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Hagiografia
Reprodução
Santo Annon
confirma a eleição do
Abade do mosteiro
de São Miguel,
em Siegburger
Fundação Francke,
Halle, Alemanha
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É uma bonita descrição de um desses homens comple- ficuldades começaram quando Nicolau II decretou que a
tos, muito bem constituídos fisicamente e com essa dupla eleição dos Papas seria feita pelo Colégio dos Cardeais.
qualidade: um trato muito ameno, orador, causeur bri- A nobreza romana revoltou-se. E os adversários da Re-
lhante, e homem muito enérgico. Isto demonstra quan- forma Gregoriana conseguiram convencer a Imperatriz de
to é verdade aquilo que o liberalismo procura ignorar: que não devia aceitar o decreto. Pouco depois morreu Ni-
a pessoa seriamente enérgica, quando não é ocasião de colau II, e Hildebrando fez o Sacro Colégio elevar ao sólio
usar de energia, deve ser de um trato muito agradável. E pontifício Alexandre II. O episcopado da Lombardia e al-
a pessoa de um trato verdadeiramente agradável, nas ho- guns bispos alemães, com a anuência da Imperatriz, reuni-
ras de energia, sabe ser enérgica. ram-se e elegeram o antipapa Cádalo, Bispo de Parma, que
O que vem a ser um trato verdadeiramente agradá- tomou o nome de Honório II.
vel? Não o de um palhaço qualquer que conta anedotas,
mas é um relacionamento elevado, nobre que, ao mesmo
tempo, distrai, agrada e deixa a pessoa dignificada, eno- Olhemos para figuras
brecida. Esse era o trato de Santo Annon.
como a de Santo Annon
Glorioso cooperador da Reforma Gregoriana
e compreenderemos
Continua o texto: melhor a verdadeira
Em 1062, num período difícil da Reforma Gregoriana, fisionomia da Igreja.
ele a salvou de uma crise que poderia ter sido fatal.
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Encantando por esta sua
atitude humilde, a alma deste
santo Cardeal louvava a
grandeza da graça que
opera tais transformações
nas almas humanas.
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Debaixo de certo ponto de vista, a Imperatriz tinha Santo Annon mandou construir uma barca esplêndi-
interesse nisso porque, no sistema anterior, o imperador da, riquíssima, adornada com toda espécie de obras de ar-
— ou a imperatriz, quando o imperador era menor de te: finíssimos tapetes cobriam o chão e as paredes; corti-
idade — interferia na eleição. Entretanto, feita a eleição nas dos mais preciosos tecidos vedavam as janelas. Toda
pelo Sacro Colégio, as possibilidades de interferência do a barca estava revestida de boa madeira, com incrustações
poder imperial se tornavam muito menores. de ouro e pedras preciosas.
Esse choque de interesses comprometia a Reforma Quando a barca ficou pronta, Santo Annon permaneceu
Gregoriana que, sendo um movimento de reestrutu- à espera de uma ocasião propícia para utilizá-la.
ração e reorganização da Igreja, estava maximamente
empenhada em que o órgão adequado elegesse o Su- Notem a atmosfera bonita em que essas coisas se pas-
mo Pontífice. savam: uma ilha aprazível, uma barca linda, com corti-
nas e incrustações de pedras preciosas, à espera da Im-
Num momento crucial, Santo Annon peratriz. Que lindo teatro para uma cena histórica! Co-
intervém com astúcia mo isso é mais bonito do que um avião para se passar
qualquer episódio da História humana!
