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ROBERT MIALHE

A MEDIDA
DAS

VIRTUDES
Avisos para a vida cotidiana adaptados
do P. QUADRUPANI, barnabita

Tradução de
VALERIANO DE ÜLIVEIRA

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br

FLA MB OY A N T
Titulo do original:

L'ExaC'Ie Memre des Verlus

Copyrigbt by Desclée de Brouwer- Bruges

(Japa de JACQUES DOUCHEZ

https://alexandriacatolica.blogspot.com.br

I 9 59

Todos os direitos reservados pela

LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT


Rua Lavradio, 222 - Tel.: 51-5837 - São Paulo
A ME DI D A

DAS

V I R T U DE S

N E IMPEDIAS MUSICAM!

"Tudo o qu e seg ue
a vontade divina tem for çosa­
mente que entr ar numa b ela
ordem: daí êste concêr to do
mundo, esta cadência tão justa
e medida. . daí êste justo tem­
per amento que constitui tô da
a b eleza de nossas alma s".

B O S S U ET
REFLEXOES PRELIMINARES

"NEM MAIS NEM MENOS"


(Divisa de São Francisco de Sales)

SôBRE O QUE SE DEVE ENTENDER POR MEDIDA

SciasOBlealmente
êsse título, os cristãos que querem conformar
os próprios costumes com as exigên­
de sua Fé, terão em mãos páginas (*) preciosas':
diretrizes cheias de bom-senso e precisão, inspiradas
aliás de alguns dos mais ilustres conselheiros da
vida cristã.
Os católicos têm por guia o ensinamento da
Igreja fundado na moral evangélica, isto é, a dou­
trina mais santa e ao mesmo tempo mais suave, a
filosofia mais razoável e mais sublime; êles se inspi­
ram de uma espiritualidade que é a única capaz de
elevar a alma, de a fortificar e de a enobrecer; êles
têm por sustentáculo os encontros sacramentais do
Cristo, os únicos que podem levar-nos à verdadeira
felicidade em nosso exílio terrestre.
Donde vem, pois, que se infiltrem nas almas
tantas incertezas fatigantes, tantos desânimos, tanta

( "') Essas páginas já tiveram cêrca de 40 edições na


Itália e outro tanto na França.

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A MEDIDA DAS VIRTUDES

desconfiança injuriosa para Aquêle que disse: Vinde


a mim, vó s todos que trab alh ais e estais sob recar­
r eg aéW s, e eu v os aliv iarei . . . porque o meu jug o
é sua v e e o meu pêso é lev e"? .. .
A razão principal que se. poderia alegar, é que
a moral evangélica só é geralmente apresentada e
conhecida sob um aspecto : a maioria dos que falam
ou escrevem para instrução dos fiéis, preocupados
com o grande número de almas tíbias que precisam
ser excitadas, de corações endurecidos que precisam
ser tocados, de corações levianos que precisam ver
o lado sério da vida, só se aplicam ordinàriamente
a dar a conhecer as circunstâncias em que há pe­
cado, a desenrolar a multidão e variedade dessas
ocasiões perigosas, e a fazer-nos tremer ante a faci­
lidade temível de sucumbirmos nelas.
Tudo isso é verdadeiro e oportuno em se tra­
tando daqueles que negligenciam o cuidado da pró­
pria alma. Mas os movimentos do artista que escul­
pe o mármore não são os mesmos do explorador
que o arrancou à pedreira. De fato, muitos cristãos
se inquietam e se agitam sem motivo.

A medida falta ainda a nossas virtudes de um


modo inteiramente oposto, que Bossuet denuncia
com a precisão numa carta : é que nós falseamos as
perspectivas pelo apêgo a nossas tendências pessoais.
"Não temos nenhuma medida, escreve êle, porque

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REFLEXõ ES PRELIMIN ARES

não temos em nós a caridade que regula tudo ; e


o nosso desregramento põe em desordem tudo o mais.
Não buscamos nem a razão, nem a verdade;
mas depois de têrmos escolhido algo segundo o
nosso humor, achamos razões que apoiem a nossa
escolha. Queremos persuadir-nos de que fazemos
por moderação o que não passa de fruto da pre­
guiça; chamamos muitas vêzes modéstia o que na
realidade não passa de timidez; ou coragem o que
é orgulho e presunção ; ou prudência o que não é
mais que vil complacência.
Tomando da virtude . . . só o que se acomoda
ao nosso humor, mostrarmos que seguimos êste,
e não a virtude".
*

�sse esclarecimento é precioso para os cristãos


decididos a não se contentar com o "mais ou me­
nos", mas ávidos de um juízo seguro e de uma sin­
ceridade intrépida. Porque, segundo a expressão de
Pierre Charron : "A sabedoria é um manejo re­
grado de nossa alma, com medida e proporção"
(II, 1) .
"Estranham-se alguns, escreve o P. Sertillanges,
ao ouvir dizer que há tanta desordem no fazer de­
masiado como no fazer demasiado pouco, sendo
ambas as atitudes uma recusa de bem viver . . A
caridade não tem medida, mas tôdas as virtudes
que ela inspira têm uma medida". E Mons. Paulot
diz : "As virtudes morais, que são inclinações para
Deus pelo bom uso das criaturas, reclamam neces-

11
A MEDI DA D AS VIRTUDES

sàriamente, por causa de seu objeto criado, uma


limitação precisa e justa, fora da qual o bem não
existe".
Não nos diz a medicina que "a vida não passa
de um equilíbrio perpetuamente ameaçado" ?
"Cair, é sempre muito simples, observava Ches­
terton ; há uma infinidade de ângulos propícios para
a queda: mas não há um só para êste ponto de
equilíbrio em que nos mantemos de pé".
Medida : não se trata de timidez, mas dessa jus­
teza sem a qual nada do que se faz é realmente belo
e verdadeiro. "Deus tudo fêz com medida" diz a
Sabedoria. São Francisco de Assis ouvia de Nosso
Senhor : "Põe ordem em teu amor".
Medida : Nós somos uma estrofe num poema . . .
(Santo Agostinho) .
O Espírito Santo, mestre do coração, conduz os
cristãos pelo dom do Conselho, neste ponto : "Santa
discrição que pesa tôdas as coisas segundo a me­
dida de Deus, luz que regula as virtudes" (Santa
Catarina de Sena, Dial. X I) .
Não s e trata d e modo algum d a mediocridade,
que é flutuação entre o bem e o mal, mas da jus­
teza, essa senda da virtu de que é o caminho traçado
entre as tendências dos vícios contrários : dupla
vertigem cuja fôrça de atração se acha em nós e
contra a qual nos protege a prudência cristã, vir­
tude quê os filósofos e teólogos reconhecem como
a regente das virtudes, aurig a v irtutu m.
A êsse respeito, estranhar-se-á talvez de que
não se fale aqui de regular as quatro virtudes car-

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REFLEXõ ES PRELIMIN ARES

deais. Basta observar que elas consistem unicamente


em dar a medida exata aos nossos atos : justiça,
prudência, temperança, - quanto à fortaleza, para
a qual não o parece tanto à primeira vista, sua fir­
meza tende a elevar-nos tanto acima da solução
pusilânime como acima da solução temerária.
Longe de ser levado à hesitação, o cristão for­
mado nesse treinamento, segura com firmeza as
rédeas da vida moral <o.
Essa medida exata deve ser entendida sobre­
tudo como a entende São Francisco de Sales, que
é por excelência o Doutor do equilíbrio cristão. "Por
um desígnio especial de Deus, escreve Pio XI na
encíclica de seu Tricentenário, êle parece ter sido
dado à Igreja para corrigir o preconceito de que a
verdadeira santidade não foi feita para o comum
dos cristãos . . . pois que ela traz tantos aborreci­
mentos e embaraços incompatíveis com a situação
dos homens e das mulheres que vivem no mundo.
Quanto importa que o povo cristão faça de seus
ensinamentos a regra de sua vida ! Aquêles que
explicam a sabedoria cristã guardem como êle a
firmeza unida ao espírito de medida e à caridade !"

(1) Ver o capítulo tão preciso sôbre a prudência no


belo livro de Jacques LECLERCQ, La vie en ordre. E essas
observações de Mons. Landrieux : "O dom do Conselho é
particularmente indispensável àquele que trabalha para pro­
gredir na perfeição. Além de guardar a alma contra a agi­
tação ou a inconstância, êle tempera o ardor pela reflexão,
e põe medida em sua ação; faz tudo com perfeição e sim­
plicidade sob o olhar de Deus" (Le Divin Méconnu, pág. 163) .

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NO S S O A POIO EM D EU S

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"Senhor, a quem iremos? Só


vós tendes palavras de vida eterna" .
(Jo. 6 , 68).
"Vivo na fé do Filho de Deus"
(S. Paulo ) .

"
ANTES d e tudo pela fé que nos apoiamos e m
E Deus. E sendo ela e m nós a raiz de tôda a
vida religiosa, só poderemos ter uma alma estável
e equilibrada, só chegaremos a uma atividade autên­
ticamente cristã, se tudo isso lançar raízes numa
fé autêntica.
*

Encarregada de nos unir a Deus pelo Cristo,


essa virtude caracteriza-se pelo conhecimento que
ela comporta das verdades eternas. Assim como a
razão nos é dada por guia enquanto homens, assim
a fé é nossa luz enquanto cristãos, luz que nos dá
uma nova visão - recebida da Revelação - sôbre
Deus, sôbre o mundo e sôbre a vida. "Tu és feliz,
Simão, porque não foi a carne nem o sangue que
te revelou isto, mas meu Pai que está no céu"
(Mat. 16, 17}.
*

17
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Não se trata portanto de uma fé no sentido


de confiança, e que estaria tôda em nós ; mas de
uma docilidade em submeter os nossos espíritos a
uma visão das coisas tais como Nosso Senhor as
mostra. A apologética tem provado como essa doci­
lidade é altamente razoável. Mas a fé é ao mesmo
tempo preferência do Invisível, coragem e fideli­
dade, o que constitui propriamente a virtude da
fé <O.
*

Princípio da justificação para o cristão na idade


de a exercer, a fé é também o princípio da santi­
ficação progressiva que a continua. É a essa ins­
piração dada a tôdas as atividades do verdadeiro
cristão, que se dá correntemente o nome de espí­
rito de fé.
*

É aqui que a fé é a primeira a exigir a justeza,


e a perder o seu sentido quando fora da medida
exata. Diretamente unida a Deus, essa virtude é
em si-mesma sem medida : as desordens provêm de
que se falseie o estado de alma em que consiste
essa adesão a Deus <2>. Enganam-se aquêles que
julgam a sua fé morta por não terem o sentimento
das coisas de Deus, - mas também aquêles que
se diz� em regra com a sua fé, porque não ne­
gam nenhum de seus artigos, embora sem cuidar
sequer de conhecer e utilizar o seu tesouro.

18
F É

Pela fé, o cristão recebeu confidências de Deus


sôbre os divinos segredos e mistérios que desco­
brem as verdadeiras perspectivas e as verdadeiras
proporções da vida. Tê-los por fórmulas inúteis,
por letra morta, será crer verdadeiramente nessas
confidências ? Na medida em que deixamos ador­
mecer essas aquisições divinas, tôda a nossa vida
cristã desliza também para o sono, e caímos no
plano ·do naturalismo, com tôda a sua miséria. A
nossa própria moral já não passaria de receitas, j á
deixaria d e ser as exigências d a adoção divina em
que entramos <3>.
*

Assim, a virtude da fé não está numa dispo­


sição para a evasão mística, nem na adesão for­
malista a um símbolo religioso que nada tenha de
real. Ela consiste em fazermos de Deus, de nós­
-mesmos e da vida, a idéia que Jesus nos deu de
tudo isso e encarregou a sua Igreja de manter <4>.
Só assim a vida cristã pode pôr-se a caminho,
só assim mereceremos também nós aquêle louvor
que São Paulo dirigiu aos tessalonicenses : "Damos
continuamente graças a Deus, porque, tendo vós
recebido a Palavra de Deus que vos pregamos, a
recebestes não como palavra de homens, mas como
Palavra de Deus ( como é na verdade), a qual ope­
ra em vós que crêstes" ( 1 Tess. 2, 13) .

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NOTAS

(1) A fé não é um dom que transfonna o nosso co­


nhecimento abstrato de Deus em visão... Ela se adapta
às condições desta vida de provações em que devemos lutar
livremente contra a incredulidade e o pecado. A visão clara
de Deus tornaria tudo isso impossível.

(Dictionnaire de Théologie) .

(2) Ela se torna superstição, credulidade, exaltação,


fanatismo, quando subtraída ao influxo dêsse Espírito de
sabedoria.
(Newman)

(3) Quem crê no Filho tem a vida eterna. O Filho


é êle-mesmo a vida eterna. A fé é uma nova virtude que
encerra tôdas as demais. Deus dá um amável objeto a
essa fé: Jesus Cristo. Nêle amamos tõda a verdade e tôda
a virtude, de que êle é a fonte e o modêlo.

(Bossuet )

(4) Lembrando-nos de que ainda estamos sôbre a


terra ... não nos esqueçamos nunca de que quanto mais o
nosso amor estiver "fundado e enraizado" no mundo futuro,
tanto mais a nossa fé· deve desenvolver-se como uma árvore
coberta de frutos neste. Quanto mais nossos corações esti­
verem calmos, tanto mais ativas devem ser as nossas vidas,
e tanto mais ocupados nos acharemos quanto mais tran­
qüilos nos encontrannos... Para os escritores inspirados,
fé e obediência são sinônimos.
(Newman)

20
OB ED I:f:NC IA

"Obedecei aos vossos superiores,


porque êles velam, como quem há
de dar conta das vossas almas"
(Heb. 13, 17).

AQU�LE que obedece à Igreja de Cristo, não

próprio Deus, pois êle disse: QUEM VOS OUVE,


obedece a uma autoriadde humana, mas ao

A MIM OUVE.
*

Jamais se perdeu uma alma com a obediência;


jamais se salvou uma alma sem a obediência. (S.
Filipe Néri).
*

Aquêle que menospreza a obediência, diz São


Bernardo, e deixa-se guiar por suas próprias luzes
ou paralisar por seus temores, não precisa de de­
mônio que o tente; êle mesmo se faz demônio
para si.
*

Guardemo-nos de temer que um diretor pru­


dente possa enganar-se no que nos prescreve, ou
que êle não conheça suficientemente o estado de
A MEDIDA DAS VIRTUDES

nossa consciência, porque julgamos não Iha ter aber­


to com bastante clareza. Com semelhantes temores
a obediência seria sempre eludida ou suspensa. Se
o vosso diretor não vos tivesse compreendido e co­
nhecido bem, ou se não vos tivésseis explicado com
clareza, êle teria continuado a interrogar-vos. Se
não o fêz, é que se acha suficientemente informado.

Não é a nós que Deus manifesta o estado de


nossa alma, mas àquele que deve guiar-nos em seu
lugar. Baste-te ouvir de sua bôca que estás em
bom caminho e que a misericórdia e a graça de
Deus estão contigo : deves acreditá-lo e obedecer
nisto como em tudo o mais. "Porque, diz São João
da Cruz, não se submeter inteiramente ao que diz
o confessor, é orgulho e falta de fé."

Não basta que a obediência regule nossas obras


exteriores, é preciso ainda que ela dirija nossa
inteligência e nossa vontade. Não te contentes,
portanto, de executar o que ela te ordena, mas
crê e abraça o que ela te manda crer e querer.
É nessa submissão interior que consiste particular·
mente o mérito da santa obediência.

22
O BE D IPI N C I A

Que a tua obediência seja simples, pronta,


sem reservas e sem inquietudes. Simples, porque
não deves submetê-la ao raciocínio, mas determi­
ná-la com êste único pensamento : DEVO OBEDE­
CER ; pronta, porque é a Deus que deves obedecer;
sem reservas, porque a obediência se estende a
tudo o que não viola a lei de Deus; sem inquietudes,
porque aquêle que obedece a Deus não pode extra­
viar-se. :Êsse pensamento deve bastar-te para afas­
tar todo o temor de errar ou de ter errado.

A quem escolher para dirigir-te assim no ca­


minho da virtude?
Eis o que diz São Francisco de Sales sôbre
êsse ponto tão importante :
"Vai, disse Tobias ao seu filho, quando quis
mandá-lo a um país desconhecido, vai procurar um
homem prudente que te conduza. O mesmo te digo
a ti, Filotéia : Queres sinceramente entrar no ca­
minho da devoção ? Procura então um bom guia
que te conduza. De todos os conselhos, êste é o
mais necessário e o mais importante.
"Mas quem encontrará semelhante amigo ? O
sábio responde : Aquêle que teme a Deus, isto é,
o humilde que deseja ardentemente avançar na vida
espiritual . . . Pede a Deus com fervor que te dê
um que seja segundo o seu coração ; e não duvides
de que êle te dará um sábio e fiel condutor, ainda

23
A MEDIDA DAS VIRTUDES

que para isso tenha de te mandar um anjo, como


ao jovem Tobias.
"E com efeito, êle deverá ser um anjo para
ti, isto é, quando Deus to tiver enviado, já não
deverás considerá-lo como um simples homem. Vê
nêle o representante de Deus, e tem confiança, pois
que o mesmo Deus te conduzirá e te instruirá por
seu intermédio. Acrescenta à confiança urna since­
ridade total, falando-lhe de coração aberto e con­
fiando-lhe fielmente o bem e o mal que há em ti:
com isso o bem estará mais seguro e o mal se
enfraquecerá, tua alma se tornará mais forte nos
sofrimentos e mais moderada nas satisfações. Ajun­
ta à confiança um religioso respeito, mas em tão
justa medida que a veneração não diminua a con­
fiança, e a confiança não faça perder o respeito.
Confia nêle com o respeito de uma filha para com
o seu pai, e respeita-o com a confiança de um filho
para com a sua mãe. Numa palavra, essa amizade
que deve ser forte e delicada, deve ser tôda espi­
ritual, tôda santa, tôda sagrada e tôda divina.
"Encontram-se muito menos diretores do que
se pensa, que sejam capazes dêste ministério. É
necessário que êle seja cheio de caridade, de ciên­
cia e de prudência; se faltar uma dessas três qua­
lidades, a escolha não estará sem perigo. Repito,
pede a Deus um diretor, e quando o tiveres encon­
trado, agradece à divina majestade e conserva-o,
sem buscar outro. Vai a Deus com tôda a simpli­
cidade, com humildade e confiança, porque farás
indubitàvelmente urna felicíssima viagem".
O B E D I:GJN O I A

Nota, finalmente, que o diretor e o confessor


podem não ser a mesma pessoa. Quantas almas
dirigia São Francisco de Sales, das quais não era
confessor! Ao diretor, diz êle, a alma deve desco­
brir-se totalmente; ao confessor acusam-se simples­
mente os próprios pecados para receber a absol­
vição.

25
O R A Ç ÃO

Oh, que angústia interior quan­


do me ocupo das coisas do céu e
vejo-me logo assaltado pela mul­
tidão das coisas carnais.
Imitação, III, 48.
Quem poderá louvar a Deus
ao longo de todo o dia? Sugiro
uma solução: Tudo o que fizeres,
faze-o por Deus, e o terás louvado.
(Santo Agostinho, sõbre o Salmo 34).

- PRECISO amar a meditação, e fazê-la muitas


E vêzes sôbre a paixão de Nosso Senhor Jesus
Cristo, procurando tirar sobretudo frutos de humil­
dade, de paciência e de caridade.

Se tiveres secura em tua meditação ou nas


demais orações, não te inquietes nem julgues por
isso que Deus tenha desviado de ti os seus olhos.

É êrro muito comum confundir o valor da


oração com o seu resultado sensível, e o mérito

27
A MEDIDA DAS VIRTUDES

da prece com a satisfação que dela se tira. A faci­


lidade e a doçura que encontras no exercício da
oração, são graças que Deus te concede, é um
favor que recebes e do qual deves prestar contas :
portanto, não é um mérito para ti, mas uma dí­
vida. (Lêde Imi t. livro TI, cap. 9)- <o.

Terás por vêzes a impressão de que a tua


alma não está na presença de Deus, durante a ora­
ção, e que somente o teu corpo se acha material­
mente na igreja, como as estátuas e os candelabros
que ornam os altares: pensa então que êle parti­
cipa com êsses objetos inanimados da honra de ser­
vir de ornamento à casa de Deus, e que mesmo
êsse humilde papel te deve parecer glorioso em
presença de teu Criador ,(2).

Quando não te tiveres prestado consciente e


voluntàriamente às distrações, não te detenhas a
examiná-las ou a procurar o que as cansou, nem
se as provocaste de algum modo : isso seria fatigar­
-te e inquietar-te sem proveito. Venham donde
vierem, deves convertê-las numa fonte de méritos,
jogando-te nos braços da divina misericórdia. Tendo
alguém perguntado a São Francisco de Sales de que
maneira fazia a oração, êle respondeu : "Não sabe­
ria dizê-lo exatamente : recebo em paz o que o Se-

28
ORAÇAO

nhor me envia. Se sou consolado, beijo a destra


de sua misericórdia; se sofro aridez e distração,
beijo a esquerda de sua justiça". l!:ste é o único
método bom, porque, como diz o mesmo santo :
"Aquêle que ama verdadeiramente a oração, ama-a
por amor de Deus; e aquêle que a ama por amor
de Deus, não deseja outra coisa dela a não ser o
que Deus aprouver mandar-lhe". Ora, o que te
vem na oração é precisamente o que Deus quer.

São Francisco de Sales ensina que é uma exce­


lente oração conservar-se em paz e tranqililidade
na presença de Deus, sem outro desejo nem pre­
tensão que de estar sob o seu olhar e agradar-lhe.
Não te canses, diz êle, em esforços para falar ao
teu caro Mestre, porque só pelo fato de manter-te
em sua presença, contemplando-o, já estás lhe fa­
lando <3>.
*

Faze poucas orações vocais, mas faze-as com


fervor. Não é a grande quantidade de alimentos
que fortifica, mas a boa assimilação que dêles se
faz. Mais vale um Pai-Nosso ou um salmo recitado
com tranqilila devoção do que rosários inteiros ou
longos ofícios feitos com pressa e inquietude.

29
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Se estiveres recitando orações vocais não obri­


gatórias e sentires que Deus te convida a meditar,
segue docemente essa inspiração celeste, e acredita
que farás uma troca vantajosa para ti e agradável
a Deus que ta inspira.

Dispõe-te para a oração por um recolhimento


tranqüilo, sem agitação nem inquietude. Eis o que
São Francisco de Sales escreve a êsse respeito :
"Pouco antes de começar a oração, põe o teu co­
ração em paz e repouso, e tem confiança de fazê-la
bem : porque se fores a ela sem esperança e j á
enfastiado, terás dificuldade em despertar o ape­
tite . A inquietação que tens na oração, à qual
se junta um grande desejo de encontrar algum
objeto que possa contentar o teu espírito, basta por
si só para impedir-te encontrar o que buscas. Pas­
sarás cem vêzes a mão e os olhos sôbre uma coisa
sem a perceber, quando a buscares com muito ardor.
"O fruto que tirarás dêsse ardor vão e inútil
será uma grande lassidão de espírito ; e daí essa
frieza e essa moleza de tua alma".

Evita sobrecarregar o teu espírito de orações


demasiadas, sejam mentais ou vocais; e quando te
sentires cansado ou enfadado, suspende a oração,
se fôr possível, e procura distrair-te com alguma

30
ORAÇÃO

ocupação, alguma conversa ou qualquer outro meio


honesto de distração. l!:sse é um conselho da mais
nlta importância que nos dá Santo Tomás e os San-
1 os Padres mais esclarecidos: segue-o com cuidado,
porque a lassidão de espírito gera o enfado, a frieza
I' uma espécie de torpor.

Jamais repitas uma oração, mesmo que julgues


1 ê-la feito com espírito distraído. Não podes ima­
�inar quantas dificuldades pode criar êsse hábito,
que eu te proíbo da maneira mais absoluta. Co­
meça a oração com o desejo de estar bem recolhido
na presença de Deus, e êsse desejo basta. Aos olhos
de Deus, diz São Gregório Magno, o desejo tem o
mesmo valor que a obra, quando a execução desta
não depende de nossa vontade. l!:le nos retira o
sentimento de sua presença nessas distrações invo­
luntárias, mas o seu amor permanece no fundo de
nossos corações. Santa Teresa tinha o costume de
rlizer, no meio de suas securas e distrações: "Se
não faço oração, ao menos faço penitência". E eu
direi: Fazes ao mesmo tempo penitência e oração:
penitência por tudo o que sofres, e oração pelo
desejo que tens de orar.

