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SUBIDA AO
MONTE ALVERNE
PEQUENO TRATADO
DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA
1941
EDITORA VOZES LTDA.
PETRÓPOLIS - E. DO RIO
“Talvez alguém dirá que, para res
taurar a sociedade cristã de hoje,
precisaríamos de um outro Francisco.
Entretanto, fazei com que os homens,
animados de novo zelo, tomem aque
le antigo Francisco por mestre de
santidade e piedade; fazei com que
todos imitem e reproduzam em si os
exemplos que nos deixou quem era “o
espelho de virtude, o caminho de re
tidão, a regra de costumes”; não terá
isto força e eficácia suficientes para
sanar e exterminar a corrupção dos
nossos tempos?” — Pio XI.
PREFACIO
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bora mal, pertenço, — não quero dizer
muito. O livro é curto, é interessante, è bem
escrito: pode e há de ser lido com facili
dade. O leitor ajuizará dele por si mesmo,
sem precisar que eu lhe sugira uma opinião. ^
t
8
ção dos ensinamentos; mas não desviriliza
nem edulcora para agradar a nenhuma
alma fraca a salutar lição que transmite;
o que a todos aconselha — para instruir a
uns, para robustecer a outros, para santi
ficar a todos, — é a prática insistente e
paciente dos exercícios da ascese cristã: —
a mortificação dos sentidos e do espirito,
a caridade para com o próximo, o recurso
frequente aos sacramentos, a oração, o sa
crifício, o amor total a Deus. ..
Desfarte, a despeito da sua aparente in
genuidade, contém este livro muitos pen
samentos fortes e elevados, expressos vi
vamente de modo agudo ou engenhoso,
pensamentos que fazem refletir, pensamen
tos que iluminam ou que revigoram, pen- -
sarnentos que elevam a alma às regiões do
sobrenatural.
Quasi ao acaso, colho nos seus capítu
los alguns desses preciosos e lúcidos con
ceitos . .. Sobre a mortificação, por exeiq-
plo, leio no capítulo X: — “Almas mor-
tificadas não são almas mortas. Mortificar
é subjugar para vencer, é renunciar para
possuir, é negar para afirmar, é podar para
9 •
brotar, é percutir para gerar luz... A mor
tificação é uma das mais belas provas da
vitalidade de uma alma. Almas mortificadas
são almas que, realmente, vivem e produ
zem e espalham vida ao redor de si”. —
No capítulo VIU: — “O trabalho sério,
perseverante, diligente, o trabalho alegre
e conciencioso, mantém uma atmosfera de
elevação em redor de nós. Ele espelha paz
e seriedade de vida. Ordena e disciplina
tudo”. — Sobre o espírito de sacrifício,
está escrito no capitulo XXIV: — “Amar
a cruz e nela inebriar-se não é apenas en
tregar-se às austeridades da penitência e
mortificação; é criar em nós, com a graça
do alto, uma mentalidade nova, bem con
trária ao espírito do mundo, para o qual
devemos estar mortos”. — E esta senten
ça, tão cúria e simples, quão verdadeira e
profunda: — “Não é no sofrimento que
está o sinal da santidade. E sim, no modo
de sofrer”. — No capitulo XIII noto isto,
de passagem: — “O espírito de Deus, por
sua natureza, procura os cimos; o espírito
do mundo, o que é baixo”. — Da oração
mental diz, no capitulo XVII: — “Se a
10
vida é reflexo da oração, a oração é tam
bém reflexo da vida”. E, adiante: — “A
oração é floração e frutificação da vida de
fé. Sem esta, é inútil esperar por aquela”.
— Sobre a caridade fraterna, no capítulo
XX: — “Fechemos os olhos para rezar.
Mas abramo-los bem para encontrar o nos
so irmão... e, encontrando-o, saibamos
amá-lo”. — No capítulo XV, esta definição
católica da vida: — “A verdadeira vida é
ascensão contínua, é subida sempre, tanto
na terra como no céu; daí a felicidade dos
santos que nunca envelhece”. — No capí
tulo III: — “Não aspiremos a gozar aqui,
na terra a libertação pacífica e beatífica
dos habitantes do céu, não; teremos sem
pre tentações, sempre lutas, mas a nossa
vontade permanecendo firme em Deus, não
haverá fraquezas nem vacilações da nossa
parte e sim vitórias contínuas e completas,
que só servirão para consolidar, cada vez
mais, o nosso perfeito rompimento com
tudo o que nos impede de subir”. — E,
para não transcrever aqui todo o livro, ci
temos só mais esta frase que esclarece ao
mesmo tempo a significação do título e o
11
teor da obra: — “Subir ao Monte Alver-
ne... é preparar a alma para o ato mais
sublime que ela pode produzir: o amor de
Deus” (cap. XXI).
Vê-se por estas ligeiras transcrições quan
to este livro é, além de simples e atraente,
elevado e util. Vamos, pois, sem maior de
mora, lê-lo e devidamente apreciá-lo. Para
isto, porém, leiamo-lo como o seu próprio
autor avisadamente nos aconselha: —
“com atenção e humildade, página por pá
gina, capítulo por capítulo...
“Não se tenha pressa de acabar.
E pode ser tão forte e intensa a influên
cia desta leitura boa sobre a nossa vida,
que nós consigamos, sem reparar, hábitos
virtuosos e maneiras de pensar e agir que,
com relativa facilidade, nos elevem quasí
até ao cume da montanha franciscana da
nossa santificação” (cap. VIII).
£' o que, de coração, desejo aconteça a
todos os leitores deste proveitosíssimo li
vro, em particular aos da Ordem Terceira,
para os quais inicialmente foi escrito.
Mesquita Pimentel
Petrópolis, 29-1-1941
12
I
AO SOPÉ DO MONTE
precisamos subir!... Há quantos anos já,
andamos pela planície, rodeando o monte
santo de um lado para outro, sem coragem
de dar um passo para cima?! Os nossos
pecados, as nossas imperfeições, os nossos
apegos e más inclinações; a nossa falta de
fé viva, a nossa cegueira, o nosso esqueci
mento da Providência divina, a nossa lo
quacidade, a nossa dissipação, o nosso
amor à vida facil e regalada, a nossa ti-
bieza, o nosso orgulho, o nosso amor pró
prio... Eis por que não subimos; eis por
que não temos coragem de subir. Eis por
que nos parece que não subimos nunca.
E assim passaram meses, assim passou um .
ano, assim passaram 2, 3, 4, 10, 20, quem
sabe quantos anos já?...
Estamos contentes com este estado de
coisas? A planície, pela facilidade que ofe
rece ao viajante, é perigosa. Caminha-se,
13
caminha-se, mas não se sobe. E todas as
almas de Deus subiram. Subiram os santos,
subiu o seráfico pai s. Francisco, subiu
Maria, a Mãe das Dores e das Alegrias,
subiu o próprio Filho de Deus, Jesus Cris
to, nosso Senhor, que veio a esta terra, só
para nos salvar e ensinar.
Precisamos subir também.
Não nos cingimos os rins, com o cordão
de s. Francisco, para brincar ou para dor
mir indolentemente. Quem se cinge, é para
correr, é para subir.
Tornamo-nos franciscanos, voluntaria
mente. Quem se cinge, é para correr, é
para subir...
Quem não sobe, mas se deleita na planu-
ra das facilidades, mais cedo ou mais tar
de, dansará ao derredor do bezerro de
ouro e, vergonhosamente, o adorará. Moi
sés subiu. Viu o Senhor, falou com ele, e
voltou com a fronte iluminada, para ilumi
nar o povo, que sentia saudades das cebo
las mal cheirosas do Egito e brincava com
o esterco do demônio.
Precisamos subir. Que significa uma vo
cação que não nos eleva? Se fomos cha-
14
mados por Deus, devemos aproximar-nos
dele... E quem se aproxima de Deus sobe,
porque Deus habita nas alturas. Ou no pre
sépio, ou no Tabor, ou no Calvário, ou no
altar, ou na alma do santo, ou no céu, é
sempre nas alturas que,ele mora.
Para isso exclamava o profeta, e, com
ele, todas as almas grandes: “Levantei os
meus olhos aos montes, donde me vem o
auxílio do Senhor” (SI 120). Por isso os
sacerdotes e todas as almas revestidas de
Cristo, côncias de sua missão sacerdotal,
olhando para as alturas do altar, dizem
• sempre de novo: “Subirei ao altar de meu
i Senhor... iluminado pela luz e pela sua
verdade chegarei ao seu monte santo...”
(SI 42 posto na liturgia da missa).
Precisamos subir.
E subamos enquanto temos força, que a.
fraqueza virá e não poderemos dar um
passo.
Subamos enquanto temos luz, que virão
as trevas e nos envolverão completamente.
Subamos enquanto é tempo, que o dia
de amanhã não nos pertence, o futuro é
todo incerto. Subamos.
15
Olhemos para as alturas do Alverne: é
a mansão da paz, do amor, da felicidade,
quanto possível neste mundo. Lá não se
■conhece esta vida de intriguinhas, de inve
jas, de má vontade; estas perseguiçõezi-
nhas surdas, estas deslealdades que ferem; ,
lá não se perde o tempo precioso com vai-
■dades e ocupações inúteis; lá não sobe o
que é mesquinho, interesseiro, egoista;*Iá
não se encontra o que separa e desune.
E’ a região da verdade e da caridade. Re-
solvamo-nos a subir. Encontraremos a ge
nerosidade numa união perfeita, à custa
de sacrifícios alegres e de renúncias felizes.
A alma franciscana que subiu ò monte san
to canta, ininterruptamente, o cântico da
verdadeira liberdade dos filhos de Deus. -
O Alverne espiritual é altíssimo. Por isso
• mesmo, o seu nome está sobranceiro
• aos
relâmpagos e aos trovões da vida. A alma
' que subiu se pôs em segurança.
E’ íngreme, quasi a pique, a vereda que
conduz ao cimo. Por ela não sobem os car
ros modernos do luxo e do bem estar. E’
só a pé, passo a passo, que o franciscano
realiza a sua ascensão. Sangram as plantas
16
dos pés, ferein-se as mãos nas rochas bru
tas. Mas elas são firmes, têm fundamen
tos seculares, quem nelas se segura, não
há perigo de cair, e de voltar atrás.
Cada metro deve ser conquistado com o
nosso esforço. Dia por dia. Minuto por mi
nuto. E’ só a perseverança de uma vida
(longa ou breve, pouco importa) que leva
a alma até às alturas sublimes do monte
santo Alverne.
Subida - - 2
II
A VONTADE
18
deve ser uma elevação contínua, uma ascen
são permanente. Ora, se Deus nos criou
para nos elevar, ele nos ajudará com a sua
graça, que nunca nos faltará.
Além disto, postos no plano sobrenatural,
ele nos deu a vocação franciscana, e voca
ção franciscana é vocação para subir o
monte Alverne.
Trata-se, pois, da nossa vontade. Eis a
nossa preocupação: querer e querer sem
pre. Não como o preguiçoso, do qual afirma
a Escritura (Pv 13, 4) que “quer e não
quer”. Por isso Jesus Cristo disse clara-
• mente: “Quem quiser vir após mim...” Só
os que querem e sabem querer é que segu
ram a cruz e sobem com Cristo ate ao
alto...
“O reino de Deus sofre violência e os
que se esforçam é que o conquistam” (Mt
11, 12). Precisamos querer. A vontade é
capaz de maravilhas.
Não é a inteligência, não é a arte, não é
o gênio que sobe, mas é o santo e o santo
é, principalmente, o homem da vontade.
Saibamos querer.
2* 19
Lembremo-nos da lição sublime e conso-
ladora que s. Boaventura deu ao irmão Gil,
ensinando que não é a ciência que plasma
o santo, e sim a vontade, o amor. E o
irmão inebriado de felicidade, trepado na
cerca do convento, cantou aquele hino sin
gular à mulherzinha ignorante, que sabe
querer e que sabe amar. Oxalá que nós
queiramos também!
Levantemos os olhos. A solidão do Al-
verne povoou-se, através de 7 séculos, e,
por milagre, conservou-se sempre solitário.
Com s. Francisco, o santo “idiota” de von
tade férrea e de lógica terrível, subiram
legiões de todas as condições, de todas as'
línguas e de todos os tempos. Isabel de
Hungria, Luiz, rei de França, Antônio de
Pádua, Mateus de Agrigento, santa Clara,
Luiz de Tolosa, Eva Lavallière, Matt Tal-
bot, Verônica Giuliani, Boaventura, s. Leo
nardo, s. Pascoal... que desordem harmo
niosa! -
Eles subiram com legiões e legiões de
outros. Subamos também!
20
Sejamos sinceros! Ou o Alverne ou a
indolência, a preguiça, a tibieza, quem sabe,
* o pecado até.
Resolvamo-nos...
Não nos cingimos com o cordão de s.
Francisco, para brincar ou para dormir.
Subamos!...
