Você está na página 1de 32

Apresentação

Padroeiro das secretárias

N
o Brasil, a numerosa e eficiente classe das secretá
tias tem o piedoso hábito de invocar São Jerônimo
como seu especial padroeiro e protetor. É muito
explicável esse costume, pois São Jerônimo exerceu efe
tivamente, durante algum tempo, funções de secretário.
Mais precisamente, ele foi secretário do grande Papa São
Dâmaso.
São Jerônimo, que viveu nos séculos IV e V, recebeu
formação católica, mas só foi batizado aos 20 anos. Possui
dor de uma cultura clássica das maiores do tempo, é consi
derado um dos mestres da língua latina. Aproveitou inte
gralmente sua imensa cultura no serviço da Igreja, lutando
contra as heresias e defendendo a Fé católica.
Atraído pela vida isolada e recolhida, na oração e nas
austetidades, nem por isso deixava de participar ativamen
te, desde os váJios locais em que viveu, das grandes contro
vérsias do mundo culto de então.
São Dâmaso, que teve tanta importância na vida de São
Jerônimo, nasceu na cidade lusitana de Guimarães e foi ir
mão de Santa !rene. Possuía grande cultura, era arquivista e
poeta, e tinha também gosto pela arqueologia. Ordenou a
organização dos arquivos da Igreja, conservando versões

3
fiéis e autênticados escritos dos ptimeiros Padree man
dando de'itruir versões apóctifas e deturpadas. para que no
futuro não pudessem ser aproveitadas por hereges.
Com a mesma profética intenção, quis que houvesse
uma única versão oficial dos Livros Sagrados. c incumbiu
São Jerônimo de fazer uma tradução latina elas Escrituras.
diretamente dos originais gregos ou hebraicos.
Ordenou que fossem feitas escavações e obras ele con
ervação nas catacumbas. abandonadas cle cle que
Constantino dera liberdade à Igreja, em 312. Pessoalmente
redigiu. em\ er os. (ls epitáfios dos incontáveis mánin::s que
iam sendo locali7ados nas galerias subtetTâneas ele Roma.
Por intlu " ncia sua foi retirada do Senado mmano a es
tútua da cleua Vitória. sendo <t sim eliminado e se ,·estígio
Jo paganismo oticial. Foi um dos primeiros Pontífices a de
linir explicitamente o ptimado elo Papa obre a Igreja Uni
ver al. com uma autoridade que lhe vem de osso Senhor
.Jesus Cri to. c não por delegação dos clemaibispos ou de
concílios. Apoiou Santo Atanásio em sua luta contra o
arianism\l c combateu tenazmente es a. como diYersas ou
tras here ias dll tempn.
Faleceu em Roma. no ano ele 384. Seu pontiticado. que
durou 18 ,llllh foi do' maifecundos de toda a História
da
Igreja

Muitaprolissões tem seus Santos padroeiros. Alguns


foram olicialmentc dc ignaclos pela Santa Sé: outros não o
foram olicialmemc. mas são há muito tcmpu tradicional-
São Dâmaso

5
mente invocados pelos fiéis de dete1minada profissão ou
estado de vida, ou como protetores em determinadas neces
sidades. A Igreja Católica sempre viu com bons olhos essas
sadias tradições do povo fiel.
Nada impede, aliás, que os fiéis de alguma profissão
livremente procurem, nas vidas dos Santos, traços em co
mum com suas próprias vidas e, encontrando-os, venerem
aqueles Santos como seus especiais protetores. Nisso, a Igreja
deixa total liberdade aos fiéis.
Os Santos que ela canoniza e cultua em todo o mundo
são modelos que ela apresenta para nós admirarmos e pro
curarmos imitar. Eles não são de uma natureza superior à
nossa. São seres humanos como qualquer um de nós. Foram
concebidos no Pecado Original, tiveram que lutar contra suas
más tendências, tiveram por vezes que fazer grandes esfor
ços para cmTigir seus defeitos, passaram por dificuldades
parecidas com as nossas.
Eles nos compreendem, nos amam, desejam sincera
mente que também nós nos santifiquemos e nos reunamos a
eles no Paraíso, para gozar da visão beatífica de Deus e can
tar eternamente os louvores de Jesus Cristo e de sua Santa e
Imaculada Mãe.
Eles, por outro lado, estão na plena amizade de Deus,
numa amizade que é impossível ser quebrada ou diminuída
de qualquer modo. Os pedidos que eles apresentam a Deus
têm condições únicas para serem bondosa e generosamente
atendidos.
Invoquemos, pois, os nossos Santos padroeiros, para
que rezem por nós e obtenham de Deus e de Maria Santíssima

