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REVISTA DR.

PLINIO 199, Outubro de 2014


Hagiografia

São Pedro de Alcântara:


18 de outubro

personificação da
penitência
Devido à explosão de orgulho e sensualidade
promovida pela Renascença, havia no século XVI
uma tendência geral das pessoas em procurar o
gozo da vida e abominar a penitência. São Pedro
de Alcântara enfrentou essa onda, e brilhou na
Santa Igreja pelo seu espírito de mortificação
levado até a sublimidade.

S ão Pedro de Alcântara era um santo sumamente


penitente, a própria personificação da penitência
na Igreja Católica, no século XVI. A respeito do
caráter penitente deste religioso, podemos tecer algumas
considerações.

Espírito de contemplação e de penitência,


na sociedade civil
Na Santa Igreja Católica, nem todos são chamados a
ser contemplativos, mas para que todos aqueles que vi-
vam no século tenham a medida de contemplação neces-
sária, cumpre haver algumas Ordens que levem o espíri-
to de contemplação tão longe quanto possível. Essas Or-
dens dão uma espécie de sustentação à nota contempla-
tiva que deve caber na vida comum de todos os homens,
que querem realmente se santificar.
É muito expressivo que o próprio São Francisco de
Assis tenha fundado a Ordem Terceira dos Frades Me-
Imagem de São Pedro
Eugenio Hansen

de Alcântara - Basílica nores, para pôr cobro à generalização do desejo das pes-
de Nossa Senhora do soas, no século XIII, de entrarem para a Ordem francis-
Sagrado Coração e cana. Tantos eram os que queriam ser franciscanos, que
de São José, México o século corria o risco de ficar abandonado. Então, para

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que o espírito franciscano pudesse florescer no mundo, ma que compreende o papel do sofrimento na vida. Quan-
ele fundou a Ordem Terceira que foi uma espécie de pa- do lhe acontece um infortúnio, não toma isso como um “bi-
drão para a fundação depois de Ordens Terceiras em ou- cho de sete cabeças”, não se revolta, não se apavora, mas
tras famílias religiosas. compreende que o próprio de nossa condição humana é so-
O que se diz da contemplação, pode-se afirmar da pe- frermos. E que seria uma coisa sem precedentes, sem expli-
nitência também. Não há a possibilidade de todos os ho- cação, não sofrermos frequentemente muitas coisas.
mens praticarem as penitências que os grandes santos Quando uma alma assim recebe um sofrimento, ela
penitentes fizeram, nem isso seria desejável. Se todos sofre mesmo, mas sem frigir, não começa a “fritar”. So-
quisessem praticá-las, a Igreja poria um freio a isso. fre achando aquilo natural, entendendo que a razão de
Deve haver uma certa medida de penitência na vida ser do homem nesta Terra é de dar glória a Deus, e isso
quotidiana do homem comum, que quer seriamente se não se consegue sem sofrimento. Por essa forma, é nor-
santificar; e os grandes santos penitentes, os grandes san- mal que soframos e podemos aguentar o infortúnio.
tos sofredores são exatamente aqueles que mantêm nos
outros, pelo exemplo e pelo deslumbramento da penitên- Almas esquecidas de si mesmas,
cia que praticaram, o espírito de penitência necessário. voltadas para Deus e a Santa Igreja
A este título, são pilares da Igreja porque, como o sal
que evita a podridão, eles conservam esse espírito na so- Tendo firmeza e decisão, o sofrimento cai sobre nós e
ciedade civil, nas Ordens religiosas não especialmente o aguentamos como Nosso Senhor Jesus Cristo aguentou
consagradas à penitência, no clero secular e nos mais al- a Cruz. Às vezes até caindo sob o peso dela, porém nun-
tos degraus da Hierarquia eclesiástica. ca se desesperando nem tentando abandoná-la — achan-
E isto fez São Pedro de Alcântara numa época na qual o do que está lhe acontecendo um absurdo, mas compre-
espírito de penitência era abominado, a Renascença esta- endendo que aquilo faz sentido, tem razão de ser —, le-
va tomando conta do mundo e, exatamente em virtude da- vantando-se de novo e carregando a cruz.
quela explosão de orgulho e de sensualidade à qual me re- As almas assim são, antes de tudo, dotadas de bom
firo em meu livro “Revolução e Contra-Revolução”1, havia gênio, nativamente ou pela força que se impuseram a
uma tendência universal para fazer da vida uma larga série si mesmas. Quando se lhes faz algo de mau, elas estão
de prazeres, até transformá-la num ininterrupto gozo.

