que a noção de estilo deve ser aban- gramáticas e de seus desvios). Sendo menos cré-
donada, em decorrência de sua pouco recomendá- dulos em relação a uma eventual capacidade do
vel vida pregressa.∗ falante/escrevente de calcular adequadamente a
No entanto, como ocorre com muitas outras, forma de seu texto segundo um conjunto complexo
também essas categorias podem ser repensadas de fatores e objetivos, diríamos, pelo menos, que a
(ressignificadas, dir-se-ia), para dar conta de um escolha é um efeito da multiplicidade dos recursos,
fato que é, aparentemente, inescapável – o estilo. que competem entre si a todo o instante. Esta apro-
Não há porque não chamar a este fato de estilo priação poderia agradar até mesmo aos que acei-
(seria crer demasiadamente no sentido fixo das tam que tudo é efeito de linguagem, desde que pen-
sem a linguagem e sua relação com o “mundo” de
maneira não simplória.
∗ Uma variante da posição romântica explora as diversas Como se pode ver, a escolha pode ser entendida
funções da linguagem, associando estilo à função à moda romântica, como efeito do cálculo de um
expressiva – como se pode ver exemplarmente em indivíduo, mas pode ser entendida, alternativamen-
diversos trabalhos de Câmara Jr. (1979). te, como efeito de uma multiplicidade de alternati-

16 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 15-21, jan./jun., 2001


vas – decorrente de concepções de língua como lo) a questão da autoria quando se trata de outros
objetos heterogêneos –, diante das quais escolher espaços que não sejam os de uma obra ou de uma
não é um ato de liberdade, mas o efeito de uma discursividade. Provavelmente não há resposta no
inscrição (seja genérica, seja social, seja discursiva). trabalho de Foucault (nem as perguntas seriam pos-
Portanto, trata-se de efeito de exigências síveis, a rigor) para questões como “quais seriam e
enunciativas, como no caso dos jansenistas e dos como poderiam ser organizados os indícios de au-
humanistas devotos, magistralmente analisado por toria em textos de escolares?”. Pois esta é exata-
Maingueneau (1984), e não de efeito de personali- mente a questão que me interessa – e interessa a Possenti não
dade ou de caracterologia, como o demonstra mui- muitos – e creio que ela deve ser pensada em ter- quer se valer
to claramente Granger (1968), que comentei e es- mos completamente diversos dos de Foucault, mas nem dos
tendi em Possenti (1988). também dos do romantismo, evidentemente (aliás, parâmetros
românticos
2. Apropriação similar, feita de outro ponto de talvez nem fosse possível reivindicar-se romântico
nem dos de
vista teórico em relação a uma certa tradição, pode fora do domínio das obras, sem baratear excessi- Foucault.
ser efetuada relativamente ao conceito de autor. vamente o conceito de “romântico”). Para tanto,
Sabemos que este conceito também tem creio que é a Análise do Discurso que permite uma
conotações românticas poderosas, na medida em saída produtiva: conjugar, o que não quer dizer so-
que, correta ou incorretamente, é a um autor que mar, diversas facetas das teorias da enunciação,
as obras são referidas. E que, por mais que a pala- compatibilizando-as, fazendo-as avançar, se é que
vra seja forçada a referir uma entidade ou uma fun- essa palavra também não é suspeita.
ção histórica, não deixa de conotar pessoa, indiví- Os elementos fundamentais para repensar a
duo, unidade, “eu”. Mais ou menos recentemente, noção, imagino, são os seguintes: por um lado, deve-
a noção de autor foi profundamente alterada e se reconhecer que, tipicamente, quando se fala de
1
deslocada. De uma parte, muito (talvez em dema- autoria, pensa-se em alguma manifestação peculi-
sia) se disse sobre sua morte, o que equivaleu, fun- ar relacionada à escrita; em segundo lugar, não se
damentalmente, a trabalhar para que a interpreta- pode imaginar que alguém seja autor, se seus tex- 2
ção de um texto não se confundisse com as tenta- tos não se inscreverem em discursos, ou seja, em
tivas de acesso a uma intenção ou a um projeto domínios de “memória” que façam sentido; por fim,
individual. De outro, mostrou-se bastante claramen- creio que nem vale a pena tratar de autoria sem
3
te que a função autor é, em primeiro lugar, históri- enfrentar o desafio de imaginar verdadeira a hipó-
ca, tanto no sentido de que não se caracteriza a tese de uma certa pessoalidade, de alguma singula-
partir de uma personalidade quanto no sentido de ridade. Ou seja, se se aceita que tudo se resume
que ela se modifica em decorrência das alterações apenas a uma inscrição de sujeitos em posições
e diversificações das modalidades enunciativas. prévias, a assujeitamento, então, a noção de autor
Foucault (1969) foi provavelmente quem melhor deve ser resolvida a navalhadas (penso na navalha
tratou de uma questão aparentemente paradoxal: de Ockam, evidentemente...). Creio, no entanto, que
se o autor morreu, como é que ele funciona desde a AD pode muito bem redefinir, especialmente com
então, ou apesar de sua morte? Segundo seu ponto base nos trabalhos de Bakhtin, De Certeau e Authier-
de vista, o autor tem basicamente a seguinte ca- Revuz, as características acima mencionadas que
racterística: define-se por relação ou com uma obra cheirem a posições de antes de Freud e de Marx –
ou com uma discursividade. Neste sentido, foi e do estruturalismo, não nos esqueçamos.
Foucault certamente quem estabeleceu as mais in- 3. O mesmo movimento pode ser feito a propó-
teressantes questões a serem investigadas no que sito da noção de enunciação. Como o conceito é
se refere a esse problema. mais corrente, limito-me a assinalar as formas ex-
O tratamento de Foucault, no entanto, deixa com- tremas. A enunciação tem sido compreendida, tipi-
pletamente em aberto (ou a apaga definitivamente, camente, ou como um ato individual, como na leitu-
na medida em que ele sequer se refere à questão e ra mais radical de Benveniste, que faz dele pratica-
seguidores pensam que também não podem fazê- mente um pragmaticista (o que é, a meu ver, um