6
-que por vontade divina é Medianeira Universal de todas
as graças -ajuda para nossas fraquezas.
Espeeialmente invoquem o seu grande e glorioso cole
ga as secretárias, que por certo encontrarão em São
Jerônimo uma predisposição muito especial para atender
os pedidos que elas lhe fizerem.

* * *
Feita esta introdução, podemos passar para a Vida de
São Jerônimo. Preferimos traduzir, do francês, os tópicos
principais do verbete SA.INT JÉRÔME, do "Dictionnaire
Pratique des Connaissances Religieuses, publié sous la
diréction de J. Bricout" (Librairie Letouzey et Ané, Paris,
1926, vol. m, cols. 1242-1249).
O autor desse verbete é o Padre Paul Synave, da Ordem
dos Pregadores, sacerdote que também escreveu uma His
tólia da Igreja que teve grande voga na primeira metade do
século XX (Histoire de l'Église, Hatier, Paris, 1922), além
de traduzir e comentar trechos da Suma Teológica, de São
Tomás de Aquino.

7
São J erônimo em seu escritório - representação renascentista

8
Vida e obra de São Jerônimo

Suas origens
" J erônimo, filho de Eusébio, nascido em Stridon, cida
de atualmente destruída pelos Gados, mas que outrora exis
tiu sobre os COI!fins da Dalmácia e da Panônia".

É com essas palavras que o próprio São Jerônimo se


apresenta, na conclusão de seu livro Varões llus/res, escrito
em 392, antes de enumerar as obras que até então havia
escrito. Não nos di z em que ano hav i a n ascido, nem o l
ocal exato de su a ci dade natal. Normalmente se situava o
ano de seu n ascimento entre 340 e 350, mas o Pe. Caval
lera consi dera o a no de 347 como "o 111ais ve1vssí111il e
sati.1jalório". Quanto a Stridon, que Mons. Bul li c propôs
reencontrar na pequena l ocalidade de Grahovo, perto de Spal
ato, na Bósnia, é provável , se bem que não certo, que esteja
perto deAquil éia (cfr. Cava llera, Sainl Jérôme, sa vie et son
oeuvre, t. li, pp.
67-71).
J erônimo, que pettencia a uma família rica e cristã, teve
um a irmã e um irmão, de nome Paulini ano, que mais tarde
reaparece na v ida do Santo.

Primeira estada em Roma (359-369)


Jerôn i mo principiou seus estudos em Stridon , mas
logo foi continuá-l os em Roma, onde seguiu cursos de
Gramáti ca e de Retórica, na escola do cél ebre Donato.
Entre seus
9
colegas, dois sobretudo, Bonoso e Rufino de Aquiléia, tor
naram-se seus amigos durante o tempo que passou, de 359 a
369, na capita l do Império, que até 363 foi governada por
Juliano, o Apóstata.
O jovem adolescente se entregava com paixão ao estu
do dos hi storiadores, dos gramáti cos e dos filósofos.
Conse guiu ir formando, "com grande cuidado e também
com gran des despesas" sua bibl ioteca. Apesar das a legrias
da a mi za de e da ciência, Jerônimo se deixou em alguma
medida in fluenciar pelas atrações e prazeres da cidade de lu
xo que era então Roma. Anos depois, quando solitário no
deserto de Cha l cis, ele escreverá a esse respeito: "Oh!
quantas ve zes eu, habitando aquele deserto, naquela
profunda solidão re queimada pelos raios do sol ardente,
que tão inóspita se mostrava para com os monges,
imaginava-me estar entre as delícias de Roma!... Eu me
revia, em pensamento, entre as dam·as das jovens
romanas".
Ta l depoimento, entretanto, não nos deve fazer s
upor que Jerônimo tenha levado vida desregrada, pois
nele se mantinha viva a fé cristã, recebida dos pais,
confonne rela tou mais tarde: "quando muito jovem, em.
Roma, eu me en tregava aos estudos das artes liberais,
tinha o costume de visitar aos domingos, com outros
companheiros da mesma idade e da mesma formação, os
túmulos dos Apóstolos e dos Mártires. Penetrávamos com
freqüência nas criptas profundas escavadas na terra, nas
quais se viam de ambos os lados, ao longo dos corredores,
suas sepulturas".
Ante ta l espetácu l o, Jerônimo não podia deixar de de
sejar o ingresso n aq uela Igreja que admirava ta nto e cujas
10
Papa Libério bati zando - alto relevo antigo

