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Império e papado na Idade

Média: reflexões
historiográficas sobre duas
realidades em conflito
Empire and papacy in Middle Ages:
Historiographical reflections on two realities in
conflict

José D’Assunção Barros

Resumo
O principal propósito deste artigo é discutir a relação entre Império e Igreja nos vários períodos da
Idade Média, examinando aspectos políticos e imaginários desta relação que contrasta dois projetos de
cunho universalistas que terminam por se opor no contexto político e religioso do período medieval. Entres
as questões examinadas, um ponto importante são as origens da noção de Império a partir do Império
Romano e, posteriormente, do Império Carolíngio, bem como suas projeções subseqüentes, inclusive no
período que ultrapassa a Idade Média em direção à Modernidade.
Palavras-chaves: Império, Igreja, Realeza.

Abstract
The main purpose of this article is to discuss the relation between Empire and Ecclesia in the various
periods of the Middle Ages, examining political and imaginary aspects of this relation that contrasts two
universal projects that falls in opposition in the political and religious context of the Middle Ages. Among
the questions examined, an important point is the origins of the notion of Empire since the Roman Empire
and, later, the Carolingian Empire, as also their subsequent projections, including in the period that
exceeds the Middle Ages in direction to Modernity.
Key words: Empire, Church, Royalty.

José D’Assunção Barros é Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Universidade Severino Sombra (USS) de
Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História. Entre suas publicações mais recentes, destacam-se os livros O Campo da História, O Projeto
de Pesquisa em História e Cidade e História.
Endereço para correspondência: Rua Senador Vergueiro, 218 apto. 205. Rio de Janeiro/RJ. CEP 22230.001. E-mail: jose.assun@globo.com

Canoas n. 14 jul./dez. 2006 p.47-57


1 INTRODUÇÃO tentativa de compreender, em suas definições
mais irredutíveis, em que idéias fundamentais
e bases históricas ancoravam-se cada um destes
Papado e Império, na Idade Média. Eis aqui dois projetos, até que ambos começam a entre-
dois projetos universais para uma mesma cris- tecer – em um ocidente medieval em constante
tandade ocidental que começa a se consolidar mutação – uma história de alianças e conflitos
desde os primórdios medievais. Do jogo de políticos cuja compreensão é certamente fun-
avanços e recuos entre os poderes conquista- damental para um entendimento mais pleno
dos por cada um destes dois projetos – um jogo da própria História Medieval.
político tão intenso e vívido na Idade Média,
mesmo que algumas vezes apenas ao nível do
Imaginário – já não parecerá haver grandes res-
quícios à medida que se adentra a Modernida-
de. De fato, quanto mais nos afastamos da Idade 2 IMPÉRIO E IGREJA COMO
Média, o ‘Império’ parece se dissolver mais e PROJETOS UNIVERSAIS
mais na História, convertendo-se a princípio
em mera ficção política, desaparecendo a se-
guir, apesar da sua polêmica ressurgência em A oposição entre Império e Papado no de-
projetos políticos bem posteriores, tal como curso da Idade Média – bem como suas intera-
ocorreria com o projeto ariano do III Reich pro- ções várias – desenvolveu-se de maneira parti-
posto pelos Nazistas já em pleno século XX. cularmente complexa sob o signo de dois gran-
Falaremos aqui, naturalmente, de uma des projetos que se postulavam como univer-
idéia muito específica de Império – ancorada sais: o de uma Igreja Romana que passaria a se
em uma história que remonta ao Império Ro- apresentar na Europa Medieval como o grande
mano e à constituição do Império Carolíngio fator da unidade da cristandade ocidental, e o
por Carlos Magno – e não dos inúmeros impé- de um Império do Ocidente que já não existia
rios ou idéias de império que puderam estimu- mais a partir da deposição de Rômulo Augusto
lar até mesmo o soberano da Etiópia contempo- em 476 d.C., mas que a partir daí nunca deixaria
rânea a se conclamar Imperador. À parte quan- de pairar sobre o imaginário político dos novos
tas idéias de império surjam e ressurjam no reinos que, nesta parte ocidental do antigo Im-
mundo contemporâneo, e à parte quantos e pério Romano, dava agora origem aos inúme-
quantos soberanos almejem serem chamados ros reinos europeus. Esta história deve ser re-
pelos seus súditos de “imperadores”, a questão cuperada a partir de seus primórdios, que re-
é que a idéia de um “Império universal”, é disto montam à Antiguidade Romana.
que aqui se trata, já dificilmente se sustenta em Impérios e domínios imperiais sempre
um mundo que parece extrair a sua própria houve na história do mundo: do Império Persa
substância da diversidade e da exploração, às ao domínio dos antigos atenienses sobre inú-
vezes brutal, desta mesma diversidade. Enquan- meras cidades-estados na Grécia Antiga, isso
to isso o Papado, por sua vez, prossegue neste apenas para citar dois exemplos entre tantos. A
mesmo mundo que já se vê dividido em inú- idéia de “império”, antes de mais nada, sempre
meras instituições eclesiásticas a partilharem o esteve associada à idéia de um poder – particu-
universo religioso no ocidente cristão. Mais larmente de um poder exercido sobre vários
duradoura, eis aqui uma Instituição que foi for- povos. Freqüentemente, o poder imperial nas
çada a se adaptar mais consistentemente à com- suas diversas manifestações históricas esteve
preensão dos limites de suas antigas ambições associado a idéias como a de “expansão”, “do-
universalistas. mínio absoluto” sobre determinado conjunto
O presente ensaio propõe-se a examinar, de territórios, ou ao menos de um poder que é
em torno das idéias de Império e de Papado, a reconhecido por outros poderes (daí a relação
história de uma oposição que assinalou uma possível entre Império e Reino, a qual retorna-
presença significativa e recorrente no decurso remos oportunamente).
de toda a Idade Média. Principiaremos por uma Com o desenvolvimento histórico do Im-

