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TRATADO DA CONSCIÊNCIA OU DO

CONHECIMENTO DE SI MESMO

SÃO BERNARDO DE CLARAVAL


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Com efeito, quem se conhece a si mesmo sente-se humilde diante de Deus, caridoso para com o
próximo; quem se conhece a si mesmo, conhece seus defeitos espirituais e abriga firme propósito
de remediá-los, a graça o ajuda a elevar-se até o único que de tais defeitos pode curá-lo. Aprender
a conhecer-se é aprender a conhecer a Deus, porque se o Criador se mani- festa em suas obras,
como diz São Paulo, onde poderá mani- festar-se melhor que na alma feita por Ele à sua imagem e
semelhança? (Manuel Cambón y Fraga)

"A consciência é perpétua e, como a alma, não tem fim; pois bem, a alma, que é imortal, não pode
existir sem a consciência. A consciência será indefectivelmente a glória ou a confusão inevitável de
cada um, conforme a qualidade das coisas que nela deposite. A consciência, pois, morada
perpétua da alma, requer ser purificada, primeiro, e solidamente edificada depois. Quem a
purificará? Deus e o homem: o homem, por meio de seus pensamentos e afeições. Deus, por sua
misericórdia e por sua graça."

A coincidência diz São Bernardo é a ciência do 1 coração ou o conhecimento de si mesmo. Por isso,
o tratado Da Consciência deste exímio doutor da Igreja não é outra coisa senão a arte de conhecer-
-se a si mesmo, a arte mais útil e necessária de todas, porque é a base da perfeição, a escada
mediante a qual a alma pode ascender até as coisas sublimes e celestes, até Deus.

Prefácio

A consciência diz São Bernardo - é a ciência do coração ou o conhecimento de si mesmo. Por isso, o
tratado Da Consciência deste exímio doutor da Igreja não é outra coisa senão a arte de conhecer-se a
si mesmo, a arte mais útil e necessária de todas, porque é a base da perfeição, a escada mediante a
qual a alma pode ascender até as coisas sublimes e celestes, até Deus.

Com efeito, quem se conhece a si mesmo sente-se humilde diante de Deus, caridoso para com o
próximo; quem se conhece a si mesmo, Conhece seus defeitos espirituais e abriga firme propósito de
remediá-los, a graça o ajuda a elevar- se até o único que de tais defeitos pode curá-lo. Aprender a
conhecer-se é aprender a conhecer a Deus, porque se o Criador se manifesta em suas obras, como
diz São Paulo, onde poderá manifestar-se melhor que na alma feita por Ele à sua imagem e
semelhança?

Desolados correm os homens atrás da ciência; muito mais sábio é correr atrás da consciência, a
melhor e mais excelente das ciências. O próprio São Bernardo é quem, no presente livrinho, nos vai
ensinar esta ciência. Que grande mestre! Conosco descerá até a profundidade do coração,
esquadrinhará todos os seus cantos e recantos, nos mostrará todas as suas chagas, suas feridas, nos
ensinará a curá-las e cicatrizá-las, a restaurar e conservar pura e bela em nossa alma, a nobre
imagem do Criador.

O Tratado da Consciência é, pois, a ciência mais necessária e excelente, a ciência da felicidade


ensinada por São Bernardo.

E - estranha omissão - este pequeno livro áureo, traduzido em quase todos os idiomas europeus,
não o foi, que saibamos, à rica língua de Cervantes¹. Nós empreendemos esta tarefa, esperançosos
de que este trabalho, imperfeito enquanto nosso, há de ser bem acolhido pelas pessoas piedosas, e
ser capaz de produzir algum bem às almas.

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[nota do tradutor: referência à edição castelhana].

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Nota biográfica de São Bernardo

Em 1090 ou nos últimos anos do século XI, nasceu São Bernardo na pequena aldeia de
Fontaine, em Borgonha - atual departamento da Côte d'Or, distrito de Dijon - de pais nobres e ricos.

Seu pai, que desempenhava importante cargo no Estado, destinava seu filho a suceder-lhe
em suas funções, de longo tempo hereditárias na família, mas a simplicidade de gostos do jovem
Bernardo, seu amor ao trabalho e à vida retirada, fizeram com que fracassassem os desígnios
paternos.

O santo fez seus primeiros estudos na escola de Chatillon-sur-Seine, então a mais florescente
da província, passando depois a completá-los na Universidade de Paris. Para distraí-lo das inclinações
ao retiro e à solidão, que a cada dia arraigavam-se mais profundamente em seu coração, procurou-se
despertar no jovem o gosto pela literatura profana: a leitura dos clássicos conseguiu proporcioná-lo
apenas passageira distração, não privá-lo das profundas meditações a que assiduamente se
entregava, e menos ainda, impedi-lo de buscar solução a esta pergunta que dirigira a si próprio
desde que a luz da razão fulgurou em seu entendimento: Bernardo, o que viestes fazer neste
mundo? Bernardo, ad quid venisti?

Apressado, guiado por tão saudável pensamento, o jovem escolar dava por assunto de suas
habituais meditações o mistério da vida, o objeto da existência humana, os destinos prometidos à
alma, a missão da criatura racional na terra. Absorto em tais reflexões, sua vida deslizava-se
tranquila, isolada: praticava já, em meio à agitação e ao burburinho dos costumes escolares, todas as
privações e a castidade do claustro. O seguinte fato, contado por Guilherme de Saint-Thierry,
demonstra com quanto vigor e fortaleza sabia domar suas paixões: certo dia encontrou no passeio
uma jovem, o olhar da qual, ao cruzar-se com o seu, produziu em seu coração insólito e forte efeito;
em vão procurou, por meio do estudo e da meditação, afastar do pensamento e da memória a
lembrança daquela mulher cuja imagem, sempre presente em sua imaginação, o distraia do trabalho,
turbava seu repouso e aparecia-lhe durante o sono. Depois de muitos dias de pesada luta incessante,
Bernardo tomou uma resolução extrema: jogou-se, no rigor do inverno, num tanque gelado, de onde
foi retirado meio morto, deste modo, aquele coração juvenil já começava, com a mortificação e a
castidade, a vida do claustro que fervorosamente aspirava.

Ainda muito jovem Bernardo perdeu sua mãe, nobre e virtuosa dama, descendente da antiga
família dos condes de Montbard. A dor que essa perda lhe produziu o determinou a ingressar na
abadia de Citeaux, fundada por São Roberto e regida então por Estevão. Tão poderoso foi o exemplo
dado por Bernardo a seus companheiros de sala que, pouco tempo depois do ingresso deste à vida
monacal, a abadia tornava-se insuficiente para alojar os numerosos postulantes que, à sua imitação,
desejavam separar-se das seduções do mundo. E era tal o poder e tanta a eloquência do novo
monge, que seu próprio pai e sua irmã, antes empenhados em separá-lo de todos os modos
imagináveis, da vida monacal, acabaram eles mesmos - arrastados pelo exemplo e discursos de seu
filho e irmão por consagrar-se também ao claustro.

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A entrada de São Bernardo na abadia de Citeaux marca o início da gloriosa e brilhante
carreira de nosso santo. Por ser aquele mosteiro insuficiente, como foi dito, para albergar numerosos
noviços que diariamente solicitavam ser nele admitidos, Estevão teve que enviar ao redor do
cenóbio, e até longe dele, colônias de monges que criaram múltiplas sucursais da abadia-mãe e se
estenderam pela Itália e Portugal.

Cumpridos os dois anos de noviciado, e pronunciados seus votos em Citeaux, Bernardo foi
promovido à dignidade abacial e enviado, com doze de seus discípulos, para fundar um novo
convento em um lugar muito deserto e acidentado, chamado Vallée d'Abisnthe e à qual a nova
comunidade denominou Claraval, sendo esta a origem de tão famosa abadia.

Depois de não poucas tribulações, sofrimentos e provas, entre elas a da fome, o novo
mosteiro entrou em vias de prosperidade e cresceu incessantemente.

Pouco tempo depois de estabelecido em Claraval, São Bernardo foi enviado ao capítulo geral
da ordem de Cister, para trabalhar ativamente em suas constituições. Retornado a seu mosteiro,
escreveu não pouco número de obras, entre elas seu tratado Dos doze graus da humildade, as
Homilias acerca do mistério da Encarnação e seu admirável Panegírico da Santíssima Virgem.

Quando Claraval, já em plena prosperidade, pôde seguir sem os cuidados de seu fundador,
São Bernardo marcha para Reims a fim de reconciliar o prelado desta arquidiocese com seus
diocesanos e empreender a reforma da conduta de alguns bispos. Por então escreveu sua obra sobre
os deveres episcopais, De officio episcopi, e converteu Suger, abade de São Dionísio, que vivia com
excessivo luxo. Ocupado nessas tarefas evangélicas, foi chamado ao Concilio de Troyes, de onde
resolveu os assuntos de vários prelados e redigiu uma nova regra para a ordem dos Templários,
Exhortatio ad milites Templi.

De volta a Claraval, compôs seu famoso tratado Da Graça e do Livre Arbítrio, no qual
magistralmente expõe de que forma atuam a graça santificante e a liberdade humana na obra
da salvação.

Em 1130, foi nomeado por Luis, o gordo, rei da França, como árbitro para decidir qual dos
dois papas, Inocêncio II ou Pedro de Lion (o antipapa Anacleto), era o sucessor legítimo de São
Pedro: São Bernardo decidiu-se a favor de Inocêncio II, e seu juízo foi confirmado com o voto
unânime da Igreja. Desde então, nosso santo foi o conselheiro de maior influência no ânimo do
pontífice, que recorria a ele onde fosse necessário refutar um erro, promover uma reconciliação.

Regressando da Itália, São Bernardo foi descansar em seu retiro de Claraval e ali escreveu sua
obra Sobre os Cânticos, uma série de sermões que, no mais das vezes, pregou-os de improviso.

Não foi longo seu descanso: as heresias de Abelardo e de Arnaldo De Brescia chamaram-lhe
ao palco da discussão com estes precursores do Protestantismo que proclamavam o livre exame das
Escrituras, a soberania da razão humana e ensinavam inumeráveis erros sobre os mistérios,
especialmente os mistérios da Trindade e da graça. São Bernardo os acossou com todo o poder de
sua veemente eloquência e com a lógica irrefutável de sua argumentação. Abelardo, condenado
primeiro pelo Concílio de Soissons, apelou ao de Sens, que ia ser convocado. Já neste, e não
encontrando palavras com que defender-se da poderosa dialética de São Bernardo, o herege apenas
balbuciou sua apelação diante da Santa Sé. Mas o Papa condenou solenemente os erros de Abelardo,
e em seus rescritos aos arcebispos de Sens e de Reims ordenou que Abelardo e Arnaldo da Brescia,
fossem encarcerados, separadamente, em mosteiros e que os livros do primeiro sobre a Trindade
fossem queimados. Em cumprimento deste mandato, Abelardo ingressou no mosteiro de Cluny, cujo

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abade, Pedro, o venerável, tomou para si sua reconciliação com São Bernardo e com Roma.
Conduziu-o à Claraval e ali ambos adversários se abraçaram. Prometendo Abelardo renunciar
publicamente ao ensino de suas doutrinas e o santo, que apenas a estas detestava, consagrou-lhe
uma amizade que durou até a morte.

Falecido Inocêncio II algum tempo depois destes ocorridos, São Bernardo exercerá decisiva
influência na promoção de Eugênio III ao sólio pontifício, seu antigo discípulo e simples religioso de
Claraval.

Um último feito notável de nosso santo foi a pregação da segunda Cruzada, que com grande
êxito realizou na França e na Alemanha, podendo ter como certo que foi ele, quase que
exclusivamente, o responsável por este grandioso acontecimento.

São Bernardo faleceu em 20 de agosto de 1153, deixando em Claraval mais de setecentos


religiosos e tendo fundado cento e sessenta casas de sua ordem.

Grande santo, que operou numerosos milagres, conselheiro do Papa, árbitro de monarcas,
reformador do clero, exterminador de todas as heresias de seu tempo, com justiça mereceu por
número e magnitude de seus trabalhos o título de último Padre da Igreja.

Manuel Cambón y Fraga

Buenos Aires, 1940

1. COMO, POR MEIO DAS BOAS OBRAS, DEVE-SE MANTER A CONSCIÊNCIA LIMPA E PURA

Esta casa corporal em que habitamos ameaça ruína por todos os lados; e como há de cair e até
dissolver-se dentro de pouco tempo, necessita que nos dediquemos a construir outra. Volvamos,
pois, a nós mesmos, sacudamos e sondemos cuidadosamente nossa consciência. Nosso corpo é a
tenda de onde, servindo a Deus, combatemos contra os vícios; a consciência é a casa na qual, se
formos vitoriosos, poderemos descansar depois da batalha.

Mas, para edificar a casa da consciência é necessário que lutemos valorosamente, que não
desfaleçamos no combate com nosso corpo. "Trabalha e cultiva com esmero teu campo disse
Salomão para que possas depois edificar tua casa". Este campo é nosso corpo, cujos sentidos e
inclinações, se bem os empregamos, submetendo-os ao domínio da alma, devem constantemente
dirigir-se à prática das virtudes, para a qual é indispensável que o corpo seja servo da alma, e a alma
viva submetida a Deus: este é o procedimento único de edificação da consciência em nosso interior,
para obter a satisfação das faltas cometidas e para evitar os males presentes. A verdadeira satisfação
consiste em corrigir os males que fizemos e jamais voltar a neles reincidir.

A consciência é perpétua e, como a alma, não tem fim; pois bem, a alma, que é imortal, não pode
existir sem a consciência. A consciência será indefectivelmente a glória ou a confusão inevitável de
cada um, conforme a qualidade das coisas que nela deposite. A consciência, pois, morada perpétua
da alma, requer ser purificada primeiro, e solidamente edificada depois. Quem a purificará? Deus e o
homem: o homem, por meio de seus pensamentos e afeições. Deus, por sua misericórdia e por sua
graça. Pensamento e afetos são necessários na purificação da consciência: os pensamentos para a
investigação da verdade, os afetos para a prática da virtude. Algumas vezes, a misericórdia divina
apaga o pecado e nos dá força para resisti-lo; em outras, afasta de nós a ocasião de pecar e nos deixa

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certa amargura por não ter lutado e triunfado sobre o mal; com frequência corrige nosso afeto, isto
é, nosso desejo inclinado ao pecado e debilitado pelo prazer, por causa do deleite que usufruiu
pecando. A graça ajuda-nos a fazer o bem, a evitar o mal e ensina-nos a distinguir um do outro.

Que o homem, estimulado pela Verdade, reconheça e confesse seus pecados: Deus inclina-se sempre
à misericórdia para com quem sinceramente se confessa. Na confissão está toda esperança de
perdão; ninguém pode ser justificado sem que antes confesse sua culpa; porque o homem começa a
ser justo exatamente quando se acusa a si mesmo. Ditosa a consciência na qual se tenham
encontrado a misericórdia e a verdade, na qual se deem estreito abraço a justiça e a paz! A verdade
por parte do penitente e a misericórdia de Deus ter-se-ão encontrado nessa consciência, porque é
indefectível esta misericórdia em quem realmente se conhece a si mesmo. O ósculo da justiça
consiste em amar os inimigos; em abandonar a família e bens, tudo quanto se possua, por amor a
Deus; em sofrer pacientemente as injustiças; em fugir em tudo e por tudo da falsa glória pessoal. O
beijo da paz consiste em convidar com ela todos que a odeiam; em chamar à concórdia os que estão
desunidos, suportar pacificamente os próprios inimigos; em instruir com bondade os ignorantes; em
consolar com doçura os aflitos; na tribulação, aos que choram e, por último, em viver em paz e
fraternidade com todos. Feliz a alma que foi confirmada na paz de Cristo, fortalecida no amor de
Deus! Virão as batalhas do exterior: não conseguirão turbar o silêncio, a calma, a doçura da paz
interior que a alma goza e na qual concentrou todos os seus desejos; virão as tentações: não
conseguirão corromper, pelos apetites da carne, sua vontade; porque a alma possui já em si mesma
tudo o que constitui sua felicidade, suas delícias; e, desta maneira purificada, quando se recolhe em
seu gozo interno, já está refeita à imagem de Deus, a quem em si própria honra. E os anjos e os
arcanjos virão frequentemente visitá-la, render--lhe homenagem, como templo de Deus e morada do
Espírito Santo.

Transformai-vos, pois, em templo de Deus, e o Altíssimo habitará em vós; porque a alma que tem
Deus em si mesma, é templo de Deus, e nela são celebrados os divinos mistérios. Mas se a alma não
se esforça por viver em si mesma, em concentrar no amor de Deus todos seus desejos, haverá de sair
ao exterior, e pela vista, pelo ouvido, pelos demais sentidos corporais, se deleitará nas coisas
mundanas, exteriores a ela. E, neste caso, que lhe acontecerá quando encontre todas as portas dos
sentidos do corpo fechadas? Então, se internado novamente em si mesma, encontrar-se-á desnuda,
desolada; encher-se-á de confusão e de horror. Por ter-se deleitado nos consolos do mundo, não
encontrará a consolação interior, que somente Deus dá: Deus não se dignará visitá-la, e a alma
angustiada pelo peso de sua própria consciência, não poderá suportar-se a si mesma. Não
encontrará o desejado repouso porque abandonou Aquele em quem unicamente deveria repousar e
habitar.

Encontrai-vos hoje na companhia e sociedade dos homens: pensai que não sempre havereis de estar
com eles e, enquanto viveis, buscai por companheiro o único que não vos abandonará nos dias de
angústia, quando tudo vos seja tirado, mas que permanece eternamente fiel àqueles que o amam:
Deus, que é vosso Deus; só a Ele deveis buscar. Abandonai, pois, todas as distrações do coração,
todas as flutuações de vosso espírito; assentai apenas em Deus vossos firmes desejos e aspirações;
que vosso coração se encontre constantemente ali onde está vosso mais apetecível e
desejado tesouro.