recordações tanto o emocionavam. Até então não fora se


não catecúmeno, mas pediu o Batismo e o recebeu das mãos
do Papa Libério.

Peregrinações (369-374)
Ao término de sua vida de estudante, por volta dos
22 anos de idade, foi com seu amigo Bonoso a Treves e à
Gália. Durante essa viagem decidiu-se a renunciar ao
mundo e a consagrar-se inteiramente a Jesus Cristo.
Retornando a Aquiléia, começou a realizar seu projeto
de ascetismo junto a pessoas de vida santa. .
Em circunstâncias que não conhecemos bem, deci
diu-se repentinamente a deixar a terra natal e, levando
consigo a preciosa biblioteca, pôs-se em viagem para o

11
Oriente e, após múltiplas peregrinações, estabeleceu-se
em Antioquia, na Síria.

Primeira permanência no Oriente (374-382)


Em vez de encontrar o repouso almejado, porém, en
controu a doença e a febre. Seu fim parecia tão próximo
que chegaram a preparar-lhe os funerais. Certo dia, du
rante a Quaresma de 375, foi arrebatado em espírito e
conduzido diante do Tribunal de Deus, como se fosse seu
julgamento particular. Ele próprio, que nos conta esses
pormenores numa carta, prossegue:
"Interrogado no tribunal sobre a minha condição,
respondi: - Sou cristão. - Mentes, me disse o Jui z,
tu não és cristão, tu és ciceroniano, porque onde está o
teu tesouro, aí está o teu coração" .
E imediatamente recebeu como castigo uma ch uva de
vergastadas e, num juramento solene, decl arou: -"Senhor,
se por desgraça eu vier a possuir alguma ve z livros profa
nos, ou se vier a lê- los, eu Vos terei renegado!"
E voltou a si, com o corpo todo dolorido. Mas suas for
ças físicas lhe voltaram, ao mesmo tempo que se entregava
ao estudo dos Livros Santos. Deixou então Antioquia, para
estabelecer-se na solidão de Chalcis.
Sua vida no deserto foi consagrada a mortificar o corpo
de maneira espantosa, a transcrever manuscritos bíblicos, a
se apeifeiçoar na língua grega e a tomar, com um judeu con
vettido, lições de hebraico.
Infelizmente, não encontrou inteiramente a paz que al
mejava.

12
São Gregório Na zian zeno

13
O deserto estava agitado pelas controvérsias doutri
ná rias sobre a Santíssima Trindade. Os monges estava m
divididos em partidos, e procuraram atrair para suas po
sições o jovem Jerônimo. Este resi stiu e, na dúvida sobre
a posição correta, consultou , em duas cartas, o Papa São
Dâmaso.
Embora não lhe tivesse chegado resposta, Jerônimo
retornou a Antioquia, por volta do ano 377. Paulino, BiSJ?O
daquela cidade, conseguiu convencê-lo a aceitar a ordena
ção sacerdotal, em 378 ou 379. Jerônimo, entretanto, que
não queria desviar-se de sua clara vocação para os estudos
bíblicos, só aceitou a ordenação sob duas condições: a de
que não estaria obrigado ao exercício de f unções sacerdo
tais, e a de que poderia condu zir-se livremente, sem dever
obediência ao Bispo.
Embora Antioq uia lhe oferecesse recursos excelentes
para o estudo das ciências sagradas, Jerônimo preferiu, apro
veitando-se de sua liberdade, prutir pm·a Constantinopla (cer
ca de 379), onde se inscreveu na escola de São Gregório
Nazianzeno, para lá completru·sua formação exegética. Ins
ta l ado bem no centro das riquezas do pensamento grego,
resolveu beneficiru· com tais riquezas o mundo latino, em
preendendo a tradução, pru·a o latim, das Crônicas de
Eusébio e das Homilias de Orígenes (380-382).
Santo Epifâni o e Pau li no de Antioquia tinham sido
con vocados a Roma, onde deveria reunir-se em 382 um
concí lio muito impmtru1te para a Igreja elo Oriente.
Jerônimo os acompmillou e foi por eles apresentado
pessoalmente ao Papa São Dâmaso.

