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Índice

Conteú do

Abreviaçõ es

Introduçã o

1. O Esconderijo do Amado

2. Cavernas de saudade dentro da alma

3. Fé Contemplativa: Certeza nas Trevas

4. Comunicaçõ es Divinas? Cuidado e Cuidado

5. Ascetismo: Recuperaçã o de um Valor Negligenciado

6. A Purificaçã o da Vontade Somente pelo Amor

7. Barricadas no caminho da contemplaçã o

8. A Luz Nascente do Dom da Contemplaçã o

9. Os sinais incipientes da graça da contemplaçã o

10. A Conduta da Alma na Oraçã o Contemplativa

11. Uma Receptividade Pura a Deus na Contemplaçã o

12. O desafio interior da escuridã o paradoxal

13. A Vontade na Oraçã o Inflamada pelo Amor Puro

14. Feridas do Amor: Marcas da Contemplaçã o

15. Sofrimento por Amor de um Amado Crucificado


16. Conselho de despedida: perda de si mesmo pelo amor maior

Epílogo

Apêndice

Bibliografia

Mais da Ignatius Press


SÃ O JOÃ O DA CRUZ
PADRE DONALD HAGGERTY
São João da Cruz

Mestre da Contemplação

IGNATIUS PRESS SÃ O FRANCISCO


Salvo indicaçã o em contrá rio, as citaçõ es das Escrituras sã o da Versã o
Padrã o Revisada da Bíblia – Segunda Ediçã o Cató lica (Ediçã o Iná cio)
copyright © 2006 Conselho Nacional das Igrejas de Cristo nos Estados
Unidos da América. Todos os direitos reservados no mundo inteiro.

Os escritos de Sã o Joã o da Cruz foram retirados de The Collected Works


of Saint John of the Cross , traduzido por Kieran Kavanaugh, OCD, e Otilio
Rodriguez, OCD 1991. Ediçã o revisada. Washington, DC: ICS
Publications, Institute of Carmelite Studies, 2017. Essas obras incluem
The Ascent of Mount Carmel , The Dark Night , The Spiritual Canticle ,
The Living Flame of Love , The Sayings of Light and Love , Special
Counsels, e The Letters . Usado com permissã o.

Arte da capa: Atribuída a Sã o Joã o da Cruz

Design da capa por


Enrique J. Aguilar

©2022 por Ignatius Press, Sã o Francisco


Todos os direitos reservados
ISBN 978-1-62164-542-9 (PB)
ISBN 978-1-64229-187-2 (e-book)
Nú mero de controle da Biblioteca do Congresso 2021941891
Impresso nos Estados Unidos da América
Conteú do

Abreviaçõ es

Introduçã o

1. O Esconderijo do Amado

2. Cavernas de saudade dentro da alma

3. Fé Contemplativa: Certeza nas Trevas

4. Comunicaçõ es Divinas? Cuidado e Cuidado

5. Ascetismo: Recuperaçã o de um Valor Negligenciado

6. A Purificaçã o da Vontade Somente pelo Amor

7. Barricadas no caminho da contemplaçã o

8. A Luz Nascente do Dom da Contemplaçã o

9. Os sinais incipientes da graça da contemplaçã o

10. A Conduta da Alma na Oraçã o Contemplativa

11. Uma Receptividade Pura a Deus na Contemplaçã o

12. O desafio interior da escuridã o paradoxal

13. A Vontade na Oraçã o Inflamada pelo Amor Puro

14. Feridas do Amor: Marcas da Contemplaçã o


15. Sofrimento por Amor de um Amado Crucificado

16. Conselho de despedida: perda de si mesmo pelo amor maior

Epílogo

Apêndice

Bibliografia

Mais da Ignatius Press


Ao Padre Conrad de Meester, TOC
(1936–2019)
Quem ouve as palavras Sede perfeitos nã o deve esperar que sua
natureza seja “aperfeiçoada” de uma forma mais confortável. Se alguém
nutrir tal expectativa, mesmo que seja apenas diminuindo seus desejos
naturais para cultivá -los em paz, só conseguirá atrofiar sua natureza
para sofrer menos. . . . É por isso que Sã o Joã o da Cruz repreende tã o
veementemente aqueles que temem sofrer, pela sua falta de ambiçã o e
de magnanimidade. Quando a auto-aniquilaçã o e o sofrimento atingem
suas dimensõ es plenas, como no pró prio Doutor da Noite, entã o o amor
e a perfeiçã o também alcançam as suas dimensõ es. Na verdade, uma
recompensa cem vezes maior nos é prometida mesmo nesta terra. Mas
apenas nas condiçõ es que já foram estabelecidas: “Desde que estabeleci
minha morada no nada, descubro que nada me falta”.

—Jacques Maritain, Os Graus do Conhecimento

A graça mística confere como experiência o que a fé ensina: a habitaçã o


de Deus na alma. Quem, guiado pela verdade da fé, busca a Deus, partirá
com o seu livre esforço precisamente para lá , para onde sã o atraídos os
misticamente agraciados. . . para a solidã o vazia de seu interior, a fim de
permanecer ali em uma fé sombria - em um olhar simplesmente
amoroso do espírito para o Deus oculto que atualmente está velado.
Aqui ele permanecerá em profunda paz – como no local de seu
descanso, até que agrade ao Senhor transformar a fé em visã o. Indicada
em poucos traços, esta é a subida ao Monte Carmelo como nos ensinou
o nosso santo padre Joã o da Cruz.

—Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz, TOC), Ser Finito e Eterno

Durante cerca de quinze anos, odiei Sã o Joã o da Cruz e chamei-o de


budista. Eu adorava Santa Teresa e a lia repetidas vezes. . . . Entã o
descobri que havia perdido quinze anos no que dizia respeito à oraçã o!

—John Chapman, OSB, As Cartas Espirituais de Dom John Chapman


Abreviaçõ es

AMC A Subida do Monte Carmelo (livros 1, 2, 3)


DN A Noite Escura (livros 1, 2)
SC O Cântico Espiritual (comentá rios da estrofe, 1–40)
SE A Chama Viva do Amor (comentá rios da estrofe, 1–3)
SLL As palavras de luz e amor
eu As cartas
P As precauçõ es em conselhos especiais
CR Conselhos a um religioso em conselhos especiais
Introduçã o

Uma pequena anedota da vida de Sã o Joã o da Cruz (1542-1591) diz


respeito a uma Irmã Carmelita, Catalina de la Cruz, cozinheira do
convento de Beas, conhecida como uma pessoa simples. Um dia ela lhe
contou que notou no lago do jardim do mosteiro, sempre que ela
passava, os sapos da beira do lago saltavam na á gua para se
esconderem, como se pudessem ouvir seus passos se aproximando no
chã o macio. Sã o Joã o da Cruz respondeu que essas rã s iam para o lugar
onde estavam mais seguras. Eles se preservaram mergulhando nas
profundezas das á guas. Ele a aconselhou a fazer o mesmo. Ela também
deveria fugir das criaturas e descer à s profundezas onde Deus está
escondido, e onde ela poderia esconder a sua vida nele. Anos depois ele
ainda se lembrava da conversa. Ele pediu em uma carta à Madre
Prioresa do Carmelo de Beas que fosse lembrada de “nossa irmã
Catalina e lhe dissesse para se esconder e buscar as profundezas”
(Brenan, 45).

Este conselho de esconder-se e procurar as profundezas é uma


imagem adequada para introduzir uma obra sobre Sã o Joã o da Cruz e o
seu ensinamento sobre a contemplaçã o. Ao contar esta anedota,
podemos notar também que Sã o Joã o da Cruz compreendeu claramente
o apelo à contemplaçã o para estar aberto a todas as almas de coraçã o
aberto e generosas, incluindo aquelas que vivem no mundo. Ele
escreveu um importante tratado, A Chama Viva do Amor , para uma
leiga espanhola. Sua experiência pode ter sido que as almas fortes e
determinadas sã o aquelas que avançam com mais segurança ao longo
do caminho contemplativo para Deus. Estas parecem muitas vezes ser
as pessoas mais simples, aquelas que nã o sã o refreadas pela ambiçã o
de gozar o seu orgulho neste mundo passageiro. Na verdade, nada de
elitismo espiritual é compatível com a graça da contemplaçã o. Nã o é
uma façanha de habilidades adquiridas ou de proficiência aprendida na
oraçã o, mas, antes, um caminho interior de humildade, fé profunda e
amor intenso a Deus. Será que somos convidados no plano de Deus a
esta graça da contemplaçã o? Um desejo ardente por Deus que nã o
liberta a nossa alma é um sinal de que esta graça pode nos aguardar ou
já está presente. Mas devemos estar prontos, se quisermos que essa
graça aprofunde o seu impacto, para deixar nuas as profundezas da
nossa alma para Deus. Devemos estar dispostos a dar a Deus uma
oferta de amor e sacrifício, nã o buscando nada mais urgentemente na
vida do que ele. Estas sã o exigências sérias, certamente. Para as almas
que possam ser atraídas para uma vida de interioridade pessoal mais
profunda com Deus, Sã o Joã o da Cruz é um mentor incomparável.

Este livro está focado com concentraçã o específica no ensinamento


de Sã o Joã o da Cruz sobre a contemplaçã o. Ele é sem paralelo o grande
professor de contemplaçã o da Igreja. É o seu sujeito de autoridade
magisterial por excelência. Provavelmente nã o há ninguém na histó ria
da Igreja que tenha escrito com a sua experiência pessoal e perspicá cia
sobre este assunto, e isso incluiria a sua boa amiga Santa Teresa de
Á vila (1515-1582), que tem o seu grande apelo. A contemplaçã o é um
tema de estudo desafiador e difícil e, mais ainda, um caminho á rduo a
percorrer na vida espiritual. Sã o Joã o da Cruz estava consciente de
ambos os aspectos ao pegar na pena. O que pretendemos fazer neste
livro é reduzir um pouco a dificuldade de compreensã o da
contemplaçã o na tradiçã o cató lica, tornando acessíveis as grandes
pá ginas e passagens mais penetrantes de Sã o Joã o da Cruz sobre este
assunto. Um comentá rio apoiado por citaçõ es abundantes que destaque
seus ensinamentos mais proeminentes e esclareça a unidade de seu
pensamento geral pode ser imensamente ú til no seu caso. O seu
ensinamento sobre a contemplaçã o é inestimável, mas é também um
tema que tem diversas vertentes de exigências e repercussõ es que se
tecem por vezes de forma dispersa e pouco metó dica ao longo das suas
obras. Reunir essas vertentes de uma forma gerenciável e organizada
para nossa compreensã o mais profunda é um dos objetivos deste livro.
Os quatro tratados maiores e obras menores de Sã o Joã o da Cruz
preenchem mais de 700 pá ginas em suas Obras Completas . O que
estamos oferecendo é um esforço de precisã o para trazer o melhor de
seus ensinamentos para o primeiro plano, para uma apreciaçã o mais
ampla e acessível. Idealmente, podemos descobrir que uma absorçã o
paciente do seu pensamento vale bem a pena o trabalho de amor que
requer. A exposiçã o aos seus escritos pode mudar a nossa vida para
sempre, como evidentemente aconteceu com a vida de alguns santos,
começando pela nossa pró pria ideia de oraçã o, mas estendendo-se
também à nossa percepçã o da santidade e das suas exigências
fundamentais.

Numa breve observaçã o introdutó ria, poder-se-ia mencionar que


contemplaçã o é uma palavra muitas vezes nã o compreendida
adequadamente. A realidade de um encontro mais misterioso com Deus
no silêncio da oraçã o é em parte o que é invocado por esta palavra. Mas
o verdadeiro sentido da contemplaçã o, como ensina Sã o Joã o da Cruz, é
sempre mais do que uma experiência de oraçã o. A pró pria alma torna-
se mais contemplativa à medida que nos entregamos mais plenamente
a Deus, assim como ela se torna mais sá bia, mais caridosa, mais
humilde. Sempre existe uma ligaçã o entre nossa conduta de vida e
nossa oraçã o. A oraçã o de contemplaçã o é uma graça, e todas as almas
sérias deveriam aspirar a ela, mas depende do nosso esforço para
agradar a Deus no amor fora do silêncio da oraçã o. A recusa em dizer
“nã o” a Deus, em tudo o que ele nos pede, é necessá ria repetidamente
se quisermos relaçõ es mais profundas com Deus na oraçã o. Deus
esculpe as profundezas de um encontro diferente consigo mesmo à
medida que nos tornamos mais acessíveis aos seus misteriosos
avanços, tanto dentro como fora da oraçã o. Aprendemos com o tempo
que esses avanços sã o totalmente pessoais e ocultos no mistério de
Deus. Como pedidos, têm muito a ver com a generosidade para com
Deus, nas provaçõ es que ele permite, nas purificaçõ es que nos pede,
nas oportunidades de caridade sacrificial que nos proporciona. A
generosidade da alma condiciona o avanço espiritual; reter o dom de si
mesmo, quando Deus pede mais, impede-o. Nã o é de surpreender que,
quando Deus vê um desejo sério por si mesmo e uma constâ ncia na
oferta de si mesmo, ele age misteriosamente nas regiõ es mais
profundas da nossa alma. Entã o a grande promessa identificada no
Evangelho de Sã o Joã o de que Deus poderia habitar em nó s, e nó s
poderíamos habitar em Deus (Jo 15,4-5), torna-se uma verdade
experimentada dentro da nossa alma. Esta possibilidade está no cerne
da contemplaçã o na oraçã o.

Ultrapassar limiares no nosso compromisso pessoal com Deus, no


qual experimentamos em mistério a sua presença pessoal habitando
dentro de nó s, nã o ocorre facilmente, nã o sem uma grande entrega da
nossa alma a Deus e à sua santa vontade. Infelizmente, esta importante
verdade nã o é reconhecida em muitos livros atuais sobre oraçã o. É fá cil
encontrar trabalhos escritos que sugerem que a contemplaçã o pode ser
adotada simplesmente como método preferido de oraçã o, se assim se
desejar. A oraçã o contemplativa é entã o concebida como uma questã o
de gosto pessoal, uma opçã o disponível num menu de possibilidades de
oraçã o. Este é um grave equívoco. A verdadeira graça da contemplaçã o,
como já aludimos, nã o acontece assim. A menos que uma alma seja
séria em doar-se em generosidade sacrificial e decidida em viver para
os outros, nã o poderá haver graça de contemplaçã o na oraçã o. Uma
tendência excessiva ao “subjetivismo” é a muleta transportada por
todas as formas duvidosas de espiritualidade auto-orientada. Eles sã o
reconhecidos pelo passo hesitante do auto-olhar e pela descida à s
ilusõ es religiosas. Em contraste com toda falsa compreensã o da
contemplaçã o, é certamente informativo estudar o ensinamento de Sã o
Joã o da Cruz. Sua instruçã o está muito distante de uma simples noçã o
de liçõ es sobre um método de oraçã o. Para ele, a contemplaçã o é
inseparável de uma transformaçã o radical da alma na sua totalidade. O
efeito da leitura de Sã o Joã o da Cruz é perceber uma profunda exigência
de viver uma vida plena de amor a Deus, na oraçã o e fora da oraçã o
formal. A perspectiva deste livro refletirá essa necessidade.
O formato dos tratamentos tó picos deste livro nã o segue um
esquema convencional, se assim podemos falar em relaçã o ao
ensinamento de Sã o Joã o da Cruz. Uma passagem direta pelos seus
quatro principais tratados nã o é a abordagem mais ú til. O desejo
principal aqui é que uma profunda fome de Deus tome conta do leitor, o
que parece consistente com as pró prias intençõ es deste santo em seus
escritos. E assim exercemos um certo movimento de um tratado para
outro no tratamento dos temas, deslocando a atençã o conforme
necessá rio, a fim de buscar um aprofundamento da compreensã o. Uma
recomendaçã o pode ser sugerida. Refletir por um momento sobre as
citaçõ es de Sã o Joã o da Cruz no texto só pode aumentar o seu impacto
iluminador. Seus melhores escritos e passagens mais memoráveis sã o
frequentemente encontrados quando ele expõ e seus ensinamentos
mais importantes. Poderíamos salientar também que nos capítulos
sobre a contemplaçã o em si, o que podem parecer reafirmaçõ es e
alguma ênfase repetida é deliberado. O assunto apresenta dificuldades
e uma compreensã o clara é importante. Pode implicar aplicaçã o direta
em nossas vidas. O ensino frutífero normalmente requer algum retorno
sobre assuntos significativos de diferentes â ngulos. E assim essa tá tica
estará presente à s vezes nestes capítulos que examinam a oraçã o
contemplativa. Outro comentá rio também pode ser apropriado. Em
questõ es de espiritualidade séria, é melhor mergulhar imediatamente
em á guas mais profundas. Isto nã o significa introduzir ensinamentos
obscuros que nã o serã o compreendidos; em vez disso, significa abordar
desde o início assuntos que sã o altamente significativos do ponto de
vista contemplativo e benéficos para serem enfrentados
imediatamente. Se mantivermos um olhar atento sobre os princípios
espirituais elucidados nos três primeiros capítulos, tudo o que se segue
torna-se mais facilmente reconhecido pelo seu valor e verdade. Sã o
Joã o da Cruz, que nunca demora a expor verdades essenciais, convida a
tal tratamento.

Começamos, entã o, no capítulo 1, com o comentá rio da primeira


estrofe do Cântico Espiritual , uma rica porçã o de escritos que pode ter
um impacto profundo na vida espiritual e na oraçã o. É um tratamento
da presença oculta de Deus nas profundezas da alma e explica de forma
impressionante como esta verdade pode afetar a nossa vida de oraçã o.
Seguimos com um capítulo provocado por uma seçã o de A Chama Viva
do Amor sobre o efeito das virtudes teoló gicas nas faculdades da alma.
O que nesta frase pode soar como um tema á rido revela-se novamente
imensamente importante para a vida interior de uma alma desejosa de
buscar a uniã o com Deus. Passamos entã o a uma apresentaçã o em A
Ascensão do Monte Carmelo para examinar o impacto da fé no intelecto
e a obscuridade sombria que ela causa, um tema crucial para a
contemplaçã o. Este capítulo é seguido por um exame dos aspectos do
contato experiencial com as comunicaçõ es de Deus na oraçã o do
mesmo tratado. Depois, nos capítulos 5 e 6, a partir de seçõ es maiores
de A Ascensão , examinamos os princípios ascéticos de Sã o Joã o da Cruz
e sua compreensã o da purificaçã o da vontade e sua grande importâ ncia
na vida espiritual. No capítulo 7, retomamos a animada discussã o de
Sã o Joã o da Cruz desde o início de A Noite Escura , na qual os sete
pecados capitais tornam-se aná logos aos impedimentos espirituais na
oraçã o.

A pró xima grande parte do livro, começando no capítulo 8 e


ocupando vá rios capítulos, faz um uso coordenado de três dos quatro
principais tratados e concentra-se na pró pria contemplaçã o: os
extensos comentá rios preliminares sobre o assunto por Sã o Joã o da
Cruz; seu ensinamento sobre os sinais e sintomas de seu início na vida;
a conduta necessá ria para uma alma responder à s graças
contemplativas em oraçã o; as diversas repercussõ es que devem ser
tratadas nesta oraçã o para que ela floresça; e o encontro com
experiências purificadoras que avançam a alma na contemplaçã o.
Nestes capítulos sobre contemplaçã o incluímos um capítulo que
examina uma magnífica carta que Sã o Joã o da Cruz escreveu sobre o
papel da vontade na oraçã o interior. A ú ltima parte do livro utilizará
mais uma vez os vá rios tratados de Sã o Joã o da Cruz para explorar
algumas das implicaçõ es mais profundas da contemplaçã o à medida
que a vida avança: a beleza do amor experimentada nas feridas do amor
na contemplaçã o; a realidade das trevas na vida espiritual e na oraçã o
como um canal para graças maiores; e o papel do sofrimento na vida
interior em prol de um amor mais profundo a Deus. Concluímos o livro
com um capítulo apresentando alguns dos memoráveis conselhos
espirituais que Sã o Joã o da Cruz deu à s almas em cartas e instruçõ es.
No final há também uma pequena seleçã o de alguns aforismos notáveis
enviados pessoalmente por Sã o Joã o da Cruz a Irmã s Carmelitas
individuais, e salvos por elas, conhecidos posteriormente como Os Ditos
de Luz e Amor .