Deus habita com agrado na tranquilidade dos corações, nas almas sossegadas e em calma: Ele
mesmo é a paz e na paz tem sua morada. Fazei-vos, pois, tais, que Deus esteja sempre convosco, que
convosco vá e viaje, que regresse convosco, que jamais vos vejais separados d'Ele. Não vos

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abandonará, se vós mesmos não o abandoneis; onde quer que vós vades não vos encontreis a sós se
Deus está convosco. Purificai vossa consciência, a fim de que Deus se digne habitar em vós, encontre
sua morada limpa e convenientemente disposta; porque ele mesmo disse: "Edificai-me um santuário
e nele morarei entre vós".

Esforcemo-nos, pois, em construir em nós mesmos o templo de Deus, para que Deus habite primeiro
em cada um de nós, depois em nós todos. Necessita, para isso, que cada qual não esteja em
desacordo consigo mesmo; porque todo reino intestinamente dividido será desolado e suas casas
cairão umas sobre as outras: Jesus Cristo não entrará na casa cujos muros estejam caídos ou
ameacem ruína. A alma deve possuir a casa de seu corpo, completa, intacta, e sairá
indefectivelmente dela se os membros do corpo não estiverem íntegros ou se encontrem desunidos.
Cuide, portanto, com grande zelo, a alma desejosa de que Jesus Cristo nela habite, que seus
membros não estejam discordantes entre si, seus membros, isto é, o entendimento, a vontade e a
memória; porque, para preparar em nosso interior uma habitação digna de Deus, é necessário que a
razão não se encontre extraviada, nem pervertida a vontade, nem manchada a memória: em outros
termos, é indispensável possuir entendimento reto, vontade boa e pronta, memória limpa e pura.
Feliz a alma que se aplique a purificar de toda mancha de pecado a casa de seu coração e a enchê-la
de obras santas e justas! Porque já não apenas os anjos, mas também o próprio Senhor dos anjos se
deleitará em nela vir, e habitá-la. E não basta apenas purificar essa casa interior do que tenha de mal:
é necessário enchê-la de coisas boas, para que não seja preciso nada buscar fora dela, uma vez
abandonadas todas as coisas exteriores.

2. Das sete colunas necessárias no edifício Espiritual

Acabamos de ver que a verdadeira sabedoria deve por si mesma edificar sua própria casa;
acrescentamos agora que esta casa deve assentar-se sobre sete colunas, nas quais haverá de apoiar-
se e sustentar-se todo o edifício espiritual.

O edificio ou casa é a consciência; as sete colunas são: a boa vontade, a memória, a lembrança
constante dos benefícios de Deus: o coração puro; o entendimento livre (livre de todo preconceito);
o espírito reto; a alma devota; a razão iluminada (iluminada do alto).

A boa vontade é a primeira coluna que haveremos de levantar; porque de todos os dons de Deus que
concorrem para a santificação do homem, o primeiro e principal bem é a boa vontade, em virtude da
qual a imagem ou semelhança com Deus é restaurada. É o primeiro bem, porque pela bondade da
vontade começa todo bem, é o principal bem, porque nada melhor nem mais útil foi dado ao homem
que a boa vontade; faça o homem o que fizer, nenhuma ação humana será boa se não procede da
boa vontade. Sem esta, ninguém pode salvar-se; com a boa vontade ninguém pode perecer. A boa
vontade não pode ser dada a quem não a queira, nem recusada, tirada de quem a deseje. A boa
vontade pertence ao homem; o poder, a Deus.

A vontade é do homem porque o querer é inerente à sua natureza e seu mérito todo está em sua
vontade. Quanto mais queirais, tanto mais merecereis, isto é, quanto maior seja vossa boa vontade,
tanto maior será vosso mérito. Fazei, pois, que seja grande a vossa boa vontade, se quereis contrair
grande mérito. Admiremos a misericórdia de Deus que colocou nossa redenção em coisa da qual
ninguém pode carecer, nem dela ser pobre, a menos que queira sê-lo; antes, todos podem na
mesma medida dispor de riqueza, todos, ricos e pobres, podem com idêntica intensidade, querer, da
mesma maneira, amar. Mas não esqueçamos que a vontade é boa, enquanto opera o que pode
operar.

3. Como, para inflamar-nos no amor de Deus, devemos ter sempre presente sua misericórdia

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Lembremo-nos das misericórdias de Deus, para inflamar-nos em seu amor. Tragamos à memória
todos os benefícios de que nos cumulou; os perigos de que sua benfeitora mão nos livrou.

Apesar da multidão e magnitude de nossos pecados, sua misericórdia jamais se cansou; quando o
esquecemos, Ele mesmo nos advertiu; quando nos separamos d'Ele, Ele mesmo nos chamou;
voltamos a Ele e nos acolheu com bondade suma; se nós nos arrependemos, nos perdoou sem
demora, se perseveramos, foi porque Ele mesmo nos guardou; se permanecemos firmes, foi Ele
quem nos sustentou; caídos, Ele, nos levantou; Ele transformou em amargura nossos deleites
culpáveis, e quando sinceramente nós nos arrependemos nos largueou suas celestes consolações.
Por último, quando fomos purificados pela tribulação, nos devolveu a paz perfeita, doce repouso.
Jamais foi negligente em advertir, em corrigir os pecadores; jamais negligenciou recompensar os
justos.

Recordemos tantos benefícios que nos fez, sem que nós o pedíssemos, sem que os desejássemos,
muitas vezes contra nossa própria vontade; a multidão de pecados que nos perdoou; os grandes
perigos de que nos salvou. Foi sua graça que nos preservou do abismo onde tantos caíram!

Se, pois, não há em nossa vida momento algum em que deixemos de experimentar a bondade, a
misericórdia de nosso Deus libertador, que não exista tampouco instante em que não pensemos
Nele, para dar-lhe graças, amá-lo e servi-lo.

4. Devemos amar a Deus com todas as potências de nossa alma, pelos grandes benefícios que nos
cumulou

Muito justo é que, de todo coração, amemos Aquele de quem tantos e tão grandes benefícios
recebemos, benefícios que só minimamente conhecemos, porque a maior parte deles nos são
desconhecidos; isto é, devemos consagrar-lhe toda nossa afeição e todos nossos pensamentos.

Que nosso coração seja reto, isto é, que busque, sobretudo, as coisas de Deus, para agradar apenas a
Ele; que seja reto pela retidão de sua intenção, pelo afastamento dos pensamentos maus, pelo
hábito da contemplação. Que esteja pronto para cumprir a vontade de Deus, onde quer que esta
vontade se manifeste e seja qual for o lado para onde se incline. Que se eleve à contemplação única,
ao desejo exclusivo das coisas divinas e celestes. Que seja puro, e não consinta nada estranho dentro
de si mesmo; que não abrigue na consciência ofensa alguma a Deus, por mais leve que lhe pareça;
que seja obediente e sem réplica, bondoso nas reprovações, moderado na correção, suave na
advertência. Que seja puro, não apenas em evitar toda mancha, mas, além disso, em chorar os
pecados do passado, cometidos pelo pensamento, pela ação ou omissão. Que esteja cheio de
contrição pelo mal que fez e pelo bem que, devendo fazê-lo, deixou de praticar.

5. Como devemos manter nosso coração limpo de maus pensamentos

Procuremos que nossa alma viva livre das solicitudes do mundo, dos maus desejos, dos maus
pensamentos e dos deleites da carne, para que possa ser útil a si mesma e às suas irmãs, repousar na
contemplação das coisas celestes. Que seja bastante firme para que não lhe comova nenhuma
perturbação súbita; que não se deixe arrastar aos prazeres ilícitos, nem se corromper e abater-se por
nenhum mal, por contrariedade alguma. Que jamais a cólera nem a impaciência consigam turbar a
paz e a tranquilidade de nossa alma; porque Jesus Cristo, que é a paz, não pode repousar senão na
paz, nem habitar em um coração perturbado. Que seja nossa alma perfeita no amor de Deus,

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perfeição que consiste em conceber grande e absorvente desejo de sua visão inefável, em professar
ódio profundo ao pecado, em desprezar o mundo e em amar ao próximo como a nós mesmos por
amor a Deus e porque Deus assim nos ordena.

6. Por meio de ferventes desejos deve a alma elevar-se à mansão celeste, nela repousar e
encomendar-se aos que a habitam

É necessário que a alma seja reta, isto é, que se desprenda de todas as coisas terrenas e presentes
para unir-se inseparavelmente a Deus e elevar-se, mediante piedosa devoção, ao céu, visitando ali as
numerosas moradas que existem na casa de Deus Pai e prostrando-se humildemente ante o trono do
Cordeiro. Que percorra as praças da Sião Celestial. Escute os cânticos e melodias dos anjos. Que dirija
humildes e respeitosas preces a todas as ordens de espíritos bem-aventurados, recomendando-se a
cada um em particular e a todos em geral.

Mas não merecerá graça tão grande a alma que não tenha se exercitado durante muito tempo no
desejo de obtê-la, que não tenha aprendido a conhecer-se perfeitamente a si mesma; sim: em vão se
elevará com o coração às alturas o olho que previamente não tenha acertado ver-se a si mesmo tal
como é. Com efeito: é preciso que vejamos antes as coisas invisíveis de nossa alma, para estar à
disposição de conhecer as coisas invisíveis de Deus, e se não pudemos conhecer-nos a nós mesmos,
não abriguemos a presunção de penetrar coisas que estão bem acima de nós. O verdadeiro, o
indispensável cristal para poder ver a Deus é um espírito reto, razoável, observador profundo e
perfeito conhecedor de si mesmo. Porque se as coisas invisíveis de Deus são compreendidas, são
vistas por suas obras, aonde encontrar mais limpa, mais claramente impressa, a marca do
conhecimento de Deus do que em sua imagem, isto é, na alma feita por Ele a sua semelhança?
Cuide, pois, de conservar limpo seu cristal, de purificar sua alma, quem sinta sede de ver a seu Deus.
"Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus".

O verdadeiro penitente deve cuidar deste cristal sem cessar, limpá-lo, sustentá-lo bem e guardá-lo.
Deve olhá-lo incessantemente, para que nada deslize no que possa desagradar a Deus; limpá-lo, para
que não tenha nele mancha alguma, de pensamento ou de ação, que possa ofender a Deus;
sustentá-lo forte, para que não caia, para que não desça ao amor das coisas terrenas, nem se turve
ou manche com o pó e o lodo de pensamentos vãos; bem guardá-lo, por último, para que Deus, que
se deleita em habitar com os filhos dos homens e se mantém e bate continuamente à porta do
coração humano, encontre neste, sempre que nele queira entrar, tabernáculo puro. Nosso Deus é a
própria pureza: não pode habitar em um coração manchado.

Mas quando, durante muito tempo, guardou-se cuidadosamente e conservou-se o cristal bem limpo,
começa então a nele brilhar, e a refletir sobre ele, certa claridade da luz divina, e um clarão de
insólito resplendor fere os olhos do coração. A alma, inflamada pela visão desta luz, começa a ver
com olhar puro, as coisas do alto, aquelas que estão dentro de si mesma, e acaba por amar a Deus e
Dele se aproximar; considera as coisas presentes como se não existissem. Renuncia a todas as suas
afeições, a todos seus desejos, para consagrar-se senão ao amor de Deus, sabendo que apenas é
realmente feliz aquele que ama a Deus.

Na verdade, a alma humana não pode elevar-se por si mesma, por sua própria virtude a tão grande
graça; esta é dom de Deus, não merecimento do homem. Mas pode estar certo de receber esta graça
quem renunciar a todo pensamento do mundo, para não cuidar senão de sua alma; quem se esforça

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em se estudar e conhecer-se a si mesmo tal como é. Adentrai, pois, vosso coração percorrei-o,
sacudi-o, esquadrinhai-o com toda diligência para bem vos conhecer. Refleti de onde vindes e aonde
ireis; como viveis. O que fazeis e o que deveríeis fazer, se cada dia acusa em vós melhora e progresso;
quais são vossas omissões; quais os pensamentos que habitualmente vos assaltam; os afetos e
desejos que mais frequentemente vos solicitam; as tentações do espírito maligno que mais
rudemente vos combatem.

E quando tenhais considerado plenamente tudo isto, quando conheçais, o quanto é possível, o
estado e o hábito de vossa pessoa no interior de si mesma e no exterior, e não apenas o que sois,
mas também o que deveis ser, podereis, então - por esse conhecimento de vós mesmos - elevar-vos
e ascender à contemplação de Deus; porque os progressos que tenhais logrado no conhecimento
próprio e em vossos cotidianos aperfeiçoamentos vos empurrarão para as coisas do alto.

Porque vos tenhais elevado já a essas alturas e regressado dali a vossos corações: não creiais que isto
basta. É necessário que aprendais a habitar ali, que tenhais vossa morada no alto; e se alguma
divagação de vossa alma dela vos aparta, apresseis em voltar a entrar. Com o tempo, este hábito vos
será fácil, constituirá vossas delícias, não podereis viver em outro lugar. Se, pois, sentis que o desejo
arrasta vossa alma ao amor e ao deleite das coisas externas e carnais, reprimi tal desejo
imediatamente, fechai-lhe a porta de vosso coração; fazei mais: fechai-vos vós mesmos neste
coração, ocupai-o por completo, aprendei a habitá-lo e a jamais dele sair.

7. Deve a alma recolher-se em si mesma e desejar apenas os bens interiores ou espirituais

A alma que consente em ser agitada, distraída por diversos desejos, por pensamentos múltiplos e
que corre de um lado para outro está muito distante de sua cura e da saúde; não aprendeu a entrar
em si mesma, a recolher-se; nem poderá elevar-se à contemplação própria, ou elevar-se, nas asas da
reflexão, às coisas que estão sobre ela. Que a alma contenha, pois, as próprias divagações, suas
difusões fora de si mesma, e que esqueça todas as coisas externas para recolher-se completamente e
habitar em seu interior. Quem deseja chegar ao conhecimento das coisas celestes e divinas deve
aprender a não amar outros bens que não os interiores e quando se tenha estudado
cuidadosamente e conhecido o que é em si, a revelação divina lhe dará a conhecer o que deve ser; o
edifício que deve preparar para Deus no interior de si mesmo, e a maneira que deverá se conduzir
para aplacar a Deus e reconciliar-se com Ele. Aquele que reprima desta maneira as divagações de sua
alma, fixe e concentre todos os impulsos de seu coração no desejo único da eternidade; este
regressou e voltou a entrar em si mesmo, viverá contente em seu coração e nele encontrará suas
delícias. E pela alegria que dentro de si não poderá conter, se elevará sobre si mesmo até as coisas
celestes, isto é, do conhecimento próprio ao conhecimento de Deus, para aprender a amar apenas a
Deus, a não pensar senão Nele, e Nele colocar seu almejado repouso.

Quando o amor a Jesus Cristo tenha absorvido todo afeto do homem, de sorte que este,
esquecendo-se de si mesmo, sinta apenas a Jesus Cristo e as coisas que são de Jesus Cristo, então
poder-se-á dizer que a caridade é perfeita nesse homem. Para quem de tal maneira esteja abrasado
no amor divino, já não haverá nada penoso, nem a pobreza, nem as injúrias, nem o opróbrio, nem as
perdas: tudo desprezará. Considerará a morte como um benefício; para ele não existirá o problema
de além-morte: sabe que passará da morte para a vida. O homem a quem o amor de Deus ligou
interiormente dessa forma, não pode sair de si mesmo nem um só momento, abrasa-se em desejos
de Deus, desejos que crescem à medida que com eles se familiariza. Quem desta sorte se compraz
no amor divino é amiúde sublimado sobre todas as coisas terrenas e presentes, e transportado

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diante de Deus; e quando pode considerar a beleza de Deus e sua grandeza, fica como suspenso,
como absorto em sua admiração.

Em seus deliciosos êxtases admira a glória do Rei, a magnificência de seu reino, a nobreza da cidade
celeste e a felicidade dos que nela moram; contempla a bondade de Deus, a formosura de sua glória,
a tranquilidade e o doce bem estar do eterno repouso. Medita acerca do poder do Pai, da sabedoria
do Filho, da bondade do Espírito Santo e da felicidade dos anjos. Embriaga-se de Deus quando em
Deus admira a caridade divina e contempla sua imponderável beleza. Oh, que inefável gozo, se tão
curto não fosse! Porque esta contemplação das coisas celestes logo lhe é privada, e se acaso se
esforça em manter-se em tais alturas, em seguida cairá; volta, pois, a si mesmo e não pode
comunicar, mostrar a pessoa alguma o que viu acima de si; mas, atraído pela doçura interior que
acaba de gozar, extasia- e na suavidade que a infusão celeste do gozo espiritual em seu ser importou;
pensa tacitamente dentro de seu coração na claridade daquela luz incorpórea e na doçura secreta do
repouso interior e daquela suprema tranquilidade.

Na contemplação de todas estas coisas e na placidez da contemplação mesma, o coração sente-se


docemente atraído pelo amor divino e nele encontra suas delicias. Eleve-se, pois, a alma cristã em
asas de contemplação, e não se canse de subir, mas voe até chegar diante do Rei da glória; uma vez
ali, chore e suspire, rogando a Deus que a perdoe e lhe conceda sua graça; não se ausente, nem
desça sem estar moralmente segura de que Deus aplacou-se e reconciliou-se com ela.

8. Inflamada a alma nas doçuras divinas, arranca de si todo mau pensamento

A razão que se elevou até a contemplação das coisas sublimes, celestes, que se extasiou na presença
divina, onde foi inundada de luz verdadeira e inflamada na divina bondade, essa razão reprime,
domina, senhoreia necessariamente todas as más inclinações da vontade, todos os pensamentos
errantes da memória, todas as difusões do coração, todas as distrações e flutuações tempestuosas
do espirito, fixa e concentra todos seus desejos na fonte única de felicidade e bem aventurança.

A razão, assim ilustrada pela sabedoria divina, deve ser rainha, soberana: nenhum impulso deve
rebelar-se contra ela, antes, precisa que todas as faculdades a obedeçam, como ela mesma obedece
a Deus. E se sente algum movimento desordenado, longe de nele consentir, deve resisti-lo e rechaçá-
lo de imediato; porque o simples consentimento nos torna culpáveis e pecadores, ainda que não se
tenha traduzido em ato algum. Quando a razão se inclina ao pecado pelo consentimento, diz-se que
a alma morre; e se diz bem, porque está escrito "A alma que peca, morrerá". Que resista, pois, para
que não morra; que combata, para que seja coroada. Esta batalha é dura, mas frutuosa; depois da
fadiga virá a recompensa. Os sentidos não prejudicam quando não se consentiu com eles; é o
trabalho da resistência que dá a coroa ao vencedor. Eis aí como verdadeiramente se edifica a boa
consciência.