Duas formas de penitência


Por penitência entendemos, antes de tudo, as doenças,
os infortúnios, os desastres, as humilhações a que os ou-
tros nos sujeitam, as incompreensões, todas as coisas que
nos fazem sofrer, permitidas por Deus ou que Ele manda
e das quais não podemos fugir.
Além disso, existem as penitências voluntárias que im-
pomos a nós mesmos por amor de Deus. A ladainha do
Cardeal Merry del Val2 sugere muitas penitências assim,
implicitamente. “Que os outros possam ser louvados e eu
desprezado, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo!” Quer
dizer, se tendo a oportunidade de ser honrado e não há
glória especial de Deus nisso, faço uma bonita penitência
apagando-me e permitindo que outros sejam honrados
para, por esta maneira, eu sofrer, desapegar-me de algu-
Vincent Steenberg (CC -3.0)

ma coisa, dar glória a Deus, Nosso Senhor.


Paradoxalmente, essas duas formas de penitência con-
têm em si a realização da promessa do Divino Salvador,
pela qual aquele que deixasse tudo por amor a Ele rece-
beria o cêntuplo nesta Terra e, depois, a vida eterna.
Se prestarmos bem a atenção, notaremos o seguinte: há
uma categoria de almas na Terra que são felizes, e outra de O Profeta Jeremias lamentando a destruição de
almas infelizes. É feliz, alegre, cheia de bom humor, a al- Jerusalém - Rijksmuseum, Amsterdã (Holanda do Norte)

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prontas a perdoar. Quando se lhes manda alguma coisa, Há um tipo de homem infenso à penitência porque
estão prontas a obedecer. Quando alguém se esquece de- julga estar nesta vida só para gozá-la, e não se preocupa
las, não tomam isso em linha de conta. São almas que es- com mais nada. Por isso, não quer aceitar a virtude e as
tão longe de serem insensíveis. Mas têm isto de particu- dificuldades que ela traz consigo e, portanto, recusa toda
lar: são sensíveis para o bem, mas não para o mal que se e qualquer forma de sacrifício.
lhes faz. Uma segunda modalidade, que vem disfarçada com
Essas são as almas que saltam na defesa da causa da aspecto de virtude e, por isso, nos ilude mais facilmente,
Igreja, caso os princípios sejam atingidos. Porque quem apoia-se na seguinte ideia: “Os sofrimentos necessários
se esquece de tal maneira de si mesmo pode ter amor para não pecar eu aceito; porém, nenhum outro. Tenho o
aos princípios. São, portanto, as almas doutrinárias, que direito de gozar minha vida e quero fruí-la inteiramente,
sabem o que é a procura do absoluto, convictas de que pois ela me foi dada para ser desfrutada. Eu me limito a
na vida a única coisa que vale é defender as coisas que não pecar; quanto ao mais, vivo completamente folgado.”
são, afinal de contas, a semelhança de Deus na Terra e Quem pensa assim, na grande maioria dos casos, não
por causa disso, mais do que tudo, a Santa Igreja Católi- se mantém fora do pecado e acaba por sucumbir nele,
ca Apostólica Romana, a qual compendia em si todos es- porque é um desvio completo da ideia da finalidade des-
ses valores. ta vida, que não consiste em que nós apenas gozemos
dentro dos limites da virtude. A vida nos foi dada para
O sofrimento é a lei da vida conhecer, amar e servir a Deus neste mundo. E, entre os
serviços que podemos prestar ao Criador, um dos mais
Pelo contrário, uma alma que não se tenha compene- insignes, sobretudo em nossa época, é lutar por Ele. Ser-
trado de que o sofrimento é a lei da vida, vive sofrendo. vir, amar e lutar por Deus em toda medida do possível: é
Porque cada coisa desagradável que lhe acontece é para para isso que existimos.
ela uma aberração. Ela anda na rua, por exemplo, e tro-
peça, resmunga contra o calçamento; toma um táxi e o Soldados da Igreja militante
motorista não entende o caminho, ela acha um absurdo
ter que explicar para o chauffeur como chegar ao destino; Quer dizer, a vida não nos foi dada para o prazer, mas
faz um passeio e, por mais que durante a viagem desfru- para o heroísmo, para a luta. E devemos considerar um
tasse tudo do melhor — a hospedagem, um palácio; a co- ou outro prazer que nós nos proporcionemos apenas co-
mida, um banquete —, se teve algum enfado com compa- mo uma coisa transitória, para descansar e recomeçar a
nhias pouco interessantes, já é o suficiente para conside- batalha.
rar frustrado o passeio. Por quê? Porque a pessoa imagi- Para saber se o prazer é bom ou mau, devo julgá-lo de
na o seguinte: acordo com este critério: se terminado um determinado
“O normal, o banal é que me corra tudo perfeito. É a deleite, estou mais disposto à luta, à seriedade, à morti-
mínima das obrigações da vida para comi-
go. Alguma coisa que tenha saído de erra-
do é um contrassenso. Como isso foi me
acontecer?! Não entendo, não posso acei-
tar! Revolto-me!”
Às vezes, uma pessoa assim apresen-
ta fisionomia muito alegre. Mas, vai-se ver
por detrás e se nota uma tensão contínua,
porque ela está, a todo o momento, com
pânico de acontecer alguma coisa que se-
ja um sofrimento. E, por outro lado, como
os padecimentos vão surgindo, o indivíduo
fica mais ou menos como um sujeito que
tem a toda hora um pernilongo pousando
em cima dele. Quando não é pernilongo, é
Matanya