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pério Romano, contudo, e particularmente milado recentemente pelo Império no seu cir-
quando este adota o Cristianismo como religião cuito de exércitos de mercenários, e que eram
oficial a partir de Constantino – aqui se refor- conhecidos por hérulos – depôs Rômulo Au-
çando o projeto imperial pelo contraponto de gusto, o último Imperador Romano do Ociden-
um segundo projeto totalizador que era o de te. Ao invés de tomar a coroa imperial para si,
uma religião que se pretendia a única capaz de resolveu enviá-la ao Imperador Romano do
conduzir à salvação da alma – um novo matiz Oriente, e a partir daí não se falaria por algum
vinha se juntar a esta idéia: o de universalida- tempo em Império senão em referência ao Im-
de. Em que pese que o Império Romano tenha perador Bizantino.
sempre se confrontado no plano político com
outras realidades políticas que também se pos-
tulavam como imperiais, a verdade é que a ali-
ança com o cristianismo nos últimos séculos da
Antiguidade Romana reforçara a idéia de um 3 A ALIANÇA ENTRE OS FRANCOS
Império Universal, que almeja estender sobre E A IGREJA COMO PREPARAÇÃO
todos o seu domínio, e sobre os seus eleitos uma PARA O ENCONTRO ENTRE DOIS
proteção igualmente universal. Contudo, pre- PROJETOS UNIVERSAIS
cisamente neste momento histórico em que a
idéia de universalidade cristã vem ao encontro
da idéia de universalidade imperial, o poder A ascensão do reino Franco no cenário
de Roma já não era o mesmo. Uma série de pro- Europeu veio se combinar a um contexto em
cessos históricos que aqui não poderão ser abor- que a Igreja Romana – ela mesma detentora de
dados, e dos quais a pressão e entrada no Impé- territórios temporais na parte central da Itália –
rio Romano de inúmeros povos é apenas um via-se afrontada por duas grandes ameaças que
dos muitos fatores, terminou por produzir uma eram os povos lombardos, recém chegados à
ruptura que separou de um lado o chamado península, e o Império Bizantino, que contro-
Império Romano do Ocidente, e de outro o cha- lava a chamada Igreja Cristã oriental. A sobre-
mado Império Romano do Oriente (futuro Im- vivência da Igreja romana era ameaçada neste
pério Bizantino). Estes eventos trouxeram uma contexto de muitas maneiras – tanto territorial-
complexidade peculiar: havia agora dois Impé- mente como doutrinariamente – e por isto o
rios com projetos universais similares, com uma projeto do Papado de se projetar como força
base cristã em comum, e edificados sobre uma cristã universal no âmbito do ocidente poderia
cultura e uma história comum. Adicionalmen- se combinar perfeitamente com o projeto de
te, a divisão entre um Império ocidental e um expansão do povo franco, já cristianizado. A
Império Oriental produzira também a emergên- passagem da dinastia merovíngia para a dinas-
cia entre duas Igrejas cristãs: uma que passava tia Carolíngia, através de Pepino o Breve, é pre-
a estar sediada em Roma, outra que passava a cisamente assinalada por uma aliança entre o
estar sediada em Bizâncio. reino franco e o papado, que ficou selada sim-
Contudo, se o Império Oriental teria uma bolicamente pela unção recebida por Pepino
longa vida histórica no decorrer de toda a Ida- das mãos de Estevão II.
de Média, o Império Romano do Ocidente não Na geração seguinte, vinte anos depois,
logrou perseverar na manutenção de sua uni- Carlos Magno encetaria uma aliança similar
dade, e logo se partiria em uma grande quanti- com o Papa Adriano I, a partir de um intrinca-
dade de reinos amalgamados a partir da combi- do contexto de alianças e oposições que estão
nação das antigas populações que habitavam registrados em diversos anais da época, como o
os territórios romanos com novos povos que Liber Pontificalis. Fonte singular para uma com-
haviam invadido o mundo romano desde o sé- preensão dos aspectos políticos e simbólicos
culo III d.C, passando a em muitos casos a inte- envolvidos nestes acontecimentos é a Carta de
grar o antigo Império como exércitos federados Doação de Constantino, documento forjado nas
ou mesmo reinos sob a tutela imperial. Em 476, oficinas do próprio Papado de Adriano I como
Odoacro – rei de um povo que havia sido assi- se fosse uma antiga carta em que o Imperador