Um ú ltimo comentá rio poderia ser feito. A maioria das pessoas nunca
visitou um convento de clausura ou um mosteiro, embora certamente
todos nó s tenhamos conhecido alguém que é uma pessoa
profundamente devota, talvez na nossa pró pria família. Podemos nos
perguntar como é que algumas almas ficam tã o apaixonadas por Deus e
amam a oraçã o dessa maneira? É possível em nossas vidas? Uma
resposta poderia ser pensar na alma do contemplativo como uma
criança muito amada por um pai e uma mã e, que vêem algo incomum e
especial enquanto a criança ainda é muito jovem. Eles pressentem um
presente presente e vislumbram para esse filho ou filha alguma
possível grandeza desconhecida, sem saber o que poderá ser. Deus pode
nã o ser tã o diferente desses pais, exceto pelo fato de saber qual é essa
possibilidade. Ele olha para algumas almas com um desejo imenso de
que cheguem a uma grandeza no reino espiritual. Esta grandeza nã o é
para o reconhecimento pú blico, mas para o dom de uma uniã o oculta
consigo mesmo no caminho contemplativo da santidade. As almas
inclinadas à oraçã o, que começam a experimentar uma intensa
necessidade de uma proximidade mais pessoal com Deus, devem
considerar que também elas podem estar destinadas a essa grandeza
espiritual oculta. Talvez Deus já esteja tentando há algum tempo fazê-
los perceber isso.
E o que Deus desejaria especialmente para eles? Nã o atos de
realizaçã o pú blica ou uma influência espiritual que visivelmente toca
muitas vidas de uma maneira claramente evidente, mas um impacto
oculto no reino espiritual que virá das suas relaçõ es secretas de amor
consigo mesmo. O seu encontro constante com Ele na obscuridade de
uma fé intensa, o seu conhecimento da sua presença amorosa nas
sombras da escuridã o e os seus repetidos actos de auto-oferta podem
tornar-se a fonte de uma influência oculta sobre os outros que nã o pode
ser medida. Ele valoriza as almas que nunca abandonam o seu desejo
apaixonado por ele, uma vez que o encontram tã o inegavelmente
pró ximo, nas proximidades de um taberná culo cató lico. Sã o Joã o da
Cruz ensina muitas coisas que nã o estã o explicitamente escritas.
Certamente uma verdade que ele ensina continuamente é que a alma
contemplativa é um belo segredo do amor de Deus pelas vidas
humanas. Deus mostra especial favor e amor por essas almas, mas
também pede muito delas em oferta pró pria. Sã o almas escolhidas para
uma rara forma de amizade. Mas nunca é só por isso que sã o
escolhidos. A amizade deles com ele leva ao seu pró prio Calvá rio, onde
encontram um grande amor por Jesus na sua crucificaçã o e por Maria,
sua mã e, que está por perto, e onde descobrem um poder de
intercessã o pelos outros que nunca devem negar ou negligenciar.
1
O Esconderijo do Amado

Talvez uma amostra da poesia de Sã o Joã o da Cruz deva ser explorada


em particular como um primeiro encontro com este místico e santo
carmelita, que de outra forma poderia ser considerado demasiado
severo nas suas exigências espirituais e, por isso, ignorado e
negligenciado. A beleza, por exemplo, de “O Câ ntico Espiritual” como
poema deve ser saboreada em suas quarenta estrofes antes de ler os
comentá rios das estrofes na obra maior de mesmo nome. O poema é
um diá logo entre uma noiva e seu Amado, como no Cântico dos Cânticos
bíblico , e como essa obra retrata tensõ es angustiantes nas relaçõ es de
amor entre uma alma e Deus, quando uma alma está verdadeiramente
apaixonada por Deus. E, de facto, este é o tema central de Sã o Joã o da
Cruz ao longo das suas composiçõ es místicas – estar apaixonado por
Deus . As repercussõ es que advêm de um amor tã o misterioso sã o para
ele uma fonte inesgotável de provocaçã o. O que significaria ter um caso
de amor para toda a vida, por assim dizer, com Deus? Tomemos estas
palavras no seu sentido mais sagrado, sem qualquer conotaçã o vulgar, e
entã o começaremos a sentir as possibilidades inéditas que podem
apoderar-se do desejo da nossa alma na leitura deste santo místico. O
poema começa com estas palavras marcantes da primeira estrofe:

Onde você se escondeu,


Amado, e me deixou gemendo?
Você fugiu como o cervo
depois de me ferir;
Saí ligando para você, mas você havia sumido.

Esta estrofe inicial do “Câ ntico Espiritual” destranca o ferrolho de


uma porta, permitindo-nos um primeiro vislumbre da alma de Sã o Joã o
da Cruz e do seu intenso amor a Deus. Nestes versos iniciais de um
longo poema, ouvimos a voz agonizante de uma amante atormentada
pela sua solidã o, num sofrimento terrível apó s a partida do seu Amado.
O lamento penetrante da noiva, ferida no fundo da alma, é imagem do
amante de Deus que procura o seu regresso depois de ter desfrutado
anteriormente da sua presença pró xima. O clima de solidã o no poema
mudará ao longo de suas quarenta estrofes para um reconhecimento da
presença do Amado, mesmo em sua ocultaçã o. Mas por enquanto, no
início do poema, a dor é forte e irremediável. Muitas das estrofes deste
poema primoroso, repleto de exuberantes imagens naturais, foram
compostas por Sã o Joã o da Cruz sem caneta ou papel, estrofes
guardadas em sua memó ria, enquanto ele estava trancado em uma cela
sem janelas de um metro e oitenta por três metros de altura. armá rio
convertido, com apenas uma fina fenda de luz no alto da parede. Esse
quarto serviu como cela de prisã o improvisada no mosteiro dos Frades
Carmelitas Calced, em Toledo, Espanha, durante nove meses de sua
vida, de dezembro de 1577 a agosto de 1578. Somente no ú ltimo
período dos nove meses ele recebeu papel e caneta. de um frade
simpá tico servindo como seu carcereiro e escreve versos. Mais tarde,
ele contou à s freiras carmelitas que outro poema importante, “A Noite
Escura”, foi concluído antes de ele deixar a cela da prisã o.

Ele tinha trinta e cinco anos e dez anos de sacerdó cio quando foi
levado cativo durante um período de tensa hostilidade contra a reforma
do Carmelita Descalço iniciada por Santa Teresa de Á vila em 1562.
Depois de conhecer Santa Teresa em setembro de 1567, logo apó s seu
mandato sacerdotal ordenaçã o, e com o convite dela para se juntar ao
movimento reformista, ele pró prio se tornou uma figura proeminente
no início da reforma no ramo carmelita masculino e, eventualmente, um
alvo de ira para os superiores superiores dos Carmelitas Calçados, que
naquela época ressentiu-se profundamente da reforma. Durante cinco
anos, até sua prisã o em 2 de dezembro de 1577, ele viveu uma vida
relativamente tranquila como confessor e capelã o de cerca de 130
freiras carmelitas no Carmelo da Encarnaçã o em Á vila, onde dividiu
uma pequena cabana com outro frade carmelita em a borda da
propriedade. Santa Teresa de Á vila estava terminando um mandato
como Madre Prioresa durante seus primeiros oito meses lá . O grande
comentá rio do Cântico Espiritual , uma exposiçã o estrofe por estrofe do
poema, servindo como um tratado de teologia mística para ajudar na
compreensã o dos significados místicos escondidos no poema, foi
solicitado por Madre Ana de Jesú s, prioresa do Carmelo. em Granada, e
concluído em 1584. Isso foi seis anos depois de sua fuga da prisã o de
Toledo em uma noite sem lua durante a oitava da Assunçã o de Maria
em 1578. Sua porta foi deixada destrancada, permitindo-lhe escalar
uma janela em outro e desceu, apoiado em cobertores amarrados, até a
saliência de um muro de pedra, além do qual, se nã o aterrissasse
corretamente, haveria um mergulho longo e mortal nas rochas abaixo,
margeando o rio Tejo. Sã o Joã o da Cruz, com trinta e poucos anos,
durante os nove meses brutais de sofrimento isolado e privaçã o física
no mosteiro de Toledo, tinha escrito muito pouco antes disso, apenas
alguns aforismos e cartas. Ele se tornou o poeta e escritor místico que
conhecemos apó s a sombria desolaçã o daqueles meses de extrema
provaçã o. A fecundidade excepcional que surge de sofrimentos graves é
uma marca ú nica do homem e do seu ensinamento.

Voltemos aos provocativos primeiros versos do poema: “Onde você


se escondeu, Amado. . . depois de me ferir; Saí ligando para você, mas
você havia sumido. Serã o estas palavras simplesmente um verso de um
poema ou, mais profundamente, uma oraçã o ouvida por acaso de um
místico em relaçõ es profundas com Deus? Em todos os ensinamentos
de Sã o Joã o da Cruz, apesar dos traços proibitivos das suas exigências
radicais, esconde-se um poeta da santidade que se apaixonou por Deus,
mesmo que desamparadamente. A Igreja pode chamá -lo de Doutor
Místico em reconhecimento ao ensino superlativo em seus quatro
tratados principais; no entanto, o peso desse título nã o é inteiramente
ú til. Ele nã o está propondo uma doutrina especulativa de ascensã o
mística a ser dominada por meio de estudo cuidadoso e aplicaçã o
estrita. A abstraçã o tem pouco lugar ou propó sito em sua escrita,
mesmo quando ele faz todos os esforços para esclarecer em linguagem
precisa o que muitas vezes podem ser liçõ es impossíveis de transmitir a
um leitor sem experiência do que ele está elucidando. Simplesmente ler
uma vez seu trabalho nunca revelará seus ensinamentos de forma
adequada. Em algum momento, ele terá que se tornar um mentor muito
querido, a quem recorremos com necessidade crescente ao longo dos
anos, ou entã o ele escapará silenciosamente e será esquecido, como
aparentemente foi esquecido por muitos em sua pró pria vida. Mas se
ele for encarado como um guia de confiança, e a sua orientaçã o for
aceite, ele pode tornar-se um companheiro que nos empurra e incita a
um desejo misterioso e perturbador por Deus, o que é apenas um
começo para efeitos maiores ao longo do tempo. Se ele permanecer
amigo por muitos anos, uma fome e um fogo em nossa alma por Deus,
muito além de qualquer expectativa inicial de busca espiritual,
certamente acenderã o dentro de nó s.

Aprendemos, gradualmente, que sua maneira de persuasã o, mesmo


no que podem parecer passagens de comentá rios expositivos á ridos, é
um apelo ao nosso coraçã o para nos tornarmos um amigo amado de
Deus. Ou, melhor, conhecer, como ele, a experiência esmagadora do
amor a Deus. Esta experiência de ser conquistado pelo amor a Deus
inunda o seu ensinamento. Ouvimos isso no verso inicial do poema: “
Onde você se escondeu, Amado. . . depois de me ferir ?” A busca de Deus,
se apaixonada e determinada, como expressam estas palavras, implica
relaçõ es sempre vulneráveis com um Amado que está infinitamente
além do alcance do amante humano. Cada pá gina escrita por este
homem pressupõ e que uma alma pode estar apaixonada por Deus. Mas
esta é uma perspectiva muito assustadora, uma vez que Deus
permanece durante toda a nossa vida uma presença invisível de
mistério indescritível. E é claro que ninguém pode simplesmente
decidir se apaixonar por Deus. A realidade de tal amor, se acontecer,
nunca é planejada por escolha, mas ocorre se a nossa alma estiver
aberta a tal graça e der lugar a Deus. E talvez exija também que
passemos bastante tempo sozinhos e em silêncio diante de um crucifixo
e de um taberná culo. Precisamente a necessidade de tal entrega e de
tais horas a só s com o Senhor Jesus crucificado pode ser a razã o pela
qual Deus raramente se torna a grande paixã o na maioria das vidas.
Sem uma paixã o por Jesus Cristo crucificado e uma grande entrega a
ele, a leitura de Sã o Joã o da Cruz pode nã o valer a pena. Mas desde que,
até certo ponto, nos apaixonemos pelo nosso Deus que se tornou um
criminoso brutalizado numa cruz romana, este santo torna-se
indispensável. Ele é absolutamente necessá rio para compreender o
caminho para um maior amor a Deus no silêncio da oraçã o
contemplativa que algumas almas procuram nesta vida.

O comentá rio da primeira estrofe do Cântico Espiritual começa,


entã o, com o olhar para a dor da noiva que acabamos de ouvir nas
palavras iniciais do poema. Sua afliçã o no poema diz respeito à perda
do noivo. Nã o que ele tenha morrido; em vez disso, ele desapareceu,
deixando-a numa terrível solidã o e num doloroso desejo. Noutras
circunstâ ncias da vida, este cená rio poderia ser comparado a um jovem
soldado que parte para a guerra logo apó s o casamento e ao sofrimento
que esta partida causaria à sua amada nova esposa. Separaçõ es deste
tipo, com toda a sua trá gica incerteza, repetiram-se inú meras vezes nos
ú ltimos cem anos ou mais. Mas a noiva, neste caso, é uma figura poética
para a pró pria alma, e aquele que ela ama, e que lhe está ausente, é o
pró prio Senhor. Como escreve Sã o Joã o da Cruz, ela “reclama-lhe da sua
ausência. . . já que seu amor a fere. . . e ainda assim ela deve sofrer a
ausência do seu Amado” (SC 1.2).

A princípio, segundo as palavras do comentá rio, o grito da noiva no


verso inicial do poema – “Onde você se escondeu, Amada” – identifica a
ausência da Amada como seu sofrimento essencial. Mas Sã o Joã o da
Cruz é rá pido em corrigir um equívoco. O Amado da alma nã o está
ausente de forma alguma. Em vez disso, ele está escondido e nã o muito
longe da alma. Esta mudança de uma queixa de ausência para um
reconhecimento de ocultaçã o é uma mudança subtil e imensamente
significativa. Altera o tom da pergunta – “Onde você se escondeu,
Amado?” – do lamento de dor de uma jovem noiva em um poema para o
desejo intenso de uma alma pela presença oculta do Senhor oculto. Esta
ocultaçã o de Deus na sua presença oculta para a alma nã o pode ser
exagerada na sua importâ ncia para Sã o Joã o da Cruz. O foco no
sofrimento que inicia o comentá rio do Cântico Espiritual é
precisamente o sofrimento intenso do amor numa alma que busca a
uniã o com um Deus oculto. O encontro da alma com um Deus que se
esconde mesmo quando está pró ximo é uma fonte de luta contínua e
dolorosa. Nã o há nada que uma alma possa fazer, nenhuma opçã o ou
remédio, senã o abraçar esta ocultaçã o de Deus como um aspecto
essencial das relaçõ es com nosso Senhor. E daí o conselho
aparentemente simples que se segue: “Uma pessoa deve pensar nela
como alguém que está escondido e procurá -la como alguém que está
escondido, dizendo: 'Onde você se escondeu?' ”(SC 1.3).

Para Sã o Joã o da Cruz, contudo, há uma espécie de apêndice


espiritual que deve ser associado a esta ênfase na ocultaçã o de Deus à
alma humana, que ele aborda nesta fase inicial do comentá rio da
primeira estrofe. Ele insiste que as experiências interiores pelas quais
passamos na longa busca pela oraçã o têm uma qualidade problemá tica,
na verdade, uma espécie de falta de confiabilidade. Esta incerteza nada
tem a ver com a verdade objectiva da nossa fé cató lica revelada. O Deus
a quem nos dirigimos na oraçã o, por exemplo, nas proximidades de um
sacrá rio cató lico, é Jesus Cristo ressuscitado, o Filho encarnado do Deus
vivo, presente no mistério do Santíssimo Sacramento. O aspecto
problemá tico nã o é a verdade objetiva e imutável da sua presença
divina. Pelo contrá rio, é a experiência subjetiva que podemos ter de
encontros com um Deus que permanece oculto. Por um lado, existe a
possibilidade de interpretar a consolaçã o da nossa alma como prova de
um contacto direto com Deus. Por outro lado, existe a possibilidade de
interpretar mal a desolaçã o interior como uma indicaçã o da aversã o de
Deus pela nossa alma. Talvez a segunda possibilidade seja ainda mais
comum. Ao abordar o risco problemá tico das interpretaçõ es enraizadas
num subjetivismo equivocado, Sã o Joã o da Cruz dirige a nossa atençã o
para a verdade objetiva da ocultaçã o divina. Se Deus é um mistério
infinito na sua natureza divina, segue-se que há uma falta de fiabilidade
em depender da nossa experiência subjectiva como medida das
relaçõ es pessoais com Deus. Experiências elevadas de Deus na oraçã o,
se ocorrerem, podem ser uma dá diva de Deus e talvez um alívio nas
lutas na oraçã o. Mas eles nã o removem, nem mesmo temporariamente,
a ocultaçã o essencial de Deus em sua presença para a alma. Sempre,
como insiste Sã o Joã o da Cruz, “ele ainda está escondido na alma” (SC
1.3). A seguinte passagem é instrutiva sobre este ponto e digna de uma
citaçã o mais longa:

Nem a comunicaçã o sublime nem a consciência sensível da sua


proximidade sã o um testemunho seguro da sua presença graciosa, nem
a secura e a falta delas sã o um reflexo da sua ausência. . . . Deve ser
entendido que se uma pessoa experimenta alguma comunicaçã o,
sentimento ou conhecimento espiritual elevado, nã o deve ser pensado
que as experiências sã o semelhantes à visã o ou posse clara e essencial
de Deus, ou que a comunicaçã o, por mais notável que seja , significa
uma posse mais notável de Deus ou uniã o com ele. Deve-se saber
também que, se todas essas comunicaçõ es sensíveis e espirituais estã o
faltando e os indivíduos vivem na aridez, na escuridã o e no abandono,
eles nã o devem, por isso, pensar que Deus está mais ausente do que no
estado anterior. As pessoas, na verdade, nã o podem ter certo
conhecimento de um estado de que estã o na graça de Deus ou de outro
estado de que nã o estã o. (SC 1.3, 4)

A ocultaçã o de Deus é, como tal, um componente experiencial


constante dentro da pró pria oraçã o. É um factor de ambiguidade na
oraçã o, uma realidade inescapável da oraçã o na sua qualidade
subjectiva, devido à s diversas experiências de consolaçã o ou desolaçã o
vividas dia apó s dia na oraçã o. Se Deus está pró ximo ou distante de nó s
nã o pode ser determinado por nenhuma medida subjetiva de
experiência. Nem deveríamos procurar fazer tal determinaçã o. Medir a
oraçã o por meio das mudanças nas experiências internas da oraçã o é
provocar uma instabilidade em nossas relaçõ es com Deus. A verdade
imutável é que Deus se esconde no encontro que temos com ele na
oraçã o. O resultado é uma incapacidade de apoderar-se dele de uma
maneira que possa ser definitivamente determinada num sentido
subjetivo. No entanto, para Sã o Joã o da Cruz, esta verdade nã o tem
tantas consequências que desencoraje os nossos esforços na oraçã o.

Neste tratamento surge rapidamente outra verdade importante que é


ainda mais significativa para a vida interior da oraçã o. Se Deus
permanece oculto, escondendo-se de nó s e escapando ao nosso alcance,
naturalmente pode-se levantar a questã o de onde ele pode estar se
escondendo. E se ele estiver escondido, em vez de ausente, onde poderá
ser encontrado? Mais uma vez, pode ser ú til repetir que uma ausência e
uma ocultaçã o sã o realidades muito distintas, nem um pouco
comparáveis. A ocultaçã o implica uma presença real em um local, mas
uma presença disfarçada ou encerrada em algum esconderijo. Toda
criança que já brincou de esconde-esconde sabe, enquanto a
brincadeira está em andamento, que quem está sendo procurado está
escondido em algum lugar lá fora , em um lugar desconhecido, talvez
muito pró ximo, mas ainda nã o encontrado.

Dada a necessidade do encontro com a ocultaçã o de Deus na oraçã o,


Sã o Joã o da Cruz aborda assim a questã o de onde o Filho de Deus pode
estar escondido, para que possa ser procurado pela nossa alma. A nossa
pró pria resposta poderia ser apontar para a sua presença na Eucaristia,
onde em qualquer dia é possível uma intimidade com ele na oraçã o, na
Missa e na Sagrada Comunhã o. Mas esta nã o é a localizaçã o do
esconderijo divino a que Sã o Joã o da Cruz fará referência neste
comentá rio da primeira estrofe. Em vez disso, ele declara que a
doutrina cató lica da presença da Santíssima Trindade “no mais íntimo
da alma” (SC 1.6) é a verdade essencial a ser lembrada avidamente por
“esta alma sedenta” que busca uma “uniã o de amor” com Deus. Assim,
uma “localizaçã o” precisa, por assim dizer – “o ser mais íntimo da alma”
– foi identificada como o esconderijo de Deus. A descoberta deverá
permitir-nos prosseguir o nosso Amado em oraçã o com um sentido de
foco direcionado. Sublinhando a importâ ncia desta realizaçã o interior
na fé, Sã o Joã o da Cruz alude também a uma passagem agora atribuída
aos Solilóquios de Pseudo-Agostinho : “ Não te encontrei fora, Senhor,
porque te procurei erroneamente fora, que estavas dentro ” (SC 1.6). Na
visã o de Sã o Joã o da Cruz, o conhecimento do esconderijo de Deus
dentro da pró pria alma é uma visã o insubstituível, uma vez abraçada.
Podemos perceber esta importâ ncia no tom que Sã o Joã o da Cruz adota
neste momento. Uma citaçã o mais longa, de pará grafos consecutivos,
pode ser valiosa, nã o apenas por sua clareza espiritual, mas ainda mais
por seu tom insistente:

Ah, entã o, alma, a mais bela entre todas as criaturas, tã o ansiosa por
conhecer a morada do seu Amado para ir em busca dele e se unir a ele,
agora estamos lhe dizendo que você mesmo é sua morada e seu
segredo sala interna e esconderijo. Há motivos para você ficar exultante
e alegre ao ver que todo o seu bem e esperança estã o tã o pró ximos que
estã o dentro de você, ou melhor, que você nã o pode existir sem ele. . . .
O que mais você quer, ó alma! E o que mais você busca lá fora, quando
dentro de você possui suas riquezas, deleites, satisfaçã o, plenitude e
reino – seu Amado, a quem você deseja e busca? Alegre-se e alegre-se
no seu recolhimento interior com Ele, pois você o tem tã o perto de
você. Deseje-o ali, adore-o ali. Nã o vá atrá s dele fora de você. Você
apenas ficará distraído e cansado com isso, e nã o o encontrará ou
desfrutará dele com mais segurança, ou mais cedo, ou mais
intimamente do que procurá -lo dentro de você. (SC 1.7, 8)

Apó s esta afirmaçã o, tã o promissora em sua instruçã o, rapidamente


se faz uma advertência a respeito da revelaçã o desta “localizaçã o” da
presença divina dentro da alma. A presença de Deus que habita em
nossa alma, embora seja uma maravilhosa verdade de fé, permanece, no
entanto, uma presença oculta . E esta ocultaçã o de Deus, precisamente
na sua proximidade na alma, torna-se fonte de uma grande afliçã o para
uma alma que o ama com intensidade. Num tom maravilhosamente
discreto, depois das ú ltimas frases da passagem que acabamos de citar,
Sã o Joã o da Cruz capta o dilema numa ú nica frase: “Há apenas uma
dificuldade: embora ele habite dentro de vós, ele está escondido . No
entanto, é vital que você conheça seu esconderijo para que possa
procurá -lo com segurança” (SC 1.8; grifo nosso). Boas notícias, seguidas
de uma dura verdade que nã o deve ser negligenciada. Sã o Joã o da Cruz
refere-se aqui suavemente à luta que se pode esperar da alma amorosa
na sua busca de Deus. Nosso Senhor está extraordinariamente pró ximo,
residindo no mais profundo da alma, e ainda assim perpetuamente
escondido na intimidade de sua presença divina. É como se uma
verdade bem-vinda, tã o atraente e necessá ria de ser conhecida, fosse
acompanhada, num olhar mais atento, por uma grande barreira à sua
fruiçã o. Quã o oculta estará a presença de nosso Senhor? Ele poderá ser
experimentado em nossa alma se ele se esconder? Existe uma maneira
de levantar o véu da ocultaçã o divina e atravessar essa barreira para ter
encontros diretos com ele? A resposta a estas perguntas nã o virá da
proposta de um método ou prá tica a ser empregada na oraçã o. A
resposta de Sã o Joã o da Cruz é exortar a uma disposiçã o interior na
oraçã o que deve ser cultivada se quisermos encontrar o Senhor
escondido. O breve comentá rio que se segue está verdadeiramente no
cerne do seu ensinamento, reiterado repetidamente em muitos
contextos: a necessidade de nos escondermos da nossa pró pria atençã o,
de escaparmos da auto-estima e da preocupaçã o com a nossa pró pria
experiência na oraçã o, se quisermos encontrar nosso Senhor presente
em ocultaçã o em nossa alma. “Mas você pergunta: Já que aquele a quem
minha alma ama está dentro de mim, por que nã o o encontro ou o
experimento? A razã o é que ele permanece oculto e você também nã o
se esconde para encontrá -lo e experimentá -lo” (SC 1.9).