É boa consciência aquela que corrige, que castiga os pecados passados e se guarda de incorrer no
que mereça castigo; sentirá o pecado, mas não consentirá nele, e se o pensamento a mancha, a
razão a lavará e a purificará. Consciência reta é aquela que tem amargo desgosto por seus próprios
pecados e não consente nos alheios, não deixa tranquilo o pecador, dissimulando-lhe os pecados,
como se não os visse; ao contrário: corrige-lhe, ainda que sem atacá-lo jamais de maneira furiosa ou
brutal. A boa consciência é tranquila, aprazível para com todos, graciosa com o amigo, paciente com

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o inimigo; a ninguém se faz odiosa, antes, é benévola com seus semelhantes, lhes é pródiga o
quanto pode.

Tais são as virtudes com as quais se edifica a casa da alma. O inimigo, segundo seu costume,
apresentar-se-á na casa para roubá-la, destruir e matar; se este inimigo vem - e que não é outro
senão o orgulho do coração, o apetite do louvor humano ou qualquer outro desejo desordenado - é
necessário que a santa cólera, como um cão que guarda um tesouro, se desperte, ladre, lhe morda, o
mate; que se atire sobre os ladrões sem comiseração, que não deixe entrar ninguém; mas que grite e
grite com força, a fim de que todos os habitantes que dentro estejam tomem as armas e se prestem
a rechaçá-los. Qualquer que seja a forma em que o vício tente prejudicar, secreta ou abertamente,
que a santa cólera o rechace, o afaste, para que a consciência esteja em segurança. E a consciência
estará segura e tranquila quando não possa ser acusada, nem de negligência para o bem, nem de
presunção para o mal. A consciência pura e boa é a que não pode acusar-se justamente do pecado
passado, e que não se deleita injustamente no pecado presente. Consciência pura é aquela à qual
Deus não imputa, nem seus pecados, porque não os cometeu, nem os alheios, porque não os
aprovou; a que não é repreensível, ne de orgulho, porque se manteve sempre humilde, nem de
negligência, porque em nada prejudicou a verdade de Deus, nem a salvação do próximo.

9. Nada há de mais sensato nem mais sábio que o pensar e estudar na consciência

Muito se busca a ciência, pouco a consciência. Se a consciência fosse estudada com o mesmo zelo
com que se busca a vã ciência do mundo, aquele estudo seria bastante mais fácil que o desta, e
também mais proveitoso. Pensar na consciência, estudá-la, é a perfeição do bom sentido; aquele que
guarda bem sua consciência, viverá sempre seguro de si mesmo. Perdoem os sábios do mundo o que
vamos dizer: é mais útil recorrer à consciência do que à ciência, a menos que esta seja tal que possa
edificar a consciência.

A alma se conhece a si mesma, a consciência é ilustrada e o coração se enche de ciência, quando a


imagem criada - a alma - recebe a Deus, em si mesma, de sorte que ela esteja em Deus e Deus nela.
A imagem criadora, Deus, na imagem criada, a alma, não é outra coisa que a ciência na alma, a glória
na consciência e a santificação na arca, o homem. Oh, quão inefável é a piedade, a caridade de Deus
ao unir a majestade infinita a uma tão grande humildade, fazendo com que, por sua vez, quem nos
criou seja como que formado em nós! E como se fosse pouco ter-nos dado Deus por pai, quer, além
disso, que nós sejamos sua mãe: "Aquele que fizer a vontade de Meu Pai, esse será meu irmão,
minha irmã e minha mãe". Irmão, pela participação na herança; mãe, pelo ensinamento dos demais,
ao gerar Jesus Cristo nas inteligências. Dilata teus sentidos, alma fiel, e teus afetos; compreende tua
dignidade e tua dita, ao gerar em tuas entranhas Aquele a quem a Criação toda não foi suficiente
para contê-lo, e que a Santíssima Virgem concebeu pela fé! Jesus Cristo é concebido pela fé, nasce
pela pregação da palavra, é alimentado pela devoção e retido, conservado pelo amor. Seja, pois, pura
nossa consciência, converta-se no altar de Jesus Cristo para que possa albergá-lo e conduzi-lo dentro
de si. Que seja zelosa e fiel, para que tão grande majestade não recuse entrar em nosso coração; que
seja devota, para que agrade só a Deus, não sirva senão a Ele e Dele não se separe jamais. A
consciência, assim, plácida e tranquila, regozija a alma, torna-a agradável a Deus, respeitável aos
homens e aos anjos.

10. A boa consciência é título de nobreza da razão e mãe da religião

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A consciência é a ciência do coração. Isto pode ser entendido de duas maneiras: é consciência
propriamente dita enquanto por ela o coração se conhece a si mesmo; chama-se ciência enquanto,
através dela, o coração conhece outras coisas exteriores a ele. A boa consciência é o agente da
religião, o templo de Salomão, o campo de benção, o jardim de delícias, o tálamo de ouro, a alegria
dos anjos, a Arca da Aliança, o tesouro do Rei, a casa de Deus, o tabernáculo do Espírito Santo, o livro
selado que será aberto no dia do juízo.

Nada mais agradável, nada mais consolador, nem mais rico que a boa consciência. Permanece
inalterada e firme, não obstante as opressões do corpo, as seduções do mundo, os terrores do
inferno. Quando o corpo morra, quando a alma se apresente diante de Deus, quando corpo e alma
reunidos compareçam, no dia do Juízo, diante do tribunal terrível do supremo Juiz, a boa consciência
se achará em completa segurança. Não existe imagem mais útil, nem testemunho mais certo da
futura bem aventurança que o da boa consciência. Que o mundo chore, ria, pereça, se aniquile: a
boa consciência permanecerá sempre a mesma, inquebrantável.

Que seja o corpo torturado, macerado, desgarrado, crucificado, entregue à morte: a boa consciência
estará em segurança completa. A consciência é o espelho no qual se vê o estado exterior e interior
do homem, o de seu corpo e o de sua alma; e a alma que carece de espelho não pode conhecer-se a
si mesma.

A boa consciência é o espelho claro, puro e brilhante da religião. E assim como a mulher que deseja
agradar seu esposo ou seu pretendente se enfeita e se embeleza olhando no espelho que reproduz
sua imagem, assim também a alma olha claramente em sua consciência se a imagem da verdade foi
nela alterada, se recebe fielmente a marca, a impressão da imagem criadora de Deus. Não sem
motivo comparamos a consciência a um espelho, já que a alma, servindo-se dos olhos da razão, vê
na consciência, como em um espelho, sua beleza ou sua fealdade, sua pureza ou suas manchas.

11. Não se obtém uma boa consciência senão cuidando escrupulosamente do coração

Não é possível conhecer a vida de uma pessoa senão por sua consciência, e não se alcança a boa
consciência senão pela vigilância do coração; porque o coração, abandonado em si mesmo, irá para a
morte assim como viveu. Querer pecar é mau; pecar é pior; perseverar no pecado é péssimo; recusar
o arrependimento é mortal. Toda inclinação do coração que não seja útil à alma nem ao próximo
deve ser rechaçada, rejeitada sem contemporização. Se o coração divagou em diversos sentidos,
volte sobre si e examine-se: se o exame nele acusa a menor falta, tema o castigo. E a falta, se for bem
procurada, não a encontrará senão em si mesmo; encontrada, ponha-se em sua própria presença e
julgue-se como julgasse a outrem, a um estranho, seja, ao mesmo tempo, acusador inflexível e juiz
implacável; diga-se a si: "Por que abandonaste a paz perto de Deus, teu Senhor, e te fizeste guerra a
ti mesmo? Tão cruelmente combateste a ti mesmo, que estás totalmente destroçado, dividido:
condenaste a ti mesmo, porque quebraste o pacto da paz. Desejas a paz e a rechaças, não queres a
mesma coisa que queres. Tu serás teu próprio juiz, porque apeteces o que não é desejável e não
queres o que deverias querer: te julgo por tua própria boca, servo infiel. Detenhais, pois, e coloca-te
diante de ti mesmo; olha tuas próprias manchas e te arrepende de tua falta". Desta maneira deve o
coração tratar-se a si mesmo e repreender suas próprias misérias, senão há de cair num abismo de
morte.

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Para isto, necessita grande fortaleza; deve violentar-se a si próprio; e exatamente desta fortaleza e
desta violência que fala Nosso Senhor em seu Evangelho quando diz: "O reino dos céus não pode ser
obtido senão pela força, e somente o ganham aqueles que se violentam a si mesmos". Acaso não
possui já um verdadeiro reino quem possui seu próprio coração? Sim, certamente; porque não reina
aquele cujo coração vive na escravidão do vício, senão aquele outro que, pondo freio a seu coração,
regula todos os movimentos deste, interiores e exteriores, pelas leis da razão. Se for a fúria do leão
que em seu coração se levanta e manifesta, castiga-a com a paciência; se é o apetite carnal, a
impureza da língua, reprime-as com a abstinência; se é a ferocidade do javali, contraponha-a com a
mansidão; se for o orgulho do escravo castiga-o com a humildade.

12. É difícil reprimir as veleidades, as divagações do coração

Entre as artes liberais não foi classificada aquela que certamente seria a mais liberal de todas: a de
fixar o coração que é, dentre todas as coisas volúveis, a mais volúvel; entre as coisas escorregadias, a
mais resvaladiça.

Com efeito: o coração, por sua natural volubilidade, se resiste em permanecer fixo e firme sobre um
ponto determinado. Sua vida fundamenta-se no movimento, e o movimento é sua própria vida; e,
coisa estranha, o quase imperceptível movimento vital do coração move e anima toda a massa do
corpo humano. De que engenhoso mecanismo não teríamos de nos valer para que o que tudo move
no corpo se mantivesse imóvel? Se aplicássemos uma mó ao pescoço, seria menos imóvel? Não: com
esta pedra se moveria ainda mais. Que faremos, pois, com ele? Deixá-lo que percorra e esquadrinhe
a terra ao seu bel prazer, em busca de algo mais veloz e volúvel que ele próprio. E se não encontra
nada na terra que se pareça com ele, que percorra também o céu, e que, na rapidez de sua corrida,
se compare com os veículos de Deus. Certamente, não poderá competir com estes, que caminham
sobre as asas dos ventos. Poderá equiparar-se àquela força, àquela sabedoria que tudo atinge
poderosamente de ponta a ponta e que suavemente regula todas coisas? Por experiência própria
aprenderá o que diz a Escritura santa: "A sabedoria é a mais móvel das coisas móveis". E ao menos,
quando veja que esta, com seus arranques gigantescos, o deixa para trás, detenha-se diante de seu
Criador, repouse suas asas, recolha-se em si mesmo e aprenda a não sair dos limites que lhe foram
impostos. Não de outra forma detiveram seu voo os santos antigos que, segundo a visão de Ezequiel,
cobrindo-se com suas próprias asas, quando se ouvia acima do firmamento a voz que soava sobre
suas cabeças. E isto é precisamente o que fazem os santos quando, deslumbrados pelas obras,
maravilhas, mistérios ocultos de Deus, que não se podem compreender, reconhecem que nada
sabem.

O coração compreenderá então, que não é movido por si mesmo, que por si mesmo, permaneceria
imóvel, se Ele, que dá movimento a tudo, não o desse também ao coração humano. Reconhecendo
assim que seu movimento, sua faculdade de mover-se vem de Deus, guardar-se- á de usurpar o que
não é propriedade sua. Aquele que recebe um empréstimo deve usá-lo segundo a vontade e a
intenção do emprestador, sem o qual a coisa emprestada transformar-se-á em furto. Assim, coração
humano, mova-te quando Deus te mova, quando Ele queira e na direção que Ele queira. E quando é
que Deus te move? Certamente quando te afastas das coisas más e nocivas. Obedece ao impulso de
Deus quando Ele te diga interiormente: Coração sábio, excelente em toda prerrogativa, por que
nesciamente te ocupas de coisas que são vaidade das vaidades? Não fostes feito para tais coisas,
senão para estar acima delas, para dominá-las. Essas coisas necessitam de ti para sua conservação;
tu não necessitas delas para a imortalidade e a bem-aventurança.

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Deixa que tais coisas sirvam de pasto para os jumentos, porque mesmo estes precisam que delas
façam uso em sua justa medida, e não com exageros; porque o exagero do alimento distende o
estômago, dilata o ventre dos animais, os deforma e lhes acarreta a morte. Assim, oh príncipe e
senhor do corpo, se teu corpo ultrapassa o limite e a medida da necessidade, se abre sua boca à
gula, cava-se a si próprio um lago de perdição na hospedagem aonde come, e o que deveria tomar
como remédio, ocasionar-se-á a morte, e o navio que deveria conduzi-lo ao porto, sepultar-lhe-á em
seu naufrágio

E por que isso?

O supérfluo de alguns priva outros do outros necessário; em outros termos: da superabundância de


uns nasce pobreza miserável de outros. Suprima o supérfluo e a ninguém faltará o indispensável. A ti
lhe compete, coração humano, corrigir, retificar as coisas mal feitas, ordenar e arrumar a família dos
membros do corpo e dos movimentos da alma, atribuindo a cada um sua própria função, segundo
sua natureza. Que no reino do teu corpo ninguém possa impunemente violar tuas leis regulamentos,
nem o olho, nem a mão, nem o pé, nem a orelha, nem a boca. Que diremos de outros membros vis,
vergonhosos, se ousassem rebelar-se? Lapidai-os, esmagai-os sob o peso da repressão: que saibam
que o rei Salomão cavalga sobre a mula do rei, tal como é a razão sobre a sensualidade do corpo. Se
alguns de teus membros incorrem em rebelião, separai-os de ti, amputai-os, não pelo ferro,
destroncando-os, mas pelo jejum e pela mortificação. Isso mesmo é o que fazia São Paulo dizer:
"oxalá que fossem mesmo mutilados os que vos perturbam!".

Vedes aí a maneira como se pode deter, refrear esse coração que corre para o precipício, e criar-se
uma boa consciência. A boa consciência exige três coisas: pureza no coração, verdade na língua,
retidão nas obras; somente através disso merecerás ver a Trindade santa. Oh, bem-aventurada visão,
pela qual veremos a Deus em si mesmo, em cada um de nós, em todos nós, em um novo céu, em
uma terra nova e em cada criatura nova e em cada criatura que neles exista!

13. A consciência é um livro em que estão escritas todas as nossas obras

A consciência humana é a vinha do Senhor, vinha que deve ser trabalhada, cultivada pela confissão
dos pecados, pela satisfação, pelas boas obras e pela persistência nestas obras.

Para cada pessoa, a consciência é um livro, e todos os outros livros foram feitos para examinar e
corrigir o livro da consciência. Quando a alma sair do corpo, não levará consigo outro livro senão o
livro da consciência: por ele conhecerá onde há de ir e o que deve receber. Seremos julgados pelas
anotações que constem em nossos livros. Estes livros deverão ter sido escritos de acordo com o
modelo do livro da vida; se não o estiverem, haveremos de corrigi-los e arrumá-los de acordo com
ele. Ponhamos, pois, cuidado sumo em confrontar nossos livros com o livro da vida, e se não
estiverem de acordo com ele, exatamente de acordo, corrijamo-los com todo esmero, a fim de que
no último e definitivo confronto, que terá lugar no último dia da vida, a conformidade seja absoluta,
exata.

Bem-aventurado o homem que saiba conhecer-se e desprezar-se, aprovar-se ou reprovar-se a si


mesmo! Porque quem a si próprio desagrada agrada a Deus, e quem é vil para si mesmo precioso
é para Deus.

14. Quão útil é o conhecimento de si mesmo para chegar ao conhecimento de Deus

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Numerosas são as ciências dos homens; mas de todas estas ciências, a mais excelente é aquela pela
qual o homem se conhece a si mesmo. Quero, pois, penetrar em meu coração tão fundo quanto
possa e encerrar-me nele, para examinar sutilmente ali toda minha vida e conhecer-me a mi mesmo.

Todas as misérias que encontre eu nesse abismo de pecado, apresentarei abertamente diante de
Deus, e implorarei sua grandíssima misericórdia. Confessarei todos meus pecados a Aquele a cujos
olhos tudo aparece desnudo e descoberto; não posso enganá-lo, porque é a própria sabedoria, não
posso dele fugir, nem evitá-lo, porque está em toda parte e tudo abrange. Ouvi, pois, minha
confissão, ó Deus piedosíssimo, e olhai-me com Vosso mais misericordioso olhar! Ouvi quantas vezes
fosseis lançado de minha memória pela multidão de pensamentos que pululavam em meu coração,
como as multidões do povo se aglomeram nas praças públicas para presenciar um espetáculo ou
bisbilhotar uma novidade.

Quando devo orar ou salmodiar no mosteiro, não sei que néscio e louco pensamento se apodera de
meu coração, e o arrasta a diversos lugares; e quando o chamo, quando o volvo a mim mesmo, não
posso sujeitá-lo, não consigo detê-lo, porque no mesmo instante salta novamente para fora e se
entretém aqui e ali em multidão de coisas. Assim, o atrativo dos desejos e das vaidades terrestres
ocupa meu coração, e o pensamento de que é necessário evitar esses desejos e vaidades, arrancá-
los de mim, traz-me outro pensamento: o de que meu coração não está em meu poder, nem sob
meu domínio e com frequência me assaltam de improviso outros pensamentos, me conturbam e me
arrastam para onde eu não quisera ir. Levam também meu espírito às coisas do século, aos assuntos
mundanos, ao amor da vontade própria, ao gosto dos prazeres carnais; e enquanto me esforço em
elevar minha alma para Vós, Senhor, logo, afligido por inumeráveis pensamentos vãos, volto a cair, e,
apesar de tudo fazer para evitá-lo, não consigo expulsar do meu coração todos esses pensamentos
que trazem a minha memória tudo quanto vi, ouvi, disse e fiz, o que produz grande perturbação em
minha alma.