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Constantino havia doado terras da Itália Cen- haver um único imperador, e ainda sistemati-
tral ao papa Silvestre. Este documento, e a Car- zava a idéia de um imperador reinando sobre
ta de Pepino de 754 por ocasião da primeira ali- reis – já que, ao mesmo tempo em que só have-
ança franca com a Igreja Romana, ancoraram a ria um imperador, poderia haver diversos reis
assinatura de um terceiro documento em que sob a sua autoridade imperial.
Carlos Magno estabelecia a sua própria aliança Essa idéia de um Imperador acima dos reis
com Adriano I. A partir daí andam juntos os era já antiga – já que no Império Romano foram
dois projetos – o de expansão do Reino Franco feitos vários reis sob a égide do imperador, e ali-
e o de universalismo espiritual da Igreja Roma- ás a idéia da própria origem do reino Franco no
na sobre as populações cristãs do Ocidente – século VI pairava sob a idéia de que este era um
culminando com a coroação imperial de Carlos reino que pertencia ao Império. Contudo, agora
Magno no ano 800. Neste momento, Carlos Mag- esta idéia assumia novas conotações que busca-
no, é ainda mais do que antes, simultaneamen- vam delimitar mais claramente a separação do
te o depositário de um poder universal e o res- imperium em relação aos regna. Singularmente,
ponsável pelo destino terreno da Igreja, tal esta estrutura imaginada por Luís o Piedoso de-
como aparece tão bem expresso na capitular de gradou-se na concretude política a partir do des-
Aix-la-Chapelle, divulgada em março de 802 (FA- membramento do Império Carolíngio entre seus
VIER, 2004, p.309). três filhos. Lotário, que ficou sendo o detentor
A coroação de Carlos Magno em 800, diga- do título imperial e que deu origem a dinastia
se de passagem, representa apenas o momento dos otonianos, não iria exercer uma autoridade
de concretização maior de uma política caro- propriamente imperial sobre seus dois irmãos, e
língia que já mostra a partir de 789, com a capi- cada um dos três herdeiros passaria a governar
tular Admonitio Generalis, uma clara mudança um terço do antigo Império. De qualquer modo,
de rumos em direção à idéia de Carlos Magno esta ficção de Império, que retomava a antiga
assumir uma função imperial. Entre outros as- tradição do Império Romano do Ocidente, esta-
pectos sinalizadores, já se vê claramente a idéia va daqui para diante fixada através de uma hon-
de que a autoridade do rei franco se estende “os ra que pertenceria aos futuros herdeiros dos reis
fiéis de Deus e do rei”, colocando no mesmo carolíngios. Em que pese que a honra imperial
plano as duas fidelidades (FAVIER, 2004, p.471). tenha a partir daí oscilado hesitantemente entre
Assumido o título imperial por Carlos sucessores de um ou outro dos antigos territóri-
Magno a partir de 800, citaremos como momen- os carolíngios, já desmembrados, e que apenas
to fundamental para a evolução posterior das sob Carlos o Gordo tenha havido um breve mo-
relações entre o projeto imperial carolíngio e o mento de reunificação territorial, a idéia de Im-
projeto universal da Igreja Romana a elabora- pério – mesmo que mais fictícia do que corres-
ção da Capitular de 817 – intitulada Ordinatio pondente a uma realidade política efetiva – se-
Imperii. Neste documento mandado redigir por ria a base das futuras pretensões imperiais do
Luís o Piedoso, três anos depois da morte de Império Teutônico.
Carlos Magno e já tendo sido sagrado impera-
dor na própria vida do primeiro imperador
franco, busca-se delinear com maior precisão
os mecanismos de sucessão imperial no ociden-
te, associando-os a um único herdeiro. No ano 4 IMPÉRIO TEUTÔNICO
anterior, Luís o Piedoso já tivera o cuidado de
receber a unção pontifícia das mãos do Papa
Estevão IV, de modo que o documento vinha A coroação em 962 do primeiro impera-
acrescentar um peso de lei a uma prática que já dor do Império Otônida, Oto I, conserva suas
trazia uma forte marca simbólica. A capitular referências em relação à coroação de Carlos
registra vários delineamentos importantes: Magno. Para começar, Oto I firmara suas pre-
além de instituir por escrito a idéia de que o tensões após uma série de campanhas de ex-
Papa deveria coroar o eleito, fixava uma linha tensão de seu poder: sucessivamente, reunifi-
única de sucessão ´que dizia que só poderia cara parte do antigo Império Franco através da

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anexação da Francia Oriental, conquistara a dia de Cluny. Mas pode-se imaginar como a
coroa de ferro dos lombardos em 952 e impu- questão era complexa, já que nos diversos rei-
sera-se aos húngaros em 955. Obtendo a alian- nos da cristandade os reis – e também o impera-
ça do papa João XII, recebia deste, finalmente, dor – tentavam impor o direito de indicar au-
a sagração imperial, dando início ao Império toridades eclesiásticas nos territórios que go-
Otônida. A ele se seguiu Oto II, que foi sagra- vernavam. Para entender este ponto, será útil
do em 976 e que – autodenominando-se Roma- tentar compreender a seguir as relações con-
norum imperatur Augustus – completou o seu cretas da Igreja com o mundo feudal que a cer-
título com uma expressão solene que era mais cava por todos os lados.
uma referência direta ao antigo Império Ro- De fato, o complexo panorama das rela-
mano. Oto III, em 962, imprime novos avanços ções entre a Igreja e os diversos poderes tem-
na utilização da idéia de Império, assumindo porais nos vários territórios europeus mos-
todo um simbolismo e uma imagística que bus- travam desde os primórdios do século XI uma
cavam reforçar ainda mais a sua filiação ima- situação pouco cômoda para a Igreja. Na Fran-
ginária em relação ao antigo Império Romano. ça, os primeiros reis Capetos – de modo a an-
A partir dele, novos imperadores sucedem-se, gariar proventos importantes para as tesou-
embora o título tenha oscilado por dinastias rarias régias – tinham adquirido o hábito de
distintas conforme a aclamação dos príncipes vender pelos melhores preços os cargos ecle-
eleitores, que nesta época passaram a consti- siásticos reais que estavam sob seu controle, e
tuir a base de consulta para a escolha dos no- com freqüência impunham pela força os can-
vos imperadores didatos episcopais de sua preferência. Na In-
Documento ímpar para a sistematização glaterra, as aristocracias locais da primeira
do imaginário imperial surge no Império de metade do século XI haviam praticamente se
Henrique III, quando se põe por escrito em 1030 assenhorado das dignidades eclesiásticas.
um Livro de Cerimônias da Corte Imperial, que Após a conquista de Guilherme I em 1066, o
buscava estabelecer uma minuciosa ritualística controle da situação passa ao poder régio, que
imperial com claras referências na pompa im- distribuíra os assentos episcopais aos cléri-
perial de Bizâncio. De igual maneira, no século gos normandos mas assegurara a sua sujeição
seguinte iria ser recuperado um Ordo de Consa- à coroa. No Império, era já uma tradição que
gração Imperial do início do século X, multipli- remontava a períodos anteriores a designa-
cando ainda mais a ritualística e os objetos sim- ção imperial de bispos, aos quais eram conce-
bólicos a estarem presentes na sagração. didas freqüentemente, aliás, funções condais
Em que pese toda uma ritualística que que se misturavam às funções pastorais. Nes-
procurava reunir o imaginário imperial e a sim- te contexto, os bispos estavam inteiramente
bolística cristã através de uma aliança entre o sujeitos ao Imperador ou a outros governan-
Império e o Papado, a verdade é que a questão tes temporais, que lhes concediam a investi-
da sagração imperial oferecia um profícuo ter- dura através de dois instrumentos simbólicos
reno para que começassem a surgir conflitos importantes – o báculo e o anel – imagens em
entre o poder espiritual e o poder temporal. torno das quais em breve iria se desenvolver
Era o Imperador que fazia o Papa – como ocor- uma verdadeira guerra de representações en-
rera com Oto III, que impusera a Roma um papa tre o Papado e o Império. O “báculo” era o
Clemente II que logo depois o consagraria – ou símbolo da jurisdição; o “anel” o símbolo da
era o Papa que deveria fazer o Imperador, como união mística com a Igreja.
declararia o papa Gregório VII já em 1076, em Vazando transversalmente a sociedade
um documento denominado Dictatus Papae? A eclesiástica de alto a baixo, a interferência dos
Reforma da Igreja Medieval, aliás, já tinha pro- poderes temporais na Igreja era manifesta, e
duzido em 1059 o decreto que instituía a elei- mesmo as paróquias rurais estavam integradas
ção do papa pelos cardeais, assinado pelo papa aos poderes senhoriais através do controle dos
Nicolau II e que para a sua elaboração tivera grandes proprietários que eram herdeiros dos
precisamente a influência do reformador Hi- fundadores destas igrejas. Muito habitualmen-
delbrando (futuro Gregório VII), ligado à aba- te eram eles quem designavam os ministrantes

