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SUBIDA AO MONTE ALVERNE

DOM FREI HENRIQUE GOLLAND TRINDADE O. F. M.


BISPO DE BONFIM

SUBIDA AO
MONTE ALVERNE
PEQUENO TRATADO
DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

1941
EDITORA VOZES LTDA.
PETRÓPOLIS - E. DO RIO
“Talvez alguém dirá que, para res­
taurar a sociedade cristã de hoje,
precisaríamos de um outro Francisco.
Entretanto, fazei com que os homens,
animados de novo zelo, tomem aque­
le antigo Francisco por mestre de
santidade e piedade; fazei com que
todos imitem e reproduzam em si os
exemplos que nos deixou quem era “o
espelho de virtude, o caminho de re­
tidão, a regra de costumes”; não terá
isto força e eficácia suficientes para
sanar e exterminar a corrupção dos
nossos tempos?” — Pio XI.
PREFACIO

Os numerosos amigos do revmo. pe. frei


Henrique G. Trindade, espalhados por todo
o Brasil, e, sobretudo, os de Petrópolis,
que tiveram com ele mais demorado con­
tacto e mais lhe devem, acolhem sempre
com particular agrado os artigos que esse
dinâmico franciscano publica nas “Vozes”
ou no “Eco Seráfico” assim como os li­
vros que, de tempos a tempos, edita e nos
quais como que ouvem o eco da sua voz
. eloquente e sentem um pouco da quentura
m

c da claridade daquele privilegiado espí­


rito que tão bem sabe comunicar-se às al­
mas para as revigorar, as vitalizar, as ele­
var e conduzir irresistivelmente a Deus.
Do presente livro, “Subida ao Monte
. Alverne”, que acaba de sair da sua pena e
que, para honra minha, seu generoso e
fraternal autor me incumbiu de prefaciar,
homenageando assim, na minha pessoa, a
Ordem Terceira Franciscana à qual, em-

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bora mal, pertenço, — não quero dizer
muito. O livro é curto, é interessante, è bem
escrito: pode e há de ser lido com facili­
dade. O leitor ajuizará dele por si mesmo,
sem precisar que eu lhe sugira uma opinião. ^
t

Uma só observação desejaria aqui con­


signar. E' que este livro é muito mais pro­
fundo e valioso do que deixa supôr a deli- .
ciosa simplicidade do seu estilo. Apesar de
redigido em tom de conversa familiar e
despretensiosa, sem termos técnicos, sem
citações eruditas, adornado, apenas, dis­
cretamente, de comparações e metáforas
que dão cor e brilho à sua linguagem sem
lhe em panar a limpidez, a doutrina que ex­
põe é grave e séria, — é a doutrina clássica
da espiritualidade católica, baseada na ex­
periência dos santos, aferida no decurso
dos séculos, aprovada pelas autoridades
que governam a Igreja, — a mesma dou­
trina que Cristo ensinou aos seus discípulos
e cujas linhas mestras se encontram nos
Evangelhos. ..
Dirige-se, pois, a todos os cristãos este
livro e a todos se torna acessível pela sin­
geleza do estilo e pela prudente modera-

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ção dos ensinamentos; mas não desviriliza
nem edulcora para agradar a nenhuma
alma fraca a salutar lição que transmite;
o que a todos aconselha — para instruir a
uns, para robustecer a outros, para santi­
ficar a todos, — é a prática insistente e
paciente dos exercícios da ascese cristã: —
a mortificação dos sentidos e do espirito,
a caridade para com o próximo, o recurso
frequente aos sacramentos, a oração, o sa­
crifício, o amor total a Deus. ..
Desfarte, a despeito da sua aparente in­
genuidade, contém este livro muitos pen­
samentos fortes e elevados, expressos vi­
vamente de modo agudo ou engenhoso,
pensamentos que fazem refletir, pensamen­
tos que iluminam ou que revigoram, pen- -
sarnentos que elevam a alma às regiões do
sobrenatural.
Quasi ao acaso, colho nos seus capítu­
los alguns desses preciosos e lúcidos con­
ceitos . .. Sobre a mortificação, por exeiq-
plo, leio no capítulo X: — “Almas mor-
tificadas não são almas mortas. Mortificar
é subjugar para vencer, é renunciar para
possuir, é negar para afirmar, é podar para

9 •
brotar, é percutir para gerar luz... A mor­
tificação é uma das mais belas provas da
vitalidade de uma alma. Almas mortificadas
são almas que, realmente, vivem e produ­
zem e espalham vida ao redor de si”. —
No capítulo VIU: — “O trabalho sério,
perseverante, diligente, o trabalho alegre
e conciencioso, mantém uma atmosfera de
elevação em redor de nós. Ele espelha paz
e seriedade de vida. Ordena e disciplina
tudo”. — Sobre o espírito de sacrifício,
está escrito no capitulo XXIV: — “Amar
a cruz e nela inebriar-se não é apenas en­
tregar-se às austeridades da penitência e
mortificação; é criar em nós, com a graça
do alto, uma mentalidade nova, bem con­
trária ao espírito do mundo, para o qual
devemos estar mortos”. — E esta senten­
ça, tão cúria e simples, quão verdadeira e
profunda: — “Não é no sofrimento que
está o sinal da santidade. E sim, no modo
de sofrer”. — No capitulo XIII noto isto,
de passagem: — “O espírito de Deus, por
sua natureza, procura os cimos; o espírito
do mundo, o que é baixo”. — Da oração
mental diz, no capitulo XVII: — “Se a

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vida é reflexo da oração, a oração é tam­
bém reflexo da vida”. E, adiante: — “A
oração é floração e frutificação da vida de
fé. Sem esta, é inútil esperar por aquela”.
— Sobre a caridade fraterna, no capítulo
XX: — “Fechemos os olhos para rezar.
Mas abramo-los bem para encontrar o nos­
so irmão... e, encontrando-o, saibamos
amá-lo”. — No capítulo XV, esta definição
católica da vida: — “A verdadeira vida é
ascensão contínua, é subida sempre, tanto
na terra como no céu; daí a felicidade dos
santos que nunca envelhece”. — No capí­
tulo III: — “Não aspiremos a gozar aqui,
na terra a libertação pacífica e beatífica
dos habitantes do céu, não; teremos sem­
pre tentações, sempre lutas, mas a nossa
vontade permanecendo firme em Deus, não
haverá fraquezas nem vacilações da nossa
parte e sim vitórias contínuas e completas,
que só servirão para consolidar, cada vez
mais, o nosso perfeito rompimento com
tudo o que nos impede de subir”. — E,
para não transcrever aqui todo o livro, ci­
temos só mais esta frase que esclarece ao
mesmo tempo a significação do título e o

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teor da obra: — “Subir ao Monte Alver-
ne... é preparar a alma para o ato mais
sublime que ela pode produzir: o amor de
Deus” (cap. XXI).
Vê-se por estas ligeiras transcrições quan­
to este livro é, além de simples e atraente,
elevado e util. Vamos, pois, sem maior de­
mora, lê-lo e devidamente apreciá-lo. Para
isto, porém, leiamo-lo como o seu próprio
autor avisadamente nos aconselha: —
“com atenção e humildade, página por pá­
gina, capítulo por capítulo...
“Não se tenha pressa de acabar.
E pode ser tão forte e intensa a influên­
cia desta leitura boa sobre a nossa vida,
que nós consigamos, sem reparar, hábitos
virtuosos e maneiras de pensar e agir que,
com relativa facilidade, nos elevem quasí
até ao cume da montanha franciscana da
nossa santificação” (cap. VIII).
£' o que, de coração, desejo aconteça a
todos os leitores deste proveitosíssimo li­
vro, em particular aos da Ordem Terceira,
para os quais inicialmente foi escrito.
Mesquita Pimentel
Petrópolis, 29-1-1941

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I

AO SOPÉ DO MONTE
precisamos subir!... Há quantos anos já,
andamos pela planície, rodeando o monte
santo de um lado para outro, sem coragem
de dar um passo para cima?! Os nossos
pecados, as nossas imperfeições, os nossos
apegos e más inclinações; a nossa falta de
fé viva, a nossa cegueira, o nosso esqueci­
mento da Providência divina, a nossa lo­
quacidade, a nossa dissipação, o nosso
amor à vida facil e regalada, a nossa ti-
bieza, o nosso orgulho, o nosso amor pró­
prio... Eis por que não subimos; eis por
que não temos coragem de subir. Eis por
que nos parece que não subimos nunca.
E assim passaram meses, assim passou um .
ano, assim passaram 2, 3, 4, 10, 20, quem
sabe quantos anos já?...
Estamos contentes com este estado de
coisas? A planície, pela facilidade que ofe­
rece ao viajante, é perigosa. Caminha-se,

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caminha-se, mas não se sobe. E todas as
almas de Deus subiram. Subiram os santos,
subiu o seráfico pai s. Francisco, subiu
Maria, a Mãe das Dores e das Alegrias,
subiu o próprio Filho de Deus, Jesus Cris­
to, nosso Senhor, que veio a esta terra, só
para nos salvar e ensinar.
Precisamos subir também.
Não nos cingimos os rins, com o cordão
de s. Francisco, para brincar ou para dor­
mir indolentemente. Quem se cinge, é para
correr, é para subir.
Tornamo-nos franciscanos, voluntaria­
mente. Quem se cinge, é para correr, é
para subir...
Quem não sobe, mas se deleita na planu-
ra das facilidades, mais cedo ou mais tar­
de, dansará ao derredor do bezerro de
ouro e, vergonhosamente, o adorará. Moi­
sés subiu. Viu o Senhor, falou com ele, e
voltou com a fronte iluminada, para ilumi­
nar o povo, que sentia saudades das cebo­
las mal cheirosas do Egito e brincava com
o esterco do demônio.
Precisamos subir. Que significa uma vo­
cação que não nos eleva? Se fomos cha-

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mados por Deus, devemos aproximar-nos
dele... E quem se aproxima de Deus sobe,
porque Deus habita nas alturas. Ou no pre­
sépio, ou no Tabor, ou no Calvário, ou no
altar, ou na alma do santo, ou no céu, é
sempre nas alturas que,ele mora.
Para isso exclamava o profeta, e, com
ele, todas as almas grandes: “Levantei os
meus olhos aos montes, donde me vem o
auxílio do Senhor” (SI 120). Por isso os
sacerdotes e todas as almas revestidas de
Cristo, côncias de sua missão sacerdotal,
olhando para as alturas do altar, dizem
• sempre de novo: “Subirei ao altar de meu
i Senhor... iluminado pela luz e pela sua
verdade chegarei ao seu monte santo...”
(SI 42 posto na liturgia da missa).
Precisamos subir.
E subamos enquanto temos força, que a.
fraqueza virá e não poderemos dar um
passo.
Subamos enquanto temos luz, que virão
as trevas e nos envolverão completamente.
Subamos enquanto é tempo, que o dia
de amanhã não nos pertence, o futuro é
todo incerto. Subamos.

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Olhemos para as alturas do Alverne: é
a mansão da paz, do amor, da felicidade,
quanto possível neste mundo. Lá não se
■conhece esta vida de intriguinhas, de inve­
jas, de má vontade; estas perseguiçõezi-
nhas surdas, estas deslealdades que ferem; ,
lá não se perde o tempo precioso com vai-
■dades e ocupações inúteis; lá não sobe o
que é mesquinho, interesseiro, egoista;*Iá
não se encontra o que separa e desune.
E’ a região da verdade e da caridade. Re-
solvamo-nos a subir. Encontraremos a ge­
nerosidade numa união perfeita, à custa
de sacrifícios alegres e de renúncias felizes.
A alma franciscana que subiu ò monte san­
to canta, ininterruptamente, o cântico da
verdadeira liberdade dos filhos de Deus. -
O Alverne espiritual é altíssimo. Por isso
• mesmo, o seu nome está sobranceiro
• aos
relâmpagos e aos trovões da vida. A alma
' que subiu se pôs em segurança.
E’ íngreme, quasi a pique, a vereda que
conduz ao cimo. Por ela não sobem os car­
ros modernos do luxo e do bem estar. E’
só a pé, passo a passo, que o franciscano
realiza a sua ascensão. Sangram as plantas

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dos pés, ferein-se as mãos nas rochas bru­
tas. Mas elas são firmes, têm fundamen­
tos seculares, quem nelas se segura, não
há perigo de cair, e de voltar atrás.
Cada metro deve ser conquistado com o
nosso esforço. Dia por dia. Minuto por mi­
nuto. E’ só a perseverança de uma vida
(longa ou breve, pouco importa) que leva
a alma até às alturas sublimes do monte
santo Alverne.

Subida - - 2
II

A VONTADE

|U[as qual será a primeira condição para

Convençamo-nos e gravemos bem em


nosso coração inquieto e vacilante esta res­
posta: a primeira condição, ou, quasi diria,
a única condição, para subir a montanha
franciscana da santidade, é querer. Sim,
querer, querer e, mais uma vez, querer.
Não que possamos dispensar o auxílio
divino, não; sem ele não daremos um passo
para cima. Mas Deus nos assiste sempre,
a sua graça abundante e superabundante
nunca nos faltará. Se ele nos criou e nos
pôs aqui na terra, não foi para rastejarmos
e arrastarmo-nos indolentemente, não. Foi
para que subíssemos sempre mais. Toda
vez que o céu se inclinou para a terra, foi
para que o homem se elevasse até ao céu.
A vida do homem, fiel à sua razão e à sua
fé (razão e fé que são presentes de Deus)

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deve ser uma elevação contínua, uma ascen­
são permanente. Ora, se Deus nos criou
para nos elevar, ele nos ajudará com a sua
graça, que nunca nos faltará.
Além disto, postos no plano sobrenatural,
ele nos deu a vocação franciscana, e voca­
ção franciscana é vocação para subir o
monte Alverne.
Trata-se, pois, da nossa vontade. Eis a
nossa preocupação: querer e querer sem­
pre. Não como o preguiçoso, do qual afirma
a Escritura (Pv 13, 4) que “quer e não
quer”. Por isso Jesus Cristo disse clara-
• mente: “Quem quiser vir após mim...” Só
os que querem e sabem querer é que segu­
ram a cruz e sobem com Cristo ate ao
alto...
“O reino de Deus sofre violência e os
que se esforçam é que o conquistam” (Mt
11, 12). Precisamos querer. A vontade é
capaz de maravilhas.
Não é a inteligência, não é a arte, não é
o gênio que sobe, mas é o santo e o santo
é, principalmente, o homem da vontade.
Saibamos querer.
2* 19
Lembremo-nos da lição sublime e conso-
ladora que s. Boaventura deu ao irmão Gil,
ensinando que não é a ciência que plasma
o santo, e sim a vontade, o amor. E o
irmão inebriado de felicidade, trepado na
cerca do convento, cantou aquele hino sin­
gular à mulherzinha ignorante, que sabe
querer e que sabe amar. Oxalá que nós
queiramos também!
Levantemos os olhos. A solidão do Al-
verne povoou-se, através de 7 séculos, e,
por milagre, conservou-se sempre solitário.
Com s. Francisco, o santo “idiota” de von­
tade férrea e de lógica terrível, subiram
legiões de todas as condições, de todas as'
línguas e de todos os tempos. Isabel de
Hungria, Luiz, rei de França, Antônio de
Pádua, Mateus de Agrigento, santa Clara,
Luiz de Tolosa, Eva Lavallière, Matt Tal-
bot, Verônica Giuliani, Boaventura, s. Leo­
nardo, s. Pascoal... que desordem harmo­
niosa! -
Eles subiram com legiões e legiões de
outros. Subamos também!

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Sejamos sinceros! Ou o Alverne ou a
indolência, a preguiça, a tibieza, quem sabe,
* o pecado até.
Resolvamo-nos...
Não nos cingimos com o cordão de s.
Francisco, para brincar ou para dormir.
Subamos!...
Que nossa Senhora dos Anjos, s. Fran­
cisco e toda a legião seráfica nos alcancem
de Deus uma vontade firme, perseverante...
Não é sem consequências graves para a
humanidade que se burla uma vocação.
Subamos!...
m
ROMPER COM O MAL

r\epois que despertamos a nossa vontade,


^sinceramente desejosos de subir, subir
sempre, custe o que custar, o monte Al-
verne de nossa perfeição franciscana, se­
gue-se, como consequência lógica, a obri­
gação gravíssima, inadiavel, de romper
com o mal.
Romper com o mal, romper com o pe­
cado, que é o único verdadeiro mal no
mundo. Mas romper, a ferro e fogo,' sem
consideração alguma para com o mundo,
com a carne e com o demônio. Então a
alma sente-se leve, sente-se livre, e, neste
estado, mais dificil lhe será permanecer na
planície cômoda da tibieza, do que galgar
a encosta íngreme da santidade seráfica.
Romper com o mal... E’ curta a pala­
vra, mas é longa, dificil, a sua realização.
Quanta luta, quanto sofrimento, quanta

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abnegação, quanto heroísmo nela se es­
condem.
Romper com o mal... E* separar, fugir,
cortar, queimar, mortificar, e, muitas vezes,
quasi morrer.
Pois romper com o mal c ir, corajosa­
mente, contra a natureza, contra o mundo,
contra o demônio. E como custa tudo isto!
Vencer as más inclinações, vencer as pai­
xões, vencer as nossas fraquezas, vencer
as tentações que sempre se mostram sob
um aspeto sedutor, como é dificil!
Mas romper com o mal não é vencer o
mal de qualquer modo, quem sabe até com
certa complacência, ou com- certas conces­
sões. Romper com o mal, isto é, romper
com o pecado, significa vencê-lo tão radi-
calinente que nos sintamos inteiramente li­
vres dele, conforme a petição do Padre
nosso: livrai-nos, Senhor, do mal, ou, li­
bertai-nos do poder do mal, do poder do
pecado.
Não é que aspiremos a gozar aqui na
terra a libertação pacífica e beatífica dos
habitantes do céu, não; teremos sempre
tentações, sempre lutas, mas a nossa von-

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tade permanecendo firme em Deus, não ha­
verá fraquezas nem vacilações * da nossa
parte, e sim vitórias contínuas e completas,
que só servirão para consolidar, cada vez
mais, o nosso perfeito rompimento com tudo
o que nos impede de subir.
Então as tentações parece que só atin­
gem a superfície da alma, não penetram,
não ganham profundidade, e, quando elas
vão, a gente fica na certeza feliz da vitó­
ria que, por graça de Deus, com o nosso
esforço e energia se conseguiu. Isto é rom­
per com o mal. Partilha das almas fortes,
das almas generosas, das almas que sabem
querer. Só estas almas conseguirão subir o
monte Alverne de sua perfeição.