Penso nas coisas em que devo ocupar-me e nelas frequentemente volto a pensar; mas, depois de ter
por longo tempo meditado no que teria podido fazer, não posso ainda ver-me livre de tais
pensamentos; estes entram e saem, sucedem-se, introduzem-se e chocam-se continuamente uns
com os outros. Contra toda minha vontade suporto tempestade tão violenta, e, ocorre, no entanto,
que consinto amiúde em tais pensamentos quando meu espírito errante vai e vem, discorre sem
utilidade, sem discrição sobre as coisas que vi, ouvi, disse e fiz. Desta sorte, meu volúvel coração está
sempre errante e distraído; e peco quando o abandono desta maneira.

Oh, quão grande é o mal que se comete por negligência! Quando meu coração me abandona, não o
faz sem violentar-me. Senhor, Deus meu, firmai e fixai meu coração! Porque, ainda quando ele se
esforça em concentrar-se em si mesmo, fica por si mesmo abandonado sem querê-lo e até sem sabê-
lo; e assim acontece que peco pelo hábito de pecar, sem sequer perceber-me disso; e sendo meu
coração vão, distraindo-se em infinidade de coisas, divide-se também entre múltiplos desejos. De
noite mesmo, quando quero dormir, vejo com os olhos fechados as imagens inoportunas de uma
multidão de coisas: e quanto mais me empenho em delas afastar minha imaginação, mais
insistentemente me envolvem e acometem essas imagens que mancham meu coração com
pensamentos impuros. E vejais Senhor, quão funesto me foi o mortal deleite que nasce da lembrança
dos pecados passados, sobretudo, a lembrança dos pecados de impureza. Quanto mais esta peste
me infeccionou, quanto mais familiar me foi esse vício, tanto mais me prejudica maior sofrimento me
custa dominá-lo.

Quanto mais resolutamente quero arrancá-lo, então é quando mais me agrada e agarra em mim sem
que eu o sinta: desagrada-me e me agrada ao mesmo tempo. Jamais pude, por eu mesmo, fugir da

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sedução da carne, que me persegue por toda parte e está continuamente ao meu lado. E quando
consegue agarrar-me por qualquer pensamento de deleite ou pela intenção de um olhar, já não me
deixa em paz, nem de dia nem de noite. Entra sutilmente, e se não for, no ato, rejeitada, se apodera
do coração; uma vez nele, lhe encanta e lhe abrasa, e, como pestilento veneno, espalha-se
rapidamente por todo corpo. Multiplica os maus pensamentos, provoca criminosas afeições, arrasta
agradavelmente o espírito a um consentimento perverso corrompe todas as virtudes do coração.

Quando sou preso e atado por esta peste, quase não me reconheço a mim mesmo, nem percebo o
que em mim acontece, porque não conheço bem o que a estimula ou não me dou por confessá-la,
ou talvez me envergonhe de confessá-la: por ser tão sutil e tão suja!

Sim, verdadeiramente: é muito difícil extinguir os incêndios da voluptuosidade. É ela que estimula as
crianças, inflama os jovens, enerva os homens, fatiga e mata os anciãos e os ociosos; não desdenha
as cabanas, nem respeita os palácios. Rogue a Deus afastá-la, pelo menos dos mosteiros!

Vinde em meu auxílio, Senhor, meu Deus, para que possa eu resistir a esse vício pestilento e mortal;
bem sei que a pena da resistência dá a coroa do vencedor; mas sei também que se tenho a desgraça
de manchar minha alma com pensamentos impuros, não poderei ser grato a Vós, que tão amante
sois da pureza.

15. Como os pensamentos impuros e rancorosos destroem e mancham a habitação de Deus, a


alma

Criai em mim, Senhor, meu Deus, um coração puro; renovai e purificai este coração meu, manchado
de impureza, cheio de vaidade, corrompido e dissipado pela amargura.

Ao receber uma injúria, uma agitação profunda é produzida em mim, e, cego de cólera, engenho-me
em buscar ocasião de vingança; multiplico os propósitos, as resoluções e não penso senão em
querelas e contestações. Em meu interior profiro palavras injuriosas, e às respostas que a estas
palavras imagino respondo com dureza, e, ainda que não tenha ninguém presente para contradizer-
me, para resistir-me, componho em meu coração disputas, querelas, imagino as emboscadas da
inveja, medito naquelas que me possam ser colocadas e na maneira de contestá-las. Assim passo os
dias e as noites, entregue a estes pensamentos vãos, culpáveis, exaustivos que me tornam
preguiçoso para bem obrar. Com frequência, o mal que operei materialmente apresenta-se à minha
imaginação em pensamento ilícito, e vejo-me mais rudemente atormentado por esta lembrança do
que o fui na consumação da ação. Outras vezes, penso em coisas que não fiz, nem tive jamais
vontade de fazer, como se me pesasse não tê-las feito.

Senhor, meu Deus, purificai-me de meus pensamentos ocultos, secretos; porque ainda que não faça
nada de mal fora de mim, exteriormente, peco em meu interior porque albergo em meu coração
imagens de coisas que vi, fiz ou disse. Ocupo meus pensamentos com a lembrança de coisas
temporais, até quando estou ocioso e não realizo ação corporal alguma. Assim me acontece que,
mentalmente, como durante o jejum, falo quando estou calado, irrito-me estando tranquilo, e
quando meu corpo repousa, minha alma vai de um lado para outro, advindo de tudo isso que não
pude atravessar a vida sem falta, e mesmo o tempo em que vivi de forma louvável, não estará isento
de pecado se for examinado imparcialmente e sem misericórdia.

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16. Como a concupiscência sensual engana e perde muitas almas pelo amor desordenado dos
sentidos

Livrai-me, Senhor, de minhas necessidades; porque, crendo pagar tributo à necessidade, não faço,
muito vezes, senão favorecer e servir o apetite do vicio, isto é, sob o pretexto da necessidade, caio
nas armadilhas e laços da concupiscência da carne. Assim foi que, muitas vezes, comi e bebi, não por
necessidade, mas para satisfação sensual minha, e o que bastava, o que era suficiente à necessidade,
parecia escasso ao apetite sensual. Além disso, muitas vezes pensei em comer e em beber mais do
que devia, quando e onde não devia, e durante dias inteiros meu pensamento não se ocupou de
outra coisa senão de comidas apetitosas e carne suculenta.

Quando se trata da vestimenta para cobrir meus membros, exijo que minha vaidade se satisfaça; não
me basta que me proteja do frio: é necessário que agrade minha mão por sua flexibilidade e maciez,
meus olhos pela beleza da cor. Quando obtive permissão para falar com uma pessoa por
necessidade, não falei somente do que era necessário, mas também do que não o era, do que não
me correspondia, do que não podia nem devia falar.

Quando assisti às discussões dos homens, tomei parte nelas, não para edificação, mas para
destruição das almas; falei do que não era conveniente, mas do que me agradava, esbanjando
palavras vãs, inúteis, próprias para excitar o riso, e em tal verborragia manchei minha língua com a
mentira e a destruição. Cheia de embustes está minha língua, e me prejudiquei mais que todos meus
outros membros reunidos. Porque malignamente procurei rebaixar a opinião que outros tinham de
pessoas de bem, e as coisas que vi ou ouvi jamais as menciono como aconteceram ou como as ouvi;
afirmo uma coisa por outra, ou as confundo e as altero; assim, ou elogiando com excesso, ou
vituperando sem razão, sempre caio no exagero. Minha boca está abrasada pela gula, e nada basta
para satisfazê-la. Jamais consegui, com uma confissão pura, purificar este meu coração cheio de
malícia e dolo. O estômago e o os intestinos distenderam-se muitas vezes pelo excesso na comida e
na bebida e foram atormentados pela dor; quando a boca se deleita, o ventre se incha, o corpo se
debilita, fica mal e, às vezes, morre. A gula me conduziu à glutonaria do ventre, e ali onde devia ter
bebido a saúde, encontrei a morte por excesso na comida.

Minhas mãos estiveram sempre prontas para mal obrar; pesadas para o bem. Meus pés me levaram
mais depressa aos maus espetáculos que à igreja. Meus olhos perverteram minha alma com olhares
pecaminosos e arrastaram todo meu corpo a imundos desejos. Minhas orelhas se abriram antes às
palavras vãs e ociosas que à palavra de Deus. Meu olfato deleitou-se com vãos odores; meu paladar
com sabores diversos; todos os apetites desordenados dos meus outros sentidos foram plenamente
satisfeitos. Assim, pois, meu Deus, transgredi a função, a norma da natureza em todos meus
membros, e estes, por vingança, pactuaram com a morte, com o inferno, para entregar-me em mãos
do meu inimigo.

17. A consciência está sempre presente e não podemos escapar de seu juízo

Livrai-me, Senhor, do homem mau, isto é, de mim mesmo, de quem eu não posso separar-me.
Porque, de qualquer lado que me vire, aonde queira que vá, seguem-me meus vícios, e também
minha consciência, que está sempre presente para escrever tudo quanto faça. Bem que posso fugir,
evitar os juízos dos homens. Não assim com o veredito de minha própria consciência, e se posso

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ocultar dos homens o que fiz, não posso ocultar-me de mim mesmo o que sei. O pecado de minha
própria consciência não me deixa um momento de repouso, me atormenta mais e mais a cada dia,
me aflige e me aterra com a lembrança do dia do juízo. Porque o dia em que o Senhor venha julgar o
mundo, como cada um há de ter diante da vista seus próprios pecados, será forçado pela consciência
a transformar-se em fiscal e juiz de si mesmo. Quero, pois, colocar-me frente a mim mesmo e julgar-
me, para evitar esse último e terrível juízo de Deus. Porque minha consciência me condena diante de
Deus, e prefiro escutar o veredito dela a escutar o do Juiz supremo.

Acusa-me de inveja, e o confesso: a inveja turbou, corrompeu, dilacerou muitas vezes meu coração.
Pela inveja, até os méritos daqueles que vivem santamente foram muitas vezes ocasião de pecado
para mim; porque não acreditava no bem, nas coisas boas que deles escutava dizer e as interpretava
no mal sentido; e todo o mal que a malícia, a calúnia e a maledicência lhes atribuíam, eu acreditava
imediatamente, como se tivesse visto com meus olhos.

Desejei para meus inimigos toda sorte de males e deles os acusei, e me afligi de seus adiantamentos
e melhora, o que me fazia ainda pior. Ocultei dentro de mim o ódio para com as pessoas boas e
alimentei esse ódio para tormento meu. Tive inveja dos que considerava melhores e dos que
progrediam no bem; favoreci os maus, regozijando-me de suas maldades e afligindo-me de sua
correção. Em meu interior conservei inimizades sem motivo, sem saber por que e temi que os outros
apercebessem dessa malicia de meu coração. Com eles me mostrei sempre displicente, jamais
amável, e desta maneira transformei-me em amigo do diabo, em inimigo de Deus e de mim mesmo.

Semeei a cizânia entre amigos, confirmei em suas diferenças os discordantes. Desfigurei com
mentiras a opinião que pessoas boas tinham de outros; louvei as coisas carnais e temporais em
pessoas espirituais, expressamente para que os outros vissem que estas pessoas não estavam tão
adiantadas nos bens espirituais como acreditavam. Fingi ser amigo de outro para enganar com tal
artificio aqueles que tinham depositado sua confiança em mim. Muitas vezes suscitei motivos de
ódio por meio de malévolas suspeitas, regozijando com isto o demônio, em agente do qual me
converti. Vendi aparente amizade a não poucas pessoas, das quais era em meu coração inimigo: para
elas tinha sempre na boca belas palavras, ainda que na realidade me arrastasse pela lama da
malevolência. Fui revelador de segredos alheios e tenaz em minhas más suspeitas, sendo perverso
num e noutro destes defeitos: e desse modo, o inimigo perseguiu minha alma e humilhou e arruinou
a minha vida.

Deus de bondade, como eu poderei tornar-me bom, eu que fui tão perverso no mal? Pequei e
aparentáveis não vê-lo, antes, vós o dissimuláveis; prolonguei indefinidamente minhas iniquidades, e
vós guardáveis para mim intenções de misericórdia, o pensamento de trazer-me à penitência e
perdoar-me. Dignai-vos, pois, Senhor, ser compassivo com aquele a quem durante tanto tempo
suportastes, ainda que estivesse cheio de pecado. Sei muito bem que tudo o que me perdoeis ficará
como se jamais tivesse existido.

18. Como é perigoso estimar-se a si mesmo e pensar possuir virtudes de que o homem carece

Não somente a inveja afligiu meu coração, mas também a vaidade dominou minha alma,
manchando-a com diversos deleites. Por vaidade jactei-me nesciamente de obras, de méritos que a
consciência me dizia não encontrar em mim. Pretendi ensinar o que ignorava; deleitava-me em
acreditar de mim mesmo coisas elevadas e sublimes. Preferi futilidades desprezíveis às coisas graves;

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denegri em palavra a mesma coisa que meu coração desejava e dei a meus vícios o nome de
virtudes: desta maneira enganava-me a mim mesmo e aos que em mim acreditavam e me
favoreciam. Fui sempre pronto em prometer o bem, indolente e remisso em praticá-lo; volúvel,
inconstante na virtude, mas tenaz e persistente no vício; grave nas palavras, e desordenado na alma,
mentiroso em tudo; gozoso na prosperidade, frágil na adversidade; inclinado às coisas humanas,
relutante às coisas divinas. Deus de misericórdia, vede quão miseravelmente perdi, profanado na
vaidade, os dias que devia empregar em chorar minhas iniquidades, em suspirar pela herança
perdida, em aspirar à felicidade a que me destinastes, em conseguir a companhia dos anjos e em
fazer que me fosse propícia vossa divina majestade!

19. Que é uma grande miséria não considerar os próprios defeitos e faltas, viver como vive o
homem

Eis me, aqui, Deus meu, envergonhado, aterrado em presença de minha vida; porque se
cuidadosamente a examino, não encontro nela senão pecado, vaidade, esterilidade e se por acaso
descubro nela algum bem, é este tão exíguo, tão imperfeito, tão corrompido que só pode deixar de
vos ser grato. E, no entanto, comporto-me como se assim não fosse - que é miséria sobre miséria;
como, bebo e durmo tranquilamente, como se já tivesse franqueado o desfiladeiro da morte, como
se tivesse escapado do dia do juízo e dos tormentos do inferno; brinco e rio como se já reinasse
convosco em vosso reino.

Aterrado pela multidão de minhas iniquidades, mas cheio de confiança em vossa misericórdia, meu
Criador e Redentor, já que me assegurais que o perdão, a remissão dos pecados se obtém por uma
pura e sincera confissão, venho, meu Deus, confessar humildemente que fui concebido em pecado, e
minha vida toda vive em pecado, de tal sorte, que não há pecado algum com que não me
tenha manchado.

Pelo orgulho desobedeci vossos mandamentos e os de meus superiores; não observei o silêncio
como a regra ordena. Tive, recebi e dei o que estava proibido. Não escutei gozosa e
misericordiosamente a voz dos pobres, nem os visitei em suas enfermidades. Consenti no mal
daqueles que me confortaram. Minha alma, inclinada para as coisas baixas, rara vez acerta elevar-se
acima da terra. Repreendo os vícios alheios muito mais prontamente que os meus próprios, e não
me envergonho de fazer o que nos outros vitupero. Antes, favoreço os vícios que as virtudes do
próximo, e quando considero os pecados alheios, não me envergonho dos meus. Para estes sou
sempre indulgente e benévolo, como áspero e duro para com os dos outros. Valente, em fazer e em
dizer injurias, sou covarde e frouxo em suportá-las; preguiçoso na obediência, sou inoportuno em
exigi-la dos demais; negligente no que devo e posso fazer, sou diligente no que não deveria praticar:
desta forma, por meus pecados, minha alma está cheia de manchas e defeitos.

Na igreja, onde deveria ser melhor, é onde me encontro pior, e no altar não rezo com devoção, não
trato os vasos santos com reverência; meu corpo está no coro, mas meu espírito em outra parte. No
exame, tão logo me concentro em mim mesmo, já saio de meu interior; tão grande é a ligeireza de
minha alma, tanta a volubilidade de meu coração; pronuncio as palavras dos salmos, e não atento ao
seu significado, aos sentimentos que expressam; ao contrário, com meu espírito errante, com falta
de compostura, olho curiosamente de um lado para outro lado para inteirar-me do que acontece.
Infeliz de mim, que peco na mesma coisa em que deveria corrigir-me e purificar-me de meus
pecados! Até me acontece que sou pior no pouco bem que faço, porque a alma que deste escasso

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bem se orgulha e infla, tira dele falsos motivos de segurança e abandona-se à preguiça. Muitas vezes
louvei minha própria pessoa e obras; sempre desejei meu louvor nos outros, e quando, sem
pretendê-lo, me vi louvado por outros, me agradei pelo elogio. À medida que o orgulho ia crescendo
em mim, apresentava-se em minha memória uma multidão de obras por mim realizadas, para que
delas me orgulhasse também. E eu, considerando todas essas coisas, amontoando-as em meu
pensamento, inflava mais e mais meu orgulho, e, na admiração de mim mesmo, e glorificando-me
por meus talentos em vez de dar glória a Deus, de quem tudo recebi, perdi o fruto de todo
bem que fiz, reconhecendo então, que todos os que me louvavam não buscavam outra coisa que
minha perdição. Porque, quanto mais o homem se glorifica a si mesmo, mas se afasta dele o amor de
Deus.

Desta maneira, Senhor, minha vida foi convertendo-se em inferno. Se vos dignásseis livrar-me de
minha néscia vaidade, haveria de dar-vos, por isso, incessantes graças; se não me livrais, não poderei
queixar-me, porque operais em justiça. Por natureza, era bom, e tornei-me mau: justo é que seja
desgraçado já que eu mesmo laborei minha própria desgraça.