Que nossa Senhora dos Anjos, s. Fran
cisco e toda a legião seráfica nos alcancem
de Deus uma vontade firme, perseverante...
Não é sem consequências graves para a
humanidade que se burla uma vocação.
Subamos!...
m
ROMPER COM O MAL
22
abnegação, quanto heroísmo nela se es
condem.
Romper com o mal... E* separar, fugir,
cortar, queimar, mortificar, e, muitas vezes,
quasi morrer.
Pois romper com o mal c ir, corajosa
mente, contra a natureza, contra o mundo,
contra o demônio. E como custa tudo isto!
Vencer as más inclinações, vencer as pai
xões, vencer as nossas fraquezas, vencer
as tentações que sempre se mostram sob
um aspeto sedutor, como é dificil!
Mas romper com o mal não é vencer o
mal de qualquer modo, quem sabe até com
certa complacência, ou com- certas conces
sões. Romper com o mal, isto é, romper
com o pecado, significa vencê-lo tão radi-
calinente que nos sintamos inteiramente li
vres dele, conforme a petição do Padre
nosso: livrai-nos, Senhor, do mal, ou, li
bertai-nos do poder do mal, do poder do
pecado.
Não é que aspiremos a gozar aqui na
terra a libertação pacífica e beatífica dos
habitantes do céu, não; teremos sempre
tentações, sempre lutas, mas a nossa von-
23
tade permanecendo firme em Deus, não ha
verá fraquezas nem vacilações * da nossa
parte, e sim vitórias contínuas e completas,
que só servirão para consolidar, cada vez
mais, o nosso perfeito rompimento com tudo
o que nos impede de subir.
Então as tentações parece que só atin
gem a superfície da alma, não penetram,
não ganham profundidade, e, quando elas
vão, a gente fica na certeza feliz da vitó
ria que, por graça de Deus, com o nosso
esforço e energia se conseguiu. Isto é rom
per com o mal. Partilha das almas fortes,
das almas generosas, das almas que sabem
querer. Só estas almas conseguirão subir o
monte Alverne de sua perfeição.
24 •
das chagas gloriosas de s. Francisco e de
todos os seus verdadeiros filhos. Além dis
so, não quis mais abrir correspondência al
guma que, a princípio, vinha numerosa de
seus admiradores e empresários. Isto é que
se chama romper com o mal. Eis por que
ela subiu.
Matt Talbot era o bêbado contumaz e
conhecido. Mais de dez anos viveu escravo
do vício. Mas um dia rompeu com tudo; .
não somente não beberia mais álcool de
espécie alguma, mas até não entraria em
casa alguma de bebidas. Seus amigos, é
verdade, o forçaram uma v,ez só, e ele en
trou, mas enquanto todos bebiam bebidas
alcoólicas, ele bebia uma água mineral.
Tempos depois, achando que o fumo era
uma substituição disfarçada do álcool, teve
vergonha, não queria ser escravo de nada
e renunciou ao seu cachimbo para sempre.
E porque rompeu, assim, completamente,
com o mal, nós o vemos hoje lá no Alverne
glorioso, ele, o humilde operário das docas
de Dublin.
Assim o fizeram todos os seguidores sin-.
ceros de s. Francisco, desde o princípio.
25
As primeiras páginas da nossa crônica
mostram, de sobejo, o que o seráfico pa
triarca exigia de seus discípulos: não que
ria servos, não queria escravos, queria al
mas livres, que subissem, com ele, ale
gremente, rompendo com tudo, o monte
Alverne do seu amor.
Subindo com ele, sim, que, sempre à
‘ frente, dava exemplo e incutia coragem e
despertava entusiasmo na turba que o se
guia.
E’ admiravel o radicalismo de s. Fran
cisco: rompeu com tudo, 'fudo. Diante do
bispo, de seu pai, e de uma turma de curio-
1 sos, desnudou-se resolutamente, mostrando
assim, de um modo claro, como rompia
com o mundo e renascia para uma nova
vida; mais tarde, na hora da tentação, abra
çando-se com as estátuas de neve ou re
volvendo-se no espinheiro, ensinava como
se rompe com a carne; com o demônio
rompeu, irrevogavelmente, quando excla
mou, mais com a vida do que com pala
vras: “Meu Deus e meu tudo”.
26
IV
ROMPIMENTO TRÍPLICE
27
tal é desolação, trevas, destruição. E’ o
grito mais abominável da criatura humana.
Chame-se apostasia, chame-se injustiça,
chame-se sensualidade, chame-se vingança,
ódio ou qualquer outro gênero de maldade,
chame-se impiedade ou orgulho — verifi
cando-se as três condições para o pecado
mortal é sempre “a morte mais completa
na vida”.
Rompamos, resolutamente, com toda essa
abominação. Antes a morte, do que o pe
cado mortal. Não estraguemos mais ainda
ou perturbemos, por nossa culpa, a harmo
nia das almas, a harmonia do mundo. Rom
pamos com o pecado, radicalmente, com tal
energia, que cantemos o canto da nossa
libertação. Dado este passo, torna-se pos-
sivel a ascensão ao Alverne de nossa san
tificação.
Quando Margarida^ de Cortona, a mulher
escandalosa que se tornou uma grande
santa, merecendo o formoso nome de A\a-
dalena seráfica, viu o corpo asqueroso,
quasi podre, de seu amante assassinado,
compreendeu que era a imagem de sua
alma em frangalhos. Como foi facil, então,
28
romper com tanta imundicie. E subiu, su
biu. ..
A nossa dificuldade para este primeiro
rompimento completo, é que nós não vemos
o pecado em sua verdadeira expressão. Os
santos viam e desmaiavam. Viam e chora
vam. Viam e se enchiam de zelo, dispos
tos a derramar o seu sangue. O santo ter
ceiro franciscano, João Vianney, cura d’Ars,
exclamava: “Meu Deus... quero sofrer
tudo... a vida inteira... cem anos... as
dores mais atrozes... contanto que os pe
cadores se convertam”.
b) Em segundo lugar, devemos romper com
o pecado venial deliberado. Eles formam
uma legião vergonhosa e perigosa. E como
não matam ou não destróem completamen
te, têm, infelizmente, entrada franca em
muita alma, em muito templo de Deus. São
as mentiras, as murniurações, as críticas, as
pequenas intrigas, a preguiça, a gula, as
pequenas invejas e ciúmes, os apegos, as
pequenas injustiças, as curiosidades, as im-
paciências, a loquacidade, as vaidades e os
tentações, os pequenos orgulhos e desobe
diências...
29
Não se diga que é impossível romper com
tudo isso. O que é impossível é subir com
tudo isso, ou com um só pecado venial,
habitualmente, deliberado, a montanha da
santidade. E se muitas almas, como nós sa
bemos, conseguiram realizar a ascensão
gloriosa, é que elas conseguiram, antes, o
rompimento completo com o pecado venial
habitual.
Um ou outro pecado venial, por fraque
za, inadvertência, circunstâncias imprevis
tas, não impedem a subida, e, sim,, retar-
dam-na um pouco. Mas a humildade, o ar
rependimento e a confiança em Deus, cor
rigindo este retardamento, impelem a alma,
com mais força ainda, para as alturas do
monte.
Quando a serva de Deus, Francisca
Schervier, fundadora de uma congregação
franciscana, durante o recreio da comuni
dade, percebeu que uma irmã não dava im
portância ao pecado venial, sentiu tal tris
teza e indignação que caiu sem sentidos.
Assim são as almas que sobem.
c) Em terceiro lugar, devemos romper
com as imperfeições voluntárias. Cpnhece-
30
mo-las? Foi o grande trabalho dos santos.
Deve ser o nosso trabalho também, uma
vez que queremos subir o Alverne. O nosso
exame sincero de conciência, feito, com
cuidado, diariamente, nos revelará, pouco
a pouco, o que há em nós para corrigir:
pequeninas vaidades, pequeninos apegos,
pequeninas negligências no uso do tempo,
modo autoritário de falar, pensamentos e
conversas inúteis... Senhor, iluminai-nos!
Que nós nos conheçamos a nós mesmos,
sem medo algum. E que nós vos conhe
çamos a vós, como pedia o seráfico pa
triarca. E que, na vossa pureza e na- vossa
luz, vejamos as nossas imperfeições, com
as quais queremos romper, se a vossa força
ajudar a nossa fraqueza.
31
subida que, rapidamente, nos colocará no
cume bem-aventurado da santa montanha
franciscana.
Rompamos com o mal... prevenindo a
morte, que nos obrigará a romper com
tudo. Mas, com que dor, então, e angústia
se processará este rompimento extremo! E
• sem merecimento algum, porque forçado...
Pelo contrário, os verdadeiros francisca-
nos, à imitação do patriarca santo, morrem
alegres, em paz, porque, para eles, a morte
não é violência.
Tendo rompido com a carne, o mundo e
o demônio, puderam subir o seu Alverne, e,
• dali para o céu, é tão perto...
V
-2S—
CRIAR O AMBIENTE
34
O seráfico pai s. Francisco sentiu toda
a atração da vida solitária e silenciosa, e
estava por renunciar a todo o gênero de
apostolado, para'viver em solidão comple
ta. Mas teve receio: seria essa a santa von
tade de Deus?! Mandou, então, que a irmã
Clara rezasse; mandou que o irmão Silves
tre rezasse, para que ele conhecesse a von
tade divina. E, tendo recebido a resposta
do alto que ele devia pregar o Evangelho
nos templos e nas capelas, nas praças e nas
estradas, por toda parte que lhe fosse pos
sível, o santo solitário, a quem se roubava,
assim, a solidão corporal, edificou inviolá
vel solidão espiritual, feita de silêncio, de
recolhimento profundo, que o acompanhava
por toda parte, tornando-lhe possível uma
constante união com Deus e o mais ativo
e frutuoso apostolado.
Eis o ambiente que devemos criar ao der-
redor de nós, onde quer que nos encontre
mos: em casa ou na repartição pública, na
escola ou na oficina, no templo ou no con
vento, na sala de festa ou no quarto onde
se sofre, na rua movimentada ou na es
trada deserta, na cidade ou no campo.
3* 35
Ai de quem se entregar ao exterior, der
ramando-se inteiramente! Que ele perca a
esperança de subir. Escravo do meio em
que vive, que ele devia dominar, mas pelo
qual é dominado, torna-se-lhe impossível
qualquer movimento de ascensão.
36
isso trabalho que consigam as almas fracas,
sentimentais? Que se experimente.
Se nem todos os santos falam desse am
biente de recolhimento profundo, em que a
alma sobe sem perigo de paradas e de
quedas, todos, sem excepção, nos dão dele
os mais belos e fortes exemplos.
Não foi só o santo patriarca que escon
deu as mãos nas mangas do hábito, baixou
os olhos, inclinando a cabeça, e, em si
lêncio absoluto, saiu pelas ruas a pregar.
Não foi só ele. Todas as almas francisca-
nas imitaram, através dos séculos, esta
atitude de perfeito recolhimento e de per
feito apostolado.
VI
OS NOSSOS SENTIDOS
38
nosso respeito, a respeito de nosso proce
dimento. Quanta paz perdida inutilmente!
Procuremos só ouvir a opinião de Deus, a
voz de nossa conciência. O resto, que nos
importa? Compreendamos bem o ensina
mento do seráfico pai: “eu sou o que sou
diante de Deus e não o que valho na opi
nião dos homens”. Palavra de ouro, que.
nos conserva em uma paz inalterável.
E’ inútil querer a aprovação de todos.
Fechemos os ouvidos. E não percamos a
ambição santa de subir.
Até nos ambientes mais santos é de ver
dadeira necessidade esta clausura. Só en
tão a alma sente coragem de se elevar,
alheia a tudo o que impediría ou dificultaria
a sua subida ao monte franciscano de sua
santificação.
b) Criar o ambiente é, em segundo lu
gar, dominar os olhos. Fugir da curiosi
dade de tudo ver, tudo observar. Para que?
Quando houver necessidade ou utilidade
ou conveniência de ver alguma, vejamos.
Do contrário, saibamos nos vencer.
Em geral, os cegos nos envergonham,
pela sua capacidade de pensar e de traba-
39
lhar. E’ que nada os distrai, na escuridão
em que vivem; podem, então, entregar-se,
inteiramente, ao seu pensamento, à sua ocu
pação. E realizam maravilhas.
Oh! se nós soubéssemos dominar os nos
sos olhos e evitar aquilo que nos distrai
inutilmente e até mesmo perigosamente!
Teríamos, então, energias novas para obser
var o que devemos observar dentro e fora
de nós. Que mundos desconhecidos desco
bririamos!
Eis por que os santos fechavam os olhos.
Quando os abriam de verdade, descobriam
belezas novas em tudo, até na flor humilde
do campo ou no inseto- desprezado, como
nosso pai s. Francisco.
c) Criar o ambiente é, em terceiro lugar,
dominar a língua. Silêncio, silêncio, silên
cio e a alma recolhida sente-se na atmos
fera própria para subir. Possue, quando o
silêncio é verdadeiro e não fruto de capri
cho ou de violência, a liberdade da filha de
Deus. E quem é livre, sobe.