14
Carta de São J erônimo a São Dâmaso - có pia medie val

15
Segunda estada em Roma (382-385)
São Dâmaso havia suced ido ao Papa Libério em 366,
no trono de Pedro; a preocupação de seu pontificado tinha
sido ex tinguir os diversos ci smas que dividiam a Hierarquia
e a fé; tinha-se portado com grande rigor e, ao mesmo tem
po, com lucidez e pmdência, apesar das grandes dificulda
des que se apresentavam, sobretudo no Oriente.
Mas, seg uro da promessa feita pelo Salvador a São
Pedro, Dâmaso afirmava com energia, por palavras e por
atos, o Primado de Roma sobre a Igreja universal; de todas
as pattes reconia-se a ele; o próprio Jerônimo lhe havia es
CJito do dese1to de Ch alcis; Santo Ambrósio o havia consul
tado em diversas ocasiões; o imperador Eudóxio referia-se
a el e como o representante oficial da verdadeira fé.
Dâmaso não podia deixar de ter sua atenção atraída para
o jovem monge que chegava de Consta n ti nopla, e
soube servir-se de seus talentos. Nomeou-o seu secretári o
para os assun tos do Oriente, e seu consultor sobre questões
da Es critura. A São Dâmaso, Jerônimo dedicou uma
tradução das duas homili as de Orígenes sobre o Cântico
dos Cânticos.
Seus grandes trabalhos de tradução bíblica data m dessa
época: em 384 rev iu , a pedido do Papa, o texto, pouco
satisfatório, dos Evangelhos, a partir de manuscritos gregos
anti gos, comparou a versão grega de Áquil a com o texto
hebreu e corrigiu, de acordo com a versão dos Setenta, o
Saltério latino então em uso, COJTeção à qual foi dado o nome
de Saltério Romano, para distinguir das duas ou tras versões
dos Salmos feitas por ele próprio, o Saltério Gálico e o
Saltério Hebraico.

16
São Dâmaso afirmava com ene rgia, por palavras
e por atos, o Primado d e São Pedro
e seus sucessores sobre a I g reja universal.

17
Durante sua petmanência em Roma (382-385),
Jerônimo, cuja reputação ci entífica e ascética crescia cada
vez mais, to mou conhecimento de um grupo de nobres
damas romanas que se reuniam no Aventino na residência
de uma delas, a viúva Marcel a. A Marcela e a sua mãe
Albina, a Paula e a suas duas filhas Eustóquia e Blesila,
Jerônimo mjnistrou cursos sobre a Escritura santa, e enviou
cattas de espiritualidade.
Com elas, que o compreendiam, Jerônimo se consolava
dos ataques que lhe havi am suscitado as pesquisas que hav i
a feito em matéria bíblica e os seus conselhos de ascetismo.
Ta i s ataq ues redobrara m após o fal ecim ento de
São Dâmaso, ao q ual havi a suced ido, em dezembro de 384, o
Papa São Siríci o. Nem mesmo a calú nia poupou o grat1de
monge, pat·a o qual Roma se tornava insupottável.
Vin te a n os a n tes, seu a mi go R ufino hav i a
deixado a Cidade Eterna e fora esta bel ecer-se em Jerusa l
ém, se ndo seguido por uma ilustre m atrona, de nome Mel
â ni a. Agora q ue a p roteção de São Dâ maso lhe fa ltava, J
erônim o con cebeu u m projeto aná l ogo ao de Rufino, e
em agosto ele
385 embarcou em Ósti a, com seu irm ão Pa ulini a no, para
o
Ori ente.
Paul a e sua filha Eustóqui a, acompanhadas de a l
gumas jovens destin adas a constituir o núcleo de um
mosteiro, par tira m por su a vez pouco tempo depois, e
reunira m -se a Jerônimo em A ntioqui a.
Toda a cat·avana se d i ri giu a Jerusal ém e depoi s
percor
reu a Palestina, v isi tou os mosteiros do Egito, passou al gu
m tem po em A l exandria, para ou vir as li ções de Dícli
mo, e fixou-se afinal em Bel ém , no fi na l ele 386.