É claro que com esta afirmaçã o Sã o Joã o afirma a possibilidade de


experimentar o Senhor na oraçã o; em breve ele abordará o assunto com
mais detalhes. O jogo com a palavra “ocultar”, porém, merece uma
observaçã o, uma vez que a palavra tem dupla finalidade na passagem
que acabamos de citar. A ocultaçã o divina refere-se à ocultaçã o de um
Deus infinito presente nas profundezas da alma. Deus, em sua divina
infinitude, ultrapassa para sempre nossa compreensã o e alcance
limitados. Por outro lado, a noçã o da alma que se oculta identifica, de
forma bem diferente, a necessidade de nos escondermos no
esquecimento de nó s mesmos durante a oraçã o. Precisamos nos
desapegar e perder a preocupaçã o conosco mesmos no momento da
oraçã o. E como isso é feito? Esquecemo-nos de nó s mesmos na medida
em que voltamos a nossa atençã o com alguma intensidade para o
pró prio Senhor. O esquecimento de si mesmo na oraçã o nã o é
conseguido por meio de um esforço de trabalho concentrado. Apenas
um meio indireto está disponível. O afastamento de nó s mesmos
ocorrerá quando a nossa atençã o for desviada de nó s mesmos, o que
acontece principalmente porque o amor por um Amado chama a nossa
atençã o.

Sã o Joã o da Cruz já sugere aqui que um encontro contemplativo


secreto com Nosso Senhor só pode ocorrer na condiçã o de que a pessoa
que ora desapareça de vista, num recinto interior de ocultaçã o.
Novamente, esse esquecimento de si mesmo pode ocorrer porque o
amor pelo Outro se tornou o foco da atençã o. Todo encontro
contemplativo com Deus em oraçã o acontece apenas em um segredo
que nã o permite o olhar curioso de qualquer auto-observador. Os
ú nicos olhos necessá rios sã o os olhos de Deus sobre a alma. O
afastamento de si mesmo, devido ao amor pelo Outro, é um
componente crítico. A alma deve tomar cuidado para nã o buscar, de
maneira autoconsciente, desfrutar de satisfaçõ es em uma experiência
de nosso Senhor. Tudo deve ocorrer sem um impulso possessivo de
apropriar-se de uma experiência e agarrá -la possessivamente para
satisfaçã o pessoal. As seguintes palavras muito significativas levam o
assunto mais longe e valem a pena ponderar repetidamente. Começam
a sugerir o caminho essencial que conduz com segurança ao encontro
contemplativo em mistério com Nosso Senhor. “Se você quiser
encontrar um tesouro escondido, você deve entrar secretamente no
esconderijo e, uma vez descoberto, você também estará escondido,
assim como o tesouro está escondido” (SC 1.9).

O tesouro escondido é, naturalmente, o pró prio Nosso Senhor, e o seu


esconderijo, como sabemos agora, é o “ser mais íntimo da alma”. Mas o
que significa para a nossa alma entrar secretamente nesse esconderijo?
E o que é esta experiência de encontro contemplativo em que a pró pria
alma estará igualmente escondida? Existe uma instruçã o que deve ser
seguida para cruzar um limiar dentro da nossa alma para este
esconderijo desejado? Estas questõ es nã o podem ser exageradas em
sua importâ ncia. E, de facto, este será o pró ximo foco do comentá rio,
nomeadamente, expor os requisitos necessá rios para passar em
segredo à presença de nosso Senhor que habita no fundo da nossa
alma. O segredo da passagem para a presença divina dentro da alma é
um elemento crucial na oraçã o contemplativa. E o que isso implica? A
ênfase pronunciada está no fato de isso acontecer “ na clandestinidade
”; nomeadamente, através de uma passagem na oraçã o através do
silêncio interior do esquecimento de si mesmo para o esconderijo
secreto, deixando para trá s tudo o que possa chamar a nossa atençã o
particular. A alma tem que se perder em sua auto-estima e consciência
de si mesma se quiser entrar secretamente no esconderijo. Nenhum
método de treinamento mental nos permite atravessar esta passagem.
Pelo contrá rio, alguma forma de libertaçã o da auto-estima deve ocorrer
através do nosso amor por Deus em resposta à graça. É evidente que
também temos a nossa parte a fazer, que é uma entrada submissa num
modo interior de auto-esvaziamento. Como isso ocorrerá exige um
esclarecimento contínuo, que pode ser ouvido inicialmente nestas
palavras:

Visto que, entã o, seu amado Noivo é o tesouro escondido em um campo


pelo qual o sá bio comerciante vendeu todos os seus bens [Mt. 13:44], e
esse campo é a sua alma, para encontrá -lo você deve esquecer todos os
seus bens e todas as criaturas e se esconder no quarto secreto do seu
espírito e lá , fechando a porta atrá s de você (sua vontade para todas as
coisas ), você deve orar ao seu Pai em segredo [Mt. 6:6]. Permanecendo
escondido com ele, você o experimentará escondido, isto é, de uma
forma que transcende toda linguagem e sentimento. . . . Já que você sabe
agora que o seu Amado desejado vive escondido em seu coraçã o,
esforce-se para estar realmente escondido com ele, e você o abraçará
dentro de você e o experimentará com carinho amoroso. (SC 1.9, 10)

O ú ltimo conselho de “esforçar-se para estar realmente escondido


com Ele” combina, com efeito, uma necessá ria disposiçã o interior a ser
perseguida na oraçã o com a necessá ria verdade da habitaçã o divina. O
conhecimento do “lugar” de esconderijo divino é uma coisa, mas agora
a grande ênfase está direcionada para a atitude que a nossa alma deve
adotar na sua busca pelo Deus que se esconde dentro da nossa alma. O
que esse esconderijo da nossa alma realmente implicará como atitude
escolhida de oraçã o? A resposta é um ensinamento sutil, mas
importante para Sã o Joã o da Cruz. A ocultaçã o da alma ocorre nã o
simplesmente pelo esquecimento de si já mencionado, mas pela
manutençã o de uma atitude consistente de fé profunda e certa durante
a oraçã o. O ponto é facilmente esquecido. A tendência de uma pessoa
amorosa pode ser tentar ultrapassar a barreira da separaçã o de Deus
que pode ser sentida na oraçã o precisamente pela tentativa de cultivar
sentimentos de intimidade com Deus. O desejo da alma de escalar o
muro da separaçã o de Deus por meio da sua emoçã o, e assim entrar
numa experiência imediata da presença de Deus, é muitas vezes
perseguido como um esforço para sentir a sua presença.

Pelo contrá rio, Sã o Joã o da Cruz insiste que deve ser feito quase o
contrá rio. Devemos buscar a Deus com fé, oculto em seu mistério
transcendente e além de nosso alcance. Só assim somos atraídos para a
presença pessoal dAquele que se esconde em nossa alma. Somos
levados a ele quando o procuramos precisamente como estando fora do
nosso alcance e fora do nosso sentimento. A verdadeira experiência de
Deus é necessariamente uma experiência do seu mistério
transcendente. Isto nã o significa que ele seja desconhecido; antes, que
ele é conhecido mais profundamente quando é conhecido como Alguém
que está além do nosso conhecimento. Esta experiência é o que leva a
alma ao seu pró prio esconderijo e a prepara para o encontro misterioso
com o Deus oculto. O pará grafo seguinte transmite a verdadeira
natureza paradoxal da descoberta de Deus de uma forma experiencial.
Encontrar Deus no silêncio da oraçã o é experimentar a ocultaçã o de
Deus no seu mistério absoluto. A seguinte declaraçã o é sem dú vida uma
das passagens mais significativas de todos os escritos de Sã o Joã o da
Cruz:

Você faz muito bem, ó alma, em buscá -lo sempre como alguém oculto,
pois você exalta a Deus e se aproxima muito dele quando o considera
mais alto e mais profundo do que qualquer coisa que você possa
alcançar. Portanto, nã o preste atençã o, nem parcial nem totalmente, a
nada que suas faculdades possam compreender. Quero dizer que você
nunca deve buscar satisfaçã o naquilo que entende sobre Deus, mas sim
naquilo que nã o entende sobre ele. Nunca pare para amar e deleitar-se
em sua compreensã o e experiência de Deus, mas ame e deleite-se
naquilo que você nã o pode compreender ou experimentar dele. Esta é a
maneira, como dissemos, de buscá -lo com fé. Por mais certo que possa
parecer que você encontra, experimenta e compreende Deus, porque
ele é inacessível e oculto, você deve sempre considerá -lo oculto e servir
aquele que está oculto de maneira secreta. (SC 1.12)

Estas palavras podem ser categorizadas como um breve exercício de


teologia espiritual apofá tica; no entanto, esse ró tulo corre o risco de
ignorar a importâ ncia desta passagem poderosa para a vida de oraçã o.
A teologia apofá tica é essencialmente um reconhecimento de que Deus,
em seu mistério ú ltimo, é desconhecido para nó s. Apesar de tudo o que
podemos afirmar com precisã o em proposiçõ es conceituais relativas à
verdade revelada de Deus – declaraçõ es sobre seus atributos e sua
natureza, da Encarnaçã o e da Trindade, de suas açõ es divinas como
Criador, Redentor e Santificador – Deus permanece uma realidade
transcendente além da compreensã o. da nossa mente humana. As
proposiçõ es doutriná rias de verdades divinamente reveladas realmente
chegam ao conhecimento da verdade. A mente, no ato de fé, concorda
com essas verdades reveladas por meio de proposiçõ es doutriná rias
formuladas em linguagem precisa e vocabulá rio exato. Mas essas
mesmas verdades de Deus estendem-se, em sua realidade real,
infinitamente além do alcance de nossa compreensã o. Uma coisa é
concordar com uma verdade revelada de Deus; outra questã o é
compreendê-lo completamente. Nossa compreensã o é sempre limitada
e finita.

Mas é tudo isso que Sã o Joã o da Cruz ensina nesta passagem? Nã o,


ele extrai para a oraçã o uma grande consequência que resulta de uma
consciência apofá tica do mistério infinito de Deus. A passagem que
acabamos de ouvir nã o é um discurso teoló gico sobre a natureza
incompreensível de Deus. Em vez disso, Sã o Joã o da Cruz propõ e uma
disposição interior necessária que deve orientar a nossa busca de Deus
na oraçã o devido à sua natureza incompreensível. Uma coisa é abraçar
no pensamento uma consciência apofá tica de que Deus se estende além
do alcance do nosso intelecto. Outra coisa é fazer com que a nossa
busca pela oraçã o dependa da busca de Deus como Aquele que
permanece em perpétuo ocultamento. Isto significa mergulhar mais
profundamente, ao longo do tempo, no reconhecimento da ocultaçã o de
Deus à nossa experiência, precisamente quando O procuramos no amor.
Vale a pena repetir as ú ltimas palavras desta citaçã o recente: “Por mais
que possa parecer que você encontra, experimenta e entende Deus,
porque ele é inacessível e oculto, você deve sempre considerá-lo como
oculto e servir aquele que está escondido em um caminho secreto” (SC
1.12; grifo nosso).

Podemos nã o reconhecer inicialmente a forte demanda aqui


apresentada. A abordagem usual na oraçã o para a maioria das pessoas
é buscar um encontro pessoal com Deus, e com isso normalmente se
entende uma experiência sentida de sua presença. O desejo de alguma
forma de contato pessoal com nosso Senhor é forte para qualquer alma
de fé cristã . Mas Sã o Joã o da Cruz desafia a alma a um ato de fé muito
mais profundo. E uma fé mais profunda leva-nos sempre à verdade da
ocultaçã o de Deus – precisamente no encontro com a sua presença
pessoal. Podemos notar isso prestando muita atençã o à s palavras que
Sã o Joã o da Cruz usa. A frase “buscá -lo sempre como alguém escondido”
nã o implica que esse esforço termine em algum momento. Nã o sugere
que seja uma abordagem a ser adotada simplesmente em dias difíceis
de oraçã o. Em certo sentido, a ocultaçã o de Deus nã o desaparece depois
de algum momento. Nã o há ponto final na busca de Deus como Aquele
que se esconde. Seu mistério se estende indefinidamente ao futuro, à
medida que o perseguimos com amor. E, no entanto, isso nã o significa
que ele nã o seja encontrado. Ele oferece-nos a sua presença pessoal
numa oraçã o mais profunda, mesmo quando permanece oculto no
mistério. Devemos olhar profundamente dentro de Deus para perceber
a natureza de um encontro oculto com ele.

Entã o, que tipo de encontro ocorre, se é que ocorre? Sejamos claros.


De modo algum Sã o Joã o da Cruz coloca a sua ênfase apenas numa
frustraçã o que resulta do ocultamento de Deus. Nã o há sugestã o de
uma incapacidade desesperadora de prosseguir em nossa busca por um
Deus oculto. Ele exorta, nã o a uma submissã o relutante ao mistério
divino, mas antes a um salto em frente no mistério divino por meio do
nosso amor por um Deus totalmente pessoal e, no entanto, oculto. Sua
ênfase está na necessidade de buscar o Deus sempre oculto em um
esforço diá rio de oraçã o. Esta disposiçã o nos planta na verdade e
frutifica na oraçã o. A disposiçã o de procurar Deus precisamente no seu
ocultamento abre a oraçã o a um verdadeiro encontro com Deus. Damos
um passo mais perto dele cada vez que envolvemos sua presença
pessoal velada atrá s da sombra. Esta busca de Deus em sua ocultaçã o é
o que significa buscá -lo na verdade. É um ensinamento difícil, mas
muito importante.

“Buscá -lo sempre como alguém oculto” talvez seja esclarecido


quando contrastamos esta abordagem da oraçã o silenciosa com o que
de outra forma poderíamos procurar como experiências na oraçã o. O
desejo comum de buscar encontros de satisfaçã o mais tangíveis na
oraçã o é bem diferente do que é proposto aqui. Sã o Joã o da Cruz sugere
que buscar experiências de oraçã o de qualquer tipo é um desvio do
caminho genuíno da oraçã o mais profunda. Recordemos estas palavras
recentemente citadas sobre o que não fazer na oraçã o: “nã o preste
atençã o, nem parcial nem totalmente, a nada que as suas faculdades
possam compreender. . . nunca busque satisfaçã o naquilo que você
entende sobre Deus. . . nunca pare para amar e deleitar-se em sua
compreensã o e experiência de Deus.” Pelo contrá rio, como afirma a
mesma passagem, “você exalta a Deus e se aproxima muito dele quando
o considera mais alto e mais profundo do que qualquer coisa que você
possa alcançar”. E assim, em consequência, deveríamos procurar
encontrar a nossa satisfaçã o na oraçã o, o que equivale a uma
contradiçã o da inclinaçã o da nossa alma: “procurar satisfaçã o. . .
naquilo que você nã o entende sobre ele. . . ame e deleite-se naquilo que
você nã o pode compreender ou experimentar dele” (SC 1.12). A
instruçã o declara, com efeito, que algo muito maior nos espera no
encontro com Deus em oraçã o do que qualquer coisa de satisfaçã o
tangível. Mas devemos estar dispostos a entrar nas profundezas de uma
nova consciência para realizar este encontro diferente com Deus.
Devemos passar pela cegueira e pelo sentimento de incapacidade como
caminho para Deus, em vez de encontrar neles obstruçõ es de natureza
conclusiva.

A forte ênfase aqui no desejo de chegar, por assim dizer, a uma


experiência de alguma forma de insatisfaçã o na oraçã o, de vir a
conhecer estranhamente um deleite espiritual naquilo que é frustrante
para a mente, pode parecer à primeira vista um ensinamento pouco
atraente. É preciso ponderar, porque claramente nã o é só isso que o
ensinamento propõ e. Como abordagem à oraçã o, pode ser necessá rio
percorrer um longo caminho de purificaçã o para aceitar a sua
necessidade na vida de oraçã o. Nã o atrai a alma que deseja
experimentar experiências de proximidade imediata e desfrutar do que
parecem ser encontros diretos com Deus. As palavras de Sã o Joã o da
Cruz talvez possam soar como se a oraçã o devesse tornar-se uma
dolorosa busca de impulsos autocontraditó rios. E, no entanto, as
palavras iniciais desta mesma passagem mais longa à qual nos
referimos contêm uma promessa que vale a pena ouvir novamente, a
saber, que você “se aproximará dele quando o considerar mais alto e
mais profundo do que qualquer coisa que você possa alcançar” (SC
1.12; ênfase adicionada). ). E nã o é esse o nosso objetivo? O esforço
para ajustar a nossa consciência na fé ao mistério mais profundo da
presença pessoal de Deus e, mais ainda, para assimilar uma experiência
do mistério de Deus no coraçã o da pró pria oraçã o é o desafio essencial
aqui. Ouçamos mais palavras desta mesma seçã o. A ênfase está
claramente na possibilidade de aproximar-se de Deus na intimidade e
aproximar-se dele em oraçã o:

Nã o seja como muitos tolos que, em sua humilde compreensã o de Deus,


pensam que quando nã o O compreendem, provam ou experimentam,
Ele está distante e totalmente oculto. A crença contrá ria seria mais
verdadeira. Quanto menos distinta é a compreensã o deles sobre ele,
mais perto eles se aproximam dele, já que nas palavras do profeta Davi,
ele fez das trevas o seu esconderijo [Sl. 18:11]. Assim, ao aproximar-se
dele você experimentará escuridã o por causa da fraqueza de seus olhos.
Você faz bem, entã o, em todos os momentos, tanto na adversidade
quanto na prosperidade, seja espiritual ou temporal, em considerar
Deus como oculto, e invocá -lo assim:
Onde você se escondeu,
Amado, e me deixou gemendo? (SC 1.12)

Pode ser ú til, apó s esta passagem, encerrar este capítulo com uma
recapitulaçã o essencial do desafio espiritual deste ensinamento. A
ocultaçã o de Deus no seu mistério transcendente nã o é primariamente
uma afirmaçã o teoló gica nos escritos deste santo, mas uma proposta de
oraçã o. Como expressa esta verdade Sã o Joã o da Cruz, a ocultaçã o de
Deus implica uma presença de Deus escondida e certamente nã o uma
ausência de Deus. A sua ocultaçã o nã o prejudica nem despoja a
natureza pessoal de um encontro com Deus na oraçã o. Pelo contrá rio,
provoca a nossa alma a uma fé e um amor mais intensos. A ocultaçã o de
Deus, como tal, nunca é uma palavra conclusiva nos lá bios de Sã o Joã o
da Cruz. Se a ocultaçã o de Deus, por outro lado, se tornar um foco
demasiado exclusivo na oraçã o, o resultado poderá ser que, durante a
nossa oraçã o, nos desviaremos para pensamentos nebulosos sobre um
Deus desconhecido. Deus nã o é uma entidade vaga encerrada sob a
capa de sombras impenetráveis. Ele é conhecido e encontrado na
identidade real de Jesus Cristo e pró ximo de nó s fisicamente na
proximidade de um sacrá rio ou no Santo Sacrifício da Missa. Mas
precisamente aí, na Presença Real da Eucaristia, encontramos a grande
verdade de quã o escondido ele está .