Ai! que não nos convencemos desta ver
dade! O silêncio constrói o mais belo am
biente para a ascensão verdadeira. Per-
40
guntemos a s. Francisco, a sta. Clara, a s.
Boaventura e às legiões que os seguiram.
Chegaram ao cume do Alverne, porque fi
zeram reservas de energias pelo seu silên
cio admiravel.
E não é assim mesmo, quando se sobe
uma montanha qualquer? Quem fala mui
to, depressa se cansa e desce desanimado.
O ilustre franciscano terceiro, o cardial
Mercier, dizia: ‘'dominai a vossa língua e
sereis senhores de vossos pensamentos”.
Que segredo maravilhoso para subir! Tem-
se, então, o ambiente desejado: domínio
dos ouvidos, da língua e dos olhos, domí
nio do pensamento, eis o recolhimento per
feito, a solidão espiritual, que o seráfico
patriarca edificou para si e para seus fi
lhos.
41
Olhemos para nossos irmãos. Olhemos
para um Matt Talbot. Teria ele subido
como subiu, se tivesse ficado escravo do
meio péssimo das docas, em que conti
nuou a viver? Quantas críticas, murmura-
ções, zombarias, sem falar de palavras e
exemplos peiores! Mas ele, apesar de não
se afastar de seu trabalho, não sofreu o
menor obstáculo de tudo isso em sua ascen
são quotidiana, porque soube criar a ver
dadeira solidão espiritual ao derredor de si.
Tornou-se um ermitão autêntico, no meio
do bulício da cidade. Libertou-se de tudo,
eis por que subiu.
Convençamo-nos: se quisermos galgar o
Alverne de nossa santificação franciscana,
é de necessidade a criação do ambiente em
que devemos nos envolver, em qualquer lu
gar que estejamos, ambiente que nos li
berta das críticas mesquinhas, da perda de
tempo e de energias, assim como da in
fluência do mundo exterior.
Seja o corpo a nossa cela! ensina s.
Francisco. Cela recolhida e pacificada, pelo
domínio dos sentidos exteriores e das fa
culdades da alma. Nela, então, Deus nosso
42
Senhor habita, como em um templo, na ex
pressão de s. Paulo.
O que Ruysbroek escreveu, poderia ter
escrito Ângela de Foligno ou Boaventura
ou qualquer outro místico franciscano: “A
presença de Deus não é uma separação ex
terior das coisas exteriores; é a solidão do
espírito. Se vós a possuís, penetrareis as
pessoas e as coisas com tal profundidade,
que elas perderão seu poder e influência
sobre vós”.
E só as almas que não sofrem a influên
cia prejudicial dos homens e das coisas é
que podem subir.
Seja o corpo a nossa cela!
vn
MANTER O AMBIENTE
44
0 ambiente que tivermos criado, com
todo o nosso esforço, inortificando os olhos,
os ouvidos, mortificando a língua, o cora
ção e os pensamentos (na edificação toda
espiritual desta cela ou solidão, chamada
recolhimento), necessário é que nós o sai
bamos manter.
Quem o experimentou, de fato, em toda
a sua paz e suavidade, não poderá mais
viver fora dele: é a única atmosfera em que
se respira livremente, longe do ar empes-
tado do mundo (invejas, críticas, vaidades,
ostentação, mentiras) ainda que, corporal
mente, se tenha de viver no meio deste
mesmo mundo. *
Só neste ambiente é que os homens e as
coisas não exercerão influência prejudicial
sobre nós mesmos. O recolhimento, cons
truído, sabe Deus a custo de que sacrifí
cios, nos imuniza inteiramente contra a
ação maléfica do mundo exterior, envol
vendo-nos numa atmosfera toda sobrena
tural.
S. Francisco seráfico, puro, no meio da
corrupção do seu século; pobre, no meio
do luxo e da ambição; pacífico e pacifica-
45
dor, no meio das inimizades e dos ódios;
idealista, entre almas vulgares e mesqui
nhas; revolucionário do amor, no meio dos
apáticos e comodistas, é bem uma prova da
força do ambiente que ele para si criara, no
silêncio dos bosques e dos templos, na so
lidão dos Carceri e do Alverne, na leitura do
Evangelho.
Para manter este ambiente abençoado
que nos isola, espiritualmente, do mundo
profano (ainda que às vezes com aparência
religiosa), sem prejudicar, contudo, os nos
sos interesses e as nossas relações neces
sárias e uteis, dois meios, principalmente,'
muito nos ajudarão: o trabalho e a leitura
espiritual.
Quem os abraça, com generosidade e
perseverança, pode ficar seguro de sua
ascensão quotidiana ao Alverne de sua san
tificação.
VIII
TRABALHO E LEITURA
47
E se isto c verdade sempre, em se tra
tando de qualquer trabalho feito com reta
intenção, é muito mais verdade ainda em
se tratando de trabalho humilde, trabalho
escondido.
Quem não contemplou, enlevado, a vida
de trabalho silencioso do Filho de Deus em
Nazaré? 30 anos no escondimento, no tra
balho simples de cada dia. E com ele, a
humilde Virgem Maria, o patriarca são
José! Que ambiente celestial, mantido pelo
fiel emprego do tempo, nas ocupações mais
modestas, cheias de elevação, porém, pela
perfeição com que eram feitas.
Não precisamos de outros exemplos. En
tretanto, eles não nos faltam. E’ são Paulo
que tecia; é são Francisco, o santo legisla
dor do trabalho manual, ao qual se devem
dedicar os seus filhos. E’ santa Clara que,
em sua última enfermidade, borda ainda
toalhas para os altares, santificando as
sim sua cela e sua doença. E’ são Boaven-
tura que escrevia os seus tratados profun-
dos e se entregava aos mais humildes tra
balhos do convento. E’ santa Isabel da
-48
Hungria, cujas mãos não conheciam des
canso. São, afinal, todos os verdadeiros
filhos de Francisco, que devem, por força
de lei, fugir da ociosidade e amar a ocu
pação honesta e proveitosa, ainda que ne
nhuma vantagem material se possa dela es
perar.
O trabalho, em si, já é uma vantagem,
pois que concentra a atenção, evitando todo
o desperdício de forças. E’ sempre lucro.
Não há melhor preparação para a oração
do que o trabalho, sinônimo tanta vez de
penitência. E, por sua vez, é a oração ver
dadeira que desperta no homem as disposi
ções necessárias para um trabalho profícuo,
ao menos espiritualmente.
Dai-me um homem piedoso e trabalha
dor e dele, depressa, se fará um santo.
O bom emprego do tempo é um dos ca
pítulos mais importantes em nossa vida.
Quem puder dizer, no fim do dia ou no fim
da existência, como aquela admiravel ter
ceira Maggy: “Senhor, eu vos agradeço,
porque aproveitei bem o tempo que me
destes”, terá cumprido a sua missão.
Subida — 4 49
E* de ouro o conselho da Imitação de
Cristo: “nunca estejas ocioso de todo; mas
lê ou escreve, ou reza ou medita, ou faze
algum trabalho para proveito dos outros”.
Este espírito de trabalho e de santa ati
vidade já por si só toma impossível qual
quer dissipação ou distração perigosa. E a
alma, neste ambiente fechado, mas onde se
respira livremente, sente a necessidade e
quasi facilidade de subir.
Amemos o trabalho. Vivamos sempre
ocupados. Tenhamos grande respeito para
com o valor do tempo que corre, corre, e
não volta mais.
Examinemo-nos e sejamos sinceros. Não
são, justamente, os dias em que trabalha
mos mais fielmente, os dias em que mais
nos elevamos também? Tenhamos, na me
dida do possível, o nosso horário para que
não se perca parcela alguma de nossa vida.
Prevendo as ocupações e o tempo de as fa
zermos, muito lucraremos.
E neste ambiente sério, a alma experi
menta, cada vez mais, o desejo de se elevar.
50
b) 0 segundo meio para manter o am
biente de nossa ascensão é a leitura es
piritual.
Nunca insistiremos demais. A leitura es
piritual, feita com humildade e atenção, nos
põe em contacto ativo com o divino Espírito
Santo e com os queridos santos de Deus.
A Sagrada Escritura, principalmente os
santos evangelhos e as epístolas, estabele
cem, ao derredor de nós, uma atmosfera
tão sobrenatural, que mais dificil é, então,
conservar-se a alma na planície do que
subir a montanha. E’ doutrina que desceu
do céu e que para o céu nos leva. E’ a re
velação, ao nosso alcance, da verdade eter
na, da santidade eterna, da beleza eterna,
que, forçosamente, nos atraem e nos arras
tam para o alto. E’ pulsação do coração
infinito de Deus que, amando-nos, provoca
o nosso amor. E quem ama, sobe sempre.
Quem lê a Imitação de Cristo ou leituras
semelhantes, se põe diante desses autores
veneráveis, homens- de Deus, ricos de me
recimentos, que nos apontam para as altu
ras, ensinando-nos o desprezo do mundo
4* 51
e de suas vaidades. São mestres sinceros,
experimentados, que dizem a verdade e que
só querem o nosso bem.
As biografias de santos e de almas san
tas, então, nos fazem viver em outras épo
cas, em outras terras, na companhia dos
melhores representantes da humanidade.
Despertam o nosso brio, enchem-nos de
coragem, transformam-nos pouco a pouco
naqueles a quem frequentamos. Então se
diz, com novo ânimo, à imitação de sto.
Agostinho: “Mas se eles e elas puderam,
por que não poderei eu também?”
Oh! se nós compreendéssemos o bem que
nos faz a leitura espiritual, assídua e per
severante! Ela, realmente, mantém ao der-
redor de nós uma atmosfera superior. Tor
na-se vivo o dogma consolador da comu
nhão dos santos. E pode ser tão forte e
inténsa a influência dessas leituras boas
sobre a nossa vida, que nós consigamos,
sem reparar, hábitos virtuosos e maneiras
de pensar e de agir que, com relativa faci
lidade, nos elevem quasi ao cume da mon
tanha franciscana de nossa santificação.
52
S. Francisco lia, assiduamente, o santo
Evangelho, com tal fervor e reta intenção,
que se transformou em um Evangelho vivo.
* Matt Talbot, apesar de sua pouca instru
ção, nos deixou uma pequena biblioteca
ascética que, já por si, é um lindo ensi
namento. Era uma de suas ocupações pre
diletas, aos domingos e de noite, depois
do trabalho. Com s. Francisco de Assis,
santa Teresa, s.-Francisco de Sales, Fa-
ber... passava horas inteiras. Quem se ad
mira que ele tenha subido tão alto?
“Não quero ler jornais e romances, para
não estragar o ambiente de minha cela”,
escrevia um santo sacerdote. O mesmo
pode dizer toda a alma que deseja viver,
sinceramente, na solidão espiritual.
Leituras frívolas tornam frívolo o am
biente. Só as leituras sérias e santas é
que santificam e elevam o ambiente de
nossa vida.
Escolhamos a nossa leitura espiritual.
Marquemos para ela uma hora determina
da. E depois, dia por dia, ao menos 15 mi
nutos, com toda a atenção e humildade,
53
nos entreguemos a essa leitura, página por
página, capítulo por capítulo. E, assim, um
livro depois do outro.
Não se tenha pressa de acabar. A pala
vra honrosa sobre o homem de um só li
vro, continua verdadeira. Um livro bem lido
e meditado e bem assimilado vale mais do
que dez ou vinte livros, lidos superficial
mente. Há livros que não se devem ler uma
vez só; duas vezes, talvez ainda seja pouco.
Não será porque antigamente havia tão
poucos livros, que também havia almas tão
profundas?! Liam pouco, mas com tal se
riedade e fervor, que a leitura terminava
por se tornar propriedade delas, e elas se
transformavam. Hoje não faltam livros, fal
tam leitores ponderados.
Saibamos escolher o nosso livro, ou os
nossos livros. E que eles, pelo nosso esfor
ço e reflexão, exerçam verdadeira influên
cia em nossa vida.
54
quotidiana, eis os fatores preciosos que hão
de manter, com firmeza, no meio das difi
culdades e contratempos e distrações for
çadas, o ambiente pacífico para a nossa
ascensão.
Só neste ambiente é que se compreen
derá o “sursum corda", corações ao alto!
da nossa fé.
IX
- — —* "
—-2.—T ~~ T-=*=
SANTA LIBERDADE
56
dacle, o seu orgulho e vaidade, o seu co
modismo, a sua curiosidade, seu egoisma
e ambição...
Infelizmente, nada de mais comum. Er
por isso mesmo, nada de mais raro do que
uma alma livre, da santa liberdade dos fi
lhos de Deus, que realize, continuamente, a
sua ascensão.
Eis o que custa. Por isso há tão poucos
santos, isto é, almas que alcançam o desa
pego, quanto possível, completo de tudo
aquilo que podia impedi-las de correr e de
subir ao seu Alverne.