Quando a grande comediante francesa e


depois terceira franciscana, Eva Lavallière,
se converteu inteiramente para nosso Se­
nhor, tinha ainda contratos rendosíssimos
em teatros americanos, — pois ela, ao pé
da letra, rompeu com tudo, sofrendo gran­
des prejuízos materiais, mas dispondo-se
assim a subir, corajosamente, a montanha

24 •
das chagas gloriosas de s. Francisco e de
todos os seus verdadeiros filhos. Além dis­
so, não quis mais abrir correspondência al­
guma que, a princípio, vinha numerosa de
seus admiradores e empresários. Isto é que
se chama romper com o mal. Eis por que
ela subiu.
Matt Talbot era o bêbado contumaz e
conhecido. Mais de dez anos viveu escravo
do vício. Mas um dia rompeu com tudo; .
não somente não beberia mais álcool de
espécie alguma, mas até não entraria em
casa alguma de bebidas. Seus amigos, é
verdade, o forçaram uma v,ez só, e ele en­
trou, mas enquanto todos bebiam bebidas
alcoólicas, ele bebia uma água mineral.
Tempos depois, achando que o fumo era
uma substituição disfarçada do álcool, teve
vergonha, não queria ser escravo de nada
e renunciou ao seu cachimbo para sempre.
E porque rompeu, assim, completamente,
com o mal, nós o vemos hoje lá no Alverne
glorioso, ele, o humilde operário das docas
de Dublin.
Assim o fizeram todos os seguidores sin-.
ceros de s. Francisco, desde o princípio.

25
As primeiras páginas da nossa crônica
mostram, de sobejo, o que o seráfico pa­
triarca exigia de seus discípulos: não que­
ria servos, não queria escravos, queria al­
mas livres, que subissem, com ele, ale­
gremente, rompendo com tudo, o monte
Alverne do seu amor.
Subindo com ele, sim, que, sempre à
‘ frente, dava exemplo e incutia coragem e
despertava entusiasmo na turba que o se­
guia.
E’ admiravel o radicalismo de s. Fran­
cisco: rompeu com tudo, 'fudo. Diante do
bispo, de seu pai, e de uma turma de curio-
1 sos, desnudou-se resolutamente, mostrando
assim, de um modo claro, como rompia
com o mundo e renascia para uma nova
vida; mais tarde, na hora da tentação, abra­
çando-se com as estátuas de neve ou re­
volvendo-se no espinheiro, ensinava como
se rompe com a carne; com o demônio
rompeu, irrevogavelmente, quando excla­
mou, mais com a vida do que com pala­
vras: “Meu Deus e meu tudo”.

26
IV

ROMPIMENTO TRÍPLICE

Cem este rompimento completo, radical, é


^inútil qualquer tentativa de ascensão. A
queda seria desastrada. E, talvez, perdés­
semos, então para sempre, toda a coragem
e ambição de subir.
Prossigamos humildemente. .
a) E’ necessário, em primeiro lugar,
romper com o pecado mortal, e, com tudo o
que a ele conduz. Nós o sabemos: o pe­
cado mortal, como o nome o diz, é morte
da alma, é separação de Deus, nosso prin­
cípio e nosso fim, é o tremendo mistério
da iniquidade. Pecado mortal é a primeira
labareda do fogo eterno. Ele estraga a alma
de tal modo, que só o sacrifício de um
Deus a pode restaurar. Pecado mortal, ain­
da que pareça exagerada a compàração, é a
tragédia mais horrivel de toda a história
humana. Eis por que as suas consequências
são as mais horríveis também. Pecado mor-

27
tal é desolação, trevas, destruição. E’ o
grito mais abominável da criatura humana.
Chame-se apostasia, chame-se injustiça,
chame-se sensualidade, chame-se vingança,
ódio ou qualquer outro gênero de maldade,
chame-se impiedade ou orgulho — verifi­
cando-se as três condições para o pecado
mortal é sempre “a morte mais completa
na vida”.
Rompamos, resolutamente, com toda essa
abominação. Antes a morte, do que o pe­
cado mortal. Não estraguemos mais ainda
ou perturbemos, por nossa culpa, a harmo­
nia das almas, a harmonia do mundo. Rom­
pamos com o pecado, radicalmente, com tal
energia, que cantemos o canto da nossa
libertação. Dado este passo, torna-se pos-
sivel a ascensão ao Alverne de nossa san­
tificação.
Quando Margarida^ de Cortona, a mulher
escandalosa que se tornou uma grande
santa, merecendo o formoso nome de A\a-
dalena seráfica, viu o corpo asqueroso,
quasi podre, de seu amante assassinado,
compreendeu que era a imagem de sua
alma em frangalhos. Como foi facil, então,

28
romper com tanta imundicie. E subiu, su­
biu. ..
A nossa dificuldade para este primeiro
rompimento completo, é que nós não vemos
o pecado em sua verdadeira expressão. Os
santos viam e desmaiavam. Viam e chora­
vam. Viam e se enchiam de zelo, dispos­
tos a derramar o seu sangue. O santo ter­
ceiro franciscano, João Vianney, cura d’Ars,
exclamava: “Meu Deus... quero sofrer
tudo... a vida inteira... cem anos... as
dores mais atrozes... contanto que os pe­
cadores se convertam”.
b) Em segundo lugar, devemos romper com
o pecado venial deliberado. Eles formam
uma legião vergonhosa e perigosa. E como
não matam ou não destróem completamen­
te, têm, infelizmente, entrada franca em
muita alma, em muito templo de Deus. São
as mentiras, as murniurações, as críticas, as
pequenas intrigas, a preguiça, a gula, as
pequenas invejas e ciúmes, os apegos, as
pequenas injustiças, as curiosidades, as im-
paciências, a loquacidade, as vaidades e os­
tentações, os pequenos orgulhos e desobe­
diências...

29
Não se diga que é impossível romper com
tudo isso. O que é impossível é subir com
tudo isso, ou com um só pecado venial,
habitualmente, deliberado, a montanha da
santidade. E se muitas almas, como nós sa­
bemos, conseguiram realizar a ascensão
gloriosa, é que elas conseguiram, antes, o
rompimento completo com o pecado venial
habitual.
Um ou outro pecado venial, por fraque­
za, inadvertência, circunstâncias imprevis­
tas, não impedem a subida, e, sim,, retar-
dam-na um pouco. Mas a humildade, o ar­
rependimento e a confiança em Deus, cor­
rigindo este retardamento, impelem a alma,
com mais força ainda, para as alturas do
monte.
Quando a serva de Deus, Francisca
Schervier, fundadora de uma congregação
franciscana, durante o recreio da comuni­
dade, percebeu que uma irmã não dava im­
portância ao pecado venial, sentiu tal tris­
teza e indignação que caiu sem sentidos.
Assim são as almas que sobem.
c) Em terceiro lugar, devemos romper
com as imperfeições voluntárias. Cpnhece-

30
mo-las? Foi o grande trabalho dos santos.
Deve ser o nosso trabalho também, uma
vez que queremos subir o Alverne. O nosso
exame sincero de conciência, feito, com
cuidado, diariamente, nos revelará, pouco
a pouco, o que há em nós para corrigir:
pequeninas vaidades, pequeninos apegos,
pequeninas negligências no uso do tempo,
modo autoritário de falar, pensamentos e
conversas inúteis... Senhor, iluminai-nos!
Que nós nos conheçamos a nós mesmos,
sem medo algum. E que nós vos conhe­
çamos a vós, como pedia o seráfico pa­
triarca. E que, na vossa pureza e na- vossa
luz, vejamos as nossas imperfeições, com
as quais queremos romper, se a vossa força
ajudar a nossa fraqueza.

Romper com o pecado mortal torna pos­


sível a subida ao monte Alverne.
Romper com o pecado venial deliberado
torna esta subida não só possível, mas
facil até.
Romper com as imperfeições voluntárias,
generosamente e com perseverança, não só
torna possivel ou facil a subida, mas já é

31
subida que, rapidamente, nos colocará no
cume bem-aventurado da santa montanha
franciscana.
Rompamos com o mal... prevenindo a
morte, que nos obrigará a romper com
tudo. Mas, com que dor, então, e angústia
se processará este rompimento extremo! E
• sem merecimento algum, porque forçado...
Pelo contrário, os verdadeiros francisca-
nos, à imitação do patriarca santo, morrem
alegres, em paz, porque, para eles, a morte
não é violência.
Tendo rompido com a carne, o mundo e
o demônio, puderam subir o seu Alverne, e,
• dali para o céu, é tão perto...
V
-2S—

CRIAR O AMBIENTE

Mão é de pequena importância para uma


^ascensão qualquer a atmosfera ou o am­
biente em que ela se realiza. Para uma
ascensão espiritual, então, o ambiente pro­
pício é de verdadeira necessidade.
Por falta deste ambiente, é que muita
alma boa não sobe o seu Alverne, ou sobe
um pouco, para logo depois descer. E,
descendo, talvez nunca mais pense em su­
bir. Quantas vocações para as alturas se
perdem, assim, irremediavelmente!
Eis por que se procuram os conventos,
os retiros, as solidões e os desertos. Pa­
rece que nestes lugares, separados do bu-
lício e das vaidades do mundo, torna-se
mais faci! e mais rápida a ascensão dese­
jada.
Mas quão poucas são as almas que po­
dem ou querem procurar estes ambientes,
incompatíveis, as mais das vezes, com o
Subida — 3 33
seu estado, com as suas obrigações, ou com
suas aspirações honestas.
Depois — sejamos sinceros — não basta
este ambiente material: a solidão tem os
seus perigos, e o convento, apesar de sua
clausura e de seus muros, fica sempre mun­
do, um mundo pequeno, é verdade, muito
melhor e mais puro do que o grande mundo
corrompido e corruptor, mas mundo sempre.
Quem quiser subir, pois, deve — com
aquela mesma energia e força de vontade,
com que rompeu com o mal — criar para
si um ambiente próprio, a que nós pode­
riamos chamar de solidão espiritual, que
nos envolve inteiramente, permitindo-nos
viver, assim, em um imperturbável recolhi­
mento, até mesmo no meio dos trabalhos,
em viagem ou numa praça pública ou num
divertimento.
Isto não é próprio das almas femininas
ou das almas fracas, pelo contrário, só as
almas varonis, as almas fortes, as almas
de vontade firme e perseverante, é que
conseguem criar esse ambiente ao derredor
de si.

34
O seráfico pai s. Francisco sentiu toda
a atração da vida solitária e silenciosa, e
estava por renunciar a todo o gênero de
apostolado, para'viver em solidão comple­
ta. Mas teve receio: seria essa a santa von­
tade de Deus?! Mandou, então, que a irmã
Clara rezasse; mandou que o irmão Silves­
tre rezasse, para que ele conhecesse a von­
tade divina. E, tendo recebido a resposta
do alto que ele devia pregar o Evangelho
nos templos e nas capelas, nas praças e nas
estradas, por toda parte que lhe fosse pos­
sível, o santo solitário, a quem se roubava,
assim, a solidão corporal, edificou inviolá­
vel solidão espiritual, feita de silêncio, de
recolhimento profundo, que o acompanhava
por toda parte, tornando-lhe possível uma
constante união com Deus e o mais ativo
e frutuoso apostolado.
Eis o ambiente que devemos criar ao der-
redor de nós, onde quer que nos encontre­
mos: em casa ou na repartição pública, na
escola ou na oficina, no templo ou no con­
vento, na sala de festa ou no quarto onde
se sofre, na rua movimentada ou na es­
trada deserta, na cidade ou no campo.
3* 35
Ai de quem se entregar ao exterior, der­
ramando-se inteiramente! Que ele perca a
esperança de subir. Escravo do meio em
que vive, que ele devia dominar, mas pelo
qual é dominado, torna-se-lhe impossível
qualquer movimento de ascensão.

S. Francisco, o pai seráfico, ensinava a


criação desse ambiente, próprio para subir,
quando dizia: “Meus irmãos, seja o corpo
a nossa cela; a alma, a eremita que nela
mora”. 'v .
Feliz quem compreende esta palavra! O
corpo, a nossa cela. Mas uma cela perde o
seu valor como cela, quando, inteiramente
aberta, vive em contacto com o exterior:
janela escancarada, por onde se contempla
o panorama do mundo; porta, por onde
entra e sai, à vontade, todo o movimento,
toda a desordem, todo o barulho.
Janelas e portas do nosso corpo são os
sentidos, principalmente os olhos, os ouvi­
dos, a boca.
Criar um ambiente é saber dominar os
olhos, é saber dominar a língua. E será

36
isso trabalho que consigam as almas fracas,
sentimentais? Que se experimente.
Se nem todos os santos falam desse am­
biente de recolhimento profundo, em que a
alma sobe sem perigo de paradas e de
quedas, todos, sem excepção, nos dão dele
os mais belos e fortes exemplos.
Não foi só o santo patriarca que escon­
deu as mãos nas mangas do hábito, baixou
os olhos, inclinando a cabeça, e, em si­
lêncio absoluto, saiu pelas ruas a pregar.
Não foi só ele. Todas as almas francisca-
nas imitaram, através dos séculos, esta
atitude de perfeito recolhimento e de per­
feito apostolado.
VI

OS NOSSOS SENTIDOS

feriar o ambiente, portanto, é saber domi-


^nar os ouvidos, em outras palavras, é
saber dominar a curiosidade de estar ao
par de tudo o que nos importa e o que não
nos importa. Do contrário, se ouve, sem ne­
cessidade, o que nos aborrece, o que nos
perturba, o que provoca tentações, o que
nos entristece, o que nos faz vacilar, o que
nos desorienta, o que nos desanima. Para
que?
Quantas forças perdidas! quanto tempo
perdido também! “Felizes os ouvidos que,
fechados para as coisas exteriores, ouvem
as vozes da graça!” diz a Imitação de Cris­
to. Não experimentamos, tanta vez, que as
vaidades desnecessárias nos roubam de
todo, ou atrapalham, ao menos, o surto de
nossos bons desejos para o alto?
Longe de nós a pretensão tola de querer
ouvir o que os outros dizem ou pensam a

38
nosso respeito, a respeito de nosso proce­
dimento. Quanta paz perdida inutilmente!
Procuremos só ouvir a opinião de Deus, a
voz de nossa conciência. O resto, que nos
importa? Compreendamos bem o ensina­
mento do seráfico pai: “eu sou o que sou
diante de Deus e não o que valho na opi­
nião dos homens”. Palavra de ouro, que.
nos conserva em uma paz inalterável.
E’ inútil querer a aprovação de todos.
Fechemos os ouvidos. E não percamos a
ambição santa de subir.
Até nos ambientes mais santos é de ver­
dadeira necessidade esta clausura. Só en­
tão a alma sente coragem de se elevar,
alheia a tudo o que impediría ou dificultaria
a sua subida ao monte franciscano de sua
santificação.
b) Criar o ambiente é, em segundo lu­
gar, dominar os olhos. Fugir da curiosi­
dade de tudo ver, tudo observar. Para que?
Quando houver necessidade ou utilidade
ou conveniência de ver alguma, vejamos.
Do contrário, saibamos nos vencer.
Em geral, os cegos nos envergonham,
pela sua capacidade de pensar e de traba-

39
lhar. E’ que nada os distrai, na escuridão
em que vivem; podem, então, entregar-se,
inteiramente, ao seu pensamento, à sua ocu­
pação. E realizam maravilhas.
Oh! se nós soubéssemos dominar os nos­
sos olhos e evitar aquilo que nos distrai
inutilmente e até mesmo perigosamente!
Teríamos, então, energias novas para obser­
var o que devemos observar dentro e fora
de nós. Que mundos desconhecidos desco­
bririamos!
Eis por que os santos fechavam os olhos.
Quando os abriam de verdade, descobriam
belezas novas em tudo, até na flor humilde
do campo ou no inseto- desprezado, como
nosso pai s. Francisco.
c) Criar o ambiente é, em terceiro lugar,
dominar a língua. Silêncio, silêncio, silên­
cio e a alma recolhida sente-se na atmos­
fera própria para subir. Possue, quando o
silêncio é verdadeiro e não fruto de capri­
cho ou de violência, a liberdade da filha de
Deus. E quem é livre, sobe.
Ai! que não nos convencemos desta ver­
dade! O silêncio constrói o mais belo am­
biente para a ascensão verdadeira. Per-

40
guntemos a s. Francisco, a sta. Clara, a s.
Boaventura e às legiões que os seguiram.
Chegaram ao cume do Alverne, porque fi­
zeram reservas de energias pelo seu silên­
cio admiravel.
E não é assim mesmo, quando se sobe
uma montanha qualquer? Quem fala mui­
to, depressa se cansa e desce desanimado.
O ilustre franciscano terceiro, o cardial
Mercier, dizia: ‘'dominai a vossa língua e
sereis senhores de vossos pensamentos”.
Que segredo maravilhoso para subir! Tem-
se, então, o ambiente desejado: domínio
dos ouvidos, da língua e dos olhos, domí­
nio do pensamento, eis o recolhimento per­
feito, a solidão espiritual, que o seráfico
patriarca edificou para si e para seus fi­
lhos.

