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REVISTA DR.

PLINIO 80, Novembro 2004

O SANTO DO MÊS

São Martinho de Tours,


incansável apóstolo e taumaturgo
11 de Novembro

N esse mês de novembro Dr. Plinio nos dá a conhecer alguns belos e


tocantes aspectos da vida de São Martinho de Tours, um dos mais
célebres heróis da Fé naqueles albores da Cristandade medieval, venerado
por suas grandes virtudes e denodado zelo pela salvação das almas.

P ara se compreender bem o elemento de unidade


da vida de São Martinho de Tours — cuja festa é
celebrada em 11 de novembro — devemos con-
siderar o que temos dito a respeito dos santos suscitados
Factótuns de Deus
Há santos chamados a passar sua existência nos pri-
mórdios da vida religiosa de um povo, e quando essa tra-
jetória espiritual começa a se consolidar, surgem outros
pela Providência para serem missionários, evangelizado- apóstolos com vocação definida para continuar o traba-
res, reis, príncipes, e daqueles de cujo apostolado decor- lho daqueles. Fundam ordens religiosas, universidades,
reu o nascimento de nações inteiras para a Cristandade. são grandes pregadores que incentivam as almas, etc.
Fotos: S. Hollmann

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Cenas da vida de São Martinho de Tours, Catedral de São Martinho, Colmar (França)
Na página anterior, Batismo e episódio com o mendigo de Amiens; acima, com Santo Hilário de Poitiers

Outros têm a curiosa tarefa de “fazer um pouco de tu- Não se sabe ao certo quando São Martinho se conver-
do”. Sem pressa, sem dispersão, com perfeito domínio teu, mas em determinado momento tornou-se catecú-
de si, enfronham-se em toda espécie de acontecimentos. meno, isto é, preparou-se para receber o Batismo. Nessa
Eles sustentam a boa causa em toda parte onde ela preci- ocasião deu-se o famoso episódio: estando ele montado
se de um auxílio e nas mais diversas condições em que es- a cavalo, num período muito frio, encontrou-se com um
sa ajuda lhes é requerida. São, por assim dizer, os factó- mendigo que vagava pelas portas de Amiens, desampara-
tuns de Deus, aqueles que realizam tudo quanto desejam do e sem agasalho. Tocado pela miséria do próximo, com
Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima. extrema bondade o Santo dividiu seu próprio manto em
Se analisarmos sob esse prisma a vida de São Marti- duas partes, entregando a metade ao indigente.
nho, a compreenderemos. Do contrário, ficaremos ape- Esse fato adquire maior significado na Europa, onde o
nas com um conjunto de informações biográficas, sem inverno é bem mais rigoroso e agressivo ao corpo huma-
maior sentido unitário. no, do que em nossas regiões tropicais. Um brasileiro po-
de não ter manto, mas possui pulôveres. Quando esfria,
Exemplo de caridade cristã ele permanece acalentado dentro de casa, ou, se precisar
sair, usa uma condução qualquer que o permite manter-
Vejamos então alguns dados sobre ele, apresentados se protegido da baixa temperatura. O frio incomoda um
por Dom Guéranger: pouco, e depois não se pensa mais nele.
Martinho nasceu na Panônia, Hungria, no ano 316. No continente europeu, porém, o inverno é bastante
Portanto, viveu numa época remota e em terras que, sério. Nessas condições, andar léguas a cavalo sem man-
naquele tempo, eram semi-bárbaras. Algo semelhante à to, ou com metade dele, redunda em grande sacrifício.
selva Amazônica, senão pior. Por isso, o gesto de São Martinho comoveu toda a Idade
Engajado muito cedo nos exércitos romanos, ele se tor- Média como sendo uma expressão própria da caridade
na conhecido somente quando partilha seu manto com um cristã, oposta à dureza do paganismo romano.
pobre nas portas de Amiens. De maneira que esse episódio pode ser considerado o
O império romano possuía alguns destacamentos mili- primeiro feito simbólico da vida dele, recordado na era
tares em Amiens, situada na Gália, atual França. Devido medieval através de vitrais, medalhas, iluminuras, qua-
a transferências internas, ele foi enviado da Panônia para dros, etc., enquanto crescia a devoção a São Martinho de
aquela cidade gaulesa. Tours.

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O SANTO DO MÊS

À esquerda, São Martinho se


acima, favorecido pelas consolações

depois de ser um santo que procurou


as pessoas, dirigiu-se a um exílio no
qual foi procurado por elas...