uma pedrada ou um tiro... Então a pessoa


julga-se como uma espécie de tiro ao alvo,
com os mil sofrimentos que lhe vêm suce-
dendo. Resultado: é a pior vida possível. Soldado sobrevoa uma zona de conflitos

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ficação, esse prazer é bom; se, pelo contrário, fico mais
mole ou menos desejoso de seriedade e de coisas eleva-
das, então esse deleite é ruim.
Todo prazer, todo descanso não é senão um interstício
para servimos melhor a Nossa Senhora. Mas, como filhos
da Igreja militante, nossa finalidade é de lutarmos a vida
inteira, e de aguentarmos todas as aridezes e dificulda-
des da vida combatente.
Imaginem um soldado que esteja sentado na trinchei-
ra, num momento de intervalo de luta, olhando para o
campo: “Que bonito esse campo, que lugar pitoresco on-
de foi aberta essa trincheira!”
Alguém diz para ele:
— Fulano, você tem que se preparar para a luta de
amanhã!
— Ah, eu não! Esse negócio de avançar, passar o dia
inteiro lutando, não! Cumpro o meu dever mínimo de
soldado, sem desertar nem trair em favor do inimigo.
Não entrego um palmo de território nacional.
Com um homem assim perdem-se todas as guerras!
Ora, somos soldados da Igreja militante e devemos ter
em mente que a vida nos foi dada não para o prazer, mas
para o dever.
As almas com espírito de mortificação, que compre-
endem quanto é natural sofrer, estão aclimatadas ao so-
frimento como no seu ambiente próprio. Elas podem até

Santiebeati.it
gemer e pedir a Deus que afaste delas a dor, mas consi-
derando normal passarem por padecimentos. Essas rece-
bem o cêntuplo nesta vida, e até mais do que isso.
São Pedro de Alcântara
Intrepidez e iniciativa na luta contra o mal Palácio Arquiepiscopal de Toledo, Espanha

Aqueles que procuram fugir da dor sofrem muito Uma das mais profundas e importantes formas de so-
mais. Não há coisa pior do que a vida empregada exclu- frimento é aguentar a luta contra o mal. E não apenas
sivamente para o prazer. O gozo meramente terreno, so- aguentar, mas ter espírito de intrepidez e de iniciativa
bretudo quando é imoral, não passa de uma ilusão. Nos nessa luta, o espírito militante de um São Miguel Arcan-
primeiros momentos dá uma satisfação pseudoinebrian- jo, de espada na mão, pronto a ser o primeiro em todas
te, mas depois não resta mais nada a não ser a frustração. as batalhas, a dizer “não” a todos os adversários da Fé.
Verdadeiramente, o papel do sofrimento bem aceito é Esse ânimo de heroísmo e de intrepidez, enfrentando to-
o de dar esta alegria, esta serenidade que os antigos cha- dos os trabalhos e todas as lutas, é a fina ponta do espíri-
mavam consolação, em meio a uma nobre tristeza. to de sofrimento.
Se analisarmos bem a realidade, veremos que nos po- É, sobretudo, isso que devemos querer ao pedirmos o
vos onde mais se busca o prazer e mais se foge do sofri- espírito de penitência, o senso da mortificação, sem os
mento, há maior número de psicoses. Naqueles em que quais não se pode ter o desejo das coisas espirituais nesta
há menos procura de prazer e mais resignação com o so- Terra nem das coisas celestes. Peçamos, então, a São Pe-
frimento, existe mais força, mais consolação. dro de Alcântara que no-los alcance.  v
São Pedro de Alcântara e outros santos penitentes nos
dão exemplos, para admirarmos até o último extremo da (Extraído de conferências de 19/10/1964 e 19/10/1965)
admiração — termos uma dessas venerações que nos va-
ram a alma de lado a lado — aqueles que sofrem; mas
que sofrem com grandeza, com resignação, com entu- 1) Parte I, Cap. III, 2. B.
siasmo. 2) Publicada na Revista Dr. Plinio n. 107, p. 13.

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