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das paróquias que orbitavam em torno de seus 5 GREGÓRIO VII: PONTO
senhorios, exigindo juramentos de fidelidade DE VIRADA
e participando das rendas e dízimas por elas
recolhidas, configurando desta maneira uma Em 1073, quando Gregório VII ascende a
estrutura tipicamente feudal. O quadro geral, Papa, a Igreja estava em pleno desenrolar de
portanto, era em todos os níveis o de uma in- uma reforma religiosa que começara a tomar
trincada confusão entre a função eclesiástica forma a partir de 1050. Seu período de pontifi-
propriamente dita e o benefício temporal, fosse cado, entre 1073 e 1085 é aliás particularmente
este concedido pelo imperador, pelo rei, ou intenso em termos de novas propostas que vi-
mesmo pelo grande senhor. savam discutir a posição da Igreja no mundo. A
Naturalmente que a investidura que pro- atuação de Gregório VII neste contexto seria
cedia dos senhores temporais conflitava direta- particularmente importante em três pontos cen-
mente com a antiga noção canônica segundo a trais: o esforço de definir claramente os direi-
qual o ministério episcopal deveria ser conce- tos e as responsabilidades do papado, a substi-
dido pelo clero e pelo povo da diocese corres- tuição do direito da Igreja Germânica pelo Di-
pondente. Embora essa noção já não correspon- reito Canônico, e a conquista da garantia de
desse a uma realidade no Ocidente Medieval, liberdade de eleição para o cargo de Papa (BOL-
ela vinha acompanhada de uma forte carga ima- TON, 1985, p.21).
ginária. Como grande reformador e homem cons-
Dois conceitos importantes que surgem ciente das transformações de seu tempo, Gregó-
da situação de confusão entre os interesses rio VII percebeu que a sobrevivência e as possi-
temporais e a função religiosa, no âmbito de bilidades de desenvolvimento da Igreja enquan-
uma moral eclesiástica, referem-se às idéias de to instituição dependeriam seriamente de resol-
simonia e nicolaísmo. O conceito de “simo- ver algumas questões cruciais, e a primeira delas
nia”, que no seu sentido mais estendido refe- relacionava-se precisamente à necessidade de
ria-se tanto ao tráfico de coisas santas e seu fixar a autonomia da Igreja em relação ao Impé-
desvio para finalidades profanas como à com- rio ou a qualquer outro poder temporal – o que
pra de funções eclesiásticas, adaptava-se à si- implicava em que todos os cargos eclesiásticos, e
tuação dos clérigos, ou mesmo de leigos, que não apenas o Sumo Pontificado, fossem escolhi-
haviam comprado suas dignidades eclesiásti- dos na própria alçada da Igreja, e não impostos
cas àqueles que controlavam o direito de in- por interesses políticos ligados aos poderes tem-
vestidura. Na contrapartida, os clérigos inves- porais. Ao mesmo tempo, percebia que era pre-
tidos desta maneira também procuravam ob- ciso que o Papado retomasse claramente a idéia
ter vantagens a partir da venda de cargos me- de que era o sumo pontífice o líder máximo da
nores que passavam a estar sob sua jurisdição, Cristandade, acima de imperadores e reis. Em
além de obter pagamentos pelos sacramentos função desta última preocupação deve ser en-
que deviam administrar em razão de sua fun- tendida a sua preocupação em reformular toda a
ção eclesiástica. imagística do papado, apropriando-se inclusive
O “nicolaísmo” representava outro pon- de símbolos e imagens do poder imperial. Com
to importante de interferência entre o sagra- a utilização do gorro branco, que simbolizava o
do e o temporal, pois se referia aos padres regnum, afirmava-se agora também como um se-
que viviam amancebados e que, freqüente- nhor temporal, percorrendo o caminho inverso
mente, geravam filhos que poderiam postu- de imperadores que, desde Carlos Magno, pro-
lar direitos diversos. Alguns cargos, inclusi- curavam afirmar sua imagem também de senho-
ve, eram transferidos hereditariamente. Na res espirituais da cristandade. Da mesma forma,
segunda metade do século XI, tanto a simo- defendeu a idéia de que o poder espiritual do
nia como o nicolaísmo eram questões que Imperador estava mesmo abaixo de clérigos não
movimentavam polêmicas que clamavam por muito elevados na hierarquia eclesiástica. O exa-
uma solução nos meios eclesiásticos, e a re- me de um trecho da correspondência de Gregó-
forma gregoriana, já em curso, iria centrar-se rio VII será o suficiente para verificarmos, de for-
diretamente nestes pontos. ma concentrada, os diversos aspectos relaciona-