Também minha consciência merece castigo, e a penitência não pode dar por ela satisfação suficiente;
mas é bem verdade, Deus meu, que vossa misericórdia apaga toda ofensa. Dignai-vos, pois, piedoso
Senhor, destruir minha iniquidade pela multidão de misericórdias, e eu, que até o presente vivi sem
mérito, não viverei assim em diante. Mas, desgraçado de mim, que tantas vezes confessei estas
faltas, e de novo voltei a reincidir nelas, acumulando confissões e quedas! Sim: mil vezes prometi
emendar-me, e não mantive minha promessa; sempre voltei a cair em meu pecado, acrescentando
aos já cometidos, novos e maiores pecados. Nunca corrigi meus costumes, afastando-me, como
devia fazê-lo, do mal. Ao perder-me a mim mesmo, fiz os outros pecarem também, e não são poucas
as criaturas a quem perverti com o mau exemplo de minha vida.

Bem vês, meu Deus: não oculto meus pecados, antes os declaro e confesso sem escusa, porque
conheço minha iniquidade. E, no entanto, não sou justo; porque se outro me acusasse como eu a
mim mesmo me acuso, não poderia suportar pacientemente a acusação. Realmente, pude
desesperar-me pela multidão dos meus vícios, de meus pecados, de minhas negligências; à vista de
todo o mal que fiz em pensamentos, em palavras, em obras, de todas as maneiras que a fragilidade
humana pode pecar; sim, houvera podido cair na desesperação, se Deus, o Verbo, não se houvera
feito carne, revestindo-se de nossa humanidade e habitado aqui embaixo conosco. Mas não posso
desesperar-me, sabendo, como sei, que o Verbo de Deus, submetido até à morte de cruz, tomou o
papel em que nossos pecados estavam escritos e, fixando-os na cruz, nela crucificou o pecado e a
morte.

Graças vos dou, meu Deus, porque me visitastes e me fizestes ver meus pecados, e agora, por
inspiração vossa, aprendi a voltar ao meu coração e a conhecer-me a mim mesmo.

Chamarei, pois, a alguns de vossos amigos, e o direi todos meus pecados, como Vós me ordenastes, a
fim de que, com seus conselhos e através de sua ajuda, possa ver-me livre de todas minhas
iniquidades e reconciliar-me convosco.

20. Quem sonda e examina com cuidado uma consciência abandonada, não encontra nela, como
em terra inculta, senão abrolhos e espinhos

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Ouvi, meu pai, este miserável pecador; escutai a voz deste penitente que chora. Sabei quanto
pequei, quão gravemente ofendi meu Criador. Porque, por ordem sua, me internei em meu próprio
coração, e, tirando tudo dele, até a mim mesmo, tudo, exceto Deus, examinei minha vida inteira em
seus pormenores mais recônditos e minuciosos; e, para dizer a verdade, não encontrei nele senão
horrores, espantosa solidão, ou seja, uma consciência que, depois de muito tempo de abandono, de
incultura, mostra por todo lado nada além de sarças e espinhos. Não há vício cujo hálito pestilento
não tenha manchado e obscurecido minha consciência.

21. Quão necessário é, na conversação com o próximo, examinar nossos próprios defeitos, e
acreditar que os outros são melhores que nós mesmos

A cólera me turbou; corroeu-me a inveja e o orgulho me inflou; daí a inconstância de meu espírito, as
palavras vãs e pouco honestas, os atos ridículos, a negrura das detrações, da calúnia, da
maledicência e o descontrole da língua. Não obedeci aos mandatos de meus superiores, e me
permiti criticá-los. Repreendido por minhas negligências, me rebelei ou murmurei. Cometi a
imprudência de colocar-me acima dos melhores da comunidade, burlando-me da simplicidade de
meus irmãos espirituais, os encolerizei. Elogiei irrefletidamente minhas máximas; recebi com
desgosto os serviços que me prestaram; busquei e pedi coisas que me estavam proibidas, e por meu
orgulho fui negligente em corrigir meus costumes; nem fui respeitoso no serviço, nem modesto no
falar, nem circunspecto em minhas ações. Fui teimoso na intenção, duro no coração, vaidoso no
argumento. Fui falso na humildade, tenaz no rancor, maledicente ou mordaz no discurso; impaciente
na sujeição, e amante da prepotência e do mando; preguiçoso em bem obrar, rebelde à unidade,
duro no servir, pronto em falar do que não entendia; inclinado a enganar, desumano com meus
irmãos, temerário nos propósitos, clamoroso em falar, impaciente em escutar, presunçoso no ensino;
descontrolado de forma desagradável no riso; irritante aos meus amigos, perturbador do repouso,
ingrato com meus benfeitores, presunçoso de meus serviços, amigo de dominar e mandar.

Envaideci-me de ter feito o que não fiz, de ter visto o que não vi, de ter dito o que não disse. Fui
falaz, aparentando não ter feito coisas que fiz, não ter dito o que disse, não ter visto ou ouvido o que
vi e disse. Desta sorte, incorri em culpa por todos os lados: fui condenável no mundo e no mosteiro;
ali por ignorância, aqui por negligência.

Por isso estou turbado, cheio de espanto. E o que mais me aterroriza é o encontrar-me pior no
mosteiro, na presença de Deus: Deus me colocou em um lugar de repouso, na casa da abundância,
no paraíso de delicias; e eu, miserável pecador, morro de fome diante da mesa mais bem servida e
que faz as delicias dos demais; fui colocado em fonte de água pura, e tenho sede; perto do fogo e me
congelo, e não quero estender a mão nem a um nem a outro. Sou preguiçoso e negligente, e perco o
tempo que Deus, em sua bondade, me concedeu para fazer penitência, para obter o perdão, adquirir
sua graça e merecer a glória eterna.

Vejo ao meu redor aqueles que são de uma abstinência singular, maravilhosos na paciência,
humildes, pacíficos, cheios de piedade e misericórdia; alguns deles, firmes na oração, elevam-se à
contemplação, penetram os céus, progridem de maneira assombrosa em todas as virtudes.
Encontro-os igualmente devotos, fervorosos, unidos de coração a Jesus Cristo, ricos todos em dons
celestes, como homens a quem Deus visita e em quem habita. Mas nada disto encontro em mim,
porque o Senhor, irado, se afasta de mim, de seu servo. Eis aí porque durmo quando os outros
velam; divago de um lado a outro quando eles cantam no mosteiro. Busco o trato com os homens e

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me entretenho com fábulas e palavras vãs quando meus irmãos buscam o retiro, fogem da
conversação dos homens, para morar e conversar com Deus. Erijo-me em julgador dos outros
enquanto eles se ocupam de julgar-se a si mesmos. Eles amam e observam a vida, a regra, a ordem,
o estudo da comunidade. Eu amo apenas as frivolidades, as pequenas rebeliões. Tanto é assim, que
desde que pude pecar, não fiz senão acumular pecado sobre pecados. E os que não pude cometer de
fato, os cometi pela vontade e pelo desejo.

22. Quão pernicioso é consentir nos pensamentos desonestos da carne

O maior, o mais funesto de todos os males é a deleitação da carne, porque esta cresce conosco
desde o berço, e não nos abandona jamais, nem quando o corpo está já debilitado, abatido pela
velhice.

Confesso que minha pobre alma foi manchada, corrompida, pervertida por este vício, que a despojou
de toda virtude, tornando-a vã e débil. Confesso que com este pecado a manchei de mil maneiras,
sobretudo com lembranças imundas, e que muitas vezes tive de suportar os ardores impuros desta
peste. E não são apenas as lembranças de meus próprios feitos os que grandemente me
prejudicaram, mas também os relatos e memórias das obscenidades dos outros.

Desgraçadamente não experimento por este motivo toda a dor, toda a pena que deveria
experimentar, senão que, pelo contrário, sou indolente, me adormeço como se não conhecesse todo
mal que me devora.

E apesar disto, o Deus humilde suporta o homem soberbo; a mansidão, o homem colérico; a
misericórdia, o homem cruel.

Venho, pois, rogar-vos, meu pai, que me ensineis como poderei estar sempre com Deus, ou como
haverei de voltar a Ele quando tenha se afastado de mim por meus pecados.

23. O conhecimento do pecado é o princípio da "saúde espiritual"

Tua confissão, meu filho, me emocionou até fazer-me chorar, tanto por ti, como por mim. Choro por
mim, porque tudo que me disse o encontro em mim mesmo, e porque me lembraste de muitas
coisas que me eram esquecidas. Regozijo-me por ti, porque foste visitado pelo que habita os céus e
nasceu da Virgem Maria; sim, me felicito, porque não estás longe do reino de Deus, pois o
conhecimento do pecado é o princípio da salvação, e confio no Senhor que a humildade de tua
confissão sincera suprirá tudo o que possa faltar-te de fervor e de boa disposição.

O pecador que se converte e chora seus pecados, em qualquer momento em que o faça, será salvo;
porque Deus não rejeita jamais um coração contrito e humilhado, segundo disse o profeta Davi: Cor
contritum et humiliatum, Deus, non despicies. Em verdade, mais propício está Deus em conceder o
perdão ao pecador, que este a pedi-lo e recebê-lo, e é tal a diligência que Deus aplica em livrar o
pecador do tormento de sua consciência, que a misericórdia divina parece mais atormentada pela
compaixão ao pecador, do que este por seus próprios pecados. Quanto mais e com maior dor interna
se aflige o homem por seu pecado, tanto mais certo terá o perdão. Porque o Espírito Santo se
compraz em consolar a alma afligida pelas lágrimas da penitência, em visitá-la para sustentá-la, e em
reformá-la, inspirando-lhe a confiança no perdão: contempla prazeroso a alma que condena seus
pecados, que os chora, e a perdoa.

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Desde esse momento, se estabelece certa espécie de familiaridade entre Deus e a alma; e esta,
sentindo que Deus a visita e fortifica, enche-se, por vezes, de gozo tão inefável que língua alguma
acertaria em expressá-lo. Mas, quem é digno de tal favor? Sem dúvida alguma, o verdadeiro
penitente; porque pela confissão sincera todos os seus pecados ficam lavados, apagados; sua
consciência torna-se pura e bela; desaparece toda amargura; retorna à sua alma a tranquilidade;
reaviva-se a esperança e fica inundado de alegria. Depois do batismo, não há outro remédio, outro
refúgio, outro caminho de regeneração que a confissão. Tenha, pois, a alma a compunção no
coração, a verdadeira confissão nos lábios; seja discreta na mortificação da carne, diligente na
extirpação dos vícios, e reduza todas as suas complacências em bem proceder.

Não vos envergonheis de confessar vossos pecados a Deus, para quem nada há de oculto; porque Ele
conhece os mais secretos recônditos do nosso coração; diante Dele tudo aparece desnudo e
manifesto; todos os nossos pecados estão escritos diante de seus olhos. Todas as nossas
transgressões estão escritas, é verdade; mas todas são apagadas por uma boa confissão.

Não vos envergonheis de dizê-lo o que não vos envergonhastes de fazer. Se vós tendes vergonha de
confessar vossos pecados a mim apenas, que sou pecador, o que vos acontecerá no dia do juízo,
quando vossa consciência apareça transparente e diáfana diante de todos? Se vós tivésseis de passar
com o corpo descoberto diante de uma multidão de pessoas, experimentaríeis sem dúvida
grandíssima confusão; e há de ser menor vossa vergonha, por ter manchado vossa alma com
pensamentos impuros? Por que há de enrubescer-vos menos a vergonha do coração do que a do
corpo? Por que havereis de temer mais o olhar dos homens que o olhar dos anjos?

Certamente tal confusão afasta de Deus. Mas toda esperança de perdão e de misericórdia estão na
verdadeira confissão. Digo verdadeira confissão porque a confissão simulada não é confissão, mas
sim dupla confusão. Com efeito, a ocultação da miséria, isto é, a vergonha de confessá-la ou a
vontade de encobri-la, de mantê-la oculta, exclui, afasta a misericórdia divina, e não somos dignos de
obtê-la quando presumimos de nossa própria miséria. Ao contrário: a humilde e franca confissão de
nossa miséria, provoca, atrai a misericórdia, e não existe pecado, por grave que seja que não possa
ser perdoado pela confissão.

Manifestai, pois, sem tardar e francamente os vícios de vosso coração e vossos maus pensamentos,
porque o pecado confessado é imediatamente destruído. O vício descoberto muda de grande em
pequeno; mas o vício oculto, de pequeno se faz grande; a confissão imediata é remédio enérgico
eficaz. E muito mais fácil é evitar o vício que corrigi-lo, porque uma vez nele incorrido, não está já em
vossa mão detê-lo e corrigi-lo quando o queirais.

24. Grande remédio contra a impureza é pensar nos tormentos e opróbrios sofridos por Jesus
Cristo, e no dia do juízo

Se fordes importunados por pensamentos impuros, se sentíeis que vossa carne, vossos sentidos vos
arrastam à deleitação ilícita, pensai no momento da Paixão do Salvador; representai-vos, ponhais-vos
Jesus Cristo morrendo na cruz por vós, diante dos olhos de vosso espírito.

Recordai como foi traído por Judas, entregue em poder dos Judeus, maltratado, blasfemado,
esbofeteado, julgado iniquamente, condenado, flagelado, despojado de suas vestimentas e, por
último, cumulado de injúrias e opróbrios, coroado de espinhos, estendido sobre o madeiro da cruz,
preso a ele com três cravos, elevado assim entre dois facínoras; foi-lhe dado beber fel e vinagre,

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traspassado seu peito com uma lança, derramado todo seu sangue e inclinada a cabeça para expirar.
Desta maneira morre por vós vosso Redentor e ainda ousais manchar a alma com pensamentos
obscenos, com prazeres imundos! A consideração da Paixão de Jesus Cristo basta, sem dúvida, para
arrancar da alma todo pensamento criminoso; mas existe outro remédio, igualmente poderoso para
conseguir o mesmo efeito: a lembrança da morte e do juízo que a ela segue imediatamente.

Imaginai-vos que vos encontreis no leito de morte, aonde, depois de cruéis dores, provenientes da
enfermidade; entre profundos suspiros e amargos soluços entregais por fim vossa alma a Deus,
morreis. Representai-vos o vosso corpo horrivelmente pálido, tornado pasto de vermes e exalando
infecta fetidez. Vedes como uma legião de horrendos demônios vos rodeia, esperando que vossa
alma se separe do corpo, para agarrá-la e arrastá-la consigo ao fogo eterno? Quem a defenderá
contra esses leões rugindo, dispostos a devorá-la? Pensai em vosso último dia e tenhais em conta
que este pode chegar de improviso, como ladrão: pensai que ele se aproxima; que seja talvez o dia
de hoje. Vais comparecer no tremendo juízo, sereis acusados, não de uma falta apenas, mas de
inumeráveis faltas; não de faltas pequenas, mas de enormes pecados; não de delitos duvidosos, mas
de delitos incontestáveis. A acusação não será curta, mas tão longa como vossa vida; não tereis
somente um fiscal, mas tantos acusadores como homens e anjos que conheçam vossos pecados. O
Juiz supremo será também acusador severo, e todos os anjos, bons e maus, vos acusarão com Ele: os
bons, porque são fiéis e submissos a Deus; os maus porque terão considerado Vossas iniquidades
para apresentá-las neste momento. Vossos delitos ficarão patentes, e muitos pecados, que hoje não
conheceis, aparecerão então aos vossos olhos, mais terríveis talvez que aqueles por vós conhecidos.
Invadir-vos-á uma terrível angústia: de um lado, vossos pecados; de outro, a tremenda justiça de
Deus; sob vossos pés, o abismo horroroso do inferno, sobre vossas cabeças, o Juiz supremo
terrivelmente irado; em vosso interior, os remorsos da consciência; fora de vós, um abismo de fogo.
Se, então, o justo dificilmente se salvará, que será do pecador? Ocultar-se, impossível; o
comparecimento, intolerável. Atormentado, acusado por sua própria consciência, será o homem juiz
e acusador de si mesmo. E depois que tenha permanecido longo tempo em indizíveis angústias, o
supremo Juiz, aos olhos do qual nada há de oculto, ratificando o testemunho daquela consciência
culpável, pronuncia sentença firme, inapelável e irrevogável, à qual seguirão no mesmo momento
tormentos horríveis, que não terão fim, nem remissão, nem diminuição; e o que será ainda mais
cruel que todos os tormentos, é a proibição de jamais ver a Deus, a privação perpétua de todos os
bens que tão facilmente pode a alma assegurar-se para sempre.

Pensai nisto amiúde, se quereis arrancar de vossa mente todos os maus pensamentos; porque ali
onde estejam vossos afetos, estará também vosso pensamento; onde esteja vosso desejo, estará
vosso coração, isto é, o que for objeto de vosso amor, de vossa afeição, ocupará incessantemente
vosso espírito, encontrar-se-á sempre em vosso pensamento.

25. Os bons pensamentos atraem o Espírito Santo, os maus o afugentam

Cada um recai em seus próprios pensamentos, onde permanece firme. Se tiveres bons pensamentos,
o Espírito Santo vos visitará e guardará; mas, se os tiverdes maus, o Espírito Santo se afastará de vós,
porque pensamentos carecem de entendimento, são a morte da inteligência, e o templo de Deus se
transformará em antro do demônio, porque este ocupa imediatamente o que Deus abandona.

O Espírito Santo inspira bons e gratos pensamentos, espírito maligno sugere pensamentos maus,
amargos, vãos, inúteis e desonestos. Assim, pois, quando um pensamento se apresente a vossa

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mente, não consintais nele, não lhe deixeis entrar, rejeitai-os prontamente. Se desde o primeiro
momento vos empenhais rejeitá-los, afastar-se-á de em imediato. Aos olhos de Deus, os
pensamentos não acontecem em vão, e não há momento algum no qual não possa nossa alma
contrair mérito.

O mau pensamento produz a deleitação, a deleitação o consentimento, o consentimento a ação, a


má operação; a ação produz o hábito, a necessidade, e a necessidade a morte. Assim como os
filhotes da víbora que foram concebidos em seu ventre acabam por se afastar do seio de sua mãe e
matá-la, assim também os maus pensamentos, se os abrigamos em nossa alma, acabam por matá-la.
Os demônios nos sugerem maus pensamentos. Mas nós podemos e devemos arrancá-los
imediatamente. Se entrarem e se alojarem em nosso espírito, foi porque nós o permitimos, e isto é
exatamente o que constitui a falta. Quem cai, por sua própria vontade cai; aquele que se mantém
firme, assim se mantém por vontade de Deus. No entanto, o pensamento desonesto não mancha a
alma apenas por se apresentar a ela, mas quando a subjuga pela deleitação, isto é, quando a
alma nele consente.