A alma apegada, tentando galgar o mon
te de sua santificação, é como um viajante,
carregado de malas e de embrulhos, ten
tando subir uma montanha íngreme. A
alma apegada às criaturas, ainda que fosse
a uma criatura só, é como um pássaro
preso, ainda que seja por um só fio de
ouro, que não pode voar.
Como o seráfico pai s. Francisco com
preendeu perfeitamente este capítulo dificil!
Quis ser aqui na terra verdadeiro hóspede
c peregrino, desapegado de tudo, tudo,
para poder peregrinar e subir. Ele incar-
57
nou em si, de modo admiravel, o ideal do
evangelho, escola única, onde se formam
as almas verdadeiramente livres.
E por isso ele alcançou, em tempo rela
tivamente curto, alturas maravilhosas. Reis
e imperadores, sábios e artistas, bispos e
papas levantam a cabeça, e muito, para o
poderem contemplar.
E porque ele assim viveu esse desapego,
pôde também exigí-lo de quem o seguisse.
Como o Mestre, que não tinha onde repou
sar a cabeça, Francisco podia exclamar:
“Quem quiser ser meu discípulo, renuncie
a si mesmo...”
E’ a suprema lição do desapego: renún
cia total. >
Como é dificil! Não há dúvida alguma,
mas sem esse desapego ninguém poderá
subir.
Desapego, porém, não significa falta de
interesse, indiferença, apatia, frieza, falta
de amor e de amizade. Desapego não é ser
insensível, duro, sem alma, sem coração.
Desapego não é sinônimo de desprezo ou
de ingratidão.
58
Desapego é uma virtude pela qual o ho
mem ama a Deus, como fim, e ama as
criaturas, como meios. E, por isso, tem
sempre em vista os grandes interesses de
Deus, aos quais subordina, sem vacilação,
os seus pequenos interesses próprios e os
• pequenos interesses de seu próximo.
Alma desapegada é a alma que, pratica
mente, nunca confunde o lugar de Deus e o .
lugar das criaturas, o valor absoluto de
Deus e o valor relativo das criaturas.
Desapego é .sinônimo de liberdade, li
berdade verdadeira, daquela que tão rara
6 no mundo de todos os tempos, princi
palmente no de hoje, que só ambiciona
aquela liberdade falsa, que o levará, fatal
mente, à mais penosa escravidão.
Jesus Cristo, o Mestre, como em tudo o
mais, é modelo perfeito do desapego. En
tretanto, amava, com ternura, sua Mãe san
tíssima e a s. José, seu pai nutrido. Gosta
de estar entre as criancinhas e as acaricia.
Alegra-se na casa bem-aventurada de Ata
ria e de Marta. Aceita convite para as
bodas de Caná, come com fariseus e pu-
blicanos. Chora pela morte de Lázaro, seu
59
amigo. Ama, com. amor de predileção, um
discípulo virgem. Recebe, à noite, a Nico-
demos envergonhado. Contempla, com en
tusiasmo, a grandiosidade do templo. Gosta
dos trigais dourados e dos vinhedos. Sente
compaixão do pobre povo. Come, quando
tem fome. Pede água, quando tem sede.
Não tenhamos, pois, medo: o desapego
- não nos mata. Pelo contrário, é fonte de
verdadeira vida, porquê nos torna livres,
puros, alegres, com muita reserva de ener
gia, para lutar e para vencer. E quem ven
ce, principalmente a si mesmo, dá a mais
bela prova de que vive.
Vamos à prática.
Devemos amar os nossos pais. E’ o
amor mais santo aqui na terra. Entretanto,
“quem ama a seu pai ou a sua mãe mais
do que a mim, não é digno de mim” —
Jesús menino, ficando no templo trcs dias,
e depois dizendo a Maria e a s. José “que
devia ficar zelando pelas coisas de seu
Pai”, nos ensina o amor e o desapego.
O amor ordenado dos pais e para com
os pais, dos esposos, irmãos e demais pa
rentes, harmoniza-se perfeitamente com o
60
desapego. Só o amor desordenado, isto é,
exagerado, carnal, preocupado demasiada
mente, que não conhece sacrifício, que não
conhece medida, é que destrói o desapego.
A amizade verdadeira é santa, pura, de
sinteressada, sincera, é alegre e despreocu
pada. Mas há outra coisa que, erradamen-
te, se chama amizade, que rouba o tempo,
rouba as forças, que impede o cumprimen
to do dever, que esfria a fé e a devoção,
que fabrica ídolos e para eles levanta al
tares, que, às vezes, põe até em perigo a
honra, a virtude — eis o apego, em uma
de suas formas mais comuns. Com ele é
inútil tentar uma subida. Não há alma mais
embaraçada e algemada.
Outras formas de apego, infelizmente,
bastante comuns, são o apego ao dinheiro,
à saude, às comodidades da vida, à pró
pria opinião, o apego às curiosidades, o
apego ao luxo e à moda, o apego à osten
tação e a uma fama fictícia. Pode haver,
também, apego a um lugar, a um trabalho,
a um objeto qualquer.
Naturalmente, há apegos mais e menos
perigosos, apegos que impedem, de todo ou
em parte, a ascensão desejada.
61
Mas poder-se-á chamar verdadeiramente
livre uma alma que vive acorrentada por
uma destas escravidões?
Para que não haja mal entendidos em
assunto tão importante, é bom repetir que
desapego não é indiferença ou falta de in
teresse para com as pessoas e coisas que
nos rodeiam. Pelo contrário, são as almas
desapegadas que amam o seu tempo, o seu
trabalho, o seu cantinho, os seus amigos,
os seus parentes, as suas alegrias... amam,
mas não se escravizam. E, como são livres,
amam e sobem, com tudo o que amam, o
Alverne de sua perfeição.
62
ostentação. A penitência franciscana nos
deve desapegar da nossa sensualidade, gula
e de nossas outras más inclinações. O amor
franciscano, o amor seráfico nos deve de
sapegar do amor desordenado das criatu
ras, para que possamos amar a Deus sobre
todas as coisas e o nosso próximo por amor
de Deus.
E isto tudo não custa? Negará quem
nunca o experimentou. Mas por outro pre
ço não se chega ao cume do Alverne.
63
Santa Clara cortando os cabelos de ouro
{não é propriamente pecado ter uma cabe
leira bonita), cortou com tudo, tudo o que
a prendia ao mundo. Cheia de felicidade,
•começou a cantar e cantar até ao fim (ape
sar das lutas que teve que sustentar) o
canto inebriante da pobreza absoluta. E
era duma das famílias principais de Assis.
Quando percebeu, já havia atingido altura
vertiginosa.
E assim, todas as almas que compreen
deram o ideal franciscano. Almas peregri
nas, sem nada, nada, nada; desapegadas
de tudo, tudo, tudo.
Mas faz bem lembrar, neste capítulo de lá
grimas e de sangue, um exemplo só: Eva
Lavallière, já bem nossa conhecida. Poderá
haver alma mais escravizada e apegada a
mil coisas, do que a alma de uma mulher
de teatro, bela, moça, rica, cheia de graça
e de talento e de fama? Era assim a alma
de Eva, a comediante de Paris. Ela com
preendeu que assim era impossível, não po
dería subir. Desapega-se de tudo. Foi até
ao heroísmo. Não quis mais ser rica, nem
bela, não quis mais ter admiradores, quis
:64
ser desconhecida, pobre, desapegou-se do
palco, de tudo, e subiu. Aonde terá che
gado?
Subida — 5 65
X
- • ~~ Ti-— .:"T
ATIÇANDO O FOGO
66
que lhe é próprio. E este alimento, já se
disse muitas vezes, é a lenha da mortifi
cação.
Alimentar o fogo, avivar o fogo, atiçar o
fogo da alma, deve ser todo o nosso cui
dado. Foi a grande preocupação dos san
tos, isto é, de toda a alma que, realmente,
subiu.
Por isso, foram taxados de exagerados,
de destruidores da natureza, de negadores
da vida. Eles, porém, insensíveis às crí
ticas e murmurações, pedindo perdão para
os murmuradores, foram subindo alegre-
inente a montanha de seus sacrifícios e de
sua felicidade.
A mortificação espiritualiza o homem,
torna-o leve, parece que até fisicamente ele,
então, não sente a escravidão da matéria e,
livre, como vimos no capítulo anterior, fa
cilmente pode realizar a sua ascensão.
Lembremo-nos de Francisco e de tòda a
legião gloriosa que o seguiu. Já não falo
das penitências heróicas que praticavam,
falo apenas de seu espírito de mortificação,
que vivificou e, maravilhosamente, alou as
suas almas.
5* 67
Almas mortificadas não são almas mor
tas, portanto. Mortificar é subjugar para
vencer, é renunciar para possuir, é negar
para afirmar, é podar para brotar, é'percu-
tir para gerar luz. A mortificação é uma
das mais belas provas da vitalidade de uma
alma. Almas mortificadas são almas que,
realmente, vivem e que produzem e espa
lham vida ao derredor de si. E somente as
almas que vivem podem ter esperança de
subir.
O grande cardial Mercier, que se gloria
va de pertencer à Ordem Terceira de s.
Francisco, gostava de dizer às almas, de
sejosas de perfeição: “Tende costumes aus
teros. Na medida em que mortificardes vos
sas paixões, assegurareis o triunfo de vos
sa vontade livre, a eficácia da graça e a
serenidade de vosso interior”. De almas
assim, serenas, senhoras de sua vontade, se
poderá esperar ascensões maravilhosas.
Coragem, pois; mortifiquemo-nos para
que, cheios de fervor, subamos como o
fogo.
68’
XI
MORTIFICAÇÃO
QUOTIDIANA
69
perto de nós! Só este gênero de mortifica
ção seria bastante forte para atiçar e ali
mentar o fogo de nosso fervor.
E quem domina, assim, os seus pensa
mentos, ocupando-se inteiramente com o
que tem em mãos, desprezando o passado
e o futuro, já andou meio caminho ou mais
ainda para alcançar o espírito de oração,
que é espírito das alturas.
Mas-temos mais ainda onde colher a
lenha seca para atiçar o fogo que nos im
pelirá para cima. Mortificação da língua:
a alma silenciosa, isto é, prudente no falar,
humilde no falar, casta no falar, caridosa
no falar, sincera no falar, respeitosa no fa
lar, sabe que luta, que energia exige tudo
isto. Mas sabe também que é justamente
depois dessas vitórias, que ela experimenta
mais força e mais alegria para galgar o seu
Alverne.
Mortificação dos olhos, mortificação dos
ouvidos, mortificação do paladar, mortifi
cação das comodidades, mortificação das
vaidades e desejo de se mostrar, mortifica
ção . da opinião própria, mortificação de
nossa curiosidade, de nossa dissipação, de
70
■ nossas leituras, de nosso tempo, de nossos
desejos, de nossos gostos. ..
Mas será impossível viver assim?! Per
guntemos aos santos, aos nossos santos
franciscanos, que tão bem compreenderam
a doutrina da renúncia e mortificação, e
eles nos responderão, não somente, que é
inuito possível esta mortificação contínua,
mas que ela se torna uma necessidade da
alma que vive para um ideal superior, e,
mais ainda, que a renúncia é fonte das con
solações mais profundas. Então eles mos
tram, como prova mais convincente, a pró
pria vida, mortificada mas alegre, obscura
mas luminosa, silenciosa mas aproveitada,
desconhecida mas util...
Experimentemos nós também, ao menos
um mês, uma semana, a prática da morti
ficação contínua. Convencer-nos-emos de
sua possibilidade, e gostaremos os frutos de
seu consolo. Longe de nos sentirmos enfra
quecidos, veremos como o fogo desperta e
acende as energias de nossa alma, que só
pode sentir-se bem, em sua vocação, gene
rosamente abrasada, para as alturas.
71
E lembramos apenas essas mortifica-
- ções que estão pertinho de nós, dentro de
nós. Que podemos praticar, sem que nin
guém repare. Às quais nos podemos entre
gar sem medo de estragar a nossa saude
ou abreviar a nossa vida.
Mas essa mortificação, a que eu chama
ria de caseira, se bem que possa ser herói
ca, às vezes, é de absoluta necessidade
para quem deseja subir, sinceramente, o
seu Alverne. E ela está de perfeito acordo
com o espírito de nossa ordem, e com o
hábito (exterior ou interior) que devemos
continuamente vestir. Ao hábito de todo
instante, deve corresponder uma renúncia
de todo instante, naturalmcnte sem exage
ros, mas também sem molezas e conces
sões.
S. Paulo afirmava que “sempre trazia,
sobre si mesmo, a mortificação de Jesus
Cristo”. O mesmo vem afirmando, através
de 7 séculos, s. Francisco e seus verdadei
ros filhos.