Não deves voltar a retomar uma prece ou uma


pnssagem de tua meditação, mesmo que sintas des-

31
A MEDIDA DAS VIRTUDES

pertar na parte inferior de tua alma, idéias e dis­


posições contrárias às palavras pronunciadas por
tua bôca, ou aos sentimentos que excitas em teu
coração, ainda que fôssern injuriosas a Deus.
Guarda-te de tôda a perturbação, de tôda a agitação,
como também de qualquer pensamento ou desejo
de reparação por urna ofensa imaginária; prossegue
tranqüilamente a tua meditação, corno se nada
tivesse acontecido; não te fatigues em responder
aos cães infernais, que podem latir à vontade em
volta de ti quando estiveres orando, para tentar
distrair-te, mas que não poderão morder-te sem o
teu consentimento <4>.

Se acontecer que tenhas de passar todo o


tempo destinado à meditação a repelir tentações,
ou a recolher o teu espírito de suas divagações, sem
chegar a ter um pensamento ou a despertar um
sentimento, nosso santo guia te dirá que fizeste
urna oração meritória <5>. "Busquemos o Deus das
consolações, e não as consolações de Deus; e para
possuir o nosso Jesus no céu, é preciso que agora
soframos com êle e por êle".

É bom saber que quando Nosso Senhor nos


prescreveu orar sem cessar, êle não pretendia falar
da oração atual : o homem viajor não poderia fazê-

32
ORAÇÃO

-Ia sem interrupção durante a sua peregrinação


terrestre. O desejo de glorificar a Deus em cada
uma de nossas ações basta para cumprir rigorosa­
mente o preceito, s e êsse desejo é habitual e perma­
nente em nós. "Oras com freqüência, se é fre­
qüente o teu desejo de glorificar a Deus com tuas
ações, diz Santo Agostinho ; e oras sempre, se sem­
pre tens êsse desejo, seja qual fôr o ato em que te
ocupas <G>.

Não deves omitir ou negligenciar os teus de­


veres de estado para fazer orações que tu-mesmo
te impuseste <7>. Os trabalhos de tua profissão ou
as ocupações de teu estado fazem as vêzes de ora­
ção; êles te servem igualmente, corno ensina Santo
Tomás, para obteres as graças de que necessitas,
graças essas que foram prometidas àqueles que as
pedem como convém. E é mesmo mais meritório
aplicar-se ao trabalho por amor de Deus, cumprindo
fielmente os deveres do próprio estado, do que elevar
pura e simplesmente a alma para êle na oração.

Faze uso freqüente das orações jaculatór ias}·


essas curtas aspirações são impulsos afetuosos que
elevam a alma para o seu Criador. Essas orações,
diz São Francisco de Sales, podem, caso necessário,

33
A MEDIDA DAS VIRTUDES

substituir tôdas as outras, e tôdas as outras não


poderiam suprir a estas <8>.

As orações jaculatórias podem ser feitas em


todo o tempo e lugar, e em meio de qualquer ocupa­
ção. Podem ser comparadas a essas pastilhas aro­
máticas que trazemos conosco para tomarmos de
vez em quando, afim de fortificar o estômago e dar
à bôca um sabor agrJLdável : elas produzem na alma
um efeito semelhante, recreando-a e fortificando-a.

Santa Teresa aconselha que procuremos uma


posição cômoda para o corpo durante a oração,
afim de evitar que o espírito se distraia com o cons­
trangimento de uma posição incômoda, o que nos
tornaria difícil a atenção que devemos ter na ora­
ção e na presença de Deus. Não fatigues o teu
corpo, conservando-te ajoelhado por tempo dema­
siado longo ; o que importa é que a alma esteja
verdadeiramente prostrada e ajoelhada diante de
Deus por sentimentos de respeito, de confiança e
de amor.

34
NOTAS

(1) Eis o mesmo ensinamento dado por um grande


mestre da vida espiritual :
"Buscamos muitas vêzes o repouso e a consolação do
nmor-próprio no testemunho que queremos dar de nós-mes­
mos à nossa consciência. Assim, deixamo-nos distrair por
�sse fervor sensível, quando, ao contrário, deveríamos temer
essa frouxidão de nossa natureza que nos leva à desolação
c a infidelidade filosófica<*>, e quer sempre comprovar por
si-mesma as suas próprias operações; enfim, somos levados
aos desejos impacientes de ver e de sentir para nos con­
solarmos.
"Não há penitência mais amarga do que êste estado
de pura fé sem su"stentáculo sensível, donde concluo que
é a penitência mais isenta de tôda a ilusão. Estranha ten­
tação ! buscamos impacientemente a consolação sensível por
temor de não sermos bastante penitentes. E por que não
tomamos para penitência a renúncia à consolação que so­
mos tão tentados de buscar?" (Fenelon) .
E São Francisco de Sales : "A verdadeira santidade
está em amar a Deus, e não nas tolices da imaginação ou
nos arroubos que alimentam o amor-próprio e dissipam a
obediência e a humildade : querer aparentar extáticos, é
um abuso. Mas aplicar-se ao exercício da verdadeira doçura
e submissão, à renúncia de si-mesmo, à condescendência
com as intenções de outrem, isto é o verdadeiro e o mais
amável êxtase dos servos de Deus".

( *) Raciocinadora.

35
A JJ!I EDIDA DAS VIRTUDES

(2) Dizes-me que nada fazes na oração. Mas o que


mais queres fazer além do que fazes ? Apresenta a Deus o
teu nada e a tua miséria . . . O mais belo discurso que nos
fazem os mendigos é justamente expor aos nossos olhos as
suas úlceras e necessidades." (São Francisco de Sales) .

(3) "Lembra-te de que as graças e bens da prece não


são águas da terra, mas do céu, e por conseguinte todos
os nossos esforços não os poderiam adquirir. É preciso no
entanto que nos disponhamos para êles com grande cuidado,
mas um cuidado humilde e tranqüilo. É necessário manter­
mos o coração aberto para o céu, esperando o santo orva­
lho, e não nos esquecermos jamais disto na oração. Essa
atitude nos aproxima de Deus e põe-nos em sua presença
por duas razões principais :
"A primeira é prestar a Deus a honra e a homenagem
que lhe devemos, o que se pode fazer sem que êle nos fale
ou nós a êle. Cumpriremos êsse dever reconhecendo que
êle é nosso Deus e que nós somos suas criaturas, e perma­
necendo prostrados em espírito diante dêle à espera de
suas ordens .
"A segunda causa por que nos apresentamos diante de
Deus, é para falar-lhe e ouvi-lo falar a nós por suas inspi­
rações e movimentos interiores . . . Ora, um dêsscs dois
bens não pode jamais faltar à oração : se pudermos falar
a Nosso Senhor, falemos, louvemo-lo, ouçamo-lo; se não
pudermos falar, por nos acharmos fatigados, êle nos verá
aos seus pés e aceitará a nossa paciência. Outras vêzes,
seremos surpreendidos de vê-lo tomar-nos as mãos e con­
versar conosco . . .
"Dêsse modo, não nos apressemos a falar-lhe, pois que
a outra maneira de estar juntos dêle não nos é menos útil,
e talvez mesmo muito mais proveitosa, se bem que um
pouco menos agradável ao nosso gôsto. ( São Francisco
de Sales) .

36
ORAÇÃO

(4) "Nessa tentação é preciso manter a mesma atitude


que nas tentações da carne. Não responder de modo a!gum,
nem dar mostras de ouvir o que diz o inimigo. Deixemo-lo
latir à porta o quanto quiser; não nos demos sequer o tra­
balho de olhá-lo.
"Está bem, dir-me-ás, mas êle me importuna, e o ba­
rulho que faz impede que ouçam uns aos outros os que con­
versam dentro. Paciência ! É preciso prostrar-te diante de
Deus e permanecer assim aos seus pés : êle compreenderá
por essa humilde atitude que és dêle e queres o seu socorro.
(São Francisco de Sales) .

(5) "Quando o teu coração se desviar ou se distrair,


recondu-lo docemente ao seu lugar e recoloca-o ternamente
junto de seu senhor. E ainda que não fizesses outra coisa
em tua meditação que retomar docemente o coração e
repô-lo junto de Nosso Senhor, e isto tantas vêzes quantas
êle se desviar, tua hora será bem empregada e farás um
exercício muito agradável ao teu Senhor Jesus".

(6) "Estranhar-nos-emas, pois, de que Santo Agostinho


nos assegure que tôda a vida cristã não é mais que uma
longa e contínua tendência de nosso coração para essa jus­
tiça eterna pela qual suspiramos neste mundo? Tôda a
nossa felicidade consiste justamente em estarmos sempre
sedentos dessa justiça. Ora, essa sêde é uma oração. Dese­
ja-a, portanto, sem cessar, e não cessarás de orar. Não
creias que seja preciso dizer uma ladainha de palavras ou
fazer muita contensão de espírito para orar a Deus. Orar,
é pedir-lhe que se faça a sua vontade, é formar algum bom
desejo, é elevar o coração a Deus, é suspirar pelos bens
que êle nos prometeu, é gemer por causa de nossas misérias
e dos perigos em que estamos de lhe desagradar e de violar
a sua lei. Mas essa oração não exige ciência, nem método,
nem raciocínio. Não deve portanto ser um trabalho da
mente ; basta um instante de nosso tempo e um bom movi­
mento de nosso coração . . . e êsse momento pode ser empre­
gado ainda em qualquer outra coisa. É tão grande a con-

3"/
A MEDIDA DAS VIRTUDES

descendência de Deus para com a nossa fraqueza, que êle


permite dividir, caso necessário, êsse momento entre êle
e as criaturas. Sim, nesse momento, ocupa-te em teus de­
veres : basta que ofereças a Deus, ou que faças com uma
intenção geral de o glorificar, as coisas mais comuns do
teu dever de estado. É essa a prece ininterrupta que pede
São Paulo. . . prece que muita gente piedosa imagina im­
praticável, mas cuja prática será muito fácil a tôda a
alma consciente de que a melhor de tôdas as orações é
agir com pureza de intenção, renovando-a muitas vêzes, n o
desejo d e tudo fazer segundo Deus e para Deus. (Fenelon).

(7) "É necessário observar cuidadosamente os deveres


particulares que tocam a cada um por sua vocação. Todo
o que não o fizer, ainda que ressuscite mortos, não estará
.sem pecado; e se perderá, caso morrer assim. É ordenado,
por exemplo, aos bispos visitar as suas ovelhas, ensiná-las,
corrigi-las, consolá-las : ainda que eu passe tôda a semana
em oração, ou jejue a vida inteira, se não fizer o meu dever
primário, perder-me-ei". (São Francisco de Sales ) .

(8) "Usa as orações jaculatórias, que são suspiros de


amor lançados para Deus a fim de pedir-lhe socorro. De
que te servirá conservar na imaginação o ponto da meditação
que mais te tiver agradado, para remastigá-lo ao longo do
dia?" (São Francisco de Sales) .
E em outro lugar : "Estando doente, não faças outra
oração senão as jaculatórias".

38
CONFISSÃO

"Teus pecados te são perdoados.


Vai em paz; tua fé te salvou" (Luc.
7, 48-50).
"Recebei o Espírito Santo. Os
pecados serão perdoados àqueles a
quem perdoardes" (Jo. 20, 23).

A CONFISSÃO é um sacramento de misericórdia;


é necessário portanto que nos aproximemos dêle
com confiança e serenidade. Ela foi feita para o
nosso perdão e para a nossa santificação. Assim,
devemos preparar-nos para apresentar nossa alma
à Graça do Salvador e conhecer o que lhe tem re­
sistido em nós. Precisamos portanto afastar tudo
o que iria de encontro à nossa vontade de nos aban­
donarmos ao Senhor e de progredirmos no seu
amor. Vejamos as aplicações dêsse princípio.

As faltas leves que não se dizem na confissão,


seja por esquecimento, seja por causa de sua insigni­
ficância, não deixam por isso de ser apagadas.
"Não nos atormentemos, diz São Francisco de Sales,
quando não nos lembrarmos de nossas faltas para
as acusarmos ; porque não é possível que uma alma

39
A MEDIDA DAS VIRTUDES

que faz com freqüência o seu exame de consciência,


não se lembre das faltas importantes.
"Não sejamos tampouco tão delicados que quei­
ramos acusar até mesmo as menores imperfeições,
os mais pequeninos defeitos". O penitente não deve
imaginar que tenha pecados secretos que esteja
ocultando ao confessor; êsse temor é um artifício
do demônio para perturbá-lo.

Fique certo de que quanto mais te examinares,


menos encontrarás que valha a pena ser acusado.
É preciso não te esqueceres, além disso, que o exa­
me demasiado longo fatiga o espírito e resfria o
coração.
*

Eis outra instrução do mesmo santo, muito


útil para aquêles que confundem na confissão os
movimentos involuntários com os pecados : "Dizes
agora que quando tiveste algum forte sentimento
de cólera ou de qualquer outra tentação, vem-te
sempre o escrúpulo se os não confessas: quando
não vês claramente se consentiste ou não, digo que
é preciso dizê-los em conversa com o diretor; não
à maneira de confissão, mas para te instruíres de
como te deves comportar. Porque se disseres :
acuso-me de ter tido movimentos de cólera durante
dois dias, mas não consenti nêles, estarás contando
tuas virtudes e não acusando teus pecados. - Mas

40
C ONFISSÃ O

tenho mêdo de que tenha havido algum pecado em


tudo isso. - Nesse caso, é preciso ver madura­
mente se essa dúvida tem algum fundamento, e
então dizê-la em confissão com tôda a simplicidade;
de outra forma, é melhor nada dizer, pois só o
farás para a tua satisfação própria; e ainda que te
venha algum escrúpulo por não te acusar, é pre­
ciso sofrê-lo como qualquer outro para o qual não
há remédio.
*

"Afasta de tua confissão, diz ainda São Fran­


cisco de Sales, essas acusações supérfluas de que
muitos fazem uma verdadeira rotina : não amei a
Deus como devia ; não recebi os sacramentos com
a devida reverência, etc. etc. A razão é evidente :
dizendo isto, nada dizes ao confessor que lhe dê a
conhecer o estado de tua consciência, pois os ho­
mens mais perfeitos do mundo poderiam dizer a
mesma coisa, e até mesmo os santos do céu se a
confissão fôsse feita por êles.

Tem sempre presentes ao espírito na confissão


freqüente estoutras palavras de nosso diretor:
"Não somos obrigados a confessar os pecados ve­
niais ; mas quando os acusamos, é preciso que te­
nhamos a vontade resoluta de nos emendarmos
dêles, de outra forma, seria abusar do sacramento".

41
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Após a confissão, conserva a tua alma em paz


e guarda-te - isto é de capital importância - de
todo o temor sôbre a validade do sacramento, como
também sôbre o exame, a contrição ou qualquer
outra coisa. Tais temores não passam de sugestões
do inimigo, que quer derramar o amargor na sua­
vidade dêste sacramento de consolação e de amor o>.

É preciso que nos arrependamos de nossos pe­


cados, mas não que nos perturbemos : o arrepéndi­
mento é um efeito do amor de Deus, a perturbação
é fruto do amor-próprio. Em meio ao mais vivo
e ao mais sincero arrependimento, devemos ainda
agradecer a Deus de não ter permitido que caís­
semos mais gravemente. Prometamos-lhe uma sé­
ria emenda, mas confiando unicamente no socorro
de sua graça misericordiosa ; e ainda que tenhamos
de recomeçar cem vêzes no dia, não cessemos de
prometer e de esperar. Deus pode transformar
num momento as pedras em verdadeiros filhos de
Abraão, e levar ao mais alto grau de santidade as
naturezas mais corrompidas. E algumas vêzes o
faz. Outras vêzes, porém, êle quer deixar-nos levar
por algum tempo o fardo de nossa miséria. Não
cessemos de esperar nêle, nem t omemos um estado
de provação por um estado de reprovação <2>.

*
C ONFISSÃ O

A contrição consiste essencialmente num ato


de vontade que detesta as faltas passadas, e toma
a resolução de não mais cometê-Ias para o futuro.
As lágrimas, os suspiros, a dor sensível não são
elementos necessários da verdadeira contrição. Ela
pode chegar a um grande grau de perfeição desin­
teressada, justificando o pecador no meio das maio­
res securas e de uma aparente insensibilidade. Não
nos inquietemos nunca pela falta de contrição sen­
sível.
*

Não faças esforços Violentos para excitar a


contrição em tua alma. Os esforços só geram per­
turbações, fadiga e cansaço de espírito. Procura,
ao contrário, manter-te em grande calma : dize com
amor ao teu Deus que bem gostarias de não tê-lo
ofendido, e que com o socorro de sua graça não
hás de ofendê-lo para o futuro. Eis a contrição.

O desejo imoderado da contrição sensível vem


do amor-próprio e da complacência em nós-mesmos.
Uma contrição que satisfaça imicamente a Deus
não nos basta; queremos uma que nos satisfaça
também a nós ; gostamos de encontrar em nossa
sensibilidade o testemunho Iisongeiro e tranqüiliza­
dor de nosso amor do bem.

43
A lVI EDIDA DAS VIRTUDES

Se Deus não te concede o gôzo do sentimento


de tua contrição, é para que tenhas o mérito da
obediência ; esta deve bastar para tranqüilizar-te
quanto à reconciliação perfeita. Crê com humil­
dade, obedece corajosamente e terás dupla recom­
pensa. Os maiores santos julgavam por vêzes que
não tinham nem contrição, nem amor; mas em meio
às trevas de sua inteligência, a vontade dêles seguia
o facho da obediência com heróica submissão.

Alguns julgam não ter a contrição porque a


experiência de suas resoluções estéreis lhes faz te­
mer a recaída, enquanto que outros se tranqüilizam
com uma protestação sentimental, que nada prevê
de concreto. Como gostamos de desfigurar as coi­
sas : Não se trata de prever a vitória, mas o com­
bate, e os meios a empregar.

Por isso não creias que te falte a contrição ou


que tenhas confessado mal, porque recais nas mes­
mas faltas. É preciso distinguir entre as recaídas :
umas nascem de uma vontade perversa que con­
serva afeição a certos pecados veniais, comprazen­
do-se voluntàriamente nêles. Estas não devem ser
toleradas; precisamos atacá-las em sua raiz com
vigor e não descansarmos enquanto não forem com­
pletamente extirpadas. Outras provêm de sermos

44
CONFISSÃ O

surpreendidos em nossa vigilância : prendem-se à


miséria e à fragilidade de nossa natureza. Estare­
mos sempre sujeitos a elas até o nosso último sus­
piro m. Já será muito, diz São Francisco de Sales,
se nos tivermos desembaraçado de certos defeitos
um quarto de hora antes de morrer". E em outra
parte: "Não somos obrigados a suportar sàmente
os defeitos do próximo, é preciso que suportemos
também os nossos, e que tenhamos paciência com
nossas imperfeições". Procuremos corrigir-nos, mas
tranqüilamente e sem inquietude <4>.

Ajunta sempre às tuas confissões alguma acusa­


ção geral de todos os pecados de tua vida passada,
ou daqueles que mais te desgostam. Dize, por exem­
plo : Acuso-me de meus pecados contra a pureza,
ou a caridade, ou a temperança. Precaver-te-ás
assim contra a falta de matéria para a aplicação do
sacramento.
*

Afasta cuidadosamente todo o temor de ter


omitido algum pecado em tuas confissões gerais
ou particulares, ou de não ter dado a conhecer sufi­
cientemente as circunstâncias dos pecados acusa­
dos. A Igreja, intérprete de Jesus Cristo, exige na
confissão a integridade sacramental, e não a inte­
gridade material. A primeira consiste na confissão
de todos os pecados graves de que nos podemos

45
A MEDIDA DAS VIRTUDES

lembrar depois de um exame bem feito, cuja du­


ração deve ser proporcionada ao estado atual de
nossa consciência ; a segunda consistiria na declara­
ção rigorosamente completa de todos os pecados que·
cometemos, com seu número e circunstâncias, sem
a mais leve omissão. Ora, a integridade sacramen­
tal pode ser razoàvelmente exigida, pois não ultra­
passa as fôrças de ninguém e acomoda-se às facul­
dades de cada um ; enquanto que a integridade ma­
terial tornaria o sacramento simplesmente impos­
sível. Com efeito, por mais cuidado que empregue­
mos em nosso exame, sempre escapará algum pe­
cado ou algum detalhe relativo ao número e às cir­
cunstâncias <s>.
*

E se vieres a temer não teres aplicado no exa­


me todo o cuidado que te é possível, lembra-te de
que o confessor prudente terá suprido com algumas
perguntas o que faltou de teu lado, e se não per­
guntou mais, é que compreendeu suficientemente
a natureza de teus pecados e a situação de tua alma,
o que constitui o fim da acusação sacramental.

Por ignorá-lo, muitas pobres almas querem re­


começar incessantemente suas confissões gerais, por
causa de exame incompleto ou de contrição insufi­
ciente ; e são repreensíveis os confessores que não
se opõem a isso. Se semelhantes temores tivessem

46
C ONFISS Ã O

de ser ouvidos, cada um deveria passar a vida in­


teira fazendo e refazendo confissões gerais, porque
êsses temores se renovariam sempre, e nem mesmo
os maiores santos seriam isentos. Um sacramento
de consolação e de amor se acharia assim transfor­
mado numa verdadeira tortura das almas. O con­
cílio de Trento fulminou essa proposição herética.

É doutrina de todos os santos e dos teólogos


mais esclarecidos que, quando uma confissão geral
foi feita com uma intenção reta e sincera, e com
o desejo de mudar de vida, não se deve recomeçá-la
sob nenhum pretexto, mas ficar na mais absoluta
paz. Sejam evitadas, diz Bossuet, essas intros­
pecções inquietas que impedem a dilatação do co­
ração no amor de Jesus Cristo. Aumentarás a
perturbação de tua alma, querendo purificá-la de­
masiado. Porque, como diz tão bem São Filipe
Néri : quanto mais nos ob stinamos a v aTrer) tanto
nwi s poeira leoo ntamos.
*

Lembra-te, finalmente, de que, segundo a afir•


mação comum dos santos, o temor do pecado cessa
de ser salutar quando é excessivo. E quando é êle
excessivo ? Quando nos desanima de lutar ou pa­
ralisa nosso progresso. "Afasta-te do mal, diz a
Imitação) faze o bem e estarás a caminho de paz".
N O T AS

(1) "Depois da confissão, não é tempo de nos exami­


narmos para ver lle dissemos tudo o que era preciso; é
tempo, sim, mas de nos conservarmos tranqüilamente re­
colhidos na presença de Nosso Senhor, com quem fomos
reconciliados, dando-lhe graças por seus benefícios. Por­
tanto, não é de modo algum necessário examinar-nos nova­
mente para ver se nos esquecemos de algum pecado. É
preciso dizer simplesmente o que nos vem à memor1a, e
depois já não pensar nisto". (São Francisco de Sales ) .

(2) O espetáculo mais agradável aos olhos de Deus


é o trabalho perseverante, obstinado, mas paciente e calmo,
embora aparentemente infrutuoso, de uma alma cheia de
defeitos e misérias, mas unida a êle por uma vontade firme,
um desejo sincero de não lhe desagradar voluntàriamente.
Essa alma, resignada em conservar suas imperfeições, se
apraz a Deus lhas deixar, mas decidida a combatê-las sem
descanso, é mais preciosa aos olhos de Deus que se ela
gozasse tranqüilamente da prática das virtudes e da posse
dos bens espirituais.
Trabalha na presença de Deus, combate com fôrça e
coragem, mas sem desejares demasiado a satisfação do bom
êxito, porque onde começa o desejo de nossa própria satis­
fação, lá começa também o despeito e a impaciência.
"É preciso não desejar as coisas más, diz São Fran­
cisco de Sales, mas tampouco as boas de modo excessivo".
E em outro lugar : "Suplico-te que não ames com ardor
demasiado a coisa algwna, nem mesmo as virtudes, pois
perdemo-las às vêzes por ultrapassarmos os limites da
moderação".

48
OONFIBBÃO

Mas tenhamos cuidado, há aqui um escolho : se não


empregarmos uma boa fé total nessa luta, acontecerá que
procuraremos enganar-nos a nós-mesmos sôbre a realidade
de nossos esforços, chamando derrota à covardia que nos
terá feito desertar do combate, e dando o nome de provação
aos resultados de nossa moleza e indolência.

(3) "É necessário que nos levemos a nós-mesmos, até


que Deus nos leve para o céu. E enquanto nos levarmos,
nada levaremos que valha a pena. É preciso ter paciência,
e não pensar que podemos curar-nos num só dia de tantos
maus hábitos que contraímos com a nossa negligência na
vida espiritual.
"Rogo-te que não olhes tanto para aqui e acolá. Con­
serva teu olhar fixo em Deus e em ti-mesmo; jamais verás
a Deus sem bondade, e a ti sem misérias. E esta tua mi­
séria é justamente o objeto da bondade e misericórdia
de Deus". (São Francisco de Sales ) .
(Lê e m seguida o exame d e consciência - Imit. 1 .
III, c . XX).