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 15-21, jan./jun., 2001 17


grosseiro equívoco), ou ela é compreendida à moda indício, depois do estrondoso e suspeito sucesso das
de Foucault (ou melhor, de um simulacro de seu grandes análises estruturais. Um sintoma certamen-
pensamento, como se pode verificar lendo o deba- te relevante desta reviravolta é o retorno da narra-
te que sucedeu à apresentação pública do traba- tiva na história, pois assim se põem em cena de
lho) ou da Análise do Discurso mais estrita e dura, novo exatamente os acontecimentos e os agentes,
caso em que enunciação implica a prioridade, ou por oposição às estruturas.
melhor, a exclusividade do lugar ou da posição, e 5. Em 01/10/2000, Marta Avancini, que cobre
define fundamentalmente o sujeito como função ou “educação” no jornal O Estado de S. Paulo, publi-
como forma, excluída qualquer conotação de cou extensa reportagem sobre supostos efeitos
pessoalidade. maléficos da introdução do sistema de ciclos nas
4. Creio, pois, que os três conceitos podem ser escolas estaduais paulistas. A matéria é até cuida-
apropriados em outras dimensões teóricas. Em ne- dosa, dá voz a variadas personagens (alunos, pais,
nhum dos três casos se trata de fazer uma espécie professores) e deixa falar mais de um ponto de vis-
de média, assumindo posições do tipo “assujeitado, ta – apesar do tom mais ou menos evidente de con-
ma non troppo”, “a enunciação é institucional, mas denação. Não vou me deter na análise dos discur-
é também pessoal”, e “alguém é autor de um texto, sos que se podem destacar na extensa matéria. Vou
evidentemente, mas nenhum é autor exatamente ater-me apenas a dois de seus componentes, na
como o outro”. O verdadeiro problema é tentar verdade, dois boxes (ou quase isso): em um deles
verificar em cada caso, em cada gênero, em cada podem ser lidas avaliações de especialistas; no ou-
instituição, de que tipo de estilo, de enunciação e de tro, estão transcritas – com algum tratamento es-
autoria se trata, ou seja, a questão é não apagar pecífico – várias redações de alunos, cujo desem-
fatos em nome de uma teoria simplificadora, por penho serve de evidência, para o leitor, de que o
mais que isso seja tentador e por mais que a noção sistema de ciclos deve ser condenado. Farei algu-
de fato não seja óbvia. Especialmente, trata-se de mas considerações em relação aos depoimentos dos
não desprezar o próprio processo de inscrição do especialistas e, em seguida, alguns comentários
sujeito, naquilo que ele tem efetivamente de pro- sobre certos aspectos dos textos dos alunos, en-
cesso (como, por exemplo, o processo de quanto tais, em primeiro lugar, e, em seguida, quan-
escolarização), ou, ainda, trata-se de não deixar de to a certas intervenções estratégicas do jornal que
analisar, como se se tratasse de uma questão me- os publicou.
nor, o fato de que alguém que escreve (ou tenta 5.1. A manchete de um dos boxes é “FALTA
escrever) é homem ou mulher (menino ou menina, DE BASE EM PORTUGUÊS AFETA TUDO”.
no caso da escolarização), é mais ou menos con- Dele constam, e chamam especialmente a aten-
servador, pobre ou negro, é marcado por um sota- ção, os seguintes trechos:
que e não por outro (o que interfere na aquisição a) “Os meninos não sabem o que estão falan-
de aspectos da escrita), já foi ou não perseguido do” diz a educadora América dos Anjos Costa Ma-
pela polícia ou pertence ou não a uma família de rinho... Ela identifica problemas de ortografia, pon-
alguma forma desajustada, sonha ou não ser joga- tuação e encadeamento. “Alguns reproduzem na
dor de futebol ou pagodeiro, pelas milhares de ra- escrita o som que escutam”;
zões que levam alguém a vislumbrar essas e não b) Isso significa que os meninos não aprende-
outras saídas, etc. Ou seja, trata-se de postular não ram a convenção, o que fica evidenciado quando
uma espécie de média estatística entre o social e o escrevem ‘profesora’ em lugar de “professora”, diz
individual, mas de tentar captar, através de instru- América, que, antes de se dedicar às pesquisas,
mentos teóricos e metodológicos adequados, qual é trabalhou durante 15 anos na rede pública...;
o modo peculiar de ser social, de enunciar e de enun- c) Para a também educadora Idnéia Semeghini-
ciar de certa forma, por parte de um certo grupo e, Siqueira, da USP, as deficiências apresentadas por
eventualmente, de um certo sujeito. Trata-se, em esses estudantes em língua portuguesa tornam
suma, de priorizar o pequeno, o quase desprezível inviável o aprendizado em todas as outras discipli-