Loquazes, curiosos, derramados para o


exterior, desejosos de conhecer a opinião
de todos, sonhadores, escravos de sua fan­
tasia, amigos de reuniões ruidosas e de
longas c frívolas conversações, é que nunca
darão um passo para cima. E’ inútil experi­
mentar.

41
Olhemos para nossos irmãos. Olhemos
para um Matt Talbot. Teria ele subido
como subiu, se tivesse ficado escravo do
meio péssimo das docas, em que conti­
nuou a viver? Quantas críticas, murmura-
ções, zombarias, sem falar de palavras e
exemplos peiores! Mas ele, apesar de não
se afastar de seu trabalho, não sofreu o
menor obstáculo de tudo isso em sua ascen­
são quotidiana, porque soube criar a ver­
dadeira solidão espiritual ao derredor de si.
Tornou-se um ermitão autêntico, no meio
do bulício da cidade. Libertou-se de tudo,
eis por que subiu.
Convençamo-nos: se quisermos galgar o
Alverne de nossa santificação franciscana,
é de necessidade a criação do ambiente em
que devemos nos envolver, em qualquer lu­
gar que estejamos, ambiente que nos li­
berta das críticas mesquinhas, da perda de
tempo e de energias, assim como da in­
fluência do mundo exterior.
Seja o corpo a nossa cela! ensina s.
Francisco. Cela recolhida e pacificada, pelo
domínio dos sentidos exteriores e das fa­
culdades da alma. Nela, então, Deus nosso

42
Senhor habita, como em um templo, na ex­
pressão de s. Paulo.
O que Ruysbroek escreveu, poderia ter
escrito Ângela de Foligno ou Boaventura
ou qualquer outro místico franciscano: “A
presença de Deus não é uma separação ex­
terior das coisas exteriores; é a solidão do
espírito. Se vós a possuís, penetrareis as
pessoas e as coisas com tal profundidade,
que elas perderão seu poder e influência
sobre vós”.
E só as almas que não sofrem a influên­
cia prejudicial dos homens e das coisas é
que podem subir.
Seja o corpo a nossa cela!
vn
MANTER O AMBIENTE

de tão grande importância para a nos­


. E* sa subida ao Alverne, isto c, para o
nosso verdadeiro progresso na vida fran-
ciscana, o que consideramos nos últimos
capítulos, que sentimos necessidade de con­
tinuar o mesmo assunto.
Por falta desse ambiente, é que muitas
almas não querem subir, não sentem cora­
gem de subir, ou, se sobem um pouco, logo
voltam para trás, com saudades da indolên­
cia da planura. E se deixam, então, ficar
imperfeitas, terrenas, comodistas, sensuais...
para sempre. Que prejuízo para o reino de
Deus!
E quantas almas, vivendo num ambiente
puramente natural e mundano, nem se lem­
bram de que foram chamadas para a san­
tidade, e que deveríam e poderíam subir.
Por falta do ambiente, arrastam-se a vida
inteira, longe de Deus, longe do ideal.

44
0 ambiente que tivermos criado, com
todo o nosso esforço, inortificando os olhos,
os ouvidos, mortificando a língua, o cora­
ção e os pensamentos (na edificação toda
espiritual desta cela ou solidão, chamada
recolhimento), necessário é que nós o sai­
bamos manter.
Quem o experimentou, de fato, em toda
a sua paz e suavidade, não poderá mais
viver fora dele: é a única atmosfera em que
se respira livremente, longe do ar empes-
tado do mundo (invejas, críticas, vaidades,
ostentação, mentiras) ainda que, corporal­
mente, se tenha de viver no meio deste
mesmo mundo. *
Só neste ambiente é que os homens e as
coisas não exercerão influência prejudicial
sobre nós mesmos. O recolhimento, cons­
truído, sabe Deus a custo de que sacrifí­
cios, nos imuniza inteiramente contra a
ação maléfica do mundo exterior, envol­
vendo-nos numa atmosfera toda sobrena­
tural.
S. Francisco seráfico, puro, no meio da
corrupção do seu século; pobre, no meio
do luxo e da ambição; pacífico e pacifica-

45
dor, no meio das inimizades e dos ódios;
idealista, entre almas vulgares e mesqui­
nhas; revolucionário do amor, no meio dos
apáticos e comodistas, é bem uma prova da
força do ambiente que ele para si criara, no
silêncio dos bosques e dos templos, na so­
lidão dos Carceri e do Alverne, na leitura do
Evangelho.
Para manter este ambiente abençoado
que nos isola, espiritualmente, do mundo
profano (ainda que às vezes com aparência
religiosa), sem prejudicar, contudo, os nos­
sos interesses e as nossas relações neces­
sárias e uteis, dois meios, principalmente,'
muito nos ajudarão: o trabalho e a leitura
espiritual.
Quem os abraça, com generosidade e
perseverança, pode ficar seguro de sua
ascensão quotidiana ao Alverne de sua san­
tificação.
VIII

TRABALHO E LEITURA

C“ni primeiro lugar, o trabalho, o bom em-


^prego do tempo, a) mantém uma atmos­
fera de elevação ao derredor de nós. O tra-
9

balho, feito com esta intenção, seja ele qual


fôr, mental ou manual, é uma oração em
atividade. Afugenta a ociosidade. E nós
r

sabemos que a ociosidade, sendo a mãe de


todos os vícios, torna impossível qualquer
esforço sério para subir.
A ociosidade quebra a energia da alma,
destrói as suas boas disposições, perturba
a imagem de qualquer ideal elevado, e fa­
cilmente convence o indolente de que é
muito melhor ficar em baixo e não tentar
qualquer ascensão.'
O trabalho sério, perseverante, diligente,
o trabalho alegre e conciencioso, já por si
é um criador admiravel de ambientes. Ele
espelha paz e seriedade de vida. Ordena e
disciplina tudo. *

47
E se isto c verdade sempre, em se tra­
tando de qualquer trabalho feito com reta
intenção, é muito mais verdade ainda em
se tratando de trabalho humilde, trabalho
escondido.
Quem não contemplou, enlevado, a vida
de trabalho silencioso do Filho de Deus em
Nazaré? 30 anos no escondimento, no tra­
balho simples de cada dia. E com ele, a
humilde Virgem Maria, o patriarca são
José! Que ambiente celestial, mantido pelo
fiel emprego do tempo, nas ocupações mais
modestas, cheias de elevação, porém, pela
perfeição com que eram feitas.
Não precisamos de outros exemplos. En­
tretanto, eles não nos faltam. E’ são Paulo
que tecia; é são Francisco, o santo legisla­
dor do trabalho manual, ao qual se devem
dedicar os seus filhos. E’ santa Clara que,
em sua última enfermidade, borda ainda
toalhas para os altares, santificando as­
sim sua cela e sua doença. E’ são Boaven-
tura que escrevia os seus tratados profun-
dos e se entregava aos mais humildes tra­
balhos do convento. E’ santa Isabel da

-48
Hungria, cujas mãos não conheciam des­
canso. São, afinal, todos os verdadeiros
filhos de Francisco, que devem, por força
de lei, fugir da ociosidade e amar a ocu­
pação honesta e proveitosa, ainda que ne­
nhuma vantagem material se possa dela es­
perar.
O trabalho, em si, já é uma vantagem,
pois que concentra a atenção, evitando todo
o desperdício de forças. E’ sempre lucro.
Não há melhor preparação para a oração
do que o trabalho, sinônimo tanta vez de
penitência. E, por sua vez, é a oração ver­
dadeira que desperta no homem as disposi­
ções necessárias para um trabalho profícuo,
ao menos espiritualmente.
Dai-me um homem piedoso e trabalha­
dor e dele, depressa, se fará um santo.
O bom emprego do tempo é um dos ca­
pítulos mais importantes em nossa vida.
Quem puder dizer, no fim do dia ou no fim
da existência, como aquela admiravel ter­
ceira Maggy: “Senhor, eu vos agradeço,
porque aproveitei bem o tempo que me
destes”, terá cumprido a sua missão.

Subida — 4 49
E* de ouro o conselho da Imitação de
Cristo: “nunca estejas ocioso de todo; mas
lê ou escreve, ou reza ou medita, ou faze
algum trabalho para proveito dos outros”.
Este espírito de trabalho e de santa ati­
vidade já por si só toma impossível qual­
quer dissipação ou distração perigosa. E a
alma, neste ambiente fechado, mas onde se
respira livremente, sente a necessidade e
quasi facilidade de subir.
Amemos o trabalho. Vivamos sempre
ocupados. Tenhamos grande respeito para
com o valor do tempo que corre, corre, e
não volta mais.
Examinemo-nos e sejamos sinceros. Não
são, justamente, os dias em que trabalha­
mos mais fielmente, os dias em que mais
nos elevamos também? Tenhamos, na me­
dida do possível, o nosso horário para que
não se perca parcela alguma de nossa vida.
Prevendo as ocupações e o tempo de as fa­
zermos, muito lucraremos.
E neste ambiente sério, a alma experi­
menta, cada vez mais, o desejo de se elevar.

50
b) 0 segundo meio para manter o am­
biente de nossa ascensão é a leitura es­
piritual.
Nunca insistiremos demais. A leitura es­
piritual, feita com humildade e atenção, nos
põe em contacto ativo com o divino Espírito
Santo e com os queridos santos de Deus.
A Sagrada Escritura, principalmente os
santos evangelhos e as epístolas, estabele­
cem, ao derredor de nós, uma atmosfera
tão sobrenatural, que mais dificil é, então,
conservar-se a alma na planície do que
subir a montanha. E’ doutrina que desceu
do céu e que para o céu nos leva. E’ a re­
velação, ao nosso alcance, da verdade eter­
na, da santidade eterna, da beleza eterna,
que, forçosamente, nos atraem e nos arras­
tam para o alto. E’ pulsação do coração
infinito de Deus que, amando-nos, provoca
o nosso amor. E quem ama, sobe sempre.
Quem lê a Imitação de Cristo ou leituras
semelhantes, se põe diante desses autores
veneráveis, homens- de Deus, ricos de me­
recimentos, que nos apontam para as altu­
ras, ensinando-nos o desprezo do mundo
4* 51
e de suas vaidades. São mestres sinceros,
experimentados, que dizem a verdade e que
só querem o nosso bem.
As biografias de santos e de almas san­
tas, então, nos fazem viver em outras épo­
cas, em outras terras, na companhia dos
melhores representantes da humanidade.
Despertam o nosso brio, enchem-nos de
coragem, transformam-nos pouco a pouco
naqueles a quem frequentamos. Então se
diz, com novo ânimo, à imitação de sto.
Agostinho: “Mas se eles e elas puderam,
por que não poderei eu também?”
Oh! se nós compreendéssemos o bem que
nos faz a leitura espiritual, assídua e per­
severante! Ela, realmente, mantém ao der-
redor de nós uma atmosfera superior. Tor­
na-se vivo o dogma consolador da comu­
nhão dos santos. E pode ser tão forte e
inténsa a influência dessas leituras boas
sobre a nossa vida, que nós consigamos,
sem reparar, hábitos virtuosos e maneiras
de pensar e de agir que, com relativa faci­
lidade, nos elevem quasi ao cume da mon­
tanha franciscana de nossa santificação.

52
S. Francisco lia, assiduamente, o santo
Evangelho, com tal fervor e reta intenção,
que se transformou em um Evangelho vivo.
* Matt Talbot, apesar de sua pouca instru­
ção, nos deixou uma pequena biblioteca
ascética que, já por si, é um lindo ensi­
namento. Era uma de suas ocupações pre­
diletas, aos domingos e de noite, depois
do trabalho. Com s. Francisco de Assis,
santa Teresa, s.-Francisco de Sales, Fa-
ber... passava horas inteiras. Quem se ad­
mira que ele tenha subido tão alto?
“Não quero ler jornais e romances, para
não estragar o ambiente de minha cela”,
escrevia um santo sacerdote. O mesmo
pode dizer toda a alma que deseja viver,
sinceramente, na solidão espiritual.
Leituras frívolas tornam frívolo o am­
biente. Só as leituras sérias e santas é
que santificam e elevam o ambiente de
nossa vida.
Escolhamos a nossa leitura espiritual.
Marquemos para ela uma hora determina­
da. E depois, dia por dia, ao menos 15 mi­
nutos, com toda a atenção e humildade,

53
nos entreguemos a essa leitura, página por
página, capítulo por capítulo. E, assim, um
livro depois do outro.
Não se tenha pressa de acabar. A pala­
vra honrosa sobre o homem de um só li­
vro, continua verdadeira. Um livro bem lido
e meditado e bem assimilado vale mais do
que dez ou vinte livros, lidos superficial­
mente. Há livros que não se devem ler uma
vez só; duas vezes, talvez ainda seja pouco.
Não será porque antigamente havia tão
poucos livros, que também havia almas tão
profundas?! Liam pouco, mas com tal se­
riedade e fervor, que a leitura terminava
por se tornar propriedade delas, e elas se
transformavam. Hoje não faltam livros, fal­
tam leitores ponderados.
Saibamos escolher o nosso livro, ou os
nossos livros. E que eles, pelo nosso esfor­
ço e reflexão, exerçam verdadeira influên­
cia em nossa vida.

O trabalho constante (no escrupuloso


emprego do tempo) e a leitura espiritual

54
quotidiana, eis os fatores preciosos que hão
de manter, com firmeza, no meio das difi­
culdades e contratempos e distrações for­
çadas, o ambiente pacífico para a nossa
ascensão.
Só neste ambiente é que se compreen­
derá o “sursum corda", corações ao alto!
da nossa fé.
IX
- — —* "
—-2.—T ~~ T-=*=

SANTA LIBERDADE

f^hegamos, agora, a um capitulo dificil.


^Capitulo doloroso, borrifado de lágri­
mas e de sangue. Capítulo para as almas
fortes, heróicas, e para aquelas que querem
tornar-se tais. Mas capítulo de necessidade
indiscutível. Nele começa a revelar-se o fu­
turo santo.
Pode alguém ter uma inclinação natural
para a solidão, amar o silêncio, o recolhi­
mento. Pode alguém ter uma inclinação
inata para o trabalho, a atividade, e assim
empregar, utilmente, todo o seu tempo. Mas
haverá, talvez, quem, por feitio natural, não
se apegue a nenhuma criatura? Pode ser
que haja um ou outro exemplo de natureza
assim, mas serão tão raros, que não se
devem tomar em consideração.
Em geral, a alma se apega às criaturas
que a rodeiam. E, ordinariamente, às cria­
turas que mais fomentam a sua'sensuali-

56
dacle, o seu orgulho e vaidade, o seu co­
modismo, a sua curiosidade, seu egoisma
e ambição...
Infelizmente, nada de mais comum. Er
por isso mesmo, nada de mais raro do que
uma alma livre, da santa liberdade dos fi­
lhos de Deus, que realize, continuamente, a
sua ascensão.
Eis o que custa. Por isso há tão poucos
santos, isto é, almas que alcançam o desa­
pego, quanto possível, completo de tudo
aquilo que podia impedi-las de correr e de
subir ao seu Alverne.
A alma apegada, tentando galgar o mon­
te de sua santificação, é como um viajante,
carregado de malas e de embrulhos, ten­
tando subir uma montanha íngreme. A
alma apegada às criaturas, ainda que fosse
a uma criatura só, é como um pássaro
preso, ainda que seja por um só fio de
ouro, que não pode voar.
Como o seráfico pai s. Francisco com­
preendeu perfeitamente este capítulo dificil!
Quis ser aqui na terra verdadeiro hóspede
c peregrino, desapegado de tudo, tudo,
para poder peregrinar e subir. Ele incar-

57
nou em si, de modo admiravel, o ideal do
evangelho, escola única, onde se formam
as almas verdadeiramente livres.
E por isso ele alcançou, em tempo rela­
tivamente curto, alturas maravilhosas. Reis
e imperadores, sábios e artistas, bispos e
papas levantam a cabeça, e muito, para o
poderem contemplar.
E porque ele assim viveu esse desapego,
pôde também exigí-lo de quem o seguisse.
Como o Mestre, que não tinha onde repou­
sar a cabeça, Francisco podia exclamar:
“Quem quiser ser meu discípulo, renuncie
a si mesmo...”
E’ a suprema lição do desapego: renún­
cia total. >
Como é dificil! Não há dúvida alguma,
mas sem esse desapego ninguém poderá
subir.
Desapego, porém, não significa falta de
interesse, indiferença, apatia, frieza, falta
de amor e de amizade. Desapego não é ser
insensível, duro, sem alma, sem coração.
Desapego não é sinônimo de desprezo ou
de ingratidão.