Quando, há poucos anos, morria em
Nova York, de um desastre, Goldy Russel,
72
célebre estrela de cinema, um jornalista
americano escrevia “que pouca gente co
nhecia o segredo de sua amabilidade con
tinua”, e monsenhor Sheen, “que poucos
compreendiam como ela pudesse ser tão
pura e piedosa no meio em que vivia”. E’
que a jovem artista, amavel, pura e pie
dosa, trazia sempre, sob suas vestes mun
danas, o cordão e o escapulário da Ordern
de s. Francisco. E quem se reveste, assim,
sinceramente, se compromete a uma vida
de mortificação contínua: então brota a pu
reza no meio do lodo, a piedade no meio
do inundanismo, a amabilidade no meio do
egoismo.
Cultivemos o espírito de mortificação
“caseira”. Despertemos o fogo, e subire
mos... Longo caminho nos resta ainda.
Lá em cima, donde estamos ainda tão dis
tantes, temos que dizer, com Verônica Giu-
liani, verdadeira êmula do santo patriarca:
“Senhor, fazei-me 'sentir as dores de uma
santa paixão, dai-me vossos espinhos, vos
sos cravos. Oh! se a lança, se os cravos
me transpassarem, que felicidade será a
73
minha! Senhor, eis meu coração, minhas
mãos, meus pés, ferí-me de vosso amor”.
Que alturas! que alturas! eis a nossa vo
cação franciscana. Para isso fomos chama
dos e prestamos o nosso compromisso.
Só as almas de fogo subirão. E o fogo
se produz na pedra, percutida pela renún
cia e pela mortificação.
XII
- - ■
EVITANDO QUEDAS
75
pio desastroso arrasta outras almas que se
deixam ficar na planície de suas comodi
dades, esquecidas, criminosamente, de que
a vocação e a felicidade do cristão, do
franciscano está nas alturas, para onde se
deve tender à custa dos maiores sacrifí
cios. Que responsabilidade, pois, é a nossa,
se caimos ou se somos causa de que caiam
os outros! Acautelemo-nos.
Mas que meios havemos de empregar
para evitar as quedas nesta subida glorio
sa, mas tão cheia de dificuldades?
76
outros, mas, silenciosamente, vai galgando
o seu Alverne.
Almas invejáveis essas almas humildes!
Possuem a paz, conforme a promessa de
Jesus Cristo: “aprendei de mim a humil
dade de coração e achareis a paz”. E não
há como a paz interna, para sentir alguém
o anseio das alturas verdadeiras.
E’ tão importante esse meio, para evitar
qualquer queda desastrosa que, sem ele, é
impossível chegar a alma ao cume da mon
tanha. Quando menos pensar, terá o casti
go de seu orgulho. Ver-se-á por terra, quem
já pensava acariciar as nuvens. E’ a histó
ria de tantas e tantas almas infelizes: o
orgulho as cegou, a confiança demasiada
em si mesmas as iludiu. Pensavam que es
tavam a subir e desciam; pensavam que '
tinham grandes reservas de forças e esta- -
vam esgotadas.
f
77
virtude dos pequenos e dos pobres pertence
à essência do franciscanismo verdadeiro.
Por isso s. Francisco, lá perto dos cimos
do Alverne, dizia, sinceramente, de si mes
mo: “não hà pecado, por horrível que seja,
que um homem cometa, que o irmão Fran
cisco não possa também, por infelicidade,
cometed’. E quando um camponês ousado
lhe dizia no rosto: “Olha, irmão Francisco,
que tu sejas de verdade aquilo que os ho
mens julgam que tu és”, ele achava muito
oportuna a observação e mostrava-se agra
decido. Foi por este motivo que o seráfico
pai não caiu, mas subiu sempre. E’ esta,
também, a história consoladora de todos os
seus verdadeiros filhos, fundados na hu
mildade.
Entre outros, o grande doutor francis-
cano, s. Boaventura, ensinava: “meu irmão,
saibas que, se alguém andasse solícito em
se humilhar, ganharia mais graças em um
mês, do que outro em quarenta anos”. Nós
poderiamos dizer: subiria mais em um mês
o seu Alverne, do que outro em quarenta
anos. E de santa Verônica Giuliani, diz o
escritor capuchinho fr. Desidério des Plan-
78
ches unia verdade linda que vem tão a pro
pósito: “mais ela se eleva na luz, mais ela
se abaixa no desprezo de si mesma; è na
mais tranquila humildade que podemos
contemplar o mistério que Verônica nos
revela: Deus descendo tão baixo e o ho
mem subindo tão àlto, no Amor”. E* que
a santa nunca se esquecia de seu nada; e
nos êxtases mais sublimes, portanto na
maior elevação, ela exclamava humilde:
“nenhum pecado mais, Senhor, nenhum
pecado; quero subir, quero amar”.
Bastaria esta virtude, para não nos dei
xar cair. Quando nossa Senhora canta que
Deus “depôs do trono os poderosos e ele
vou os humildes”, resume, de modo claro e
admiravel, o que queríamos dizer: a hu
mildade torna possível a subida, impedindo
qualquer queda; esta fica reservada para os
orgulhosos.
XIII
tm. T-----
MAIS QUATRO
MEIOS PODEROSOS
.80
Leão XIII escrevia ao bispo de Baltimo-
re: “Os que procuram subir a montanha da
perfeição, precisamente porque sobem um
caminho menos frequentado, são mais ex
postos a enganos, e, por isso mesmo, mais
cio que os outros, têm necessidade de um
mestre, de um guia”.
E’, afinal, em última análise, o que nosso
Senhor dizia: "quem vos ouve, a mim ou
ve”, e o que s. Francisco comentava em
seu Testamento: “firmemente quero obe
decer ao ministro geral e ao superior que
lhe aprouver dar-me; e de tal modo quero
estar preso em suas mãos que eu não possa
ir a parte alguma e nada fazer sem a sua
voniacle, pois que ele é meu senhor”. Eis
por que Francisco não errou o caminho e
não caiu. Na vida de seus filhos aparece
consoladora a história da direção, humilde
e prudente, toda sobrenatural: santa Clara,
Isabel da Hungria, Ângela de Foligno, Lu-
dovico de Tolosa, são exemplos, entre mui
tos outros.
82
ele deve nos ajudar eficazmente; é grande a
nossa fraqueza.
Confiança, pois, confiança sem limites;
digamos, de modo novo, como s. Francisco,
•quando se converteu: Pai nosso, que estais
nos céus... E dele esperemos tudo.
84
ma, perseverante ao divino Espírito Santo.
E’ um meio que resume todos os outros.
Devoção de toda hora, de todo momento.
O Espírito Santo é luz, é força, é sabe
doria, é prudência, é fogo, é fervor, é paz,
é alegria...
Escrevia o cardial Mercier: “quem é
guiado pelo Espirito Santo, alcança alturas
maravilhosas na santidade”.
O Espírito de Deus, por sua natureza,
procura os cimos; o espírito do mundo, o
que é baixo...
Ponhamo-nos sob o seu influxo divino.
De manhã, à noite, no princípio das ações
mais importantes do dia, invoquemos o Es
pírito santificador.
Usando estes meios, tenhamos a certeza:
não havemos de cair, mas a nossa vida será,
apesar de tudo, uma contínua ascensão
para Deus.
xrv
£ . :
NAS FONTES
DAS AGUAS VIVAS
86
Lá no cume do Calvário, Jesus Cristo, em
seus últimos instantes, confessa o seu gran
de martírio, quando exclama: “Tenho
sede”, merecendo-nos, assim, por essa tor
tura atroz, a graça de encontrarmos, na
subida penosa para a nossa perfeição, fon
tes de águas vivas, onde nos dessedentar.
E tinha que ser assim mesmo. Pois ele
beatificara as almas sedentas: “Felizes os
que têm fome e sede de justiça” (Mt 5,
6)... prometendo-lhes o refrigério. “Quem
tiver sede, que venha a mim e beba”
(Jo 7, 37).
Então se compreende a palavra de
Isaias (44, 3): “Derramarei água em abun
dância sobre quem tiver sede”. Não mor
reremos, não cairemos, desfalecidos, sobre
as rochas do caminho. Aquele que diz “ser
o Alpha e o Omega”, acrescenta :“Eu darei,
gratuitamente, da água da vida a quem
quiser beber” (Ap 21, 6).
E nós pensamos na alegria imensa de
s. Francisco, quando, à hora de comer o
pão da esmola, sentava-se, com seus com
panheiros, à beira de algum regato de
águas frescas, e todo se comovia, não sa- ,
87
bendo como agradecer à Providência divina
que lhe dava aquele lauto banquete: o pão,
imagem do outro pão, corpo de Cristo, e
a água casta, imagem da graça, que lhe
era dada em abundância, graça que sem
pre foi a bebida dos santos.
Como tudo isso é consolador para quem
deseja subir! Não percamos tempo, imagi
nando se chegaremos ao cume ou se des
faleceremos no meio da ladeira. Nada nos
falta. Eis diánte de nós as fontes das águas
vivas. Bebamos.
Jesús Cristo nos anima mais uma vez:
“Quem beber da água que eu lhe der, nun
ca mais terá sede; pois a água que eu lhe
darei, virá a ser nele uma fonte de água
que jorre para a vida eterna'f (Jo 4,. 13).
Duvidaremos ainda? Bebamos. E subi
remos. E nossas forças nos sustentarão
até ao fim.
Senhor, dai-nos de beber...
XV
OS SACRAMENTOS
QUOTIDIANOS
89
dos os que se aproximam dessa fonte pro
digiosa, com as devidas disposições.
Quando s. Francisco penitente, em ora
ção de lágrimas, recebeu a revelação de
que seus pecados todos lhe estavam per
doados, sentiu em si tal alegria e entusias
mo que toda altura lhe parecia atingível.
Sonhou, então, com o amor de serafim e
com o sofrimento de mártir. E este sonho
ele o realizou plenamente: tornou-se um
serafim chagado. Não podia subir mais
alto.
, Não ^recebemos revelação do céu que
nossos pecados, antigos e recentes, nos es
tão perdoados; mas a fé nos poderá dar
testemunho, em nossa alma, de que nós
fizemos tudo para nos purificar, lavando-
nos no sangue do cordeiro.
Este testemunho interno nos invade de
uma grande paz. Sabem-no todos, por ex
periência própria. E não há disposição mais
feliz para qualquer empresa nobre do que
a paz da alma.
Aproveitemo-nos, pois, do manancial ri
quíssimo do sacramento da confissão. Be-
bamos nele, a largos sorvos, o sangue di-
90
vino, que vem purificar, melhorar, trans- •
formar o nosso sangue fraco e corrompido.
Passando pelo nosso coração, o faz bater
num ritmo perfeito, quanto possível, com o
coração de Jesus Cristo. Eis por que os
santos, as almas fervorosas, perseveraram
nessa escalada heróica da perfeição.
Quem não conhece a história comovente
da confissão de três dias, de Eva Laval-
lière? Foi o começo de uma vida sublime.
Depois, a confissão frequente, concienciosa,
a mantinha em suas santas resoluções, ape
sar de todas as dificuldades.
A confissão é a coroa da humildade.
Como fica bem, portanto, na alma do fran-
ciscano. Humildade, sinceridade, dor, lá
grimas, ao menos do coração, energia e
coragem, espírito de penitência, eis o que
a confissão bem feita desenvolve em nós.
E, com estas forças, quem não subirá?
Achegucmo-nos, pois, com regularidade,
ao menos de mês em mês, desta fonte de
água viva, lembrando-nos dos cinco pontos
para uma boa confissão (exame de con-
ciência, arrependimento, bom propósito,
acusação e satisfação) que bem nos pode-
91
riam simbolizar as cinco chagas de Cristo,
jorrando sobre nós o sangue preciosíssimo.
E, reconfortados e pacificados, havemos de
subir.
92
rer. Mas o Senhor usou cie misericórdia
para com ele. Enviou-lhe um anjo que, tra
zendo-lhe do céu um pão e um vaso d’água,
o despertou dizendo: “Levanta-te e come:
porque ainda tens que caminhar muito”
(3 Rg 19, 7). E a Sagrada Escritura acre
scenta para nosso ensinamento e anima
ção: “Tendo-se Elias levantado, comeu e
bebeu, e com o vigor daquela comida, ca
minhou quarenta dias e quarenta noites, até
ao monte de Deus, Horeb”.
Como tudo vem a propósito nessa narra
ção, para despertar a nossa fé na força
desse alimento maravilhoso! Não é a nossa
história? Quanta vez, sem coragem, dei-
tamo-nos a dormir, vergonhosamente, à
sombra de nossas comodidades, e pedimos
a morte para fugirmos à dificuldade da
ascensão ao nosso Alverne?! Então Deus
manda o seu anjo: um sacerdote, um ami
go, um bom exemplo, um livro, uma ins
piração... E o anjo nos diz: Levanta-te,
come, bebe... tens que caminhar, tens
que subir.
93
São felizes aqueles dos quais se pode
dizer: “levantaram-se... e, na força dessa
comida e dessa bebida, puderam alcançar,
depois de uma ascensão penosa, o cume da
montanha de sua perfeição”. Felizes!