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dos ao projeto de assegurar a Igreja autonomia e nitivamente resolvida em 1122, com a Concor-
soberania perante os poderes temporais. data de Worms, que foi assinada entre o impera-
dor Henrique V e o papa Calixto II, estabele-
O Papa não pode ser julgado por ninguém; a Igreja cendo-se que ao papa caberia a investidura es-
Romana nunca errou e nunca errará até o final dos piritual (anel e cruz) e ao imperador a investi-
tempos; A Igreja Romana foi fundada apenas por dura temporal (o báculo). Na prática, ficava
Cristo; só o Papa pode depor e empossar bispos; só definido que os bispos atuantes nos territórios
ele pode convocar assembléias eclesiásticas e autori- do Império Teutônico não seriam mais funcio-
zar a Lei Canônica; só ele pode revisar seus julga- nários do Estado, e sim vassalos do Império. O
mentos; só ele pode usar a insígnia imperial; pode episódio assinala de certo modo uma vitória do
depor imperadores, pode absolver vassalos de seus projeto de supremacia do poder papal sobre os
deveres de obediência; todos os príncipes devem poderes políticos, mas na verdade novos con-
beijar seus pés (apud SOUTHERN, 1970, p.102) frontos surgiriam no futuro.
A leitura do texto da Concordata de Worms
Compreende-se dentro deste programa mostra como a questão entre a Igreja e o Papado
que uma das primeiras preocupações de Gre- – para além de questões concretas e embates que
gório VII tenha sido a de proibir enfaticamente podiam chegar até confrontos violentos entre os
a investidura leiga, isto é, a escolha de bispos e partidários de um ou outro lado – dava-se tam-
abades por príncipes e imperadores. O Dictatus bém ao nível de uma autêntica guerra de repre-
Papae de 1076, que consubstancia esta proposta, sentações. Assim, as eleições episcopais e abaci-
causou imediata reação do Imperador Henri- ais seriam livres, envolvendo apenas o clero, mas
que IV, que deu o Papa como deposto. Este, re- por outro lado deveriam se desenrolar na pre-
ciprocamente, declarou o Imperador como de- sença de um delegado do imperador (o que, na-
posto e excomungado, e assim concretizava-se turalmente, é apenas uma contrapartida simbó-
na prática a própria questão de que tratava o lica para um poder institucional que fora intei-
Dictatus Papae: quem teria o direito de nomear ramente restituído a Igreja). De igual maneira, o
ou depor o outro: o Imperador ou o Papa? O metropolita deveria outorgar a investidura ecle-
gesto de Gregório VII ao depor Henrique IV era siástica ao novo eleito, o que novamente estabe-
ainda mais contundente, pois proibia os vassa- lecia um acerto simbólico. As decisões relativas
los de lhe prestar serviço, ameaçando-os com a aos objetos de investidura, partilhadas entre o
mesma excomunhão que já destinara ao Impe- poder imperial e o poder eclesiástico, por fim,
rador. A conselho de seus assessores, Henrique conformam um gestual simbólico importante
IV capitulou e foi ao Castelo de Canossa em nesta guerra de representações.
1077, pedindo ao Papa um perdão que foi pron-
tamente concedido, resolvendo momentanea-
mente a questão em favor da Igreja.
O conflito entre o papa Gregório VII e
Henrique IV foi contudo apenas um dos diver- 6 O IMPÉRIO E A DIVERSIDADE
sos confrontos da época entre o Papado e o Im- INTERNA
pério, que estão na base da chamada Querela
das Investiduras. Depois de novos acontecimen-
tos conturbados, onde o Imperador Henrique Antes de prosseguirmos com a questão do
IV teve de enfrentar militarmente um concor- confronto entre os poderes temporal e espiritu-
rente ao seu título chamado Rodolfo, e onde al, examinemos mais rapidamente um campo
Roma fora saqueada por normandos até que por de tensões que, em contraponto à questão da
fim Gregório VII falece em seu exílio em Saler- oposição entre Papado e Império, dava-se no
mo, dando lugar a um novo papa empossado próprio âmbito dos poderes temporais. O Im-
pelo Imperador com o nome de Clemente III – o pério deve enfrentar, na sua realidade interna
que vem a mostrar que a Querela das Investi- de força política e por vezes de concretização
duras estava longe de ser resolvida. territorial mais ou menos extensa, inúmeras di-
A questão das Investiduras só estaria defi- versidades. A entidade política do “reino”, por