18
A F. J)J T I O V ETl! RI S A
C NOV I TDSTAM TI, Q.VORVM
:::tt : ·=z. ;:':j u m.
lctru.l\aJ l M.•nhm,al""'m•JG. amUC'Iltlrnnantn

kl·'='
Nt"'"
"'"'r ;:t•
p;w"""' cLRt·
m.tJahth
cd'"' -'Rauna.

Edição da Vulgata Latina, do século XV I.

19
Jerônimo tinha afinal encontrado, imaginava el e, seu
pmto de paz e de calma.

Permanência em Belém (386-420)


Durante trinta e quatro anos, até o final de sua vida,
Jerônimo habitará o mosteiro masculino que Santa Paula
tinha mandado construir não l onge do l oca l em que Je
sus Cristo nascera.
O tempo de Jerônimo será, então, dividido entre a ora
ção, a mo1tificação, o estudo, o trabalho, a direção espiritual e o
ensinamento para suas fi lhas
espirituais estabelecidas num
mosteiro feminino pró ximo.
Com o clero de Jeru salém,
cujo bispo se chama va João,
mantinha bom rela
cionamento. Os contatos
eram freqUentes entre os
mosteiros belemitas de
Jerônimo e de Paula, de um
lado, e os mosteiros de
Rufino e Melânia, em Jeru
salém. "Para mim, pessoal- -
mente -escrevia Jerônimo
numa de suas crutas - a
so lidão é um paraíso".
Foi nessa sol i dão de
Sant o Agostinho Belém que a maior pa1te de
suas obras veio a lume.

20
Desde 387 até sua morte, ele comentou grande parte
dos Livros do Velho e do Novo Testamento, no total 26
ou 27.
Por volta de 389 ele se ap li cou à revisão da versão
latina do Antigo Testamento, a partir das Hexaples de
Orígenes.
Não contente de já ter procurado uma primeira vez, a
pedido do Papa São Dâmaso, melhorar o texto do Saltério
(Saltério Romano) tornando-o mais conforme com a versão
grega dos Setenta, utilizou os trabalhos de Orígenes para
retocar sua primeira revisão, e produziu o que foi chamado
Salt ério Gálico (porque esta segunda versão foi difundida
sobret udo nas Gálias).
Preparou, ao mesmo tempo, a correção do Livro de Jó,
de Paralipômenos, dos Livros de Salomão (Provérbios,
Eclesiastes, Câ nticos) e de um ce1to número de outros Li
vros dos quais veio a perder-se a revisão.
Esse trabalho, entretanto, não satisfez o exigente espí
rito científico de Jerônimo. Recomeçou os estudos do
hebraico sob a direção de um judeu e empreendeu uma nova
tradução do Antigo Testamento, desta vez a pmtir do texto
original hebraico.
Por volta de 390 iniciou, ao que parece, com os quatro
Livros dos Reis, e prosseguiu essa obra até 404 ou 405.
Essa nova tradução não recebeu por toda a pmte acolhi
da favorável. Modificações introduzidas por Jerônimo em
alguns versículos da Bíblia ensejm·am que Santo Agostinho,
mais afeito à tradução a pmtir dos Setenta, enviasse algumas
cmtas ao monge de Belém; seguiu-se uma troca de missivas

21
bastante vivas, entre os dois Doutores, a qual foi concluída,
aliás, com expressões de amizade e estima recíprocas.