E não é isso o que queremos? Saibamos,
portanto, rodear o altar santo, saibamos re
ceber a eucaristia, que é comida, que é be
bida.
“Quem come deste Pão, viverá eterna-
mente,t (Jo 6, 59). Nós poderiamos tra-.
duzir, com a mesma verdade: “quem come
deste Pão, subirá eternamente”. Pois que
a verdadeira vida é ascensão contínua, é
subida sempre, tanto na terra como no céu;
daí a felicidade dos santos que nunca en
velhece.
S. Francisco seráfico praticou esta dou
trina perfeitamente. Nas paradas de sua pe
regrinação gloriosa, nós o encontramos ou
na solidão da natureza ou na solidão dos
templos; nesses, bem pertinho da fonte pre
ciosíssima, o santo tabernáculo, donde se
levantava com novo ânimo para galgar o
Alverne.
94
A eucaristia ficou sendo, assim, bem da
família franciscana. Quantos de nossos
santos e bem-aventurados nos são repre
sentados com algum símbolo ou realidade
eucarística! S. Lourenço de Brindes, com
suas longas barbas brancas, mergulhado •
num oceano de luz e vida, no altar em que
celebra, parece-nos a imagem perfeita da
juventude perene que sempre tem coragem
de subir. E o jovem Pascoal Bailão, traba
lhando, no campo ou no convento, ilumi
nado pelo ostensório, nos ensina a vida
quotidiana, que procura, a todo instante,
na humildade, os cimos da perfeição.
Sejamos sinceros, examinemo-nos por
que não subimos. E, talvez, ouçamos a
queixa divina: “Insensatos, desprezaram a
mim, fonte de água vivai...” (Jr 2, 13).
Procuremo-la, enquanto é tempo. Apro-
veitenio-nos desse caudal inexhaurivel. A
comunhão mensal, ou semanal, ou diária.
A santa missa. O tabernáculo silencioso
durante o dia. As bênçãos do Santíssimo. A
hora santa.
Quem se queixará de não poder subir?!
95
Os santos se compadecem de nós, em
nosso desânimo e tristeza, em nossa indo
lência, pois as fontes de água viva estão ge
nerosamente à nossa disposição. A nossa
subida poderia ser tão jubilosa! Se, ape
nas, quiséssemos ouvir a palavra do pro
feta: “Bebcreis, com alegria, as águas das
fontes do Salvador!” (Is 12, 3).
XVI
1“
O GRANDE IMPULSO
98
facilmente, de que, se a vida é reflexo da
oração, a oração é também reflexo da vida?
A terra produz o que se semeia. E o
agricultor, desejoso de colheita abundante,
prepara o solo cuidadosamente. Ninguém
pensa que possa haver flores e frutos, sem
arbusto ou sem árvore, sem ramos e sem
raizes.
A oração é floração e frutificação da
vida de fé. Sem esta, é inútil esperar por
aquela.
Para nós, franciscanos, deveria ser na-
turalíssima, espontânea, a oração íntima,
perfeita. Pois a vida franciscana verdadei
ra é de molde a deixar a alma apta para
se elevar nas asas da oração. Eis por que
nós vemos Francisco, o santo patriarca,
“todo transformado em oração”, como es
crevia, deliciosamente, s. Boaventura. Eis
por que todos os seus primeiros discípulos
foram homens de verdadeira oração. Os
templos eram acanhados para eles, por isso
souberam, pelo seu espírito de fé e pie
dade, transformar toda a natureza em um
templo imenso, onde pudessem orar conti
nuamente a Deus nosso Senhor. — Es.
7* 99
Francisco, tendo duvidado, seriamente, se
devia trabalhar ou somente rezar, quando
venceu a dúvida deixou a seus verdadeiros
filhos, através dos séculos, como herança,
uma inclinação e gosto pronunciados para
a vida contemplativa. Surgiu, assim, com
Francisco, toda uma legião de almas oran-
tes, de almas místicas, dispostas a guarda
rem, pelos tempos em fora, apesar de to
das as dificuldades internas e externas, a
valiosa herança paterna: o espírito de ora
ção. “Ao qual, como escreve o legislador
seráfico, devem servir todas as coisas tem
porais” (Regra).
Surgiram assim os Boaventuras, os An-
tonios, os Ãngelos, as Claras e Verônicas,
as Isabeis e Humilianas, as Ângelas e Mar
garidas, os Luquésios e os Talbots, os Lu-
dovicos e os Mercier. São de todas as ida
des e de todas as classes, de ambos os
sexos e de todas as posições, mas dando
todòs, de modo edificante, o mais belo
exemplo da vida profunda de oração fran-
ciscana. E quanto maior atividade desen
volvem, como um Solano ou um Lourenço
de Brindes, mais se entregaram ao santo
100
exercício da oração silenciosa, tão esqueci
da, e nós vemos com que tristes consequên
cias, pelos “apóstolos” modernos.
Sejamos filhos de s. Francisco verdadei
ros, filhos da oração, e sentiremos o grande
impulso que, quasi sem trabalho nosso, nos
colocará bem alto. Seremos daqueles dos
quais fala a Imitação de Cristo “que são
movidos pela graça de Deus”, que andam,
quasi sem experimentar fadiga.
XVII
VIDA DE ORAÇÃO
102
dificuldades, as nossas distrações, as nos
sas queixas.
Se queremos, portanto, aprender a rezar,
não é necessário, nem mesmo possível, que
rezemos sempre, mas é necessário e bem
possível que, ainda no meio de nossos tra
balhos, ocupações e passatempos honestos,
vivamos sempre o espírito de nossa oração;
nem pensemos, ou digamos, ou façamos
coisa alguma que venha destruir, de todo
ou em parte, a nossa união com Deus, no
tempo exclusivamente a isso destinado, que
é o tempo da oração, seja ela vocal ou
mental, litúrgica ou particular.
Quando nós tivermos procedido assim,
concienciosamente, isto é, vivido para a
nossa oração e sob o influxo de^nossa ora
ção, veremos como ela se transforma.
E não há vida mais própria para fomen
tar a verdadeira oração do que a vida fran-
ciscana bem compreendida.
Pois é o orgulho, a sensualidade, o apego
às coisas terrenas, a indolência, a falta
de caridade que mais impedem o santo'
exercício da oração. Ora, nós sabemos per-
103
feitamente que tudo isso é, de todo, con
trário à essência da vida franciscana.
O filho de s. Francisco deve ser, por for
ça de sua vocação, humilde, mortificado,
puro, desapegado, trabalhador, caridoso;
e estas virtudes seráficas o colocam, sem
mais, na classe dos verdadeiros contem
plativos, ainda que tomemos esta palavra
na sua significação mais sublime. A vida
de nossos irmãos, até dos mais humildes e
desconhecidos e iletrados, a começar pelo
encantador frei Gil, nos dá provas, de so
bejo, desta asserção.
Quando Matt Talbot deixou, resoluta e
heroicamente, a bebida e, com ela, toda
uma vida indigna — ajoelhou-se para re
zar e os céus se abriram diante de seus
olhos purificados e extasiados. E ele que
antes, talvez, apenas tolerasse um Padre
nosso sem enfado, perseverava agora, ho
ras inteiras, de braços abertos, na mais
profunda e sublime união com Deus. En
tretanto, Matt continuava a trabalhar como
operário, continuava a ser ignorante, con
tinuava a ser filho do seu meio; uma coisa
só, porém, mudara completamente, a sua
104
vida já era a de um santo; a sua oração-
tinha que mudar também. E ele sentiu o
grande impulso que o colocou nas alturas.
De resto, temos a lição do divino Mes
tre, quando afirma que “os puros verão a
Deus”. Vidas puras são vidas santas, vidas
longe do mal, do pecado, sob qualquer
forma que seja, que é uma impureza sem
pre. Ora, afirma nosso Senhor que essas
almas verão a Deus. Somente no céu? Não,
já aqui na terra, pela fé, na oração prin
cipalmente. Fica, assim, pois, bem clara a
relação íntima entre a vida e a oração, que
se pode chamar, sob certos aspetos, de
união com Deus,, visão de Deus.
Se tivermos compreendido bem o que
aqui fica dito, teremos sentido, sem dúvida
alguma, o grande impulso que a oração
representa para a nossa ascensão penosa.
XVIII
- - - € *- --I— ■
MEDITAÇÃO
107
lhos de s. Francisco, que realizavam a sua
vocação ao Alverne.
Mas, enquanto nós não atingimos a
esta perfeição, temos que nos sujeitar a
certa disciplina, quanto ao horário, e a
certo método, quanto ao modo.
Não nos prendamos, porém, demasiada
mente a sistemas. Saibamos conservar a
santa liberdade franciscana. Nada de for
malismos. Seja viva a nossa meditação.
108
As quatro letras da palavra citada nos *
lembram as quatro partes principais de uma
verdadeira meditação franciscana.
Exemplifiquemos. Vamos meditar sobre
a palavra do santo patriarca, “o Amor não
é amado”.
O a nos lembra a adoração, despertando
a nossa fé na presença de Deus, o que é
importantíssimo para o nosso recolhimento.
O m nos lembra a meditação propria
mente dita ou reflexão sobre o tema esco
lhido; no caso, quem é o Amor? quanto ele
nos amou? que provas nos deu do seu
amor? e quão pouco amor ele encontra nas
criaturas? injúrias, desprezos, blasfêmias,
esquecimentos, ingratidões, friezas, negli
gências...; quão poucos amigos verdadei
ros?! quantos Judas e Pilatos e fariseus?
os santos o amaram; como se distinguiram?
que santos falam mais do Amor? como pro
vavam eles o seu amor? (e podia-se fazer
esta reflexão de muitos outros modos, bem
diversos).
O o nos lembra a oração, isto é, os afe
tos ou colóquios com nosso Senhor, a alma
conversa com ele; no caso, como eu qui-
109
scra amar-vos muito e muito, quisera re
parar os anos em que não vos amei, quisera
ser s. Francisco, quisera ser um serafim
para vos amar sem descanso, etc., etc.
O t nos lembra a resolução que deve
mos formular: no caso, quero amar-vos,
Senhor, evitarei toda falta no dia de hoje,
principalmente esta ou aquela, ou quero,
durante o dia, fazer muitos atos de amor,
etc. Tudo isto, é claro, deve brotar espon
taneamente da alma, tanto a meditação,
como os afetos e resoluções.
E se estivermos cansados, muito preocu
pados com alguma coisa, lutando com as
distrações e aridez, seguremos, então, um
livro, e vamos lendo-o devagarinho, com
pausas, entremeadas de jaculatórias, e ha
vemos de despertar, assim a nossa aten
ção, devoção e fervor.
A meditação quotidiana, alma de nossa
liturgia, de nosso ofício, de nossa vida de
oração, deve ser feita, custe o que custar.
O resultado consolador não se fará esperar.
O impulso dado nos porá quasi lá no
cume.
110
Razão tinha o salmista-rei, quando pedia
a nosso Senhor que “sua oração subisse
como incenso, diante dele” (SI 140, 2). Ele
pedia a graça da oração perfeita, certo de
que,' quando a oração sobe, sobe também a
alma orante.
Façamos o mesmo pedido, em união com
s. Francisco seráfico e com toda a multi
dão de almas contemplativas, únicas que
honram o pai, e que o vêm seguindo atra
vés de 7 séculos. r
E com ele e com elas, chegaremos, ale
gres, ao topo da montanha santa.
XIX
grgr^--
_ -jzrsz
GARANTIA DE ÊXITO
112
bra o problema importantíssimo, cuja so
lução tem que ser o amor, abrindo-se ge
neroso, para todos os lados, em ondas que
sobem e descem, sem desprezar a nin
guém.
Eis a caridade de Jesus Cristo, que nos
faz dizer a cada um de nossos compa
nheiros, ou que sobe com ânimo ou que
corre loucamente ou que jaz na indolência:
“tu és o meu próximo, tu és o meu irmão”.
E se agirmos de acordo com está pala
vra evangélica, teremos resolvido a grande
dificuldade, que é, entre outras, a que mais
impede os homens de subirem.
E’ edificante ouvir com que instância as
almas místicas nos lembram esta verdade:
quanto mais subimos, mais descemos para
junto de nosso próximo; a contemplação
não nos isola, une-nos a nossos irmãos;
das alturas da montanha é que se desco
bre a miséria da planície; quanto mais al
guém se aproxima de Deus, mais se apro
xima também de seus semelhantes; uma
prova autêntica do amor de Deus é o amor
do próximo, pois que o amor universal se
transforma no amor singular.
Subida — 8 113
Estes princípios luminosos de um Boa-
ventura ou de um Bernardino de Sena ou
de qualquer outro franciscano, temos que
reduzi-lo à prática, se não queremos parar
a meio caminho ou nos despenhar pela
montanha abaixo.
A quantos, que sonhavam com uma
ascensão, a falta do amor fraterno os preci
pitou na planície vergonhosa!