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exemplo, surgirá como um ponto importante. idéia já antiga de que o Império contém reinos
Mas antes de falar nesta questão mais comple- dentro de si, ou a idéia de que o Imperador
xa, lembremos também a diversidade interna poderia fazer reis. O Império, no quadro das
dos que disputam ou se opõem ao Império. Há abstrações temporais desenvolvidas a partir do
por exemplo verdadeiras oposições familiares ocidente medieval com base na referência à
que podem ser lembradas. Antiguidade Romana, deveria ser uma catego-
Neste âmbito, por exemplo, poderemos ria superior à de Reino. Contudo, o Império
incluir o conflito entre Guelfos e Guibelinos. Teutônico, em fins do século XII, já estava limi-
Os guelfos constituíam originariamente uma tado a um território específico, a Germânia, e
família descendente do conde bávaro Welf I, isso trazia um ponto de tensão para a idéia de
do início do século IX, que manteve uma irre- Império, já que o imperador na prática reinava
dutível rivalidade com os Hohenstaufen pela sobre um espaço limitado. Dito de outra forma,
hegemonia na Alemanha de princípios do sé- a idéia de Império encontrava resistências tam-
culo XII às primeiras décadas do século XIII. bém na rede dos demais governantes temporais
Na medida em que os Hohenstaufen consegui- da Europa Medieval, já que na prática o Impe-
ram se projetar ao nível de família imperial, os rador Teutônico não era mais poderoso do que
conflitos se produziram nesta oposição em re- muitos dos reis europeus.
lação aos guelfos, às vezes de forma violenta. Outro aspecto que favorece o crescente
Por outro lado, a família Welf alcançou o âmbi- sucesso e projeção da idéia de “realeza” por
to imperial em 1201, com a eleição de Oto de oposição à idéia de “império”, particularmente
Brunswick à dignidade imperial com o nome no período da Idade Média Central, foi certa-
de Oto IV, tendo para tal contado com o apoio mente a adaptação da realeza ao imaginário feu-
de Inocêncio III. Mais tarde, os guelfos seriam dal. É bastante singular a posição do rei no es-
novamente suplantados pelos Hohenstaufen. quema tripartido que concretiza a teoria da tri-
A partir de 1240, estas rivalidades familia- funcionalidade – este esquema imaginário mas
res cristalizam-se em conflito partidário na Itá- fortemente influente em algumas regiões do
lia, surgindo o partido dos “guelfos” (de Welf) feudalismo europeu, segundo o qual o mundo
e “guibelinos” (de Waiblingen, que era simul- estaria distribuído entre as ordens oratore, be-
taneamente o nome do Castelo dos Hohenstau- llatore e laboratore. O rei conseguia na verdade
fen como o seu grito de guerra). Neste contexto, congregar todas as dimensões funcionais. Como
os guelfos – pelo menos no princípio – tende- rei dos oratores, ele não deixa de participar ao
ram a apoiar o Papado na sua oposição aos im- seu modo da natureza e dos privilégios eclesi-
peradores. Num período posterior, estas origens ásticos e religiosos (LE GOFF, 1980, p.80). Como
ligadas a rivalidades familiares e a posições re- rei dos bellatores, ele é o primeiro dos guerrei-
lacionadas ao conflito entre Império e Papado ros, e nesta função concretiza certas ambivalên-
tenderam a serem esquecidas em favor da cris- cias que dele fazem tanto um rei feudal – um
talização de uma irredutível hostilidade que primus inter pares que se apresenta como a “ca-
passou a contrapor guelfos e guibelinos como beça” da aristocracia militar – como também
facções rivais nas comunas italianas. Mas aqui alguém que é colocado fora e acima dela (LE
já nos afastamos da questão Imperial propria- GOFF, 1980, p.80). Uma avaliação mais comple-
mente dita. ta do esquema poderia ainda situá-lo como o
Há ainda uma outra questão de máxima ponto de confluência das três ordens, e o as-
importância a ser problematizada para a com- pecto de “rei dos laboratores” apresenta-se com
preensão dos problemas que enfrentava a idéia a função régia de garantir a ordem econômica e
de Império no ocidente medieval: o de a sua assegurar a prosperidade material (LE GOFF,
relação com uma terceira entidade a ser consi- 1980, p.82).
derada, o “reino”. Na Antiguidade Romana, A imagem do rei como aquele que partici-
quando começam a afluir para o Império os di- pa simultaneamente das três ordens ajuda a com-
versos reinos bárbaros que começam a se con- preender, particularmente, que o principal ob-
frontar com o mundo romano e, em muitos ca- jetivo do esquema tripartido seria representar a
sos, a serem absorvidos por este, ganha força a harmonia entre as ordens, a ‘interdependência’