26. Como o orgulho é fonte de todos os males e a humildade o é de todos os bens

O orgulho, origem de todos os pecados, é também a ruína de todas as virtudes. O orgulho é o


primeiro, o principal vício que nos arrasta ao pecado e o último que, para nos dar combate,
permanece no campo de batalha. Primeiro debilita, abate a alma pelo pecado; depois a derruba pela
ruína das virtudes. É, pois, o mais funesto de todos os vícios, porque esteriliza a alma humana com os
demais vícios que traz a ela, e com a ausência das virtudes, que nela mata. Os demais vícios atacam
apenas às virtudes que lhes são contrárias, como a luxúria ataca a castidade, a cólera a paciência;
mas o orgulho ataca todas as virtudes ao mesmo tempo e a todas corrompe como uma geral
e pestilenta enfermidade. É necessário, pois, que a humildade informe todas nossas ações, que as
acompanhe e as corrija; que esteja continuamente diante dos olhos da alma, para que esta não a
perca de vista; ao lado e por cima de nós como regra, guia e repressão; porque sem ela, o orgulho
nos arrebatará da mão de todas as virtudes. Se o orgulho impera e domina em nós, seja qual for o
bem que façamos, nada valerá diante do soberano veredito da consciência. Sim, indubitavelmente:
tudo de bom que tenhamos feito será perdido, se cuidadosamente não for guardado pela
humildade.

Eis aqui os sinais principais do orgulho: palavra altaneira, amargura no silêncio, dissolução na alegria,
furor na tristeza; honestidade na imagem, na aparência do bem, mas desonestidade nas ações, e por
último, rancor, ódio nas repreensões.

27. A repreensão ao próximo deve ser suave e secreta entre ele e nós

A inveja é o câncer da alma, que se devora a si mesma, isto é, com seu ardor pestilento a inveja
devora o sentimento, o coração do homem e tudo de bom que nele há.

O invejoso converte em pecado, em suplício próprio o bem-estar alheio, já que este bem-estar é o
que excita a sua inveja. Quando nos encontremos com um pecador, guardemo- nos de julgá-lo com
ligeireza, e compadeçamo- nos sinceramente, porque nós caímos em seus mesmos pecados, ou
podemos realmente neles cair. Se quisermos corrigir pecador, repreendemo-los abertamente, com

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franqueza, mas não o mordamos em segredo. Se vós dais a conhecer meus defeitos aos outros
sem que eu o saiba, que proveito eu alcançarei com isso? Desgraçado o que descuida a correção de
sua vida e se ocupa em falar mal dos outros!

Se sentis inclinado à detração, considerai vossos próprios pecados, não os alheios. Porque jamais dirá
mal dos outros, aquele que olha a si mesmo. Não mancheis vossa boca falando mal de outro e não
murmureis do pecador, antes compadeçais dele sinceramente; porque a detração é grave pecado, e
não esqueceis que os que escutam o maledicente, com ele pecam. Já que vós irritais contra o
próximo quando de vós fala mal, irritai-vos contra vós mesmos quando digais mal do próximo;
porque a detração é mais mortificante que a verdadeira repreensão. Aquela provém da boca, esta
do coração.

28. Como a curiosidade e a ociosidade matam a alma

A curiosidade engana e perde muitas almas. Enquanto considerais atentamente os pecados alheios,
ignorais os próprios e desatendeis vossa consciência; quem se considera a si mesmo, não busca o
que possa repreender no próximo, mas o que em sua pessoa deve corrigir e chorar.

Jamais desejeis saber o que os homens dizem entre si; evitai todo tipo de mentira, nada digais que
não seja verdade, nem consciente nem inconscientemente, porque a língua que mente dá morte à
alma.

Tende horror às palavras desonestas, e nunca digais nada que não possa edificar a quem vos escute.
Porque as palavras vãs, obscenas, mancham a alma, e de bom grado, facilmente se faz o que se
escuta com complacência. A vaidade da linguagem revela a vaidade da consciência, e a língua
demonstra o que está no coração, conforme diz o axioma: Fala e te direi o que és. Tal como se
manifesta o homem pela palavra, tal é em seu interior, em sua alma, porque sua língua fala da
abundância do coração. Seremos julgados por nossas vãs palavras, porque os que discorrem em vão
perdem toda a firmeza da retidão.

Quem não ambiciona ser elogiado não sente as injúrias. Aprendei a conhecer-vos, a julgar-vos a vós
mesmos; ninguém melhor do que nós mesmos para saber o que somos, porque nossa consciência o
diz. Se fordes culpáveis que vantagem vós alcançareis em que vos louvem e elogiem como bons?
Esforçais-vos em ser tais como quiséreis ser considerados, e se sois modesto, vos estimareis no que
realmente sejais, e nada mais. Limitai-vos a falar, não o que é permitido, mas o que é necessário.
Quem não se abstém de palavras ociosas, está em grande perigo de chegar a palavras prejudiciais.

Grande virtude é não ofender aquele que nos ofendeu, e grande glória perdoar a quem poderíamos
castigar. Perdoar aquele ao qual venceu é a mais nobre das vinganças. Pensai que toda contrariedade
que vos aconteça procede de vossos pecados. Dulcificai, pois, vossa dor dizendo-vos: Pequeno
castigo é este para tantos pecados que cometi. Domai com vossa bondade a malícia alheia; derrubai
os erros dos vossos detratores dissimulando-os, não tendo jamais o trabalho de certificar-vos do mal
que digam de vós ou de outra pessoa, ainda que vos pareça que não dizem a verdade. Não sejais
infiéis na paz, nem volúveis na amizade. Oferecei a paz aos que vos aborreçam e procurai a concórdia
entre os discordantes.

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29. Quão difícil é sondar a profundidade da consciência humana

Abismo profundo é a consciência do homem. E como o abismo não pode ser medido nem esvaziado,
tampouco pode esvaziar-se o coração do homem de tantos pensamentos que incessantemente lhe
percorrem com mobilidade vertiginosa.

O coração humano é um vasto mar no fundo do qual habitam uma multidão de serpentes e de
animais venenosos; e assim como a serpente penetra sigilosamente em um lugar qualquer,
arrastando-se pela terra, assim também pensamentos venenosos entram nа consciência humana e
saem dela de modo tal que o homem não percebe nem de onde vem, nem para onde vão. Bem
conhecia isto aquele que disse: O coração do homem é perverso, não pode ser sondado; quem o
conhecerá? Ninguém, certamente, senão Deus; porque não podendo ser sondado, não pode ser
conhecido.

Nenhuma pena é mais pesada que a má consciência, à qual arrastam de um lado a outro seus
próprios estímulos. Que importa que o mundo não vos acuse, se vossa própria consciência vos
condena? Porque ninguém pode fugir de si mesmo. Quereis não estar jamais triste? Vivei bem: a
alegria é companheira inseparável da vida ordenada, mas a consciência do pecador está
atormentada continuamente. Sejais tão piedosos com os defeitos alheios como com os vossos
próprios; não julgueis a ninguém mais severamente que a vós mesmos, antes o

contrário: julgueis ao próximo como quiséreis ser julgados. Não condeneis a ninguém diante do
verdadeiro juiz, diante de Deus, mas esperai as provas, e então podereis julgar - a lei assim o ordena -
e como julgareis ao próximo, assim sereis julgados. Porque nem todo acusado é culpável, senão
apenas o que pelas provas é convicto de culpa. É perigoso julgar a quem quer que seja por simples
suspeitas, e nas coisas duvidosas, reservai a sentença para o juízo de Deus.

Nem escolheis pessoa, nem a excetueis em vossa misericórdia, não seja que rejeiteis a quem mereça
ser recebido; antes, concedei-la a todos, se podeis, porque não vos é possível saber quem é mais
grato a Deus. Que vossa benevolência seja maior que a coisa que dais, porque vossa obra será tal,
qual tenha sido a vossa intenção. Aquele, pois, que com displicência, com tristeza, estende a mão ao
desgraçado, perde o fruto da remuneração, porque não existe misericórdia onde falta a
benevolência.

E não desnudeis a um para vestir a outro; porque se dais a este o que daquele tivéreis tirado, de que
vos servirá o dar? Qual será vosso mérito?

Afasteis para bem longe tudo o que possa obstar vossos bons propósitos, e na vida não façais caso
algum de algo que não possais conservar depois da morte. Porque é difícil, quase impossível, que
uma pessoa goze dos bens presentes e dos futuros; que aqui embaixo veja satisfeito, cheio seu
ventre, e no céu sua alma; que passe das delícias desta vida às delicias da outra e que apareça
igualmente gloriosa na terra e no céu.

Se, pois, quereis viver na alegria espiritual, não vos alieis às coisas temporais; porque, quando
termine esta vida, não ficará a cada um mais do que tenha merecido seus próprios méritos. E quanto
mais nos aferremos aos gozos daqui debaixo, outro tanto nos afastaremos do amor das coisas do
alto. Penseis constantemente em vós mesmos, e estejais dispostos a não ser jamais colhidos de
improviso, porque não sabeis o que pode acontecer, e tudo pode acontecer; evitai o buraco em que
em vossa presença vosso próximo caiu e que a perdição dos outros vos sirva de exemplo e
salvaguarda. A morte chega logo, não sabemos quando, já que não podemos saber o que aconteceria

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hoje mesmo: quem sabe se nesta mesma noite a morte separará a alma de vosso corpo. A cada dia
marchamos para o nosso fim e nos aproximamos da morte, devemos, pois, pensar na coisa a qual
nos encaminhamos sem cessar. Por isso disse o Senhor pela boca de seu profeta: "A perdição, ó
Israel, depende unicamente de ti; mas em Mim está o socorro". Isto é, se pereceis, não deves
imputá-lo mais que a ti mesmo; se te salvas, imputá-lo a meu socorro.

Jamais creia o penitente em segurança, porque a segurança produz negligência e traz muitas vezes a
alma imprudente novamente aos vícios passados. É necessário evitar, não apenas os pecados graves,
mas também os leves, porque muitos pecados pequenos, ainda que por si mesmos não formem um
pecado mortal, não obstante dispõe a alma para cair no pecado mortal.

E quanto aos que têm a felicidade de perseverar castos e puros, é indubitável que serão
semelhantes, iguais aos anjos de Deus.

30. Como o demônio tenta o homem por onde o encontra mais débil

O diabo, antes de tentar o homem, examina bem a natureza de cada um; depois o ataca pelo lado
mais débil, pelo lado mais inclinado ao pecado. Assim às almas dóceis, afáveis, agradáveis, lhes
propõe, e chega muitas vezes a oferecer-lhes a luxúria e a vanglória, e às almas ásperas, duras, a
cólera, o orgulho ou a crueldade.

Quando o inimigo se vê repelido em seu ataque, por ineficácia da sensualidade exterior, que
empregou como arma, concentra suas forças e nos assalta para penetrar em nosso interior. Mas o
homem espiritual, que julga conscienciosamente as coisas, conhece bem as astúcias do demônio,
reprime o que pode, com que não consegue reprimir, sustenta e defende; e enquanto mantém os
ladridos do cão, está seguro de que este não o morderá. O cão pode cansar a quem o resista, mas
não o vencerá, se este não consente nisso.

31. A oração deve ser feita com profunda humildade e conhecimento de si mesmo

A oração é a devoção da alma, isto é, a direção da alma para Deus por um sentimento humilde e
piedoso; humilde, pela consciência de nossa própria pequenez; piedoso, pela consideração da
clemência divina; e Deus mostra-se tanto mais inclinado à misericórdia, quanto mais à alma de quem
o peça se dirija a Ele com o mais devoto afeto; porque nada há de tão poderoso diante de Deus como
o afeto puro da alma.

Quando quiserdes orar, entrai na solidão de vosso coração, e assim, recolhendo todo vosso espírito,
livre de todo cuidado, de toda solicitude, penetrai na casa de oração e colocando-vos na presença de
Deus, perto de algum altar, com o fervor e as instâncias da oração, elevai vossos olhos ao céu, e até
mais além do céu; detende-vos diante dos coros dos espíritos celestes, e ali, na presença deles,
chorai todas vossas necessidades; pedes sua piedosa assistência, cheio de confiança nas palavras
daquele que disse: Pedi e recebereis; perseverai na súplica e chamai; não vos ireis de mãos vazias.

Quando orardes, fazei-o como se tivéreis sido arrebatado, transportado diante da majestade de Deus
sentado em seu trono, rodeado de milhões de anjos, incessantemente ocupados em servi-lo, em
fazer sua vontade. Só oramos realmente, quando o fazemos sem nenhum pensamento alheio à

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oração. Devemos orar sem intermissão, porque, não havendo momento algum, por pequeno que
seja, em que não experimentemos os efeitos da misericórdia e da bondade de Deus, devemos a cada
instante pensar n'Ele e tê-Lo presente em nossa alma. Ditoso é aquele que, dominando as
divagações todas de seu espírito, fixa e concentra todos seus desejos na fonte da verdadeira bem-
aventurança! Quando rezemos, invoquemos o Espírito Santo, para que se digne vir a nós e estar
conosco. E a oração não deve proceder apenas dos lábios, mas do coração; porque Deus não atende
só as palavras, mas o coração de quem lhe pede.

Quereis aumentar vossas virtudes? Ocultai-as, não as manifesteis; o que perderíeis revelando-as, o
ganhareis calando-as.

A alguns só lhes é concedido fazer o bem, sem gozar do fruto de suas boas obras, porque o perdem
eles próprios, elogiando diante dos outros suas boas ações. Como o gelo se funde, se dissolve pelo
calor, a virtude parece que se vai pela boca do que a si mesmo se louva.

32. Quão difícil é resistir aos pensamentos vãos durante a oração

Quando tento fechar-me, isolar-me em meu coração, um tropel de desejos carnais, a multidão de
meus vícios, com suas tentações, invade, mancha meu espírito e turba a intenção do coração na
oração. Quando, depois do pecado, me esforço para orar, em converter-me a Deus contra os vícios, a
lembrança dos pecados cometidos apresenta-se à minha imaginação, fere, fadiga o olho do
espírito, introduz a confusão em minha pobre alma, perturba minha oração. Mas sei que quanto
mais atormentado sou desta lembrança, destes pensamentos carnais, mais firme e fervoroso devo
manter-me na oração. Meus rogos, meus gemidos não devem cessar de ferir, de importunar os
ouvidos misericordiosos do Senhor, até que a mão do santo desejo consiga dissipar todos esses maus
pensamentos, afastá-los dos olhos do coração. A verdadeira tranquilidade é obtida quando a alma se
recolhe completamente em si mesma e se concentra firmemente tão somente no desejo da
eternidade; quando reúne todos os impulsos do coração, todos os movimentos do pensamento e do
afeto no exclusivo desejo do verdadeiro gozo.

33. É grave pecado não querer, nem saber colocar freio à língua

Estupidez é falar muito, porque o pecado se introduz entre a multidão de palavras. A língua chama-
se assim, língua, porque lambe. Lambe com a adulação, elogiando, procurando agradar; mas, por
outro lado, morde com a detração, falando mal do próximo, e às vezes mata com a mentira. Liga e
não pode ser ligada; discorre, escapa-se, engana, e não pode ser detida. A língua desliza-se como a
enguia, penetra como o dardo, separa os amigos, multiplica os inimigos, excita os risos e as burlas,
semeia as discórdias e de um só golpe pode ferir e matar muitas pessoas. Adula e engana; é pródiga
e sempre disposta a dizer o bem e o mal. Quem guarda sua língua, guarda sua alma, porque a vida e
a morte estão em poder da língua. Quem não pode por freio à sua língua e ao seu ventre não será
bom monge, nem bom religioso, nem bom cristão.

Todo aquele que comete um pecado deve sofrer a pena correspondente; e o pecado é tanto maior,
quanto maior tenha sido a virtude de quem o cometeu.

Por aquela coisa pela qual pecaste, por ela mesma sereis atormentado: Per quae quis peccaverit, per
haec et penietur; assim, se concedestes à carne, pela carne sereis flagelado. O pecado não está nas

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coisas, mas no uso que delas se faz, ou melhor, no abuso. Muitas vezes, a leitura prolongada,
debilita, destrói a memória daquele que lê, porque abusou.

34. As riquezas, o juramento, a alegria, a humildade e as enfermidades

As riquezas não prejudicam o rico se delas faz bom uso, como a pobreza não é recomendável ao
pobre se, em sua pobreza, não evita as manchas do pecado.

Qualquer que seja o artifício de palavras com as quais se jure, Deus, que é testemunha da
consciência, recebe o juramento como compreendeu aquele que jurou; e quem jura com falsidade é
duplamente culpável, porque toma o nome de Deus em vão e porque engana a seu próximo.

Deus permite sempre que sejam castigados aqui embaixo os que Ele predestina para a salvação
eterna. A alegria do coração é a vida do homem; mas o coração corrompido estará triste, e a tristeza
afasta o homem do bem. A humildade não se irrita, nem permite que os outros se irritem. A
humildade consiste nisto: quando teu irmão tenha pecado contra ti, perdoa-o, antes ainda de que
ele se arrependa de ter pecado. Cada qual receberá de Deus a mesma indulgência que tenha usado
com o próximo que contra ele pecar, e inutilmente pedirá a Deus que o perdoe quem recuse
reconciliar-se prontamente com seu próximo.

Não vos aflijais com vossas enfermidades, mas rogai a Deus, que Ele vos curará. Deus não sempre
escuta os homens segundo a vontade e os desejos destes, mas os escuta infalivelmente para seu
bem espiritual, para sua salvação. Duas coisas podem impedir o efeito da oração: nossos pecados e a
negativa do perdão aos que nos ofenderam.