18 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 15-21, jan./jun., 2001


nas. “A língua portuguesa é o eixo regulador de cursos, de enunciações cheias de sentido). Não
tudo” afirma. Ela também identifica deficiências em conseguir entender o que está escrito é evidente-
ortografia e pontuação; mente um problema do capitão-de-fragata José
d) O ex-reitor da Universidade de Brasília José Carlos Azevedo, cuja especialidade é notoriamente
Carlos de Azevedo considera mais grave ainda a outra. E é certamente pouco técnica – nesse senti-
incapacidade dos estudantes de se comunicarem. do, mais “errada” que qualquer coisa que apareça
“Não se consegue entender o que eles escrevem, nas redações – a tentativa de explicação de aspec-
tal a confusão mental a que chegaram e a incapa- tos da ortografia (como será possível reproduzir
cidade de se expressarem de forma compreensí- na escrita os sons que se escutam? A escrita teria
vel”;
que ser sonora...).
e) “... As duas educadoras ressaltam ainda que
5.2. Outro box, o que transcreve alguns textos
embora não saibam se expressar direito, as crian-
de alunos, é assim introduzido: “Os textos de alu-
ças têm opiniões e idéias próprias”.
nos da 5a série obtidos pelo Estado são aterrado-
Merecem evidentemente destaque, por serem
excessivamente grosseiras, preconceituosas e equi- res, tanto em termos de ortografia quanto de orga- :(
vocadas, observações como “Os meninos não sa- nização de idéias. Eles escrevem como falam e
bem o que estão falando”, “Alguns reproduzem na falam errado. Muitas vezes, suas frases só fazem
escrita o som que escutam” e “Não se consegue sentido se lidas em voz alta”. Abaixo estão duas
entender o que eles escrevem, tal a confusão men- das sete redações transcritas. À esquerda estão os
tal a que chegaram e a incapacidade de se expres- textos tais como publicados (incluindo-se as anota-
sarem de forma compreensível”. Basta ver os tex- ções do jornal, em itálico e entre parênteses). À
tos para verificar que os meninos sabem muito bem direita, está uma versão, digamos, padrão (de mi-
do que estão falando (trata-se de verdadeiros dis- nha responsabilidade).

“E terrivelmente violento um menino este dias É terrivelmente violento. Um menino, esses dias,
sem quere porque o outro empurrou ele ele esbarou sem querer, porque o outro empurrou ele, ele es-
no ouro muleque ele já foi pra sima dele ai ele barrou no outro moleque, ele já foi pra cima dele,
chingou o muleque”. aí ele xingou o moleque.