No entanto, uma consequência significativa resulta da ocultaçã o de


Deus dentro da alma, que tem a ver com a nossa abordagem a Deus em
oraçã o. Nossa alma, ao buscar a Deus como Aquele que se esconde,
deveria permitir-se ser levada para o lugar de ocultaçã o onde Deus
reside em nossa alma. A busca de Deus como oculto é semelhante a ser
atraído pela beleza de seu amor infinitamente expansivo. A natureza
totalmente pessoal de Deus nunca pode ser esquecida, apesar do que
pode soar em linguagem apofá tica como o afastamento de Deus da
nossa experiência. Devemos deixar-nos atrair por Deus,
experimentando-o de forma muito pessoal, precisamente como um
mistério que ultrapassa a nossa experiência. Simplificando, ele é um
mistério de amor pessoal e, pelo resto de nossas vidas, permanecerá
além de nossa plena compreensã o. Esta infinidade do seu amor pessoal
pelas almas é a verdade que encontramos repetidamente na oraçã o. É o
seu amor infinito que é a verdade sempre além do nosso alcance. Em
suma, Deus escolhe habitar num segredo de vasto amor dentro da
nossa alma. Na medida em que cedemos a Deus e nos esvaziamos de
apetites e prazeres desnecessá rios, como veremos, esta presença
secreta de Deus no seu amor misterioso pode tornar-se uma verdade
mais penetrante para a nossa alma. Por enquanto, a seguinte declaraçã o
de A Chama Viva do Amor pode ser lida como uma ú ltima passagem
impressionante sobre este assunto da sua presença íntima de amor
habitando dentro de nó s em ocultaçã o. Veremos suas implicaçõ es se
manifestarem significativamente nos capítulos subsequentes:

É na alma onde habitam menos os seus pró prios apetites e prazeres,


onde ele habita mais sozinho, mais satisfeito e mais como se estivesse
em sua pró pria casa, governando-a e governando-a. E ele mora mais em
segredo, mais ele mora sozinho. Assim, nesta alma em que nã o habita
nenhum apetite, nem outras imagens ou formas, nem quaisquer
afeiçõ es pelas coisas criadas, o Amado habita secretamente com um
abraço tã o mais pró ximo, mais íntimo e interior, quanto mais pura e
mais sozinha a alma é para tudo o mais que Deus. (LF 4.14)
2
cavernas de saudade dentro da alma

Neste segundo capítulo, apresentamos o ensinamento de Sã o Joã o da


Cruz sobre o impacto das virtudes teoló gicas da fé, da esperança e da
caridade sobre a alma na busca de Deus. Mais uma vez, tal como a
ocultaçã o de Deus no mais íntimo da alma, este ensinamento permeia a
sua compreensã o da oraçã o interior. Cada uma das virtudes teologais
habita uma faculdade da alma: a fé no intelecto, a esperança na
memó ria (uma variaçã o de Sã o Tomá s de Aquino, que coloca a
esperança na vontade, mas coerente com o pensamento de Sã o
Boaventura), a caridade na vontade . A uniã o de uma alma com Deus
depende da maneira como essas virtudes teologais servem para unir as
faculdades da alma com Deus. As faculdades humanas sã o “divinizadas”
por meio das virtudes teologais se ocorre um verdadeiro avanço para a
santidade. Eles podem desfrutar de uma uniã o direta e imediata com o
pró prio Deus. Esta nã o é simplesmente, contudo, uma afirmaçã o
teoló gica geral. É importante ter presente que Sã o Joã o da Cruz escreve
para as almas que aspiram à contemplaçã o e, em ú ltima aná lise, à
santidade. A uniã o na oraçã o com Deus que a contemplaçã o promove é
o contexto para a discussã o das virtudes teoló gicas que se segue neste
capítulo. A contemplaçã o, por sua vez, é um componente primordial no
caminho para a santidade e a uniã o com Deus. Sã o Joã o da Cruz recorre
novamente a um poema como ponto de partida para o seu ensino. Desta
vez passamos para a terceira estrofe de “A Chama Viva do Amor”:

Ó lâ mpadas de fogo!
em cujos esplendores
as cavernas profundas do sentimento,
outrora obscuras e cegas,
agora emitem, tã o raramente, tã o primorosamente,
calor e luz ao seu Amado.

“Profundas cavernas de sentimento” é a frase escolhida por Sã o Joã o


da Cruz no seu comentá rio sobre A Chama Viva do Amor para descrever
as faculdades humanas do intelecto, da memó ria e da vontade na sua
capacidade de graças contemplativas e de santidade. “Cavernas de
sentimento” dificilmente é uma descriçã o típica para estas faculdades
da alma humana. A metá fora de uma caverna profunda sugere um
espaço interior sem limites, um vazio que nã o tem ponto final. “Eles sã o
tã o profundos quanto os bens ilimitados de que sã o capazes, uma vez
que nada menos que o infinito não consegue preenchê-los ” (LF 3.18;
grifo nosso). A ú ltima frase implica uma possibilidade extraordiná ria:
regiõ es interiores de profundidade infinita na alma que podem ser
permeadas pela presença do pró prio Deus; lugares de imensidã o
ilimitada na alma que podem ser preenchidos pelo amor infinito de
Deus; vastos espaços dentro da alma que aguardam o fogo de Deus para
queimar dentro deles. Cada uma dessas faculdades – intelecto,
memó ria, vontade – tem uma capacidade ilimitada de fome e sede de
Deus.

Esta representaçã o, em contraste com um tratamento mais abstrato


das “faculdades da alma”, é uma visã o central na teologia espiritual de
Sã o Joã o da Cruz. Seu desafio essencial também está presente aqui. A
menos que as regiõ es interiores do intelecto, da vontade e da memó ria
sofram ao longo do tempo um esvaziamento e uma purificaçã o, “eles
nã o sentem o vasto vazio da sua capacidade profunda ” (LF 3.18; grifo
nosso). A vida contemplativa, como veremos cada vez mais, exige um
esforço corajoso de negar, perder e renunciar, nunca simplesmente para
uma disciplina ascética de abnegaçã o, mas para esculpir um vasto vazio
nas regiõ es internas ocultas da alma, de modo que que eles possam ser
cheios do pró prio Deus. Nã o há uniã o mais profunda com Deus na
oraçã o sem uma entrada progressiva num vazio interior dentro destas
faculdades. O que isso significa e como leva a Deus exigirá uma
elucidaçã o cuidadosa e evitar interpretaçõ es errô neas. Pois a ideia de
vazio é vulnerável como imagem; sugere deficiência, vaga ou ausência.
E ainda assim, em conjunto com a imagem de “cavernas profundas de
sentimento”, onde Deus pode ser misteriosamente encontrado, a noçã o
de um “ vasto vazio ” dentro da alma esperando para receber o amor
infinito de Deus descreve a possibilidade radiante de transformaçã o
sobrenatural na contemplaçã o. .

A necessidade de uma oraçã o mais profunda por esse esvaziamento


do intelecto, da memó ria e da vontade de Deus por meio das virtudes
teoló gicas também está exposta no início do livro 2 de A Subida do
Monte Carmelo . Ali, Sã o Joã o da Cruz ensina que as virtudes teologais
da fé, da esperança e da caridade aperfeiçoam estas faculdades da alma,
produzindo nelas “vazio e escuridã o” (AMC 2.6.1). A referência à s
trevas é pertinente e merece um breve comentá rio, pois esta imagem
das trevas insere-se tã o profundamente no pensamento de Sã o Joã o da
Cruz sobre a contemplaçã o. Mais uma vez, reiteremos que o contexto
destes comentá rios é um ensinamento sobre a profundidade interior
das relaçõ es com Deus na oraçã o. O intelecto, a memó ria e a vontade
devem ser conduzidos a uma “noite espiritual” que se torne o seu “meio
para a uniã o divina” (AMC 2.6.1). As virtudes teoló gicas da fé, da
esperança e da caridade, à medida que aprofundam o seu impacto
numa alma que busca uma oraçã o interior séria, causarã o, cada uma,
um vazio e uma escuridã o nas suas respectivas faculdades: “O intelecto
deve ser aperfeiçoado nas trevas da fé, a memó ria no vazio da
esperança e a vontade na nudez e ausência de todo afeto” (AMC 2.6.1).
As imagens das trevas, do vazio, da nudez e da ausência referem-se
todas a um “esvaziamento” destas faculdades causado pela presença
das virtudes teologais que as habitam na graça. Observaremos com o
tempo a grande importâ ncia deste ensinamento para a contemplaçã o.

Esclarecendo ainda mais as suas expressõ es, Sã o Joã o da Cruz ensina


que estas virtudes teologais “anulam as faculdades” (AMC 2.6.2). Com
isso ele quer dizer que na oraçã o silenciosa eles tiram das faculdades a
capacidade de desfrutar satisfaçã o e as deixam estéreis e vazias na
oraçã o. Em cada caso, a sua inclinaçã o natural como faculdade é
frustrada devido à presença da virtude teoló gica que permeia a
faculdade. Em outras palavras, o corpo docente nã o pode chegar a uma
satisfaçã o na oraçã o silenciosa que normalmente lhe estaria disponível
em outras formas de atividade. Este talvez seja um pensamento
surpreendente para nó s. Estas faculdades, com efeito, nã o podem
encontrar uma satisfaçã o estável ou duradoura em Deus. A razã o é que
eles nã o chegam a Deus de uma maneira que o intelecto, a memó ria ou
a vontade possam desfrutar em qualquer sentido completo. A sua
capacidade natural nã o consegue assimilar o dom que Deus faz de si
mesmo. Por outro lado, podemos optar por buscar na oraçã o
satisfaçõ es à s quais essas faculdades estã o inclinadas – seja em
pensamentos ou sentimentos. Na verdade, a maioria das pessoas
pensaria que a satisfaçã o na oraçã o deve necessariamente ser um sinal
de estarmos mais unidos a Deus. Mas no ensinamento de Sã o Joã o da
Cruz esta suposiçã o é errô nea. Estas satisfaçõ es na oraçã o nã o nos
unem por si mesmas a Deus. E porque nã o?

Sã o Joã o da Cruz convida-nos a ponderar mais profundamente a


natureza de um compromisso pessoal com Deus na oraçã o. Deus é um
mistério de amor infinito, e nada experimentado como satisfaçã o na
oraçã o pelo nosso intelecto, memó ria ou vontade é em si um meio
confiável que podemos dizer que nos une a ele em sua verdade como
amor infinito. Pelo contrá rio, as virtudes teoló gicas da fé, da esperança
e do amor sã o elas pró prias os meios pelos quais as faculdades da alma
se unem diretamente a Deus. Essa uniã o se dá acompanhada de um
esvaziamento experiencial das faculdades. As satisfaçõ es que podem
ser experimentadas na oraçã o sã o apenas aspectos secundá rios. O
efeito mais importante da oraçã o mais profunda é uma purificaçã o
esvaziadora das faculdades. Este ensinamento surge da verdade da
transcendência infinita de Deus; uma consequência disso é a
incapacidade do conhecimento, do sentimento ou de qualquer
experiência de se apoderar de Deus. Na sua verdade real, Deus
permanece sempre fora do alcance de qualquer experiência humana.
Esta verdade ilumina a imagem das faculdades como “cavernas” da
alma. As faculdades, como cavernas de profundidade infinita, têm
sempre, por assim dizer, maior extensã o dentro delas, nas quais Deus
ainda permanece oculto em seu amor. A experiência do vazio e da
esterilidade nas faculdades coincide com a entrada em maiores
profundidades da presença oculta de Deus nas “cavernas” das
faculdades. Uma passagem do tratamento de Sã o Joã o da Cruz sobre a
fé nesta seçã o de A Ascensão é ilustrativa deste ensinamento e talvez
possa ajudar um pouco neste ponto:

É contado sobre nosso Pai Elias que no monte ele cobriu o rosto (cegou
o intelecto) na presença de Deus [1 Reis. 19:11–13]. Ele fez isso porque,
em sua humildade, nã o ousou contemplar algo tã o elevado, e percebeu
claramente que qualquer coisa que pudesse contemplar ou
compreender em particular estaria muito distante de Deus e muito
diferente dele. Nesta vida mortal, nenhum conhecimento ou apreensã o
sobrenatural pode servir como meio imediato para uma elevada uniã o
com Deus através do amor. Tudo o que o intelecto pode compreender, a
vontade desfruta e a imagem da imaginaçã o é muito diferente e
desproporcional a Deus. (AMC 2.8.4–5)

O ensinamento pode parecer sutil e assustador, e talvez nã o muito


compreensível neste momento. No entanto, apresenta-se um claro
contraste entre o que pode ser uma satisfaçã o particular procurada
pelo nosso intelecto, memó ria ou vontade na oraçã o e a maior
possibilidade espiritual de uma uniã o destas faculdades com a presença
oculta do pró prio Deus. Como foi afirmado recentemente, mas vale a
pena repetir, Deus, no seu ser infinito, está sempre além do alcance ou
do gozo da capacidade humana destas faculdades. Somente de uma
forma que exceda a sua capacidade natural é que eles encontram Deus
na sua verdade. Mas isto significará um encontro de uma maneira
misteriosa, além da operaçã o normal da faculdade. Tal encontro com
Deus significa sempre um excesso avassalador de contacto com Deus
que nã o pode ser assimilado pelas faculdades no seu modo habitual de
compreensã o ou gozo. Sã o Joã o da Cruz afirma enfaticamente: “A alma
nã o se une a Deus nesta vida pela compreensã o, nem pelo gozo, nem
pela imaginaçã o, nem por qualquer outro sentido; mas só a fé, a
esperança e a caridade (segundo o intelecto, a memó ria e a vontade)
podem unir a alma a Deus nesta vida” (AMC 2.6.1).

Uma coisa, em outras palavras, é a satisfaçã o numa hora de oraçã o


que pode ser desfrutada pelo intelecto, pela memó ria ou pela vontade.
Isto pode chegar, por exemplo, ao intelecto em oraçã o através de um ato
de compreensã o de uma passagem bíblica com alguma nova visã o.
Outra coisa é o pró prio intelecto chegar, por meio da fé sobrenatural, à
uniã o com Deus. Esta uniã o nã o se dá através de uma elevaçã o do
entendimento ou de qualquer outro ato natural exercido pelo intelecto.
Isso ocorre porque a fé em sua pureza nua une o intelecto a Deus, como
veremos. O mesmo padrã o vale para as outras duas faculdades e suas
respectivas virtudes teoló gicas. Uma implicaçã o crucial está presente
neste ensinamento: a necessidade, em prol da purificaçã o, de que o
intelecto, a memó ria e a vontade nã o obstruam os efeitos da fé, da
esperança e da caridade. E como isso aconteceria? Isso pode acontecer
buscando na oraçã o alguma satisfaçã o de insight, imagem ou
sentimento para o qual o intelecto, a memó ria ou a vontade estã o
naturalmente inclinados, resistindo assim ao esvaziamento da
faculdade. É necessá rio um esforço de esvaziamento do intelecto, da
memó ria e da vontade das satisfaçõ es naturais na vida interior de
oraçã o mais profunda, para que essas faculdades respondam à s graças
das virtudes teologais que nelas operam. Sã o Joã o da Cruz resume
assim a necessidade desta purificaçã o na oraçã o: “A fé causa trevas e
um vazio de compreensã o no intelecto, a esperança gera um vazio de
bens na memó ria, e a caridade produz a nudez e o vazio de afeto e
alegria em tudo o que nã o é Deus. . . . Devemos, entã o, conduzir as
faculdades da alma a estas três virtudes e informar cada faculdade com
uma delas, despojando-a e obscurecendo-a de tudo o que nã o seja
conforme a estas virtudes” (AMC 2.6.2, 6).
Lembremos o que foi apresentado no capítulo anterior por Sã o Joã o
da Cruz a respeito da presença oculta de Deus na alma. Este
ensinamento esclarece a razã o da necessidade de uma purificaçã o
radical destas faculdades. De modo fundamental, permanecemos
ignorantes da capacidade ilimitada da nossa alma para a uniã o com o
amor infinito de um Deus oculto, se resistirmos à necessidade da
purificaçã o interior da alma na oraçã o. E que tipo de purificaçã o é
necessá ria? Esta nã o é uma proposta de prá ticas ascéticas voltadas para
desejos corporais. A purificaçã o envolve, em vez disso, a difícil tarefa
interior dentro da pró pria oraçã o de nos esvaziarmos dos nossos
há bitos arraigados para lutar por outras satisfaçõ es que nã o as do
pró prio Deus. O Deus que procuramos é um Deus que se esconde no
íntimo da alma. Ele é um Deus que deve ser procurado como sempre
escondido. E nó s mesmos, como vimos, devemos nos esconder de nó s
mesmos procurando apenas por ele. Por outro lado, a oraçã o oferece a
possibilidade de buscar satisfaçõ es pessoais agradáveis ao nosso
pró prio espírito, satisfaçõ es que sã o inferiores a Deus e que à s vezes
podem nos fazer voltar contra nó s mesmos. Podemos optar por nos
ocupar na busca de percepçõ es, insights ou sentimentos buscados por
nó s mesmos, em vez de como degraus que levam ao pró prio Deus.
Podemos afirmar que procuramos apenas a experiência de Deus, mas
na verdade procuramos frequentemente a nossa pró pria satisfaçã o
nestas experiências espirituais.

Em vá rios lugares, Sã o Joã o da Cruz identifica esta tendência de


motivaçã o egoísta na oraçã o como alvo de reprovaçã o. Na verdade, é
bastante comum direcionar desejos em oraçã o para um prazer que
buscamos para nó s mesmos. O desejo de uma sensaçã o tangível de
proximidade com Deus é um exemplo típico. O sentimento de amor na
oraçã o – seja enraizado na emoçã o ou como uma experiência que
ressoa mais profundamente no espírito de alguém – pode ser
facilmente identificado como uma experiência direta da presença de
Deus. Essa satisfaçã o no sentimento transmite uma sensaçã o de
realizaçã o, uma espécie de chegada, na qual a alma pode encontrar
momentaneamente seu repouso. Parece nã o haver necessidade de ir
mais longe agora que “encontramos” o amor. Nosso desejo é saciado,
pelo menos por enquanto, numa experiência satisfató ria. Na visã o de
Sã o Joã o da Cruz, esta tendência representa um impedimento à
contemplaçã o e a uma uniã o mais profunda com Deus.
Involuntariamente, contentamo-nos em desfrutar de uma satisfaçã o
muito inferior à busca do pró prio Deus. Ocorre uma ilusã o ao
identificar a satisfaçã o desfrutada de alguma maneira tangível com a
alma tomando posse de Deus até certo ponto. O contraste na oraçã o é
enorme quando fazemos todos os esforços para nã o nos determos num
sentimento de satisfaçã o e, em vez disso, mantemos uma busca pura
por Deus, nã o nos detendo nas satisfaçõ es que podem ser desfrutadas
pelas faculdades. Em suma, a imensa capacidade destas faculdades para
uma recepçã o do infinito só é descoberta mantendo na vanguarda da
nossa consciência espiritual “ o vasto vazio da sua capacidade profunda
” (LF 3.18; grifo nosso). Na verdade, é uma possibilidade incrível que
nos é oferecida, como ouvimos nestas palavras de A Chama Viva do
Amor :

A capacidade destas cavernas [intelecto, memó ria e vontade] é


profunda porque o objeto desta capacidade, nomeadamente Deus, é
profundo e infinito. Assim, de certa forma, a sua capacidade é infinita, a
sua sede é infinita, a sua fome também é profunda e infinita, e o seu
enfraquecimento e sofrimento sã o a morte infinita. Embora o
sofrimento nã o seja tã o intenso como o sofrimento da pró xima vida, a
alma é uma imagem viva dessa privaçã o infinita, pois está de certa
forma disposta a receber a sua plenitude. Este sofrimento, porém, é de
outra qualidade porque reside nos recô nditos do amor da vontade; e
nã o é o amor que alivia a dor, pois quanto maior o amor, tanto mais
impacientes sã o essas pessoas pela posse de Deus, por quem esperam
à s vezes com intenso desejo. (LF 3.22)

Para Sã o Joã o da Cruz, o desafio da oraçã o interior está exposto em


grande parte nesta passagem. A infinidade do amor divino exige que
essas faculdades sejam liberadas de todo apego à s experiências de
Deus. Padrõ es paralelos de purificaçã o ocorrem no intelecto, na
memó ria e na vontade, à medida que se permitem ser esvaziados
somente para Deus. A fé nos une a Deus apenas mais profundamente
quando experimentamos uma cegueira do intelecto; a esperança nos
une a Deus apenas ao anular qualquer suporte de memó rias recolhidas;
a caridade nã o nos une a Deus senã o pela adesã o em puro desejo ao
pró prio Deus. As satisfaçõ es como experiências na oraçã o tendem, em
contraste, a desviar-nos de desejar Deus puramente em si mesmo. É
claro que este ensinamento nã o defende uma espécie de abordagem
niilista da oraçã o. Para Sã o Joã o da Cruz, nunca é uma experiência de
satisfaçã o ou prazer em si que seja tã o problemá tica na oraçã o. O
problema que ele aborda surge quando as faculdades do intelecto, da
memó ria e da vontade se ocupam em buscar experiências de prazer na
oraçã o – até mesmo a experiência do amor, quando é buscado para sua
pró pria satisfaçã o. Lembremos novamente que todos estes comentá rios
pressupõ em uma vida séria e comprometida de oraçã o interior
silenciosa. Quando o propó sito de tal oraçã o é por algo diferente do
pró prio Deus, as faculdades do intelecto, da memó ria e da memó ria
perdem sua capacidade inata de serem preenchidas pelo amor infinito
de Deus. As exigências espirituais de uma alma sã o reconhecidamente
grandes, mas a recompensa também é grande. A disponibilidade para
nã o nos contentarmos com nada além do pró prio Deus pode
transformar a oraçã o numa busca interminável de saudade do pró prio
Deus. E este deve ser o nosso objetivo na oraçã o, um amor supremo
pelo Amado. Nada mais pode superar um desejo puro somente por
Deus. Como escreve Sã o Joã o da Cruz numa seleçã o dos Ditos de Luz e
Amor : “As almas nã o poderã o alcançar a perfeiçã o se nã o se esforçarem
para se contentarem em nã o ter nada, de tal forma que o seu desejo
natural e espiritual seja satisfeito com o vazio. ; pois isso é necessá rio
para alcançar a mais elevada tranquilidade e paz de espírito. Portanto, o
amor de Deus na alma pura e simples está quase continuamente em
açã o” (SLL 54).
Encontramos a importâ ncia de buscar o contentamento com nada
além de Deus em muitos lugares dos escritos de Sã o Joã o da Cruz.
Pouco depois de introduzir a imagem das faculdades como “cavernas
profundas de sentimento” em A Chama Viva do Amor , por exemplo, ele
afirma que um impedimento primá rio à contemplaçã o ocorre quando
os apegos se apegam a nó s e sã o repetidamente procurados, em vez de
buscarmos o pró prio Deus. Esses apegos sã o sempre contrá rios a
aceitar o contentamento por nã o ter nada: “Qualquer coisinha que lhes
adira nesta vida é suficiente para sobrecarregá -los e enfeitiçá -los de tal
forma que eles nã o percebem o mal ou notam a falta de seus imensos
bens, ou sabem sua pró pria capacidade” (LF 3.18). As palavras sã o uma
forte advertência. É preciso muito pouco para perturbar e bloquear o
dinamismo adequado de uma busca santa por Deus dentro ou fora da
vida de oraçã o. Podemos acabar vivendo sem perceber os danos
infligidos por tendências muito comuns que, na verdade, nos impedem
de nos contentar em nã o ter nada, ou seja, nada além de Deus. Temos
capacidade de grandeza, de sermos cheios do amor de Deus em nossa
oraçã o. No entanto, podemos viver as nossas horas de oraçã o como
saqueadores inquietos, em busca de prémios ou prazeres que valem
muito pouco, procurando delícias que nos satisfaçam apenas de forma
insignificante e passageira. Sem um despertar pelo qual Deus se torne
uma busca apaixonada que envolva toda a intensidade da nossa vida, a
nossa alma pode descer facilmente a uma caricatura monó tona da sua
verdadeira potência. Como escreve Sã o Joã o da Cruz:

É surpreendente que o mínimo desses bens seja suficiente para


sobrecarregar essas faculdades, capazes de bens infinitos, de modo que
elas nã o possam receber esses bens infinitos até que estejam
completamente vazias, como veremos. No entanto, quando essas
cavernas estã o vazias e puras, a sede, a fome e o anseio do sentimento
espiritual sã o intoleráveis. Como essas cavernas têm estô magos
profundos, elas sofrem profundamente; porque o alimento que lhes
falta, que como digo é Deus, também é profundo. (LF 3.18)
O objetivo da oraçã o interior séria em silêncio, como tal, é entrar
mais profundamente numa grande fome e sede do Deus oculto de vasto
amor. Todas as condiçõ es preliminares que podem provocar esta fome,
dentro e fora da oraçã o, devem ser observadas como estritas leis
espirituais. Desprezá -los sempre dificulta o nosso avanço na oraçã o e
no nosso amor a Deus. A purificaçã o destas faculdades, se quisermos
relaçõ es mais profundas com Deus, nã o tem opçã o. É resistido ao custo
de travar o progresso espiritual. Esta purificaçã o só pode ocorrer
privando as faculdades do seu desejo natural de satisfaçã o até que,
finalmente, depois de uma longa perseverança no auto-esvaziamento e
com a ajuda da graça, um ú nico desejo inflama a fome e a sede da nossa
alma. Nã o devemos perder a ênfase neste ensinamento sobre nos
perdermos por amor a Deus. Para Sã o Joã o da Cruz, o esforço de
renú ncia nunca se dirige exclusivamente para as coisas exteriores, mas
estende o seu impacto até ao mais profundo da alma. Um coraçã o vazio
de desejo, exceto o pró prio Deus, pode eventualmente conhecer uma
profunda realizaçã o do seu desejo mais profundo: “Negue os seus
desejos e encontrará o que o seu coraçã o anseia”, escreve Sã o Joã o da
Cruz num aforismo. “Pois como você sabe se algum desejo seu é
segundo Deus?” (SLL 15).

