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REVISTA DR.

PLINIO 127, Outubro 2008


o santo Do mês
4 de Outubro

São Francisco
de Assis
e o enlevo pelas
coisas divinas
Personalidade admirável que marcou não apenas o seu tempo
mas os séculos sucessivos, São Francisco de Assis tanto se
identificou com o Divino Mestre que se Lhe tornou semelhante
até mesmo no seu semblante físico. Para Dr. Plinio, o Poverello
foi uma imagem viva do enlevo pelas coisas divinas
exercitado ao último ponto.

N as veredas de um mundo que caminhava de


modo torrencial atrás das riquezas, São Fran-
cisco de Assis foi o trovador que entoou o hino
do desapego e da pobreza, da doação levada ao mais al-
vinas, seu enlevo que chegava ao êxtase, diante das ma-
ravilhas criadas por Deus e diante da própria perfeição
do Criador.
Tenho para mim que ponderável parcela da felicida-
to esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe en- de que nos é dado ter nesta Terra — vale de lágrimas —
tregar. Ele foi o santo da caridade e da bondade; o santo consiste em nos enlevarmos com aquilo que merece nos-
que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de rece- so encanto, amor e admiração, e em fazermos a doação
ber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igual- desses sentimentos ao objeto de nosso enlevo. Bem en-
mente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, tendido, essa admiração desinteressada e fervorosa deve
toda voltada para o serviço da Igreja. Por tudo isso, te- se dirigir, acima e antes de tudo, ao que representa para
rá sido ele, a meu ver, a personalidade mais contagiante nós uma expressão de Deus Nosso Senhor. E, portanto,
que talvez tenha havido na Cristandade. tal enlevo será, em última análise, a manifestação de nos-
so amor ao Altíssimo.
A característica de uma alma enlevada Nesse sentido, é ilustrativo o fato narrado por um litera-
to: certa vez, levou um amigo para ver, de longe, uma aldeia
Entre tantos predicados dignos de consideração, por ele já conhecida. Chegaram ao topo de uma colina e, lá
creio ser oportuno ressaltar esse aspecto da alma de do alto, após divisarem o belo cenário de montanhas e cam-
São Francisco: o seu amor arrebatado pelas coisas di- pos que envolviam a aldeia, ele começou a indicar: “Aque-

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la é a casa de fulano, aquela outra de beltrano, a outra de
sicrano”. O amigo, surpreso, perguntou-lhe:
— Bem, e a sua, qual é?
— Ah, eu não tenho casa. Não tenho nada. Só o pa-
norama…
Compreende-se: quem tem o panorama, tem mais que
o casario, porque tem o enlevo e a capacidade de admi-
rar aquela superior beleza como um reflexo de Deus. É o
gesto desinteressado de contemplar o cenário pelo cená-
rio, sem vantagem própria.

A necessidade de doar-se
Insisto nessa idéia do amor desinteressado a algo que
se ama por se tratar de uma manifestação da grandeza
de Deus. E, portanto, uma disposição de alma que deve-
mos cultivar para irrigar e alimentar nossa vida espiritu-
al, para aumentarmos nossa capacidade de enlevo pelas
coisas divinas.
Como saber se estamos trilhando esse caminho?
A meu ver, o sintoma de que fomos tocados pelo raio
divino do enlevo é precisamente o fato de sentirmos uma
necessidade de doar o nosso amor, abnegadamente, ao
objeto amado enquanto tal e nada mais. No Glória que
R. C. Branco

se reza na Missa, essa atitude de alma está muito bem ex-


pressa, quando se diz: Nós vos damos graças, Senhor, por
vossa imensa glória. Ou seja, amo tanto a Deus porque
Ele é Deus, e eu O agradeço por ser Deus como se
fosse um inestimável favor feito a mim, quando a gló-
ria e o benefício é exclusivamente para Ele. Eu, ho-
mem, não participo dessa magnitude, a não ser como
um adorador pequenino no fundo do santuário, com
os olhos fitos no Tabernáculo.
Há, portanto, uma certa forma de enlevo pela qual
a pessoa quer dar-se inteiramente e não conservar
nada para si. E faz disso o ideal de sua vida, de tal ma-
neira que coloca sua felicidade no ter oferecido tudo
a Deus: “Senhor, eu vos trago tudo, não conservo nada
para mim, dou-me por completo.”

