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REVISTA DR.

PLINIO 158, Maio 2011

A beleza e a har
13 de Outubro

A majestade real
resplandeceu num
dos atos mais belos
da história da
Inglaterra quando o
Rei Santo Eduardo,
cumprindo o desejo
do Papa, conduziu
em seus ombros
um mendigo ao
qual curou de uma
terrível doença.
Analisando o
fato, Dr. Plinio
nos aponta, com
profundidade, a
beleza do princípio
de ordem e
harmonia que nele
está refletido.

N um trecho do livro “La


Baja Edad Media1”, de au-
toria de Cristopher Bruck,
Fotos: Gustavo Kralj

Professor de História Medieval da


Universidade de Liverpool, está des-
crito o seguinte fato da vida de San-
to Eduardo, a respeito do qual eu
Santo Eduardo - Abadia de gostaria de fazer algumas considera-
Westminster, Londres. ções.

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monia dos opostos que se unem
A imagem medieval da pobreza, a Voltando à Inglaterra, o pobre ho- Rei, o qual provavelmente se encon-
realeza e a vontade divina se ilustram mem teve certamente de percorrer trava em seu trono, cingindo o dia-
na vida do Rei Eduardo, o Confessor, longos trajetos, por estradas onde a dema e as vestes reais, resplandecen-
do século XII. todo momento estava em risco de cair te de majestade, mas ao mesmo tem-
Essa história narra que Gila Mi- em mãos de salteadores. Por outro la- po de bondade e afabilidade.
chael, um irlandês, foi a Roma em do, quanto bom trato e hospitalidade — O que quer? Interroga-lhe o
busca de remédio, mas São Pedro lhe não terá o viajante recebido nos con- Rei.
disse que sanaria o mal se o Rei Edu- ventos pelos quais passava. Talvez as — Senhor, eu venho da parte do
ardo da Inglaterra o levasse sobre os pessoas generosas lhe ofertassem es- Papa.
ombros desde a Westminster Hall até a molas para assim poder prosseguir a — Então, diga-me do que se trata.
Abadia de Westminster. aventura que consistia tal viagem. — Ele pede que vós me cureis.
São Pedro, neste contexto, quer — Mas como poderei fazer isso?
dizer o Papa. — É ordem do Papa...
O virtuoso monarca consentiu. Pe- Quanto contraste nesta cena! De
lo caminho, o intumescido irlandês um lado, o pobre homem, provavel-
sentiu que se afrouxavam os seus ner- É esplendoroso que mente um mendigo, coberto de cha-
vos e suas pernas se distendiam. o maior seja pai, gas sangrentas e repugnantes; do ou-
O sangue de suas chagas corria pe- tro lado, o Rei, saudável, presumi-
los trajes reais, mas o Rei o levou até o
amparo e auxílio velmente jovem e cheio de majesta-
altar da Abadia. Ali chegando, o po- do menor. Por isso, de.
bre doente ficou curado; começou a é bonito que um O recado que é transmitido con-
andar e pendurou as muletas na Aba- siste na manifestação do desejo do
dia, como sinal do milagre.
rei, homem posto no Papa de que esse grande monarca,
mais alto píncaro da glorioso chefe da nação, carregue
“Basta o Rei hierarquia social, se ao pescoço aquele mendigo chagado
carregar-te aos ombros” e purulento, apresentando-se nes-
lembre de que ele é sa postura humilhante pelas ruas, ao
Como lemos acima, um homem homem como o outro. longo de todo o percurso.
vítima de grave e dolorosa enfermi- O santo soberano atende o pedi-
dade, a qual fazia com que seus ner- do. E, na pequena Londres de en-
vos se contraíssem, produzindo, com tão, o Rei sai de seu palácio, enquan-
isso, feridas que dificultavam extre- to as sentinelas se perfilam e um
mamente seus movimentos. Certo A majestade arauto toca trombeta avisando que
dia, esse homem conseguiu que o le- e a repugnância Sua Majestade vai passar. Provavel-
vassem até o Papa para que lhe pe- se encontram mente, nas ruazinhas estreitas da ci-
disse a cura. Este respondeu ao en- dade de Londres, o povo se espanta
fermo que ele seria curado, mas pa- Tendo chegado, por fim, à Ingla- com a saída do Rei, sobretudo por-
ra isso era necessário que o Rei da terra, o doente dirigi-se ao palácio que ele não está, como de costume,
Inglaterra o pusesse sobre os om- real. Alegando trazer uma mensa- montado em seu magnífico corcel,
bros e o levasse da grande sala de gem pontifícia, ele conseguiu com- nem tampouco numa carruagem,
Westminster até a Abadia, onde por parecer à presença do soberano. mas está a pé, sozinho, sem guardas
fim encontraria a cura do mal que o Imagine-se como terá sido a cena nem tropas e fazendo-se montar por
atormentava. daquele homem chegando diante do aquele indivíduo.