Alexandre II e Cádalo foram para Roma e disputaram a
cidade. O Papa tinha contra ele o Sacro Império, boa parte Essa ocasião se apresentou pouco depois, quando
da nobreza, e não podia contar com o auxílio do chefe nor- a Imperatriz anunciou uma viagem a Nimegue. Santo
mando Roberto Giscard, que não estava em bons termos Annon, com outros conjurados, viajou diretamente pa-
com a Santa Sé. Havia até indícios de que ele simpatizava ra a referida ilha, chegando lá antes da corte. Quando
com a causa de Cádalo, por interesses pessoais. esta lá aportou, na hora do almoço, Santo Annon, co-
Foi nesse momento crucial que Santo Annon resolveu in- mo Chanceler do Império, sentou-se ao lado de Henri-
tervir. Combinou com alguns nobres alemães um golpe de que IV, que tinha então seis anos. Fez a conversa cair
Estado. sobre a barca, e a descreveu com toda a minúcia, ma-
Sabia que a Imperatriz Inês gostava de parar em deter- ravilhando o menino. Logo depois do almoço, Henri-
minada ilha quando viajava pelo reino. que IV manifestou o desejo de visitar a
Acoma (CC 3.0)
Era uma ilha aprazível e lá costumava ela barca. Recebido com todas as honras,
repousar das fadigas da viagem. assim que o rei subiu a bordo, os re-
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périos; e, muitas vezes, dava certo. Vemos aqui Santo
Annon tratando seriamente com um menino de seis
anos sobre política e convencendo-o.
Alguém poderá objetar: “Mas o menino não ti-
nha nenhuma resistência possível a oferecer a um
homem da qualidade de Santo Annon.”
É possível. Em todo caso, Santo Annon julgou
que não podia resolver o caso só com brinquedi-
nhos e fazendo coceguinhas no queixo do rei; mas
precisava dar uma argumentação política. Deu, e o
monarca aceitou. Quer dizer, trata-se de um nível
de menino que não é comum.
Sínodo em Colônia
O menino Henrique IV lança-se ao rio para fugir de Em Colônia, os grandes da Alemanha se reuni-
Santo Annon - Academia de Berlim, Alemanha
ram e, depois de se informarem dos acontecimentos,
decidiram que a regência caberia ao arcebispo, em
madores, já avisados, puseram a embarcação em movi- cuja diocese estivesse o rei. Como Henrique IV estava em
mento, afastando-a da ilha. Colônia, o regente seria Santo Annon.
A Imperatriz e os nobres, que tinham ficado na ilha, pro-
moveram um grande tumulto, e o menino-rei, amedronta- Que era Arcebispo de Colônia...
do, atirou-se ao rio.
A 27 de outubro de 1062, reunia-se um sínodo presidido
O menino-rei era uma víbora; foi o grande inimigo de por Santo Annon, que aceitou o decreto de Nicolau II e re-
São Gregório VII, mais tarde. conheceu a eleição de Alexandre II; o Duque Godofredo de
Lorena foi designado para levar o Papa a Roma, e dar-lhe
O Conde Egbert de Brunswick se jogou na água e o trou- posse da cidade. A Reforma Gregoriana estava salva.
xe de volta para a barca. Santo Annon levou Henrique IV Esse é um dos inúmeros atos que mostram não só o pa-
para uma das salas e teve com ele uma longa conversa, pel decisivo de Santo Annon numa crise gravíssima, mas
convencendo-o de ir para Colônia, onde seria convocada também sua astúcia diplomática que repetiu em muitas ou-
uma assembleia de nobres para discutirem a situação. tras ocasiões.
Faço um comentário colateral a respeito da mentalidade É lamentável ver como a notícia dessas grandes figu-
dos meninos naquele tempo. Às vezes, aos 14 ou 15 anos, ras se apaga. Como ela faria bem num livro de piedade!