O puro “sim” de uma alma somente a Deus, como o decreto da Virgem


Maria na Anunciaçã o, é realmente o que abre as comportas à s graças
contemplativas. A pureza desse “sim” reflete o desejo de nã o parar no
amor até chegar ao pró prio Deus. Mas este consentimento a Deus deve
necessariamente incluir um grande espírito de abnegaçã o em relaçã o a
nó s mesmos e a todos os desejos secundá rios. O consentimento em
pertencer inteiramente a Deus torna-se uma recusa a tudo o que nos
puxaria de volta para dentro de nó s mesmos e para o nosso pró prio
interesse. Para ser claro, Sã o Joã o da Cruz exorta a uma ampla
disposiçã o de apaixonar-se por tudo o que Deus deseja e, em ú ltima
aná lise, desejá -lo apenas. O esvaziamento das faculdades na oraçã o
deve ser acompanhado por uma entrega da nossa vontade e de todo o
nosso desejo à vontade de Deus. A firme escolha de buscar somente a
Deus acarreta muitas recusas em buscar satisfaçõ es naquilo que nã o é
Deus. Esta exclusividade no nosso amor por Deus nã o significa, é claro,
que nã o amemos outras pessoas nesta vida; antes, que todo amor flui
de uma corrente mais profunda de um intenso amor por Deus. Deus,
desde o seu fim, por assim dizer, responde a um amor intenso por si
mesmo e enche a alma com a sua pró pria presença. Ele preenche o que
encontra, por meio do nosso amor, vazio para si mesmo. Tudo isto
acontece sob o impulso dinâ mico de um “sim” puro e irrestrito a Deus,
que é a grande palavra de amor na alma. Como escreve Sã o Joã o da Cruz
em A Chama Viva do Amor :

Quando a alma tiver alcançado tal pureza em si mesma e em suas


faculdades que a vontade esteja muito pura e purgada de outras
satisfaçõ es e apetites estranhos. . . e deu o seu “sim” a Deus em relaçã o a
tudo isso, visto que agora a vontade de Deus e a da alma sã o uma só
através do seu pró prio consentimento livre, entã o a alma alcançou a
posse de Deus na medida em que isso é possível por meio da vontade e
da graça. E isto significa que no “sim” da alma, Deus deu o verdadeiro e
completo “sim” da sua graça. (LF 3.24)

Grande parte do tratamento da purificaçã o contemplativa nos escritos


de Sã o Joã o da Cruz é direcionado à resposta do intelecto na fé a uma
purificaçã o por uma escuridã o experiencial e à purificaçã o da vontade
na caridade pela ausência de desejo por qualquer coisa além de Deus e
seu vai. Esses assuntos serã o resolvidos com o tempo. Contudo, pode
ser instrutivo, como parte deste capítulo, observar por um momento, de
maneira ilustrativa, como ocorre a purificaçã o da memó ria pela virtude
teoló gica da esperança e a resposta adequada da memó ria a esta açã o
da graça. O padrã o para uma faculdade é o padrã o para todas as três. A
purificaçã o de todas as três faculdades é para a uniã o amorosa da alma
com Deus. O esvaziamento das faculdades de suas operaçõ es e
capacidades naturais, e de suas apreensõ es e satisfaçõ es naturais, é
igualmente uma necessidade em prol da contemplaçã o. Estes dois
objetivos, nas pá ginas de Sã o Joã o da Cruz, andam de mã os dadas.
Como ele escreve, “estamos aqui transmitindo instruçõ es para avançar
na contemplaçã o até a uniã o com Deus” (AMC 3.2.2). No caso de cada
faculdade, deve ocorrer uma espécie de desligamento do
funcionamento normal da faculdade para permitir que a açã o de Deus a
mova de maneira sobrenatural durante a oraçã o: “Todos esses meios e
exercícios sensoriais das faculdades devem, conseqü entemente, ser
deixados para trá s e em silêncio para que o pró prio Deus realize a uniã o
divina na alma” (AMC 3.2.2). A alma na sua oraçã o nã o pode
permanecer simplesmente passiva nesta obra da graça; tem que
cooperar no autoesvaziamento da faculdade. Infelizmente, é
precisamente a actividade das faculdades de oraçã o mais profunda,
quando exercida à parte da graça de Deus, que pode ser o principal
obstá culo à recepçã o das graças contemplativas. Por outro lado, existe
um “método” de receptividade que deve ser praticado voluntariamente,
como escreve Sã o Joã o da Cruz: “É preciso seguir este método de
desembaraçar, esvaziar e privar as faculdades da sua autoridade e
operaçõ es naturais para abra espaço para o influxo e a iluminaçã o do
sobrenatural. Aqueles que nã o desviam os olhos da sua capacidade
natural nã o alcançarã o uma comunicaçã o tã o elevada; pelo contrá rio,
irã o impedi-lo” (AMC 3.2.2).

No caso da memó ria, entã o, em que a virtude teologal da esperança


reside no esquema de Sã o Joã o da Cruz, a grande necessidade de uniã o
com Deus e de contemplaçã o é uma desapropriaçã o de todo
conhecimento claro na oraçã o. Tal conhecimento, pela sua pró pria
clareza, seria apenas uma barreira ao encontro com a verdade da
incompreensibilidade de Deus. Se a faculdade da memó ria é, como as
outras faculdades, uma “caverna” de profundidade ilimitada, o caminho
para essa profundidade interior é uma passagem na oraçã o através de
um vazio escuro de conhecimento. “Se é verdade – como de fato é – que
a alma deve caminhar conhecendo a Deus através do que ela nã o é, e
nã o através do que ele é, ela deve caminhar, na medida do possível,
através da negaçã o e rejeiçã o do natural e do sobrenatural. apreensõ es”
(AMC 3.2.3). Este ensinamento coincide com o tratamento da fé e do
intelecto. O intelecto também, na fé, deve aceitar um caminho sombrio
de obscuridade na oraçã o, uma desapropriaçã o do conhecimento
natural e sobrenatural. Este ensinamento, para ser claro, refere-se à
vida interior da oraçã o. Nã o se trata de forma alguma de uma descriçã o
de uma condiçã o geral de incapacitaçã o na faculdade.

Poderíamos notar especialmente nesta ú ltima citaçã o a referência ao


conhecimento sobrenatural , o que pode nos parecer estranho. No
entanto, este conhecimento também está incluído na necessidade de
despojamento na oraçã o. A ideia, claro, nã o é sugerir uma rejeiçã o ou
perda do conhecimento da fé. É antes, mais uma vez, insistir na
compreensã o de que a infinitude de Deus se estende além de qualquer
conhecimento particular de Deus que possa ser desfrutado na oraçã o.
Deus, por sua natureza, é incompreensível para nó s. Estas faculdades
da alma só podem aproximar-se de Deus aceitando a incapacidade da
operaçã o da faculdade de abranger um conhecimento mais completo de
Deus. Para a memó ria, isto significará a escolha de nã o recorrer a
lembranças distintas de qualquer tipo na oraçã o. “Devemos afastá -lo
dos seus suportes e limites naturais e elevá -lo acima de si mesmo
(acima de todo conhecimento distinto e posse apreensível) à esperança
suprema do Deus incompreensível” (AMC 3.2.3). A exigência é
renunciar a pensamentos retirados da nossa memó ria que possam
parecer elevar a alma a alguma percepçã o de Deus, mas que na verdade
competem com a verdade de Deus como Aquele que está além de
qualquer pensamento particular. A memó ria na oraçã o mais profunda
deve deixar os pensamentos de lado porque eles nã o ajudam, mas antes
obstruem, a recepçã o das graças contemplativas. Como escreve Sã o
Joã o da Cruz a respeito do exercício de um tempo de oraçã o silenciosa:

Nã o há como se unir a Deus sem aniquilar a memó ria de todas as


formas [isto é, itens de conhecimento]. Esta uniã o nã o pode ser
realizada sem uma separaçã o completa da memó ria de todas as formas
que nã o sã o Deus. Como mencionamos na noite do intelecto, Deus nã o
pode ser abrangido por nenhuma forma ou conhecimento distinto. . . .
Visto que a memó ria nã o pode estar ao mesmo tempo unida a Deus e à s
formas e conhecimentos distintos, e visto que Deus nã o tem forma ou
imagem compreensível para a memó ria, a memó ria fica sem forma e
sem figura quando unida a Deus. Perdendo-se a sua imaginaçã o num
grande esquecimento, sem se lembrar de nada, ele é absorvido por um
bem supremo. (AMC 3.2.4)

Uma compreensã o importante sobre a oraçã o interior mais profunda


está sendo transmitida aqui. Embora a contemplaçã o tenha sempre um
elemento de receptividade passiva à graça, como será examinado mais
detalhadamente mais tarde, é, no entanto, necessá rio que as faculdades
da alma exerçam um esforço pró prio adequado para negar e rejeitar a
sua inclinaçã o para procurar satisfaçõ es mais fá ceis na oraçã o. . Estas
faculdades desempenham um papel fundamental, por sua pró pria
escolha, na aceitaçã o das trevas purgativas que descem sobre a
faculdade, particularmente numa oraçã o mais profunda de
contemplaçã o. Um espírito de entrega aos efeitos que podem ser
difíceis de administrar e difíceis de entender a princípio como um
benefício, é necessá rio para o caminho contemplativo até Deus. É um
equívoco pensar que a contemplaçã o está inteiramente sob a açã o de
Deus e que a alma simplesmente se absorve contentemente na
recepçã o da graça. Antes, surgirá a necessidade, pelo menos
inicialmente, de certos exercícios interiores de mortificaçã o espiritual.
Sem nos observarmos conscientemente, as nossas faculdades de
intelecto e memó ria devem, no entanto, estar conscientes de nã o
abraçar pensamentos sobre Deus ou de procurar reflexõ es que possam
ser apeladas como uma satisfaçã o imediata na oraçã o. Deus, em sua
infinita realidade de amor, está sempre além de tais reflexõ es. “É
extremamente fá cil”, adverte Sã o Joã o da Cruz, “julgar o ser e a altura de
Deus de forma menos digna e sublime do que convém à sua
incompreensibilidade” (AMC 3.12.1). No que diz respeito
especificamente à memó ria, a abordagem necessá ria na oraçã o mais
profunda será negar a inclinaçã o de recordar tudo o que possa ser de
interesse provocativo para a mente. A recusa na oraçã o de ir em busca
de pensamentos perspicazes ou estimulantes é a difícil exigência que
está sendo proposta. A ênfase é forte na passagem seguinte sobre esta
necessidade de moderar e domar qualquer inclinaçã o de buscar
alimento para pensamento e reflexã o. Pareceria quase antinatural e
contrá rio ao bom senso espiritual. Mas Sã o Joã o da Cruz é bastante
claro: “Através dos esforços do pró prio espiritual, a memó ria deve ser
trazida para esta noite e purgaçã o. . . . A memó ria, como se fosse
inexistente, deveria ser deixada livre e desimpedida e desvinculada de
qualquer consideraçã o terrena ou celestial. Deveria ser deixado
livremente no esquecimento, como se fosse um obstá culo, pois tudo o
que é natural é um obstá culo e nã o uma ajuda para quem deseja utilizá -
lo no sobrenatural” (AMC 3.2.14).

O que encontramos novamente neste ensinamento sã o princípios


fundamentais da teologia apofá tica, mas no contexto da oraçã o de
contemplaçã o. O Deus que procuramos na oraçã o é um Ser pessoal de
Amor infinito, uma Trindade de Pessoas que pode ser conhecida e
amada, mas nunca conhecida ou amada adequadamente e nunca
tomada de posse. Nosso conhecimento em oraçã o, por mais sublime ou
mesmo místico que seja, sempre fica muito aquém de chegar à
realidade do Deus Todo-Poderoso. A ênfase apofá tica na inadequaçã o
do nosso conhecimento para confrontar a infinitude do ser de Deus é
acompanhada pela ênfase contemplativa na sombria insuficiência da
nossa experiência de Deus na oraçã o. Só podemos encontrar Deus nos
â mbitos mais profundos da oraçã o de uma maneira que nos atraia cada
vez mais para o abismo do seu mistério. Como escreve Sã o Joã o da Cruz
nesta seçã o sobre a memó ria: “As almas devem ir a Deus nã o
compreendendo, e nã o compreendendo, e devem trocar o mutável e o
compreensível pelo imutável e incompreensível” (AMC 3.5.3).

Com efeito, Sã o Joã o da Cruz, ao longo dos seus escritos, repete este
princípio apofá tico de que o que é compreensível sobre Deus deve ser
visto como um conhecimento inferior ao que é incompreensível. Este
ú ltimo é o conhecimento mais verdadeiro de Deus e, igualmente, é a
experiência mais genuína de Deus na oraçã o contemplativa. Avançar na
oraçã o significa, por um lado, um encontro mais pessoal com a
presença de Deus. Mas significa também um encontro mais profundo
com a sua incompreensibilidade como Deus. Nã o rebaixamos Deus, por
assim dizer, à s limitaçõ es da nossa capacidade. Mas também é verdade
que Deus nã o se diminui nem renuncia à sua pró pria grandeza infinita
ao aproximar-se da alma que tanto ama. Ele continua sendo o Deus de
amor infinito e sempre além do nosso alcance ou experiência. Esta
verdade rege o ensinamento constante de Sã o Joã o da Cruz. A pobreza
experiencial da alma em oraçã o diante da majestade transcendente do
amor de Deus nunca é superada. Esta verdade aplicável à contemplaçã o
deve ser acompanhada por uma rejeiçã o deliberada de atividades
menores no momento da oraçã o. Mais uma vez, na seçã o sobre a
memó ria, ouvimos esta ênfase: “A mais elevada lembrança. . . consiste
em concentrar todas as faculdades no Bem incompreensível e retirá -las
de todas as coisas apreensíveis, pois essas coisas apreensíveis nã o sã o
um bem que está além da compreensã o” (AMC 3.4.2).

A desapropriaçã o das faculdades torna-se uma condiçã o fundamental


para a assimilaçã o da verdade apofá tica da incompreensibilidade de
Deus que deve acompanhar o encontro contemplativo com Deus. Estas
faculdades devem, de facto, tornar-se cavernas vazias para que Deus as
preencha com a sua presença de imenso amor. Se isso acontecer, nã o
significa experiências especiais de Deus. Muito pelo contrá rio, pois a
contemplaçã o é experiencialmente apofá tica. Deus é conhecido,
experimentado e amado como Aquele que é desconhecido na plenitude
do seu ser e amor infinitos. Esta é a grande intuiçã o interpretativa que
Sã o Joã o da Cruz reafirma continuamente. A desapropriaçã o que ele
defende das faculdades de oraçã o é, como implica, um vazio
experiencial da faculdade no momento da oraçã o. Nã o que o vazio deva
ser cultivado como um fim em si mesmo; antes, deveria ser cultivada
com a compreensã o apofá tica de que abandonar um conhecimento
claro de Deus libera um obstá culo e abre o caminho para a consciência
agraciada de que Deus, em sua realidade incompreensível, se estende
além de todo conhecimento, mesmo quando ele está perto da alma no
hora presente. Este tipo de desapropriaçã o requer, até certo ponto, um
esforço deliberado de purgaçã o porque envolve uma condiçã o contrá ria
ao funcionamento e inclinaçã o naturais da faculdade. Como ensina Sã o
Joã o da Cruz: “É melhor aprender a silenciar e aquietar as faculdades
para que Deus fale. Pois neste estado, . . . as operaçõ es naturais devem
desaparecer de vista. Isto se realiza quando a alma chega à solidã o
nestas faculdades e Deus fala ao seu coraçã o” (AMC 3.3.4).

A solidã o que acabamos de mencionar é, aliá s, outra imagem ú til para


o esvaziamento e desapropriaçã o das faculdades. O vazio de estar, por
assim dizer, em estado solitá rio é necessá rio para o intelecto, a
memó ria e a vontade para que se tornem capazes de absorver graças
sobrenaturais que transmitem um encontro experiencial com Deus na
oraçã o contemplativa. Vazio dentro da faculdade significa estar sozinho
na faculdade, sem qualquer outro “companheiro” ou objeto para ocupá -
lo. Este vazio é precisamente a condiçã o para a imediatez de um
encontro contemplativo apofá tico com Deus: “A alma deve esvaziar-se
de tudo o que nã o é Deus para ir a Deus” (AMC 3.7.2). Num outro
sentido, o vazio significa simplesmente a inatividade na operaçã o
natural que a faculdade normalmente realiza. Contudo, a inatividade é
interpretada erroneamente se for considerada uma mera passividade.
Há sempre a implicaçã o de que o exercício da faculdade é por vezes
necessá rio para resistir à interferência da sua inclinaçã o natural para
procurar o conforto de outras satisfaçõ es possíveis. Em vez disso, deve
optar por entregar-se a um estado interior de pobreza e despossessã o.
A insistência neste ensinamento no envolvimento do corpo docente é
ilustrada na seguinte objeçã o e resposta que Sã o Joã o da Cruz faz a
respeito do necessá rio vazio da memó ria no momento da oraçã o.