(4) Fenelon tem a mt?sma linguagem : "Não te estra­


nhes, nem te desanimes com tuas faltas. É preciso supor­
tar-te a ti-mesmo com paciência, sem vangloriar-te nem
poupar-te para a correção. É necessário que procedas con­
tigo como com qualquer outro. Logo que perceberes ter
faltado, condena-te interiormente, e volta-te para Deus a
fim de receberes a penitência: dize com simplicidade a
tua falta ao homem de Deus de tua confiança. Recomeça
a prática do bem como se fôsse o primeiro dia, e não te
canses de recomeçar todos os dias. Nada toca tanto o cora­
ção de Deus como essa coragem humilde e paciente.
"A virtude, diz o apóstolo, aperfeiçoa-se na enfermi­
dade". É menos pelo gôsto sensível e pelas consolações
espirituais do que pela humilhação interior e pelo recurso
contínuo a Deus, que avançaremos para êle".

49
A M EDIDA DAS VIRTUDES

(5) Não te atormentes por isto, mas vai humilde e


francamente acusar o que tiveres notado. E, quanto ao
que não foi lembrado, entrega-o à doce misericórdia de
Deus, pois êle ampara a todos os que caem sem malícia,
não permitindo que se machuquem; e soergue-os tão doce
e ràpidamente que nem percebem ter caído. E depois de
os amparar, retira tão depressa a mão que êles não a no­
tam nem percebem ter levantado. (São Francisco de Sales) .

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50
COMUNHÃO

"Sem mim, nada podeis fazer"


(Jo. 15, 5).
"Mandou dizer aos convidados
que viessem, porque tudo estava
pronto. E começaram todos a ex­
cusar-se". (Lucas 14, 17).

A COMUNHÃO freqüente é o meio mais eficaz


de nos unirmos a Deus. "Quem come a minha
carne, diz Nosso Salvador, viverá em mim e eu
nêle" .
*

São Francisco de Sales diz que há duas espé­


cies de pessoas que devem comungar muitas vêzes:
os perfeitos para se unirem mais estreitamente à
fonte de tôda a perfeição, e os imperfeitos para
chegarem mais fàcilmente à perfeição. Os fortes
para não se tornarem fracos, e os fracos para se
tornarem fortes; os enfermos para serem curados,
e os sãos para não caírem na enfermidade. Dizes
que tuas imperfeições, tua fraqueza, tuas misérias,
tornam-te indigno de comungar freqüentemente ; e
eu te digo, que precisamente por êste motivo deves
comungar muitas vêzes, afim de que Aquêle que
possui tôdas as coisas te dê o que te falta o>.

51
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Não julgues infrutuo�as as tuas comunhões,


porque não vês aumentar as tuas virtudes <2>. Lem­
bra-te de que ao menos elas servem para conservar­
-te no estado de graça : alimentas diàriamente o
teu corpo, e nem por isso pretendes que as suas
fôrças aumentem cada dia mais. Parecer-te-á por­
ventura inútil o alimento que lhe dás ? Não, de­
certo. Porque se êle não aumenta as fôrças do
corpo, ao menos as conserva, reparando as perdas
de cada dia. Ora, acontece a mesma coisa com êste
alimento da alma.
*

Não temas estar mal preparado ou abusar do


sacramento pelo fato de te sentires frio e indife­
rente ao recebê-lo. Isto é uma provação que Deus
te envia para exercitar a tua fé e aumentar os teus
méritos. Tudo o que foi dito mais acima sôbre as
securas na oração pode ser repetido aqui. Deseja
sempre os mais ardentes transportes de afeição que
tiveram os santos. O desejo equivale diante de Deus
à obra, como já o dissemos, citando São Gregório
Magno. J!:sse desejo basta, quando não puderes
atingir mais alto. O resto é uma graça e não um
mérito.
*

Se não ousas comungar muitas vêzes porque


não te achas digno, então não comungues nunca.
Que criatura poderia ser digna de receber um Deus ?
E não é tudo : é preciso renunciar também a visitar

52
COMUN HÃO

ns igrejas, a dirigir-te a Deus na oração ; porque


uma miserável criatura, corrompida pelo pecado,
não é digna de entrar na casa do Senhor, nem de
se entreter com êle <3>.

Não pares na consideração de tua m1sena;


tempera-a com a lembrança da divina misericórdia.
Os convidados ao banquete do pai de família, figu­
ra da eucaristia, não foram os nobres e ricos, ·mas
os pobres, os cegos e os coxos. Todo o que estiver
revestido da veste nupcial, isto é, da graça santifi�
cante, será bem acolhido nesse festim.

Quem se aproxima da santa mesa apesar do


sentimento de sua indignidade, sem outro apoio nem
garantia que a obed;ência, aproxima-se com uma
das disposições mais agradáveis a Deus <s>.

Quando não puderes comungar sem faltar aos


deveres de ordem de justiça e de caridade, diz São
Francisco de Sales, é preciso contentar-te com a
comunhão espiritual. "E acredita-me, ajunta êle,
esta mortificação espiritual, esta privação de Deus,
agradará extremamente a Deus, e avançarás mui­
tíssimo no seu amor. As vêzes é preciso recuar

53
A MEDIDA DAS VIRTUDES

para saltar melhor". Não foi pela multidão das


comunhões que se santificaram os anacoretas, mas
pela observância exata dos deveres de sua vocação.
São Paulo eremita, em tôda a sua longa vida, só
comungou duas vêzes, e nem por isso deixou de
ser grande aos olhos de Deus. A êsse propósito,
São Francisco de Sales nos dá esta admirável lição:
"Na medida em que fores impedido de fazer o bem
que desejas, faze tanto mais ardentemente o bem
que não desejas. Não queres essas resignações,
quererias outras. Pois bem : aceita essas que não
desejas, porque elas valem muito mais". São João
Batista estava mais estreitamente unido em espí­
rito a Jesus que os próprios apóstolos, e no entanto
êle não irá segui-lo, porque a sua vocação o chama
a outra parte : eis a maior mortificação espiritual
que podemos encontrar na história dos santos <4> .

Se estiveres obsedado pelas tentações, não t e


afastes por isso d a santa comunhão ; s e o fizeres,
estarás rendendo-te sem resistência ao inimigo.
Quanto mais combates tiveres que sustentar, tanto
mais te deves munir dos meios de defesa. Vai, pois,
fortifificar-te com o alimento dos fortes, e sairás
vitorioso.
*

Mas guarda-te de freqüentares a comunhão só


porque esta ou aquela pessoa a freqüenta. Isso é

. 54
COMUNHÃ O

1tma imitação v ã e perniciosa) muito comum nas


mulheres) diz São Francisco de Sales. Jesus se nos
dá por amor neste sacramento; e é por amor que
devemos ir a êle.
*

Nem todos os fiéis devem fazer uso igual­


mente freqüente da comunhão. Todos devem ter
um mesmo fim, que é unir-se a Deus: mas os mes­
mos meios não são próprios para todos. Só pela
obediência pode cada um conhecer o que lhe con­
vém, porque o que é pouco para um será demasiado
para outro.

55
NOTAS

(1) Com efeito, é uma maneira falsa e orgulhosa


querer encarar a comunhão freqüente como uma recom­
pensa, e de algum modo como uma medida de perfeição.
Ela é sobretudo um meio de trabalhar pela perfeição, e a
única virtude adquirida que exige o emprêgo dêsse meio,
é o desejo de se aproveitar dêle para se tornar melhor.
Jesus Cristo não disse : Vinde a mim vós todos que sois
perfeitos, mas : Vinde a mim vós todos que trabalhais e
estais sobrecarregados.
O espírito da Igreja, neste ponto capital, tem sido
sempre o mesmo em todos os tempos. São João Crisóstomo,
diz Fenelon em sua carta sôbre a comunhão freqüente,
não admite nenhum meio têrmo entre o estado daqueles
que estão em pecado mortal e o dos fiéis que se acham
em estado de graça e comungam cada dia de assembléia.
Algumas pessoas, acreditando-se purificadas e justas, não
fazem penitência como os pecadores, .e no entanto abstêm­
-se de comungar por não se julgarem bastante perfeitas.
Atitude perigosa para o homem que a quer conservar, e
injuriosa para o sacramento. Longe de honrarem o sacra­
mento com essa privação de o receber, ofendem a Jesus
Cristo, que nos convida ao seu festim. Numa palavra, se­
gundo êsse grande bispo, é preciso ou comungar com aquê­
les que estão na graça, ou fazer penitência para se reunir
a êles o mais depressa possível.
Mas ouçamo-lo falar de si-mesmo : "Por que medimos
a comunhão pela lei do tempo? A pureza de consciência
e que marca o tempo de nos aproximarmos dela. l:sse
mistério nada tem a mais na Páscoa do que nos outros
tempos em que é celebrado incessantemente. l:le é sempre
o mesmo : é sempre a mesma graça do Espírito Santo. A

56
C O M UN H Ã O

Páscoa se perpetua o ano todo. Vós que sois iniciados,


subeis o que digo. Seja sábado ou domingo, ou qualquer
festa de um mártir, é sempre a mesma vítima e o mesmo
sacrifício. O Senhor não quis limitar o seu sacrifício à
observância de tempo algum".
Os outros Santos Padres têm a mesma linguagem.
"Se é o pão de cada dia, diz Santo Ambrósio, porque
só o comes cada ano? . . . Recebe-o todos os dias, a fim de
que todos os dias êle te seja útil. Vive de maneira que
mereças recebê-lo todos os dias. Quem não merece rece­
bê-lo todos os dias, tampouco o merece no fim de um ano . . .
Mas não sabes que tôdas as vêzes que é oferecido o sacri­
fício, é representada a morte do Senhor, como também a
sua ascensão e a remissão dos pecados? E entretanto, não
recebes todos os dias êsse pão de vida! Quem recebeu uma
ferida, não busca logo o remédio? O pecado que nos domina
é a nossa ferida; o remédio está no celeste e venerável
sacramento".

(2) Lembra-te de que não há crescimento real de


virtudes sem crescimento de humildade. Assim, quanto mais
humilde fores, tanto menos virtudes julgarás ter; quanto
mais digno fores de te · aproximar do teu DeUs, tanto mais
profundamente sentirás a tua indignidade. Porque o homem,
chegue a que perfeição chegar, não podendo deixar de ser
miserável e pecador neste mundo, vê mais distintamente a
sua baixeza à medida que é mais elevado em graça e
em luz.

(3) "Quantos fiéis escrupulosos enlanguescem por não


receber êste alimento ! 1!:les se consomem em reflexões e
estéreis esforços ; temem e tremem, e estão sempre em
dúvidas, procurando em vão uma certeza que não podem
ter nesta vida. Não sabem o que é a suavidade da vida
cristã, porque querem viver para Jesus Cristo, mas sem
viver dêle. São fracos, lânguidos, esgotados, e caem des­
falecidos. Acham-se perto da fonte de água viva e prefe-

5'1
A MEDIDA DAS VIRTUDES

rem morrer de sêde. Querem fazer tudo exteriormente, e


não ousam alimentar-se interiormente. Querem levar o
fardo da lei, sem buscar o espírito e a consolação na oração
e na comunhão freqüente.

(4) Os que se encontram habitual ou acidentalmente,


antes da comunhão, no estado que acabamos de descrever,
gostarão talvez de utilizar a preparação abaixo. (Verão
como a vontade sozinha, 'sem concurso do sentimento, pode
produzir os atos de tôdas as virtudes cristãs) .
Ato de confiança, de humildade e de resignação, na
ausência dos sentimentos atuais de fé, de esperança, de
contrição e de amor. - Introíbo ad altare Dei (Salmo 4'2).
É por obediência, ó meu Deus, que venho à vossa santa
mesa ! As palavras tão ternas com que nos convidais não
bastariam para decidir-me, porque na perturbação de minha
alma eu não saberia julgar se elas se dirigem a mim. A
miséria e as enfermidades são os meus títulos para ser
admitido em vosso festim. Sei que ninguém pode compa­
recer a êle sem a veste nupcial. Mas vós não permitistes
tampouco que um sacramento de amor se tornasse uma
tortura, e como que um laço inevitável para a nossa alma.
Obedeço, portanto, ó meu Deus : aproximar-me-ei de vosso
santo altar sem querer outra garantia senão o que me foi
dito de vossa parte : PODES COMUNGAR. Aceito, ó meu
Deus, seja como castigo merecido, seja como provação sa­
lutar, esta frieza e esta distração que me acompanham até
a vossa presença, quando tôdas as faculdades de minha
alma deveriam ser absorvidas por um ardente sentimento
de adoração e de amor. A fé, a esperança e a caridade
parecem extintas de meu coração, mas sei que jamais nos
retirais essas virtudes quando não as renunciamos volun­
tàriamente.
ATO DE FÉ. Por isso, apesar das dúvidas que atra­
vessam a minha imaginação, QUERO CRER, ó meu Deus,
e CREIO tudo o que me ensinou a vossa santa Igreja. Não
esqueci essas vivas luzes de fé que fizestes jorrar em minha

58
C O M UNHÃ O

alma nos dias de misericórdia, para que sua lembrança


preciosa me servisse de refúgio nos dias de tentação.
ATO DE ESPERANÇA. Por isso, apesar dêsses vagos
temores que parecem dominar a esperança na minha alma,
sei que se é verdade que sois o Deus forte e terrível, diante
de quem os querubins velam os rostos com as próprias asas,
o Deus justo e clarividente que até nos e·spíritos mais puros
descobre manchas, não é menos verdade que quereis ser
aqui a vítima cujo sangue apaga os pecados do mundo, o
bom pastor que corre atrás da ovelha desgarrada e a recon­
duz ao aprisco nos seus ombros, sem a menor censura, o
divino mediador que vem a nós para nos salvar e não paru.
nos condenar (1) (Jo 12, 47) . Sei de tudo isto, ó meu
Deus, e ESPERO.
ATO DE CARIDADE. Apesar da frieza e insensibi­
lidade que me dominam, sei que VOS AMO, ó meu Deus :
porque a minha vontade prefere o vosso serviço a tôdas
as alegrias do mundo; porque a vossa graça é o único bem
a que aspiro, e porque sofro tanto de não sentir o amor
que vos tenho.
ATO DE DESEJO. Não, eu não desdenho êste sacra­
mento, vós o sabeis, ó meu Deus ! Se o recebo com tão
incompreensível indiferença, se não encontro nêle gôsto nem
consôlo, estou disposto, no entanto, a antes abandonar tudo
que deixar de recebê-lo.
ATO DE CONTRIÇÃO. Não sinto ódio nem horror
pelos pecados que o mundo comete sem sombra de pejo;
não sinto tampouco nenhuma dor sensível pelos que cometi
eu-mesmo ; mas sei que com o auxílio de vossa graça a
minha vontade se afastou dêles, porque resolvi não mais
cometê-los. E o fiz, porque êles vos desagradam, porque
tudo o que se afasta da ordem eterna repugna infinitamente
a vossa santidade infinita. CREIO, POIS, EM MINHA
CONTRIÇÃO, ó meu Deus! porque creio em vossas pro­
messas, e sei que se não concedeis sempre a consolação de
sentir essa dor, jamais recusais a sua virtude justificadora
aos que a pedem humildemente. E vô-la pedi humildemente.

59
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Não, meu Deus, não vos pedirei alegrias sensíveis, nem


mesmo a alegria de vossos dons espirituais : o que imploro
de vossa graça é manter sempre a minha vontade fixa
em vós.
Senhor, abandono a minha alma nas vossas mãos.
Ver também a Imitação, livro IV, caps. 9 e 16.

60
D OlVl i N G O S E FE S T A S

"O sábado foi feito para o


homem, e não o homem para o
sábado". (Me. 2, 27) .

T ODOS os dias de nossa vida devem ser emprega­


dos na glorificação de Deus. Mas há alguns
que êle designou de modo particular para nêles lhe
oferecermos um culto exterior mais especial : são
os dias de festa.
*

É necessário, portanto, santificar êsses dias.


Os meios principais sao as obras de caridade, o
santo sacrifício d a missa, os sacramentos, os ser­
mões e instruções religiosas, e as leituras de pie­
dade.
*

Contudo, é preciso evitar a fadiga do corpo e


do espírito com excesso de exercícios piedosos. O
exagêro é repreensível mesmo nas coisas santas,
porque a virtude acaba onde começa o excesso.
Tudo o que dissemos sôbre isso no capítulo da Ora­
ção pode ser encaixado aqui.

61
A MEDIDA DAS VIRTUDES

É bom saber ainda que uma visita honesta,


um passeio, uma diversão sadia, sendo coisas que
podem referir-se a Deus, servem também para san­
tificar os dias de festa, quando fazemos tudo isso
com o objetivo de agradar a Nosso Senhor. O mes­
mo se diga dos outros atos cotidianos do homem
exigidos pelas necessidades do seu corpo.

Digo essas coisas para instrução daqueles que,


nos dias de festa, se agitam e se inquietam por
acumular devoções sôbre devoções, julgando ser um
crime tudo o que não fôr prática exterior de pie­
dade, e parecendo aplicar-se à observância material
do sábado segundo os costumes supersticiosos dos
fariseus, em lugar de santificar tranqüilamente o
dia do Senhor com esta santa e doce liberdade de
espírito que Jesus Cristo nos ensina no evangelho.
A excessiva dissipação, como a prece demasiado
prolongada, são dois excessos que é preciso igual­
mente evitar.

Se te sobrevier num dia de festa a necessidade


de viajar ou de te aplicar em alguma ocupação im­
prevista, não te inquietes pela impossibilidade de
praticar os teus exercícios de piedade ordinários.
Substitui-os por orações jaculatórias, que podem,
como já expliquei, substituir tôdas as outras (3) .

62
DOMINGOS E F'ESTAS

Lembra-te, finalmente, que uma simples missa


pode bastar rigorosamente para santificar as festas.
E para as pessoas que são obrigadas a guardar a
rasa, a assistir os enfêrmos, a cuidar das crianci­
nhas, os dias de festa podem ser santificados mes­
mo sem a assistência à missa < o . Porque tudo isso
são obras de justiça e de caridade, obras que são
boas em si-mesmas. Quando santificadas pela in­
tenção de fazê-las por Deus, e acompanhadas de
orações jaculatórias, igualam e até mesmo ultrapas­
sam em valor tôdas as demais práticas exteriores
de devoção <2>.
*

Em nossos dias, a noção equilibrada do Do­


mingo é bem menos ameaçada por trabalhos proí­
bidos do que pelos divertimentos <4>. Os espetácu­
los e os esportes não devem ser de tal modo
numerosos e malsãos que nos deixem perturbados
no fim do dia sagrado ! Os divertimentos devem
ser escolhidos para desenvolver em nós o que nos­
sas ocupações deixa em abandono (natureza, arte,
pequenos trabalhos, cultura, etc.) - e favorecer
as boas relações de família e de sociedade.

63
NOTAS

(1) "As concepções do mundo embaralham-se e se


misturam sempre em nossos pensamentos. Na casa de
um príncipe não é a mesma coisa ser um lixeiro ou ser
um criado de quarto; mas na casa de Deus os lixeiros são
muitas vêzes os mais dignos, porque ainda que se sujem,
fazem-no por amor de Deus, em obediência à vontade de
Deus. E é essa vontade que dá valor às nossas ações, e
não o exterior. Aquêle, pois, que ama verdadeiramente a
vontade de Deus, no cumprimento de seu dever não prende
de modo algum a sua afeição aos exercícios espirituais.
Assim, se fôr impedido de praticá-los por motivo de doença
ou de qualquer outro acidente, êle não o ressente. Não digo
que não os ama, mas digo que êle não se apega a êsses
exercícios. (São Francisco de Sales) .
(2) "Se amas verdadeiramente a obediência e a sub­
missão, quero que se te vier uma ocasião justa ou caritativa
de deixar teus exercícios, a aceites em espírito de obediên­
cia, suprindo a prática dos exercícios pelo amor. Já te disse
uma vez : quanto menos vivermos a nosso gôsto, tanto menos
escolha haverá em nossas ações, e tanto mais bondade e
solidez em nossa devoção. É forçoso que deixemos por vê­
zes a Nosso Senhor para agradar a outros por amor dêle".
(São Francisco de Sales) .
(3) "Certos cristãos, impedidos de ir a Igreja, proce­
dem como se por isso estivessem dispensados de santificar
o domingo. Esquecem-se de que a obrigação da missa não
é mais que a determinação concreta de um dever mais
geral : o de consagrar êsse dia a Deus".
(Carta do Bispo de Arras, 1937 ) .

(4 ) "Um povo que s e dedica e m seus momentos de


repouso a diversões que ferem o sentido do pudor ou da
honra, está em grave perigo de perder a sua grandeza".

64
L E IT UR A E S PIR IT UA L

(Pio XI, Encíclica sôbre o cinema) .


"Temos uma mensagem segura,
à qual fazeis bem em prestar aten­
ção, como a uma luz que brilha
na escuridão, até que venha o dia
e a estréia da manhã nasça em
vossos corações . . . Estai, pois, pre­
venidos, e acautelai-vos para que
não sejais desviados pelo êrro dos
insensatos e venhais a perder a
vossa firmeza" (II Pd. 1, 19 e 3, 17) .

A LEITURA espiritual é para a alma o que o ali­


mento é para o corpo < o . Escolhe portanto
livros que podem fornecer o melhor alimento à tua
alma, e familiariza-te sobretudo com as obras que
apresentam o santo Evangelho e são aprovadas
pela Igreja. "Quem vos ouve, a mim ouve".

Quando a escolha dos livros é feita com o con­


selho do diretor, deve-se receber os seus ensina­
mentos como vindos da bôca mesma de Deus.

65
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Não te afeiçoes a vidas de santos em que pre­


dominam o maravilhoso e o extraordinário. Os
místicos imaginários aquecem-se com semelhantes
leituras e se enchem de desejos inúteis e orgulho­
sos : uns quererão obter as revelações de Santa
Brígida ou os êxtases de São José Cupertino; outros
aspirarão a imitar as mortificações dos Estelitas;
e, perdendo dêsse modo o tempo com êsses desejos
de graças extraordinárias, descuram, com grande
detrimento próprio, as obrigações reais e os deveres
do próprio estado. Guarda-te, portanto, de cobiça­
res êstes atos maravilhosos dos santos, que deve­
mos admirar, mas não imitar. Apega-te de pre­
ferência às virtudes simples e interiores de que
êles nos dão exemplo. Eis aí a única coisa que de­
víamos imitar com todo o zêlo.

Conhece-se esta palavra atribuída geralmente


a Santo Tomás : "Se alguém fôr bom e santo, que
êle rogue por nós; se além disso fôr sábio, então
que nos instrua". É preciso que tenhamos sempre
idéias justas e precisas, sobretudo quando se trata
de religião; de outra forma, faremos maís mal que
bem. As doutrinas inexatas geram escrúpulos nas
almas fracas, irritam os cristãos esclarecidos e
atraem as zombarias dos descrentes.

66
LEITURA ESPIRITUAL

Sê portanto muito vigilante na escolha dessa


espécie de leituras, se não quiseres que elas preju­
diquem a tua alma em lugar de a santificar; e para
isto, lê somente livros aprovados pela Igreja. Que
capacidade ou que direito podem ter os outros
autôres para te conduzir? Mas ainda aqui pedirás
conselhos ao teu guia espiritual, porque nisto 'Como
em tudo o mais, nem tudo o que é bom é bom para
todos indistintamente.

6'l
NOTAS

{1) Por outra parte, se alguém começar a sua vida


espiritual com o gôsto natural ou adquirido pela leitura,
terá muito mais possibilidades de avançar e de perseverar
que qualquer outro. Começar sem êsse gôsto é o mesmo
que expor-se a multiplicar enormemente as dificuldades ordi­
nárias : sobretudo para aquêles que querem viver santa­
mente no mundo. Porque passaremos então a viver sob
o contrôle dos grandes espíritos e dos mestres em santi­
dade . . . o que faz que os julgamentos dêsse círculo insig­
nificante que nos cerca já não nos impressionem.
A leitura espiritual põe os nossos motivos de agir numa
luz nova. . . alimenta a oração . . . e torna nossa piedade
mais atraente na conversação, ensinando-nos a dar uma
fisionomia agradável à nossa profissão de cristianismo . . .
Acima de tudo, o gôsto da leitura é essencial aos pais
cristãos : que virão a ser os filhos que só ouvem conver­
sações superficiais e tôlas, como a falta de leitura o com­
porta ?" (Faber) .