58
Desapego é uma virtude pela qual o ho­
mem ama a Deus, como fim, e ama as
criaturas, como meios. E, por isso, tem
sempre em vista os grandes interesses de
Deus, aos quais subordina, sem vacilação,
os seus pequenos interesses próprios e os
• pequenos interesses de seu próximo.
Alma desapegada é a alma que, pratica­
mente, nunca confunde o lugar de Deus e o .
lugar das criaturas, o valor absoluto de
Deus e o valor relativo das criaturas.
Desapego é .sinônimo de liberdade, li­
berdade verdadeira, daquela que tão rara
6 no mundo de todos os tempos, princi­
palmente no de hoje, que só ambiciona
aquela liberdade falsa, que o levará, fatal­
mente, à mais penosa escravidão.
Jesus Cristo, o Mestre, como em tudo o
mais, é modelo perfeito do desapego. En­
tretanto, amava, com ternura, sua Mãe san­
tíssima e a s. José, seu pai nutrido. Gosta
de estar entre as criancinhas e as acaricia.
Alegra-se na casa bem-aventurada de Ata­
ria e de Marta. Aceita convite para as
bodas de Caná, come com fariseus e pu-
blicanos. Chora pela morte de Lázaro, seu

59
amigo. Ama, com. amor de predileção, um
discípulo virgem. Recebe, à noite, a Nico-
demos envergonhado. Contempla, com en­
tusiasmo, a grandiosidade do templo. Gosta
dos trigais dourados e dos vinhedos. Sente
compaixão do pobre povo. Come, quando
tem fome. Pede água, quando tem sede.
Não tenhamos, pois, medo: o desapego
- não nos mata. Pelo contrário, é fonte de
verdadeira vida, porquê nos torna livres,
puros, alegres, com muita reserva de ener­
gia, para lutar e para vencer. E quem ven­
ce, principalmente a si mesmo, dá a mais
bela prova de que vive.
Vamos à prática.
Devemos amar os nossos pais. E’ o
amor mais santo aqui na terra. Entretanto,
“quem ama a seu pai ou a sua mãe mais
do que a mim, não é digno de mim” —
Jesús menino, ficando no templo trcs dias,
e depois dizendo a Maria e a s. José “que
devia ficar zelando pelas coisas de seu
Pai”, nos ensina o amor e o desapego.
O amor ordenado dos pais e para com
os pais, dos esposos, irmãos e demais pa­
rentes, harmoniza-se perfeitamente com o

60
desapego. Só o amor desordenado, isto é,
exagerado, carnal, preocupado demasiada­
mente, que não conhece sacrifício, que não
conhece medida, é que destrói o desapego.
A amizade verdadeira é santa, pura, de­
sinteressada, sincera, é alegre e despreocu­
pada. Mas há outra coisa que, erradamen-
te, se chama amizade, que rouba o tempo,
rouba as forças, que impede o cumprimen­
to do dever, que esfria a fé e a devoção,
que fabrica ídolos e para eles levanta al­
tares, que, às vezes, põe até em perigo a
honra, a virtude — eis o apego, em uma
de suas formas mais comuns. Com ele é
inútil tentar uma subida. Não há alma mais
embaraçada e algemada.
Outras formas de apego, infelizmente,
bastante comuns, são o apego ao dinheiro,
à saude, às comodidades da vida, à pró­
pria opinião, o apego às curiosidades, o
apego ao luxo e à moda, o apego à osten­
tação e a uma fama fictícia. Pode haver,
também, apego a um lugar, a um trabalho,
a um objeto qualquer.
Naturalmente, há apegos mais e menos
perigosos, apegos que impedem, de todo ou
em parte, a ascensão desejada.
61
Mas poder-se-á chamar verdadeiramente
livre uma alma que vive acorrentada por
uma destas escravidões?
Para que não haja mal entendidos em
assunto tão importante, é bom repetir que
desapego não é indiferença ou falta de in­
teresse para com as pessoas e coisas que
nos rodeiam. Pelo contrário, são as almas
desapegadas que amam o seu tempo, o seu
trabalho, o seu cantinho, os seus amigos,
os seus parentes, as suas alegrias... amam,
mas não se escravizam. E, como são livres,
amam e sobem, com tudo o que amam, o
Alverne de sua perfeição.

Onde estão as lágrimas? onde está o


sangue deste capítulo? Que cada um o res­
ponda pela prática. Mas não se faz, por
menos, um verdadeiro santo.

O espírito Iidimamente franciscano é um


espírito de desapego. A pobreza francis-
cana nos deve desapegar do dinheiro e das
comodidades da vida. A humildade francis-
cana nos deve desapegar do orgulho e da

62
ostentação. A penitência franciscana nos
deve desapegar da nossa sensualidade, gula
e de nossas outras más inclinações. O amor
franciscano, o amor seráfico nos deve de­
sapegar do amor desordenado das criatu­
ras, para que possamos amar a Deus sobre
todas as coisas e o nosso próximo por amor
de Deus.
E isto tudo não custa? Negará quem
nunca o experimentou. Mas por outro pre­
ço não se chega ao cume do Alverne.

Olhemos para o exemplo do seráfico pa­


triarca. Antes ele gostava de dinheiro, de
roupas preciosas, de boa mesa, de sere­
natas e noitadas alegres, de glória e de
fama, ele, “o rei da mocidade de Assis”. E
nada disso era propriamente pecado. Mas
como estava preso! Um dia libertou-se de
tudo, tudo, e, semi-nu, cantou o “Padre
nosso” de um modo novo. Desde então, em
santa liberdade, não soube mais o que era
andar na planície; começou a subir, a su­
bir sempre, até alcançar o cimo da mon­
tanha de sua transformação em Jesus cru­
cificado.

63
Santa Clara cortando os cabelos de ouro
{não é propriamente pecado ter uma cabe­
leira bonita), cortou com tudo, tudo o que
a prendia ao mundo. Cheia de felicidade,
•começou a cantar e cantar até ao fim (ape­
sar das lutas que teve que sustentar) o
canto inebriante da pobreza absoluta. E
era duma das famílias principais de Assis.
Quando percebeu, já havia atingido altura
vertiginosa.
E assim, todas as almas que compreen­
deram o ideal franciscano. Almas peregri­
nas, sem nada, nada, nada; desapegadas
de tudo, tudo, tudo.
Mas faz bem lembrar, neste capítulo de lá­
grimas e de sangue, um exemplo só: Eva
Lavallière, já bem nossa conhecida. Poderá
haver alma mais escravizada e apegada a
mil coisas, do que a alma de uma mulher
de teatro, bela, moça, rica, cheia de graça
e de talento e de fama? Era assim a alma
de Eva, a comediante de Paris. Ela com­
preendeu que assim era impossível, não po­
dería subir. Desapega-se de tudo. Foi até
ao heroísmo. Não quis mais ser rica, nem
bela, não quis mais ter admiradores, quis

:64
ser desconhecida, pobre, desapegou-se do
palco, de tudo, e subiu. Aonde terá che­
gado?

Desapeguemo-nos de tudo o que nos im­


pede de subir. Não tenhamos receio que
esse desapego venha estragar o ritmo de
nossa vida. Pelo contrário, então é que vi­
veremos um ritmo perfeito, ritmo de ele­
vação e de sinceridade, desprezando tudo
aquilo que, mais cedo ou mais tarde, há
de desprezar a nós.
Desapeguemo-nos, enquanto é tempo.
Praticamente, nós sabemos muito bem o
que nos, impede a vida para o alto. Enga-
namo-nos só quando queremos, ou depois
de termos falseado, por nossa culpa, a
nossa conciência.
Desapeguemo-nos, para que possamos
dizer, ainda aqui na terra, com a sincerida­
de de s. Francisco, a exclamação, que de­
veria ser a nossa bandeira: Meu Deus e
meu tudo!
Eis a santa liberdade...

Subida — 5 65
X
- • ~~ Ti-— .:"T

ATIÇANDO O FOGO

C"rei Jacopone da Todi, o célebre poeta


1 franciscano, dizia: “No fogo me meteu
o amor”. E uma santa, que bem podia ter
sido uma franciscana, exclamava: “a mi­
nha natureza é fogo”. Aliás, foi sob a apa­
rência de fogo que o Espírito Santo de­
sceu solenemente sobre esta terra, para
significar o que ele é e como quer que as
almas sejam.
Deus nosso Senhor detesta as almas
frias, as almas mornas. Ele as quer abra-
sadas, inflamadas, fervorosas, e o fogo é a
mais formoso símbolo do fervor. Fogo que
ilumina, fogo que aquece, fogo que purifica,
fogo que abrasa, fogo que consome, e ani­
quila inteiramente, quanto é necessário.
Só as almas de fogo é que conseguirão
subir o monte Alverne. O fogo sobe, sobe
sempre. Deixa de subir, porém, quando lhe
falta alimento.
Assim o fervor das almas .esmorece ou
cessa inteiramente, quando falta o alimento

66
que lhe é próprio. E este alimento, já se
disse muitas vezes, é a lenha da mortifi­
cação.
Alimentar o fogo, avivar o fogo, atiçar o
fogo da alma, deve ser todo o nosso cui­
dado. Foi a grande preocupação dos san­
tos, isto é, de toda a alma que, realmente,
subiu.
Por isso, foram taxados de exagerados,
de destruidores da natureza, de negadores
da vida. Eles, porém, insensíveis às crí­
ticas e murmurações, pedindo perdão para
os murmuradores, foram subindo alegre-
inente a montanha de seus sacrifícios e de
sua felicidade.
A mortificação espiritualiza o homem,
torna-o leve, parece que até fisicamente ele,
então, não sente a escravidão da matéria e,
livre, como vimos no capítulo anterior, fa­
cilmente pode realizar a sua ascensão.
Lembremo-nos de Francisco e de tòda a
legião gloriosa que o seguiu. Já não falo
das penitências heróicas que praticavam,
falo apenas de seu espírito de mortificação,
que vivificou e, maravilhosamente, alou as
suas almas.
5* 67
Almas mortificadas não são almas mor­
tas, portanto. Mortificar é subjugar para
vencer, é renunciar para possuir, é negar
para afirmar, é podar para brotar, é'percu-
tir para gerar luz. A mortificação é uma
das mais belas provas da vitalidade de uma
alma. Almas mortificadas são almas que,
realmente, vivem e que produzem e espa­
lham vida ao derredor de si. E somente as
almas que vivem podem ter esperança de
subir.
O grande cardial Mercier, que se gloria­
va de pertencer à Ordem Terceira de s.
Francisco, gostava de dizer às almas, de­
sejosas de perfeição: “Tende costumes aus­
teros. Na medida em que mortificardes vos­
sas paixões, assegurareis o triunfo de vos­
sa vontade livre, a eficácia da graça e a
serenidade de vosso interior”. De almas
assim, serenas, senhoras de sua vontade, se
poderá esperar ascensões maravilhosas.
Coragem, pois; mortifiquemo-nos para
que, cheios de fervor, subamos como o
fogo.

68’
XI

MORTIFICAÇÃO
QUOTIDIANA

I Ima das mortificações mais uteis para


^acender o fogo do fervor é, sem dúvida,
a mortificação do pensamento. Não é facil;
mas, talvez, por isso mesmo, os frutos são
os mais abundantes.
Obrigar o meu pensamento a fixar-se
neste ou naquele ponto; não divagar, não
sonhar, não planejar ou construir inutil­
mente, não recordar com indolência, não
alimentar pensamentos de apego, pensa­
mentos ociosos, inúteis, pensamentos de
vaidade, de preocupações com o futuro, es­
crúpulos infundados quanto ao passado,
pensamentos de grandeza, de amor pró­
prio; evitar pensamentos, ainda que leves,
contra a caridade, contra a pureza ou a
verdade. Que campo imenso ou, melhor,
que matagal vasto para juntar nele lenha
e gravetos! E como está perto de nós, tão

69
perto de nós! Só este gênero de mortifica­
ção seria bastante forte para atiçar e ali­
mentar o fogo de nosso fervor.
E quem domina, assim, os seus pensa­
mentos, ocupando-se inteiramente com o
que tem em mãos, desprezando o passado
e o futuro, já andou meio caminho ou mais
ainda para alcançar o espírito de oração,
que é espírito das alturas.
Mas-temos mais ainda onde colher a
lenha seca para atiçar o fogo que nos im­
pelirá para cima. Mortificação da língua:
a alma silenciosa, isto é, prudente no falar,
humilde no falar, casta no falar, caridosa
no falar, sincera no falar, respeitosa no fa­
lar, sabe que luta, que energia exige tudo
isto. Mas sabe também que é justamente
depois dessas vitórias, que ela experimenta
mais força e mais alegria para galgar o seu
Alverne.
Mortificação dos olhos, mortificação dos
ouvidos, mortificação do paladar, mortifi­
cação das comodidades, mortificação das
vaidades e desejo de se mostrar, mortifica­
ção . da opinião própria, mortificação de
nossa curiosidade, de nossa dissipação, de

70
■ nossas leituras, de nosso tempo, de nossos
desejos, de nossos gostos. ..
Mas será impossível viver assim?! Per­
guntemos aos santos, aos nossos santos
franciscanos, que tão bem compreenderam
a doutrina da renúncia e mortificação, e
eles nos responderão, não somente, que é
inuito possível esta mortificação contínua,
mas que ela se torna uma necessidade da
alma que vive para um ideal superior, e,
mais ainda, que a renúncia é fonte das con­
solações mais profundas. Então eles mos­
tram, como prova mais convincente, a pró­
pria vida, mortificada mas alegre, obscura
mas luminosa, silenciosa mas aproveitada,
desconhecida mas util...
Experimentemos nós também, ao menos
um mês, uma semana, a prática da morti­
ficação contínua. Convencer-nos-emos de
sua possibilidade, e gostaremos os frutos de
seu consolo. Longe de nos sentirmos enfra­
quecidos, veremos como o fogo desperta e
acende as energias de nossa alma, que só
pode sentir-se bem, em sua vocação, gene­
rosamente abrasada, para as alturas.

71
E lembramos apenas essas mortifica-
- ções que estão pertinho de nós, dentro de
nós. Que podemos praticar, sem que nin­
guém repare. Às quais nos podemos entre­
gar sem medo de estragar a nossa saude
ou abreviar a nossa vida.
Mas essa mortificação, a que eu chama­
ria de caseira, se bem que possa ser herói­
ca, às vezes, é de absoluta necessidade
para quem deseja subir, sinceramente, o
seu Alverne. E ela está de perfeito acordo
com o espírito de nossa ordem, e com o
hábito (exterior ou interior) que devemos
continuamente vestir. Ao hábito de todo
instante, deve corresponder uma renúncia
de todo instante, naturalmcnte sem exage­
ros, mas também sem molezas e conces­
sões.
S. Paulo afirmava que “sempre trazia,
sobre si mesmo, a mortificação de Jesus
Cristo”. O mesmo vem afirmando, através
de 7 séculos, s. Francisco e seus verdadei­
ros filhos.
Quando, há poucos anos, morria em
Nova York, de um desastre, Goldy Russel,

72
célebre estrela de cinema, um jornalista
americano escrevia “que pouca gente co­
nhecia o segredo de sua amabilidade con­
tinua”, e monsenhor Sheen, “que poucos
compreendiam como ela pudesse ser tão
pura e piedosa no meio em que vivia”. E’
que a jovem artista, amavel, pura e pie­
dosa, trazia sempre, sob suas vestes mun­
danas, o cordão e o escapulário da Ordern
de s. Francisco. E quem se reveste, assim,
sinceramente, se compromete a uma vida
de mortificação contínua: então brota a pu­
reza no meio do lodo, a piedade no meio
do inundanismo, a amabilidade no meio do
egoismo.
Cultivemos o espírito de mortificação
“caseira”. Despertemos o fogo, e subire­
mos... Longo caminho nos resta ainda.
Lá em cima, donde estamos ainda tão dis­
tantes, temos que dizer, com Verônica Giu-
liani, verdadeira êmula do santo patriarca:
“Senhor, fazei-me 'sentir as dores de uma
santa paixão, dai-me vossos espinhos, vos­
sos cravos. Oh! se a lança, se os cravos
me transpassarem, que felicidade será a

73
minha! Senhor, eis meu coração, minhas
mãos, meus pés, ferí-me de vosso amor”.
Que alturas! que alturas! eis a nossa vo­
cação franciscana. Para isso fomos chama­
dos e prestamos o nosso compromisso.
Só as almas de fogo subirão. E o fogo
se produz na pedra, percutida pela renún­
cia e pela mortificação.
XII
- - ■

EVITANDO QUEDAS

“As ascensões que o capricho dirige ter-


/'minam em quedas horríveis”, já não
sei que alma franciscana falou assim. Mas
sei que, falando assim, disse uma verdade
que muito nos importa a nós, que preten­
demos subir.
N

Não é o capricho, mas é a fé que deve


dirigir a nossa ascensão ao monte Alverne.
E a fé verdadeira, sendo profunda, nos
ensina a prudência, a cautela, a humildade,
a confiança em Deus nosso Senhor. Em
outras palavras, a fé, sendo luz, nos ilumi­
na a subida; sendo força, nos sustenta e
nos anima; sendo visão da eternidade, nos
comunica calma, ponderação, desconfiança
de nós mesmos e abandono completo nas
mãos de Deus, nosso Pai.
E quantas almas, por uma queda mais
séria, perdem toda a coragem, e até mes­
mo todo o desejo de subir. E o seu exem-

75
pio desastroso arrasta outras almas que se
deixam ficar na planície de suas comodi­
dades, esquecidas, criminosamente, de que
a vocação e a felicidade do cristão, do
franciscano está nas alturas, para onde se
deve tender à custa dos maiores sacrifí­
cios. Que responsabilidade, pois, é a nossa,
se caimos ou se somos causa de que caiam
os outros! Acautelemo-nos.
Mas que meios havemos de empregar
para evitar as quedas nesta subida glorio­
sa, mas tão cheia de dificuldades?