35. A humildade consiste principalmente em três coisas

Há verdadeira confissão, verdadeira penitência quando o homem se arrepende de ter pecado, com o
firme propósito de não voltar a pecar. Nada é pior do que conhecer a própria falta e não a chorar. Se
vosso perseguidor se faz mais cruel convosco, sabei que foi vencido, dominado pelo demônio
antecessor seu. Porque todo homem que persegue a outro em seu corpo, sofre ele mesmo
perseguição em seu coração. A humildade consiste em três coisas ou em uma tripla consideração, a
saber: que o homem considere o que foi antes de seu nascimento, o que é desde seu nascimento até
a morte e o que será depois desta vida.

Como poderá o orgulho levantar-se no homem que considere e reconheça que não foi mais que uma
vil semente, um pouco de sangue reunido no ventre de sua mãe; que depois, na indigência desta
vida, está sujeito a todas as misérias e ao pecado, e que bem pronto não há de ser senão cinza e pó,
alimento de vermes? Por que te orgulhar, homem, tu cuja concepção é uma falta, o nascimento uma
pena, a vida uma fadiga, a morte uma necessidade, sem que possas saber quando nem como
morrerá?

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36. Quão necessário é o exame contínuo dos próprios defeitos, a quem quer agradar a Deus

Entrarei na solidão de meu coração e conversarei com ele; o interrogarei a respeito de si mesmo e
das coisas que estão ao seu redor: pobre coração, tão vão, tão volúvel, que busca o repouso onde
não pode encontrá-lo, porque o busca onde não está. Sim, eu busquei o repouso em todas as coisas
visíveis e não pude encontrá-lo. Depois, voltado a mim mesmo, não pude permanecer fixo, firme,
porque meu espírito é ligeiro em demasia, muito inconstante, excessivamente variável: quer e não
quer, muda de resolução e de vontade, parece uma folha que o vento agita e arrasta.

Meus vãos pensamentos levam-me às praças públicas, às festas, aos desvarios da voluptuosidade.
Minha carne está abrasada pela deleitação, pelo fogo da concupiscência, e meu espírito manchado
por imundos pensamentos; faço vãos esforços para evitar minha profunda confusão, e quando
cuidadosamente me examino, não posso suportar-me a mim mesmo, porque não há hora alguma,
momento algum em que não tenha a desgraça de ofender meu Criador, de uma maneira ou outra.
Quando, no exame diário, considero minha vida, não posso confessar todos os detestáveis germens
de vícios que em mim pululam.

Acabais de ouvir, meu Pai, todas as minhas abominações, e sabei, além disso, que nos secretos
recônditos do meu coração permanece uma infinidade de iniquidades ocultas, que me envergonho
de dar a conhecer por uma verdadeira confissão. Dignai-vos, pois, dar-me algum conselho do alto e
dizer-me o que devo fazer.

37. Não deve o homem envergonhar-se de confessar seus pecados, se quiser obter deles o perdão

Meu filho: quando deixas que teu espírito errante corra atrás de maus e desonestos pensamentos,
preparas a entrada em teu interior de espíritos mentirosos, para que te tentem, e o Espírito Santo,
que nos ilumina, se afasta de teus pensamentos, porque carecem de inteligência, e tem horror de
tua falsidade, porque, mostrando-te desejoso de ser bom, não o és jamais. Enquanto teu espírito
volúvel, inquieto, agitado por incessantes desejos, não se esforce em apreender o que deseja, nunca
terás sossego. É necessário, pois, que fixes firmemente, irrevogavelmente teu pensamento em um só
desejo, no desejo da eternidade.

E não te envergonhes de confessar teus pecados, porque a confissão a todos lava, e nenhum pecado
é perdoado se não é confessado. Continua, pois, confessando-os todos e se desejas chegar à
santidade perfeita, esforça-te em desprender-te de tudo quanto pesa sobre tua consciência por uma
confissão pura; porque o veneno dos vícios, se não é completamente repelido, corrompe primeiro o
interior, se infiltra depois pelo exterior e gangrena o corpo inteiro.

38. Como a carne nos excita sem cessar a que dela cuidemo-nos

Meu pai, que não abominais de vosso Egito, isto é, de mim, discípulo cheio de confusão por meus
pecados, mas, ao contrário, me ajudais e iluminais, vos manifestarei não apenas os pecados de atos
que cometi, mas também os de pensamentos em que incorri. Ouvi, pois, meu pai, todas as minhas
misérias.

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Uma multidão de pensamentos, de afetos e de desejos se levanta frequentemente em mim e me
solicita ao cuidado do corpo, me faz considerar muitas coisas como indispensáveis à natureza, como
tributos incontestáveis da necessidade. Grande golpe de vãos e enganadores conselheiros que se
reúnem em meu espírito, nele celebram conselho, e, sob a aparência do bem, me aconselham coisas
que não são senão vaidade: dizem-me que meu cuide, que descanse por mais tempo do que dedico
ao repouso, e tome maior quantidade de alimento do que ordinariamente tomo; indicam-me que me
abstenha das vigílias, para dormir mais; que de maior recreio ao corpo, para que este não se debilite,
que relaxe algo na abstinência e que descanse. Nestas vãs questões, todas pertinentes ao corpo,
passo com frequência longas horas.

39. Como os maus hábitos se transformam em segunda natureza e escravizam o homem

Meu filho: quem não resiste aos desejos da carne, e é negligente em reprimir, em anular os maus
impulsos de seu coração, deixando-se aprisionar por maus hábitos, acaba por não poder resisti-los
ainda que queira.

Sempre que sintas que esses maus conselheiros se reúnem em ti, guarda-te de escutá-los, antes
arranca os imediatamente e recorre à oração, ao exercício corporal e, sobretudo, à santa meditação,
perseverando em tais exercícios até que conheças que esses conselheiros maus se tenham
ido, se tenham desvanecido. Olha Jesus Cristo na cruz; considera como, aonde e quando morrerás;
coloca diante de tua alma o terrível tribunal do Juiz inexorável; desce até os mesmos infernos e
considera ali como são castigadas as almas por seus pecados: este é o remédio mais eficaz contra os
pensamentos impuros e desonestos.

40. É preciso combater a gula, estar sempre armando contra ela

A gula, meu filho, te combate sem cessar e terás de resisti-la com firmeza; do contrário, te fará pecar
a cada passo; comas ou bebas, te assaltará rudemente para fazer-te sucumbir.

Se não lutas bravamente, serás vencido; porque contra a gula são muitos os que lutam; poucos são
os vencedores. E tu deves combatê-la com tanto mais esforço, quanto manifestamente saibas que
ela deve mais ser combatida e vencida. E como não podes chegar ao conhecimento de Deus senão
pelo conhecimento de ti mesmo, examina com sumo cuidado se existe algo oculto em ti que possa
desagradar a Deus. Não se consegue ver a Deus senão tendo um coração puro, e o coração não pode
estar alegre e gozoso enquanto não for purificado de toda mancha de pecado.

41. Não se deve dividir a confissão, e nada deve ser ocultado nela por vergonha

Muitas coisas ainda tenho que vos dizer, meu pai; mas me dá vergonha confessá-las. No entanto,
como não posso ver a Deus senão através de uma confissão sincera, vos abrirei por completo
meu coração.

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Confesso que fui negligente no exame de meus pecados; que esqueci muitos deles, e que entre os
que eu conheço, existe aqueles os quais não declarei o número por causa de sua mesma multidão, e
de outros ocultei a fealdade: tal era minha vergonha. E daqueles que, bem ou mal, me confessei não
os chorei nem expiei dignamente, como se deve expiar e chorar os pecados antigos, os pecados
habituais. Além disso, os confessei a quem não devia fazê-lo, e os ocultei a quem devia confessá-los;
fiz ainda pior: procurei tirar vanglória minha da própria confissão. Desculpei pecados manifestos dos
quais estava plenamente convencido, e até procurei defendê-los. Por vezes, atenuei a falta por
vergonha da confissão, e assim fui acumulando pecados sobre pecados. Porque, a cada dia, faço o
propósito de corrigir minha vida, mas vou postergando de um dia para outro a correção, e o bem que
devo fazer não o faço jamais: sempre fica algo por fazer, vivo sempre no futuro.

Senhor, meu Deus: quanto tempo eu guardarei esta resolução de minha alma? Qual é a utilidade de
meu sangue, já que vivo sempre na corrupção. Não existe vício de que eu não tenha sido escravo e
todos disputam minha possessão. Mas o que mais encarniçadamente me persegue é o da inveja:
esta peste me atormenta em todo lugar e tempo. Dignai-vos, pois, meu pai, dar-me algum conselho
para que possa dela fugir.

42. É necessário, sobremaneira, fugir da inveja porque é uma peste para quem a possui

É necessário, meu filho, fugir resolutamente da inveja, porque este pecado ofende a Deus, prejudica
o próximo e aflige e atormenta o que dela está possuído.

Nada iguala a malícia e crueldade da inveja contra o próximo, ainda que não consiga ofendê-lo;
porque quase sempre este pecado exerce suas injúrias e satisfaz sua vingança sob o pretexto e
aparência de santidade. Assim, quando o invejoso se faz cruel pela cólera ou pelo próprio veneno da
inveja, sua paixão lhe cega até o extremo de fazê-lo acreditar falsamente que opera incentivado pelo
zelo da justiça. Aquele que é ofendido por seu próximo não pode vê-lo com bons olhos; tudo o que o
vê fazer desagrada-o e o acusa, sem cessar, tacitamente, em seu pensamento, e acredita ver, a cada
dia, novos motivos que lhe mostram sua culpa e que merece castigo; e este vício o cega até o ponto
de fazer-lhe crer que ofenderia a Deus se deixasse de corrigir gravemente seu próximo e repreendê-
lo por sua perversidade. O invejoso diz a si mesmo: até quando suportarei isso nesse homem? Se não
o corrijo, dou lugar a que pense que o aprovo, e com isto ofendo a Deus. Corrigi-lo-ei, pois, para não
ofender a Deus; pois não é que eu queira vingar a injúria que me fez, mas a que fez a Deus. Farei,
pois, que se arrependa de sua falta: corrigir e castigar o próximo, não é prejudicá-lo, mas, ao
contrário, é fazer-lhe um favor.

Assim raciocina, muitas vezes, invejoso, porque sua própria malícia o cegou: considera seu ódio amor
e a vingança de sua injúria justiça. Pretende servir a Deus satisfazendo seu próprio ódio. Estes
pensamentos malignos devem ser rejeitados tão logo se apresentem à alma.

É necessário também considerar, examinar amiúde nossa consciência, para saber o que devemos
corrigir, do que devemos dar graças a Deus e, por último, o que nos falta, o que queremos e
desejamos.

43. Quão prejudicial é a multiplicidade de vãos pensamentos

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Mais facilmente poderia eu contar os átomos do universo que os movimentos do meu coração. A
velocidade dos animais, dos pássaros, da própria luz não se iguala à velocidade de minhas volições e
impulsos. Meus desejos não reconhecem limites, ninguém pode compreender meus pensamentos.
Logo que desejo uma coisa já desejo outra, e não posso ter esta nem aquela; quando descanso,
quando não faço exercício corporal algum, meu errante pensamento passeia por diversos lugares.
Em hora alguma, em nenhum momento posso tê-lo tranquilo, porque, em um abrir e fechar de
olhos, percorro espaços imensos, crio novas criaturas e com a mesma facilidade as desfaço ou as
modifico de mil maneiras diferentes; agora desejo ter uma coisa, logo em seguida outra; assim que
desejo ser desta maneira, em seguida desejo ser de tal outra, como se Deus não tivesse querido dar-
me aquela coisa, como se não tivesse podido ou sabido fazer-me tal ou qual.

44. O homem se engana em seus pensamentos, e perde neles inutilmente muito tempo

Quem acertará em compreender e explicar o coração humano, órgão tão pequeno e que deseja
coisas tão grandes? Tão pequeno é, que quase não bastaria para satisfazer o mais diminuto dos
pássaros, o pássaro-mosca; no entanto, o mundo inteiro não o satisfaz. Ó, coração humano, quão
maravilhoso és! Percorres o universo em teus errantes movimentos; andas sem pés, trabalhas sem
mãos; não tens asas, e incessantemente voas; acumulas riquezas e és insaciável; preparas festins e
não comes. Pensas agora uma coisa, depois outra e tudo o que pensas é falso: aprende agora para
que te guardes de teus vãos pensamentos.

Em que pensas neste momento? No sol, em algum amigo, em ti mesmo talvez? Se o sol é um, esse
sol tem tempos e pontos fixos em sua corrida, e tu, com o pensamento, o colocas aonde queres;
logo, teu pensamento é falso. De teu amigo não sabes onde está, mas com o pensamento o colocas
aonde te agrada; logo, teu pensamento é falso. E quanto a ti mesmo, sentes, conheces que estás
neste lugar, no entanto, vais com o pensamento aonde queres; mas, neste momento não estás senão
aqui; logo não é verdade que estejas em outro lugar. Pois se todas estas coisas são falsas, jamais
penses nelas: concentra teu pensamento em Deus, que te criou, te redimiu, te elegeu para seu
serviço, há de julgar-te e salvar-te. Ó quantos, neste momento, conversam com Ele e o abraçam em si
mesmos! Tu, ao contrário, te satisfazes nas coisas que passam, que perecem, que não podem
permanecer contigo.

Considera quantas almas, surpreendidas pela morte - às quais Deus concedesse para fazer penitência
o tempo que a ti te concede - iriam prostrar-se ao pé dos altares, humilhar-se até o pó da terra, para
obter, com súplicas fervorosas, com suspiros e soluços, o perdão completo de seus pecados. Mas tu,
comendo e bebendo, divertindo-se e descansando, perde na ociosidade e na vaidade o tempo que
Deus te concedeu para conquistar e melhorar a glória. E já que o amor de Deus não pode te reter, te
converter a Ele e em seu amor, que te retenha o temor ao juízo, às chamas vingadoras, ao verme
roedor, ao enxofre ardente e fétido, a todos os males e às dores todas do inferno.

Examina-te novamente a ti mesmo, para que saibas o que te falta, para que no decisivo exame que
Deus há de fazer-te no dia do juízo, não sejas abrumado de confusão pelas iniquidades que em ti se
encontrem.

45. É grande virtude fixar bem o espírito e preservá-lo de vãos e ociosos pensamentos

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Não me é possível apreciar, explicar convenientemente esta mobilidade, esta incessante e infatigável
velocidade de meus pensamentos que agita meu espírito e lhe apresenta multidão de coisas de
variedade infinita. Não há hora nem momento em que possa usufruir do repouso; em um instante
atravesso espaços infinitos e tempos incomensuráveis. Passo velozmente de coisas elevadas a coisas
baixas, destas àquelas, das primeiras às últimas e das últimas às primeiras. Não posso determinar os
diversos modos com que me revisto a cada momento, as mutações que sofro, as perturbações de
que cada dia me sinto afligido. Por um instante renasce em mim a confiança; mas em seguida caio
outra vez na desconfiança; por um momento acredito-me fortalecido pela constância, e em seguida
sinto- me afligido pelo súbito temor; tanto me perturba a ira, como me acomete um grandissimo
furor. E o mais chocante é que em um só e único momento, sinto-me turbado, agitado por afecções
contrárias: o amor e o ódio, a alegria e a dor. Oh, quantas vezes passei dos maiores transportes de
júbilo a mais cruel das tristezas, e quantas vezes a mais solene festa de minha alma se transformou
no mais profundo dos abatimentos! O que por muito tempo amei, converteu-se de repente em
objeto de meu ódio, e o que vivamente e com grandes ânsias desejara o detestei como abominação.
Quem poderia contar a variedade de meus afetos? Quem explicaria os inúmeros modos de minhas
variações? Tanto quanto é a variedade de formas nas coisas físicas, assim é a volubilidade de meus
afetos.

46. É excelente exercício para a alma considerar sua própria dignidade e o fim para que foi

criada

Assim

como

0 homem, por sua dignidade, sua forma, suas faculdades e poder está muito acima de todos os
animais, assim também, a melhor das ciências é a ciência do homem, isto é, o conhecimento de si
mesmo. Abandona, pois, meu filho, todas as outras coisas, para investigar-te, examinar-te a ti mesmo
e permanecer firme nesta investigação e exame. Que teu pensamento comece por ti e termine em ti,
a fim de que não te distraias em vão em outras coisas, abandonando-te de ti mesmo. Em uma
palavra, não penses em nada que não seja em tua salvação; porque, tratando-se da salvação,
ninguém deve nos ser mais caro, mais parente próximo que nós mesmos. Se, pois, algum
pensamento estranho à salvação se apresenta em tua alma, dela afaste, rejeitando-o imediatamente,
a fim de que sempre possas sozinho considerar-te e elevar-te, do conhecimento de ti mesmo, ao
conhecimento de Deus.

O homem deve conhecer-se a si mesmo; deve conhecer a quais bens é naturalmente inclinado, a
quais males é propenso e a que tipo de estudos deve preferentemente aplicar-se; contra que vicios
deve vigiar com mais cuidado, e por quais exercícios pode mais facilmente progredir; a que faltas

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está sujeito, e por quais meios pode avançar e sustentar-se; que pena ou recompensa deve esperar, e
quanto progride ou retrocede a cada dia; por quais esforços de sua alma deve apagar os males
passados, evitar os presentes e prevenir os futuros; por qual constância de ânimo deve se aplicar
para recuperar bens perdidos, conservar OS e multiplicar os que possui. Esta é a discussão, o exame
absolutamente necessário. Oh, que maravilhosa especulação a de ter presentes as virtudes da alma,
tantos santos exercícios, estudos e méritos, e manter-se durante muito tempo em tão alta e
conveniente contemplação!

Afasta teu espírito, meu filho, das coisas daqui debaixo, temeroso de que, precipitado do alto, corra
atrás da concupiscência e se faça errante e fugitivo sobre a terra.

E finalmente, se desejas cumprir o mandato do Senhor, vigia com o maior cuidado os impulsos de teu
coração. Aquele que não cuida de seu espírito não pode sentir nem compreender o que diga respeito
ao espírito angélico, ao espírito de Deus; quem não conhece a si mesmo nada pode apreciar de
maneira sã, e o que não considere a dignidade de sua condição, não sabe a quantia de falsa glória
que sob seus pés amontoa. Guardião de teu próprio coração, se não és apto para entrar em ti
mesmo, como poderás entrar nas coisas que estão acima de ti? Se não és digno de entrar no
primeiro tabernáculo, como te ufanas merecedor de penetrar no segundo, que é o sancta
sanctorum? Se nem ainda podes seguir o Messias ou Moisés à montanha, como poderás entrar no
céu?