68
O E S T A D O D E ES PÍ R ITO
D O C R I S T Ã O

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A E S PE RA NÇ A CRIS T Ã

"Entregai a Deus tôdas as vos­


sas solicitudes, porque êle tem cui­
dado de vós" (I Pd. 5, 7) .
"Em vós, Senhor, esperei ; não
serei confundido para sempre" (Te
Deum) .

"['ELIZ o homem que espera em Deus, diz o Espírito


f Santo. É da frouxidão na esperança que vem
a fraqueza da alma.

Guarda bem esta verdade : Quem nada espe­


ra, nada obterá; quem pouco espera, pouco alcan­
çará; quem tudo espera, tudo obterá.

A misericórdia de Deus é infinitamente maior


que todos os pecados do mundo ; não nos limitemos
portanto à vista de nossas misérias, mas elevemos
o nosso olhar para essa divina misericórdia.

71
A MEDIDA DAS VIRTUDES

"Que temes ? diz São Tomás de Vilanova, o juiz


do qual temes a condenação é o mesmo Jesus que
morreu na cruz para não nos condenar."

Devemos chorar os nossos pecados, e não te­


mer por causa dêles. Quando Pedro disse a Jesus :
Afastai-vos de mim, porque sou um homem peca­
dor . . . o que respondeu o Salvador do mundo ?
Noli timere, não temas Nas divinas escrituras, diz
Santo Agostinho, vemos sempre a esperança e o
amor preferidos ao temor.

São nossas misérias, diz São Francisco de Sales,


que formam o trono da divina misericórdia ; porque
se não houvesse no mundo pecados a perdoar, nem
dores a consolar, nem enfermidades da alma a curar,
Deus não poderia exercer o mais belo atributo de
sua divina essência. Eis porque nosso Salvador
disse que não viera ao mundo para os justos, mas
para os pecadores.

Não há dúvida de que nossas faltas desagra­


dam a Deus; mas êle não deixa por isso de amar
nossas almas, conservando até o fim o cuidado pre­
vidente de nossa salvação. Uma boa mãe se aflige

72
A ESPERANÇA CRISTÃ

com os defeitos naturais e com as enfermidades


de seu filho, mas nem por isso o ama menos : ela
não lhe recusa nem sua compaixão, nem seu au­
xílio. Longe disto. Aliás, quanto mais débil e
doente êle fôr, quanto mais imperfeito e disforme,
tanto mais ternura e cuidados ela lhe dispensará.

Não te perturbes com o pensamento do destino


que te espera na eternidade. Isso está nas mãos
de Deus, e aí está muito melhor colocado que nas
tuas.
*

Não é com reciocínios que curaremos o temor


exagerado do inferno, diz São Francisco de Sales,
mas com a submissão e a humildade.

Por isso, São Bernardo responde ao demônio


numa tentação de desespêro : "Que eu não mereço
o céu, sei tanto como tu, Satanás; mas sei também
que Jesus o mereceu para mim. Não foi para si­
-mesmo que êle adquiriu tantos méritos, mas para
mim. Como não precisa dêles, êle mos cede, e é
por êle e nêle que salvarei a minha alma.

73
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Não te deixes abater por semelhantes tentações


e temores, mas aspira a grandes virtudes e a mais
sublime perfeição. Deus ama as almas corajosas,
diz Santa Teresa, contanto que desconfiem de suas
próprias fôrças e se apoiem Unicamente nêle. O
demônio procura persuadir-te de que há orgulho em
desejar grandes coisas, e em querer imitar as vir­
tudes dos grandes santos < "'0 ; mas não te deixes en­
ganar por êste artifício. :Êle se rirá de ti se vieres
a cair na irresolução e na fraqueza. Aspira ao
ideal mais nobre e mais elevado, pois isto te dará
a firmeza e a perseverança. (Lê a Imit. 1. III,
cap. XXX ) .
*

A esperança não é portanto uma disposição


natural para o otimismo, ou um abandono a Deus
naquilo justamente que êle espera de nós. Tal ati­
tude nada representa, faltando a esperança. Há
quem espere, em lugar de agir : deves agir com a
certeza de que Deus levará sempre a bom têrmo
o que fizeres apoiado em suas divinas promessas.
Eis a última palavra de São Francisco de Sales
moribundo : "Aquêle que começou, acabará . . . "

( "' ) Fala-se aqui das virtudes comuns que nos levam


à santidade, e não das ações extraordinárias que por vêzes
as acompanharam na vida dos santos.
P R E S ENÇ A D E D EU S

"Tenho sempre o Senhor diante


de mim, porque êle está à minha
direita para me sustentar . . . :f':le
mostrou-me os caminhos da vida.
( Salmo 15, 8 e 11) .

A PRESENÇA d e Deus é u m meio de perfeição


que o próprio Deus indicou ao patriarca Abraão.
Mas é em tôda a doçura, sem constrangimento e sem
contensão de espírito, que devemos manter-nos nessa
divina presença. O Deus do amor e da paz quer
que tudo o que se faz por êle, seja feito com amor
e em paz.
Só no céu poderemos pensar continuamente em
Deus de modo atual. Neste mundo isso é impos­
sível. Nossas ocupações, nossas necessidades e nos­
sa imaginação nos distraem a cada instante. Es­
gotar-nos-íamos em vãos esforços se quiséssemos
levar antes do tempo o modo de vida dos anjos e
dos santos.
*

Tememos muitas vêzes não ter conservado a


presença de Deus, porque não tivemos o sentimento
dessa adorável Presença. É um êrro. Podes, sem
ter o pensamento de Deus, fazer tuas ações por

75
A MEDIDA DAS VIRTUDES

amor de Deus e em sua presença, em virtude da


intenção que fizeste ao começar : ora, agir vale mais
que pensar. O médico não pensa no enfêrmo ao
preparar o medicamente que lhe há de restituir a
saúde; e todavia, é para êle que trabalha. E é-lhe
muito mais útil dêsse modo du 4 ue se contentasse
somente em pensar nêle. Igualmente, quando cum­
pres os teus deveres naturais ou sociais, quando co­
mes ou andas, quando estudas ou trabalhas com as
mãos, sem pensar atualmente em Deus, tu ages para
Deus, e isto deve bastar para tranqüilizar-te quanto
ao mérito de tuas ações. São Paulo não diz que é
preciso comer, beber e trabalhar com o pensamento
atual de Deus, mas com a intenção habitual de o
glorificar e de fazer a sua santa vontade. Preenche­
rás esta condição, oferecendo a Deus cada manhã
tôdas as ações do dia e renovando interiormente
êste ato quando dêle te lembrares.

Emprega nisto muitas vêzes as orações jacula­


tórias de que já temos falado. Habitua-te a fazê-Ias
naturalmente e sem esfôrço, mas escolhe jaculatórias
que exprimam ordinàriamente sentimentos de con­
fiança e de amor.

Se acontecer passar grande lapso de tempo sem


que venha ao teu espírito o pensamento de Deus,

76
PRESENÇA DE DEUS

sem que tua alma se tenha elevado a êle por alguma


aspiração, não te inquietes : lembra-te sempre de que
vale mais agir por Deus que pensar nêle, e que o
pensamento só é bom se conduz à obra, enquanto
que a obra é meritória por si-mesma, em virtude
da boa intensão primitiva.

Dir-se-á justamente que a justiça preside a tua


vida, se te prenderes a ela de tal modo que só tomes
decisões segundo ela. Igualmente, viverás na pre­
sença de Deus, não para que êste pensamento venha
distrair-te de tuas obrigações, mas para que venha
pô-las numa luz nova, numa luz em que o teu cora­
ção discernirá como que instintivamente o que é agra­
dável a Deus e o que não o é.

O que constitui a presença de Deus não é um


esfôrço da imaginação, mas uma atenção ao real,
pois que os primeiros planos nos distraem ordinà­
riamente. O hábito da presença de Deus faz com
que as alegrias exteriores percam o que elas têm
de nocivo, e as interiores se aprofundem.

77
HUlVI I L D A D E

"Se me glorifico a mim-mes­


mo, a minha glória de nada vale"
( Jo, 8, 54) .
"Nada façais por espírito de
partido, só atendendo aos próprios
interêsses . . . " (Filip. 2, 3 ) .

OUCAS pessoas têm uma idéia justa desta virtu­


P de, sem a confundir com a baixeza ou a pusila­
nimidade.
*

Atribuir a Deus o que é de Deus, isto é, tudo


o que é bom, e a nós o que é nosso, isto é, tudo o
que é mau, eis em que consiste a verdadeira humil­
dade ( 1 ) .
*

Assim como Deus tirou do nada tudo o que


existe, assim êle quer que os fundamentos de nossa
perfeição espiritual se baseiam no conhecimento de
nosso nada.
"Sabei, diz São Vicente Ferrer, que só há por
assim dizer uma virtude, a humildade, porque sem
ela as outras de nada valem. Sem a humildade

79
A MEDIDA DAS VIRTUDES

tôdas as demais virtudes se perdem como o trigo


num saco furado".

O cristão verdadeiramente humilde, arrepende­


-se mas não se perturba quando cai nalguma falta,
porque não há que surpreender que a miséria seja
miserável, que a fraqueza e a corrupção seja fraca
e corrompida. Ao contrário, êle agradece a Deus
de não ter taído mais baixo ainda. Por isso, Santa
Catarina de Gênova dizia com tranqüilidade, quando
se surpreendia nalguma falta : Mais uma planta
do meu jardim. Essa contemplação tranqüila de
nossas misérias parecia também de grande impor­
tância a São Francisco de Sales, pois êle dizia:
"Aprendamos a suportar as nossas imperfeições se
quisermos chegar à perfeição ; porque é dêsse
exercício que se alimenta a humildade" <2> .

Algumas pessoas julgam que para ser humilde


é necessário não reconhecer em si nem capacidade,
nem virtude alguma. Santo Tomás diz bem o con­
trário. Ê preciso conhecer os dons que recebemos,
para os agradecermos àquele que no-los deu. Dis­
simulá-los, seria faltar ao reconhecimento para com
êle e negligenciar o fim para que nos foram dados.
Guardemo-nos da loucura de nos gloriarmos dêles
como se viessem de nós-mesmos <3>.

80
H UMILD A D E

O louvor é mais agradável à nossa natureza


que a censura. Não há pecado nisto, porque êsse
gôsto é um instinto de nossa natureza, do qual não
nos poderíamos subtrair inteiramente. Sàmente, é
preciso referir sempre o louvor a quem êle é devido,
isto é, a Deus : poraue êsse louvor é dirigido aos
dons que êle nos deu ; não somos mais que portado­
res e depositários dêsses dons, e teremos de prestar
conta dêles um dia, em proporção de seu valor.

A alma mais rica em humildade é também a


mais rica em coragem e generosidade. Quanto mais
ela desconfia de si-mesma, tanto mais confia em
Deus, de quem espera tôda a sua fôrça, dizendo
com São Paulo : Tudo posso naquele que me con­
forta. Santo Tomás prova claramente que a ver­
dadeira humildade cristã, longe de rebaixar a alma,
é o princípio de tudo o que ela tem de nobre e ge­
neroso. Quem se recusa a obras salutares para
as quais Deus o chama, por causa da grandeza e
do brilho que as acompanham <4>, não é humilde,
mas pusilânime. Quanto ao meio de reconhecer
seguramente se somos ou não chamados para uma
obra, e de nos preservarmos assim das ilusões do
amor-próprio e do gôsto natural, não há melhor
que a obediência.

81
A MEDIDA DAS VIRTUDES

É bom, e por vêzes mesmo necessário, dar a


conhecer os dons que recebemos de Deus e o bem
que sua graça opera por nosso intermédio, quando
esta manifestação pode servir para a glória de Deus,
para o bem da Igreja ou para decidir os vacilantes.
É nesse tríplice objetivo que São Paulo publica os
seus trabalhos apostólicos e suas revelações sobre­
naturais.

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82
NOTAS

( 1 ) Parece, à primeira vista, que o simples bom-senso


bastaria para dar a humildade ao homem. Assim seria, de
fato, se suas faculdades não fôssem atingidas e viciadas em
sua fonte pelo orgulho, conseqüência funesta e inapagável
do pecado original. Essa tendência sempre renascente a
querer viver em nós-mesmos, a querer ser alguma coisa
por nós-mesmos, a querer a estima, a afeição e a honra
para nós-mesmos, apesar dos preceitos da Lei, apesar das
reclamações da justiça e dos avisos da simples razão, faz
com que tôda a vida espiritual não passe de um longo e
penoso combate, no qual a graça nos sustenta, mas sem
nos dar jamais uma vitória completa. (Ler Imitação, 1.
III, -cap. 13 e 21) .
(2) Ouçamos nosso santo : "Por que nos assustamos
e nos impacientamos quando acontece cairmos nalguma
imperfeição ou pecado? Sem dúvida porque nos julgáva­
mos alguma coisa de bom, de resoluto e sólido, e no en­
tanto . . . eis-nos com o nariz por terra. Enganamo-nos, e
por isso nos perturbamos e nos inquietamos. Ah, se soubés­
semos bem o que somos, em lugar de ficar admirados de
nossa queda, estranharíamos de poder ficar ainda de pé" o

(3) O Papa Pio XI escreve em sua encíclica contra


o racismo neopagão : "Em sua miserável maneira de cen­
surar a humildade cristã, tachando-a de degradação de si­
mesmo e de atitude pusilânime, o odioso orgulho dêsses
inovadores cobre-se a si-mesmo de ridículo. A humildade,
no Espírito do Evangelho, pode perfeitamente unir-se à
estima de si-mesmo, à confiança em si-mesmo e ao heroísmo" o

(4) É preciso que tenhamos uma humildade nobre e


generosa, que nada faça para ser louvada, mas também
que nada omita pelo mêdo de ser louvada. (São Francisco
de Sales) .

83
A V E R D A D E I R A R E S I G N A Ç ÃO

"Pai, se é possível, passe de


mim êste cãlice. Todavia, não se
faça como eu quero, mas como tu
queres" (Mt. 26, 39).

EMsempre
tudo o que te acontecer, reconhece e adora
a vontade de Deus. Tôda a malícia
dos homens e do próprio demônio só pode armar
contra nós aquilo que Deus permitir. O Salvador
declarou que nem mesmo um fio de cabelo de nossa
cabeça cairá sem a permissão do Pai Celeste.

Assim, em tôda a situação penosa para a na­


tureza, quando fores afligido por enfermidades, as­
saltado de tentações ou atormentado pela injustiça
dos homens, eleva a tua alma para Deus, contem­
pla a sua divina vontade e dize-lhe com coração
afetuoso e submisso : Fiat voluntas tua: faça-se a
vossa vontade. Que o Senhor faça de mim o que
quiser, como quiser e quanto o quiser.

*
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Dêsse modo, tornar-se-ão fáceis de ser supor­


tadas as penas mais sensíveis e as situações mais
acabrunhantes. "Não sentes, diz Santa Maria Ma­
dalena de Pazzi, quanta doçura encerra esta única
palavra : VONTADE DE DEUS ?". Como aquêle
madeiro indicado a Moisés, que tirava o amar­
gor das águas, assim ela· adoça tudo o que é amargo
na vida.
*

Sem esta prática tão conforme à fé, sem a


fôrça e a luz que dela resultam, as penas e tra­
balhos da vida tornam-se insuportáveis. Por isso
São Filipe Néri dizia: "Está nas mãos do homem
o colocar-se, já desde esta vida, no paraíso ou no
inferno : aquêle que sofre com paciência as tribu­
lações, goza antecipadamente da paz celeste; aquêle
que não as quer suportar, encontra nelas os tor­
mentos do inferno".
É Deus quem nos envia os sofrimentos, mas
no-los manda para o bem de nossa alma e para
o nosso progresso espiritual. Não transformes, por­
tanto, num motivo de queixa, o que te deve ser
motivo de reconhecimento.

A cruz, diz São Francisco de Sales, é a porta


real pela qual se entra no templo da santidade, e
não se poderia penetrar nêle por nenhuma outra
parte. Um único momento passado sôbre a cruz

86
A VERDADEIRA RESIGNAÇÃO

é mais· útil para o nosso progresso espiritual do


que o gôzo antecipado de tôdas as delícias do céu.
A felicidade dos que chegaram ao têrmo do cami­
nho consiste em possuir a Deus ; mas sofrer por
amor de Deus é a única a que possam pretender
os que se acham ainda em caminho. O Senhor
declara bem-aventurados os que choram durante
êste exílio, porque serão eternamente consolados na
celeste pátria. Beati qui lugent.

Eu disse: ''Sofrer por amor de Deus", porque,


como observa Santo Agostinho, ninguém pode amar
o sofrimento por si-mesmo ; isto é contrário à na­
tureza, e aliás já não haveria sofrimento, se pudés­
semos amá-lo naturalmente. Mas a alma resignada
gosta de sofrer, porque ama a virtude da paciência
e deseja ardentemente os méritos resultantes da
prática dessa virtude. Um desejo tranqüilo e sub­
misso de ser livre do que sofres, se isto agrada a
Deus, não é incompatível com a mais perfeita resig­
nação. Êsse desejo é um instinto da natureza : a
graça o regula e o modera ; ela nos ensina a domi­
ná-lo, mas jamais o abafa inteiramente. O próprio
Jesus Cristo, para mostrar que era verdadeiramente
homem, quis submeter-se ao sofrimento como nós,
e pediu que se afastasse dêle o cálice da paixão <o.

87
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Não se exige de ti que caias numa fria indi­


ferença ou que te armes da heróica insensibilidade
dos estóicos; não haveria nisto nem resignação,
nem humildade, nem virtude alguma; o que é pre­
ciso é sofrer com uma paciência evangélica e uma
generosa resignação tudo o que desagrada à na­
tureza. Eis o que te prescreve de comum acôrdo
a razão e a fé.
*

Sendo a salvação, com tudo o que lhe diz res­


peito, o único fim de nossa vida, nada mais tem
valor, nada mais deve interessar-nos senão empre­
gar os meios para a conseguirmos. A única ma­
neira autêntica de apreciar as coisas é considerá-Ias
em sua maior ou menor aptitude para nos levar
a êsse fim. Assim sendo, que importa que chegue­
mos a ela pela riqueza ou pela pobreza, pela saúde
ou pela enfermidade, pelas securas ou pelas con­
solações espirituais, pelas honras ou pelos despre­
zos dos homens? Eis o que diz a fé e a razão ;
mas o senso humano se revolta contra esta indi­
ferença, e é preciso; porque, sem isto, que mérito
se poderia adquirir? Há portanto luta neste ponto
entre a carne e o espírito. Ora, é esta luta que
para um cristão se chama vida <2> .

88
NOTAS

( 1 ) Eis em que têrmos São Francisco de Sales nos


propõe êste mesmo exemplo da resignação do Salvador em
sua agonia :
"Pensa na grande aflição que sofre nosso divino Mestre
no jardim das Oliveiras ; vê como ês'se caro filho, tendo
pedido consôlo ao seu bom Pai, e conhecendo que êle não
lho queria dar, deixa de desejá-lo, e já não insiste em
buscá-lo; mas, como se nunca o tivesse pretendido, executa
valente e corajosamente a obra de nossa redenção. Assim,
quando tiveres pedido ao Pai que te console, se não lhe
aprouver fazê-lo, não penses mais nisto, mas entrega-te
com maior coragem à obra que êle te deu, sob o sinal da
cruz, como se jamais devesses ver puro e sereno o ar de
tua vida". (Ler os caps. 11 e 15 do 1. III da Imitação ) .

(2) É o pensamento fundamental proposto por Santo


Inácio. E em sua maneira bem diferente de expressar, São
Francisco de Sales está de acôrdo com êle : "Que nos
importa se vamos por desertos ou por campinas, contanto
que Deus esteja conosco e que vamos para o céu? . . . En­
fim, sejamos o que Deus quer, contanto que lhe sejamos
totalmente devotados, e não sejamos o que queremos contra
a sua intenção; porque ainda que fôssemos as mais exce­
lentes criaturas do céu, de que nos valeria isto se não
estivermos conforme à vontade de Deus? . . .
"

89
T EN T A Ç O E S

"Meus irmãos, tende sempre por


motivo de grande alegria as várias
tentações que vos afligem, sabendo
que é pela paciência que vossa obra
será perfeita" (Tg. 1, 2).

"
SE ama",
somos tentados, é sinal de que Deus nos
diz o Espírito Santo. Aquêles que fo­
ram mais amados de Deus, foram também os mais
expostos a tentações. "Porque eras agradável a
Deus, diz o anjo a Tobias, foi necessário que a
tentação te provasse".

Não peças a Deus que te livre de tentações,


mas pede-lhe a graça de não cair nelas, e de fazer
em tudo a sua santíssima vontade. Quem recusa
o combate, renuncia à coroa. Confia em Deus e
Deus combaterá por ti, contigo e em ti.

"Deixa correr o vento, diz São Francisco de


Sales, e não confundas o farfalhar das fôlhas com
o tilintar das armas. Sê resoluto e sabe que nem

91
A MEDIDA DAS VIRTUDES

tôdas as tentações do inferno conseguiriam j amais


manchar um espírito que não as ama. O apóstolo
São Paulo sofreu tentações terríveis, e Deus não
lhas quis tirar . . e tudo por amor."

Quanto mais persiste a tentação, tanto mais


claro se torna o teu não consentimento. "É bom
sinal, diz São Francisco de Sales, que êle faça tan­
to barulho e tempestade em tôrno da vontade: é
sinal de que êle não está dentro". Não se assedia
uma fortaleza já conquistada e ocupada ; enquanto
persiste o ataque, pode-se estar certo de que a
resistência se mantém de pé.

Temes ser vencido no momento mesmo em que


conquistas a vitória. Teu temor provêm de que
confundas a impressão com o consentimento : to­
mas um estado passivo da imaginação por um ato
da vontade, e daí essa impressão de teres cedido
à tentação, pelo fato de a sentires tão vivamente.
A imaginação exerce-se ordinàriamente fora dos
limites de nosso poder. São Jerônimo, retirado no
fundo do deserto, via o espetáculo das danças ro­
manas que lhe representava a imaginação ; seu cor­
po estava gelado pelas macerações, e no entanto o
fogo da concupiscência abrasava-lhe e torturava­
-lhe o coração.

92
TENTA ÇOES

Santo Antão, abade, tinha o costume de dizer


aos fantasmas de sua imaginação : vejo-vos, mas
não vos olho. Eu vos vejo, porque não está em
meu poder evitar que a imaginação me ponha diante
dos olhos o que eu não quereria ver; mas não vos
olho, porque minha vontade repele e rejeita essas
imagens. "A essência do pecado, diz Santo Agos­
tinho, depende tanto de ser voluntário, que se deixa
de ser voluntário, deixa de ser pecado".

Algumas vêzes é tão forte o atrativo dos sen­


tidos para o objeto que lhe apresenta a imaginação,
que a vontade parece ter sido arrastada e como
que absorvida numa espécie de fascinação. Mas não
é isto o que acontece : a vontade sofreu, mas não
consentiu ; ela foi combatida, ferida talvez, mas não
vencida. Esta situação prende-se ao que diz São
Paulo sôbre a revolta da carne contra o espírito,
sôbre a luta perpétua que há entre ambos. A alma
experimenta estranhas sensações nessa luta, mas
atravessa-as tão pura como um corpo que saísse
da água coberto de uma camada de óleo : nem a
menor gôta o atingiria < o .
S e acontece que nem sempre tenhas a cons­
ciência nítida de ter vencido a tentação, sabe que
Deus te recusa essa satisfação para que te guies
pela obediência e não por tuas próprias luzes. Assim,
quando o teu diretor, depois de te ter ouvido, afir­
mar que não houve consentimento de tua parte,

93
A MEDIDA DAS VIRTUDES

deves acatar essa decisão, fixar-te nela com imper­


turbável tranqililidade e repelir todo o temor de
não ter sido bem compreendido, ou de não te ter
explicado com bastante clareza. Porque semelhan­
tes temores são novos artifícios do demônio para
roubar-te o mérito da obediência. Deter-te nestes
temores, como já foi dito mais acima, seria faltar
gravemente à obediência e tornar impossível tôda
a direção, porque cessarias de ver o próprio Deus
na pessoa de teu diretor.

Para que haja pecado, é preciso a reunião


destas três circunstâncias : 1.9) que a matéria seja
grave ; 2.9) que o espírito tenha pleno conhecimento
da culpabilidade da ação que se comete, ou da omis­
são que se permíte, ou da ocasião a que se expõe ;
3.9) que a vontade se decida plenamente por uma
preferência pela ação proibida, ou pela omíssão
culpável, ou pela ocasião perigosa. Essas reflexões
podem servir para tranqüilizar-te, se o temor de
ter pecado mortalmente vem perturbar a tua alma,
porque a reunião dessas três condições se encon­
tra dificilmente numa alma que tem o temor de
Deus ; mas a segurança perfeita só pode e só deve
vir da obediência.