O grande meio é a humildade. O humil­


de tem uma promessa especial de Deus
nosso Senhor, que “resiste aos soberbos,
mas dá sua graça aos humildesOra, entre
as graças maiores que uma alma pode re­
ceber está, sem dúvida, a graça de não
cair, voluntariamente, no mal, isto é, a
graça da perseverança.
O humilde, vivendo na verdade, foge de
ioda hipocrisia e ostentação; mostra-se
como ele é. E isso é uma garantia para
subir. Não se preocupa com a opinião dos

76
outros, mas, silenciosamente, vai galgando
o seu Alverne.
Almas invejáveis essas almas humildes!
Possuem a paz, conforme a promessa de
Jesus Cristo: “aprendei de mim a humil­
dade de coração e achareis a paz”. E não
há como a paz interna, para sentir alguém
o anseio das alturas verdadeiras.
E’ tão importante esse meio, para evitar
qualquer queda desastrosa que, sem ele, é
impossível chegar a alma ao cume da mon­
tanha. Quando menos pensar, terá o casti­
go de seu orgulho. Ver-se-á por terra, quem
já pensava acariciar as nuvens. E’ a histó­
ria de tantas e tantas almas infelizes: o
orgulho as cegou, a confiança demasiada
em si mesmas as iludiu. Pensavam que es­
tavam a subir e desciam; pensavam que '
tinham grandes reservas de forças e esta- -
vam esgotadas.
f

Não queiramos experimentar esta des­


graça; poderia ser fatal.
Apeguemo-nos, fortemente, à humildade,
que fica bem em toda alma, principalmente
em toda alma franciscana. Pois que esta

77
virtude dos pequenos e dos pobres pertence
à essência do franciscanismo verdadeiro.
Por isso s. Francisco, lá perto dos cimos
do Alverne, dizia, sinceramente, de si mes­
mo: “não hà pecado, por horrível que seja,
que um homem cometa, que o irmão Fran­
cisco não possa também, por infelicidade,
cometed’. E quando um camponês ousado
lhe dizia no rosto: “Olha, irmão Francisco,
que tu sejas de verdade aquilo que os ho­
mens julgam que tu és”, ele achava muito
oportuna a observação e mostrava-se agra­
decido. Foi por este motivo que o seráfico
pai não caiu, mas subiu sempre. E’ esta,
também, a história consoladora de todos os
seus verdadeiros filhos, fundados na hu­
mildade.
Entre outros, o grande doutor francis-
cano, s. Boaventura, ensinava: “meu irmão,
saibas que, se alguém andasse solícito em
se humilhar, ganharia mais graças em um
mês, do que outro em quarenta anos”. Nós
poderiamos dizer: subiria mais em um mês
o seu Alverne, do que outro em quarenta
anos. E de santa Verônica Giuliani, diz o
escritor capuchinho fr. Desidério des Plan-

78
ches unia verdade linda que vem tão a pro­
pósito: “mais ela se eleva na luz, mais ela
se abaixa no desprezo de si mesma; è na
mais tranquila humildade que podemos
contemplar o mistério que Verônica nos
revela: Deus descendo tão baixo e o ho­
mem subindo tão àlto, no Amor”. E* que
a santa nunca se esquecia de seu nada; e
nos êxtases mais sublimes, portanto na
maior elevação, ela exclamava humilde:
“nenhum pecado mais, Senhor, nenhum
pecado; quero subir, quero amar”.
Bastaria esta virtude, para não nos dei­
xar cair. Quando nossa Senhora canta que
Deus “depôs do trono os poderosos e ele­
vou os humildes”, resume, de modo claro e
admiravel, o que queríamos dizer: a hu­
mildade torna possível a subida, impedindo
qualquer queda; esta fica reservada para os
orgulhosos.
XIII
tm. T-----

MAIS QUATRO
MEIOS PODEROSOS

/^Vutro meio para evitar quedas e deser-


>wções é a) a direção espiritual, tão lou­
vada pelos santos.
O peregrino que não quer errar o cami­
nho, pergunta humildemente, a quem en­
contra, se vai indo bem, se não errou, se
é a melhor estrada, se não está dando al­
guma volta inútil. E antes mesmo de co­
meçar a jornada, informa-se de tudo, com
aqueles que já fizeram a mesma viagem:
que deverá levar? que precauções tomar?
qual é a época mais oportuna?
E não devemos fazer o mesmo, nesta jor­
nada espiritual para as alturas, onde um
erro, um engano, uma falta de precaução,
uma ignorância podem causar as mais sé­
rias consequências? Eis o papel do diretor
espiritual prudente, experimentado.

.80
Leão XIII escrevia ao bispo de Baltimo-
re: “Os que procuram subir a montanha da
perfeição, precisamente porque sobem um
caminho menos frequentado, são mais ex­
postos a enganos, e, por isso mesmo, mais
cio que os outros, têm necessidade de um
mestre, de um guia”.
E’, afinal, em última análise, o que nosso
Senhor dizia: "quem vos ouve, a mim ou­
ve”, e o que s. Francisco comentava em
seu Testamento: “firmemente quero obe­
decer ao ministro geral e ao superior que
lhe aprouver dar-me; e de tal modo quero
estar preso em suas mãos que eu não possa
ir a parte alguma e nada fazer sem a sua
voniacle, pois que ele é meu senhor”. Eis
por que Francisco não errou o caminho e
não caiu. Na vida de seus filhos aparece
consoladora a história da direção, humilde
e prudente, toda sobrenatural: santa Clara,
Isabel da Hungria, Ângela de Foligno, Lu-
dovico de Tolosa, são exemplos, entre mui­
tos outros.

b) Outro meio para evitarmos quedas


nesta subida, que tanto nos importa, é uma
Subida — 6 81
confiança cega na força da graça, na força
da Providência, na força do amor de Cristo
Senhor nosso.
Não nos esqueçamos de que o céu está
muito mais empenhado em nossa subida do
que nós mesmos. E quanto maior fôr a
nossa confiança, mais o céu se sentirá obri­
gado *a nos ajudar a que não caiamos, a
que subamos sempre.
Esta confiança é a floração da humil­
dade, que fazia s. Paulo exclamar: “tudo
posso naquele que me conforta”.
A nossa subida às alturas, sendo a nossa
felicidade, é a glorificação de Deus.
Quem vive, assim, na reta intenção de
glorificar a Deus, procura subir de contí­
nuo, e como sente a sua fraqueza, firma-se
na força divina: eis a confiança que tudo
pode, até chegar ao cume do Alverne.
Nós recebemos o mandato de “sermos
perfeitos, como é perfeito o Pai do céu”;
ora, onde se encontrará essa perfeição? não
na planície, certamente, mas lá no alto, sem
dúvida; ambição de toda alma grande. Mas
se Deus nosso Senhor quer que subamos,

82
ele deve nos ajudar eficazmente; é grande a
nossa fraqueza.
Confiança, pois, confiança sem limites;
digamos, de modo novo, como s. Francisco,
•quando se converteu: Pai nosso, que estais
nos céus... E dele esperemos tudo.

c) Outro meio importante para evitar


quedas é a familiaridade com os santos.
Andemos com eles e havemos de subir. O
seu exemplo de sacrifício e de elevação há
de exercer uma influência benéfica em toda
a nossa vida.
O seu exemplo nos há de arrastar para
as alturas. Eis o verdadeiro sentido da ve­
neração dos santos.
i Familiarizemo-nos com um santo Antô­
nio, cuja vida foi de ascensão em ascensão,
e nos há de levar para o alto. Conheça­
mos bem uma Isabel da Hungria, um Boa-
ventura, um Leonardo, um Bernardino, um
Ludovico... e tantos e tantos outros, an­
tigos e modernos, cujas vidas, forçosamen-
te, nos farão subir.
6* 83
0 exemplo é muito na vida. Nós preci­
samos nos rodear de bons exemplos, en­
cher-nos de bons exemplos, animar-nos
com bons exemplos, fortificar-nos com
bons exemplos. Eles operarão milagres.
Mas, sobretudo, andemos com são Fran­
cisco, nosso irmão, nosso pai, nosso modelo
e mestre. Que luz a sua vida pode derra­
mar em nossa vida! Seja o nosso grande
companheiro de toda hora: na contempla­
ção e na atividade, na alegria e na tristeza,
sempre. A seu lado, quem cairá?
E não nos esqueçamos de que os santos
de Deus, além de modelos e guias, são
intercessores poderosos. Amá-los e imitá-
los é tornarmo-nos dignos de sua valiosa
e necessária intercessão.
E será necessário lembrar a francisca-
nos que desejam, sinceramente, subir, evi­
tando quedas, os nomes sacratíssimos de
José e de Maria?!

d) Finalmente, para evitar quedas nesta


ascensão gloriosa, necessário é que tenha­
mos uma devoção grande, profunda, ínti-

84
ma, perseverante ao divino Espírito Santo.
E’ um meio que resume todos os outros.
Devoção de toda hora, de todo momento.
O Espírito Santo é luz, é força, é sabe­
doria, é prudência, é fogo, é fervor, é paz,
é alegria...
Escrevia o cardial Mercier: “quem é
guiado pelo Espirito Santo, alcança alturas
maravilhosas na santidade”.
O Espírito de Deus, por sua natureza,
procura os cimos; o espírito do mundo, o
que é baixo...
Ponhamo-nos sob o seu influxo divino.
De manhã, à noite, no princípio das ações
mais importantes do dia, invoquemos o Es­
pírito santificador.
Usando estes meios, tenhamos a certeza:
não havemos de cair, mas a nossa vida será,
apesar de tudo, uma contínua ascensão
para Deus.
xrv
£ . :

NAS FONTES
DAS AGUAS VIVAS

papel importante que a água pura e


^ boa representa, em uma ascensão, não
é necessário encarecer.
A sede que Jesus Cristo manifestou, sen­
tado à borda do poço de Jacó, é uma rea­
lidade humilhante e um símbolo consola­
dor. “Mulher, dá-me de beber”. Esta pa­
lavra comovente se tem repetido, em todas
as línguas e sob todas as formas, através
dos séculos...
No deserto, já havia sido esta a grande
tortura do povo eleito, que peregrinava
para a terra prometida. Deus nosso Senhor,
compadecido, vendo que, debaixo da sede
corporal, se escondia outra, muito mais an­
gustiante, mandou que Moisés fizesse o
milagre, e do rochedo bruto jorrou, em
abundância, uma água cristalina. Só assim
puderam chegar ao país da promissão.

86
Lá no cume do Calvário, Jesus Cristo, em
seus últimos instantes, confessa o seu gran­
de martírio, quando exclama: “Tenho
sede”, merecendo-nos, assim, por essa tor­
tura atroz, a graça de encontrarmos, na
subida penosa para a nossa perfeição, fon­
tes de águas vivas, onde nos dessedentar.
E tinha que ser assim mesmo. Pois ele
beatificara as almas sedentas: “Felizes os
que têm fome e sede de justiça” (Mt 5,
6)... prometendo-lhes o refrigério. “Quem
tiver sede, que venha a mim e beba”
(Jo 7, 37).
Então se compreende a palavra de
Isaias (44, 3): “Derramarei água em abun­
dância sobre quem tiver sede”. Não mor­
reremos, não cairemos, desfalecidos, sobre
as rochas do caminho. Aquele que diz “ser
o Alpha e o Omega”, acrescenta :“Eu darei,
gratuitamente, da água da vida a quem
quiser beber” (Ap 21, 6).
E nós pensamos na alegria imensa de
s. Francisco, quando, à hora de comer o
pão da esmola, sentava-se, com seus com­
panheiros, à beira de algum regato de
águas frescas, e todo se comovia, não sa- ,

87
bendo como agradecer à Providência divina
que lhe dava aquele lauto banquete: o pão,
imagem do outro pão, corpo de Cristo, e
a água casta, imagem da graça, que lhe
era dada em abundância, graça que sem­
pre foi a bebida dos santos.
Como tudo isso é consolador para quem
deseja subir! Não percamos tempo, imagi­
nando se chegaremos ao cume ou se des­
faleceremos no meio da ladeira. Nada nos
falta. Eis diánte de nós as fontes das águas
vivas. Bebamos.
Jesús Cristo nos anima mais uma vez:
“Quem beber da água que eu lhe der, nun­
ca mais terá sede; pois a água que eu lhe
darei, virá a ser nele uma fonte de água
que jorre para a vida eterna'f (Jo 4,. 13).
Duvidaremos ainda? Bebamos. E subi­
remos. E nossas forças nos sustentarão
até ao fim.
Senhor, dai-nos de beber...
XV

OS SACRAMENTOS
QUOTIDIANOS

CT sete fontes maravilhosas brotam, gene­


rosamente, aos nossos olhos: são os
sete sacramentos; quem deles se aproveita,
nas intenções de Cristo, mais cedo ou mais
tarde, estará lá no cume bem-aventurado.
Náo há dúvida alguma.
Mas olhemos apenas para os dois sa­
cramentos que nos acompanham a vida in­
teira, e aos quais podemos recorrer, sem
maior dificuldade, em qualquer tempo, todo
dia mesmo.

a) A nossa confissão, ou mensal, ou se­


manal, que fonte de graças! E’ o sangue
de Cristo que purifica, que desapega a
alma de suas misérias, que a fortalece, que
a inebria.
Como a alma se sente leve, desimpe­
dida, bem disposta para subir, galgar al­
turas esplêndidas! E’ um dos efeitos da
confissão bem feita. Confirmado por to-

89
dos os que se aproximam dessa fonte pro­
digiosa, com as devidas disposições.
Quando s. Francisco penitente, em ora­
ção de lágrimas, recebeu a revelação de
que seus pecados todos lhe estavam per­
doados, sentiu em si tal alegria e entusias­
mo que toda altura lhe parecia atingível.
Sonhou, então, com o amor de serafim e
com o sofrimento de mártir. E este sonho
ele o realizou plenamente: tornou-se um
serafim chagado. Não podia subir mais
alto.
, Não ^recebemos revelação do céu que
nossos pecados, antigos e recentes, nos es­
tão perdoados; mas a fé nos poderá dar
testemunho, em nossa alma, de que nós
fizemos tudo para nos purificar, lavando-
nos no sangue do cordeiro.
Este testemunho interno nos invade de
uma grande paz. Sabem-no todos, por ex­
periência própria. E não há disposição mais
feliz para qualquer empresa nobre do que
a paz da alma.
Aproveitemo-nos, pois, do manancial ri­
quíssimo do sacramento da confissão. Be-
bamos nele, a largos sorvos, o sangue di-

90
vino, que vem purificar, melhorar, trans- •
formar o nosso sangue fraco e corrompido.
Passando pelo nosso coração, o faz bater
num ritmo perfeito, quanto possível, com o
coração de Jesus Cristo. Eis por que os
santos, as almas fervorosas, perseveraram
nessa escalada heróica da perfeição.
Quem não conhece a história comovente
da confissão de três dias, de Eva Laval-
lière? Foi o começo de uma vida sublime.
Depois, a confissão frequente, concienciosa,
a mantinha em suas santas resoluções, ape­
sar de todas as dificuldades.
A confissão é a coroa da humildade.
Como fica bem, portanto, na alma do fran-
ciscano. Humildade, sinceridade, dor, lá­
grimas, ao menos do coração, energia e
coragem, espírito de penitência, eis o que
a confissão bem feita desenvolve em nós.
E, com estas forças, quem não subirá?
Achegucmo-nos, pois, com regularidade,
ao menos de mês em mês, desta fonte de
água viva, lembrando-nos dos cinco pontos
para uma boa confissão (exame de con-
ciência, arrependimento, bom propósito,
acusação e satisfação) que bem nos pode-

91
riam simbolizar as cinco chagas de Cristo,
jorrando sobre nós o sangue preciosíssimo.
E, reconfortados e pacificados, havemos de
subir.

b) Mas há outra fonte mais preciosa e


mais fecunda ainda: é a fonte eucarística.
Que não somente nos oferece o líquido re­
frigerante, mas se oferece a si mesma, in­
teiramente. Então é que, de um modo per­
feito, se verificam as palavras de Jesus
Cristo: “...pois a água que eu lhe darei,
virá a ser nele uma fonte de água que jorre
para a vida eterna” (Jo 4, 13).
“Quem tem sede, venha a mim e beba”
(Jo 7, 37). Que coisa horrível não compre­
ender ou não ouvir esta palavra miseri­
cordiosa de nosso Senhor! Que coisa hor­
rível atirar-se, sequioso, no meio do cami­
nho, ao lado de água tão abundante!
A história de Elias se vem repetindo
através dos tempos. O profeta, cheio de
temor, cansado, desanimado em sua ascen­
são, sentou-se à sombra do junípero e
adormeceu, indolentemente, desejando mor-

92
rer. Mas o Senhor usou cie misericórdia
para com ele. Enviou-lhe um anjo que, tra­
zendo-lhe do céu um pão e um vaso d’água,
o despertou dizendo: “Levanta-te e come:
porque ainda tens que caminhar muito”
(3 Rg 19, 7). E a Sagrada Escritura acre­
scenta para nosso ensinamento e anima­
ção: “Tendo-se Elias levantado, comeu e
bebeu, e com o vigor daquela comida, ca­
minhou quarenta dias e quarenta noites, até
ao monte de Deus, Horeb”.
Como tudo vem a propósito nessa narra­
ção, para despertar a nossa fé na força
desse alimento maravilhoso! Não é a nossa
história? Quanta vez, sem coragem, dei-
tamo-nos a dormir, vergonhosamente, à
sombra de nossas comodidades, e pedimos
a morte para fugirmos à dificuldade da
ascensão ao nosso Alverne?! Então Deus
manda o seu anjo: um sacerdote, um ami­
go, um bom exemplo, um livro, uma ins­
piração... E o anjo nos diz: Levanta-te,
come, bebe... tens que caminhar, tens
que subir.