E tem que ser assim mesmo. Pois Jesus
Cristo, o divino mestre, declarou solene
mente que o sinal distintivo de seus discí
pulos é um (e só os seus verdadeiros di
scípulos podem subir): o amor recíproco,
sincero, perseverante, ativo, sobrenatural,
universal.
ET tão clara a doutrina do Evangelho
neste ponto: “Nisto reconhecerão todos que
sois meus discípulos, se vos amardes uns
aos outros”. — “Eu vos dou um novo man
damento, que vos ameis uns aos outros,
assim como eu vos amei”.
E amar não só os nossos parentes, ami
gos, os que nos são simpáticos, mas amar
até (isto é, não desejar mal, fazer-lhes o
bem, quando possivel) os que nos prejudi-
114
carn, os nossos inimigos e perseguidores,
retribuindo o mal com o bem, apresentando
a face esquerda a quem nos bateu na di
reita, oferecendo o manto a quem nos es
poliou da túnica, andando três mil passos
com quem nos exigiu apenas mil. Como
tudo isso é difícil, heróico! Não há dúvida.
Mas tudo isso é o Evangelho.
E o Evangelho ainda nos lembra que
encontraremos pecadores e criminosos em
nosso caminho; é preciso perdoar-lhes, di
zendo-lhes uma palavra de paz. Encontra
remos aleijados e leprosos; é preciso con-
solá-los e curá-los, se fôr possível. Encon
traremos nus e maltrapilhos; é preciso ves
ti-los. Encontraremos mortos; é preciso se
pultá-los. Encontraremos famintos e se
dentos; é preciso dar-lhes pão e dar-lhes
água. Encontraremos doentes e encarcera
dos; é preciso visitá-los...
A todos esses e a muitos outros irmãos
da pobreza e do sofrimento, Jesús Cristo
chama seus embaixadores, seus enviados,
seus representantes.
E de tal modo o divino Mestre quer que
tomemos a sério esta representação ou dis-
8* 115
farce divino, que diz que tudo o que fizer
mos ao menor, ao mais fraco, ao mais in
digente, miserável e sofredor, é como se a
ele mesmo o fizéssemos.
Eis a mais sublime consagração do amor
fraterno, diante da qual não podemos pas
sar indiferentes: é necessário tomarmos
uma posição.
A posição é uma só: mãos postas, olhar
para o alto, exclamando, com sinceridade:
“Pai nosso...”. Mas se é Pai de todos
nós a olhar para os lados, para todos os
homens, exclamando: “Vós todos, meus ir
mãos. ..”.
Esta posição nos põe quasi no cume da
montanha santa. Pois “quem ama o seu
irmão, cumpriu a lei”.
Agora compreendemos por que tão pou
cos sobem; agora compreendemos por que
há tantos anos marcamos passo ao sopé
do monte, ou pouco mais acima. Sem a
caridade perfeita, desinteressada, perseve
rante, não se pode pretender as alturas da
perfeição.
Por isso s. João Evangelista, que subira .
tão alto até reclinar a cabeça no peito do
116
divino Mestre, não se cansava de aconse
lhar, nos seus últimos anos, aos seus discí
pulos caríssimos, desejosos de1 subirem:
“Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros7’.
E quando os discípulos, cansados de ouvi
rem sempre o mesmo ensinamento, pergun
tavam ao mestre por que não variava de
tema, tiveram como resposta: “porque, se
vos amardes mutuamente, só isto bastarei”.
117
tudo oculta, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta...”. Que programa rico!
E* necessário estudá-lo, examiná-lo, para
não andarmos errados. E’ necessário con
frontá-lo com a nossa vida, para que no
fim não sejamos obrigados a confessar
tristemente que demos grandes passos, mas
fora do caminho; andamos entre mil fadi
gas, mas não subimos. Que coisa horrível,
uma decepção assim, e quando já não hou
ver possibilidade ou esperança de voltar
atrás!...
XX
CARIDADE FRANCISCANA
119
Eis por que são Francisco subiu tão de
pressa e tão alto e levou consigo tantas e
tantas almas que sentiram o calor de sua
caridade e viram a força do seu exemplo.
Nenhum santo, talvez, realizou melhor
do que ele a idéia da fraternidade, ensi
nada por Jesus Cristo. Para o serafim cha
gado, todos eram irmãos. E este titulo for
moso, ele o usava prodigamente. Era o
“irmão leproso”, o “irmão verme”, o “ir-
mão ladrão”, as “irmãs cotovias”, os “ir
mãos pobres”, os “irmãos menores”, os
“irmãos imperadores e reis”, os “irmãos
mendigos e desprezados”, os “irmãos letra
dos e os ignorantes”, os “irmãos prelados
e senhores”... E todos, percebendo que
esta palavra não era vazia de sentido, mas
que vinha exuberante de caridade, de amor,
sentiam vontade de subir com ele a monta
nha da santificação.
E’ o caso do poeta que ouvindo de Fran
cisco a palavra “irmão”, num tom suavís
simo de sinceridade, deixou de cantar para
a terra e começou a cantar só para o céu.
120
E’ o caso dos ladrões, a quem Francisco,,
numa prodigalidade de afeto, chamou de
“meus irmãos”, dando-lhes pão e queijo;
comoveram-se a tal ponto aqueles homens
rudes, com aquela linguagem nova, que,
mudando de vida, se tornaram verdadeiros
irmãos de hábito do Poverelo. E começa
ram a subir.
Como Francisco, os seus verdadeiros di
scípulos souberam olhar ao redor de si,
onde descobriram irmãos numerosos a quem
amaram sem medida.
Entre todos, aparece Isabei da Hungria.
a santa de cora.cão
* imenso e de mãos aber-
tas e de horizontes vastos, para dar por
toda parte. Ela soube olhar e soube desco
brir os mais miseráveis irmãos de Cristo,
que esperavam a sua caridade, o seu afeto.
E, o que é mais dificil, soube perdoar os
seus próprios parentes que lhe moviam
guerra, perdoar-lhes para os amar. Admi
rável existência, tecida de amor heróico.
Alas o resultado nós o sabemos: com pouco *
mais de vinte anos de idade, estava no
cume glorioso do monte Alverne.
121
Convençamo-nos: a garantia da nossa
ascensão está no amor que tivermos para
com o nosso próximo; amor no sentido do
Evangelho.
Fechemos os olhos para rezar. Mas
abramo-los bem para encontrar o nosso ir
mão, seja ele branco ou preto, sábio ou
idiota, rico* ou pobre (ele está por toda
parte) e, encontrando-o, saibamos amá-lo.
Com santo orgulho, devemos olhar para
este aspeto da nossa vocação na hora pre
sente, tão trabalhada de desuniões e de
ódios, de guerras e de destruições. Como é
sublime a nossa missão: ter um amor largo
como o mundo, e comprido como a nossa
vida inteira!... E, subindo, elevar também
o nivel moral da humanidade.
Daremos muito, se dermos tudo. E dare
mos tudo, se dermos a nós mesmos, ainda
que transformados apenas num pedaço de
pão, mastigado pelos homens.
Amemos, amemos!... O Alverne será
nosso. E quanto mais amarmos, mais for
ças teremos para subir, apesar das de-
122
cepções e ingratidões que não faltarão, por
graça de Deus, para purificar o nosso
amor.
Guardemos esta palavra: a garantia do
êxito é o amor fraterno. Só ele nos dará o
direito, selado com as chagas de Cristo e
do seráfico pai s. Francisco, de subirmos
até ao fim.
XXI
124
amor divino, é ver uma alma que compre
endeu a sua mais elevada missão e para ela
se aprimora, todos os dias, na paciência,
na abnegação, no amor do próximo. Ver
uma alma que se consagrou inteiramente ao
Amor dos amores é ver quasi um anjo, um
serafim em forma humana.
E dizer que nós não somente podemos
aspirar a estas alturas, mas que até somos
obrigados, por um preceito formal, insis
tente, da parte de nosso Senhor, a amá-lo,
“com toda a nossa alma, com todo o nosso
entendimento e com todas as nossas for
ças”. '
Que horizontes dilatados se abrem dian
te de nós, ao ouvirmos este preceito lumi
noso! Temos direito de desejar tudo, de
tudo esperar. Não há elevação da qual se
deva dizer: é demais para mim. Não, nós
podemos até sonhar com um Alverne todo
em chamas de amor. Não o conseguimos,
infelizmente. Mas poderiamos conseguí-lo,
se realizássemos o preceito divino "com
toda a nossa alma, com todas as nossas
forças”.
125 ,
Mas o esforço sincero já nos faz subir;
pois já ama, de certo modo, quem procura
amar.
Compreende-se, assim, por que foi jus
tamente lá sobre o Alverne que Francisco,
em lágrimas, pediu ao céu “que ele sentis
se, se fosse possível, o mesmo desmedido
amor, em qtie se abrasara o Coração de
CristoE’ que ele já sentia, sem dúvida,
o fogo a despertar sob as cinzas da peni
tência heróica.
Do amor de Deus se pode dizer, em ver
dade, que só o deseja quem já o possue,
ao menos em fagulhas. E quanto mais se
avolumam essas fagulhas humildes, mais
cresce o desejo de que elas se tornem la
bareda intensa.
Alma feliz, que sen-tiu essa tortura ine-
briante: em breve, ela estará no cume da
montanha, a cantar com os serafins cru
cificados e chagados.
126
Por isso todos os santos misturavam os
anseios da dor com os anseios do amor:
queriam sofrer porque queriam amar, e
queriam amar porque deviam sofrer.
E’ este amor divino que ditou as mais
belas páginas da literatura religiosa: ver
dadeiros poemas, inspirados pelos anjos, e
que elevam a nossa alma para as coisas do
alto, fazendo-as desejar o gozo de uma
centelha, ao menos, do verdadeiro amor.
Subir o monte Alverne não é outra coisa
do que amar o Amor. E se nós nos demo
rarmos em tantos outros capítulos, é que
eles são necessários para que a alma se
prepare para o ato mais sublime que ela
pode produzir: o amor de Deus.
Realmente, se tivéssemos o dom de, sem v
mais nada, acender o amor divino em uma
• alma, tudo o mais seria inútil, porque é o
amor que, em verdade, desperta a vontade,
rompe com o pecado, cria e mantém o am
biente, desapega a alma do que é terreno,
atiça a chama do fervor penitente, evita as
quedas desastrosas, leva a alma sequiosa a
aproveitar-se das fontes das águas vivas,
127
ensina-lhe a arte sublime da oração e apla
na o caminho da caridade fraterna.
Mas, ai! como somos fracos, como nos
arrastamos nas trevas dos nossos apegos e
ignorâncias. Eis o que torna tão longa e
penosa a subida.
Se nós compreendéssemos a definição
profunda de s. João que “Deus é Amor”, e
que só o amor o atinge, como simplifica
ríamos a nossa ascensão dificil, e como
passaríamos uma vida aproveitada e subli
me lá no cume da montanha.
128
Amor, ó Deus, que por amor do meu amor
vos dignastes morrer”.
0 coroamento de nossa vocação francis-
cana depende desta oração, se nós, pela
nossa humildade e insistência, conseguir
mos que ela se torne realidade em nossa
vida. Então veremos tudo do alto, e não
sofreremos a influência das criaturas que,
involuntária ou voluntariamente, nos afas
tam de nosso fim. E tudo se mudará ao
derredor de nós. E nós não nos reconhe
ceremos mais: transformados no Amor, vi- a
veremos de amor para o Amor. E’ o co
meço da vida eterna.
Subida — 9
XXII
A LIÇÃO DO DOUTOR
SERÁFICO
130
vera até ao fim. Não há nada impossível
, para o amor, que gosta de lutar, porque
gosta de vencer. Como é consolador estu
dar, na vida dos santos, o capítulo do amor.
Foi esta força suavíssima do coração que
os tornou heróis. Não se deixavam intimi
dar; afrontavam as feras e as grandezas. O
amor os colocava na categoria dos gigan
tes. Para eles não havia escuridão, não ha
via medo, não havia abismo. Lembremo-nos
de como sempre ardeu, no coração de Fran
cisco e de todos os seus verdadeiros segui
dores, a ambição do martírio. Quando o
seráfico patriarca ouviu a notícia do martí
rio de seus primeiros filhos, lá no Oriente,
exclamou, jubiloso: “Agora temos verda
deiros frades menores”. E’ que o serafim
chagado queria, em todos os tempos, filhos
cheios do amor insuperável.
Inseparável é o amor que nos une, inti
mamente, a Deus nosso Senhor. Nada, en
tão, dele nos separa. Nem as provações
e os sofrimentos, nem as tentações ou as
humilhações, nem as posições .e as honras,
nem as ciências ou as amizades, nem os
trabalhos e as alegrias, nem a saude ou a
9* 131
doença, nem os homens, ou os demônios,
nem a vida; nem a morte, nada nos poderá
separar do amor de Deus. Com que santo
entusiasmo dizia s. Paulo coisa semelhante!