94
TENTAÇOEB

Nas tentações contra a fé e a pureza, não te


detenhas em fazer com esfôrço atos dessas virtudes;
mas volta-te para Deus com um olhar cheio de
ternura, sem falar, mesmo a êste Amigo compas­
sivo, da idéia que te aflige, para que não lhe dês
mais consistência. Entrega-te a alguma ocupação
exterior, ou continua a que tinhas nas mãos, sení
inquietude, sem responder ao tentador, como se seu
ataque não tivesse chegado até as fronteiras de tua
alma. Cobri-lo-ás assim de confusão, e conservarás
a paz <2>.
Mesmo que sejas assaltado de tentações a tua
vida inteira, não te deves perturbar. Teus méritos
crescerão na proporção de tuas provações, e tua
coroa será sempre mais bela. Mantém-te firme na
resolução de desprezar os esforços do tentador.

Os mais sábios teólogos e mestres da vida


espiritual são concordes em dizer que o simples
desprêzo da tentação é um meio mais eficaz de
repeli-la, do que as palavras e atos das virtudes
contrárias. Lê com atenção o que diz sôbre êste
ponto os capítulos m e IV da Introdução à vida
devota. Encontrarás aí grandes luzes.

95
NOTAS

( 1 ) São Francisco de Sales, numa de suas cartas, faz


essa distinção com uma verdade de expressão e de figura
tão simples e ao mesmo tempo tão sublime, que julgamos
útil transcrever aqui essa passagem :
"Não me venhas dizer que te parece agir com· frou­
xidão, sem fôrça nem coragem, mas como que por uma
violência que fazes a ti-mesma. ó Deus ! mas eis aí a santa
violência que arrebata os céus! Estás vendo? Se tudo
parece estar tomado, se o inimigo parece ter tudo con­
quistado em nossa fortaleza, resta-nos a tôrre impenetrável,
inexpugnável de nossa vontade, que só pode ser vencida se
nós-mesmos o quisermos.
"Ora, vês essas almas agitadas, porque o inimigo,
ocupando tôdas as demais faculdades, faz lá dentro um
barulho e uma algazarra infernal ? Mal se pode ouvir o
que se faz e o que se diz nessa vontade superior . . . Embora
ela tenha a voz mais clara e mais viva que a vontade
inferior, vê-se como que abafada pela grosseria da outra.
"Mas não importa : enquanto a tentação te desagradar,
nada há a temer. Por que te desagrada ela senão porque
não a queres?

( 2 ) Eis o mesmo conselho dado por São Francisco


de Sales com a santa alegria que lhe é peculiar :
"Sabes como Deus procede nisto? !:le permite que o
perverso fabricante de semelhante baixezas no-las venha
oferecer à venda, a fim de que, pelo desprêzo que delas
fizermos, possamos testemunhar a nossa afeição às coisas

96
TENTAQOEB

divinas. E para isto, minha irmã, minha filha querida, serã


preciso mudar de posição? Oh, Deus! de modo nenhum.
É o demônio que anda em tôrno de nosso espírito, pro­
curando uma brecha por onde entrar. . . E vamos perder
tempo em irritar-nos com isso? Deixemo-lo agitar-se, con­
servemos tôdas as entradas bem fechadas . . . êle se cansarã
finalmente, ou se não se cansar, Deus o obrigarã a levantar
o cêrco".

97
E S C R ú P U LO S

"Tendo semelhante esperança,


procedemos com plena franqueza"
(li Cor. 3, 12) .

"Pois não recebestes o espírito


de servidão para estardes com te­
mor, mas recebestes a adoção de
filhos". ( Rom. 8, 15) .

ALGUNS olham o escrúpulo como uma virtude


e o confundem com a delicadeza de consciên­
cia. Ao contrário, é um defeito e dos mais peri­
gosos. O sábio e piedoso Gerson diz que uma cons­
ciência escrupulosa prejudica muitas vêzes a nossa
alma muito mais que uma consciência elástica e
relaxada.
*

O escrúpulo falseia o julgamento, perturba a


paz da alma, gera a desconfiança e o afastamento
da vida sacramental e altera a saúde da alma e
do corpo. Quantos infelizes começaram pelo escrú­
pulo e acabaram pela demência! E quantos outros
mais infelizes ainda, começaram pelo escrúpulo e
acabaram pela libertinagem e pela. impiedade! Foge,
pois, dêsse temível veneno da piedade e dize com

99
A MEDIDA DAS VIRTUDES

São José Cupertino : Para trás a tristeza e os escrú­


pulos�· não quero saber dêles em minha casa.
*

O escrúpulo é um temor desarrazoado de ter


pecado, em circunstâncias onde não há sequer ma­
téria de pecado. Mas o escrupuloso não julga se­
rem simples escrúpulos as suas dúvidas e temores;
êle não se atormentaria se pudesse qualificá-los co­
mo tais . l!:le deveria no entanto dar crédito ao seu
guia espiritual, quando êste lhe dá normas para
seguir.
*

O escrupuloso só vê em tôdas as suas ações


uma série ininterrupta de pecados ; só vê em Deus
vingança e cólera. Que êle se habitue, portanto,
a considerar sobretudo no divino Mestre o atributo
que lhe é mais caro : a misericórdia. Faça disto o
assunto habitual de seus pensamentos, de suas me­
ditações e de seus afetos o > .

O único remédio para os escrupulosoos é uma


obediência total e corajosa. É um orgulho secreto,
diz São Francisco de Sales, que nutre e sustenta
os escrúpulos; porque o escrupuloso se aferra a o
seu juízo e à sua inquietude, apesar dos avisos em
contrário de seu diretor. l!:le se persuade sempre,

100
E B OR úP ULOB

para dissimular a sua desobediência, que sobreveio


algum caso novo e imprevisto para o qual seriam
inúteis êsses avisos. Obedece, portanto, acrescenta
o santo, sem fazer outro raciocínio senão êste :
DEVO OBEDECER, e serás livre dessa terrível
enfermidade.
*

A tristeza e a inquietude dos filhos de Deus


é uma grande injúria que fazem ao seu Pai celeste:
parecem dizer com isso que acham pouca doçura
em servir a um senhor tão cheio de amor e de
misericórdia ; parecem querer desmentir as palavras
daquele que disse : "Vinde a mim, vós todos que
trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos ali­
viarei", comparando-se ao bom lavrador que escolhe
para os seus bois "um jugo que lhes seja suave e
um fardo leve" <2>.
*

E acabam entregando-se realmente ao mal, por­


que não têm a simplicidade de crer possível a
Nosso Senhor a vitória de que se sentem incapazes.
Que êles se aproximem dêsse Jesus tão bom que
nos prometeu, junto de si, "o repouso para as nossas
almas".

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NOTAS

(1) É preciso fazer tudo por amor, nada constran­


gido; é preciso amar· a obediência mais do que temer a
desobediência". (São Francisco de Sales) .

(2) "Ai da alma mesquinha e ârida que tudo teme,


e que, à fôrça de temer, acaba por não ter tempo de amar
e correr generosamente.
"ó meu Deus, sei que quereis um coração vasto, quando
êste coração vos ama. Agirei com confiança como uma
criancinha que brinca nos braços de sua mãe ; regozijar­
-me-ei no Senhor e procurarei alegrar também os outros,
expandindo o meu coração sem temor . . . Longe de mim,
ó meu Deus, essa sabedoria triste e temerosa que paralisa,
e que traz sempre nas mãos a balança para pesar átomos . . .
Não agir com mais simplicidade convosco, é injuriar-vos :
semelhante rigor é indigno de vossas entranhas de pai" .
. (Fenelon) .
INQUI ETUD E E P ERTURBAÇÃO

"Marta, Marta, tu te inquietas


e te perturbas com muitas coisas . . . "
(Lc. 10, 43) .
"Sempre agindo, sempre tran­
qüilo".
(SANTO AGOSTINHO)

GUARDA o teu ardor de tôda a inquietude e


perturbação ; São Francisco de Sales era o ini­
migo mais declarado dêsses defeitos. l!:les nos fa­
zem perder o pensamento de Deus em nossas ações,
e nos levam fàcilmente à impaciência quando algum
obstáculo, até mesmo o mais leve, vem entravar­
nos no que fazemos. Só podemcs servir o Deus
da paz de uma maneira que lhe seja agradável,
agindo tranqüilamente em tudo < o .

Marta aplicava-se a uma santa ocupação, pre­


parando a refeição para o Salvador. E no entanto
foi censurada, porque se agitava e se inquietava.
É que não basta fazer o bem, diz o nosso santo,
mas é preciso ainda fazê-lo bem, isto é, com amor
e tranqüilidade. Se se roda o fuso com muita ra­
pidez, êle cai e o fio se rompe.

103
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Quando agimos bem, agimos sempre a tempo.


Aquêles que se inquietam e se agitam não produ­
zem mais e produzem mal.

São Francisco de Sales jamais foi visto apres­


sado no que quer que fôsse. E como alguém lhe
testemunhasse estranheza por sua atitude numa
ocasião de certa importância, êle respondeu : "Per­
guntas-me como posso ficar tranqüilo, quando to­
dos se agitam e se precipitam em tôrno de mim? . . .
Que queres ? Não fui mandado à terra para criar
novos embaraços. Já não os há bastantes, para
que eu ajunte ainda o meu por minha petulância?"

Procura, entretanto, não cair na lentidão ou


na negligência : todos os extremos são maus. Tem
uma atividade tranqüila e uma ativa tranqüilidade.
Para adquirir a tranqüilidade na ação, é preciso
medir a própria capacidade, e não empreender nada
que a ultrapasse. É o amor-próprio, sempre mais
ávido de fazer muito do que de fazer bem, que nos
impele a sobrecarregar-nos de obrigações e a sus­
pirar por grandes emprêsas <2> ; êle se entretém e
se alimenta dessa tensão de espírito, dessa agita-

104
INQUIETUDE E PERTURBAÇÃO

ção interior, que êle toma por marca infalível de


uma capacidade superior. Por isso São Francisco
de Sales costumava dizer : "O nosso amor-próprio
é um grande embrulhão : quer sempre empreender
muita coisa, mas nada termina".

105
NOTAS

( 1 ) " É necessano ter uma continua e inviolável igual­


dade de coração no meio da tão grande desigualdade dos
acontecimentos. Que tudo se vire de pernas para o ar, já
não digo sõmente em tõrno de nós, mas em nós-mesmos;
que nossa alma esteja triste ou alegre, em doçura ou em
amargor, na paz ou na perturbação, na luz ou nas trevas,
em tentação ou em repouso . . . não importa ! É preciso
que a nossa vontade esteja sempre fixa no beneplácito de
Deus, seu único e soberano bem. Eis o cerne da perfeição!
Devemos visar êsse objetivo, e quem mais se aproximar dêle
alcançará o prêmio". (São Francisco de Sales ) .

(2) "Devo olhar o meu dever de cada dia, segundo a


ordem de Deus, como uma obra de que Deus me encarrega,
e aplicar-me a ela de maneira digna de Deus, isto é, com
exatidão e com paz. Nada negligenciarei, nada me apaixo­
nará; porque se é perigoso fazer a obra de Deus com negli­
gência, não o é menos fazê-la com espírito de propriedade,
por amor próprio e com zêlo falso. Então nossas ações
serão manchadas de particularismo; fá-las-emos mal : tor­
nar-nos-emos impacientes com o desejo de triunfar a todo
o custo. A glória de Deus não passará de um simples pre­
texto a camuflar a ilusão, porque o amor-próprio, disfar­
çado em zêlo, se contrista e se irrita quando não pode ter
bom êxito. ó Deus ! dai-me a graça de ser fiel na ação, e
indiferente no triunfo. Meu dever é buscar e querer a
vossa vontade, recolher-me em vós em meio a tudo o que
faço. Vós, porém, dareis aos meüs fracos esforços o fruto
que vos aprouver; nenhum mesmo, se vos agradar. ( Fenelon) .
Tratando-se, bem entendido, de resultados dependentes
de nós. Podemos, com os olhos fechados, abandonar o nosso
trabalho à Comunhão dos Santos. Deus não deixa perder
nada do que se faz para êle . . .

106
T R I S T EZ A
"Alegrai-vos sempre no Senhor.
Repito : alegrai-vos ! Não vos in­
quieteis por coisa alguma. E a paz
de Deus que sobrepuja a todo o
entendimento guarde os vossos co­
rações e as vossas inteligências no
Cristo Jesus". (Filip. 4, 4-6-7) .

EPOIS do pecado, diz São Francisco de Sales,


D a tristeza é o que há de pior. Ela priva a
alma de conselho e de coragem ; é como um duro
inverno que apaga tôda a beleza da terra e entor­
pece todos os animais".
*

É um perigoso êrro buscar recolhimento na


tristeza. Só o Espírito de Deus pode produzir em
nós o recolhimento; a tristeza é obra do espírito
das trevas o>.
*

Não esqueças o princípio de São Francisco de


Sales para o discernimento dos espíritos : todo o
pensamento que nos inquieta e nos perturba não
pode vir do Deus da paz, que faz sua morada nas
almas pacíficas <2>.
*

107
A MEDIDA DAS VIRTUDES

É êrro também fugir de tôda a diversão : o


espírito cansa-se e torna-se sombrio quando perma­
nece assim voltado sôbre si-mesmo ; e torna-se mais
acessível à tristeza. Santo Tomás diz formalmente
que pode haver culpa em recusar-se todo o prazer
honesto : todo o excesso, de qualquer espécie que
seja, é contrário à ordem, e por conseguinte à
virtude.
*

Quanto à quantidade, seria difícil fixar-lhe a


medida. A regra é que cada um deve tomar o que
lhe fôr necessário, segundo o seu estado de espírito,
a natureza de suas ocupações habituais, e a maior
ou menor disposição para a tristeza que notar em
si-mesmo.
*

Quando sentires em teu coração a aproximação


da tristeza, não percas um momento para te dis­
trair dela : faze visitas, ou procura conversar com
as pessoas que te cercam, ocupa-te com alguma
leitura interessante, passeia, canta, faze qualquer
coisa, contanto que feches a porta do coração a
êsse terrível inimigo. Assim como o toque da trom­
beta dá o sinal do combate, assim os pensamentos
tristes avisam ao demônio de que é chegado o mo­
mento favorável para os seus ataques. É nos dias
sombrios, nota São Francisco de Sales, que as môs­
cas caem mais fàcilmente na teia de aranha.

108
NOTAS

(1) "Se ao saíres da oração, trazes um rosto abatido


e triste, vê-se bem que não fizeste a oração como devias".
(São Francisco de Sales ) .

( 2 ) "Sim, minha filha, digo-te por escrito o que te


diria oralmente : alegra-te tanto quanto puderes na prática
do bem; porque é uma dupla graça para as boas obras :
fazê-las bem, e fazê-las alegremente. E quando digo fazê-las
bem, não quero dizer que se acontecer caíres nalguma falha,
tenhas de entristecer-te por isso. Não, de modo algum ;
porque isso seria juntar defeito a defeito. Mas quero dizer
que deves perseverar em querer fazem bem, que deves vol­
tar sempre ao bem logo que reconheceres ter-te afastado
dêle, e que, mediante esta fidelidade, vivas sempre na ale­
gria". (São Francisco de Sales) .

109
P ENIT J! NC IA

"Se alguém quiser vir após mim,


diz Jesus, renuncie a si-mesmo, to­
me a sua cruz e siga-me". (Mt.
16, 24) .

Smaterial
ANTO Tomás ensina-nos que há três meios de
fazer penitência : o jejum, a oração e a esmola
ou espiritual. Não julgues, portanto, que
estás impedido de fazer penitência quando não te
permitem impor à tua carne longos jejuns ou rudes
macerações. As duas obras satisfatórias, a oração
e a esmola, podem neste caso suprir a falta de
mortificação corporal, e preencher o dever cristão
da penitência. Lembra-te, também, de que não está
no espírito das leis de Deus e da Igreja, que pres­
crevem o jejum, prejudicar a tua saúde, nem em­
baraçar o cumprimento de teus deveres de estado.

·
Receber com resignação os trabalhos, as enfer­
midades, os desgostos, os reveses da fortuna, as
securas na oração, são obras de penitência tanto
mais agradáveis a Deus quanto menos escolhidas
por nossa vontade. Tôdas as virtudes podem ser
divididas em duas grandes classes : virtudes ativas

111
A MEDIDA DAS VIRTUDES

e virtudes passivas. Umas consistem em realizar


o bem, outras em sofrer os males. Ora, as da se­
gunda classe são as mais meritórias e as menos
perigosas, porque nas virtudes ativas pode haver
grande influência da natureza, infiltrando-se fàcil­
mente nelas uma perigosa complacência em si-mes­
mo ou rios resultados obtidos. E tal perigo é menos
para temer nas virtudes passivas, sobretudo quan­
do nossos sofrimentos não são de nossa escolha, mas
enviados diretamente por Deus.

São Jerônimo ensina-nos que quando o demô­


nio não consegue desviar uma alma do amor do
bem, procura incitá-la a um excessivo rigor de mor­
tificação, afim de que ela se canse e perca o vigor
necessar10 ao seu progresso espiritual. Muitas
almas têm caído neste laço.

"Rogo-te que conserves cuidadosamente a tua


saúde, escreve São Francisco de Sales, porque Deus
exige êsse cuidado de ti. Poupa as tuas fôrças
para as empregar no seu santo serviço. Com efeito,
é melhor conservar mais fôrças corporais do que
é preciso, que arruiná-las mais do que é preciso,
porque é sempre fácil enfraquecê-las quando se quer,
mas não é sempre fácil repará-las quando se de-

112
P E N I T 1JJ N O I A

seja". Dá ao teu corpo o alimento que lhe é neces­


sário para a conservação das fôrças e da saúde.

Sabemos de Cassiano e de Santo Tomás, que


numa célebre conferência em que tomaram parte
Santo Antão e os religiosos mais esclarecidos do
Egito, foi concluído que de tôdas as virtudes a mais
útil é a moderação, porque ela serve de regra e
como que de tempêro para tôdas as demais. Foi
por ter faltado essa moderação em suas práticas
de devoção e de mortificação, que muitos, embora
buscassem a santidade, só encontraram a enfermi­
dade, e acabaram por abandonar o caminho da per­
feição, julgando-a impraticável, porque só quiseram
marchar para ela carregados de entraves.

De tudo isto, é fácil concluir a falsidade de


certas máximas que se encontram em vários livros
ascéticos, como por exemplo esta: . pouco importa
que abreviemos a nossa vida de uns 10 ou 15 anos,
contanto que seja para a salvação de nossa alma.
Se assim fôsse, o meio de chegar à perfeição seria
tanto mais seguro quanto mais depressa nos trou­
xesse a morte. E vêde aonde isto nos levaria. Não,
não é permitido, na prática ordinária, impor-se arbi­
tràriamente um gênero de mortificação que ten­
deria diretamente a abreviar a vida. "Vejo pouca

113
A MEDIDA DAS VIRTUDES

diferença, diz São Jerônimo, entre o crime de se


matar de um só golpe e o de fazê-lo lentamente".
A vida, a saúde, as fôrças, são bens que recebemos
em depósito ; não podemos dispor dêles como coisas
nossas.
*

Os exemplos dos santos que se entregaram a


práticas extraordinárias de penitência, são dignos
de tôda a nossa admiração ; mas não é nesses atos
exteriores que devemos procurar imitá-los; para
isso, seria preciso começar por ser santo como êles.
Imita, pois, também os seus milagres, se o podes.
"Se quiséssemos copiar os santos em tudo o que
fazem, diz Santa Francisca de Chantal, precisaría­
mos passar a nossa vida numa caverna como São
João Clímaco, ou sôbre uma alta coluna como São
Simão Estelita; viver várias semanas sem outro
alimento a não ser a santa Eucaristia como Santa
Catarina de Sena, ou só tomar uma migalha de
alimento por dia como São Luís Gonzaga". Pre­
tender imitar os santos no que sai da via comum
é fruto de um orgulho secreto e não de verdadeira
virtude ( 1 > .

Queres praticar uma forma de mortificação em


que, sem risco de imprudência, estarás seguro de
não te buscar a ti-mesmo ? Pratica a mortificação
interior. Esta, segundo São Bernardo, consiste em

114
P E N I T :GJ N O I A

renunciar a impor a própria vontade, sempre


que não o exigir o dever e o bem.
Se te ordeno jejuar, diz São Jerônimo, poderás
responder-me que tuas fôrças não to permitem. Se
te ordeno dar esmolas, poderás excusar-te com a
insuficiência de teus recursos ; mas quando te man­
do renunciar à tua própria vontade, não há pretexto
que possas alegar para te excusares.
Certa noviça pedia a São Francisco de Sales
a permissão de usar sandálias com os pés nus.
Como êle a sabia difícil de conduzir, disse-lhe :
"Queres mudar de calçado ? Muda antes a tua
cabeça".

115
NOTAS

( 1 ) O tradutor dêsses textos, entretendo-se em Roma


sôbre essa matéria com um sábio e piedoso jesuíta, recebeu
esta admirável resposta, a propósito dos jejuns e mortifi­
cações extraordinárias de Santo Inácio : "Não confundamos
a causa com o efeito : não foi por ter feito essas coisas que
êle se tornou santo; ao contrário, foi porque êle era já
santo que lhe foi possível e permitido praticá-las". De fato,
todo o ato que ultrapassa as fôrças humanas é um ato de
presunção, se não fôr o resultado de uma inspiração par­
ticular. A Igreja só o aprova, se ela reconhece nêle essa
inspiração divina que autoriza a afastar-se da regra geral.
1:: por urna exceção dêsse gênero que ela venera, no número
daqueles que sofreram a morte pela fé, várias santas que
violaram a lei proibitiva de pedir o martírio.

(2) O grande Papa São Leão, dizia : "Cuidemos de


obedecer aos preceitos apostólicos de mortificação, de tal
modo que a alma retome a sua linha de comando. Porque
seremos justamente censurados pelos infiéis, se os costumes
dos que jejuam faltam de moderação. E é inútil privar o
corpo de alimento, se o espírito não se retira da injustiça".
A mortificação que nos tornasse insuportáveis seria con­
trária ao preceito do Senhor. A verdadeira mortificação
deve tornar-nos flexíveis e levar-nos ao esquecimento de
nós-mesmos. Dêsse modo, estará ela a serviço de sua rainha,
a caridade : porque o cristão mortificado não é sombrio e
inacessível, mas acessível e sorridente. Fazer jejuar o nosso
caráter . . . que ventura para os que nos cercam! São Fran­
cisco de Sales recomenda uma vigilância cuidadosa sôbre
os movimentos naturais. "Viver segundo o espírito, minha

116
P E N I T PJ N O I A

querida filha, é pensar, falar e operar segundo as virtudes


que estão no espírito e não segundo os sentidos e os senti­
mentos carnais . . . Estou triste, e por isso não quero falar :
os cavalos e os papagaios fazem outro tanto.
"Estou triste, mas já que a caridade exige que eu fale,
falarei : as pessoas espirituais procedem assim.
"Sou desprezado, e por isso me irrito : assim procedem
os pavões e os macacos.
"Sou desprezado, e com isso me alegro : os apóstolos
procediam assim.
"Digamos, pois, antes de tudo o mais, que os cristãos
devem ser fortes, e que o espírito do cristianismo é um
espírito de coragem e de firmeza . . . Vós, os pais, já avan­
çados em idade, como também vós, ó jovens e crianças, não
ameis o mundo nem o que está no mundo : porque tudo o
que há no mundo é amor dos prazeres, curiosidade e osten­
tação : enfim, um orgulho radical que abafa a virtude em
semente, e não cessando de a perseguir, pode corrompê-la
mesmo quando ela parece ter crescido". (Bossuet) .

117.
P E R FE I Ç ÃO CR I S T Ã

"A medida de amar a Deus, é


amá-lo sem medida". (São Ber­
nardo) .
"Cuidai de não querer ser mais
sábios do que convém, tomando ca­
da um por medida o que Deus lhe
concedeu". (Rom. 12, 3) .

O tender
cristão não é obrigado a ser perfeito, mas a
à perfeição, isto é, a trabalhar constan­
temente em seu progresso na virtude < o . Não se
esforçar por avançar nesse caminho, é recuar. Se­
guindo a verdade, na caridade, cresceremos em tudo
naquele que é a nossa cabeça, Cristo" (Ef. 4, 15 ) .