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Hagiografia
Abadia de Westminster, minada época multidões desejosas
a fim de ver qual será o de que as coisas tivessem se passa-
desfecho daquela curio- do deste modo; caso contrário, nem
sa cena. mesmo seriam capazes de inventar
No caminho, porém, algo assim.
as vestes reais vão se en- Pode tratar-se de uma lenda ba-
chendo de pus e san- seada num fato verídico, o qual foi
gue que começam a ver- glosado e embelezado para atender
ter das chagas daquele mais plenamente a apetência das
homem, o qual ao mes- pessoas, porém, o que importa é ter
mo tempo começa a sen- existido um povo que tivesse o esta-
tir que algo nele está se do de espírito tendente a se entusias-
dando. mar com a possibilidade das coisas
Ao entrar na Aba- se passarem desta forma.
dia, em meio à expec- Como vibram de entusiasmo por
tativa geral, talvez de- realidades diferentes as pobres mul-
vido ao fato de o povo tidões hodiernas, infelizmente tão
pressentir que uma das massificadas, materializadas e quase
mais belas cenas da his- aniquiladas!
tória daquele recinto Este episódio é indiscutivelmen-
estava prestes a acon- te belo, porém é necessário fazermos
tecer, o monarca dirige- uma análise a fim de que a beleza que
-se para junto do altar, nele se encontra não permaneça ape-
lá tira o precioso fardo nas como convicção, mas seja funda-
de seus ombros e o põe da no raciocínio, para desta forma
no chão. Então, o ho- podermos compreender mais profun-
mem, que montando no damente o esplendor da Igreja Cató-
Rei, vinha trazendo nas lica, sem a qual tais fatos seriam im-
mãos suas muletas, lar- possíveis, seriam impensáveis.
ga-as e começa a andar,
pois suas chagas esta- A espera
Abadia de Westminster - Londres. vam inteiramente secas só aos fortes é pedida
e ele miraculosamente
Dos mais belos fatos curado. O primeiro aspecto encontra-se
da monarquia inglesa Por outro lado, o Rei está com na Fé daquele homem, que não he-
seus trajes gloriosamente cobertos sita em ir candidamente pedir ao Pa-
Naquela cidade pequena, onde de sangue e pus. Enquanto se ope- pa um milagre. Por outro lado, tam-
todo mundo se conhece, certamen- rou por seu intermédio um grande bém, quanto prestígio gozava o Pa-
te o povo deve ter comentado: Logo milagre através do qual a majestade pado naquele tempo! Pois, o enfer-
Gila Michael, esse mendigo miserá- real resplandeceu esplendorosamen- mo foi até ele com certeza de que se-
vel, carregado assim pelo Rei! Nosso te num dos atos mais belos de toda a ria curado.
augusto Rei, Santo Eduardo, símbo- história da monarquia inglesa. Como a Providência tratou a Fé
lo da Inglaterra e da virtude da Igre- desse homem?
ja Católica, ele tão majestoso, digno Belo como fato ou Poderia tê-lo curado logo, mas
e altivo como um lírio, trazendo um como lenda não o fez. Pelo contrário, inspirou
mendigo montado sobre si! Que coi- ao Sumo Pontífice de enviá-lo de
sa extravagante!” Alguém poderia levantar dúvi- volta à Inglaterra para lá ser mira-
Enquanto isso, tanto o mendigo da sobre a historicidade desse fa- culado. Tal ato de confiança Nossa
quanto o Rei vão rezando, e pedin- to. A meu ver, isto não tem grande Senhora pede aos fortes. Enquan-
do a Nossa Senhora a esperada cura. importância, pois ainda que venha to aos débeis na Fé, a maior par-
Atrás do Rei o povo atônito for- a ser um mito ou uma lenda, o im- te das vezes Ela atende imediata-
ma um cortejo que caminha rumo à portante é ter havido numa deter- mente.