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e a solidariedade entre as ordens. E explica tam- do a canonização de Carlos Magno, o que vi-
bém, conforme propõe Le Goff, o sucesso cres- nha ao encontro dos interesses de Frederico
cente que apresentaria a imagem do “rei” – árbi- Barba-Roxa – descendente em linha direta de
tro que harmoniza todas as ordens – em relação Carlos Magno – no sentido de reforçar o aspec-
à imagem de “imperador”, condenada por uma to sagrado do Império ao mesmo tempo em que
dualidade “império” versus “papado” que se realçava a sua continuidade em relação ao anti-
fundava na irrealizável distinção entre espiritu- go Império Franco.
al e temporal (LE GOFF, 1980, p.83). Os desenvolvimentos do Império Teutô-
nico sob a dinastia dos Staufen, iniciada por Fre-
derico Barba-Roxa também mostram a preocu-
pação em fixar muito claramente os mecanismos
de escolha do Imperador. Este deveria ser esco-
7 NOVAS PROJEÇÕES lhido pelos príncipes dos diversos territórios do
IMPERIAIS Império Teutônico, bem de acordo com a antiga
tradição dos povos germânicos que costumavam
aclamar os seus reis. O Papa apenas ratificaria
O Império Teutônico, contudo, ainda co- uma escolha que se dava inteiramente dentro do
nheceria um novo momento de fortalecimento âmbito temporal, cumprindo notar que, em 1200,
da idéia de Império frente ao Papado. Frederi- já aparecem claramente especificados os elemen-
co Barba-Roxa (1123-1190) seria o protagonista tos básicos de um colégio eleitoral germânico
imperial de um dos momentos mais efervescen- cuja função seria a de designar o Imperador. Per-
tes da disputa entre Império e Papado, uma vez cebe-se, assim, que, ao mesmo tempo em que um
que nesta época o conflito terminou por gerar Papado diretamente empenhado na Reforma da
uma série de textos e documentos importantes Igreja tinha uma preocupação muito clara em
de um lado e de outro. Assim, Oto de Freising, assegurar que os papas fossem selecionados pe-
tio do Imperador, elaborou em favor das pre- los altos representantes do quadro eclesiástico,
tensões imperiais um texto denominado Duas também o Imperador preocupava-se em que a
Cidades, onde o povo franco era retratado como escolha da dignidade imperial se desse nos limi-
aquele que Deus escolhera para dar continui- tes do poder principescos. Em suma, ambos os
dade ao Império Romano. Através do Império poderes – temporal e religioso – tinham preten-
Franco, passava-se ao Império Teutônico com sões de interferir um no outro, mas empenha-
um reforço da idéia de que o Imperador seria vam-se a todo o custo em conservar sua própria
um representante de Cristo e chefe da Igreja, autonomia.
no mesmo nível do Papa. Esta idéia já havia Enquanto os imperadores da dinastia
sido consolidada séculos antes por Carlos Mag- Staufen se sucedem, com Henrique VI e Frede-
no em uma série de capitulares posteriores à rico II, o Papado continuaria a sustentar uma
sua sagração imperial em 800, onde abundam teoria das relações entre Igreja e Império que
imagens como a de que o imperador franco ha- desse mais autonomia aos clérigos e, sobretu-
via recebido de Cristo a missão de ser o “leme do, que trouxesse a posição do Papado para uma
da Igreja”. Esta imagem aparece explicitada no posição mais relevante na condução dos desti-
Libri carolini – uma longa capitular de 228 pá- nos da Cristandade. Com Inocêncio III, que as-
ginas in-quarto que foi elaborada por teólogos sume o pontificado em 1198, a Igreja consegui-
do porte de Teodulfo e Alcuíno entre 791 e 794. ria novos avanços. O ponto de vista defendido
A exemplo do primeiro imperador franco, Fre- pela Igreja, embora também se referenciando
derico Barba-Roxa procurou ancorar-se em tex- no antigo carolíngio tal como o fazia o papado,
tos que defendessem a sua posição, e daí o pa- sustentava que de fato o Império havia sido
pel das Duas Cidades de Oto de Freising. A uti- delegado a Carlos Magno, mas o papa seria na
lização da expressão sacro imperium, aliás, sur- verdade o seu verdadeiro depositário. Assim a
ge precisamente em 1157, de modo a chamar idéia é que a Igreja era quem devia entregar ao
atenção para o caráter sagrado do Império, e é Imperador a espada, para que este desempe-
sintomático também que em 1165 tenha ocorri- nhasse o serviço de defender o mundo cristão.

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A posição de Inocêncio III é confirmada por interregno onde a idéia de Império não se viu
Gregório IX e Inocêncio IV, e pela altura de concretizada, o que atesta a sua vacuidade.
meados do século XIII está completa a Reforma Diga-se de passagem, não faltaram candi-
institucional da Igreja na Idade Média, que datos neste período – mesmo fora da dinastia
avançara também em diversos outros aspectos reinante – a este que sempre fora um prestigio-
de seu domínio sobre o espaço da cristandade so título. Guilherme de Holanda, um primeiro
ao impor a violenta repressão de heresias como candidato, ainda podia postular o título impe-
o catarismo e ao assimilar a seus quadros as no- rial dentro de alguma lógica territorial, já que
vas propostas de religiosidade trazidas pelas era ligado a uma região inserida no antigo Im-
ordens menores dos franciscanos e beneditinos. pério Teutônico Contudo, surgem pretensões
Enquanto a Igreja sai fortalecida, nestes de estrangeiros como Ricardo da Cornualha, o
mesmos meados do século XIII o Império já que já vem mostrar que neste período o título
não consegue prosseguir para além de Frede- de imperador era talvez pouco mais do que uma
rico II com seus planos de fazer prevalecer o ficção extremamente honrosa. Também Afonso
seu próprio projeto universal para a cristan- X, evocando aspectos genealógicos – já que era
dade. Apesar de assegurar uma ampliação es- filho de uma Hohenstaufen – requisitou por
pacial do Império e aventurar-se em uma Cru- esta época o pomposo título ao papa, já que
zada que lhe permitira entrar em Jerusalém, o pela tradição a Igreja detinha o privilégio de
projeto imperial de Frederico II não se tornou sancioná-lo. O papa recusou-se a outorgar-lhe
representativo da cristandade tanto porque o o título, dando origem às hostilizações mais
Papado conseguira sucesso com a reforma ins- diretas que começam a ocorrer nesta época en-
titucional da Igreja, como porque a terceira tre o clero e o rei de Castela, gerando inclusive
idéia-força a ser considerada nesta questão, e canções trovadorescas produzidas pelo próprio
da qual atrás falamos, passa a adquirir desta- rei contra o Papado que lhe renegara o título
que a partir deste mesmo século XIII. A idéia (Afonso X, Cantiga da Biblioteca Nacional nº
de “reino” adquire precisamente uma proje- 463). Isto demonstra adicionalmente a emergên-
ção especial neste momento – tanto com a Fran- cia do fortalecimento de interesses régios vári-
ça de Felipe Augusto e São Luís, como com os os em todo o ocidente europeu, e que já não
reinos ibéricos que rapidamente começam a podia haver mais naquele período um consen-
progredir no âmbito da centralização monár- so em torno da idéia de dar uma base concreta
quica e da consolidação das instituições mo- ao imaginário do Império, que só seria retoma-
nárquicas, e também com a Inglaterra do mes- do novamente em 1273. Neste ano, pondo fim
mo período. Ainda estava-se longe da centra- ao interregno que já se estendia por demasiado
lização monárquica que mais tarde prepararia tempo, Gregório X resolveu apoiar a eleição de
o advento dos tempos modernos, mas de qual- Rodolfo de Habsburgo (1218-1291).
quer modo a autonomia temporal de cada rei-
no era inquestionável e já permitia que circu-
lasse no início do século XIII o dito de que “o
rei é imperador em seu reino”. Com isto, con- 8 O SACRO-IMPÉRIO
frontado pelo projeto universal da Igreja, e ROMANO-GERMÂNICO
tendo sua autoridade renegada pelos projetos NOS ÚLTIMOS TEMPOS
ÚLTIMOS
particularistas de cada reino, a idéia de Impé- MEDIEVAIS
rio após Frederico II era pouco mais do que
um título vazio e uma ficção política. Não im-
pedia, naturalmente, que a idéia de Império Depois dos imperadores Habsburgos, que
ainda estivesse presente em um imaginário que pouco acrescentaram em termos de fatos novos
produziu textos como o Speculum historiale, de à idéia imperial ou à sua receptividade dentro
Vicente de Beauvais, preocupado em construir ou fora do antigo território teutônico, a Alema-
uma narrativa acerca da sucessão de diversos nha da época de Luís IV da Baviera (1314-1347)
impérios no decorrer da história do mundo. A já assiste à combinação de uma intensificação
esta época – entre 1250 e 1273 – se seguiria um do sentimento de pertencimento germânico