Ora, o meio de trabalhar na própria perfeição


e de fazer progressos na virtude, não consiste em
multiplicar indefinidamente as orações, jejuns e
outros exercícios religiosos. São Francisco de Sales,
com o seu habitual bom humor, nos precavém con­
tra essa tendência : "No ano passado, jejuavas e
te disciplinavas três dias por semana. Se queres
sempre duplicar teus exercícios, terás neste ano
de encher tôda a semana com êles ; mas no próximo

119
A MEDIDA DAS VIRTUDES

ano, como farás ? Precisarás de nove dias na se­


mana, ou então terás de jejuar duas vêzes por dia!"

Portanto, em lugar de aumentar continuamente


os teus exercícios de piedade, procura aperfeiçoar­
-te na prática dos que fazes ordinàriamente, apli­
cando-te a êles com maior afeição e tranqüilidade
de alma, com maior pureza de intenção <z>. E se
acontecer mesmo que não consigas fazer cômoda­
mente todos os exercícios devotos que te são habi­
tuais, suprime uma parte dêles, contanto que o
resto seja feito com tranqüilidade. O espírito da
perfeição, diz São Bernardo, não consiste em fazer
grandes coisas ou em fazer muitas, mas em exe­
cutar com perfeição as coisas comuns e ordinárias.
Communia facere) sed non communiter.

O fim da perfeição é um só. É o mesmo para


todos: O AMOR DE DEUS; mas há diversos ca­
minhos para chegar a êle.

Esforça-te sobretudo por aperfeiçoar-te no cum­


primento de teus deveres de estado ; porque nisto
está tôda a perfeição e tôda a santidade. Ao criar
o mundo, Deus ordenou às plantas que dessem

120
PERFEIÇÃO GRIBTÃ

frutos ; mas cada uma segundo a sua espec1e:


Juxta genus suum. Do mesmo modo, nossas almas
têm tôdas a obrigação de produzir frutos de santi­
dade; mas cada uma segundo a sua espécie, isto é,
segundo o estado em que a Providência nos colocou.
Elias, no deserto, e Davi, no trono, não deviam ser
santos da mesma maneira ; Josué, em meio ao tu­
multo das armas, teria em vão procurado santifi­
car-se pelos mesmos meios que Samuel no tranqüilo
retiro do templo. Essa observação é muito opor­
tuna para aquêles que vivem no mundo e gostariam
de praticar ali as virtudes do claustro ; para aquêles
que habitam nos palácios, e gostariam de levar ali
a vida do deserto ( * ) . Poderiam dar frutos exce­
lentes em si-mesmos, mas que não seriam segundo
a sua espécie, juxta genus suum; e a vontade de
Deus não seria cumprida.

"Por mais insignificantes que sejam, se nossas


ações e ocupações são agradáveis a Deus, a quem
poderiam desagradar?"

Não temas estar fora do caminho da perfeição,


porque tens sempre defeitos e cais nalgumas

( "' ) Ver a nota (7) , pág. 37, e a Introdução à vida


devota, I parte, cap. III.

1!1
A 11!EDIDA DAS VIRTUDES

faltas <3> . Isto aconteceu até mesmos aos maiores


santos ; e todos, como diz Santo Agostinho, podiam
dizer com o apóstolo São João : "Se dissermos que
não temos pecado, enganamo-nos a nós-mesmos e
a verdade não está em nós".

Mas uma coisa é amar o pecado, e outra é cair


nêle por surprêsa ou por fraqueza, como já o disse
mais acima (Confissão p. 43) . A afeição ao pecado
é o único obstáculo à perfeição. Por isso os Santos
Padres mais esclarecidos distinguem duas espécies
de tibieza : uma que se pode evitar, e outra inevi­
tável. A primeira é a de uma alma que permanece
afeiçoada a certos pecados; a outra copsiste em
cair nêles por fraqueza e por surprêsa, o que foi o
caso mesmo para os maiores santos.

Em lugar de perturbar-te com esta especie de


acidentes, inseparáveis de nossa condição presente,
procura tirar proveito dêles, aprofundando-te na
humildade. Freqüentemente acontece, diz São Gre­
gório Magno, que Deus deixe grandes defeitos nes­
sas almas queridas, no comêço de sua vida espiri­
tual ; mas isto, para que elas cresçam no conheci­
mento de si-mesmas e aprendam a colocar nêle tôda
q, , sua confiança. Deus, diz Santo Agostinho, pre­
feriu em sua infinita sabedoria tirar o bem do mal,
PERFEIÇÃO ORISTÃ

do que impedir o próprio mal. Assim, quando sou­


beres tirar de tuas faltas frutos de humildade, cor­
responderás aos fins sublimes de sua inefável pro­
vidência <4>.

Se te sobrevier algum temor de não estar mar­


chando no verdadeiro caminho da perfeição <s> , con­
sulta teu diretor espiritual, e aceita sem vacilar o
que êle te disser. Qual é o santo que não teve de
sofrer semelhante temor ? Mas todos se tranqüili­
zaram pela consideração da bondade divina e pela
obediência .a seu pai espiritual.

Ordinàriamente, só depois de uma marcha


longa e penosa é que conseguimos subir a montanha
da perfeição. Há estátuas, diz São Francisco de
Sales, cuja perfeição custou ao artista mais de
trinta anos de trabalho. Ora, o aperfeiçoamento
da alma é uma obra bem mais difícil. É preciso,
portanto, que nos apliquemos a êsse trabalho com
tranqüilidade, paciência e confiança em Deus. Obte­
mos sempre prontamente o que desejamos, se o
obtemos no tempo em que apraz a Deus no-lo con­
ceder.

123
NOTAS

(1) Vê-se que se trata do trabalho enérgico e sincero


pela aquisição da perfeição, e não de sua aquisição mesma.
O bom êxito não depende de nós. Deus o concede, ou o
recusa, ou o difere, conforme êle sabe nos ser mais conve­
niente. Ouçamos São Francisco de Sales :
"Precisamos fazer três coisas : ter uma atenção bem
pura de só querer e buscar em tudo a honra e a glória
de Deus, fazer o pouco que pudermos para êsse fim, segundo
o aviso de nosso pai espiritual, e deixar a Deus o cuidado
do resto."
E em outro lugar :
"Deixa-te governar por Deus; não penses tanto em
ti-mesmo. Procura ter uma resolução geral e universal de
servir a Deus do melhor modo possível, e não percas tempo
em examinar e explorar com sutileza qual é a melhor ma­
neira. Isto é uma impertinência própria à condição de teu
espírito sutil e penetrante, que quer tiranizar a tua vontade
e controlá-la com embustes e sutilezas . . . Sabes que a
vontade de Deus, de modo geral, é que o sirvamos, aman­
do-o sôbre tôdas as coisas, e ao nosso próximo como a
nós-mesmos. De modo particular, êle quer que cumpras os
teus deveres de estado; isto basta. Mas é preciso fazer
tudo de boa fé, sem finezas nem sutilezas, à maneira dêste
mundo - onde nada é perfeito - conformando-nos ao huma­
no e ao temporal, enquanto aguardamos poder fazê-lo à
maneira divina na eternidade".

(2) A maior parte das pessoas, quando querem refor­


mar-se, pensam mais em encher a própria vida de ações
difíceis e extraordinárias do que em purificar suas inten:-

124
PERFEIÇÃO CRISTÃ

ções, corrigindo suas inclinações naturais e aplicando-se às


ações comuns de seu estado; e dêsse modo, enganam-se às
mais das vêzes. Seria melhor mudar menos as ações, e
mudar mais as disposições de coração com que as fazem.
Quando já se leva uma vida regrada e honesta, é bem me­
lhor, para. se tornar verdadeiramente cristão, mudar o inte­
rior do que o exterior. Deus não olha nem para o ruído
dos lábios, nem para a postura do corpo, nem para as ceri­
mônias exteriores : o que êle pede é uma vontade que não
esteja dividida entre êle e as criaturas ; uma vontade ma­
leável em suas mãos . . . , uma vontade que queira sem re­
serva tudo o que êle quer, e não queira jamais, sob pre­
texto algum, nada do que êle não quer.
"Leva essa vontade tôda simples, tôda cheia de Deus,
aonde quer que sua divina providência te conduza . . . Busca
a Deus nessas horas que te parecem vazias, elas serão cheias
para ti . . . Como o coração se dilata quando Deus abre
êste caminho de simplicidade ! Marchamos então como crian­
cinhas conduzidas pela mão de sua mãe, e que se deixam
levar sem se preocuparem com o lugar para onde vão.
Contentamo-nos de ser livres; estamos prontos tanto para
falar como para calar. Se não podemos dizer coisas edifi­
cantes, dizemos ninharias, mas sempre de bom coração.
Distraímo-nos com o que São Francisco de Sales chamava
de jovialidades : com elas nos recreamos, enquanto recrea­
mos os outros.
As próprias virtudes têm necessidade de ser purificadas
em seu exercício pelos contratempos que Deus lhes envia
a fim de melhor desprendê-las de tôda a vontade própria.
Vivamos mais ou menos como os demais, sem afetação,
sem aparência de austeridade, de um modo sociável e
simple·s, mas com os olhos voltados para Deus, a quem
sacrificamos todos os movimentos irregulares da natureza.
Eis a adoração em espírito e verdade que Jesus Cristo e
seu Pai procuram. Tudo o mais, sem isto, não passa de

125
A MEDIDA DAS YIRTUDES

uma religião de cerimônias : é mais a sombra que a ver­


dade do cristianismo". - (Fenelon) .

(3) "Não examinemos tão cuidadosamente se estamos


ou não na perfeição : nunca devemos fazer semelhante exame,
porque ainda que fôssemos os mais perfeitos dos homens,
não devemos jamais sabê-lo, mas estimar-nos sempre im­
perfeitos; nosso exame não deve nunca tender a conhecer
se somos imperfeitos, porque nunca podemos duvidar disso.
Dai se conclui que não devemos estranhar-nos de nos ver
imperfeitos, porque jamais devemos ver- no·s de outro modo
nesta vida; nem devemos contristar-nos por isso, pois não
há remédio; mas hwnilhar-nos, porque pela humildade repa­
raremos os nossos defeitos. Procuremos emendar-nos doce­
mente, porque é para isso que nos são deixadas nossas
imperfeições. Não seremos escusáveis se não procurarmos
emendar-nos, nem acusáveis se não o fizermos inteiramente,
porque não se passa com as imperfeições o mesmo que com
os pecados . . . Vai, pois, o teu caminho alegremente e com
o coração o mais dilatado possível; mas se não puderes ir
sempre alegremente, procura ao menos ir sempre corajosa
e fielmente". (São Francisco de Sales) .

( 4 ) Eis o que Fenelon escrevia sôbre o mesmo assunto :


"Outrora não tinhas bastante luz para descobrir no
fundo de ti-mesmo os movimentos da natureza maligna e
depravada que começam agora a desenvolver-se ante os teus
olhos. A medida que a luz cresce, vemo-nos mais corrompidos
do que acreditávamos ; mas é preciso que não o estranhe­
mos, nem nos desanimemos. Não é que sejamos piores do
que éramos ; ao contrário, nós o somos menos. Mas en­
quanto diminuem os nossos males, aumenta a luz que no-los
mostra".

(5) Certas pessoas, apesar de terem a consc1encia do


desejo sincero de servir a Deus, são predispostas a alar­
mar-se sôbre o estado de sua alma à menor lembrança do

126
PERFEIÇÃO GRISTÃ

que leram ou ouviram a respeito das consciências falsas,


das ilusões que podemos alimentar em nós-mesmos, e da
segurança enganosa daqueles que andam por um caminho
falso. Há duas maneiras de se formar uma consciência
falsa : quando, ao escolhermos entre os nossos deveres
aquêles pelos quais sentimos mais disposição e mais atra­
tivo, a fim de nos aplicarmos a êles além do necessário,
persuadimo-nos de que podemos negligenciar os outros\
Assim, uma pessoa atraída pelos atos externos da religião
passará os dias em oração, nos ofícios, ouvindo sermões;
e julgará possuir grande devoção, embora negligencie seus
deveres temporais. Outra, porém, tendo inclinações opos­
tas, aplicar-se-á exclusivamente aos deveres de seu estado,
sacrificando sem remorso os deveres religiosos sob o pre­
texto de ser bom pai, bom espôso, bom amigo e de dar a
cada um o que lhe é devido. E persuade-se de que agindo
assim não poderia ser desagradável a Deus. A segunda
maneira consiste em estimar e praticar de preferência aque­
las virtudes cristãs de que possuímos naturalmente as
análogas; porque tôdas as virtudes cristãs têm suas corre­
lativas entre as qualidades do temperamento. Dêsse modo,
as pessoas de caráter terno e manso aplicar-se-ão à doçura
cristã, cuja prática lhes será facílima e não exigirá nenhum
esfôrço; e, imaginando praticar uma virtude cristã, na rea­
lidade não estarão fazendo outra coisa que deixar-se levar
por sua inclinação natural, e poderão cair numa fraqueza
repreensível. Aquêles, ao contrário, que têm o espírito lógi­
co e rígido, estimarão a justiça e a regra antes de tudo,
pouco se importando com a doçura e a caridade; e, apoian­
do-se assim falsamente em sua disposição natural, seguirão
a inclinação da carne crendo obedecer ao espírito, e poderão
chegar a uma severidade excessiva. Eis uma admirável
passagem em que São Francisco de Sales nos põe de so­
breaviso contra um impasse que poderia criar-nos uma idéia
da perfeição segundo a nossa paixão e fantasia : "Quem é
dado ao jejum, julgar-se-á bem devoto porque jejua, ainda
que conserve o coração cheio de rancor . . . Outro se esti-

127
A MEDIDA DAS VIRTUDES

mará piedoso porque diz grande quantidade de orações


todos os dias, ainda que depois disso sua língua se derrame
em palavras ásperas, arrogantes e injuriosas entre seus
empregados e vizinhos. Outro dará largamente esmolas
aos pobres, mas não terá sequer uma palavra de doçura
e de perdão para os inimigos. Outro, finalmente, perdoará
os seus inimigos, mas só pagará suas dívidas com extrema
dificuldade. Todos êstes são comumente tidos por devotos,
e no entanto não o são de modo algum". Tôda a perfeição,
segundo Santo Afonso, está nisto : fazer tudo o que Deus
quer, e querer tudo o que Deus faz.

128
A S RE LA Ç Õ E S E XT E RIO RE S

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C A R ID A D E

"Se alguém diz que está na


luz e odeia o seu próximo, êsse
está ainda nas trevas". (I Jo. 2, 9) .

JESUS Cristo disse que seus discípulos seriam re­


conhecidos pela mútua caridade.
A caridade não é um gesto ocasional, mas a
disposição profunda para tratar os outres como
irmãos, por causa do Pai, e por causa do Irmão
primogênito, o Cristo. Ao dar-nos ao Cristo, fomos
por êle unidos uns aos outros : a caridade não é
uma condescendência, mas um liame fraternal.

Socorre portanto os teus irmãos em suas ne­


cessidades, na medida de tuas possibilidades, con­
sultando sempre as leis da prudência e os recursos
de tua posição. Supre com o -desejo o bem material
que não puderes fazer. "Levai os fardos uns dos
outros, diz São Paulo, e assim cumprireis a lei de
Cristo".
*

Quando o teu próximo te ofende, êle não cessa


por isso de ser a criatura feita à imagem de Deus:·

131
A MEDIDA DAS VIRTUDES

o motivo cristão para o amar, existe sempre. Tal­


vez não seja êle digno de perdão ; mas Jesus Cristo,
que te perdoou tantas vêzes ofensas bem mais gra­
ves, não o mereceu para êle ?

Observa, entretanto, que não depende de nós


o sentir ou não alguma repugnância por aquêles que
nos ofenderam ; mas sentir e consentir são duas
coisas bem diferentes, como j á o dissemos. Quando
a religião nos ordena amar os nossos inimigos, êsse
manda�nto dirige-se à parte superior da alma, à
vontade, e não à parte inferior onde residem as
afeições carnais, que só seguem a inclinação natu­
ral : numa palavra, não se trata dessa amizade hu­
mana que sentimos por aquêles que nos agradam
naturalmente, pois nesse sentimento só buscamos
a nossa própria satisfação e êle nada tem de comum
com a caridade O > .
*

. Mas se nos é proibido alimentar voluntària­


mente ódio contra os maus e contra aquêles que
nos ofenderam, não é interdito que nos defendamos
de seus ataques e usemos para com êles das pre­
cauções sugeridas pela prudência. A caridade cristã
nos obriga e nos leva a amar os nossos in�migos e
a fazer-lhes bem quando a ocasião se apresenta; mas
não deve conduzir-nos a proteger os maus, não deve
deixar-nos sem defesa contra as suas agressões, sem

132
CARIDADE

vigilância contra as suas investidas, sem precaução


contra as suas ciladas.

Escusa sempre os defeitos do prmomo, e não


interpretes nunca as suas ações de maneira desfa­
vorável. Uma mesma ação, diz São Francisco de
Sales, pode ser encarada sob cem aspectos diferen­
tes : uma alma caridosa supõe sempre o melhor,
uma alma sem caridade escolhe sempre o pior.

É muito difícil que um bom cristão se torne


verdadeiramente culpado de um juízo temerário
propriamente dito, isto é, que sem motivos, êle pro­
nuncie em seu pensamento de maneira positiva a
condenação do próximo. Confunde-se muitas vêzes
com êsse grave pecado a suspeita ou mesmo a sim­
ples desconfiança, que podem ser justificadas por
motivos muito mais leves.

A suspeita é permitida quando tem por fim as


medidas de uma justa prudência; a caridade proíbe
os pensamentos gratuitamente descaridosos, mas não
a vigilância e a precaução.

133
A MEDIDA DAS VIRTUDES

A suspeita é não somente permitida, mas pode


ser algumas vêzes um dever importante para aquê­
les que são encarregados da direção e vigilância de
outros : assim, um pai é obrigado a isso com relação
aos seus filhos, um patrão a respeito de seus em­
pregados, tôdas as vêzes que houver ocasião para
corrigir algum vício de que se conhece a existência,
ou de prevenir alguma falta que se pode razoàvel­
mente temer.
*

Quanto à simples desconfiança, que não se deve


confundir com a suspeita, não é mais que um esta­
do involuntário e puramente passivo, para o qual
podemos ter mais ou menos disposição natural, sem
que nosso livre arbítrio se comprometa. Descon­
fiança, suspeita, juízo, eis portanto três coisas bem
distintas e que não se deve confundir.

134
NOTAS

( 1 ) "A caridade nos faz amar a Deus acima de tudo,


e o próximo como a nós-mesmos, com um amor não sen­
sual, não natural, não interessado, mas puro, sólido e inva­
riável, que tem seu fundamento em Deus . . . Os animais,
que não têm espírito e só se guiam pela carne e pelos sen­
tidos, amam seus benfeitores e aquêles que lhes são agra­
dáveis. Suponhamos uma pessoa rude, áspera e incivil, mas
piedosa e mesmo desejosa de se abrandar e de civilizar-se :
a essa pessoa eu devo querer, servir e amar, não por me
inspirar simpatia, nem por outro qualquer interêsse, mas
unicamente pelo beneplácito divino. Eis o amor segundo o
espírito, porque nêle a carne não tem parte alguma". (São
Francisco de Sales) .

Lê o evangelho d e São Lucas, cap. 6 , vers. 32, 33, 34.

Julga-se muitas vêzes impraticável o preceito evangé­


lico tomado ao pé da letra, e escusa-se com esta impossi­
bilidade para não se observar a lei do Amor de Cristo :
Como é possível, diz-se, ter para com todos os homens,
indistintamente, esta sensibiliàade que temos por tudo aquilo
que nos toca, esta ocupação constante, esta delicadeza de
sentimento que reservamos para nós-mesmos e para alguns
objetos a que dedicamos especial afeição? E entretanto, o
preceito de Jesus Cristo deve ser praticado ao pé da letra.
Que fazer? Fenelon no-lo vai ensinar, e veremos que não
se trata de exagerar o amor do próximo, mas de moderar
o amor de nós-mesmos, colocando-os assim, um e outro,
sob a dependência do amor de Deus.

135
A MEDIDA DAS VIRTUDES

"Amar o próximo como a nós-mesmos não significa


que devemos ter para com êle esta idolatria que temos
para conosco, mas simplesmente que devemos amar-nos a
nós-mesmos por pura caridade, e do mesmo modo ao pró­
ximo. O verdadeiro e puro amor, o amor que só busca o
objeto amado, deve ser reservado unicamente a Deus, e
seria uma usurpação colocá-lo em outra parte".

136
I NFLU li.NCI A E D I S CRI Ç ÃO

"Não sabeis de que espírito


sois : o Filho do homem não veio
para perder mas para salvar as
almas" (Lc. 9, 55) .
"A cólera do homem não cum­
pre a justiça de Deus . . . Se tendes
um zêlo amargo. . . essa sabedoria
não vem do alto". (Tg. 1, 3) .

ROCURAR com ardor a salvação dos outros é


P uma sublime virtude, e entretanto quantos erros
e mesmo pecados se cometem todos os dias sob êsse
belo pretexto. O mal nunca é feito com tanto apru­
mo e segurança, diz São Francisco de Sales, como
quando praticado com a convicção de estar traba­
lhando para a glória de Deus.

Os próprios santos tiveram suas falhas nesta


matéria tão delicada, como vemos pelo exemplo dos
apóstolo São Tiago e São João, que foram repreen­
didos por Jesus quando lhe pediram que mandasse
vir fogo do céu sôbre os samaritanos.

131
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Os atos de proselitismo são moedas cuja im­


pressão é preciso examinar cuidadosamente, porque
há mais falsas que boas. Para que o zêlo seja puro,
é preciso que seja acompanhado de grande humil­
dade, porque de tôdas as virtudes é a que mais
fàcilmente se presta ao infiltramento do amor-pró­
prio. E o zêlo poderá tornar-se imprudente, pre­
sunçoso, injusto, amargo. Consideremos êsses dife­
rentes aspectos, buscando-os, para mais clareza, na
prática.
*

Não há família, por mais cristã que seja, em


que não se encontre algum espinho, porque mesmo
a melhor terra produz sempre alguma erva dani­
nha : o zêlo imprudente, procurando arrancar estou­
vadamente o espinho, crava-o ainda mais, tornando
a ferida mais dolorosa e mais profunda <o . Há
tempo para falar e tempo para calar, diz o Espírito
Santo. Uma advertência diferida pode ser feita
em outra ocasião. Uma advertência inoportuna,
não somente fica infrutuosa, mas paralisa em sua
fonte o bem que se poderia fazer.

Alguns levam o seu zêlo presunçoso até o in­


terior das famílias estranhas, censurando, aconse­
lhando, reformando sem discrição nem medida, e
causam dêsse modo um mal que ultrapassa aquêle
que queriam corrigir. Apliquemos a atividade de

138
INFLUPJNOIA E DISCRIÇÃO,

nosso zêlo antes de tudo na reforma de nós-mesmos,


diz São Bernardo, e oremos humildemente pela dos
outros. É grande presunção atribuirmo-nos assim
a qualidade de apóstolos, quando não somos ainda
nem sequer bons e fiéis discípulos. Não sejas indi­
ferente à salvação das almas ; deseja-a ao contrário
ardentemente, mas dedica-te a ela com prudência,
humildade e desconfiança de ti-mesmo.