“A violencia começo (começou) assim um “A violência começou assim: um emprestou a


impresto (emprestou) a borracha para o outro co- borracha para o outro colega. Aí o outro perdeu
lega ai, u outro perde o (perdeu) a borracha ai o a borracha. Aí outro falou: - Dá aí minha borra-
outro falo: daí minha borracha que eu vou usar cha, que eu vou usar agora. - Ô meu, eu perdi. O
agora o meu eu perdi o outro falou: se vai da ou- outro falou: - Você vai dar outra. - Eu não vou
tra (você vai dar outra). Eu não vou dar não en- dar não. - Então eu te pego no hora da saída. Aí
tão eu ti pego no hora da saida. aí começo. Ai começou. Aí, porrada de lá, porrada de cá, e as-
porrada de lá porrada de cá e assim vai. Aí ou tro sim vai. Aí o outro tirou a arma do bolso e atirou.
tiro arma do bolso e atiro: pro que isso pessoal - Por que isso, pessoal? Por causa de uma bor-
por causa de uma borracha seis (vocês) vão bri- racha vocês vão brigar”.
gar”.

Afirmações como “escrevem como falam e fa- possível em decorrência de um olhar claramente
lam errado” é que são aterradoras. Dizer que as enviezado, que desconhece, para dizer pouco, a
frases só fazem sentido se lidas em voz alta só é natureza de certos ingredientes que certamente são

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 15-21, jan./jun., 2001 19


recorrentes no processo de aquisição da escrita, frases de Machado de Assis ou as construções tí-
olhar que decorre de uma concepção muito especí- picas de Guimarães Rosa). Poder-se-ia, no entan-
fica, e simplificada, de pontuação. Já não ver orga- to, aproveitar outra afirmação dos especialistas
nização de idéias nos textos dos alunos é efeito de ouvidos para reivindicar a existência de traços de
puro preconceito. É imaginar, primeiro, que as idéi- autoria. Pode-se ler num dos boxes que “As duas
as são uma contraparte exata das frases, e segun- educadoras ressaltam ainda que embora não sai-
do, que, para que as idéias sejam compreensíveis, bam se expressar direito, as crianças têm opiniões
as frases devem estar “logicamente” separadas e idéias próprias” (uma seqüência, aliás, que, se
umas das outras pelos sinais de pontuação adequa- produzida pelos alunos, seria considerada confusa,
dos. dadas as notórias falhas de pontuação...). Mas é
Mas estas não são as verdadeiras questões re- melhor ainda escolher outro exemplo. Penso que
levantes aqui. O que é relevante é anotar em que não ficaria mal em qualquer trecho de autoria de
medida tem-se nestes casos estilo, autoria e um escritor profissional a seqüência “aqueles que
enunciação. Vejamos brevemente, pois, em que soltam bomba, as brigas com garrafa, pau, espada,
medida os textos apresentam tais “marcas”. Que pedra”. Um analista poderia ver aqui uma peculiar
há enunciação fica evidente, se considerarmos que seqüência de oclusivas e vibrantes e a alternância
os alunos enunciam de um lugar social muito bem de palavras mais longas e mais breves, e até mes-
definido, sobre temas relevantes, para eles e para mo a ausência de preposições – e ver nessa orga-
muitos segmentos da sociedade. Além disso, o que nização do texto efeitos de tipo “poético” mais ou
dizem é o que se diz correntemente, e esse fato menos evidentes: representação dos ruídos, da ra-
mostra que se trata de sujeitos que enunciam a partir pidez com que os fatos narrados se sucedem, etc.
de condições de produção específicas, que levam O uso de vírgulas, ao invés de conjunções, faz com
em conta ingredientes extremamente relevantes da que a enumeração produza como efeito que todos
memória social. Ou seja, seu discurso é um dos os instrumentos utilizados na briga são avaliados
discursos que circulam no mundo de hoje, especial- exatamente da mesma maneira, que a confusão não
mente no mundo urbano. Trata-se de narrativas vi- tem intervalo algum.
vas, da “veiculação” de fatos quotidianamente vi- Valeria a pena certamente tentar avaliar a re-
vidos, em relação aos quais se podem verificar, nas presentação que o jornal faz do grau de dificuldade
redações, discursos de avaliação: são tematizadas de leitura dos textos dos alunos tais como foram
questões como disciplina, autoridade, violência, e redigidos. É de notar, por exemplo, que não há qual-
praticamente nos mesmos termos, por exemplo, do quer socorro ao leitor para que possa ler algumas
discurso da mídia e das diversas autoridades, ou de das palavras grafadas de forma “errada” como, p.
pais e professores. Que nestes textos existe auto- ex., poliscia (polícia), fucionarios (funcionári-
ria é mais do que evidente, se se utilizam instru- os), pinxa (pixa), pal (pau), preda (pedra), conbate
mentos adequados para ver. Os textos transcritos (combater), provesoras (professoras), iginoram
não são textos “escolares” do tipo “A escola é bo- (ignoram), enquanto são transcritas entre parênte-
nita. A escola é amarela”, ou mesmo lugares co- ses “corretamente” tantas outras tantas palavras
muns, até pertinentes, diga-se, como “violência gera cuja grafia não é necessariamente mais “distante”
violência”. As narrativas têm valor equivalente ao da oficial do que a destas.
das reportagens, no mínimo. Observe-se, finalmente, que não há qualquer
A questão da existência de traços de estilo tal- “ajuda” para ler trechos cuja pontuação não é
vez seja a menos óbvia, a não ser que se observe – canônica, e que são certamente os trechos consi-
o que não é do todo equivocado – a especial “mis- derados confusos e sem sentido, que são impossí-
tura” de oralidade e escrita, ou os indícios eviden- veis de entender. Creio ser este o pior sintoma: que
tes de um processo de aquisição desta tecnologia. muitos de tais especialistas só entendem de orto-
Talvez não se verifiquem traços de pessoalidade grafia, mas dela não compreendem definitivamen-
ou singularidade (não há nada como as famosas te nada.

