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Coordenação editorial: Valdemir Miotello

Revisão e ajustes: João Wanderley Geraldi


Tradução: Camila Caracelli Scherma; Fabrício César de Oliveira; Maurício Failache; Nathan Bastos de
Souza; Rafael Borges

Copyright © dos autores


Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde
que levados em conta os direitos dos autores.

Jorge Larrosa; Karen Rechia

P de professor. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. 532p.

ISBN 978-85-7993-534-3

1. Dicionário Pedagógico. 2. Ofício de professor. 3. Trabalho em sala de aula. 4. Conversação entre


professores. 5. Autores. I. Título.
CDD – 370

Capa: Andersen Bianchi


Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral
(UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa
(UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2018
Sublinhado

Karen.
Nunca havia prestado muita atenção ao ato de sublinhar, até assistir tuas aulas.
Talvez sequer tivesse pensado seriamente o sublinhar como uma forma de relação com
o texto. Evocando situações de sala de aula, me dei conta do quanto esta ação está
presente:

- Na leitura em voz alta, já podemos sublinhar as palavras desconhecidas.


- No quadro tem um roteiro de perguntas para a leitura do texto.
– Como faz para organizar as respostas, pergunta a garota.
- Pode ir sublinhando-as no texto.
- Agora todo mundo faz uma leitura silenciosa e sublinha as palavras relacionadas com “tempo”.

E assim seguiríamos numa profusão de exemplos.


Em tuas classes, pedias algumas tarefas em relação aos textos de teus cursos e, uma
delas eram os sublinhados. Na aula seguinte abrias a discussão destes mesmos textos,
com os sublinhados de cada aluno. Também fazias isto em relação a alguns filmes, com
uma espécie de sublinhado visual.
Para que mantenhas o sublinhado como uma de suas práticas pedagógicas
invariáveis, deves atribuir uma destacada importância a ele, e, portanto, tens uma
possível explicação.

Jorge.
Já falei um pouco do sublinhado na palavra “literalidade”. Quisera começar agora
dizendo que estudar é ler com um lápis na mão, que ao estudante se lhe exige uma leitura
atenta e ativa, que o estudante tem que fazer coisas quando lê. Ler estudando é fazer-se
responsável pelotexto e é também responder ao texto. E esse fazer-se responsável texto,
esse acolher ao texto, tem sua figura mais elementar no sublinhado. Outras figuras, mais
sofisticadas, seriam as notas à margem tanto que já implicam uma primeira forma de
resposta do leitor.
São, como disse Striner “indicadores ativos da corrente discursiva interior – laudatória,
irônica, negativa, potenciadora – que acompanha o processo de leitura“. Mas o sublinhado,
todavia, não é uma resposta e se parece mais a uma operação de seleção e destaque para
ser usada depois. Em seu exemplo, os sublinhados são como preparações para outra
coisa. Um sentido parecido ao do sublinhado tem a cópia de fragmentos. Como sabe, os
leitores de antes costumavam levar um caderno no qual copiavam sentenças, citações,
frases, às vezes muito breves e às vezes mais longas. O antecedente disso, já nas escolas
gregas, quando a leitura e a escritura apenas estavam começando a rivalizar com a
transmissão oral, era iniciática, foram os hyponmemata. Nosso amigo Fernando Bárcena
constrói para seus alunos um artifício desse tipo que chama “casa de citações” (acredito
que já falei dele em alguma outra palavra) e que apresenta assim:
Na Grécia clássica era habitual que os gregos cultos anotassem seus pensamentos compondo uma
espécie de ‘caderno de notas’ chamados Hyponmemata (que era uma espécie de diário filosófico). Neles
guardavam pensamentos de filósofos, reflexões pessoais que eram o resultado de suas próprias leituras,
etc. Este documento, que vim compondo faz já bastantes anos, aspira a ser um caderno de notas desse
tipo, ainda que nele só se guardem citações dos textos lidos. Ao mesmo tempo, estas citações – essa
‘casa de citações’ – responde a um critério de seleção bastante pessoal (...). Citar daqui e de lá alguns
fragmentos de filósofos ou escritores é como ir a um encontro, um encontro amoroso. Às vezes é um
encontro no tempo, porque ler os clássicos é escutar com os olhos aos mortos, como disse Quevedo em
um famoso soneto. Não deixa de ser, então, certa ´citação amorosa´. Porque os livros, dos que extraímos
esses fragmentos, são algo assim como volumosas cartas escritas aos (desconhecidos leitores) amigos.
E a filosofia é a única disciplina que leva em seu próprio nome um afeto (philís), um vínculo amoroso.
Se pode pensar, criar, se se carece de amigos?.