Combatendo. os erros de Orígenes


Mas quando Jerônimo imaginou que havia encontrado,
em Belém, um repouso perfeito, estava muito enganado.
Sete anos após sua instalação petto da gr uta em que nascera
o Salvador, desde os primeiros meses de 393, a luta recome
çava para ele: o motivo foram as doutrinas errôneas de
Orígenes sobre a Sa ntíssima Trindade, a En carnação do
Verbo, a Ressurreição e o Juízo Final.
Em princípios de 393, um monge, ele nome Atarbius,
apresentou-se nos mosteiros ele Jerônimo e ele Rufino,
intimando-os a rejeitarem o ori gen i smo. Jerônimo ime
diatamente assinou um documento em que reprovava
as opiniões erradas ele Orígenes, mas Rufino preferiu
guardar o silêncio.·
Tudo parecia ca lmo quando, pela altura da Páscoa da
quele ano, Santo Epifânio, Bispo de Salamina, que tinha
outrora vivido na Palestina, foi a Jerusalém e visitou o Bis
po João.
Santo Epifânio era ardoroso anti-origenista. Ele re
preendeu, e em seguida condenou o Bispo João, devido à
adesão deste às doutrinas de Orígenes. Incidentes públi
cos eclocliram na Capela do Santo Sepulcro. João perma
neceu intransige nte em suas posições; Santo Epifânio re
tirou -se então para o mosteiro de Belém, junto a Jerônimo,
que rompeu com João, enquanto este era encorajado, na
sua resistência, por Rufino.

22
São J erônimo no deserto

23
A discórdia rebentou entre os dois antigos amigos
Jerônimo e Rufino. A ruptura entre Epifânio e João agra
vou-se pelo fato da ordenação de Pauliniano, irmão de
Jerônimo, pelo Bispo de Salamina, em princípios de 394,
sem nenhuma permissão do B ispo de Jerusalém.
João chegou a pensar em expul sar Jerônimo e seus
monges, mas o relato desses acontecimentos chegou a
Teófilo, Patriarca de Alexandria, que enviou uma ca1ta cir
cu l ar pacificadora. Chegou-se afinal a uma reconciliação,
e numa manhã de 397 Jerônimo e Ruti no sol enemente se
de ram as mãos, na igreja da Ressurreição.
Infel i zmente, não era senão uma trégua. Entrementes,
Rufino foi a Roma levando consigo uma tradução do li
vro Os princípios, de Orígenes. Foi assim que a disputa
origenista chegou a Roma. Em sua tradução, porém,
Rufino havia suprimido as passagens de Orígenes con
trárias à fé cristã, declarando-as "inte1poladas por mãos
estranhas ao autor".
Como Rufino citava, no prefácio da obra, a autorida
de de Jerônimo, este, advertido por amigos, enviou a
Roma uma tradução completa do livro de Orígenes e,
fazendo alusão às referências de Rufino ao fato de, no
passado, ele ter el ogiado Orígenes, esclareceu: "Louvei
a exegese de Orígenes, não sua doutrina; louvei sua in
teligência, não sua fé; louvei -o enquanto filósofo, não
enquanto apóstolo".
Sentindo-se ofendido, Rufino respondeu por uma Apo
logia (ano 400), na qual atacava vivamente a Jerônimo. Era
natural que se seguisse uma resposta violenta, o que efetiva-

24
Seio J erônimo partindo d e Antioquia.

25
mente ocorreu: desde o final de 401 e ao longo de 402,
Jerônimo refutou uma a uma todas as acusações que Rufino
lhe fizera e, por sua vez, passou ao ataque.
Rufino não treplicou, mas calou-se, e desde então apli
cou-se a seus ITabalhos literários, enquanto que Jerônimo,
não mais o tendo como adversário direto, continuou a atin
gi-lo com seus sarcasmos, pois tinha certeza de que Rufino
continuava a denegri-lo ocultamente, a si e a seus escritos.

Defesa da Fé contra os erros de Pe/ágio


O erro pelagiano também conturbaria os últimos tem
pos da vida de Jerônimo.
Pelágio tinha vivido em Jerusalém e havia entrado em
relações com os monges de Belém. Inicialmente por alu
sões em seus comentários, depois por tratados (Carta a
Ctésiphon, Dialogo contra os Pelagianos), Jerônimo ata
cou as doutrinas perversas que exaltavam as forças naturais
em detrimento da graça e negavam o pecado original.
Os pelagianos vingaram-se perseguindo o mosteiro
de Belém. Jerônimo só escapou a s ua fúria refugiando-se
numa torre que os adversários não tinham conseguido
incendiar.
Esquecendo suas provações pessoais, São Jerônimo teve
nessa altura a força de alma para felicitar Santo Agostinho
pelo brilhante combate que este fazia ao pelagianismo.