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Outro aspecto de beleza é a cer- zes heroicamente, seja pai, amparo
teza do pobre homem de que o Rei e auxílio do menor. Por isso, é boni-
Eduardo o iria curar. Caso fosse ra- to que um rei, homem posto no mais
bugento poderia pensar: “Por que alto píncaro da hierarquia social, se
fui até Roma se eu tinha tão perto de lembre de que ele é homem como o
mim quem me podia curar?” Mas, outro, pois de certa forma todos são
não possuindo esse defeito, ele acei- iguais. São desiguais apenas em seus
tou que Nossa Senhora dispusesse acidentes, os quais por vezes são de
dele como quisesse, indo ter com o uma importância muito grande, mas,
Rei cheio de tranquilidade e uma Fé em sua essência, o rei é homem co-
que move montanhas. mo o outro.
Por causa disso, o maior deve ser
Um rei “cavalgado” capaz de servir o menor, respeitan-
por um mendigo do assim a qualidade de homem que
ambos têm em comum.
Chegando à Inglaterra, o mendi- Estes são os dois aspectos lindíssi-
go pede a cura apresentando ao Rei mos desse fato: um pobre resignado,
a condição do Papa para alcançar o mas que com essa naturalidade e Fé
milagre. Era de que ele “cavalgasse” pede ao Rei para que o leve sobre os
o Rei. ombros; um Rei que reconhece a al-
A condição não poderia parecer tura de sua realeza, mas é capaz de
mais extravagante, pois o Rei podia dizer: “Meu filho, pois não. Suba e
curar o mendigo ali na mesma ho- vamos juntos pedir o milagre que vo-
ra. Então, por que deixar-se cavalgar cê necessita.”
por um doente como aquele? Por
outro lado, tratando-se de irem até a A maravilhosa harmonia
Abadia de Westminster, não podiam das desigualdades
os dois para lá se dirigir sentados nu-
ma carruagem? Há neste episódio uma harmonia
Aquele pedido do Papa, o qual no que corresponde à lei profunda das
fundo manifestava o desejo da Provi- harmonias, a qual admite que os ex-
dência, parece ser a inversão de toda tremos se toquem: é belo ver a rea-
a ordem, pois Deus criou os reis para leza tocar na mendicância e, assim,
governar e não para serem montados ambas se unirem harmoniosamente.
por mendigos. Isso é uma desordem? É belo, portanto, ver ambas se
Não, a ordem encontra-se pro- aproximarem do altar junto ao qual
fundamente presente nesse fato. está Deus que se encanta ao ver o es-
Por quê? plendor daquela obra da qual Ele
próprio é Autor. Ele criou o mendigo
A grandeza e também o rei. Ele quis que no mun-
de se fazer pequeno do houvesse realeza, mas também po-
breza, sofrimento, dor, doença, men-
Trata-se do seguinte: É lindo o dicância. E em tudo isso Ele pôs uma
fato de o poder público dominar, é harmonia perfeita.   v
verdadeiramente maravilhoso e no-
bre que os inferiores prestem aos de- (Extraído de conferência
tentores deste poder o respeito que de 28/6/1974)
lhes é devido. Sobretudo quando se
trata de alguém que reconhece a ori-
gem divina de seu poder.
Santo Eduardo. Mas, é também esplendoroso que, 1) “La Baja Edad Media”, Ed. Labor,
em certas ocasiões, o maior, às ve- Barcelona, 1968, p. 32.

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