Eu também sugiro que copiem parágrafos ou citações no caderno de aula. E acredito


que o sublinhado é como uma versão um pouco menos exigente que o caderno de
citações, mas vai na mesma linha. Ademais, já sabe, copiar não goza hoje em dia de boa
reputação.

Karen.
Já falamos desse texto de Jan Masschelein que se intitula “Ponhamo-nos a caminho”
e que usou em todas suas disciplinas. Nesse texto Jan usa uma citação de Walter
Benjamin que leu na aula, em voz alta, várias vezes, e a que nos referimos na palavra
“autoridade”. O objetivo de Jan com esta citação era desenvolver a ideia da “autoridade
do caminho”, elaborar uma certa ideia do caminhar (e do ler) para certo tipo de pesquisa
pedagógica.
Neste trecho de Benjamin, a relação está entre caminhar e copiar num vetor oposto
ao de sobrevoar e ler. Para Jan “tanto percorrer um caminho até o fim como copiar um
texto inteiro são modos e-ducativos de relacionar-se com o presente e de vincular-se com
ele”. Neste sentido, tanto o caminhar quanto o copiar produzem um efeito em nós,
provocam uma entrega, pois aquele que se arrisca a esta “aventura”, se submete a este
domínio.
Posso estar sendo repetitiva, mas pondero se o sublinhar, tal qual o copiar, não nos
coloca sob a autoridade do texto, submetendo-nos a algo que se apresentará através dele,
e que, por sua vez, também nos torna presentes.

Jorge.
Dessa citação temos falado na palavra “autoridade” e também na palavra
“literalidade”. Você falou na palavra “saída”. E pelo que disse podíamos ter falado dela
na palavra “presença”. E acredito que é justamente isso: sublinhar é dar certa autoridade
ao texto, é ressaltar uma certa literalidade (atender não só ao que o texto disse, mas
também a onde e como o disse), e é, certamente, mostrar certa presença, certa maneira
de estar presente no que se lê. E tudo isso, como tu também disseste, para que o texto
possa ter certo efeito no leitor, para que o leitor se deixe dizer algo. Naturalmente, o
sublinhado é um gesto mínimo, mas muito importante por tudo o que anuncia, por tudo
o que se pode fazer a partir desse gesto aparentemente banal e irrelevante.
Lembre-se que eu peço alguns sublinhados, mas peço também que o estudante seja
capaz de dizer por que sublinhou isso, o que é que o interessou, o que é que o moveu a
selecionar e destacar precisamente esse fragmento. E aqui já começa a tornar-se explícito
o que o texto o disse e de que maneira ele o compreendeu. Isto é, começa a fazer-se
explícito não só o uso possível do texto, mas também um princípio de resposta ao texto.

Karen.
Eu não resisti e coloquei a expressão “a importância de sublinhar” numa ferramenta
de pesquisa da internet. Dentre os 408 mil resultados em português, boa parte deles diz
respeito às técnicas de estudo e aprendizagem. Chamou-me atenção não o fato de o
sublinhado ser considerado uma estratégia de aprendizagem, mas de que há várias
pesquisas que se destinam, por exemplo, a apontar os efeitos negativos de um destaque
em informações irrelevantes e da hierarquia nas marcações, se é mais eficaz que o aluno
escolha livremente as sentenças, se há retenção de memória a curto ou em longo prazo...
E por aí vamos entrando na “incrível fábrica” da psicologia cognitiva e afins.
Eu não posso deixar de usar um certo ardil, e perguntar se o sublinhado não estaria
mais para uma “não palavra”.

Jorge.
No caso dessa captura cognitiva de que falas, é claro que sim, que deveria ir às não-
palavras. Mas se vamos por aí, também teríamos que entregá aos cognitivistas e a sua
fábrica incrível algumas das palavras fundamentais do professor, como a palavra
“leitura”. De fato, muitas coisas das que escrevo têm a ver com uma certa resistência a
que a leitura seja entendida do ponto de vista da informação e da comunicação. Nisto
que contas, entendo que se trata de ler no sentido de assimilar conteúdo e/ou
informações. E já dizemos várias vezes que na maneira como eu entendo um curso
universitário (que tem a ver essencialmente com ler, escrever, conversar e talvez pensar),
não há nada parecido a conteúdos a serem assimilados nem a informações a serem
processadas.
Mas há algo ainda mais importante: é que eu trabalho a partir do estudar e não a
partir do aprender. Para mim sublinhar é uma forma de “ler estudando” e não tanto uma
forma de tornar mais eficaz o “ler apreendido”. Está mais próximo da atenção ao texto e
da acolhida do texto que da assimilação ou da apropriação do texto.

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