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com a idéia de que o título imperial era prerro- um dia dispusera foram minguando, transfe-
gativa do povo alemão. A idéia de um Reich rindo-se para as realidades locais. Paradoxal-
alemão, que seria retomada no futuro em con- mente, apesar do imaginário do Império, o ter-
textos bem distintos, aqui se mostra nos seus ritório que correspondia ao que em 1474 seria
primórdios. Neste novo circuito de idéias, a chamado “Sacro-Império Romano Germânico”
imagem de Carlos Magno é projetada para o era politicamente fragmentado, cada região sen-
passado como a de um imperador alemão. Sur- do sujeita ao controle dos príncipes locais. Esta
gem os matizes teóricos. Marcílio de Pádua pro- Alemanha que ainda abrigaria tão ciosamente
cura dar um lugar especial ao povo alemão no por algum tempo o imaginário do Império, se-
seu ideário de Império. Guilherme de Ockham ria precisamente vítima de uma unificação tar-
conserva a idéia de uma natureza romana do dia, quando a comparamos aos demais estados
Império. Em meio a esses desenvolvimentos, europeus que atingem o século XIX perfeita-
questiona-se a idéia de que o Papa deveria ter mente centralizados, à exceção da Itália. Mas já
um papel mais direto na escolha ou no sancio- nesta época, a idéia de Império já não possuiria
namento do Imperador, e em 1338 os príncipes nenhum vigor enquanto um projeto universal
alemães já deporiam o Imperador sem dar ne- que pudesse se referir a toda a Cristandade,
nhuma satisfação ao Pontífice. Carlos de Lu- mesmo como ficção política.
xemburgo, o eleito, publica a Bula de Ouro, que
entre seus princípios estabelece que a partir dali
sete príncipes alemães seriam sempre os respon-
sáveis pela escolha do Imperador.
Enquanto o Império enfrenta dificulda- REFERÊNCIAS
des para se manter como realidade política efe-
tiva, para além do fato de ser para muitos de
seus contemporâneos apenas uma ‘ficção polí- BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média.
tica’ – também a Igreja iria enfrentar no século Lisboa: Edições 70, 1992.
XIV as ameaças à unidade, as cisões e questio- FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Esta-
namentos em relação a seus aspectos institucio- ção Liberdade, 2004.
nais ou à autoridade papal. O século XIV será GUY, Ber nard. Chronique abrégée des
um século marcado pelo exílio de Avinhão (o empereurs. In: Les Manuscrits de Bernard
deslocamento da Cúria Papal para a cidade de Guy. Paris: Alexis Paulin, 1881.
Avinhão, para fugir ao clima político desfavo- ______. Chronique des rois de France. In: Les
rável na Itália) e pelo grande Cisma, entre 1378 Manuscrits de Bernard Guy. Paris: Alexis
e 1382. Os novos tempos anunciam, portanto, Paulin, 1881.
tanto a falência do projeto universal do Impé- LE GOFF, Jacques. “Nota sobre sociedade
rio como do projeto universal do Papado. tripartida, ideologia monárquica e renova-
Assim, em que pese que, a partir de mea- ção econômica na Cristandade do século IX
dos do século XIV, a eleição do Imperador se ao século XII”. In: Para um novo conceito de
tivesse tornado um assunto popular e inflama- Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980 [origi-
dor de um orgulho de ser alemão na popula- nal: Paris: Gallimard, 1977].
ção, a verdade é que “ser Imperador ” já pouco SOUTHERN, R.W. Western Society and the
representava em termos de forças políticas ou Churches in the Middle Ages. New York:
de recursos econômicos, pois neste último as- Penguin, 1970.
pecto os recursos fiscais de que o Imperador

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