Se você ainda insiste, afirmando que uma pessoa nã o obterá benefícios


se a memó ria nã o considerar e refletir sobre Deus, e que muitas
distraçõ es e fraquezas gradualmente encontrarã o entrada, respondo
que isso é impossível. Se a memó ria for recolhida [silenciosa e vazia]
tanto nas coisas celestiais quanto nas terrenas, nã o haverá entrada para
males, distraçõ es, fantasias ou vícios - todos os quais entram através da
divagaçã o da memó ria. Ocorreriam distraçõ es se, ao fecharmos a porta
à s reflexõ es e à meditaçã o discursiva, a abríssemos aos pensamentos
sobre assuntos terrenos. Mas no nosso caso fechamos a memó ria a
todas as coisas - das quais surgem distraçõ es e males - tornando-a
silenciosa e muda, e ouvindo Deus em silêncio com a audiçã o do
espírito, dizendo com o profeta: Fala Senhor, pelo teu servo está ouvindo
[1 Sam. 3:10]. (AMC 3.3.5)

Por ú ltimo, ao concluir este capítulo, pode-se perguntar como a


esperança desempenha um papel neste avanço contemplativo da alma.
A virtude teoló gica da esperança entra na lacuna do vazio que se segue
à memó ria que sofre uma desapropriaçã o de coisas que poderiam
ocupar a sua atividade e foco. A esperança é a virtude purificadora que
permeia a memó ria para esvaziá -la para a recepçã o de Deus. Este
ensinamento oferece uma interpretaçã o exclusivamente contemplativa
da esperança como uma virtude da memó ria. Para Sã o Tomá s de
Aquino, como mencionamos, a esperança está localizada na vontade.
Para ambos os santos, a esperança como virtude, e como inclinaçã o
natural, dirige-se para aquilo que ainda nã o foi alcançado, ainda nã o
alcançado, e espera ainda no futuro para ser possuído. Implica sempre
um anseio por alguma coisa. Podemos compreender o que Sã o Joã o da
Cruz está fazendo colocando esperança na memó ria, se considerarmos
o que acontece com a memó ria quando uma pessoa está “apaixonada”. É
provável que a memó ria entã o lembre a pessoa amada com frequência,
nunca esquecendo, por um período prolongado de tempo, a presença
da pessoa amada neste mundo. Ocorre um retorno natural ao
pensamento dessa pessoa amada. Isto nã o implica pensar em memó rias
do passado, mas envolve simplesmente o retorno repetido da atençã o
para aquela pessoa amada, o que acontece facilmente e sem esforço de
pensamento. Todo amor tende a ter esse efeito na atençã o. Nó s nos
encontramos voltando em pensamento para tudo ou quem é amado.
Esta fixaçã o em Deus como o Amado que ainda está fora do nosso
alcance torna-se um efeito imediato na memó ria devido à esperança na
faculdade. Como escreve Sã o Joã o da Cruz, tem um efeito profundo:

Deve-se ter presente o seguinte: Nosso objetivo é a uniã o com Deus na


memó ria através da esperança; o objeto da esperança é algo nã o
possuído; quanto menos outros objetos forem possuídos, mais
capacidade e habilidade haverá para esperar por esse objeto e,
conseqü entemente, mais esperança; quanto maiores as posses, menor a
capacidade e capacidade de esperança e, conseqü entemente, muito
menos esperança; portanto, na medida em que os indivíduos
despossuem sua memó ria de formas e objetos, que nã o sã o Deus, eles a
fixarã o em Deus e a preservarã o vazia, de modo a esperar dele a
plenitude de sua memó ria. (AMC 3.15.1)

Novamente, ouvimos o efeito “esvaziador” ou purificador da virtude


teoló gica sobre a faculdade humana. Quando a memó ria está vazia de
outras “coisas” que poderiam atraí-la e preocupá -la, a esperança
sobrenatural une a faculdade mais intensamente, ao longo do tempo, ao
pró prio Deus. No entanto, mesmo com este avanço progressivo, Deus
continua a ser um amor inatingível, uma presença inalcançável, e é
conhecido como tal. O impacto abençoado da esperança é colocar a
memó ria numa espécie de fixaçã o silenciosa ou “obsessã o sagrada” com
Deus no momento silencioso da oraçã o, sem permitir uma uniã o
definitiva. As graças contemplativas, mediadas para a memó ria através
da virtude da esperança, têm este efeito de aprofundamento de
paralisar o desejo interior da alma por um Amado que ainda nã o foi
alcançado, nã o possuído, nã o encontrado suficientemente. Isto equivale
a outro aspecto da experiência apofática na oraçã o, semelhante à
incompreensã o que o intelecto sofre na contemplaçã o. Neste caso, a
esperança purifica a memó ria pelo que pode parecer um sentido
extremo da inatingibilidade de Deus. O empobrecimento que ocorre
devido à esperança purifica a faculdade da memó ria para receber
somente Deus. Quando a esperança permeia a memó ria, nada além do
desejo de um dia estar unido apenas a Deus pode dominá -la
possessivamente. Essa é a natureza de um profundo amor por Deus. O
efeito é sempre que os pensamentos, os desejos e a memó ria retornam
continuamente para ele.
3
Fé Contemplativa: Certeza nas Trevas

Passamos agora aos capítulos iniciais do livro 2 de A Subida do Monte


Carmelo , que contém um rico e importante tratado sobre a virtude
teoló gica da fé. Será ú til explorar esta seçã o imediatamente apó s o
capítulo anterior sobre as virtudes teoló gicas e suas respectivas
faculdades, e apó s nosso exame da memó ria e da virtude da esperança.
Aliá s, Karol Wojtyła, o futuro Papa Sã o Joã o Paulo II, ao escrever a sua
dissertaçã o de doutoramento quando era um jovem sacerdote no final
da década de 1940, sob a direcçã o do Padre Reginald Garrigou-
Lagrange, OP, no Angelicum de Roma, concentrou a maior parte das
pá ginas do sua dissertaçã o, intitulada Fé segundo São João da Cruz ,
sobre esta seçã o relativamente curta de A Ascensão que estamos
prestes a examinar. O ensinamento de Sã o Joã o da Cruz sobre a fé
nestes capítulos é dirigido principalmente ao papel da fé na
contemplaçã o, e nã o apenas ao conhecimento de Deus que a fé
proporciona a todo crente cristã o.

O efeito que a fé mais profunda tem sobre o intelecto, quando a alma


recebe graças contemplativas, é mergulhar o intelecto numa
experiência purificadora de escuridã o interior durante o tempo de
oraçã o. Esta experiência é quase sempre contrá ria à expectativa da
alma e um paradoxo surpreendente. Com o avanço da vida de fé da
alma, provavelmente anteciparíamos uma visã o mais nítida e clara das
verdades cató licas que conhecemos na fé. Uma compreensã o mais
penetrante das verdades reveladas deveria resultar, pensamos, numa
maior luminosidade na nossa consciência das verdades divinas. Em vez
disso, segundo Sã o Joã o da Cruz, o efeito oposto ocorre durante a
oraçã o de contemplaçã o. Uma escuridã o e uma obscuridade permeiam
o intelecto na pró pria oraçã o, devido a uma fé mais intensa. Esta nã o é
uma questã o de confusã o ou dú vida de pensamento, mas sim de
relutâ ncia em pensar enquanto estiver no silêncio da oraçã o. A
preferência da mente na oraçã o da contemplaçã o torna-se um desejo de
permanecer em silêncio, nã o buscando pensamentos, mas
simplesmente voltando o olhar atento para a presença de Deus.
Reconhecer este fenó meno torna-se um elemento significativo para
responder adequadamente à s graças da contemplaçã o, como veremos
no devido tempo. Na verdade, o ensinamento sobre a fé é uma
necessidade absoluta para a compreensã o dos efeitos das graças
contemplativas na oraçã o. Por enquanto, o nosso assunto é a natureza
do impacto mais profundo da fé no intelecto.

Vale a pena ponderar cuidadosamente este ensinamento, pois ele


afeta fortemente a alma na vida de oraçã o silenciosa e contemplaçã o.
Com o avanço da fé e o início das graças contemplativas, o intelecto,
como mencionado, nã o experimenta maior clareza de percepçã o, mas,
antes, uma obscura cegueira das suas capacidades normais durante a
oraçã o. A cegueira nã o é apenas uma condiçã o temporá ria, um
obstá culo que passa depois de um tempo ou que pode ser superado
através da adoçã o de remédios. Nã o pode ser evitado ou resistido com
sucesso; por outro lado, pode ser facilmente mal interpretado. Nã o é
sinal de diminuiçã o da fé que alguém pareça “ver” menos na fé do que
antes durante o tempo de oraçã o. A fé nã o diminuiu porque os
pensamentos parecem morrer na oraçã o e o desejo de silêncio da
mente atrai a alma com mais força. Entã o o que está acontecendo?

A virtude teoló gica da fé coloca o nosso intelecto numa proximidade


imediata com a presença de Deus enquanto oramos em silêncio. Isto é
ainda mais verdadeiro quando a fé avança e as graças contemplativas
começam a mostrar efeitos. A maior proximidade com Deus, porém, nã o
elimina uma barreira de mistério nas nossas relaçõ es com Deus. Pelo
contrá rio, impulsiona a nossa alma com mais vigor na direçã o do seu
mistério infinito. Encontramos aqui novamente a consequência
apofá tica do avanço nas relaçõ es com Deus. O resultado de uma fé mais
profunda nã o é ver melhor, mas saber com mais certeza. Numa frase
muito contundente, Sã o Joã o da Cruz escreve: “Embora a fé traga
certeza ao intelecto, ela nã o produz clareza, mas apenas trevas” (AMC
2.6.2). Uma certeza mais intensa de que a verdade cristã revelada é a
verdade absoluta torna-se a principal consequência do aumento da fé.
Mas esta certeza nã o é sinó nimo de visã o clara. A alma experimenta um
conhecimento cego, mas certo, de que está abraçando a verdade em sua
fé, mas sem aumento de compreensã o perspicaz durante o tempo de
oraçã o. A certeza, porém, nã o é simplesmente a nossa convicçã o em
relaçã o à verdade doutriná ria. É vivida sobretudo como uma certeza da
presença pessoal de Deus durante a oraçã o, mas sem qualquer
pensamento claro. Esta experiência de uma certeza cega, como
veremos, é um aspecto essencial do caminho da fé pura e nua que deve
ser o caminho percorrido na vida contemplativa de oraçã o. Uma
passagem para outra estrofe da poesia de Sã o Joã o da Cruz pode ser
ú til, desta vez a partir da segunda estrofe do seu curto poema “A Noite
Escura”:

Na escuridã o, e segura,
pela escada secreta, disfarçada
— ah, que pura graça! —
na escuridã o e na ocultaçã o,
minha casa agora está toda silenciosa.

Sã o Joã o da Cruz inicia sua discussã o sobre a fé no livro 2 de A


Ascensão com esta estrofe. É importante sempre ter em mente o
contexto do tratamento que ele dá à fé nesta seçã o. Seu propó sito é
expor a influência da fé mais profunda no intelecto quando a graça da
contemplaçã o está presente. Sem perder tempo, ele escreve
imediatamente sobre a necessidade de “apoiar-se somente na fé pura ”
(AMC 2.1.1; grifo do autor). O exercício da fé pura é um requisito
essencial para a contemplaçã o, mas a frase precisa de alguma
explicaçã o. Uma espécie de ascetismo interior do espírito é necessá ria
para que o intelecto possa responder adequadamente à graciosa
purificaçã o que sofre na oraçã o. A causa da purificaçã o é a influência da
fé infundida no intelecto quando a graça da contemplaçã o está sendo
dada. Ao contrá rio do ascetismo da abnegaçã o corporal, deve ocorrer
uma abnegaçã o mais sutil. O ascetismo, neste caso, nã o visa negar aos
sentidos alguma oportunidade de gratificaçã o indulgente. Em vez de
um objectivo tã o concreto, a necessidade agora é que o intelecto exerça
uma espécie de austeridade mental ao ajustar-se a um ambiente
interior mudado na pró pria oraçã o. De uma maneira que foge ao
controle do intelecto, o efeito da fé mais profunda sobre a pró pria
oraçã o, quando a graça da contemplaçã o se segue, é encerrar o intelecto
numa experiência de obscuridade e vazio. Está ocorrendo uma
purificaçã o, que sempre implica um desnudamento ou esvaziamento de
uma faculdade ou apetite. Num certo sentido, toda purificaçã o deve ser
recebida passivamente da graça; noutro sentido, requer uma
cooperaçã o da nossa parte.

Neste caso, sob a influência de uma fé mais profunda, a cooperaçã o


envolve uma mortificaçã o do intelecto: um esvaziamento do desejo de
gratificaçõ es espirituais que podem ser desfrutadas pelo intelecto na
vida de oraçã o. Estes podem ser procurados de uma forma que se torne
um impedimento à busca pura de Deus somente para si mesmo. É
necessá ria uma “pacificaçã o completa da casa espiritual” (AMC 2.1.2)
que “acalme” o impulso de buscar experiências de satisfaçã o intelectual
ou imaginativa na oraçã o. Esta tarefa “ascética” do intelecto na vida
interior de oraçã o implica, numa frase reveladora, “a negaçã o, através
da fé pura, de todas as faculdades espirituais, gratificaçõ es e apetites”
(AMC 2.1.2). O que esta “ fé pura ” significará como uma virtude do
intelecto na contemplaçã o precisa ser explicado com algum cuidado.
Pois o intelecto deve cooperar na sua pró pria purificaçã o precisamente
através deste exercício de fé pura. Levando-nos mais adiante na
explicaçã o, e referindo-se à estrofe de seu poema, Sã o Joã o da Cruz
comenta: “A alma, conseqü entemente, afirma que partiu 'nas trevas e
segura'. Pois qualquer pessoa afortunada o suficiente para possuir a
capacidade de viajar na obscuridade da fé, como fazem os cegos com
seu guia, e afastar-se de todos os fantasmas [imagens] naturais e
raciocínios intelectuais, caminha com segurança. . . . Pois quanto menos
uma alma trabalha com as suas pró prias capacidades, mais
seguramente ela avança, porque maior é o seu progresso na fé” (AMC
2.1.2, 3).

Esta ú ltima frase, em particular, capta o dilema em questã o. O


intelecto, por inclinaçã o natural – como todas as faculdades e apetites –
quer trabalhar em busca de uma experiência satisfató ria para si
mesmo. E o que isso pode ser na oraçã o? A aquisiçã o de pensamentos
perspicazes sobre Deus e sua relaçã o com a pró pria vida, novas
percepçõ es sobre passagens bíblicas ou novos lampejos intuitivos de
consciência espiritual — todas essas experiências gratificantes podem
ser buscadas na oraçã o. Obviamente, eles nã o sã o, em si mesmos,
prejudiciais à experiência. Mas a discussã o aqui diz respeito à
experiência da alma em oraçã o quando recebe a graça da
contemplaçã o. E nesse contexto, um impulso possessivo para procurar
este tipo de satisfaçã o na oraçã o prejudica um convite contemplativo na
graça. Por quê entã o? Essas experiências de satisfaçã o podem ser boas
para serem realizadas mais cedo na vida espiritual. Mas a sua busca
agora é contrá ria ao impacto da fé sobrenatural no intelecto, quando a
graça da contemplaçã o afeta o silêncio da oraçã o. A purificaçã o do
intelecto por meio da escuridã o espiritual é uma característica
distintiva da contemplaçã o. Uma sensaçã o de obscuridade em relaçã o
ao que é conhecido na fé começa a envolver o intelecto numa nuvem de
incompreensã o. É uma purificaçã o pela graça da operaçã o natural do
intelecto, que normalmente busca a satisfaçã o de apoderar-se do
conhecimento que pode saborear e desfrutar. Agora isto nã o é mais
possível, devido ao efeito das graças contemplativas.

Qual pode ser a razã o desta experiência de oraçã o? Sã o Joã o da Cruz


afirma que a fé sobrenatural, na medida em que nos coloca em contacto
imediato com Deus, afecta o intelecto de uma forma estranhamente
dolorosa com o aparecimento das graças contemplativas. As verdades
da revelaçã o que o intelecto abraça na fé parecem agora ultrapassar a
compreensã o de uma maneira diferente de qualquer experiência
anterior na oraçã o. Uma compreensã o mais profunda da fé teoló gica
pode explicar por que isso ocorre. É inadequado conceber a nossa fé
como simplesmente um assentimento da nossa mente a verdades que
sã o entã o mantidas seguramente com convicçã o pessoal. Este nã o é o
quadro completo. A um nível muito pessoal, nas nossas relaçõ es com o
pró prio Deus, a fé é uma espécie de canal real para o verdadeiro
mistério de Deus. Como virtude teoló gica, une o intelecto de forma
bastante direta e imediata ao mistério de Deus. O efeito desta uniã o,
dependendo da proximidade da alma com Deus, é ampliar o intelecto
além do que ele pode assimilar em sua capacidade natural. O resultado
no momento da oraçã o interior é uma dolorosa experiência de
obscuridade dentro do intelecto em relaçã o ao Deus do mistério ú ltimo,
conhecido pessoalmente na fé. Esta nã o é uma experiência de dú vidas
sombrias sobre Deus. Pelo contrá rio, é como se uma luz tivesse
começado a brilhar com demasiada intensidade, impedindo os nossos
olhos de verem o que está à nossa frente. Quanto mais nos
aproximamos da luz de Deus, mais a sua presença nos cega. O ato
comum de compreensã o em relaçã o aos objetos naturais de
conhecimento nã o funciona desta forma. Mas quando o conhecimento é
do pró prio Deus em sua presença pessoal imediata na alma, a
consequência é muito diferente. As seguintes palavras de Sã o Joã o da
Cruz podem exigir alguma reflexã o. Eles transmitem a questã o em jogo
e fornecem uma base teoló gica para este ensinamento:

A fé, dizem os teó logos, é um há bito certo e obscuro da alma. É um


há bito obscuro porque nos leva a acreditar em verdades divinamente
reveladas que transcendem toda luz natural e excedem infinitamente
todo o entendimento humano. Como resultado, a luz excessiva da fé
concedida a uma alma é escuridã o para ela; uma luz mais brilhante
eclipsará e suprimirá uma luz mais fraca. O sol obscurece de tal forma
todas as outras luzes que elas nem parecem ser luzes quando brilha e,
em vez de proporcionar visã o aos olhos, oprime, cega e priva-os da
visã o, uma vez que sua luz é excessiva e desproporcional à luz.
faculdade visual. Da mesma forma, a luz da fé, em sua abundâ ncia,
suprime e supera a do intelecto. Pois o intelecto, por seu pró prio poder,
estende-se apenas ao conhecimento natural, embora tenha a potência
de ser elevado a um ato sobrenatural sempre que nosso Senhor desejar.
(AMC 2.3.1)

Este ensinamento de Sã o Joã o da Cruz sobre a fé e o intelecto pode


facilmente ser mal compreendido. Alguns serã o tentados a perceber um
efeito prejudicial descrito, na medida em que a descriçã o parece
retratar uma reduçã o na capacidade do intelecto de funcionar
adequadamente como consequência de uma fé mais profunda. Mas,
novamente, deve ser lembrado que o contexto da discussã o é uma
explicaçã o dos efeitos da graça da contemplaçã o no intelecto. Até certo
ponto, a cegueira do intelecto é um elemento experiencial em tal
oraçã o. A cegueira é uma capacidade reduzida de pensamento ou
reflexã o frutífera. O silenciamento da mente, nã o por uma escolha
deliberada ou pela adoçã o de um método de oraçã o, mas como
resultado do impacto espiritual da fé no intelecto, torna-se inevitável
em tal oraçã o. É reconhecidamente um ensinamento difícil de abraçar,
porque contradiz fortemente as expectativas iniciais de uma vida de
oraçã o. O conhecimento de Deus que a fé concede na contemplaçã o nã o
se torna um estimulante para pensamentos mais expansivos sobre
Deus. Nã o estimula as energias da mente em prol da ponderaçã o
intelectual, pelo menos no pró prio momento da oraçã o. Em vez disso, o
que faz, de forma mais frutífera, é intensificar a certeza da presença de
Deus enquanto se ora.

Em outras palavras, dois efeitos bastante diferentes ocorrem no


intelecto devido ao avanço da fé como virtude sobrenatural. Uma
intensa certeza da sua misteriosa presença pode ser acompanhada ao
mesmo tempo por um inescapável sentimento de dolorosa obscuridade
no conhecimento de Deus. A metá fora da cegueira diante de uma luz
excessiva é, portanto, adequada. A fé mais profunda abraça Deus com
mais certeza e apodera-se da verdade revelada com mais segurança,
mas o faz cegamente. Ele sabe , mas sabe sem o apoio de um
pensamento e visã o claros. O paradoxo é forte, mas está sendo
apresentado mais do que um paradoxo. É necessá rio que o intelecto
fique cego e aceite uma experiência ofuscante das trevas na sua fé, se a
oraçã o quiser nos levar mais profundamente ao mistério de Deus. A
pessoa que recebe graças contemplativas deve cooperar com os efeitos
da fé nas horas silenciosas da oraçã o. Este ensinamento sobre a fé no
contexto da contemplaçã o apresenta dois aspectos: um efeito objetivo
pela pró pria natureza da fé e uma resposta pessoal necessá ria para a
alma na oraçã o: “A fé anula a luz do intelecto; e se esta luz nã o for
obscurecida, o conhecimento da fé será perdido. . . . A fé,
manifestamente, é uma noite escura para as almas, mas desta forma
ilumina-as. Quanto mais escuridã o traz sobre eles, mais luz lança. Pois
ao cegar, ilumina-os” (AMC 2.3.4).

O teor de tal descriçã o exige que seja mantida uma distinçã o


cuidadosa entre a fé como crença nas verdades reveladas da profissã o
doutriná ria cató lica e a fé na sua dimensã o experiencial dentro de uma
alma particular. A realidade objetiva da fé como conhecimento de Deus
nos leva a conhecer verdades transcendentes além do alcance do nosso
intelecto. Estas sã o verdades de revelaçã o que abraçamos no
Cristianismo com convicçã o firme e inabalável. Mas a realidade
concreta destas verdades transcendentes tem repercussõ es subjetivas
imediatas nas nossas relaçõ es com o Deus do mistério que conhecemos
na oraçã o por meio da fé. Mesmo com grande fervor de coraçã o, nã o
reduzimos Deus à nossa limitada capacidade de compreensã o. Em vez
disso, somos elevados a alturas onde, por assim dizer, fica mais difícil
respirar e mais difícil ver. A pessoa que aceita esse efeito e percebe que
agora está sendo experimentado um ambiente interior diferente, abre
mais as cavernas internas da alma à s graças contemplativas. Cabe à
alma que recebe graças contemplativas caminhar direto no caminho
das trevas que começa a envolvê-la na dimensã o experiencial da oraçã o.
Nesse sentido, Sã o Joã o da Cruz nã o declara simplesmente que “a fé é
uma noite escura para a alma” (AMC 2.4.1) como uma metá fora para as
limitaçõ es do nosso conhecimento de Deus. Ele está incitando a alma,
em sua oraçã o, a submeter-se voluntariamente, voluntariamente, a uma
entrada nesta experiência subjetiva de escuridã o. Isto acontece quando
nos desapegamos das satisfaçõ es que antes poderiam ter ocupado a
oraçã o. Ao escrever sobre uma alma nesta experiência mais profunda
de oraçã o:

Eles também devem obscurecer-se e cegar-se naquela parte da sua


natureza que tem relaçã o com Deus e com as coisas espirituais. . . a
parte racional e superior de sua natureza. . . . A alma deve esvaziar-se
perfeita e voluntariamente - quero dizer, em sua afeiçã o e vontade - de
todas as coisas terrenas e celestiais que pode compreender. Deve fazê-
lo na medida do possível. Quanto a Deus, quem o impedirá de realizar
os seus desejos na alma resignada, aniquilada e espoliada? (AMC 2.4.2)

Vamos recuar um momento e esclarecer qualquer possível equívoco.