Bispo da diocese de Tours


Continua a biografia:
Por ocasião da morte de Santo Hi-
lário, ele foge dos habitantes de Poi-
Apostolado e milagres tiers que queriam tê-lo como bispo. A população de Tours
Uma vez batizado, deixa o exército e vai estudar com o será mais hábil. Em 371, confiscam-no por uma espécie de
grande doutor das Gálias, Hilário de Poitiers. O desejo de armadilha e o convencem a se ordenar sacerdote para ser
converter seus parentes, que eram pagãos, conduziu-o à Pa- elevado ao episcopado.
nônia. Esse esquivar-se das honras não é fenômeno muito co-
Percebe-se como a existência de São Martinho é fe- mum em nossa época, como também não o é a corrida de
cunda, semeada de viagens, de encargos, de missões povos atrás de um santo para que este se torne bispo.
evangelizadoras, etc. Ele havia sido um legionário roma- Ora, no século IV, período histórico chamado de deca-
no na sua Panônia natal, de onde passou para a Gália. dência e miséria, os santos pululam e os homens se apres-
Em determinado momento, converteu-se, abandonou as sam ao encalço deles. Como isso é diferente do pseudo-
fileiras militares e foi — ele, um “botocudo” da Hungria progresso, do pseudo-esplendor da era contemporânea!
— estudar teologia e filosofia com Santo Hilário de Poi- São Martinho, então, deixa-se sagrar Bispo, mas sabe
tiers. que a vocação contemplativa persiste nele. Fundou Mar-
Em seguida o vemos retornar à Hungria, a fim de con- moutier, um convento a três quilômetros de Tours, sua
verter seus pais. Após esse tempo junto à família, regres- diocese. Essa casa religiosa floresceu, tornou-se seminá-
sou à Gália, onde fundou o mosteiro de Ligugé, o pri- rio, centro de estudos e escola onde diversos futuros bis-
meiro da França. Passou a levar uma vida contemplati- pos se formaram. Trabalho assaz importante, pois de um
va, praticando muitos milagres que o tornaram célebre, e bom seminário surgem bons sacerdotes e um bom epis-
logo afluíram discípulos a povoarem sua solidão. Assim, copado.

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esquiva das honras eclesiásticas;
do Céu; à direita, sua morte na Flandres

E de novo constatamos como a


vida de São Martinho foi extrema-
mente fértil e rica em realizações pe-
la causa da Igreja.
Operando milagres, o “selvagem”
da Hungria, o ex-legionário roma-
no, posto à frente da formação das
almas, preparou uma geração de sa-
cerdotes e de futuros sucessores dos
Apóstolos. Seu zelo pelos povos transborda os limites de sua dioce-
se. Ele é visto nas dioceses vizinhas e até em Artois, na Pi-
Até o fim, um grande batalhador cardia; em Trèves na Bélgica, e mesmo na Espanha. Por to-
da a parte sua palavra, sustentada por seus milagres e cari-
Muitas vezes se dirigia à solidão de Marmoutier, on- dade, opera maravilhas.
de era favorecido por visões de Nossa Senhora, mas tam- Sem abandonar suas prerrogativas episcopais, este ho-
bém aguilhoado pelas perseguições do demônio. É a con- mem se transforma num infatigável missionário, percor-
dição própria àqueles que se isolam: por um lado, visita- re as mais distantes regiões numa época em que tais des-
dos pelas consolações do Céu; por outro, importunados locamentos não se faziam sem grandes incômodos, e rea-
amiúde pelo inimigo de nossa salvação. liza verdadeiras maravilhas com seus sermões e mila-
Para Santo Inácio de Loyola, a melhor prova do êxito gres.
de um retiro espiritual é o fato de a alma ser objeto, ao Esse amor de Deus o leva a Flandres em novembro de
mesmo tempo, de graças extraordinárias e de investidas 397, para ali estabelecer uma concórdia entre os monges,
do demônio. problema sempre difícil. E foi ali que ele, ancião de mais
Assim sendo, compreende-se que, no seu isolamen- de 80 anos, faleceu na paz do Senhor.
to, São Martinho estivesse sujeito a essas vicissitudes. De Eis o fim sereno, em meio à luta, de um grande após-
qualquer forma, ali se acrisolava no amor a Deus e ao tolo e taumaturgo. Exemplo eloqüente destes homens de
próximo, traduzidos num incansável esforço de evange- Deus que cultivam e colhem os frutos das sementes que
lização: outros santos plantaram. 

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