Outros fazem consistir o seu zêlo em querer


obrigar a tôda a gente a adotar suas práticas par­
ticulares de devoção. E assim, êste, cuja devoção
o leva principalmente a meditar a paixão do Sal­
vador e a visitar o Santíssimo Sacramento, gosta­
ria de obrigar a todos, sob pena de reprovação, a
passar horas inteiras prostrados diante do crucifixo
ou do tabernáculo. Aquêle, que se dedica especial­
mente a visitar os pobres ou a consolar os enfêrmos
nos hospitais, não reconhece que possa haver pie­
dade fora dessa devoção tão excelente. Ora, isto
não é zêlo esclarecido. Marta e Maria são duas
irmãs, diz Santo Agostinho, mas suas ocupações
não são as mesmas : uma contempla, outra age.
Se ambas passassem o dia na contemplação, quem
teria preparado a refeição para o divino Salvador?
Se ambas se tivessem ocupado dêsse cuidado mate­
rial, ninguém teria ouvido as suas palavras e re­
colhido as suas divinas lições. As feições do espí­
rito são tão diversas quanto as do rosto : cada uma

139
A MEDIDA DAS VIRTUDES

deve seguir nas coisas livres as inspirações tão va­


riadas da graça de Deus. Omnis spiritus laudet
Dominum. Que todo espírito o louve o Senhor, diz
o profeta. "E se um anel não couber em teu dedo,
perguntava São Francisco de Sales, jogá-lo-ás por­
ventura na lama ?"
*

É sempre um zêlo falso - guarda bem isto -


aquêle que te leva a realizar obras pouco conformes
com a tua posição, por mais úteis e boas que pos­
sam ser em si-mesmas, sobretudo se isto provoca
alguma perturbação ou ressentimento entre os teus :
as coisas mais santas por sua natureza, desagradam
infalivelmente a Deus quando não condizem com o
dever de estado.
*

São Paulo censura com rigor aquêles cristãos


que mostravam uma preferência por demais exclu­
sivista por seus mestres espirituais ; uns não admi­
tindo verdade senão na bôca de Pedro, outros só
querendo reconhecer Paulo, outros Apolo. "O quê?
dizia-lhes São Paulo, Jesus Cristo rrão é o mesmo
para todos vós? Porventura foi Paulo crucificado
por vós ? Ou fôstes batizados em nome de ·Paulo ?"
Essa fraqueza repreensível se reproduz freqüente­
mente ainda hoje em muitos que, levando até o
excesso a afeição por êste ou aquêle instituto reli­
gioso, exaltam sem medida sua sabedoria e santi­
dade, e não têm escrúpulo de desmerecer sem pie-

14 0
INFLUPJNOIA E DISCRIÇÃO

dade todos os demais. Só Deus conhece o justo


valor de cada um; nós não temos as balanças do
santuário para pesar e comparar a sabedoria e a
santidade de uns e de outros. Se tens um bom di­
retor, agradece a Deus e procura seguir com docili­
dade os seus avisos; mas não pretendas que êle
seja o único bom. Rebaixar o mérito de uns para
exaltar o de outros, é uma espécie de maledicência
tanto mais para temer quanto menos o é em geral.

"Se tens um zêlo amargo, diz São Tiago, isso


não é inspiração do alto, mas paixão puramente
humana, ou antes, animal e diabólica". Essas pa­
lavras de um apóstolo deveriam ser meditadas por
aquelas pessoas que, embora fazendo profissão de
piedade, se mostram fàcilmente acessíveis à irrita­
ção, e nem percebem a rudeza de sua linguagem e
de suas maneiras. Agir dêsse modo, é afastar e
escandalizar aquêles que se deviam ganhar.

O zêlo é tanto mais valioso e útil quanto mais


amável e compreensivo êle fôr <2>. O verdadeiro
zêlo só pretende servir a Deus : êle deve, portanto,
ter o mesmo respeito que Deus pela nossa liberdade,
e permanecer, diz São Paulo, estranho a tôda a
ambição e a todo o interêsse pessoal.
*

1 41
A MEDIDA DAS VIRTUDES

E aliás, se temos o cuidado da honra de Deus,


convém assegurá-la primeiramente em nosso pró­
prio estado de alma. "Ser ardentes com relação aos
defeitos dos outros, e tranqüilos com respeito aos
nossos, é ter um zêlo desregrado. Semelhante zêlo
será mal recebido, porque nêle há mais paixão que
virtude.
*

É certo que se não nos incendiamos, não pore­


mos fogo a nada. Mas é preciso não nos esquecermos
de que "a verdade não avança se a caridade não
lhe abre o caminho".
Demais, para a extensão do reino de Deus não
temos outra coisa a fazer que ser bons instrumentos
nas mãos divinas. Sê, pois, ardoroso no zêlo pela
salvação do próximo, empregando para isso os meios
que estão ao teu alcance. Mas não vás além disso,
nem te inquietes pelo bem que não podes fazer.
Deus saberá fazê-lo por meio de outros.
N OTA S

(1) "Não posso deixar, minha filha, de dizer-te o meu


pensamento : Talvez tenhas dado ocasião ao teu pai, ao teu
marido . . . que sei eu? de se irritarem com tuas devoções.
Ou quem sabe se não terás sido um pouco apressada de­
mais, querendo obrigá-los de algum modo ? Se assim é,
está aí, sem dúvida, a causa por que te fazem oposição
agora". (São Francisco de Sales) .

(2) "Não deves sõmente ser devota e amar a devoção,


mas também torná-la amável, útil e agradável a todos.
Os enfermos amarão a tua devoção, se encontrarem nela
consôlo e alívio ; tua família a amará, se te vir mais cuida­
dosa do bem, mais doce nas ocorrências de cada dia, mais
amável na repreensão, etc.; o teu marido, se notar que à
medida que cresce tua devoção, cresce também a tua cor­
dialidade para com êle, assim como a ternura e afeição que
lhe dedicas; os teus pais e amigos, se reconhecerem mais
franqueza em ti, mais condescendência com as suas vontades
( sempre que estas não contrariarem a vontade de Deus ) .
E m suma, é preciso tanto quanto possível tornar "atraente"
a tua devoção. (São Francisco de Sales) .

143
M A NS ID ÃO

"Bem-aventurados os mansos,
porque êles possuirão a terra". (Mt.
5, 5).

JESUS Cristo nos oferece em sua pessoa um mo­


dêlo de tôdas as virtudes. Mas parece que quis
propor à nossa imitação de modo todo particular
a virtude da mansidão, quando disse : "Aprendei
de mim que sou manso e humilde de coração".

Procura pois adquirir e conservar sempre em


tua alma essa doçura cristã, e procede de modo que
todos os teus atos exteriores estejam de acôrdo
com ela. Não digo que não devas provar jamais
o menor sentimento de irritação, pois isto não está
em nosso poder. Mas deves estar atento para re­
primir êsses movimento, e jamais admiti-los volun­
tàriamente. É da natureza do homem, diz São
Jerônimo, ser freqüentemente assaltado pela cólera;
mas é próprio do cristão não se deixar vencer por
ela.
*

1 45
A MEDIDA DAS VIRTUDES

O cristão, diz São Bernardo, que não tivesse


junto de si nenhuma pessoa que o fizesse sofrer
alguma coisa, deveria procurar uma e pagar-lhe a
pêso de ouro afim de ter uma ocasião de se exer­
citar na mansidão e na paciência. Mas se não es­
tiveres d�sposto a fazer semelhante despesa, aprovei­
ta ao mesmo do que a providência divina colocou
gratuitamente junto de ti, para te formar na prá­
tica destas duas belas virtudes.

Uma boa regra a seguir é fazer com a tua


língua o pacto que fêz com a sua São Francisco
de Sales : êle decidira que a sua língua ficaria imó­
vel cada vez que o seu espírito estivesse irritado.
Do contrário, começarás a falar com uma resolu­
ção sincera de te manteres nos limites da justiça
e da moderação, mas j amais o conseguirás, porque
uma vez sôlto o gatilho serás sempre arrastado mais
longe do que o querias. A censura de um homem
encolerizado nunca produz bem algum. A repreen­
são é um remédio moral : como serias capaz de es­
colher e administrar êsse remédio com. discernimen­
to e prudência, quando tu-mesmo estás enfêrmo,
quando tens tu-mesmo necessidade de remédio e
de médico ? Espera portanto que se acalme o teu
espírito, e quando tiveres recobrado a paz, poderás
falar com fruto. Mesmo quando tiveres o dever
positivo da repreensão paterna, difere-a se neces­
sário, lembrando-te de que ela só pode ser salutar

146
MANSIDÃ O

quando feita com calma por aquêle que a faz, e


acolhida com paz por aquêle que a recebe. Sem
essa precaução, o remédio $Ó servirá para agravar
o mal.
*

Sempre que tiveres de repreender as faltas do


próximo, não deixes jamais de rogar a Deus que
lhe fale interiormente ao coração enquanto lhe fa­
lares exteriormente aos ouvidos.

Não te esqueças, entretanto, do que diz São


Gregório Magno e Santo Tomás sôbre êsse ponto :
se aquêles a quem tens o dever de repreender abu­
sam de tua mansidão e condescendência, tens o
direito de reprimir-lhes a audácia com vigor e fir­
meza. O Espírito Santo diz : "Fala ao insensato
a linguagem exigida por sua loucura, para que êle
não se julgue sábio aos seUs próprios olhos". E eu
repito : a repreensão é um remédio, e o remédio
deve ser escolhido e medido segundo a natureza e
a gravidade do mal.
*

"A doçura não é o que alguns pensam : o con­


trário da firmeza. Ela é o brilho da firmeza."
(Lavelle) .

11{1
C O N V E R S A Ç ÃO

"Brilhe a vossa luz diante dos


homens, para que vejam as vossas
boas obras e glorifiquem o vosso
Pai que estâ nos céus" (Mt. 5, 16),
"Procedei honestamente com as
. pessoas estranhas à nossa fé". ( 1
Tess. 4 , 12) .

ROCURA impregnar sempre a tua conversação


P de uma doce e santa alegria. Seja o teu humor
sempre igual, tranqüilo e benevolente. É pela do­
çura e pela alegria que se conseguirá fazer amar
a devoção e aquêles que a praticam. Santo Antão,
abade, em meio aos rigores de sua vida penitente,
mostrava-se sempre com rosto tão risonho que não
se podia vê-lo sem prazer.
*

É preciso evitar com o mesmo cuidado a de­


masia no falar como no calar: falando demais, ex­
pomo-nos a mil perigos, que todos conhecem; fa­
lando excessivamente pouco, podemos embaraçar
aquêles com quem nos encontramos, aparentando
A MEDIDA DAS VIRTUDES

não apreciar a sua companhia ou pretender impor­


-nos com nossa reserva o > .

Não se conclua daí que seja preciso contar de


algum modo as próprias palavras, para dar uma
justa medida à conversação ; isto seria um escrúpu­
lo tão pueril como se alguém quisesse contar os
seus passos num passeio. Reine sempre na conver­
sação uma santa liberdade de espírito e uma alegria
doce e moderada.
*

Se ouvires falar mal do próximo, não te assustes


desde logo ; talvez se trate de um mal verdadeiro
e publicamente conhecido. Mas se tiveres certeza
de que há calúnia ou maledicência no mal que se
diz, seja porque êle é falso ou o exagerem, seja
porque não era do conhecimento público, então, se­
gundo o lugar e as circunstâncias, segundo a natu­
reza de tuas relações com as pessoas presentes, dize
com moderação o que te parece mais próprio a
escusar o próximo, ou procura desviar a conversa
para outro assunto, ou, finalmente, contenta-te de
testemunhar tua desaprovação por um silêncio ex­
pressivo. Lembra-te, para a tranqüilidade de tua
consciência, que só nos tornamos cúmplices das
maledicências que se dizem ao nosso lado quando

150
CONVERSAÇÃ O

damos aos maledicentes algum sinal de aprovação


ou de encorajamento.
*

Não imites aquêles que por escrúpulo de carida­


de crêem-se obrigados a empreender a apologia de
todo o mal que se fala diante dêles, e fazem-se
advogados de todo aquêle que merece censura. O
que é realmente mal não pode ser justificado e
ninguém deve procurar justificá-lo. Quanto aos
culpados, aquêles que podem ser nocivos, seja pelo
escândalo de seus exemplos, seja pela perversidade
de suas doutrinas, é preciso fugir dêles e denunciá­
-los sem demora : "Avisar da presença do lôbo,
diz São Francisco de Sales, é caridade para com as
ovelhas".
*

A atenção que devemos ao prox1mo não nos


obriga a uma baixa complacência com seus hábitos
VICIOsos. Se acontecer, portanto, que sejas teste­
munha de alguma conversa inconveniente, de algu­
ma palavra contra a religião ou contra a decência,
ou de qualquer outra coisa que fira em ti o senti­
mento do bem, guarda-te de dar covardemente
algum sinal de aprovação que seja contra a tua
consciência, ainda que seja um dêsses leves sor­
risos que damos muitas vêzes a contragosto e de
que nos arrependemos em seguida. A adulação,

151
A MEDIDA DAS VIRTUDES

mesmo aos olhos do mundo, é o ato de falsidade


mais aviltante para o homem. O homem de bem
não aprova com a bôca o que condena no coração,
ainda que seja na mais eminente personagem.
Aquêle que sacrifica ao vício os direitos da ver­
dade, não só deixa de agir como cristão, mas ainda
se torna indigno do título de homem.

Nas reuniões pouco numerosas, procura rela­


cionar-te com todos, se puderes fazê-lo sem afe­
tação, dando uma prova de atenção a cada um, seja
dirigindo-lhe diretamente a palavra, seja dizendo­
-lhe algo que lhe possa dar a ocasião de falar sem
constrangimento. Foi pela doçura e pela sedução
sincera de sua conversação que São Francisco de
Sales ganhou para Jesus Cristo grande número de
herejes e pecadores. Imita-o e estarás contribuin­
do para que a piedade seja atraente e agradável a
todos. Com relação aos sacerdotes, testemunha sem­
pre, independentemente de sua pessoa, o teu res­
peito pela dignidade sacerdotal.

A disputa, o sarcasmo, a aspereza da lingua­


gem, a intolerância das opiniões contrárias, são os
flagelos da conversação.

152
C O N VER S A Ç Ã O

Tem sempre presente ao espírito êste adágio,


se bem que legado pela filosofia pagã : é preciso
mostrar na conversação a deferência para com os
superiores, a doçura para com os iguais e a bene­
volência para com os inferiores.

Em geral, é um êrro para aquêles que Deus


não chama a viver fora do mundo querer fugir
inteiramente de tôda a sociedade humana, mesmo
daquela que está em harmonia com a sua condição.
Deus, que é a fonte de tôda a virtude, é também o
autor da sociedade humana. Que os maus se ocul­
tem, se o quiserem : o mundo nada perderá com
isto ; mas os homens de bem tornam-se úteis só
com o serem vistos. Aliás, é bom que o mundo
saiba que para praticar o Evangelho não é absolu­
tamente necessário sepultar-se no deserto ; que aquê­
les que vivem para Deus sabem também viver com
as criaturas feitas à sua imagem ; que a vida pie­
dosa não é nem triste, nem austera, mas simples,
doce e fácil ; que longe de ser um obstáculo às re­
lações sociais para aquêles que a praticam no sé­
culo, ela as facilita e as aperfeiçoa; que os discípulos
de Cristo podem viver no mundo sem se tornarem
mundanos; e, enfim, que o Evangelho é o código
soberano da perfeição para o homem social tanto
quanto para o homem interior<2>.

153
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Se todos os diretores estivessem concordes em


ensinar estas máximas tão importantes e tão ver­
dadeiras, muitas pessoas piedosas que se conser­
vam num retiro absoluto e vivem numa solidão
triste e selvagem, permaneceriam na sociedade para
grande proveito do próximo e da religião. O mun­
do perderia então seus injustos preconceitos contra
a piedade e contra os cristãos.

Fora do tempo que concedes à distração ou ao


repouso, não fiques jamais ocioso : a ociosidade
provoca o tédio, dispõe à maledicência e dá lugar
às mais perigosas tentações. E o que é senão outra
forma de ociosidade tantas conversações vazias que
se ouvem por aí ? Assim pensavam duas das mais
célebres mulheres do mundo : "Com essa gente,
dizia Mme. Swetchine, ouve-se o barulho do moinho
sem ter a farinha". E Mme. Recamier : "Cala-te,
ou dize alguma coisa que valha mais que o silêncio".

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154
NOTAS

( 1 ) "Guarda-te cuidadosamente de desdenhar as con­


versações em que não são observadas as regras do teu
gôsto. A caridade deve dominar e esclarecer-nos em tudo
isso, para nos fazer condescender com as vontades do pró­
ximo em tudo o que não fôr contrário aos mandamentos
de Deus". (São Francisco de Sales) .

(2) Fenelon, que teve ocasião talvez mais que São


Francisco de Sales de ensinar a vida cristã social às
pessoas do mundo, escreve o seguinte a uma pessoa do
mundo : "Creio que não deves embaraçar-te com os diver­
timentos em que és obrigada a tomar parte. Há muita
gente que quer estar sempre gemendo, e se embaraçam
continuamente excitando em si o desgôsto pelos diverti­
mentos de que não se pode fugir. Quanto a mim, confesso
que não poderia acomodar-me a esta rigidez. Prefiro a
simplicidade em tudo, e creio que Deus mesmo a ama
muito mais. Quando as distrações são inocentes em si­
mesmas, e vemo-nos obrigados a tomar parte nelas por
causa do estado em que a Providência nos colocou, acho
que então devemos fazê-lo com moderação e em vista de
agradar a Deus. Maneiras mais sêcas, mais reservadas, mes­
nos gentis e menos abertas, só serviriam para dar uma
falsa idéia da piedade às pessoas do mundo, que têm já
demasiados preconceitos contra ela e crêem que só se pode
servir a Deus com uma vida sombria e triste".

155
EVITAR O RIGORI SM O EA
DI S SIPAÇÃO

"Pai, não peço que os tires do


mundo, mas que os guardes do mal".
(Jo. 17, 15) .

UERES ser solidamente cristão : não vais, por­


Q tanto, procurar distrações tais que destruam
o equilíbrio laboriosamente estabelecido em tua
alma. Inútil insistir. Quero apenas sublinhar que
não basta afastar o que tem mesmo as aparências
do mal, mas é necessário escolher positivamente
os espetáculos, informando-se em boa fonte sôbre
o seu espírito.
Quando aos bailes - sem falar de algumas
danças indecentes que excluirás formalmente - tua
regra será evidentemente a raridade, a fim de evi­
tar a dissipação, a fadiga e o desenvolvimento de
uma sensibilidade doentia que pode ser em breve
muito perigosa para a tua liberdade de espírito.
Para a tua decisão em cada caso, será preciso obser­
var sobretudo o ambiente (espírito e modo de tra­
jar das pessoas) , e se não haverá talvez ali alguma
pessoa que tenha lugar demasiado em tua sensi­
bilidade.
*

157
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Tudo isto serve para homens e mulheres, mo­


ços e môças. Para as mulheres ajuntam-se as múl­
tiplas ocasiões de excitar a sua vaidade. "Sejam
elas ornadas com reserva e sobriedade", diz São
Paulo. A elegância deve ser tal que nem a decên­
cia nem o bom-gôsto sejam sacrificados ao ornato.
Ela deve também empregar os meios proporcionados
ao estado de cada um : essa justa medida, diz Santo
Tomás, é uma dependência da virtude de retidão
e sinceridade ; porque há uma espécie de mentira
em mostrar-nos com vestes que podem dar uma
idéia diferente do estado e condição em que Deus
nos colocou neste mundo.
Evita portanto com o mesmo cuidado o ex­
cesso e a negligência em tua apresentação exterior.
O excesso peca contra a moderação e a simplicidade
cristã ; a negligência peca contra a ordem visível
que deve reger exteriormente a sociedade humana.
Essa ordem exige que a vida material de cada um,
e por conseguinte a sua veste, parte integrante
dessa mesma vida, sejam proporcionadas ao seu
estado e à sua classe : Santa Isabel vestia-se como
rainha, Santa Joana de Chantal como uma senhora
de condição, e Santa Bernadete como uma serva.

Queres saber se há para ti algum excesso a


cortar neste ponto ? Vê sinceramente : em primeiro
lugar o que nisto empregas de tempo, dinheiro e

158
EVITAR O RIGORISMO E A DISSIPAÇÃO

atenção ; depois, a intenção que te move : compra­


zer-te, é leviandade ; fazer-te notada, é vaidade ;
atrair um olhar de paixão, é caminho para o pecado ;
agradar aos outros, é sociabilidade O > .

Não falarei das vestes imodestas. Êsses avisos


são destinados às pessoas piedosas ou que trabalham
por sê-lo, e estas não usam vestes dêsse gênero.
Entretanto, como o desleixo reinante pode deformar
o julgamento e acabar impondo como naturais os
hábitos mais condenáveis, conserva êsses princípios
fundamentais que te poderão servir de regra e pre­
servar-te de semelhantes negligências.
Um uso geralmente admitido pode e deve mes­
mo ser seguido nas coisas indiferentes; mas nenhum
uso, por mais universal que possa ser, tem o poder
de mudar a natureza e a essência das coisas, e
tornar permitido o que é indecente e imodesto em
si. De outro modo, não haveria pecado que não
pudesse ser justificado, porque há poucos que não
têm entrado na moda em nossas sociedades cor­
rompidas. Lembra-te, portanto, que o pecado de
outrem jamais poderia autorizar o teu < 2 > , diante
de Deus, e que onde impera a moda de pecar, ali
reina também a moda de ir para o inferno. Vê
tu-mesmo o que mais te convém : salvar-te com
a minoria, ou perder-te com a multidão.

159
NOTAS

(1) "A mulher casada pode e deve ornar-se junto


de seu marido, se êste o deseja. Se ela o faz, porém, longe
dêle, poder-se-ia perguntar a que olhos quer agradar . . .
Permite-se mais amplamente o ornato às jovens, porque elas
podem legitimamente desejar agradar a muitos, ainda que
seja a fim de ganhar um só para um santo matrimônio . . .

É um desprêzo para com aquêles a quem vamos visitar, ir


a êles trajados com negligência . . . mas conserva-te sempre,
tanto quanto fôr possível, do lado da simplicidade e da
modéstia, que é sem dúvida o maior ornato da beleza e a
melhor escusa da fealdade". (São Francisco de Sales) .

(2) Fenelon, que foi também um grande senhor, ensi­


na-te a maneira de libertares da escravidão dos usos : "Con­
sidera a tua escravidão . . É esta a liberdade de que tanto
.

te glorias, e que tens tanta dificuldade em sacrificar a


Deus? Mas onde está ela ? Mostra-ma. Só vejo por tõda
a parte embaraço e essa deplorável necessidade de se dis­
farçar da manhã à noite . . ó meu Deus, preservai-me de
.

tão funesta escravidão, que a insolência humana não tem


pejo de chamar "suas liberdades". Só em vós hã liber­
dade . . . "

160
A LIB E RD A D E CRI S T Ã

"Onde está o Espírito do Se­


nhor, ali há liberdade". (!I Cor.
3, 17) .
"Se permanecerdes na minha
palavra, conhecereis a verdade, e
a verdade vos libertará". (Jo. 8,
31-32) .

A LIBERDADE cristã, tão instantemente reco­


mendada pelos santos, consiste em não se fazer
escravo de coisa alguma, mesmo boa, se não fôr
da vontade de Deus; de sorte que nossas inclinações
mais puras, nossos hábitos mais santos, nossas re­
gras de proceder mais sábias, se dobrem fàcilmente
a tôda a manifestação dessa santa vontade. Assim,
essas disposições de alma jamais se nos tornarão
entraves para o bem ou causa de perturbação e
inquietude O > . Só então poderemos fazer tôdas as
nossas ações com alegre confiança e santa ousadia.

Eis o que diz São Francisco de Sales sôbre


êsse assunto tão importante : "Quem possui o espí­
rito de liberdade não prende de forma alguma a

161
A MEDIDA DAS VIRTUDES

sua afeição aos exercícios espirituais ; de modo que


se por enfermidade ou outro qualquer incidente fôr
impedido de os fazer, êle não concebe por isso
nenhum desgôsto. Não digo que não os ame, mas
que não se apega a êles".

"Interrompe uma alma apegada ao exercício


da meditação, e verás como ela a deixa com des­
prazer, apressada e assustada. Mas a alma que
tem a verdadeira liberdade, sairá com um rosto
sereno e um coração amável para com o impor­
tuno que a tiver incomodado. Porque lhe é indi­
ferente servir a Deus meditando ou servi-lo supor­
tando o próximo; de um ou de outro modo estará
fazendo a vontade de Deus; ora, há casos em que
precisamos omitir a meditação para suportar o pró-
ximo.
*

Os frutos dessa santa liberdade são uma pronta


e tranqüila submissão, e uma generosa confiança :
São Francisco de Sales conta que Santo Inácio
comeu carne na quarta-feira santa simplesmente
porque o médico lho ordenara, julgando que isto
lhe serviria de remédio para um pequeno mal que
sofria. Uma alma rebelde far-se-ia de rogada por
três dias, acrescenta êle, e não teria talvez cedido.
Cito êsse exemplo para as almas timoratas, e não

162
A LIBERDADE GRISTÃ

para aquelas que sem motivo suficiente gostam de


procurar dispensas ilusórias <2>.

Exorto-te vivamente a não fazer jamais votos


indiscretos, com a esperança de aumentar assim o
mérito de tuas obras ordinárias. Pode-se atingir
o mesmo fim por mil meios mais fáceis e menos
perigosos. Aquêles que cometem essa imprudência
correm muitas vêzes o risco de faltar a seus votos
e de pecar assim de maneira gravíssima ; e se evi­
tam essa infelicidade, só o fazem a custa da paz
da alma, por uma servidão receosa e agitada,
incompatível com a tranqüilidade e a confiança que
exige a grande obra de nossa perfeição.