É um axioma de Sã o Joã o da Cruz que uma alma deve sofrer pelo amor
de Deus ao buscar Deus como o Amado. O que isso implica para o
intelecto no silêncio da oraçã o? Ele nã o sugere que a oraçã o silenciosa
deva ocorrer num vá cuo de vazio mental, ou, certamente, que devamos
estar emocionalmente trancados numa jaula, isolados de toda afeiçã o,
sentimento ou desejo. Nem a fome mental nem a esterilidade emocional
sã o estados aconselháveis para cultivar em oraçã o. É impossível nã o
encontrar, à s vezes, satisfaçã o no nosso amor a Deus, o que é uma coisa
maravilhosa. Pelo contrá rio, o que Sã o Joã o da Cruz identifica como
perigo espiritual, quando um esforço mais puro de fé nã o é exercido na
oraçã o, é a possessividade que pode apoderar-se da nossa alma por
causa das experiências agradáveis que a oraçã o pode proporcionar. Por
motivos de interesse pró prio, estas experiências podem ser
perseguidas como fins em si mesmas. Uma espécie de rivalidade entre
as coisas criadas e a grandeza singular de Deus ocorre nã o apenas na
busca excessiva de ambiçõ es ou prazeres mundanos. Acontece também
na pró pria oraçã o, ou seja, na busca de consolaçõ es ou de insights
especiais. Na verdade, na oraçã o pode haver quase uma espécie de
descompasso na competiçã o entre as coisas criadas e o pró prio Deus,
porque as satisfaçõ es recebidas na oraçã o podem ser imediatas e
bastante fortes. Muitas vezes pensa-se que estas satisfaçõ es na oraçã o
contêm a medida da nossa proximidade com Deus e, por isso, em
muitas vidas sã o procuradas avidamente.

Tudo isto é contrá rio à aceitaçã o de uma obscuridade ofuscante que


uma fé mais pura suscita. Esquecemos ou talvez nunca percebamos a
capacidade infinita das faculdades humanas do intelecto, da memó ria e
da vontade para receber a presença amorosa oculta de um Deus oculto.
O “vasto vazio da sua capacidade profunda” (LF 3.18) é uma boa frase
para recordar do ú ltimo capítulo. Se pudermos manter o esforço de
uma busca pura somente por Deus, o Deus oculto que escapa ao alcance
de nossa posse, avançaremos no caminho somente para Ele como nosso
Amado. Com a ajuda da graça, mergulhamos mais profundamente no
mistério de Deus que nos espera em nossa alma. Muito depende de um
refinamento do nosso desejo para que somente Deus seja buscado na
oraçã o. Como escreve Sã o Joã o da Cruz em A Chama Viva do Amor :
“Quanto mais a alma deseja a Deus, mais ela a possui, e a posse de Deus
a deleita e a satisfaz” (LF 3.23). Mas esta é uma posse de Deus
precisamente na sua ocultaçã o divina. A presença infinita do amor em
Deus permanece sempre um mistério oculto para o nosso intelecto.
Uma passagem ilustrativa pode ser ú til. A importâ ncia de um
esvaziamento interior do intelecto por meio da fé é explicitamente
proposta na passagem seguinte. A intensidade da fé desencadeia um
esvaziamento experiencial do intelecto na oraçã o, à medida que o
intelecto encontra na oraçã o a realidade real de Deus. A razã o para esta
consequência espiritual também é declarada na passagem. A
desproporçã o entre um Deus infinito e a alma humana finita deve
necessariamente impactar o intelecto na oraçã o quando uma alma se
aproxima do mistério de Deus. O intelecto em oraçã o sempre se verá
deslumbrado em uma experiência ofuscante de escuridã o à medida que
se aproxima da luz de Deus.

Podemos deduzir do que foi dito que para estar preparado para esta
uniã o divina o intelecto deve ser limpo e esvaziado de tudo o que se
relaciona com os sentidos, despojado e libertado de tudo claramente
inteligível, interiormente pacificado e silenciado, e apoiado apenas pela
fé, que é o ú nico meio pró ximo e proporcional de uniã o com Deus. Pois
a semelhança entre a fé e Deus é tã o pró xima que nã o existe outra
diferença senã o aquela entre acreditar em Deus e vê-lo. Assim como
Deus é infinito, a fé nos propõ e-no como infinito. Assim como há três
Pessoas em um Deus, ele nos apresenta desta forma. E assim como
Deus é escuridã o para o nosso intelecto, a fé nos deslumbra e nos cega.
Somente por meio da fé, na luz divina que excede todo o entendimento,
Deus se manifesta à alma. Quanto maior for a fé, mais estreita será a
união com Deus . (AMC 2.9.1; ênfase adicionada)

Como lemos aqui, a tarefa de nos esvaziarmos das luzes intelectuais


que podem ser buscadas na oraçã o, embora seja uma exigência séria, é
também acompanhada de uma grande promessa. O mistério do pró prio
Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – pode preencher o que ficou vago e
vazio numa alma. É um truísmo bem conhecido que a natureza abomina
o vá cuo. Da mesma forma, Deus nã o deixa sem recompensa o esforço de
nos esvaziarmos de um desejo puro apenas por Ele. Nã o ir mais em
busca de satisfaçõ es na oraçã o pode parecer uma exigência extrema, até
que percebamos que qualquer coisa menos do que o pró prio Deus é
indigna do nosso desejo na oraçã o. A paixã o exclusiva por Deus
somente na oraçã o deixa nossa alma a só s com Deus. Este se torna o
ambiente interior para o encontro silencioso com Deus no mistério
oculto da contemplaçã o. Numa imagem reveladora, Sã o Joã o da Cruz
escreve que a nossa alma torna-se entã o como um cego conduzido pela
mã o de outro. Este cego, isto é, a alma na oraçã o da contemplaçã o, nã o
pode saber onde está neste momento, em que direçã o se dirige, ou
como chegará a um destino. Ele deve simplesmente permitir-se ser
liderado. Mas isto é precisamente o que acontece quando a nossa alma
aceita voluntariamente a necessidade de uma fé mais profunda para ser
guiada cegamente pelo Deus de amor infinito que se esconde dentro
das cavernas da nossa alma em oraçã o. Numa passagem do Cântico
Espiritual , Sã o Joã o da Cruz escreve um comentá rio marcante sobre a
alma levada na cegueira pela fé e pelo amor ao esconderijo de Deus.
“Ouça uma palavra rica em substâ ncia e de verdade inacessível:
busque-o com fé e amor, sem desejar encontrar satisfaçã o em nada, ou
deleite, ou desejar compreender outra coisa senã o o que você deveria
saber. A fé e o amor sã o como guias do cego. Eles o conduzirã o por um
caminho desconhecido para você, até o lugar onde Deus está
escondido” (SC 1.11).

A imagem do cego é muito querida por Sã o Joã o da Cruz. Captura nã o


tanto uma qualidade indefesa da alma em oraçã o, mas a necessidade de
ser segurada pela mã o e guiada por outra pessoa. Liderar-nos
significaria seguir as nossas pró prias luzes, dirigir e navegar no curso
da nossa pró pria oraçã o, procurando talvez descobertas que pareçam
justificar e recompensar a busca pela oraçã o interior. A busca por
insights específicos para alimentar nosso intelecto na oraçã o seria um
exemplo. O que é entã o encontrado por meio do pensamento ou da
imaginaçã o, embora talvez edificante e proveitoso de certa forma, nã o é
o pró prio Deus. A resposta mais profunda da oraçã o de contemplaçã o
requer, em vez disso, uma purificaçã o do intelecto onde, por meio da fé
pura, apontamos para o pró prio Deus, e nada menos que Deus.
Precisamos apoiar-nos numa fé pura para chegarmos ao que só uma fé
pura pode encontrar na oraçã o. A ênfase no exercício de uma “fé
sombria”, uma fé vazia de egoísmo, cega de visã o, despojada de
satisfaçã o, é forte na seguinte passagem desta seçã o sobre a fé em A
Ascensão :

As pessoas devem esvaziar-se de tudo, na medida do possível, para que,


por mais comunicaçõ es sobrenaturais que recebam, vivam
continuamente como se estivessem despojadas delas e nas trevas.
Como os cegos, eles devem apoiar-se na fé sombria, aceitá -la como seu
guia e luz, e nã o descansar em nada do que entendem, provam, sentem
ou imaginam. Todas essas percepçõ es sã o trevas que os desviarã o. A fé
está além de todo esse entendimento, gosto, sentimento e imaginaçã o.
Se nã o se cegarem nestas coisas e permanecerem na escuridã o total,
nã o alcançarã o o que é maior: o ensino da fé. (AMC 2.4.2)

Há uma insistência quase repetitiva de Sã o Joã o da Cruz sobre a


importâ ncia deste ensinamento da natureza sublime da fé. Pode-se
supor que ele reconheceu isso como uma á rea problemá tica de sutileza
que muitas pessoas espirituais nã o enfrentam adequadamente. O
método habitual na oraçã o meditativa silenciosa para buscar
conhecimento, insight, imagens, gostos, sentimentos, percepçõ es, e
assim por diante, está em desacordo com a orientaçã o clara
apresentada aqui para abandonar esta abordagem na oraçã o, uma vez
que a graça da contemplaçã o é dada. Poderíamos pensar, a princípio,
que o alvo das observaçõ es que acabamos de citar se dirige ao impulso
de exercer a nossa pró pria autonomia na oraçã o. Ou pode parecer uma
repreensã o à negligência da necessidade de depender da graça se
quisermos chegar a Deus. Podemos ver agora que está em jogo um
propó sito mais profundo, uma consequência mais vital. A chegada ao
conhecimento de Deus através da oraçã o nã o é comparável em valor
nem mesmo a um mero passo em direçã o à uniã o com o pró prio Deus. A
experiência de algum grau de proximidade com Deus em qualquer
gosto, sentimento ou sentimento de posse nã o é uma uniã o com o
pró prio Deus. Descansar nessas experiências significa parar no
caminho ou, pior, desviar-se do caminho. A tendência humana é
exagerar o significado destas experiências e medir as nossas relaçõ es
com Deus por elas, quando ele ultrapassa infinitamente tudo o que
podemos encontrar na oraçã o. Sã o Joã o da Cruz pode ter um tom
bastante desdenhoso em relaçã o a tais experiências: “Se a alma, ao
viajar nesta estrada, se apoiar em quaisquer elementos do seu pró prio
conhecimento ou da sua experiência ou conhecimento de Deus,
facilmente se desviará ou será detida porque nã o quis permanecer na
cegueira total, na fé que o guia. Por mais impressionante que seja o
conhecimento ou experiência de Deus, esse conhecimento ou
experiência nã o terá nenhuma semelhança com Deus e será muito
pouco” (AMC 2.4.3).

A necessidade urgente da alma em oraçã o deve ser, como tal, a


adoçã o de um exercício radical de fé pura na sua aproximaçã o a Deus.
No ponto da vida espiritual em que as graças contemplativas começam
a surgir, é hora de levantar â ncora, por assim dizer, e mergulhar em
á guas mais profundas da fé: “Aqueles que querem alcançar a uniã o com
Deus nã o devem avançar nem pela compreensã o, nem pelo apoio da
sua pró pria experiência, nem pelo sentimento ou imaginaçã o, mas pela
crença no ser de Deus” (AMC 2.4.4). A ú ltima frase “crença na existência
de Deus” pode parecer bastante comum. Nã o é simplesmente isso que é
fé: acreditar em Deus? Mas devemos recordar rapidamente a
verdadeira exigência do acto de fé mais profundo – uma fé pura – que
deve ocorrer na oraçã o contemplativa. Devemos acreditar em Deus
precisamente como Aquele que está além da nossa medida, alcance ou
compreensã o. Devemos aderir a ele, procurá -lo e procurá -lo, como
mistério infinito e como presença pessoal de amor imediatamente
comprometida conosco nesta hora atual de oraçã o silenciosa. Em suma,
devemos entrar na pró pria fé, no mistério de acreditar, para nos
aproximarmos do mistério pessoal de Deus. Acreditamos nele na oraçã o
da contemplaçã o ao entregarmos nosso ser a ele. Nó s cedemos a ele e
permitimos que ele habite em nó s: “Pois o ser de Deus nã o pode ser
apreendido pelo intelecto, apetite, imaginaçã o ou qualquer outro
sentido; nem pode ser conhecido nesta vida. O má ximo que se pode
sentir e provar de Deus nesta vida está infinitamente distante de Deus e
da pura posse dele” (AMC 2.4.4).

A necessidade da alma, ou, mais precisamente, a necessidade do


intelecto na oraçã o contemplativa, é, entã o, “viver nas trevas” em
direçã o a “tudo o que é compreensível ao coraçã o, o que significa a
alma” (AMC 2.4.4). Este é o refrã o repetido nesta discussã o. O
ensinamento a nível prá tico é em grande parte uma exigência para nos
libertarmos dos antigos há bitos de procurar satisfaçã o na oraçã o, que
ouvimos agora com alguma insistência. Sã o Joã o da Cruz pede que nos
desapeguemos do há bito de encontrar satisfaçã o no que é
compreensível, para que possamos nos inclinar para uma meta que
transcende tudo o que pode ser compreendido. O exercício da fé na
oraçã o contemplativa é uma virada dinâ mica do intelecto em direçã o a
uma visã o ilimitada, em direçã o à realidade ú ltima de Deus. A alma
deve encontrar no mistério aquilo que nã o pode ser conhecido. Numa
frase contundente, Sã o Joã o da Cruz ensina à s almas orantes:
“Conseqü entemente, devem passar além de tudo, até o
desconhecimento” (AMC 2.4.4). O que se propõ e nã o é um
“desconhecimento” que seria um olhar confuso para a escuridã o da
dú vida. Pelo contrá rio, significa um olhar firme de certeza elevado em
direçã o a um horizonte invisível de luz e amor. A necessidade do
intelecto é essencialmente mergulhar na própria fé , em toda a sua
pureza e em profunda certeza, como uma inclinaçã o incomensurável da
alma para o pró prio Deus. “O intelecto deve ser cego e obscuro e
permanecer somente na fé, porque está unido a Deus sob esta nuvem”
(AMC 2.9.1). Métodos ou modos de oraçã o nã o conseguem isso. No
entanto, deve haver uma recusa em praticar a oraçã o como se apenas
seguissemos rotinas habituais, trancados no lugar, procurando
satisfazer-nos de formas que se tornaram familiares e moderadamente
gratificantes. Nossa motivaçã o nã o deveria ser recuperar experiências
satisfató rias de Deus se algum dia formos consolados. Acima de tudo,
talvez, nã o devêssemos orar com a ilusã o de proficiência. A
imprevisibilidade de Deus deve direcionar a alma no caminho da
oraçã o, o que de fato torna a oraçã o bastante nova a cada dia. Como
afirma Sã o Joã o da Cruz:

Neste caminho para a uniã o, entrar no caminho significa abandonar o


pró prio caminho; ou melhor, avançando em direçã o ao objetivo. E
abandonar o pró prio modo implica entrar naquilo que nã o tem modo,
isto é, Deus. Os indivíduos que alcançam esse estado nã o possuem mais
quaisquer modos ou métodos, e menos ainda estã o apegados a eles,
nem podem sê-lo. Refiro-me aos modos de compreensã o, degustaçã o e
sentimento. Dentro de si, porém, eles possuem todos os métodos, como
alguém que, embora nada tendo, possui todas as coisas [2 Cor. 6:10].
(AMC 2.4.5)

É evidentemente necessá ria uma coragem de alma para avançar


neste caminho contemplativo de fé pura. O desafio subjacente das
trevas, em particular, implica a necessidade de cruzar um limiar de
insegurança na oraçã o, no qual pode parecer inicialmente nã o haver
apoio para o intelecto, nenhuma base em ideias para plantar o nosso
espírito, nada em pensamento para nos prepararmos para um ambiente
familiar. . A cegueira torna-se mais do que uma metá fora neste
ensinamento. O estado de incompreensã o do intelecto em relaçã o a
Deus é um verdadeiro ambiente de difícil experiência interior. Deve ser
uma cegueira que seja aceita de bom grado se quiser trazer benefícios
espirituais. Numa frase muito contundente, Sã o Joã o da Cruz escreve
mais adiante nesta seçã o: “Para se aproximar do raio divino, o intelecto
deve avançar pelo desconhecimento e nã o pelo desejo de saber, e
cegando-se e permanecendo nas trevas e nã o abrindo os olhos” (AMC
2.8.5).

A insegurança inicial de uma experiência obscurecida na fé,


avançando pelo desconhecimento, certamente requer algum ajuste e
uma assimilaçã o. Contudo, a insegurança nã o precisa continuar
interminavelmente. A recusa deliberada de satisfaçã o para o intelecto
na oraçã o pode ser, durante um certo período de purificaçã o, uma
austeridade radical para o intelecto. Mas o resultado com o tempo pode
ser sentir uma porta se abrindo para um encontro mais puro com o
pró prio Deus. Aquele que é mistério infinito em seu ser deve ser
abordado na verdade desconhecida de sua infinitude como Alguém
conhecido e amado. A intensidade da fé acompanha o amor mais
intenso que nos une pessoalmente a Deus. Como ouvimos
anteriormente neste capítulo e vale a pena repetir: “Somente por meio
da fé, na luz divina que excede todo o entendimento, Deus se manifesta
à alma. Quanto maior for a fé, mais estreita será a uniã o com Deus”
(AMC 2.9.1). Uma fé pura e nua conhecerá a presença de Deus numa
certeza de amor mais intensa. Qualquer outro sentido de compreensã o
de Deus deve ser subjugado em oraçã o à verdade de Deus como o Todo-
Poderoso que é amado. Na passagem seguinte, Sã o Joã o da Cruz insiste
no vigor de um desejo intenso necessá rio à busca de Deus precisamente
quando o nosso intelecto na fé está submerso numa incompreensã o do
mistério ú ltimo de Deus. Esta citaçã o mais longa mostra quã o estreito e
sério é o caminho para a noite da contemplaçã o, onde um contato
abençoado com Deus aguarda as profundezas de uma alma em sua
oraçã o.

Indo além de tudo o que é natural e espiritualmente inteligível ou


compreensível, as almas devem desejar com todas as suas forças
alcançar o que nesta vida nunca poderia ser conhecido ou entrar no
coraçã o humano. E, separando-se de tudo o que podem ou fazem,
saboreiam e sentem, temporal e espiritualmente, devem desejar
ardentemente adquirir aquilo que ultrapassa todos os gostos e
sentimentos. Para estarem vazios e livres para alcançar isto, eles nã o
devem de forma alguma se apegar ao que recebem espiritual ou
sensivelmente. . . , mas considere-o de pouca importâ ncia. Quanto
maior a posiçã o e a estima que atribuem a todo esse conhecimento,
experiência e imaginaçã o (seja espiritual ou nã o), mais subtraem do
Bem Supremo e mais atrasam sua jornada em direçã o a ele. E quanto
menos estimam o que podem possuir – por mais estimável que seja em
relaçã o ao Bem Supremo – mais o valorizam e prezam e,
conseqü entemente, mais se aproximam dele. Assim, na obscuridade, as
almas aproximam-se rapidamente da uniã o por meio da fé, que também
é obscura. (AMC 2.4.6)

Uma palavra final pode ser oferecida no final deste capítulo. Talvez,
num primeiro encontro sério com Sã o Joã o da Cruz, possamos ser
tentados a pensar que nos é pedida uma espécie de humilhaçã o do
intelecto na incompreensã o que devemos experimentar na fé em Deus,
pelo menos no que diz respeito a contemplaçã o. A primeira exposiçã o a
esta doutrina pode parecer quase propor um sentido impessoal de
Deus, que estaria muito longe e remoto, escondido atrá s de um muro de
silêncio distante. A humilhaçã o consistiria na frustraçã o de querer
alguma experiência definida da sua presença real, alguns pensamentos
de compreensã o mais profunda de Deus, e ser dito sem rodeios para
nã o procurar tais coisas. Talvez o corretivo ú til para essas dú vidas fosse
lembrar o nome deste santo Doutor da Igreja. A sua denominaçã o de
Sã o Joã o da Cruz implica um profundo apego na sua pró pria vida ao
Senhor Jesus crucificado. Ele era conhecido por esculpir crucifixos em
madeira. Ele pode ter esboçado o notável desenho de Cristo crucificado
na capa do livro como uma meditaçã o sobre o Pai contemplando o
sofrimento de seu Filho no Calvá rio. A incompreensã o que encontramos
na oraçã o pode ser continuamente alimentada pela lembrança do
acontecimento singular na histó ria, quando o nosso Deus morreu como
homem no horror de uma crucificaçã o romana. Olhar mais para um
crucifixo mergulha-nos na incompreensã o da infinidade do amor divino
pregado numa cruz romana. O abandono de Cristo à vontade do Pai
encontra paralelo na nossa pró pria incapacidade de compreender o seu
amor infinito. Nã o temos outra opçã o senã o abandonar-nos cegamente
a um amor além da nossa compreensã o.
4
Comunicaçõ es Divinas? Cuidado e Cuidado

O pró ximo capítulo amplia a discussã o anterior sobre o papel da fé na


vida interior de oraçã o. É um capítulo de algum interesse indireto,
poderíamos dizer, nã o tratando explicitamente de preocupaçõ es
contemplativas, mas abordando questõ es secundá rias que envolvem a
fé que podem ocorrer na oraçã o. A pureza da fé essencial para a
contemplaçã o e para avançar rumo à uniã o com Deus, que examinamos
no capítulo anterior, leva Sã o Joã o da Cruz a tratar, num trecho
posterior do livro 2 de A Subida ao Monte Carmelo, a questã o das
possíveis comunicaçõ es por parte de Deus para a alma durante a
oraçã o, ou mesmo fora da oraçã o formal. Estas comunicaçõ es podem
ser de vá rios tipos; a questã o em jogo é uma atitude e um
discernimento adequados a seu respeito. O ensinamento serve para
sublinhar a necessidade crítica de um puro exercício de fé na busca de
Deus em oraçã o. Ouviremos novamente nesta discussã o a importâ ncia
de uma escuridã o experiencial que acompanha o caminho para uma fé
mais profunda. Todas as outras formas de experiência e comunicaçã o
que possam parecer vir de Deus nã o podem ser comparadas à
necessidade de uma fé pura em Deus e na sua presença imediata e
misteriosa para nó s em oraçã o.