Fim de uma vida santa


Mas o velho lutador estava chegando ao limite de suas
forças. A mmte de Santa Paula, no ano de 404, o afetara

26
M orte de São J erônimo

27
profundamente. A doença abateu-se sobre el e. O saq ue de
Roma por Alarico, em 41 O, causou a morte de vários de
seus mais caros amigos.
Em princípios de 419, outra prova, a inda mais dura, o
atingiu : Sa nta Eustóq uia, que havia substituído sua m ãe
na direção da comunidade feminina de Belém, também ador
meceu no Senhor.
A 30 de sete mbro do ano segu inte, Deus chamou a Si a
al ma de seu fiel servidor São Jerônimo.

Sua obra
A obra de São Jerônimo é considerável. Em quase to
dos os domínios da ciência sagrada ele exerceu seu trabalho
e imprimiu a marca de seu talento. Mas o título de glória
m aior e mais imperecível de São Jerônimo é, sem dúvida, o
que adquiriu com seus trabalhos sobre a Escritura Sagrada.

I ) Obra exegéti ca -Essa obra exegética se divide em


duas grandes seções: a primeira é constituída pela revisão
da anti ga versão l atina e pela nova trad ução do texto hebra i
co; a segunda compreende seus comentários bíblicos.
Foi estimul ado pel as nobres e santas compan heiras do
mosteiro feminino que Jerônimo procurou ilustrar o enten
dimento dos textos sagrados por uma numerosa série de
comentários.
Fica patente que a grande erudição do Doutor de Belém
lhe servi u maravilhosamente nesses comentá ri os; pode-se
afirmar que ele leu todas as obras patrísticas conhecidas de
seu tempo, e soube utilizá-l as em seus comentári os.

28
Sem embargo do sonho do deserto de Chalcis, São
Jerônimo não esqueceu os recursos literários que lhe facul
tava sua antiga familiaridade com os grandes autores pa
gãos, tanto pelas citações felizes que sabia, no momento
adequado, fazer de suas obras, como pela frase elegante que
havia aprendido a tornear com eles.
Ao lado dos grandes traba lhos escriturísticos, há que
mencionar também os pequenos tratados em que identifica
e expl i ca os nomes das localidades mencionadas no hebreu,
e os nomes próprios do Antigo e do Novo Testamento, e nos
quais se aplica a elucidar as passagens mais difíceis e im
pottantes do Gênesis.

2) Obra polêmica -São Jerônimo foi igualmente um


dos polemistas mais vigorosos da História da Igreja. Algu
mas de suas principais polêmicas -contra o origenismo e
o pelagianismo -já foram referidas acima, na recordação
da sua vida santa.

3) Obra histórica - Durante sua permanência em


Constantinopla, São Jerônimo traduziu a Crônica de
Eusébio, que vai das origens até o ano de 325, e conti
mtou-a até 378.
Escreveu também um primeiro ensaio de história li
terária, o Varões ilustres, composto em 392. Essa histó
ria, em 135 capítulos, dos escritores católicos, desde São
Pedro até ele próprio, permanece ainda hoje uma precio
sa fonte de informação.
Jerônimo deixou-nos ainda três pequenas biografias, a

30
Vida do Monge São Paulo (377), a Vida de São Marcos (386-
387) e a Vida de Santo Hilarião, fundador do monaquismo
palestino (391 ).

4) Obra epistolográfica -A correspondência de São


Jerônimo constitui uma coletânea de aproximadamente 125
cartas. São por vezes verdadei ros pequenos tratados, nos
quais o autor el aborava cuidadosamente o fundo e a forma.
Gerações e gerações de fiéis consideraram as cartas de
Jerônimo, ajusto títu lo, como uma das melhores produções
do grande doutor bíblico.

As obras de São Jerônimo estão na Patrística Latina,


do Padre Migne, volumes XXll a XXX. O Padre Bareille
fez uma tradução dessas obras para o francês, publicando
as em Paris, em 18 vol umes, de 1877 a 1885.

31

Você também pode gostar