Alma de fervor contagiante,


São Francisco de Assis
entoou o hino do desapego, do
amor a Deus e do desejo de
se entregar a Ele por inteiro
São Francisco de Assis - Museu da
Catedral de Pisa, Itália

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O Santo do mês

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Fotos: S. Hollmann / V. Toniolo
São Francisco tanto
se identificou com
o Redentor Divino, que
se Lhe tornou parecido até
no semblante físico
Na página 28: São Francisco de Assis - Museu
de Sevilha, Espanha; à direita: Exéquias de
São Francisco - Pinacoteca Vaticana, Roma

A perfeita alegria de São


Francisco, expressão de enlevo
E, oh! coisa inexplicável, oh! paradoxo: essa é a
felicidade mais autêntica que se possa ter. Prova-
o o exemplo dos santos, e o exemplo do próprio
São Francisco de Assis. Ele o exprimiu de mo-
do perfeito, quando, durante o trajeto entre uma
casa e outra de sua ordem, em tempo de rigoro-
so inverno, seu acompanhante Frei Leão lhe per-
guntou no que consistia a perfeita alegria, e São
Francisco respondeu: existir materialmente, mas que o enlevo dele pela pessoa
— Imagine que, chegando ao convento no meio da de São Francisco chegou a um tal extremo que, por as-
noite, sob neve intensa, com frio e fome, ao batermos à sim dizer, ele se transformou num outro São Francisco
porta, o irmão porteiro nos atenda irritado, nos admoes- de Assis, assimilou e se identificou com a personalidade
te com desaforos e não nos deixe entrar. Então permane- de seu fundador. Do mesmo modo como o próprio São
ceremos ao relento, sofrendo os rigores do frio e o agui- Francisco podia dizer: “Não sou eu mais que vivo, mas é
lhão da fome, aceitando tudo com serenidade e resigna- Cristo que vive em mim”. Assim aquele religioso excla-
ção por amor a Deus: nisto estaria a perfeita alegria. maria: “É Francisco que vive em mim e, por meio deste,
Penso que não se poderia compreender essa afirmação é Cristo que vive em mim. Eu morri, dando-me por in-
de São Francisco, a não ser em função do enlevo. Ou se- teiro ao ideal franciscano, transformando-me num filho
ja, é um tal amor e uma tal veneração pela ordem francis- completo de São Francisco.”
cana e tudo quanto ela representa, que um membro dela, Aliás, creio que uma forma de holocausto das mais
após receber toda espécie de maus tratos e injúrias à por- sensíveis que houve na História — de propósito não di-
ta de um dos seus conventos, ainda se deixa tomar de en- go que tenha sido a maior, nem a comparo com o exem-
levo, como se exclamasse: “Ó moradia do meu Beato Pai plo de Nossa Senhora, que está acima de todos os concei-
Francisco! Ó muros sagrados! Ó paredes! Ó conteúdo sa- tos — foi a realizada por São Francisco de Assis. De fa-
crossanto! Ó espírito que habita nisto! Com que alegria to, o doce Poverello conformou-se tanto à figura de Nos-
eu, não podendo entrar, fico contente em estar de fora, so Senhor Jesus Cristo que chegou a se tornar fisicamen-
imaginando o que está dentro!”. Isso é o enlevo perfeito. te parecido com o Divino Mestre, inclusive recebendo os
estigmas da Paixão.
Imagem viva do enlevo Qual o significado dessa semelhança?
exercitado ao último ponto Significa uma tal união que, por todo o jogo das ra-
zões naturais, e mais ainda sobrenaturais, ele se transfor-
E por essa atitude de alma se compreende também, mou num outro Cristo: era a imagem viva do enlevo pra-
que, por exemplo, um franciscano possa dizer: “Não sou ticado até o último ponto.  v
eu mais quem vive, mas é meu pai São Francisco que vi-
ve em mim”. Claro está, não significa que ele deixou de (Extraído de conferências em 10/6/1967 e 10/3/1970)

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