Muitas pessoas piedosas são demasiado apres·


sadas em aconselhar semelhantes compromissos. Em
tais casos, escusa-te humildemente, dizendo que não
te sentes com a virtude extraordinária exigida para
a prática fiel e perseverante dêsses votos. São
Francisco de Sales desaprovou e anulou todos os
votos particulares de Santa Francisca de Chantal.
Vi que as pessoas ligadas por semelhantes votos
são quase sempre inquietas e agitadas, e muitas
vêzes expostas às mais graves quedas.

163
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Não te deixes seduzir pelo exemplo dos votos


de alguns santos. E raro que êsse desejo de imitar
certas práticas extraordinárias dos santos seja uma
inspiração da graça : é antes uma tentação do de­
mônio que excita nosso orgulho e nossa temeridade.
São Francisco de Sales dizia : "Dai-me o espírito
que animava São Bernardo, e farei o que fazia São
Bernardo". Apliquemo�nos, repito-o, a imitar as
virtudes simples e sólidas que os levou à santidade,
e contentemo-nos de admirar êsses atos sobrena­
turais que a supõem já adquirida.

Para se comprometer por votos arbitrários sem


pôr em risco a própria salvação, é preciso três
coisas : 1 .9) inspiração sobrenatural que leve a fa­
zer êsses votos; 2.9) capacidade, julgada pelo dire­
tor, de jamais os violar; 3.9) tranqüilidade inalte­
rável para conservar nêles a paz da alma.

164
N OTAS

( 1 ) "Deixo-vos o espírito de liberdade, não aquêle que


exclui a obediência, porque essa é a liberdade da carne ;
mas aquêle que exclui o constrangimento e o escrúpulo . . .
Pedimos a Deus, antes de tôdas as coisas, que o seu nome
seja santificado, que venha a nós o seu reino e que sua
vontade seja na terra como o é no céu. Tudo isto não é
outra coisa senão o espírito de liberdade ; porque, desde
que o nome de Deus seja santificado, que sua majestade
reine sôbre nós e que sua vontade se cumpra, o espírito
não se preocupa com nada mais". (Ler a Imit. 1. III,
cap. 26) . (São Francisco de Sales) .

(2) Essa matéria é tão importante e o meio-têrmo


tão difícil de ser encontrado na prática, que julgamos útil
transcrever aqui na íntegra a passagem de São Francisco
de Sales sôbre o assunto. As regras que êle dá e os exem­
plos que as acompanham, porão em luz as ocasiões c os
justos limites dessa virtude :
"O fruto dessa liberdade é uma grande suavidade de
espírito, uma grande doçura e condescendência com tudo o
que não é pecado ou ocasião de pecar; é êsse humor que
se deixa levar por todo o movimento de virtude, por todo
o impulso de caridade.
"As ocasiões dessa liberdade são tôdas as coisas que se
opõem às nossas inclinações ; porque todo aquêle que não
é dominado por suas inclinações, não se impacienta quando
estas são contrariadas.
"Essa liberdade tem dois vícios contrários : a instabi­
lidade e o constrangimento.

165
A MEDIDA DAS VIRTUDES

"A instabilidade de espírito é certo excesso de liberdade


pelo qual somos levados a mudar de exercício, de estado de
vida, sem motivo e sem conhecimento de que isso seja da
vontade de Deus. Mudamos a cada passo de exercício, de
propósitos, de regra ; por qualquer pequena ocorrência dei­
xamos nossa regra e nossos bons costumes. Daí essa dissi­
pação do coração que o torna qual vergel aberto de todos
os lados, cujos frutos não são para os seus donos, mas para
·

os passantes.
"O constrangimento ou servidão é certa falta de liber­
dade pela qual o espírito é acabrunhado de tédio ou de
cólera quando não pode fazer o que previu, ainda que possa
fazer algo melhor.
"Por exemplo : decidi fazer a meditação todos os dias
pela manhã : se tenho o espírito de instabilidade, a menor
ocasião dêste mundo me fará transferi-la para a noite : o
latir de um cão que me tiver perturbado o sono, uma carta
que eu tiver de escrever, embora não seja urgente, etc. etc.
Ao contrário, se tenho o espírito de constrangimento ou
servidão, não deixarei a minha .meditação, nem que um
enfêrmo precise de minha assistência naquela hora, nem
mesmo que me reclame naquele momento um dever impe­
rioso que não pode ser diferido, e assim por diante .
"Restam-me ainda dois· ou três exemplos a dar dess·a
liberdade, que farão conhecer melhor o que não sei dizer.
Mas quero observar, priineirarnente, que é preciso guardar
duas regras para não tropeçar neste ponto.
"Em primeiro lugar, uma pessoa não deve jamais deixar
seus exercícios e as regras comuns das virtudes, a não ser
que Deus queira outra coisa dela. Ora, a vontade de Deus
se manifesta de dois modos : pela necessidade e pela cari­
dade. Quero pregar esta quaresma nalgum lugarejo de
minha diocese ; mas se me tornar enfêrmo ou se me que­
brar uma perna, não deverei entristecer-me ou inquietar-me

166
A LIBERDADE CRISTÃ

por não poder pregar; porque é coisa certa que a vontade


de Deus é que eu o sirva sofrendo e não pregando. Se,
porém, eu me mantiver com saúde, mas apresentar-se uma
ocasião de ir a outro lugar, que estiver por exemplo em
grande risco de se tornar huguenote, eis aí a vontade de
Deus claramente manifesta para obrigar-me docemente a
mudar o meu projeto.
"A segunda regra é a seguinte : quando fôr preciso usar
de liberdade por caridade, é necessário que isto se faça sem
escândalo e sem injustiça. Por exemplo : sei que eu seria
mais útil· nalguma parte distanciada de minha diocese; mas
não devo usar de liberdade nisto, porque escandalizaria e
faria injustiça, já que o meu dever é estar aqui.
"Assim, é uma falsa liberdade para as mulheres casadas
o afastar-se de seus maridos sem legítima razão, sob pre­
texto de devoção ou de caridade . . . Pois essa liberdade
jamais prejudica as vocações ; ao contrnário, ela faz que
cada um esteja contente na sua, sabendo que esta é a von­
tade de Deus.
"Agora, consideremos o Cardeal Borromeu, que deve
ser canonizado dentro de poucos dias. Era o espírito mais
exato, rígido e austero que se possa imaginar. Alimenta­
va-se de pão e água, e era tão severo, que depois de se ter
tornado arcebispo, só estêve duas vêzes no seu jardim, num
espaço de vinte e quatro anos, e só duas vêzes entrou na
casa de seus irmãos, e assim mesmo por motivo de doença.
Entretanto, êsse homem tão rigoroso comia freqüentemente
com os suíços, seus vizinhos, para atraí-los a melhor vida,
e não tinha escrúpulo de beber e brindar com êles em cada
refeição, tomando mais do que o necessário para matar a
sêde. Eis um traço de santa liberdade no homem mais rigo­
roso de sua idade. Um espírito dissoluto teria excedido ;
um espírito servil teria julgado pecar mortalmente ; mas
um espírito de liberdade faz isto por caridade.

167
A MEDIDA DAS VIRTUDES

"Esperidião, um antigo bispo, tendo recebido um pere­


grino quase morto de fome em tempo de quaresma, num
lugar onde só havia carne salgada, mandou cozinhar essa
carne e ofereceu-a ao peregrino. Mas êste não a queria
comer, apesar de sua necessidade. Esperidião, que não tinha
necessidade de comer naquela hora, comeu em primeiro
lugar, por caridade, a fim de tirar por seu exemplo o escrú­
pulo do peregrino. Eis um exemplo de liberdade de um
santo homem".

168
R E S P EI T O HU MA NO

"Não contive os meus lábios . . .


nem ocultei a tua graça e a tua
verdade diante da grande assem­
bléia". (SI. 39, 10-11) .
"Aquêle que me negar diante
dos homens, eu o negarei também
diante de meu Pai que está nos
céus". (Mt. 10, 33) .

EVEMOS ter caridade com o próximo, tolerân­


D cia com suas opiniões, indulgência com seus
defeitos, compaixão pelos seus erros; mas nunca
devemos pactuar com a covardia ou com uma cul­
pável condescendência. Jamais o temor das zom­
barias ou dos desprezos dos homens te fa&am corar
de tua fé.
*

Não é proibido apelar para uma fraqueza


humana em socorro de outra fraqueza contrária.
Os homens não gostam de se desdizer, e temem
a censura de versatilidade ; pois bem! que ninguém
ignore que és cristão ; proclama uma vez por tôdas
e bem alto a tua fé e a tua firme resolução de a
praticar; que se saiba que em tôdas as tuas ações
não queres buscar outra coisa a não ser a glória

169
A MEDIDA DAS VIRTUDES

de Deus e o bem de teu próximo; que essa profis­


são de fé se faça na ocasião oportuna, de uma
maneira doce e modesta, mas firme e positiva; e
serás mais livre em seguida para continuar o que
assim tiveres começado.

Além disso, os homens supõem fàcilmente que


nossas atitudes religiosas não passam de atitudes
rotineiras e irrefletidas (de religiosidade superficial
ou supersticiosa) , ou mesmo interessadas e hipó­
critas. Mas quando notam que alguém vive com
destemor e convicção as Realidades divinas em que
acredita, êles o respeitam. Um de nossos melhores
filósofos �<•> escreve o seguinte : "Se acontece que
aquêles dentre nós que não se envergonham do
Evangelho, nem sempre conseguem atrair outros
após si, aquêles que dêle se envergonham podem
estar cer:tos de não conseguirem sequer fazer-se
respeitados". A virtude passa aqui entre a arro­
gância e o mêdo. Não se trata de impor a nossa
fé, nem de a fazer tolerar, mas de fazer com que
ela seja admirada e desejada.

(•) Etienne Gilson, da Academia Francesa de Letras.

170
NOTAS
( 1 ) "Logo que os mundanos perceberem que queres
seguir decididamente a vida cristã, dirão. . . que irás cair
nalgum humor melancólico, que irás tornar-te insuportável
e envelhecer antes do tempo ; dirão que os teus negócios
sofrerão com isso, e que se pode muito bem operar a própria
salvação sem tantos mistérios . . . Tudo isto não passa de
um tolo e vão subterfúgio : essas pessoas não têm nenhum
cuidado de tua saúde nem de teus negócios . . . Só nos é
possível estar bem com o mundo, perdendo-nos com êle . . .
Deixemos êsse cego; que êle grite o quanto quiser, como
as aves noturnas para inquietar os pássaros do dia. Seja­
mos firmes em nossos desígnios e inabaláveis em nossas
resoluções."
(São Francisco de Sales)

Quando alguns nobres censuravam São Luís, murmu­


rando por vê-lo demorar-se em suas práticas de devoção e
no cuidado dos pobres, êle dizia : "Se eu empregasse o
dôbro do tempo no jôgo ou na caça, ninguém me faria a
mínima censura".

171
CONC L U S ÃO

"Mas tu permanece firme no


que aprendeste e que te foi con­
fiado, considerando de quem o apren­
deste". (II Tim. 3, 14) .

AQUÊLE que escreveu essas diretivas não pre­


tendeu tirá-las de sua própria sabedoria : foi
buscá-las na doutrina dos maiores santos e dos
mais eminentes doutôres da Igreja. Podes, portan­
to, prestar-lhes a mais absoluta confiança, segui­
las sem nenhuma apreensão e adotá-las como regra
segura e invariável.
*

Não queiras aperfeiçoar-te em todos os pontos


ao mesmo tempo ; as resoluções de detalhe devem
ser formuladas e seguidas uma a uma, começando
por aquela que tem por objeto a paixão dominante,
pois esta é geralmente a fonte da maior parte de
nossas faltas.
*

É preciso usar de tática para atacá-la com


êxito : aproximemo-nos dela pouco a pouco, cerque­
mo-la cuidadosamente, como uma praça inimiga,

173
A MEDIDA DAS VIRTUDES

e arrebatemos-lhe um após outro os postos avan­


çados.

As resoluções tomadas de modo geral, como


por exemplo : ser sempre comedido nas palavras,
paciente, casto, pacífico, e outras semelhantes, não
produzem ordinàriamente nenhum resultado, e se
produzem, são insignificantes.

Suponhamos, por exemplo, que a tua pa1xao


dominante é a cólera. Pois bem : propõe antes de
tudo simplesmente não falar quando te sentires irri­
tado, renova êsse propósito duas ou três vêzes no
decorrer do dia, e pede perdão a Deus tôdas as
vêzes que faltares a êle.
Quando o resultado dessa primeira resolução
se tiver transformado em hábito, poderás dar mais
um passo adiante. Propõe, por exemplo, afastar
prontamente todo o pensamento suscetível de pro­
duzir a agitação em ti, ou despertar interiormente
a cólera. Depois, exercitar-te-ás em ver sem cons­
trangimento as pessoas que te são desagradáveis;
daí, chegarás a tratar com particular benevolência
aquêles contra os quais tens justos motivos de
queixa, e, finalmente, aprenderás a não ver mais
que a vontade de Deus em tudo, mesmo nas coisas
mais penosas para a natureza, e acumularás assim
mérito sôbre mérito. E não vendo outra coisa se-

174
OONOLUS A O

não instrumentos dessa vontade misericordiosa na­


queles que te fazem sofrer, j á não pensarás em
repeli-los, nem em amaldiçoá-los, mas os abençoarás
e agradecerás ao Senhor por se ter dignado esco­
lher-te para ajudá-lo a levar a sua cruz, aproxi­
mando assim de teus lábios o precioso cálice de
'
sua Paixão.
*

Alguns santos aconselham o ato de esperança


ou de caridade, ou o emprêgo de alguma mortifi­
cação, sempre que se reconhece ter faltado às reso­
luções tomadas. Essa prática é muito boa; mas se
a tomaste, não a conserves como um dever, nem
faças dela uma obrigação estrita, e não creias ter
pecado se vieres a negligenciá-la.

Com êsse método progressivo chegarás a ven­


cer inteiramente as tuas paixões ; com êle poderás
adquirir as virtudes que te faltam. Começa sempre
por propor o que fôr mais fácil de executar, esco­
lhendo primeiramente os atos exteriores, sôbre os
quais a vontade tem mais domínio, e partindo daí
chegarás a atingir pouco a pouco os detalhes mais
íntimos e mais difíceis da vida interior.

1'"15
A MEDIDA DAS VIRTUDES

Lembra-te, no entanto, de que tudo isto deve ser


feito sob o signo do amor e para crescimento do
amor, porque é êle que dá perfeição e valor a tudo".

Se quiseres traduzir pràticamente na tua vida


pessoal, sem distinção, tudo o que ouvires nos ser­
mões e exortações, tudo o que leres, jamais pos­
suirás a paz : um te puxará para a esquerda, outro
para a direita, diz São Francisco de Sales. A dou­
trina é una, mas as aplicações são diversas, segundo
os tempos, lugares e pessoas. Além disso, aquêles
que falam para comover uma multidão endurecida,
da qual só se obtém um pouco exigindo muito, insis­
tem com veemência sôbre o assunto que querem
incutir em seus ouvintes, e parecem esquecer mo­
mentâneamente todo o resto. Se pregam sôbre a
mortificação dos sentidos, o jejum ou outra qual­
quer obra de penitência, não mostram nem a ma­
neira de praticar essas boas obras, nem os justos
limites que é preciso guardar, nem as circunstâncias
em que se pode e se deve abster delas, porque os
tíbios e pusilânimes, que têm mais necessidade de
ser excitados do que contidos, só tomariam dessas
instruções o que mais lhes conviesse. Ora, como
êstes constituem o maior número, é preciso pregar
sobretudo para êles.

176
OONOLUS A O

Não te esqueças de que São Francisco de Sales


te aconselha a escolher o teu diretor espiritual en­
tre dez mil, e de te deixar em seguida conduzir
por êle como se se tratasse de um anjo descido do céu.

Sem essa regra de obediência e firmeza, os


livros e os sermões, e tudo o que se diz ou se escreve
para a multidão, tornar-se-ão para ti uma fonte
de inquietudes, de dúvidas e de temores, porque
tomarás para ti o que te não foi destinado.

Na seleção dessas diretivas, temos seguido San­


to Agostinho, Santo Tomás, São Filipe Néri, mas
particularmente São Francisco de Sales, porque nêle
a Igreja reconhece e admira uma alta santidade,
uma profunda sabedoria e uma rara experiência na
direção das almas, que são as três qualidades re­
queridas para produzir um grande doutor da Igreja
de Jesus Cristo, e o guia mais seguro e mais escla­
recido daqueles que querem ser seus discípulos.

"Sêde cumpridores da Palavra, nos diz o após­


tolo São Tiago, e não sàmente ouvintes, enganando­
vos a vós-mesmos. Porque se alguém ouvir a pala-

1'1'1
A MEDIDA DAS VIRTUDES

vra mas não a cumprir, será semelhante ao homem


que olhou o seu rosto no espelho ; mas indo-se
embora, imediatamente se esquece de como era.
Aquêle, porém, que se aplica a meditar a lei per­
feita da liberdade e nela persevera, não como ouvin­
te esquecediço, mas como realizador, êste será bem­
aventurado no que fizer" (Tg. 1, 22-25) .

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178
O R A Ç Ã O

Composta pelo Papa PIO VI,


de santa memória :

ú Deus, que possuís em grau infi­


nito tudo o que pode haver de amável
e de perfeito, e que sois a mesma
perfeição, arrancai e expulsai de nos­
sos corações tôda a afeição e todo o
sentimento que forem contrários ao
amor que vos devemos ; inflamai-nos
de um amor tão puro e tão ardente
que nada amemç s senão em vós e por
vós. Por Jesus Cristo nosso Senhor.
Assim seja.

119
E P í L O G O

RAZÃO E VIRTUDE

(Testemunho de um filósofo)

"A MEDIDA não é mediocridade ou falta de


fôrça; ela é esta espécie de plenitude interior
e de justa proporção com o universo que permite
a cada criatura ser o que ela é, tornar-se senhora
de si, isto é, ter em mãos os extremos, em lugar
de fugir dêles ou de lhes ceder . . .
A medida é ao mesmo tempo esta tensão e
esta compreensão que fazem com que cada coisa
esteja em seu lugar, que cada faculdade exerça o
seu papel do modo mais perfeito, apoiada pelo exer­
cício das demais . . . E a sabedoria, em lugar de
ser um renunciamento absoluto, como muitas vêzes
se pensa, é ao contrário êste encontro do absoluto
que dá a tôda a coisa a sua medida .
. . . É que todo o excesso é sinal de fraqueza,
e não de fôrça. Não há excesso que não acabe por
ser castigado. E há um excesso, mesmo na vir­
tude, em que não se sabe se o l'ttlmem tenta a na­
tureza ou tenta a Deus, porque manifesta uma falta
de humildade, uma confiança em si e em seus pró-

181:..
A MEDIDA DAS VIRTUDES

prios recursos que lhe tiram o sentimento do limite


de suas possibilidades, impedindo-o de medir a rela­
ção entre a sua natureza e a sua vontade; e êle
se verá um dia desmentido e acabrunhado pelas
conseqüências (de sua atitude) .
. . . A razão é a mais bela de tôdas as nossas
faculdades, à condição que não façamos dela a fa­
culdade que raciocina, mas a que mede . . . A sa­
bedoria é indivisi:velmente uma virtude da inteli­
gência e uma virtude da vontade. Porque podemos
realmente defini-la como uma virtude da vontade,
dizendo que ela impõe uma medida aos nossos dese­
jos e às nossas paixões. Mas é uma virtude da
inteligência, porque consiste antes de tudo em reco­
nhecer onde está a medida.
. . . A sabedoria é a descoberta e o amor do
ser que nos é dado, da situação em que fomos colo­
cados e dos deveres que nos incumbem . . . Vê-se
o quanto é falso considerá-la como uma limitação
da vida, um desinterêsse em relação às grandes
coisas, que comportam sempre um pouco de medio­
cridade e de indolência. Ao contrário, ela é a cora­
gem que nos obriga a dar um valor incomparável
às coisas mais humildes, desde que nos sejam con­
fiadas como instrumentos Q.e nosso destino.
. . . Não se pode conceber a sabedoria sem a
moderação, pela qual ela governa tôdas as coisas,
nem sem a experiência, que lhe ensina a conhecê-las.
Há uma falsa sabedoria que não passa de uma
falta de ardor . . . A santidade é uma certeza tran-

182
EP!LOGO

qüila e um ardor sereno que nos estabelecem num


mundo superior ao mundo da natureza, mas pelo
qual a natureza é iluminada. Acredita-se não raro
que o que obtém a santidade, obtém-se contra a
natureza : mas isto não é verdade. Aqui, a natu­
reza não é humilhada nem destruída como no heroís­
mo, nem disciplinada e submissa como na sabe­
doria. Ela é transfigurada.
. . . Ela parece aniquilada ; mas é porque s e
torna o corpo vivo d a santidade. A santidade asse­
melha-se a uma nova natureza : é ao mesmo tempo
a natureza renunciada e a natureza consumada.

O homem mais forte não é aquêle que resiste


à paixão, - à sua ou à de outrem, - pela vio­
lência de um esfôrço, mas aquêle que a resiste pela
doçura da razão . . . Existe uma falsa doçura que
produz imediatamente o gôsto da violência, e uma
doçura verdadeira, mais poderosa que a violência,
que a torna inútil e a aniquila. Porque a doçura
não é, como se julga, uma falta de impulso, mas
um impulso contido e sereno. Ela não é uma von­
tade enfraquecida, mas uma vontade ultrapassada,
que j á não tem necessidade de se enrijecer! . . .
Ninguém pode conhecer a vida do espírito se
a doçura lhe fôr estranha. É preciso apaziguar o
tumulto do corpo, as reações cegas do instinto e
chegar a uma perfeita doçura interior, para que

183
A MEDIDA DAS VIRTUDES

as coisas se nos mostrem com aspecto sereno e nos


testemunhem amizade. Não há acontecimento, nem
circunstância, nem ser, colocados em nosso caminho,
que não possamos acolher pela violência ou pela
doçura. E muitos preferem a violência e nela se
comprazem, porque lhes causa mais abalo. Alguns
lhe preferem a indiferença, seja por temperamento,
seja por desígnio, e lhe dão o nome de sabedoria.
Poucos são os que conhecem essa divina doçura
que penetra de luz a atmosfera em que vivemos
e espiritualiza tudo o que toca".
LOUIS LAVELLE

da Academia das Ciências Morais


"L'erreur de Narcisse"

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184
í ND I C E

REFLEXOES PRELIMINARES 9

NOSSO APOIO EM DEUS

Fé . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . • . • . . . . . . . • . . • . . 17
Obediência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • • . . • . . . . • . 21
Oração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . • . . ... 27
Confissão .................................
. ... 39
Comunhão . . . . . . . . . ....
. . . . . . . . . . . . . . . . . . • . ... 51
Domingos e Festas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 61
Leitura Espiritual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . ...... 65

O ESTADO DE ESPíRITO DO CRISTÃO

A Esperança Cristã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . 71
Presença de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Humildade . . . . . . . .........
. . . . . . . • • • . . . . . • . . • . 79
A Verdadeira Resignação . .... .. .. ..... ........ 85
Tentações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • • . . • • • . 91
Escrúpulos ....................
. . . . . . . . . . . . . . . • 99
Inquietude e Perturbação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
Tristeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • 107
Penitência . . . . . . . . . . . . . . . . • • . • • . • • . . • . • • • • • • . • 111
Perfeição Cristã . . . . . . . . . . . . . . • . . . • . . . . . • . . • . • . 119

187
J N D I C E

AS RELAÇOES EXTERIORES

Caridade • . • • . . • . • • • • . . • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 131
Influência e Discrição • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 137
Mansidão . . . . . . . . . . . . . . . . • . • . • . . . . . . . . . . . . . . • • 145
Conversação • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 149
Evitar o Rigorismo e a Dissipação • • • • • • • • • • • • 157
A Liberdade Cristã . . • • • . • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 161
Respeito Humano • • . • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • 169
Conclusão . . . . • . • • • • • • • . • • . . . • • • • • . . • • • • • • • • • • 173
Oração . . . • . • • • • • • . • . • . . • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • 179
Epílogo - Razão e Virtude • • • • • • • • • • • • • • • • • • 181

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188
NIHIL OBSTAT
SÃO PAULO, 15 DE JUNHO DE 1959
MONSENHOR ]OS! LAFAYETTE ALVES

IMPRIMATUR
SAO PAULO, 3 DE ]UNHO DE 1959
t PAULO ROLIM LOUREIRO, BISPO
A U X I L I A R E VIGARIO GERAL

ACABOU-SE DE IMPRIMIR NO M!S DE


NOVEMBRO DE 1959, NAS OFICINAS
DA GRAFICA SARAIVA S. A., RUA
SAMPSON, 265, SÃO PAULO, BRASIL

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