93
São felizes aqueles dos quais se pode
dizer: “levantaram-se... e, na força dessa
comida e dessa bebida, puderam alcançar,
depois de uma ascensão penosa, o cume da
montanha de sua perfeição”. Felizes!
E não é isso o que queremos? Saibamos,
portanto, rodear o altar santo, saibamos re­
ceber a eucaristia, que é comida, que é be­
bida.
“Quem come deste Pão, viverá eterna-
mente,t (Jo 6, 59). Nós poderiamos tra-.
duzir, com a mesma verdade: “quem come
deste Pão, subirá eternamente”. Pois que
a verdadeira vida é ascensão contínua, é
subida sempre, tanto na terra como no céu;
daí a felicidade dos santos que nunca en­
velhece.
S. Francisco seráfico praticou esta dou­
trina perfeitamente. Nas paradas de sua pe­
regrinação gloriosa, nós o encontramos ou
na solidão da natureza ou na solidão dos
templos; nesses, bem pertinho da fonte pre­
ciosíssima, o santo tabernáculo, donde se
levantava com novo ânimo para galgar o
Alverne.

94
A eucaristia ficou sendo, assim, bem da
família franciscana. Quantos de nossos
santos e bem-aventurados nos são repre­
sentados com algum símbolo ou realidade
eucarística! S. Lourenço de Brindes, com
suas longas barbas brancas, mergulhado •
num oceano de luz e vida, no altar em que
celebra, parece-nos a imagem perfeita da
juventude perene que sempre tem coragem
de subir. E o jovem Pascoal Bailão, traba­
lhando, no campo ou no convento, ilumi­
nado pelo ostensório, nos ensina a vida
quotidiana, que procura, a todo instante,
na humildade, os cimos da perfeição.
Sejamos sinceros, examinemo-nos por
que não subimos. E, talvez, ouçamos a
queixa divina: “Insensatos, desprezaram a
mim, fonte de água vivai...” (Jr 2, 13).
Procuremo-la, enquanto é tempo. Apro-
veitenio-nos desse caudal inexhaurivel. A
comunhão mensal, ou semanal, ou diária.
A santa missa. O tabernáculo silencioso
durante o dia. As bênçãos do Santíssimo. A
hora santa.
Quem se queixará de não poder subir?!

95
Os santos se compadecem de nós, em
nosso desânimo e tristeza, em nossa indo­
lência, pois as fontes de água viva estão ge­
nerosamente à nossa disposição. A nossa
subida poderia ser tão jubilosa! Se, ape­
nas, quiséssemos ouvir a palavra do pro­
feta: “Bebcreis, com alegria, as águas das
fontes do Salvador!” (Is 12, 3).
XVI
1“

O GRANDE IMPULSO

I ouvado seja Deus, que estamos subindo


*“"de verdade. Quem chegou até aqui, su­
biu, não há dúvida. Hóuve esforço. Já não
está na planície de sua indolência, de sua
tibieza, de suas comodidades. Quem che­
gou até aqui, já andou meio caminho, para
alcançar o cume beatificante.
Refrigerados nas fontes das águas vivas,
temos vontade de subir, parece-nos que
jamais nos faltará o ânimo para a esca­
lada dificil, mas gloriosa.
Cuidado, porém! Jeremias nos adverte
► que muitos "desprezaram as fontes de
águas puras e cavaram para si cisternas
imundas”.. E, em outro lugar: “os que co­
miam delicadamente morreram nos cami­
nhos, os que se nutriam entre púrpuras,
abraçaram o esterco” (Treno IV. 5). Não
confiemos, pois, nas boas disposições do
momento. Estejamos, sempre, de sobreavi-
Subida — 7 97
so, procurando acumular forças e energias
para as fraquezas possíveis. Esforcemo-nos
para que as nossas disposições interiores
sejam tais, que sintamos sempre sede pe­
las águas vivas, e a força necessária para
procurá-las.
Esta disposição interior, que nos faz sus­
pirar, de contínuo, pelas alturas, e que nos
dá coragem para abraçar os meios que a
elas nos conduzem, se consegue pela ora­
ção. E’ o grande impulso para a nossa
ascensão quotidiana ao monte Alverne.

E nós nos queixamos de que não sabe­


mos rezar; queixamo-nos*de nossas distra-
çoes de nossas dificuldades. Parece-nos
que morreremos sem conhecer esta arte tão
sublime e tão necessária, da verdadeira
oraçao.
Mas sejamos sinceros: já nos esforça­
mos, verdadeiramente, para rezar bem? Ou
nos lembramos de que a oração é coisa di­
fícil, só para nos queixar e desculpar? E
se nos esforçamos, não será apenas no ato
mesmo da oração? não nos esquecemos,

98
facilmente, de que, se a vida é reflexo da
oração, a oração é também reflexo da vida?
A terra produz o que se semeia. E o
agricultor, desejoso de colheita abundante,
prepara o solo cuidadosamente. Ninguém
pensa que possa haver flores e frutos, sem
arbusto ou sem árvore, sem ramos e sem
raizes.
A oração é floração e frutificação da
vida de fé. Sem esta, é inútil esperar por
aquela.
Para nós, franciscanos, deveria ser na-
turalíssima, espontânea, a oração íntima,
perfeita. Pois a vida franciscana verdadei­
ra é de molde a deixar a alma apta para
se elevar nas asas da oração. Eis por que
nós vemos Francisco, o santo patriarca,
“todo transformado em oração”, como es­
crevia, deliciosamente, s. Boaventura. Eis
por que todos os seus primeiros discípulos
foram homens de verdadeira oração. Os
templos eram acanhados para eles, por isso
souberam, pelo seu espírito de fé e pie­
dade, transformar toda a natureza em um
templo imenso, onde pudessem orar conti­
nuamente a Deus nosso Senhor. — Es.
7* 99
Francisco, tendo duvidado, seriamente, se
devia trabalhar ou somente rezar, quando
venceu a dúvida deixou a seus verdadeiros
filhos, através dos séculos, como herança,
uma inclinação e gosto pronunciados para
a vida contemplativa. Surgiu, assim, com
Francisco, toda uma legião de almas oran-
tes, de almas místicas, dispostas a guarda­
rem, pelos tempos em fora, apesar de to­
das as dificuldades internas e externas, a
valiosa herança paterna: o espírito de ora­
ção. “Ao qual, como escreve o legislador
seráfico, devem servir todas as coisas tem­
porais” (Regra).
Surgiram assim os Boaventuras, os An-
tonios, os Ãngelos, as Claras e Verônicas,
as Isabeis e Humilianas, as Ângelas e Mar­
garidas, os Luquésios e os Talbots, os Lu-
dovicos e os Mercier. São de todas as ida­
des e de todas as classes, de ambos os
sexos e de todas as posições, mas dando
todòs, de modo edificante, o mais belo
exemplo da vida profunda de oração fran-
ciscana. E quanto maior atividade desen­
volvem, como um Solano ou um Lourenço
de Brindes, mais se entregaram ao santo

100
exercício da oração silenciosa, tão esqueci­
da, e nós vemos com que tristes consequên­
cias, pelos “apóstolos” modernos.
Sejamos filhos de s. Francisco verdadei­
ros, filhos da oração, e sentiremos o grande
impulso que, quasi sem trabalho nosso, nos
colocará bem alto. Seremos daqueles dos
quais fala a Imitação de Cristo “que são
movidos pela graça de Deus”, que andam,
quasi sem experimentar fadiga.
XVII

VIDA DE ORAÇÃO

lUjas convençamo-nos de uma vez para


* lsempre, para acabar com toda a ilusão:
• é inútil, é tempo perdido, é coisa impossí­
vel ter seus momentos ou suas horas de
verdadeira oração, sem procurar ter vida
de oração.
O homem de ciência é homem de ciência
sempre, ainda quando não está com seus
livros. O artista é artista sempre, ainda
quando não tem o pincel ou o cinzel em
suas mãos; ele pensa como artista, fala
como artista, age como artista, vive como
artista. O soldado não é soldado só no
tempo da guerra; ele é soldado sempre, todo
o seu modo de vida, toda a sua educação
tende para isso. E nós queremos ser ho­
mens de oração só quando estamos rezando
o nosso Padre nosso, ou assistindo à nossa
missa, pensando que oração e vida são coi­
sas à parte? E’ impossível. Daí as nossas

102
dificuldades, as nossas distrações, as nos­
sas queixas.
Se queremos, portanto, aprender a rezar,
não é necessário, nem mesmo possível, que
rezemos sempre, mas é necessário e bem
possível que, ainda no meio de nossos tra­
balhos, ocupações e passatempos honestos,
vivamos sempre o espírito de nossa oração;
nem pensemos, ou digamos, ou façamos
coisa alguma que venha destruir, de todo
ou em parte, a nossa união com Deus, no
tempo exclusivamente a isso destinado, que
é o tempo da oração, seja ela vocal ou
mental, litúrgica ou particular.
Quando nós tivermos procedido assim,
concienciosamente, isto é, vivido para a
nossa oração e sob o influxo de^nossa ora­
ção, veremos como ela se transforma.
E não há vida mais própria para fomen­
tar a verdadeira oração do que a vida fran-
ciscana bem compreendida.
Pois é o orgulho, a sensualidade, o apego
às coisas terrenas, a indolência, a falta
de caridade que mais impedem o santo'
exercício da oração. Ora, nós sabemos per-

103
feitamente que tudo isso é, de todo, con­
trário à essência da vida franciscana.
O filho de s. Francisco deve ser, por for­
ça de sua vocação, humilde, mortificado,
puro, desapegado, trabalhador, caridoso;
e estas virtudes seráficas o colocam, sem
mais, na classe dos verdadeiros contem­
plativos, ainda que tomemos esta palavra
na sua significação mais sublime. A vida
de nossos irmãos, até dos mais humildes e
desconhecidos e iletrados, a começar pelo
encantador frei Gil, nos dá provas, de so­
bejo, desta asserção.
Quando Matt Talbot deixou, resoluta e
heroicamente, a bebida e, com ela, toda
uma vida indigna — ajoelhou-se para re­
zar e os céus se abriram diante de seus
olhos purificados e extasiados. E ele que
antes, talvez, apenas tolerasse um Padre
nosso sem enfado, perseverava agora, ho­
ras inteiras, de braços abertos, na mais
profunda e sublime união com Deus. En­
tretanto, Matt continuava a trabalhar como
operário, continuava a ser ignorante, con­
tinuava a ser filho do seu meio; uma coisa
só, porém, mudara completamente, a sua

104
vida já era a de um santo; a sua oração-
tinha que mudar também. E ele sentiu o
grande impulso que o colocou nas alturas.
De resto, temos a lição do divino Mes­
tre, quando afirma que “os puros verão a
Deus”. Vidas puras são vidas santas, vidas
longe do mal, do pecado, sob qualquer
forma que seja, que é uma impureza sem­
pre. Ora, afirma nosso Senhor que essas
almas verão a Deus. Somente no céu? Não,
já aqui na terra, pela fé, na oração prin­
cipalmente. Fica, assim, pois, bem clara a
relação íntima entre a vida e a oração, que
se pode chamar, sob certos aspetos, de
união com Deus,, visão de Deus.
Se tivermos compreendido bem o que
aqui fica dito, teremos sentido, sem dúvida
alguma, o grande impulso que a oração
representa para a nossa ascensão penosa.
XVIII
- - - € *- --I— ■

MEDITAÇÃO

f"\lhamos para a vida. Olhemos agora,


^para a oração em si.
Mas, como o nosso fito é, sobretudo, es­
tabelecer a nossa vida de oração, e não in-
culcar esta ou aquela forma de oração, este
ou aquele método, olhemos, apenas, para
aquilo que deve ser o centro de toda a
nossa atividade orante, que como organis­
mo, como vida, deve ter um núcleo, do' qual
ela tome forma e se desenvolva. Este cen­
tro ou núcleo deve ser a nossa meditação
quotidiana.
O nosso seráfico pai s. Francisco e os
seus primeiros seguidores não conheciam
estas leis rígidas, mais ou menos moder­
nas, de meia hora ou de uma hora de me­
ditação, com a sineta tangida para prin­
cipiar e para terminar, com a leitura de um
ou mais pontos, com afetos e propósitos
previamente formulados, e, o que é tortu-
106
, rante, com a leitura em comum, e, o que
6 peior ainda, leitura feita aos pedaços,
para a gente ir pensando aos poucos, nos
intervalos silenciosos.
S. Francisco teria tido acanhamento de
prescrever assim uma meditação. Como?!
será preciso impôr que meditem àqueles
que amam? Quem ama pensa no seu amado
e em tudo o que lhe diz respeito.
%
E os verdadeiros franciscanos meditavam
por toda parte: nas igrejas das cidades e
nas capelinhas dos campos, nas estradas e
nos bosques, nas celas e no trabalho. Os
pontos para as suas meditações, eles os
achavam na natureza, nas pregações que
' ouviam, no ofício divino, nos textos da san­
ta missa, no crucifixo, no tabernáculo, na
própria alma. Que é que lhes faltava? E
quem se admira que eles tenham subido
tanto?!...
Oh! se nós fôssemos assim! Se o amor
seráfico nos ensinasse a meditar. Como su­
biriamos depressa! Se o nosso fervor não
procurasse tempo nem lugar, mas nos le­
vasse à meditação por toda parte! Então
seríamos contados entre os verdadeiros fi-

107
lhos de s. Francisco, que realizavam a sua
vocação ao Alverne.
Mas, enquanto nós não atingimos a
esta perfeição, temos que nos sujeitar a
certa disciplina, quanto ao horário, e a
certo método, quanto ao modo.
Não nos prendamos, porém, demasiada­
mente a sistemas. Saibamos conservar a
santa liberdade franciscana. Nada de for­
malismos. Seja viva a nossa meditação.

Consignemos aqui, entretanto, um modo


. facílimo de meditar, que, sem pedantismos,
leva a alma às formas mais sublimes da
oração, sem tolher sua liberdade e suas
iniciativas particulares, sem também impe­
dir a moção suavíssima, mas sensível, do
divino Espirito Santo. E’ método que deixa
grande margem para todas as manifesta­
ções sobrenaturais do alto e para todos os
anseios santos cá da terra.
Resume-se o pequeno método (1) na
palavra Amor, que deve ser o princípio, o
meio e o fim de toda a meditação.
1) Cfr. Devotionale a D. G«rmano Prado col-
lectum atque dígestum — apud Marietti — Taurini.

108
As quatro letras da palavra citada nos *
lembram as quatro partes principais de uma
verdadeira meditação franciscana.
Exemplifiquemos. Vamos meditar sobre
a palavra do santo patriarca, “o Amor não
é amado”.
O a nos lembra a adoração, despertando
a nossa fé na presença de Deus, o que é
importantíssimo para o nosso recolhimento.
O m nos lembra a meditação propria­
mente dita ou reflexão sobre o tema esco­
lhido; no caso, quem é o Amor? quanto ele
nos amou? que provas nos deu do seu
amor? e quão pouco amor ele encontra nas
criaturas? injúrias, desprezos, blasfêmias,
esquecimentos, ingratidões, friezas, negli­
gências...; quão poucos amigos verdadei­
ros?! quantos Judas e Pilatos e fariseus?
os santos o amaram; como se distinguiram?
que santos falam mais do Amor? como pro­
vavam eles o seu amor? (e podia-se fazer
esta reflexão de muitos outros modos, bem
diversos).
O o nos lembra a oração, isto é, os afe­
tos ou colóquios com nosso Senhor, a alma
conversa com ele; no caso, como eu qui-

109
scra amar-vos muito e muito, quisera re­
parar os anos em que não vos amei, quisera
ser s. Francisco, quisera ser um serafim
para vos amar sem descanso, etc., etc.
O t nos lembra a resolução que deve­
mos formular: no caso, quero amar-vos,
Senhor, evitarei toda falta no dia de hoje,
principalmente esta ou aquela, ou quero,
durante o dia, fazer muitos atos de amor,
etc. Tudo isto, é claro, deve brotar espon­
taneamente da alma, tanto a meditação,
como os afetos e resoluções.
E se estivermos cansados, muito preocu­
pados com alguma coisa, lutando com as
distrações e aridez, seguremos, então, um
livro, e vamos lendo-o devagarinho, com
pausas, entremeadas de jaculatórias, e ha­
vemos de despertar, assim a nossa aten­
ção, devoção e fervor.
A meditação quotidiana, alma de nossa
liturgia, de nosso ofício, de nossa vida de
oração, deve ser feita, custe o que custar.
O resultado consolador não se fará esperar.
O impulso dado nos porá quasi lá no
cume.

110
Razão tinha o salmista-rei, quando pedia
a nosso Senhor que “sua oração subisse
como incenso, diante dele” (SI 140, 2). Ele
pedia a graça da oração perfeita, certo de
que,' quando a oração sobe, sobe também a
alma orante.
Façamos o mesmo pedido, em união com
s. Francisco seráfico e com toda a multi­
dão de almas contemplativas, únicas que
honram o pai, e que o vêm seguindo atra­
vés de 7 séculos. r
E com ele e com elas, chegaremos, ale­
gres, ao topo da montanha santa.
XIX
grgr^--
_ -jzrsz

GARANTIA DE ÊXITO

pstamos em um capítulo de luz intensa.