20 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 15-21, jan./jun., 2001


Suponhamos que pais ou professores ou outras luta para as atividades de linguagem significativas,
autoridades educacionais perguntassem o que é que especialmente a leitura e a escrita, com especial
se pode fazer com alunos que escrevem assim. destaque para as atividades de escrita. Creio que
Creio que há algumas respostas mais ou menos evi- qualquer professor poderá descobrir um dia que é
dentes, dadas as pesquisas já disponíveis, que en- muito mais fácil trabalhar a escrita a partir dos tex-
volvem principalmente questões relativas à nature- tos dos alunos, especialmente quando eles contêm
za da escrita, informadas por teorias sociolingüís- sangue, suor e lágrimas, como os que vimos acima,
ticas, psicolingüísticas e discursivas. Em primeiro do que tentar ensinar regras descontextua-lizadas,
lugar – esta é evidentemente a prioridade absoluta que assim se tornam sem sentido. Os alunos, esses
– trata-se de garantir condições de vida digna a alunos discriminados, mostraram que sabem fazer
esses alunos e a suas famílias, o que implicaria pro- sua parte. O que lhes falta é relativamente pouco.
vavelmente em defender outro modelo econômico. Se as aulas consistirem em reescrever textos como
A alteração dos rumos políticos poderia produzir os acima, se tais aulas – perfeitamente possíveis –
como um de seus efeitos que a escola não continu- se repetirem durante alguns anos, talvez a questão
asse sendo tão grosseiramente, pelo menos, uma de reprovar ou não reprovar alunos (pelo menos
maquinaria destinada a excluir, para usar termos em português) deixe de ser um alternativa – ou um
de Foucault. Suponhamos, no entanto, que nos di- dilema.
gam que estes são sonhos impossíveis e que se Para finalizar, uma pergunta necessária: o que é
pergunte se mesmo nesse mundo é possível fazer que faz com que textos como os transcritos, tão vi-
alguma coisa. A resposta pode mesmo assim ser vos e autênticos, além de dolorosamente claros, pa-
positiva. Mas ela implica em desescolarizar em boa reçam monstros aterradores a especialistas em edu-
medida a escola, em reorganizar as atividades se- cação e em linguagem? A resposta é uma só. E, in-
gundo critérios de relevância, com prioridade abso- felizmente, ela seria ridícula, se não fosse trágica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÂMARA Jr. J. M. Ensaios machadianos. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979.


FOUCAULT, M. “O que é um autor?”. In: ______. O que é um autor? s.l.: Passagens, 1969, pp. 29-87.
GRANGER, G.G. Ensaio de filosofia do estilo. S. Paulo: Perspectiva, 1968.
MAINGUENEAU , D. Genèses du discours. Bruxelles: Pierre Mardaga, Editeur, 1984.
POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Recebido em 01.05.01
Aprovado em 07.05.01

Autor: Sírio Possenti, doutor em Ciências pela UNICAMP, é professor associado na UNICAMP, no
Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem, e pesquisador do CNPq. Publicou:
Por que (não) ensinar gramática na escola (1996), Os humores da língua (1998), A cor da língua e
outras croniquinhas de lingüista (2001) (Campinas: Mercado de Letras) e Mal comportadas línguas
(Curitiba: Criar Edições, 2000), além do trabalho citado nas referências bibliográficas.
Endereço para correspondência: Rua Plínio Aveniente, 284, 13084-740, Campinas/SP.
E-mail: possenti@correionet.com.br

Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 15-21, jan./jun., 2001 21

Você também pode gostar