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São Francisco “pauper et humilis caelum dives ingreditur”[1].

Com base nessa afirmação


presente no Devocionário Franciscano, vale a indagação: por que ele, pobre e humilde, entra
rico no céu? Alguém que, de repente, sendo rico quis ser pobre; de cavaleiro passa a
mendicante; de roupas finas e macias, ao nu e depois aos farrapos; do ter tudo ao ter nada, do
ser nada ao ser tudo; dos perfumes odoríficos, aos odores repugnantes da morfeia; dos gritos
nas cavalarias e festins, à oração e meditação silenciosas; de uma vida agitada à
contemplação do belo, das mansões e casebres, às taperas de palhoças; das majestosas
cavalgadas ao peregrinar pelos vales; de uma vida de amores a uma vida para o Amor.
Queremos, embebidos neste amor, refletir sobre o processo de conversão de São Francisco,
do seu amor ao Altíssimo, Onipotente e Bom Senhor.

 Ao falar sobre a conversão de Francisco, pode-se situá-la entre os anos 1204 a 1208, quando
ele tinha cerca de 25 anos. Podemos imaginar um jovem já formado, de acordo com os critérios
de maturidade da época. Francisco[2] tinha condições de se tornar um bom comerciante e
nutrir o desejo de se tornar cavaleiro medieval. Conta Celano: “a mãe de Francisco certamente
ouvia comentários a respeito de Francisco e sua prodigalidade, e respondia: ‘Que pensais de
meu filho? Ainda terá a graça de ser um santo de Deus!’” Até os vinte e cinco anos, Francisco
viveu ao ritmo dos imperativos normais e coerentes, até que “o Senhor fixa nele seu olhar” [3]. A
conversão de Francisco não se dá devido a uma crise cultural, social ou afetiva, mas brota do
confrontar-se com uma situação existencial que o impulsiona a uma forma de vida em que os
valores possuem critérios incomparáveis. O converter-se de Francisco não partiu de um
desengano, de um desencantamento ou de um pessimismo, mas sim de um processo gradual
e progressivo. É então que começou um reajustar de toda a sua vida pessoal, emocional,
valorativa e social, por um valor que julgou “único desejável”. O Cavaleiro da Fé começa a
purificar o coração e orientar o comportamento. Francisco passa a ter no seu interior a
sensação de ser olhado pelo Senhor. Esse encontro com Deus não se dá pela solidão radical,
mas em contato com a realidade e com os elementos que fazem parte dela: natureza, tensões,
conflitos, amor, alegria, temores; a comoção que sentiu no seu interior explode em seu exterior.

 Francisco sente a ação do Criador em sua vida, e o escolhe como valor Absoluto. Viu em
Jesus, o Crucificado, a sua almejada “nova vida”, permeada pelo amor daquEle que ele irá
cantar não ser amado.

 Tendo em conta, então que na vida de Francisco a conversão se dá paulatinamente, sem a


intenção de enumerar qual fato se deu por primeiro, vale elencar: em 1202, Francisco é
resgatado da prisão devido à sua doença; em 1204, visão e mensagem de Espoleto; em
outono de 1205, mensagem do Crucifixo; primavera de 1206, ele cuida de leprosos[4]. Esses
momentos da vida de conversão de Francisco expressam a magna história de amor que Deus
se propõe a fazer com o homem. Deus escolhe Francisco e o quer tornar “servo do Senhor”,
como em Espoleto: “Francisco a quem deves seguir, o servo ou o Senhor?” E Francisco
respondeu: “ao Senhor”; e a voz voltou a perguntar: “Por que procuras o servo, no lugar do
Senhor?” E como alguém que não entende a pergunta, o jovem de Assis responde
perguntando: “Senhor, que queres que eu faça?”[5] Francisco começa a buscar o querer do
Senhor. Acontece uma transformação radical em seu coração, passa enxergar Cristo nos
pobres… Poder-se-ia até imaginar um Francisco que tinha os olhos voltados às vitórias na
guerra, cavalarias, festas… Agora procura o Senhor. É ainda Celano[6] que nos conta:
“estando ao redor de São Damião, ouve uma voz que vinha da igreja abandonada, em ruínas.
Entrou para rezar e ajoelhou-se; e fitando o crucificado, viu seus lábios mexerem e chamando-
o: ‘Francisco, Francisco, vai e repara a minha Igreja que, como vês, está em ruínas’. Movido
por tamanha compaixão pelo Crucificado iniciou a restauração da Igrejinha de São Damião”.
Não imaginava Francisco, que a restauração não era no templo de pedras que tendia a cair. Na
verdade, era o templo espiritual que sofria declínio ameaçador; tinha-se necessidade de um
modo novo de viver a fé; necessitava-se de uma mudança, de um olhar aos pobres, aos
leprosos, que inicialmente para Francisco eram insuportáveis. Francisco já havia caminhado
rumo ao Senhor, e o encontrava a cada dia mais próximo. Já havia abandonado o dinheiro, a
glória mundana, a admiração dos homens. E ainda precisaria chegar até o leproso. Mas, por
fim, Francisco consegue dar um passo decisivo ao encontro do leproso: “ficou muito aborrecido
e enojado, mas, para não quebrar o propósito que fizera apeou e foi beijá-lo…”. Francisco de
fato experienciou que há um valor Absoluto, pelo qual se pode e é valido doar a vida. Assim ele
foi tocado até o mais profundo de seu coração e a partir desse momento passou a querer
unicamente o Senhor. Em Francisco pode-se perceber que há um radical abandono, uma
decisão e um romper sem considerações. Ele deixa pais, posses, possibilidades humanas e o
futuro, e se coloca na dimensão-surpresa da fé e da esperança. O “Pobre de Assis”, pôs-se a
caminho, assemelhou-se a um itinerante, mas sossegado, em paz, seguro. A sua postura não
foi de um fugitivo que está com medo, e muito menos de um aventureiro que espera a surpresa
incerta do amanhã, sem se preocupar donde vem e para onde vai. Francisco tinha a meta, o
objetivo a atingir, mas apenas se preocupava com o hoje, pois, sabia que se vivesse com
intensidade o agora, estaria sempre e cada vez mais próxima a meta.

 O “Irmão de Assis” é um constante convite de retorno a Deus; ele se tornou, através da vida de
pobreza, dom ao próximo em Cristo. Francisco ganhou forças nessa sua vivência radical na
doação total de sua vida a Deus. A conversão de Francisco de Assis é a abertura a uma
realidade nova, que surge da adesão à pessoa de Jesus Cristo, do aceitar os desafios que são
necessários para permanecer fiel ao Evangelho.

1 TIMÓTEO, 1

"12.Dou graças àquele que me deu forças, Jesus Cristo, nosso Senhor,
porque me julgou digno de confiança e me chamou ao ministério,"

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