meninos começavam a comandar exércitos, ou dirigir im- Como seria interessante ensinar alguém a dizer: “Meu
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Deus, dai-me a energia e a astúcia de Santo Annon! San- Mas esse perdão que todo mundo está certo de receber,
to Annon, rogai a Nossa Senhora por mim, para que eu poucos pedem; e, quando pedem, fazem-no mais ou me-
me pareça convosco!” E rezar essa jaculatória diante de nos às ocultas. O senso da gravidade do pecado desapare-
uma imagem de Santo Annon bon parleur2, de espada na ceu. As pessoas perderam este senso, não são lógicas, fal-
mão, olho de raposa e alma de bem-aventurado, organi- ta-lhes coerência, não têm Fé viva. Elas só se lembram do
zando as coisas. Como isso faria bem! pecado para dizer que vai ser perdoado; e só se recordam
do perdão para poderem pecar mais tranquilamente. Essa
Diferença entre o pecador medieval é a mentalidade do homem contemporâneo.
e o pecador filho da Revolução Comparem o pecador medieval com o pecador filho
da Revolução, e verão a enorme diferença: um é susce-
Alguns anos depois, a Imperatriz Inês, que se tinha re- tível de grandes arrependimentos à maneira de Davi;
colhido a um mosteiro, arrependeu-se do que fizera. Um grandes regenerações e, eventualmente, até grande san-
dia a cidade de Roma surpreendeu-se, assistindo a um es- tificação. O outro, se é que tem um arrependimento sé-
petáculo só possível na Idade Média: a Imperatriz apresen- rio, pede um perdãozinho superficial.
tou-se às portas da cidade, vestida como penitente, descal- Qual a causa desta diferença de atitude? Em última
ça e com uma corda ao pescoço, rogando permissão pa- análise, este é o efeito da Revolução. É ela que exacerba
ra entrar e pedir perdão ao Santo Padre por tudo quan- no homem o orgulho, a vontade de não reconhecer a gra-
to tinha feito. Recebida por São Pedro Damião, este a ab- vidade dos pecados e de não fazer penitência, criando-se
solveu de todos os pecados e daí em diante, até a morte do o estado de dureza que vemos tão generalizado nos dias
Cardeal, foi seu confessor. de hoje.
Quantos pecados co-
Ela, que tinha sido a grande inimiga de São Pedro Da- metidos em nossos dias
mião, reconheceu ter andado mal criando entraves ao mereceriam uma peni-
movimento salvador da Reforma Gregoriana. Mas assim tência pública! Nesses
era a penitência na Idade Média, época que se poderia casos, um padre, antes
caracterizar pela radicalidade: O indivíduo cometia, às de conceder a absolvi-
vezes, pecados de arrepiar; mas, quando se arrependia, ção, agiria muito bem
praticava também penitências de arrepiar. se exigisse uma repa-
Esta Imperatriz deixa todas as pompas terrenas, reco- ração pública. Entre-
lhe-se a um convento para cuidar de sua vida espiritu- tanto, a debilidade, o
al e, meditando, reconhece ter procedido mal. Em rigor, liberalismo, tantas ve-
ela não seria obrigada a esse ato público de penitência. zes até no próprio con-
Que ela devesse procurar São Gregório VII ou São Pe- fessor, criam esse clima
dro Damião para pedir perdão, era inteiramente cabível. crepuscular no qual es-
Mas podia fazer isso reservadamente. Não, ela quis pra- tamos...
ticar um ato público de reparação, porque público tinha Olhemos para figu-
sido o seu pecado. Apresenta-se, então, às portas de Ro- ras como a de Santo
ma, vestida de saco, com uma corda ao pescoço, e se diri- Annon e compreende-
ge a uma igreja para pedir perdão. remos melhor a verda-
Depois de ter sido perdoada, torna-se amiga e peni- deira fisionomia da
tente daquele a quem ela ofendera, confiando sua alma à Igreja. v
direção dele. Que beleza há nessa reconciliação!
São Pedro Damião — vendo aquela Imperatriz vesti- (Extraído de
da pobremente, ajoelhada perto dele, e recordando-se conferência de
do tempo em que ela lhe dava dor de cabeça, introduzida 29/3/1974)
ali como um cordeiro, e encantando, por esta sua atitude
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