Volta, pois, a ti mesmo, tu que pretendes investigar as coisas que estão acima de ti, e imita o Sol, que
ilumina os confins de seu oriente antes de levantar-se sobre as regiões superiores de sua órbita. Sim,
interna-te em teu coração e aprende a conhecer tua alma. Examina, discute o que foi, o que devias
ser, o que poderás ser, isto é, o que foi por tua natureza, o que atualmente és por tua culpa, o que
devias ser pela virtude, e o que ainda poderás pela graça. Aprende pelo ser conhecimento de teu
espírito, a apreciar os outros espíritos. Essa é a entrada, a porta por onde se ingressa ao
conhecimento das coisas últimas, a escada pela qual se ascende às coisas sublimes, celestes.

Vê quão necessário é para o homem o conhecimento de si mesmo: através dele se torna melhor e
chega ao conhecimento das coisas celestes, terrestres e infernais.

47. É necessária grande força moral para bem julgar-se a si mesmo, por causa do amor próprio de
cada um

Quisera saber o que sou, mas quase não posso discernir a verdade no que me diz respeito, por tanto
me cegar o amor próprio e me tirar o reto juízo de mim mesmo! E, no entanto, tenho- me em pouca
conta; a ideia que de mim mesmo me formei é bem pequena: considero-me como homem
mentiroso e temo que a iniquidade se engane a si mesma se for eu mesmo meu próprio juiz. Que me
julgue, pois, Aquele diante do qual todas as coisas aparecem desnudas e claras, Aquele a quem não
posso enganar, porque é a sabedoria, porque está em todos os lugares; a quem eu não posso
corromper nem subornar porque é a própria justiça. Que venha a mim

Aquele que põe suas delícias em estar com os filhos dos homens; Aquele que chama e se mantém às
portas do coração e que está sempre disposto a nele entrar se lhe é aberto. Que entre, pois, e

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santifique seu santuário, porque apenas Ele é santo, e santa deve ser também sua morada. Que
extirpe os vícios, regule os pensamentos, cure os afetos, melhore e reforme os costumes. Que nada
lhe resista e reine a paz em sua casa. Oxalá nenhum homem esteja comigo, para que eu lhe possa
falar mais familiarmente em meu interior; porque é amante da solidão, busca os lugares secretos.
Fugirei, pois, da companhia e das ponderações dos homens a fim de poder possuir a Deus como
hóspede no retiro secreto de meu coração.

Bem difícil é separar a alma das coisas externas, trazê-la às interiores e nelas fixá-las. Não é menos
difícil passar das coisas visíveis às invisíveis e permanecer atento a estas por muito tempo. Estas
coisas são duras, fatigantes, mas frutuosas. Esforçar-me-ei, portanto, em pensar apenas nas coisas
íntimas, em apetecer apenas as coisas interiores e nelas perseverar, para poder escutar o que meu
Deus fala em mim.

Senhor cheio de bondade: eis me presente; vede que estou convosco no íntimo do meu coração.
Quanto tempo estive ocupado nas coisas de fora e não pude escutar vossa voz dentro de mim. Mas
já voltei a mim mesmo, reingressei em meu coração para poder vos ouvir e falar convosco. Falai,
pois, Deus de misericórdia, que vosso servidor vos escuta; falai que estou pronto para obedecer-vos
e cumprirei com gosto, devotamente, quanto me seja possível, o que vos digneis mandar-me. Alma
minha: o Rei dos anjos veio a nós e conosco habita, Regozijemo-nos de todo coração da visita de tão
excelso hóspede; tributemos-lhe toda honra e glória, pois se dignou visitar seus servidores.
Preparemos-lhe festins, e façamos que nossa alegria transborde. Gozemos de nosso Deus, e que
nada de estranho entre em nós para turbar nosso júbilo, para que Ele não se afaste de nós, cheio de
cólera e faça descer sobre nós sua maldição ao invés de sua benção.

E se não podemos pagar-lhe tudo quanto devemos, estarmos quites de todos os tributos de que lhe
somos devedores, sejamos, pelo menos, submissos à sua vontade. Que nenhum membro, nenhum
dever seja excluído deste regozijo. Reunamos todos nossos pensamentos, todos nossos afetos para
celebrar este dia, o dia da festa de toda pureza e de toda santidade. Que nada de estranho se
misture a ela e venha a turbar a alegria de tanta solenidade. Que meus olhos não cessem de olhar o
Senhor que me deu o ser, a vida e o saber: que não cessem de regar seus pés com minhas lágrimas.
Que meus ouvidos ouçam e compreendam o que lhe agrada e o que lhe desagrada em nós, o que Ele
aprova e o que condena. Que meu olfato se deleite no suave odor de sua mansidão: seu odor é o da
vida eterna, o odor de toda suavidade, de toda alegria. Que minha boca se encha de louvores, a fim
de que possa cantar tua glória, Senhor, cheio de majestade. Que a meditação de meu coração seja
sempre em tua presença, para que possa ver-te pela fé, pela contemplação, enquanto não mereça
ver-te face a face. Pai cheio de clemência: que nada em nós cesse de louvar-vos.

Alma minha: bendiz o Senhor, teu Deus e que tudo o que exista dentro de ti glorifique seu santo
nome. Assim seja. Glória, louvor e honra te sejam dados, Cristo, Rei e Redentor.

48. Como devemos reparar a imagem de Deus em nosso interior, para que Ele venha habitá-lo

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Se queres, alma minha, ser amada de Deus, reforma em ti sua imagem, e Ele te amará; repara e
embeleze em ti sua semelhança, e Ele te desejará. Porque, por conselho da Santíssima Trindade, teu
Criador te fez a sua imagem e semelhança, dom não concedido a nenhuma outra criatura, para que
lhe ames tanto mais ardentemente, quanto mais maravilhosamente conheças os dons de tua criação.

Considera, pois, tua nobreza; assim como Deus está em todo lugar, vivificando, movendo e
governando tudo: In ipso vivimus, movemur et sumus, diz São Paulo, também tu estás em todo teu
ser, em todas partes de teu corpo, vivificando-o, movendo-o e governando tudo em ti mesma.

E como Deus tem o ser, a vida, a sabedoria e a ciência por excelência, também tu, ainda saber. que
em menor grau, tens o ser, a vida e o

Assim como em Deus existem três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, também em ti existem
três potências: o entendimento, a vontade e a memória.

E como o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus, sem que, não obstante, sejam três
Deuses, mas um só Deus em três pessoas, assim também em ti, não obstante de ditas potências
diferentes, não há mais que uma só alma. É-nos ordenado amar a Deus com toda nossa alma, a
saber, com todas as três mais excelentes potências de nossa alma: com toda nossa inteligência, com
toda nossa vontade, com toda nossa memória. Não basta que o entendimento ame a Deus: é preciso
que também a vontade o ame; e o entendimento e a vontade não bastam: requer-se, além disso, o
amor da memória, pela qual Deus está presente no espírito do ser inteligente e volitivo. E como o
homem não pode passar nenhum momento sem usar da bondade e da misericórdia de Deus, justo é
que tampouco passe momento algum sem tê-lo presente na memória. 49. Como a alma, pela graça,
pode converter-se em pai e mãe de Jesus Cristo

Compreende tua dignidade, nobre criatura: não apenas foste selada com a imagem de Deus, mas
também foste embelezada à sua semelhança. E assim como aquele que te criou a sua semelhança é
todo caridade, bondade, justiça, suavidade, mansidão, paciência, misericórdia, porque encerra em si
todas as perfeições; do mesmo modo tu foste criada para ser pura, santa, bela e humilde, cheia de
caridade e de mansidão. Pelo que, quanto maior seja o número de virtudes que em ti brilhem, tanto
mais te aproximarás de Deus, mas te parecerás a teu Criador. O que pode fazer teu Criador maior e
mais belo que criar-te sua imagem e a semelhança, e revestir-se das próprias vestes de suas
virtudes? Considera, pois, com cuidado a excelência de tua condição, reconhece em ti a imagem
venerável da Trindade Beatíssima, esforça-te em reter e conservar a honra da semelhança divina,
segundo a qual foste criada, com a dignidade de teus costumes, o exercício das virtudes, a nobreza
do prêmio, a fim de que, quando se apresente aquele que é, possas mostrar-te semelhante a Ele;
porque os que são semelhantes se procuram, se atraem reciprocamente, e tal como tu te apresentes
a Deus, tal será Deus necessariamente para ti. Repara, pois, e restaura em ti tua primitiva beleza, tua
natural formosura, e o Rei celeste desejará tua presença; porque Ele é teu Deus, teu amigo, teu
esposo, teu irmão e teu filho, já que Ele mesmo disse: Todo aquele que faz a vontade de meu pai,
que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe.

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50. Pela contemplação e pelo amor de Deus está a alma continuamente suspensa na companhia dos
bem-aventurados

A alma santa, enamorada de verdadeiro esposo deve sempre seu desejar ardentemente, sobre todas
as coisas, a vinda de seu bem amado, estar sempre disposta a recebê- lo se chamar, a correr com
alegria ao seu encontro se ele se aproximar; porque é preciso, se chegar de repente, que não a
surpreenda despreparada, não adornada, e que tenha de passar pelo incômodo de esperar fora
longo tempo, à porta.

Uma coisa é entrar com Ele, outra coisa é sair ao seu encontro: neste último caso, a alma volta a si
mesma e entra com seu bem amado nos mais secretos aposentos de seu coração, depois, é
conduzida para fora de si mesma e se eleva a contemplar as coisas sublimes e celestes. Entrar é para
a alma concentrar-se inteira em si mesma; sair é distrair-se ela mesma no exterior.

Para a alma, coabitar com seu bem amado, gozar de suas doçuras, de suas carícias, não é mais que
esquecer todas as coisas exteriores para permanecer sozinha, com seu divino amante, inflamar-se de
amor por Ele pela consideração das coisas mais íntimas de seu coração, dar-lhe graças inúmeras
vezes por seus incessantes benefícios e oferecer-lhe o sacrifício de uma intima, profunda devoção
pelo perdão que recebeu. Seu bem amado é conduzido até os aposentos mais íntimos,
deliciosamente, quando o ama profundo e acima de todas as coisas. instalado com afeto Pensa no
objeto que, em vossa vida, vos encantou mais que nenhum outro, que excitou vossos vivos
transportes, que mais ardentemente tenhais amado e desejado; e considerai, se quando repousais
no amor a Jesus, sentis por Ele a mesma violência de afeto, a mesma abundância de deleitação, os
mesmos transportes de júbilo que haveis experimentado nas afeições estranhas, viciosas. Se ainda
não experimentais tudo isso, é que vosso amor é tíbio, não penetra, não remove ainda as partes mais
intimas de vosso coração. E supondo que sintais em vosso interior a mesma violência amorosa, e
ainda talvez maior violência por Deus, examinai ainda se não existe fora deste amor, algo que vos
comprazeis em pensar, em dele obter certo consolo. Porque enquanto possamos conceber alguma
consolação, algum gozo independente do amor divino, nosso bem amado Jesus Cristo, não possui
nosso coração todo inteiro.

Existem no coração humano, recantos tão íntimos, recônditos tão profundos e secretos, que quando
algum afeto amoroso consegue instalar-se neles, arraigar ali profundamente, nada pode desarraigar
nem tirar de tais esconderijos tal afeto. Certamente, se buscais ou recebeis outro consolo que não o
de Jesus, não amais ainda soberanamente vosso Deus, ainda que o ameis muito. Jesus não estará,
portanto, alojado, instalado no melhor e mais intimo de vosso coração. E se vos esforçais em
introduzi-lo ali, como podereis elevar-vos às coisas sublimes e celestes? Olhe, pois, toda alma,
qualquer que seja, como sinal certo de que não ama singularmente Jesus, ou de que é menos amada
por Ele, o não ter merecido ainda ser elevada aos transportes especulativos acima dela mesma.
Quereis saber como a elevação às revelações divinas é signo certo do amor de Deus? Escutai as
palavras de Jesus Cristo a seus Apóstolos: "Não vos chamarei já servos, mas amigos meus, porque
vos manifestei todas as coisas que aprendi de meu Pai". Esforça-te, pois, alma ditosa, em amar teu
Deus intimamente, soberanamente, e em aspirar com os mais vivos desejos ao júbilo da divina

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contemplação. Recolhe-te inteira em ti mesma e repousa no desejo único da Divindade. Porque a
alma perfeita, que frequentemente se eleva à contemplação das coisas sublimes, divinas, deve a
cada hora, com elevado desejo, esperar o fim de sua peregrinação, a saída da prisão de seu corpo;
deve dispor, preparar, fazer com que seu espírito aspire ao espetáculo da contemplação divina que
esperamos na vida futura, a fim de que Aquele a

quem vê hoje como em um espelho embaçado, mereça vê-lo logo face a face e tal com é.

É necessário, pois, que eleve seu coração às coisas do alto, para que aprenda pela revelação divina o
que precisa estudar, desejar, considerar, e a qual grau de sublimidade deve aspirar elevar- se.
Considerai que emoções experimentaria quem tenha sido ao menos uma vez elevado a esta altitude
angélica; quem tenha sido admitido ao espetáculo dos resplendores celestiais da glória divina. Que
íntimos desejos, que profundos suspiros, que lágrimas incapazes de expressar por lingua alguma!
Esse terá sempre presente em sua alma a divina claridade que viu; admira-a, deseja- a, suspira por
ela e a contempla; por esta contemplação eleva-se de claridade em claridade, até ser transformado
nessa mesma imagem luminosa, como espírito de Deus. Mas quando, de tais alturas voltemos a cair
em nós mesmos, não podemos reter e conservar a lembrança das coisas que vimos, superiores a nós,
com a mesma verdade e claridade com que as vimos. Conservamos bem na memória alguma dessas
coisas vistas como que através de um véu ou em espessa nuvem, mas não podemos compreender a
modalidade e natureza dessa visão. Lembramo-nos dela sem recordar-nos, vemo-la sem vê-la
perfeitamente, até que, pela meditação, nos elevamos outra vez à contemplação, por esta à
admiração, e pela admiração à elevação da alma.

Pela contemplação da verdade o homem aprende a viver justamente, virtuosamente, a ser perfeito
para conseguir a glória. A graça da contemplação não apenas purifica a alma de todo amor mundano,
mas a santifica e inflama no amor às coisas celestes. Quem, pela inspiração,

pela revelação divina, é exaltado à graça da contemplação, recebe um gosto antecipado, como uma
espécie de penhor da futura plenitude da contemplação eterna. Mas aquele que, na paz de seu
espírito, deseje chegar à contemplação da verdade, deve imprescindivelmente abster-se não apenas
das más ações, mas também dos pensamentos inúteis.

Muitos sabem observar o repouso do corpo; poucos o repouso do coração; estes não sabem celebrar
o sábado do sábado, isto é, o repouso em Deus pela contemplação mental, quando o corpo descansa
de seus habituais exercícios: esses não podem dar cumprimento às palavras do salmo, que diz:
"Descansai, e vede que eu sou Deus". Certamente, os que se abstém de exercicios corporais, mas
permitem que seu coração vagueie e se disperse ao exterior, não merecem ver quão suave é o
Senhor, como o

Deus de Israel é bom para os homens de coração reto. Porque eles empregam o tempo do repouso
em pensamentos inúteis e vãos: seu espírito vagabundo erra com agilidade maravilhosa de um lado a
outro em diversos sentidos opostos, se extravia e não sabe aonde vai. Não sem razão os inimigos
espirituais zombam dos sábados desses homens.

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Enquanto vivemos entre os pobres elementos deste mundo, estendemos nossos desejos além de
nossos deleites realizáveis, isto é, as coisas que desejamos são em número e qualidade muito
maiores que as que podemos apreender e possuir nesta vida. Mas não acontece o mesmo com a
multidão de espíritos superiores ou celestes: estes não estendem seus desejos além de seus deleites
possíveis, porque jamais podem compreender suficientemente e jamais podem gozar integralmente
a bem-aventurança infinita, sem limites, e seu gozo não consiste apenas na contemplação do Criador,
mas também na de suas criaturas. Porque, encontrando a Deus maravilhoso, admirável em todas as
suas obras, honram-no não apenas incorpóreas, mas também nas nas criaturas corporais.
Contemplam todas as obras do Criador, e nelas se extasiam e regozijam. Deleitam-se na
contemplação divina, transformam em festa a visão de uns a outros, e extasiam-se na admiração das
coisas corporais.

Aprendamos também nós a contemplar e a extasiarmo-nos como os felizes cidadãos da Cidade


celeste, que compreendem a razão e a ordem de tudo o que vêm superiores e inferiores a eles; que
infinitamente se regozijam de sua mútua companhia, da caridade indissolúvel que entre si lhes liga, e
que se abrasam de amor nesta visão da claridade divina. Nada mais agradável, nada mais útil que a
graça da contemplação. E, quanto maior encanto vós encontreis contemplação das coisas celestes,
na mais apetecereis dedicar-vos a ela, permanecer nela: mais a buscareis, quanto mais por ela sejais
iluminados.

Encontrareis sempre nas coisas celestes de que maravilhar-vos e em que deleitar-vos. Colocai, pois,
nestas coisas toda vossa admiração, toda vossa deleitação, e nada necessitareis buscar fora de vós,
nem nada haverá para que deixeis correr nossa pensamento. alma de pensamento em

Com efeito, conhecer a Deus é a plenitude da ciência; pela plenitude desta ciência se chega à
plenitude da graça e da glória, à perpetuidade da vida. Mas, para chegar à plenitude desta ciência,
mais necessária é a compunção interior que a investigação profunda; os suspiros mais que os
raciocínios; as frequentes lamentações mais que a argumentação frequente; as lágrimas, melhor que
as sentenças; a oração, mais que a leitura; a graça das lágrimas, mais que o estudo das ciências ou da
Escritura; por último, a contemplação das coisas celestes, mais que a ocupação nas coisas terrenas.

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