E isto é o lado negativo. O lado positivo
muito mais consolador é o amor que nos
aproxima de Deus, que nos une a ele, nos
funde nele e nele nos transforma. E a alma
compreende, de um modo novo, a expres
são paulina “nele nos movemos, vivemos e
somos”. A vida de Francisco é um exem
plo de toda hora: depois de sua conversão,
desde que ele chorou o “Amor que não é
amado”, nunca mais o encontramos só; é
sempre ele com seu Deus, com seu Pai,
com seu Amigo, com seu tudo. Santa Ve
rônica Giuliani escreve, no seu Diário ad
mirável: “eu me sentia toda abrasada, quei
mava sem ver o fogo; desapegava-me de
tudo, inflamando-me no amor de Deus; e
exclamava: Amor! Amor! e não podia se
parar-me dele”.
Insaciável é o amor que não descansa,
nunca pára, nunca diz “chega” ou “basta”.
Quanto mais ama, mais quer amar. Esta é
a inquietude dos santos, mas inquietude
132
beatificante. Não se aborrecem no amor,
não se enfastiam no amor, não envelhecem
no amor. Sempre jovens, sempre moços, sen
tem a alegria da corrida, a alegria da ascen
são. Vidas cheias, vidas felizes. Vidas sem
pre aproveitadas, porque sempre iluminadas
por um ideal sublime. Não perdem um só
instante, porque, a todo momento, querem
mostrar a Deus que o amam, e, assim, trans
formam tudo em amor. E’ o trabalho, o
estudo, o repouso, o sofrimento, a alegria,
o dia, a noite, a saude, a doença, a oração
e o apostolado, tudo eles convertem em um
ato de amor, sempre mais perfeito, por
que, com razão, nunca acham que amam
bastante a Deus nosso Senhor. Por isso
s. Francisco, no fim da vida, ainda queria
começar; nada havia feito para o Amor, e,
chorando, pedia amor, mais amor. O que
significa a luta de santa Clara pela pobre
za "absoluta? E’ que o seu amor não se
satisfazia com alguma coisa, queria tudo:
amor, realmente, insaciável.
Subida 133
XXIII
MÍSTICA FRANCISCANA
134
a mim, e eu que vos ame pelo vosso pró
prio amor; vinde, vinde depressa, vindeI Oy
Amor, amor de meu Deus,f.
E terminaremos com esta confissão pro
funda, vendo a nossa indignidade: “Meu
soberano Bem, vós que sois o Amor, amai-
vos por mim, porque o Amor somente è que
•pode amar o Amor”.
Agora compreendemos um pouco melhor
por que o seráfico pai derramava abundan
tes lágrimas, dizendo: “O Amor não é ama
do”.
Agora compreendemos um pouco melhor
as explosões seráficas da alma de Francis
co, quando exclamava: “Tu és santo, ó Se
nhor e Deus e único que operas maravilhas.
Tu és o bem, todo o bem, o sumo bem. Tu
és a sabedoria. Tu és a beleza. Tu és a
mansidão. Tu és a caridade, o amor...”.
Para grandes corsas somos chamados,
nós, filhos do Poverelo, irmãos dos sera-,
fins...
Subamos! Que o cume abrasado do Al-
verne está alí, bem perto... Amor! O’
amor divino! .v .
135
v.
XXIV
CRUZES, SENHOR!
MAIS CRUZES!
136
cruzes, aos sofrimentos, às humilhações, o
amor até à loucura...
A dor é o selo legítimo do amor. Quem
ama, sofre; quem ama, quer sofrer, para
provar seu amor. E a maior tortura de
quem ama é viver sem sofrimento, pelo
medo de que o bem estar e o gozo o façam
perder o amor. E com quanta razão!
E’ por isso que tão poucas são as almas
que progridem na via do amor e nela per-
severam, porque, para isso, deveríam abra
çar a cruz, sob qualquer forma que ela se
apresente, e é o que não querem, ou para
o que não sentem coragem.
Entretanto, o Mestre divino afirmou cla
ramente esta verdade, resumindo nelá toda
a sua doutrina: “Quem quiser vir após mim,
negue-se a si mesmo, tome às costas a sua
cruz, quotidianamente, e siga-me”.
Ir após de Cristo é sentiría sua atração,
desejar o seu amor. Mas, para que a alma
dele se possa aproximar, é necessário que
ela vá marcada com o sinal da cruz. Só,
então, o seguirá, em uma união e transfor
mação perfeitas.
137
Compreendamos esta verdade dolorosa,
que, sem ela, é inútil todo o esforço; e todo
o estudo que tivermos empregado para
subir terá como resultado uma grande de
cepção.
Esta é a verdade clara, para que não nos
iludamos a nós mesmos: só o amor heróico
à cruz é que nos conservará, felizes, no
* cume da montanha. Isto é cristianismo, isto
é franciscanismo, isto é santidade legítima:
amar e sofrer. E’ o resumo do Evangelho;
é a essência da vida de Jesus Cristo.
Assim foi a vida de são Francisco e de
todos os que o seguiram em verdade. Por
isso alcançaram todos as alturas do Alver-
ne, onde estabeleceram as suas tendas.
Não nos enganemos com a pretensa for
ça moderna dos números e do movimento;
a força vitoriosa, ainda hoje, é a força da
profundidade e do sofrimento, força gera
da pelo amor.
E o mundo atual, preocupando-se, doen
tiamente, com não sei quantas místicas no
vas, que lhe infundem ou pavor ou espe
rança, esquece-se da verdadeira e única
138
mística, rica em realizações e heroísmos: a
' mística da cruz.
* •
Quando o jovem filho do rico Pedro Ber-
nardone, Francisco de Assis, resolveu subir
a montanha do Evangelho, isto é, de sua
santificação, despojou-se de tudo, reves
tindo-se de uma túnica remendada, ornada
só com o sinal da cruz, deixou que seus
parentes e amigos o chamassem de loucor
permitiu que os moleques (que antes olha
vam, com respeito e inveja, para o moço
rico e bonito) o apedrejassem e o sujassem
com lodo, temperou com cinza a sua co
mida pobre, beijou o leproso e todos os
sofredores, renunciou a toda a grandeza e
bem estar, misturou-se com a turba dos
mendigos, agradeceu as perseguições e in
justiças, suspirou pelo martírio — então,
os seus biógrafos e pintores, escreveram
debaixo de tudo isso: Stultitia cmcis —
loucura da cruz.
Como estamos longe, muito longe, dessa
sabedoria de Cristo e de seus verdadeiros
servos, nós, vaidosos com as nossas idéias
modernas, e que, entretanto, numa falta
horrivel de lógica, fazemos questão de pa-
139
recer filhos de s. Francisco e seguidores do
' Evangelho! Que tristeza, quando chegamos
ao fim, encontrando, em lugar de uma mon
tanha luminosa, uma grande planície ingló
ria, ou, quem sabe até, um abismo!...
140
visíveis, que, então, recebeu, foram apenas
um símbolo de tudo o que ele começou a
sofrer, de um modo novo, na alma e no
corpo: cegueira quasi completa, acompa
nhada de dores violentas; o estômago não
recebia mais alimento algum, o fígado já
não funcionava; o ventre inchou, assim
como as pernas e os pés; horríveis vômitos
de sangue (D. H. Felder). Estes e mais
outros sofrimentos do corpo. E quem nos
dirá dos sofrimentos da alma? principal
mente ao ver que, se muitos eram os que
o seguiam, poucos eram os que compreen
diam, perfeitamente, o que significava ser
“irmão menor”, “irmão ou irmã da peni
tência”.
Mas sabemos que não é no sofrimento
que está o sinal da santidade. E, sim, no
modo de sofrer. S. Boaventura afirma que
o serafim chagado sofreu, como só os san
tos sabem sofrer, pois, afogado em dores,
ainda tinham ânimo para exclamar: “Eu
vos dou graças, meu Senhor e meu Deus,
por todos os padecimentos a que estou
submetido, e vos imploro que os centupli-
queis, se tal é do vosso agrado; porque
14.1
nada me será tão agradavel, no meio das
aflições que me enviais, do que ser tratado
por vos, sem misericórdia. O cumprimento
de vossa santa vontade é para mim uma
superabundante consolação”.
Eis até onde se pode chegar, quando se é
fiel à graça, bastante poderosa, sempre,
para realizar milagres desta ordem, em
nossa natureza fraca e rebelde.
142
lação exterior e interior, por amor do Cristo
desolado, verme, celerado, homem das do
res. Era o seu grande conselho às almas.
Outra mística franciscana, Verônica Giu-
liani (e, com ela, quantas almas!) suspi
rava, de continuo, por toda a sorte de so
frimentos. E se admirava de que os homens
não delirassem no desejo de sofrer, saben
do que é a dor que nos leva para o amor
e nele nos mantém. Aos sacerdotes pergun
tava: “Como é possível que vos, compreen
dendo o valor do sofrimento, não corrais
pelo mundo inteiro, entusiasmando os ho
mens pela cruz!” Quando se lê, no seu
Diário, a compreensão profunda que nosso
Senhor lhe dava nesta matéria, durante suas
orações e êxtases, a gente não se admira
que fosse o seu grito ,de sempre: Cruzes,
cruzes, Senhor!
Afinal, em uma modalidade ou outra, foi
sempre este o grande estilo dos filhos de s.
Francisco: veneradores da cruz, enamora
dos da cruz, apaixonados da cruz, loucos
da cruz...
E, por isso, todo aquele que foge da
cruz ou contra ela murmura, é de sua vcr-
143
dadeira vocação que foge, é contra ela que
murmura.
Que razão teria de existência, uma mul
tidão de homens e de mulheres, revestidos
da cruz pelo seu hábito (ainda que seja
só um escapulário ou cordão escondido),
mas despojados ou, quem sabe até, inimi
gos da cruz, pelo seu espírito? São estas
desharmonias ou desequilíbrios sobrenatu
rais que provocam as grandes calamida
des. E se nós mesmos não procurarmos,
voluntariamente e generosamente, consertar
estas desgraças, Deus nosso Senhor permi
te que venham os seus algozes e persegui
dores e nos forcem a purificações dolo
rosas.
144
• Gravemos bem em nossa alma, para que
este itinerário de ascensão não nos engane:
amar a cruz, abraçar a sua loucura, que
garante a nossa estabilidade pacífica e
beatífica quasi, sobre o monte Alverne, é
criar em nós, com a graça do alto, uma
mentalidade nova, bem contrária ao espí
rito do mundo, para o qual devemos estar
mortos. E' sentir em nós mesmos, como diz
s. Paulo, o que sentiu Jesús Cristo. E’ ex
plicar e compreender, como s. Boaventura,
aquela outra palavra do apóstolo: t(com
Cristo, estou crucificado em sua cruz”.
Aqui os santos pararam. Impossível ir além.
Depois, é só a ressurreição e a vida eterna.
Cruzes, Senhor! mais cruzes! Venham
humilhações, doenças, injustiças! Venham
incompreensões e calúnias! Venham inve
jas, má vontade, cartas anônimas! Venham
tentações e desânimos! Que ninguém nos
dê valor, nem nos preste atenção! Que ou
tros subam, que nós fiquemos esquecidos!
Que outros consigam e alcancem, que nós
saboreemos o fracasso, o insucesso! Para
os outros o bem estar, para nós a pobreza.
Cruzes, Senhor! Mais cruzes!
145
Só a alma que assim .fala sinceramente,
temendo tudo de sua fraqueza, mas espe
rando tudo da graça de Deus, só ela pos-
sue, em verdade, aquela felicidade íntima
que nada lhe pode roubar.
Feliz, numa loucura jubilosa que o mun
do não compreende, ela estabelece a sua
morada no cume do Alverne, onde ama,
sofre e goza, e donde sairá somente para
tomar posse das montanhas eternas da gló
ria.
Eis a vocação de Francisco de Assis e
de todos os que o seguem em verdade.
Tudo para a glória de Jesus Cristo e
de sua Mãe bendita. Amen.
ÍNDICE
Prefácio ............................ 7
I. -Ao sopé do monte . 13
II. A vontade................ 18
III. Romper com o mal . 22
IV. Rompimento tríplice . 27
V. Criar o ambiente . .. • 33
VI. Os nossos sentidos . 38
VII. Manter o ambiente . 43
VIII. Trabalho e leitura . 47
IX. Santa liberdade . ... 56
X. Atiçando o fogo.............................. 66 v
XI. Mortificação quotidiana............... 69
XII. Evitando quedas.......................... 75 ‘
XIII. Mais quatro meios poderosos .. 80
XIV. Nas fontes das águas vivas .... 86
XV. Os sacramentos quotidianos . . . 89
XVI. O grande impulso 97
XVII. Vida de oração 102
XVIII. Meditação........... 106
147
XIX. Garantia de êxito .. . 112
XX. Caridade franciscana . . 119
XXI. Amor! O’ amor divino! 124
XXII. A lição do doutor seráfico---- 130
XXIII. Mística franciscana . 134
XXIV. Cruzes, Senhor! Mais cruzes! 136