^Mas cheio de dificuldades. Pois estamos
no capítulo do amor. E amor é luz. Mas
luz que só se consegue pela destruição de
muita coisa.
0 amor é um só. Duplo o seu objeto:
Deus e o próximo. O amor que olha para
o próximo é a caridade universal. Não se
opera num plano só; tem seus altos e bai­
xos, olha para a direita e para a esquerda,
eleva-se, inclina-se... alarga-se, alonga-se...
Sem este amor, é impossível a subida.
Mais ainda: este amor universal é que é
a garantia do êxito.
Pois subimos acompanhados. Olhando
ao redor de nós, veremos a multidão de
outros que também querem subir. Veremos,
ao menos, a multidão imensa daqueles que,
contrariados ou não, jornadeiam em de­
manda de algum lugar... Esta visão Iem-

112
bra o problema importantíssimo, cuja so­
lução tem que ser o amor, abrindo-se ge­
neroso, para todos os lados, em ondas que
sobem e descem, sem desprezar a nin­
guém.
Eis a caridade de Jesus Cristo, que nos
faz dizer a cada um de nossos compa­
nheiros, ou que sobe com ânimo ou que
corre loucamente ou que jaz na indolência:
“tu és o meu próximo, tu és o meu irmão”.
E se agirmos de acordo com está pala­
vra evangélica, teremos resolvido a grande
dificuldade, que é, entre outras, a que mais
impede os homens de subirem.
E’ edificante ouvir com que instância as
almas místicas nos lembram esta verdade:
quanto mais subimos, mais descemos para
junto de nosso próximo; a contemplação
não nos isola, une-nos a nossos irmãos;
das alturas da montanha é que se desco­
bre a miséria da planície; quanto mais al­
guém se aproxima de Deus, mais se apro­
xima também de seus semelhantes; uma
prova autêntica do amor de Deus é o amor
do próximo, pois que o amor universal se
transforma no amor singular.
Subida — 8 113
Estes princípios luminosos de um Boa-
ventura ou de um Bernardino de Sena ou
de qualquer outro franciscano, temos que
reduzi-lo à prática, se não queremos parar
a meio caminho ou nos despenhar pela
montanha abaixo.
A quantos, que sonhavam com uma
ascensão, a falta do amor fraterno os preci­
pitou na planície vergonhosa!
E tem que ser assim mesmo. Pois Jesus
Cristo, o divino mestre, declarou solene­
mente que o sinal distintivo de seus discí­
pulos é um (e só os seus verdadeiros di­
scípulos podem subir): o amor recíproco,
sincero, perseverante, ativo, sobrenatural,
universal.
ET tão clara a doutrina do Evangelho
neste ponto: “Nisto reconhecerão todos que
sois meus discípulos, se vos amardes uns
aos outros”. — “Eu vos dou um novo man­
damento, que vos ameis uns aos outros,
assim como eu vos amei”.
E amar não só os nossos parentes, ami­
gos, os que nos são simpáticos, mas amar
até (isto é, não desejar mal, fazer-lhes o
bem, quando possivel) os que nos prejudi-
114
carn, os nossos inimigos e perseguidores,
retribuindo o mal com o bem, apresentando
a face esquerda a quem nos bateu na di­
reita, oferecendo o manto a quem nos es­
poliou da túnica, andando três mil passos
com quem nos exigiu apenas mil. Como
tudo isso é difícil, heróico! Não há dúvida.
Mas tudo isso é o Evangelho.
E o Evangelho ainda nos lembra que
encontraremos pecadores e criminosos em
nosso caminho; é preciso perdoar-lhes, di­
zendo-lhes uma palavra de paz. Encontra­
remos aleijados e leprosos; é preciso con-
solá-los e curá-los, se fôr possível. Encon­
traremos nus e maltrapilhos; é preciso ves­
ti-los. Encontraremos mortos; é preciso se­
pultá-los. Encontraremos famintos e se­
dentos; é preciso dar-lhes pão e dar-lhes
água. Encontraremos doentes e encarcera­
dos; é preciso visitá-los...
A todos esses e a muitos outros irmãos
da pobreza e do sofrimento, Jesús Cristo
chama seus embaixadores, seus enviados,
seus representantes.
E de tal modo o divino Mestre quer que
tomemos a sério esta representação ou dis-
8* 115
farce divino, que diz que tudo o que fizer­
mos ao menor, ao mais fraco, ao mais in­
digente, miserável e sofredor, é como se a
ele mesmo o fizéssemos.
Eis a mais sublime consagração do amor
fraterno, diante da qual não podemos pas­
sar indiferentes: é necessário tomarmos
uma posição.
A posição é uma só: mãos postas, olhar
para o alto, exclamando, com sinceridade:
“Pai nosso...”. Mas se é Pai de todos
nós a olhar para os lados, para todos os
homens, exclamando: “Vós todos, meus ir­
mãos. ..”.
Esta posição nos põe quasi no cume da
montanha santa. Pois “quem ama o seu
irmão, cumpriu a lei”.
Agora compreendemos por que tão pou­
cos sobem; agora compreendemos por que
há tantos anos marcamos passo ao sopé
do monte, ou pouco mais acima. Sem a
caridade perfeita, desinteressada, perseve­
rante, não se pode pretender as alturas da
perfeição.
Por isso s. João Evangelista, que subira .
tão alto até reclinar a cabeça no peito do

116
divino Mestre, não se cansava de aconse­
lhar, nos seus últimos anos, aos seus discí­
pulos caríssimos, desejosos de1 subirem:
“Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros7’.
E quando os discípulos, cansados de ouvi­
rem sempre o mesmo ensinamento, pergun­
tavam ao mestre por que não variava de
tema, tiveram como resposta: “porque, se
vos amardes mutuamente, só isto bastarei”.

A caridade, a caridade! O amor verda­


deiro, o amor fraterno! Não alimentemos
nenhuma esperança ou ilusão de subirmos
sem este sinal do Mestre. E’ o ingresso, ru­
bricado com o sangue divino; sem ele, não
se passa, não se sobe... Eis a força do
amor universal.
Sim, não nos iludamos. A caridade, que
nos dá direito de subir, é descrita por s.
Paulo, na sua carta aos coríntios — quan­
do escreve que “a caridade é benigna, é
paciente; não é invejosa; não obra levia­
namente; não se ensoberbece; não é ambi­
ciosa, não busca os seus interesses, não
se irrita; não suspeita mal; não folga da
injustiça, mas alegra-se com a verdade;

117
tudo oculta, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta...”. Que programa rico!
E* necessário estudá-lo, examiná-lo, para
não andarmos errados. E’ necessário con­
frontá-lo com a nossa vida, para que no
fim não sejamos obrigados a confessar
tristemente que demos grandes passos, mas
fora do caminho; andamos entre mil fadi­
gas, mas não subimos. Que coisa horrível,
uma decepção assim, e quando já não hou­
ver possibilidade ou esperança de voltar
atrás!...
XX

CARIDADE FRANCISCANA

Mão andamos sozinhos. Não podemos,


portanto, fechar os olhos, egoisticamen-
te. E’ necessário olhar para os que nos ro­
deiam; olhar, contemplar, refletir, lembran­
do-nos de Cristo e amar para todos os
lados.
E para nós, franciscanos, enriquecidos
com uma herança legítima de 7 séculos e
admoestados e animados com doutrina e *
exemplos de nossa grande família, a reali­
zação deste programa deveria oferecer me­
nos dificuldades.
A alma franciscana, por força mesmo de
sua vocação, deve ser uma alma que ven­
ceu, ou está vencendo o orgulho e o egois-
mo, obstáculos principais para a verdadei­
ra caridade. Sendo ela humilde, sendo ge­
nerosa e desprendida, é tão facil amar, no
sentido do Evangelho!

119
Eis por que são Francisco subiu tão de­
pressa e tão alto e levou consigo tantas e
tantas almas que sentiram o calor de sua
caridade e viram a força do seu exemplo.
Nenhum santo, talvez, realizou melhor
do que ele a idéia da fraternidade, ensi­
nada por Jesus Cristo. Para o serafim cha­
gado, todos eram irmãos. E este titulo for­
moso, ele o usava prodigamente. Era o
“irmão leproso”, o “irmão verme”, o “ir-
mão ladrão”, as “irmãs cotovias”, os “ir­
mãos pobres”, os “irmãos menores”, os
“irmãos imperadores e reis”, os “irmãos
mendigos e desprezados”, os “irmãos letra­
dos e os ignorantes”, os “irmãos prelados
e senhores”... E todos, percebendo que
esta palavra não era vazia de sentido, mas
que vinha exuberante de caridade, de amor,
sentiam vontade de subir com ele a monta­
nha da santificação.
E’ o caso do poeta que ouvindo de Fran­
cisco a palavra “irmão”, num tom suavís­
simo de sinceridade, deixou de cantar para
a terra e começou a cantar só para o céu.

120
E’ o caso dos ladrões, a quem Francisco,,
numa prodigalidade de afeto, chamou de
“meus irmãos”, dando-lhes pão e queijo;
comoveram-se a tal ponto aqueles homens
rudes, com aquela linguagem nova, que,
mudando de vida, se tornaram verdadeiros
irmãos de hábito do Poverelo. E começa­
ram a subir.
Como Francisco, os seus verdadeiros di­
scípulos souberam olhar ao redor de si,
onde descobriram irmãos numerosos a quem
amaram sem medida.
Entre todos, aparece Isabei da Hungria.
a santa de cora.cão
* imenso e de mãos aber-
tas e de horizontes vastos, para dar por
toda parte. Ela soube olhar e soube desco­
brir os mais miseráveis irmãos de Cristo,
que esperavam a sua caridade, o seu afeto.
E, o que é mais dificil, soube perdoar os
seus próprios parentes que lhe moviam
guerra, perdoar-lhes para os amar. Admi­
rável existência, tecida de amor heróico.
Alas o resultado nós o sabemos: com pouco *
mais de vinte anos de idade, estava no
cume glorioso do monte Alverne.

121
Convençamo-nos: a garantia da nossa
ascensão está no amor que tivermos para
com o nosso próximo; amor no sentido do
Evangelho.
Fechemos os olhos para rezar. Mas
abramo-los bem para encontrar o nosso ir­
mão, seja ele branco ou preto, sábio ou
idiota, rico* ou pobre (ele está por toda
parte) e, encontrando-o, saibamos amá-lo.
Com santo orgulho, devemos olhar para
este aspeto da nossa vocação na hora pre­
sente, tão trabalhada de desuniões e de
ódios, de guerras e de destruições. Como é
sublime a nossa missão: ter um amor largo
como o mundo, e comprido como a nossa
vida inteira!... E, subindo, elevar também
o nivel moral da humanidade.
Daremos muito, se dermos tudo. E dare­
mos tudo, se dermos a nós mesmos, ainda
que transformados apenas num pedaço de
pão, mastigado pelos homens.
Amemos, amemos!... O Alverne será
nosso. E quanto mais amarmos, mais for­
ças teremos para subir, apesar das de-

122
cepções e ingratidões que não faltarão, por
graça de Deus, para purificar o nosso
amor.
Guardemos esta palavra: a garantia do
êxito é o amor fraterno. Só ele nos dará o
direito, selado com as chagas de Cristo e
do seráfico pai s. Francisco, de subirmos
até ao fim.
XXI

AMOR! O’ AMOR DIVINO!

ge o último capítulo já foi de luz intensa,


porque nos lembra a obrigação do amor
que olha para o próximo, que luminosidade
esplêndida possuirá este, que rios lembra a
obrigação do amor que olha para Deus?í
Amar a Deus, em verdade, é subir com a
rapidez da flecha, até aos mais altos pín­
caros da montanha santa. Amar a Deus, em
verdade, é levantar, lá bem em cima, a sua
tenda tranquila, e nela gozar as doçuras da
união seráfica, na beleza de uma paz ín­
tima, perfeita.
O amor é fogo que não só purifica, mas
que consome tudo o que desagrada o olhar
divino. Por isso, ver uma alma abrasada é
ver uma alma purificada. Ver uma alma
que ama é ver uma aliria que corre, que
sobe, que voa e que repousa em Deus nosso
Senhor. Ver uma alma que se entregou ao

124
amor divino, é ver uma alma que compre­
endeu a sua mais elevada missão e para ela
se aprimora, todos os dias, na paciência,
na abnegação, no amor do próximo. Ver
uma alma que se consagrou inteiramente ao
Amor dos amores é ver quasi um anjo, um
serafim em forma humana.
E dizer que nós não somente podemos
aspirar a estas alturas, mas que até somos
obrigados, por um preceito formal, insis­
tente, da parte de nosso Senhor, a amá-lo,
“com toda a nossa alma, com todo o nosso
entendimento e com todas as nossas for­
ças”. '
Que horizontes dilatados se abrem dian­
te de nós, ao ouvirmos este preceito lumi­
noso! Temos direito de desejar tudo, de
tudo esperar. Não há elevação da qual se
deva dizer: é demais para mim. Não, nós
podemos até sonhar com um Alverne todo
em chamas de amor. Não o conseguimos,
infelizmente. Mas poderiamos conseguí-lo,
se realizássemos o preceito divino "com
toda a nossa alma, com todas as nossas
forças”.

125 ,
Mas o esforço sincero já nos faz subir;
pois já ama, de certo modo, quem procura
amar.
Compreende-se, assim, por que foi jus­
tamente lá sobre o Alverne que Francisco,
em lágrimas, pediu ao céu “que ele sentis­
se, se fosse possível, o mesmo desmedido
amor, em qtie se abrasara o Coração de
CristoE’ que ele já sentia, sem dúvida,
o fogo a despertar sob as cinzas da peni­
tência heróica.
Do amor de Deus se pode dizer, em ver­
dade, que só o deseja quem já o possue,
ao menos em fagulhas. E quanto mais se
avolumam essas fagulhas humildes, mais
cresce o desejo de que elas se tornem la­
bareda intensa.
Alma feliz, que sen-tiu essa tortura ine-
briante: em breve, ela estará no cume da
montanha, a cantar com os serafins cru­
cificados e chagados.

Não há contradição alguma nessa ex­


pressão última. E, sim, harmonia perfeita.
Pois que a dor é prova de amor, e o amor
é a floração da dor.

126
Por isso todos os santos misturavam os
anseios da dor com os anseios do amor:
queriam sofrer porque queriam amar, e
queriam amar porque deviam sofrer.
E’ este amor divino que ditou as mais
belas páginas da literatura religiosa: ver­
dadeiros poemas, inspirados pelos anjos, e
que elevam a nossa alma para as coisas do
alto, fazendo-as desejar o gozo de uma
centelha, ao menos, do verdadeiro amor.
Subir o monte Alverne não é outra coisa
do que amar o Amor. E se nós nos demo­
rarmos em tantos outros capítulos, é que
eles são necessários para que a alma se
prepare para o ato mais sublime que ela
pode produzir: o amor de Deus.
Realmente, se tivéssemos o dom de, sem v
mais nada, acender o amor divino em uma
• alma, tudo o mais seria inútil, porque é o
amor que, em verdade, desperta a vontade,
rompe com o pecado, cria e mantém o am­
biente, desapega a alma do que é terreno,
atiça a chama do fervor penitente, evita as
quedas desastrosas, leva a alma sequiosa a
aproveitar-se das fontes das águas vivas,

127
ensina-lhe a arte sublime da oração e apla­
na o caminho da caridade fraterna.
Mas, ai! como somos fracos, como nos
arrastamos nas trevas dos nossos apegos e
ignorâncias. Eis o que torna tão longa e
penosa a subida.
Se nós compreendéssemos a definição
profunda de s. João que “Deus é Amor”, e
que só o amor o atinge, como simplifica­
ríamos a nossa ascensão dificil, e como
passaríamos uma vida aproveitada e subli­
me lá no cume da montanha.

Mas, felizmente, estamos chegando ao


fim da jornada, e, por graça muito espe­
cial do Espírito Santo, estamos compreen­
dendo que, saidos das mãos"de Deus, que
“nos omou com um amor eterno”, é só
pelo amor voluntário, generoso que a ele
voltaremos, para nele repousar.
Então rezamos com Francisco e com to­
das as almas seráficas: “Pela doce e abra-
sadora força do vosso Amor, arrancai a
minha alma, Senhor, eu vos suplico, de .
todas as coisas que existem debaixo do céu,
afim de que eu morra por amor do vosso

128
Amor, ó Deus, que por amor do meu amor
vos dignastes morrer”.
0 coroamento de nossa vocação francis-
cana depende desta oração, se nós, pela
nossa humildade e insistência, conseguir­
mos que ela se torne realidade em nossa
vida. Então veremos tudo do alto, e não
sofreremos a influência das criaturas que,
involuntária ou voluntariamente, nos afas­
tam de nosso fim. E tudo se mudará ao
derredor de nós. E nós não nos reconhe­
ceremos mais: transformados no Amor, vi- a
veremos de amor para o Amor. E’ o co­
meço da vida eterna.

Subida — 9
XXII

A LIÇÃO DO DOUTOR
SERÁFICO

Qão Boaventura, o cardial de sandálias e


^"'de hábito grosseiro, mas que dignificou
de modo extraordinário a púrpura, porque
foi o doutor seráfico, isto é, o prelado e o
mestre que amou, nos ensina que a cari­
dade que nos une a Deus nosso Senhor
deve ser insuperável, inseparável e insa­
ciável.
Insuperável é o amor que não se deixa
vencer nem pela carne, nem pelo mundo, nem
pelo demônio. Vence, pelo contrário, todo o
amor terreno, todo o amor próprio, todo o
amor mundano. Ele compreende aquela pa­
lavra de nosso Senhor que “quem ama a
seu pai e a sua mãe mais do que a Deus,
não é digno de Deus”. Ele se lembra de
que “o amor é forte como a mortê” e, as-
sim vence todas as dificuldades. O amor
verdadeiro vence a inconstância, e perse-

130
vera até ao fim. Não há nada impossível
, para o amor, que gosta de lutar, porque
gosta de vencer. Como é consolador estu­
dar, na vida dos santos, o capítulo do amor.
Foi esta força suavíssima do coração que
os tornou heróis. Não se deixavam intimi­
dar; afrontavam as feras e as grandezas. O
amor os colocava na categoria dos gigan­
tes. Para eles não havia escuridão, não ha­
via medo, não havia abismo. Lembremo-nos
de como sempre ardeu, no coração de Fran­
cisco e de todos os seus verdadeiros segui­
dores, a ambição do martírio. Quando o
seráfico patriarca ouviu a notícia do martí­
rio de seus primeiros filhos, lá no Oriente,
exclamou, jubiloso: “Agora temos verda­
deiros frades menores”. E’ que o serafim
chagado queria, em todos os tempos, filhos
cheios do amor insuperável.
Inseparável é o amor que nos une, inti­
mamente, a Deus nosso Senhor. Nada, en­
tão, dele nos separa. Nem as provações
e os sofrimentos, nem as tentações ou as
humilhações, nem as posições .e as honras,
nem as ciências ou as amizades, nem os
trabalhos e as alegrias, nem a saude ou a
9* 131
doença, nem os homens, ou os demônios,
nem a vida; nem a morte, nada nos poderá
separar do amor de Deus. Com que santo
entusiasmo dizia s. Paulo coisa semelhante!
E isto é o lado negativo. O lado positivo
muito mais consolador é o amor que nos
aproxima de Deus, que nos une a ele, nos
funde nele e nele nos transforma. E a alma
compreende, de um modo novo, a expres­
são paulina “nele nos movemos, vivemos e
somos”. A vida de Francisco é um exem­
plo de toda hora: depois de sua conversão,
desde que ele chorou o “Amor que não é
amado”, nunca mais o encontramos só; é
sempre ele com seu Deus, com seu Pai,
com seu Amigo, com seu tudo. Santa Ve­
rônica Giuliani escreve, no seu Diário ad­
mirável: “eu me sentia toda abrasada, quei­
mava sem ver o fogo; desapegava-me de
tudo, inflamando-me no amor de Deus; e
exclamava: Amor! Amor! e não podia se­
parar-me dele”.
Insaciável é o amor que não descansa,
nunca pára, nunca diz “chega” ou “basta”.
Quanto mais ama, mais quer amar. Esta é
a inquietude dos santos, mas inquietude

132
beatificante. Não se aborrecem no amor,
não se enfastiam no amor, não envelhecem
no amor. Sempre jovens, sempre moços, sen­
tem a alegria da corrida, a alegria da ascen­
são. Vidas cheias, vidas felizes. Vidas sem­
pre aproveitadas, porque sempre iluminadas
por um ideal sublime. Não perdem um só
instante, porque, a todo momento, querem
mostrar a Deus que o amam, e, assim, trans­
formam tudo em amor. E’ o trabalho, o
estudo, o repouso, o sofrimento, a alegria,
o dia, a noite, a saude, a doença, a oração
e o apostolado, tudo eles convertem em um
ato de amor, sempre mais perfeito, por­
que, com razão, nunca acham que amam
bastante a Deus nosso Senhor. Por isso
s. Francisco, no fim da vida, ainda queria
começar; nada havia feito para o Amor, e,
chorando, pedia amor, mais amor. O que
significa a luta de santa Clara pela pobre­
za "absoluta? E’ que o seu amor não se
satisfazia com alguma coisa, queria tudo:
amor, realmente, insaciável.

Subida 133
XXIII

MÍSTICA FRANCISCANA

I^xamineino-nos. Pensamos, talvez, que


amamos a Deus. Sejamos sinceros: se o
amamos em verdade, superamos tudo, nos
separamos de tudo, para nos satisfazer so­
mente nele, que é nosso tudo. Isto é amar
“de todo o nosso coração, de toda a nossa
alma, com todas as nossas forças”.
E’ só este amor que nos merecerá a gra­
ça das “tendas sobre a montanha”, que
pode ser Tabor, pode ser Calvário, porque,
para nós, é tudo isso o monte Alverne.

Mas que são todas estas pobres conside­


rações para alcançarmos a virtude mais su­
blime, a virtude do Amor?!
Não percamos tempo. Ajoelhemo-nos,
com a alma humilde e pura, e digamos, com
a seráfica Verônica: “Meu Deus, inflamai-
me, consumí-me nas chamas do vosso
amor. Amor infinito de meu Senhor, vinde

134
a mim, e eu que vos ame pelo vosso pró­
prio amor; vinde, vinde depressa, vindeI Oy
Amor, amor de meu Deus,f.
E terminaremos com esta confissão pro­
funda, vendo a nossa indignidade: “Meu
soberano Bem, vós que sois o Amor, amai-
vos por mim, porque o Amor somente è que
•pode amar o Amor”.
Agora compreendemos um pouco melhor
por que o seráfico pai derramava abundan­
tes lágrimas, dizendo: “O Amor não é ama­
do”.
Agora compreendemos um pouco melhor
as explosões seráficas da alma de Francis­
co, quando exclamava: “Tu és santo, ó Se­
nhor e Deus e único que operas maravilhas.
Tu és o bem, todo o bem, o sumo bem. Tu
és a sabedoria. Tu és a beleza. Tu és a
mansidão. Tu és a caridade, o amor...”.
Para grandes corsas somos chamados,
nós, filhos do Poverelo, irmãos dos sera-,
fins...
Subamos! Que o cume abrasado do Al-
verne está alí, bem perto... Amor! O’
amor divino! .v .

135
v.
XXIV

CRUZES, SENHOR!
MAIS CRUZES!

Cis que chegamos ao cume do monte Al-


^verne, numa caridade sincera para com o
próximo e num amor ardente para com
Deus nosso Senhor. E’ impossível subir
mais alto. O amor é o ápice da perfeição.
Estamos, portanto, em cima. Louvado seja
Deus!
Mas, se não podemos subir mais alto,
podemos .e devemos nos firmar nesses ci­
mos, que, talvez, alcançamos com tanto es­
forço. Aliás, todo o trabalho será perdido.
• E, quando menos pensamos, estaremos, de
novo, na planície facil, da qual começamos
a subir, um dia.
E como nos firmaremos nesses píncaros
beatificantes do Alverne? Há um só meio
eficaz e autêntico, ensinado por nosso Se­
nhor, e praticado pelos santos: o amor às

136
cruzes, aos sofrimentos, às humilhações, o
amor até à loucura...
A dor é o selo legítimo do amor. Quem
ama, sofre; quem ama, quer sofrer, para
provar seu amor. E a maior tortura de
quem ama é viver sem sofrimento, pelo
medo de que o bem estar e o gozo o façam
perder o amor. E com quanta razão!
E’ por isso que tão poucas são as almas
que progridem na via do amor e nela per-
severam, porque, para isso, deveríam abra­
çar a cruz, sob qualquer forma que ela se
apresente, e é o que não querem, ou para
o que não sentem coragem.
Entretanto, o Mestre divino afirmou cla­
ramente esta verdade, resumindo nelá toda
a sua doutrina: “Quem quiser vir após mim,
negue-se a si mesmo, tome às costas a sua
cruz, quotidianamente, e siga-me”.
Ir após de Cristo é sentiría sua atração,
desejar o seu amor. Mas, para que a alma
dele se possa aproximar, é necessário que
ela vá marcada com o sinal da cruz. Só,
então, o seguirá, em uma união e transfor­
mação perfeitas.

137
Compreendamos esta verdade dolorosa,
que, sem ela, é inútil todo o esforço; e todo
o estudo que tivermos empregado para
subir terá como resultado uma grande de­
cepção.
Esta é a verdade clara, para que não nos
iludamos a nós mesmos: só o amor heróico
à cruz é que nos conservará, felizes, no
* cume da montanha. Isto é cristianismo, isto
é franciscanismo, isto é santidade legítima:
amar e sofrer. E’ o resumo do Evangelho;
é a essência da vida de Jesus Cristo.
Assim foi a vida de são Francisco e de
todos os que o seguiram em verdade. Por
isso alcançaram todos as alturas do Alver-
ne, onde estabeleceram as suas tendas.
Não nos enganemos com a pretensa for­
ça moderna dos números e do movimento;
a força vitoriosa, ainda hoje, é a força da
profundidade e do sofrimento, força gera­
da pelo amor.
E o mundo atual, preocupando-se, doen­
tiamente, com não sei quantas místicas no­
vas, que lhe infundem ou pavor ou espe­
rança, esquece-se da verdadeira e única

138
mística, rica em realizações e heroísmos: a
' mística da cruz.
* •
Quando o jovem filho do rico Pedro Ber-
nardone, Francisco de Assis, resolveu subir
a montanha do Evangelho, isto é, de sua
santificação, despojou-se de tudo, reves­
tindo-se de uma túnica remendada, ornada
só com o sinal da cruz, deixou que seus
parentes e amigos o chamassem de loucor
permitiu que os moleques (que antes olha­
vam, com respeito e inveja, para o moço
rico e bonito) o apedrejassem e o sujassem
com lodo, temperou com cinza a sua co­
mida pobre, beijou o leproso e todos os
sofredores, renunciou a toda a grandeza e
bem estar, misturou-se com a turba dos
mendigos, agradeceu as perseguições e in­
justiças, suspirou pelo martírio — então,
os seus biógrafos e pintores, escreveram
debaixo de tudo isso: Stultitia cmcis —
loucura da cruz.
Como estamos longe, muito longe, dessa
sabedoria de Cristo e de seus verdadeiros
servos, nós, vaidosos com as nossas idéias
modernas, e que, entretanto, numa falta
horrivel de lógica, fazemos questão de pa-

139
recer filhos de s. Francisco e seguidores do
' Evangelho! Que tristeza, quando chegamos
ao fim, encontrando, em lugar de uma mon­
tanha luminosa, uma grande planície ingló­
ria, ou, quem sabe até, um abismo!...

Procuremos aprender com o seráfico pai,


enquanto é tempo. E ele dizia a Cristo:
“Que eu sinta, ò meu Senhor, em minha
alma e em meu corpo, tanto quanto pos­
sível, a dor por que passastes, durante a
vossa amarissima paixão
Teremos coragem de repetir, do fundo
da alma, esta petição de nosso santo pa­
triarca?! E’ heróica, não há dúvida. Mas,
não nos esqueçamos de que a montanha é
pátria só dos heróis, ainda que desconhe­
cidos. Mas, se nos falta vontade ou ânimo
para rezarmos assim, fiquemos, então, na
planura de nossa mediocridade e mesqui­
nhez, onde se movem as multidões dos que
nada são e dos que nada serão, ainda que
tenham hábito, títulos, posição, nome, ta­
lento.
Francisco foi atendido generosamente,
pois era sincero o seu pedido. As chagas

140
visíveis, que, então, recebeu, foram apenas
um símbolo de tudo o que ele começou a
sofrer, de um modo novo, na alma e no
corpo: cegueira quasi completa, acompa­
nhada de dores violentas; o estômago não
recebia mais alimento algum, o fígado já
não funcionava; o ventre inchou, assim
como as pernas e os pés; horríveis vômitos
de sangue (D. H. Felder). Estes e mais
outros sofrimentos do corpo. E quem nos
dirá dos sofrimentos da alma? principal­
mente ao ver que, se muitos eram os que
o seguiam, poucos eram os que compreen­
diam, perfeitamente, o que significava ser
“irmão menor”, “irmão ou irmã da peni­
tência”.
Mas sabemos que não é no sofrimento
que está o sinal da santidade. E, sim, no
modo de sofrer. S. Boaventura afirma que
o serafim chagado sofreu, como só os san­
tos sabem sofrer, pois, afogado em dores,
ainda tinham ânimo para exclamar: “Eu
vos dou graças, meu Senhor e meu Deus,
por todos os padecimentos a que estou
submetido, e vos imploro que os centupli-
queis, se tal é do vosso agrado; porque

14.1
nada me será tão agradavel, no meio das
aflições que me enviais, do que ser tratado
por vos, sem misericórdia. O cumprimento
de vossa santa vontade é para mim uma
superabundante consolação”.
Eis até onde se pode chegar, quando se é
fiel à graça, bastante poderosa, sempre,
para realizar milagres desta ordem, em
nossa natureza fraca e rebelde.

Nosso Senhor disse, um dia, à grande


mística franciscana de Foligno: “Ângela,
não foi brincando que eu te amei. ..” Esta
palavra breve pôs, de repente, diante dos
olhos da santa, ferindo-lhe, mortalmente, a
alma, tudo o que Jesús padeceu por nós:
Toda a angústia, toda a humilhação, pa­
vor e dores corporais... Ela, então, em
lágrimas e confusão respondeu: “Pois, Se­
nhor, foi só por brincadeira, como em co­
média, que eu vos tenho amado até hoje...”
Mas, dizendo isto, com tanta humildade,
sentiu uma sêde ardente de pobreza, de do­
res e de desprezos. Foi o que a firmou em
sua vida sublime de união com Deus. E
falava, com entusiasmo, da completa deso-

142
lação exterior e interior, por amor do Cristo
desolado, verme, celerado, homem das do­
res. Era o seu grande conselho às almas.
Outra mística franciscana, Verônica Giu-
liani (e, com ela, quantas almas!) suspi­
rava, de continuo, por toda a sorte de so­
frimentos. E se admirava de que os homens
não delirassem no desejo de sofrer, saben­
do que é a dor que nos leva para o amor
e nele nos mantém. Aos sacerdotes pergun­
tava: “Como é possível que vos, compreen­
dendo o valor do sofrimento, não corrais
pelo mundo inteiro, entusiasmando os ho­
mens pela cruz!” Quando se lê, no seu
Diário, a compreensão profunda que nosso
Senhor lhe dava nesta matéria, durante suas
orações e êxtases, a gente não se admira
que fosse o seu grito ,de sempre: Cruzes,
cruzes, Senhor!
Afinal, em uma modalidade ou outra, foi
sempre este o grande estilo dos filhos de s.
Francisco: veneradores da cruz, enamora­
dos da cruz, apaixonados da cruz, loucos
da cruz...
E, por isso, todo aquele que foge da
cruz ou contra ela murmura, é de sua vcr-

143
dadeira vocação que foge, é contra ela que
murmura.
Que razão teria de existência, uma mul­
tidão de homens e de mulheres, revestidos
da cruz pelo seu hábito (ainda que seja
só um escapulário ou cordão escondido),
mas despojados ou, quem sabe até, inimi­
gos da cruz, pelo seu espírito? São estas
desharmonias ou desequilíbrios sobrenatu­
rais que provocam as grandes calamida­
des. E se nós mesmos não procurarmos,
voluntariamente e generosamente, consertar
estas desgraças, Deus nosso Senhor permi­
te que venham os seus algozes e persegui­
dores e nos forcem a purificações dolo­
rosas.

Mas, de certo, já o compreendemos.


Amar a cruz e nela inebriar-se não é ape­
nas entregar-se às austeridades da peni­
tência e mortificação, como jejuar, discipli-
nar-se, fazer vigílias, etc. Isto, não há dú­
vida, pertence ao nosso programa francis-
cano, mas, como parte secundária, em um
capítulo importante.

144
• Gravemos bem em nossa alma, para que
este itinerário de ascensão não nos engane:
amar a cruz, abraçar a sua loucura, que
garante a nossa estabilidade pacífica e
beatífica quasi, sobre o monte Alverne, é
criar em nós, com a graça do alto, uma
mentalidade nova, bem contrária ao espí­
rito do mundo, para o qual devemos estar
mortos. E' sentir em nós mesmos, como diz
s. Paulo, o que sentiu Jesús Cristo. E’ ex­
plicar e compreender, como s. Boaventura,
aquela outra palavra do apóstolo: t(com
Cristo, estou crucificado em sua cruz”.
Aqui os santos pararam. Impossível ir além.
Depois, é só a ressurreição e a vida eterna.
Cruzes, Senhor! mais cruzes! Venham
humilhações, doenças, injustiças! Venham
incompreensões e calúnias! Venham inve­
jas, má vontade, cartas anônimas! Venham
tentações e desânimos! Que ninguém nos
dê valor, nem nos preste atenção! Que ou­
tros subam, que nós fiquemos esquecidos!
Que outros consigam e alcancem, que nós
saboreemos o fracasso, o insucesso! Para
os outros o bem estar, para nós a pobreza.
Cruzes, Senhor! Mais cruzes!

145
Só a alma que assim .fala sinceramente,
temendo tudo de sua fraqueza, mas espe­
rando tudo da graça de Deus, só ela pos-
sue, em verdade, aquela felicidade íntima
que nada lhe pode roubar.
Feliz, numa loucura jubilosa que o mun­
do não compreende, ela estabelece a sua
morada no cume do Alverne, onde ama,
sofre e goza, e donde sairá somente para
tomar posse das montanhas eternas da gló­
ria.
Eis a vocação de Francisco de Assis e
de todos os que o seguem em verdade.
Tudo para a glória de Jesus Cristo e
de sua Mãe bendita. Amen.
ÍNDICE

Prefácio ............................ 7
I. -Ao sopé do monte . 13
II. A vontade................ 18
III. Romper com o mal . 22
IV. Rompimento tríplice . 27
V. Criar o ambiente . .. • 33
VI. Os nossos sentidos . 38
VII. Manter o ambiente . 43
VIII. Trabalho e leitura . 47
IX. Santa liberdade . ... 56
X. Atiçando o fogo.............................. 66 v
XI. Mortificação quotidiana............... 69
XII. Evitando quedas.......................... 75 ‘
XIII. Mais quatro meios poderosos .. 80
XIV. Nas fontes das águas vivas .... 86
XV. Os sacramentos quotidianos . . . 89
XVI. O grande impulso 97
XVII. Vida de oração 102
XVIII. Meditação........... 106

147
XIX. Garantia de êxito .. . 112
XX. Caridade franciscana . . 119
XXI. Amor! O’ amor divino! 124
XXII. A lição do doutor seráfico---- 130
XXIII. Mística franciscana . 134
XXIV. Cruzes, Senhor! Mais cruzes! 136

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