O assunto que vamos explorar agora certamente tem alguma


pertinência hoje, quando nã o é raro que se ouça a afirmaçã o de que
uma pessoa recebeu mensagens específicas de Deus ou inspiraçõ es
proféticas sobre o futuro ou está convencida por experiências
carismá ticas de orientaçõ es divinas para uma vida pessoal ou para o
dos outros. Sã o Joã o da Cruz é fortemente contrá rio a esta tendência de
abraçar estas comunicaçõ es como revelaçõ es diretas de Deus à alma. A
sua oposiçã o nã o se deve principalmente ao ceticismo de que Deus
possa falar a uma alma se o Senhor assim o desejar; ou a uma
advertência sobre a sua ambiguidade e a possibilidade de
interpretaçõ es erró neas, que de facto sã o possíveis; ou mesmo pela
dificuldade de discernir se uma comunicaçã o é genuinamente de Deus
ou talvez do diabo. A sua grande resistência deve-se ao facto de a
dependência destas comunicaçõ es ser contrá ria à pureza da fé que
agora vimos ser de tamanha importâ ncia, pela qual só uma alma avança
verdadeiramente para Deus. Estas outras possibilidades de experiência
espiritual, nas suas diversas formas, sã o enganosamente atraentes. As
almas facilmente se apegam a eles, na medida em que parecem ser um
encontro privilegiado com Deus. Pelo contrá rio, podem desviar a alma
do caminho mais puro da fé mais profunda ou, como gosta de dizer Sã o
Joã o da Cruz, do abismo da fé. A breve declaraçã o a seguir é uma boa
observaçã o introdutó ria para este assunto. Referindo-se à Segunda
Carta de Sã o Pedro de que a fé é como uma vela que brilha num lugar
escuro (2 Pd 1,19), Sã o Joã o da Cruz escreve sobre a importâ ncia de nos
apegarmos à s obscuras certezas da fé:

Ele afirma que deveríamos viver nas trevas, com os olhos fechados para
todas as outras luzes, e que nesta escuridã o somente a fé – que também
é escuridã o – deveria ser a luz que usamos. Se quisermos empregar
essas outras luzes brilhantes de conhecimento distinto, deixamos de
fazer uso da fé, da luz escura, e deixamos de ser iluminados no lugar
escuro mencionado por Sã o Pedro. Este lugar (o intelecto – o suporte
onde a vela da fé é colocada) deve permanecer nas trevas até o dia, na
pró xima vida, quando a visã o clara de Deus surgir na alma. (AMC
2.16.15)

Fundamentalmente, Sã o Joã o da Cruz opõ e-se à busca de apreensõ es


particulares e claras de qualquer tipo como meio para uma suposta
entrada direta no conhecimento de Deus. Isto é sempre contrá rio ao
caminho mais profundo da fé pura: “Nã o se pode avançar na fé sem
fechar os olhos a tudo o que diz respeito aos sentidos e ao
conhecimento claro e particular” (AMC 2.16.15). A sua primeira
referência a este respeito é a comunicaçã o à imaginaçã o através de
alguma imagem ou ideia do que pode parecer ser uma experiência
direta de Deus. Isto pode vir através de uma apreensã o visual de Jesus
durante a oraçã o, pelo que parece ser uma palavra clara falada por ele,
ou através de alguma visã o espiritual que parece claramente vinda de
uma fonte externa a nó s mesmos. Mesmo quando uma comunicaçã o
deste tipo ocorre na oraçã o por meio da graça, esta é sempre, insiste
Sã o Joã o da Cruz, uma forma de conhecimento inferior ao
conhecimento que vem pela fé nua e pura. Este ú ltimo implica sempre
um conhecimento sem dependência de imagens, palavras ou ideias
particulares. “Os olhos da alma. . . deve fixar-se no invisível, naquilo que
nã o pertence aos sentidos, mas ao espírito, e naquilo que, por nã o estar
contido numa figura sensível, leva a alma à uniã o com Deus na fé” (AMC
2.16.12). Sã o Joã o da Cruz é, portanto, contundente ao exortar a alma a
nã o supervalorizar qualquer imagem ou ideia particular dada na oraçã o
à imaginaçã o ou ao intelecto. “Os indivíduos nã o devem alimentar-se
nem sobrecarregar-se com eles” (AMC 2.16.6). Em vez disso, devem ser
renunciados e evitados como um obstá culo espiritual. “Os indivíduos
nã o devem desejar admiti-los, embora venham de Deus” (AMC 2.17.7).
A ú ltima frase é impressionante. . . “mesmo que venham de Deus”. Por
que, poderíamos nos perguntar, ele alerta tã o severamente contra isso,
se é possível que essas ideias ou imagens tenham uma fonte na graça?

A razã o tem a ver com as exigências de uma fé contemplativa


genuína. Com efeito, as exigências da contemplaçã o pairam sempre em
segundo plano em todas as pá ginas dos escritos de Sã o Joã o da Cruz. O
caminho de uma fé mais pura necessá ria à contemplaçã o exige que as
almas “permaneçam desapegadas, despojadas, puras, simples e sem
qualquer modo ou método como exige a uniã o” (AMC 2.16.6). Esta é
uma recomendaçã o que já ouvimos no tratamento sobre a fé no
capítulo anterior. A ausência de imagens e ideias do intelecto
acompanha a graça da contemplaçã o por causa do efeito da fé no
intelecto. As coisas que apreendemos por alguma comunicaçã o
particular através da visã o imaginativa, num pensamento, ou por
algumas palavras interiores serã o sempre representadas ao intelecto
“de algum modo ou maneira limitada” (AMC 2.16.7). Apoiados nestas
comunicaçõ es, corremos o risco de parar no caminho de uma fé mais
profunda. O objetivo da oraçã o durante toda a vida é buscar a pureza
infinita de Deus. Este é o ú nico caminho para uma eventual uniã o com
Deus. Um intelecto puro e nu, desprovido de pensamentos ou imagens
distintas ou claras, é o ambiente adequado para buscar Deus na fé:
“Neste elevado estado de uniã o, Deus nã o se comunica à alma - nem
isso é possível - através do disfarce de qualquer visã o imaginativa,
semelhança ou figura, mas boca a boca: a essência pura e nua de Deus
(a boca de Deus apaixonada) com a essência pura e nua da alma (a boca
da alma no amor de Deus) ”(AMC 2.16.9).

A exigência da contemplaçã o é afirmada com ousadia nestas


palavras, a saber, que o intelecto nã o deve sobrecarregar-se com
pensamentos e apreensõ es que ofereçam algum apelo particular em
sua clareza. O esforço deve ser, antes, ir além da ideia compreensível e
clara ou da imagem atraente e enfrentar a verdade de um Deus infinito
e invisível na pureza da fé. É necessá rio resistir a ser retido por aquilo
que é menos importante, impedindo assim o avanço no caminho para
Deus. Este ensinamento é consistente com os princípios apofá ticos que
expusemos anteriormente. A realidade de Deus é desproporcional a
qualquer apreensã o limitada que a mente possa abraçar. O avanço para
Deus em oraçã o mais profunda é por meio da fé. Mas este movimento
para a presença misteriosa do Deus oculto deve ocorrer por meio de
uma fé pura e nua. Há uma dupla necessidade de deixar o intelecto
vazio de um objeto claro de foco e ainda assim ardendo de certeza em
direçã o à presença imediata de Deus na oraçã o. Na passagem seguinte,
Sã o Joã o da Cruz escreve sobre a necessidade de nã o nos apegarmos a
nenhum conhecimento particular de Deus se quisermos estar unidos à
sua verdade insuperável na oraçã o. A dimensã o apofá tica é muitas
vezes para ele nã o uma premissa teoló gica, mas um caminho
experiencial para a uniã o com Deus.
A sabedoria de Deus, à qual o intelecto deve estar unido, nã o tem modo
nem maneira, nem tem limites nem pertence a conhecimentos distintos
e particulares, porque é totalmente pura e simples. Para que os dois
extremos, a alma e a Sabedoria divina, possam ser unidos, deverã o
chegar a acordo por meio de uma certa semelhança. Como resultado, a
alma também deve ser pura e simples, ilimitada e desapegada de
qualquer conhecimento particular, e nã o modificada pelos limites da
forma, espécie e imagem. Visto que Deus nã o pode ser abrangido por
nenhuma imagem, forma ou conhecimento particular, para estar unida
a ele a alma nã o deve ser limitada por nenhuma forma ou
conhecimento particular. (AMC 2.16.7)

Sã o Joã o da Cruz continua afirmando outras razõ es pelas quais nã o


precisamos de comunicaçõ es especiais de Deus por meio de imagens ou
ideias particulares como forma de obter relaçõ es mais pró ximas com
Deus. Primeiro, diz ele, porque Deus nã o precisa deste meio de imagem
visual interior ou de pensamentos particulares para se comunicar com
as camadas mais profundas da alma. Sua comunicaçã o com essas
camadas mais profundas da alma na contemplaçã o ocorre antes por
meio do silêncio. Em segundo lugar, esta outra forma é uma fonte de
“estagnaçã o espiritual, uma vez que a pessoa nã o está entã o ocupada
com as coisas mais importantes e livre das ninharias de apreensõ es e
conhecimentos particulares” (AMC 2.17.7). À s vezes, a vivacidade das
comunicaçõ es visuais sobre os sentidos internos da imaginaçã o pode
dificultar a compreensã o de seu menor valor. Nã o estamos inclinados a
tratar essas experiências menores com o discernimento adequado e até
mesmo com um espírito de rejeiçã o. Seu valor é, na melhor das
hipó teses, limitado; no entanto, a impressã o inicial é de exagero na sua
importâ ncia. Sã o Joã o da Cruz oferece a interpretaçã o mais penetrante.
O apelo sensorial de tais experiências imaginativas indica o seu
estatuto inferior em comparaçã o com o caminho mais profundo da fé:
“É lamentável que uma alma, tendo como que uma capacidade infinita,
seja alimentada, devido à sua espiritualidade limitada e incapacidade
sensorial, com petiscos para os sentidos” (AMC 2.17.8). Sã o Joã o da
Cruz comenta ainda que quando ocorrem visõ es imaginativas de
qualquer tipo, é comum que as almas sejam tentadas a exaltar-se: “Elas
andam sentindo-se satisfeitas e um tanto satisfeitas consigo mesmas, o
que é contra a humildade” (AMC 2.18.3). . O apego a essas experiências
ocorre facilmente, e elas sã o tratadas como excessivamente
significativas e à s vezes comentadas com os diretores espirituais, que
podem se interessar demais por tais assuntos. Segundo Sã o Joã o da
Cruz, essas experiências seriam melhor tratadas com uma indiferença
que poderia diminuir sua importâ ncia para a alma, inclusive uma
indiferença que deveria partir dos diretores espirituais dessas almas.
Como ele escreve: “Esses diretores também nã o fundamentam seus
discípulos na fé, pois frequentemente fazem dessas visõ es um tema de
conversa. Conseqü entemente, os indivíduos ficam com a ideia de que
seus diretores estã o valorizando suas visõ es e, como resultado, fazem o
mesmo e permanecem apegados a elas, em vez de serem edificados na
fé, desapegados, esvaziados e despojados de apreensõ es para poder
eleve-se à s alturas da fé sombria” (AMC 2.18.2).

Outra forma de comunicaçã o pode ser o que parecem ser mensagens


especiais ou revelaçõ es particulares de Deus. À s vezes, estas sã o
solicitadas pelas almas para esclarecimento sobre assuntos a serem
feitos ou escolhas a serem feitas. Uma porta aberta para interpretaçõ es
errô neas se apresenta aqui. Sã o Joã o da Cruz passa um pouco de tempo
ensinando que as palavras dadas nessas mensagens ou as instruçõ es
que podem ser discernidas com algum senso de clareza imediata, ou as
expectativas que sã o despertadas com base no significado literal do que
é ouvido podem todas se transformar nã o ocorrer da maneira prevista.
Sã o Joã o da Cruz refere-se aqui especialmente a instruçõ es relativas a
açõ es futuras baseadas em previsõ es sobre o que irá acontecer. Muitas
vezes as pessoas que dependem deste modo de comunicaçã o de Deus,
confiando neles com demasiada confiança, acreditam que tudo deve
acontecer de acordo com o que pensam ter ouvido de Deus. A ideia é
que os eventos ocorrerã o da maneira que Deus lhes falou, pois, se Deus
falou, nã o pode ser de outra forma. Sã o Joã o da Cruz tem uma forte
refutaçã o a essa noçã o. Ele nã o nega que Deus possa se comunicar com
uma alma. Ele insiste, antes, que a comunicaçã o de Deus pode
facilmente ser mal interpretada no seu verdadeiro significado devido à
incapacidade da alma de perceber uma interpretaçã o espiritual mais
profunda. “Nem todas as revelaçõ es acontecem de acordo com o que
entendemos pelas palavras” (AMC 2.19.1). Na verdade, o significado
literal raramente é o significado real da comunicaçã o. O resultado pode
ser erros e delírios. “Como Deus é imenso e profundo, ele costuma
incluir em suas profecias, locuçõ es e revelaçõ es outros caminhos,
conceitos e ideias notavelmente diferentes do significado que
geralmente encontramos neles” (AMC 2.19.1). A ideia de eventos ou
previsõ es ocorrendo conforme declarado literalmente na recepçã o de
uma palavra interior de Deus é uma presunçã o que muitas vezes se
mostra errada. “As revelaçõ es ou locuçõ es de Deus nem sempre
resultam de acordo com a compreensã o que as pessoas têm delas ou de
acordo com o que parece ser o significado das palavras. Nã o se deve
encontrar segurança neles nem acreditar cegamente neles, mesmo
sabendo que sã o revelaçõ es, respostas ou palavras de Deus. Embora
possam ser certas e verdadeiras em si mesmas, nem sempre o sã o nas
suas causas ou na nossa maneira de compreendê-las” (AMC 2.18.9).

Os comentá rios aqui falam de uma dificuldade essencial em nossas


relaçõ es com Deus devido à verdade apofá tica de sua transcendência
infinita. As comunicaçõ es pessoais de Deus com uma alma, quando na
verdade provêm dele, nã o sã o enganosas ou enganosas em si mesmas;
no entanto, somos perfeitamente capazes de ser enganados por eles.
Isto pode acontecer “compreendendo as locuçõ es e revelaçõ es de Deus
segundo a letra, segundo a casca” (AMC 2.19.5). Deve-se salientar que
Sã o Joã o da Cruz usa aqui a terminologia de locuçõ es e revelaçõ es, nã o
necessariamente como experiências místicas extraordiná rias, mas no
sentido de comunicaçõ es ao intelecto ou à imaginaçã o que dã o todas as
indicaçõ es de vir de uma fonte além de nó s mesmos. Na opiniã o de Sã o
Joã o da Cruz, o propó sito divino destas comunicaçõ es muitas vezes nã o
está no significado literal das palavras ou imagens comunicadas. “O
principal objetivo de Deus ao conferir essas revelaçõ es é expressar e
transmitir o espírito que está encerrado na casca externa. Este espírito
é difícil de compreender, muito mais rico e abundante, muito
extraordiná rio e muito além dos limites da letra” (AMC 2.19.5).

A prudência dita, como tal, a necessidade de descartar uma


interpretaçã o fá cil destas comunicaçõ es entendidas pelo seu valor
nominal. A oportunidade para presunçã o e subsequente engano é
demasiado real. Ouvimos novamente a grande importâ ncia de retornar
a um exercício puro de fé: “A alma deve renunciar, entã o, ao sentido
literal nestes casos, e viver nas trevas da fé, pois a fé é o espírito que é
incompreensível aos sentidos” (AMC 2.19.5). Sã o Joã o da Cruz pode ter
comentado com base na sua pró pria experiência com as almas. A
expectativa de que os eventos ocorrerã o, que uma mudança nas
circunstâ ncias ocorrerá ou que uma ideia será frutífera, de acordo com
uma comunicaçã o aparente dada por Deus, normalmente nã o é
cumprida como previsto. A razã o nã o se deve a uma mudança ou
reconsideraçã o por parte de Deus, mas a uma má compreensã o do
significado por parte da alma. As seguintes palavras sã o um forte
corretivo a esse respeito: “Evidentemente, entã o, embora as palavras e
revelaçõ es sejam de Deus, nã o podemos encontrar segurança nelas,
pois em nossa compreensã o delas podemos ser facilmente iludidos, e
muito mesmo. Eles personificam um abismo e uma profundidade de
espírito, e querer limitá -los à nossa interpretaçã o e ao que nossos
sentidos podem apreender é como querer agarrar um punhado de ar
que escapará inteiramente da mã o, deixando apenas uma partícula de
poeira” (AMC 2.19.10).

Uma ilustraçã o usada por Sã o Joã o da Cruz pode ser instrutiva. Uma
alma experimenta intenso desejo de ser má rtir e entã o, em oraçã o, ouve
uma comunicaçã o de Deus: “Você será um má rtir”. Ao mesmo tempo,
Deus concede à alma “profunda consolaçã o interior e confiança na
verdade desta promessa” (AMC 2.19.13). E assim essa pessoa começa a
conviver com esse pensamento de uma morte inevitável por martírio.
Contudo, a pessoa nã o acaba morrendo como má rtir. O que aconteceu?
A pessoa deixou de viver de acordo com o padrã o de virtude necessá rio
para o prêmio do martírio? Este nã o é um entendimento correto,
segundo Sã o Joã o da Cruz, se de fato se seguiu uma vida santa. Em vez
disso, Sã o Joã o da Cruz comenta que a promessa de Deus ouvida nestas
palavras era verdadeira e foi uma promessa que foi cumprida, mesmo
sem cumprimento literal. No entanto, foi cumprido na verdade de uma
maneira muito melhor. Como pode ser isso se uma pessoa nã o morreu
como má rtir? Ele responde:

Independentemente da promessa, esta pessoa no final nã o morre


má rtir; ainda assim, a promessa terá sido verdadeira. . . . Porque será
cumprido no seu significado principal e essencial: a concessã o do amor
essencial e da recompensa de um má rtir. Deus realmente concede à
alma o que ela desejou formalmente e o que ele prometeu, porque o
desejo formal da alma nã o era uma forma de morte, mas o serviço de
Deus através do martírio e do exercício do amor de um má rtir por ele. A
morte por martírio em si nã o tem valor sem esse amor, e Deus concede
o amor e a recompensa do martírio perfeitamente por outros meios.
Mesmo que a alma nã o morra má rtir, ela fica profundamente satisfeita
porque Deus realizou o seu desejo. (AMC 2.19.13)

O ensinamento essencial aqui é tomar cuidado com o que podem


parecer formas de comunicaçã o direta de Deus. A reaçã o inicial de
receptividade exuberante à s supostas comunicaçõ es divinas precisa ser
moderada para que nã o ocorram mal-entendidos. Uma compreensã o
sá bia flui através deste ensinamento: “Deus geralmente afirma, ensina e
promete muitas coisas, nã o para que haja uma compreensã o imediata
delas, mas para que depois, no tempo apropriado, ou quando o efeito
for produzido, alguém possa receber luz sobre eles” (AMC 2.20.3).
Devemos presumir que estas sã o verdades secretas no trato de Deus
com a nossa alma, que somos incapazes de compreender durante o que
pode ser um longo período de tempo. A tendência de interpretá -los
com clareza imediata leva facilmente a conceitos errados sobre a real
intençã o e significado de Deus em qualquer comunicaçã o.

Sã o Joã o da Cruz levanta a objeçã o retó rica: “Se nã o queremos


compreender ou envolver-nos nestas locuçõ es e revelaçõ es, por que
Deus as comunica?” (AMC 2.20.6). A sua resposta é que tudo pode ser
entendido no devido tempo, como Deus deseja que seja entendido, mas
isso implica uma necessidade de paciência e humildade. O risco de erro
é grande na medida em que somos impetuosos e presumimos uma
compreensã o especial devido à nossa proximidade com Deus. “Acredite
em mim”, escreve Sã o Joã o da Cruz, “as pessoas nã o conseguem
compreender completamente o significado das locuçõ es e açõ es de
Deus; nem, sem muito erro e confusã o, podem determinar esse
significado pelo que parece ser” (AMC 2.20.6). Nã o deveria ser surpresa
que as comunicaçõ es de Deus “nã o se materializem como esperado”
(AMC 2.20.8). O erro é pensar que compreendemos Deus com bastante
clareza, quando na verdade podemos ter caminhado para um canto
escuro de má interpretaçã o. “Deve-se buscar segurança, portanto, nã o
no entendimento, mas na fé” (AMC 2.20.8). Sempre o retorno na
discussã o é para a importâ ncia de um exercício mais puro de fé.

Outra questã o de interesse abordada por Sã o Joã o da Cruz é o


pensamento de algumas pessoas de que Deus deve ficar satisfeito
quando uma alma lhe pede para saber certas coisas por meio de
mensagens sobrenaturais, precisamente porque à s vezes parece
responder a tais pedidos. Sã o Joã o da Cruz expressa uma opiniã o
contrá ria: “No entanto, a verdade é que, independentemente da sua
resposta, tal comportamento nã o é bom nem agradável a Deus. Em vez
disso, ele está descontente; nã o apenas descontentes, mas
frequentemente irritados e profundamente ofendidos” (AMC 2.21.1). O
motivo do desagrado de Deus é a ultrapassagem ilícita de limites
quando buscamos conhecer as coisas por meio de mensagens
sobrenaturais, quando o caminho adequado é usar nossa fé e razã o
para exercitar o discernimento sobre o que Deus quer de nó s. É um ato
presunçoso tentar chegar ao conhecimento imediato e inequívoco dos
assuntos divinos por meio de algum favor sobrenatural especial, em vez
de trilhar humildemente o caminho da fé. A primeira tendência é uma
forma de tentar a Deus: “Pois tentar a Deus é desejar a comunicaçã o
com ele de maneiras extraordiná rias, sobrenaturais” (AMC 2.21.1). Se
Deus à s vezes dá uma resposta, é apenas “por causa da fraqueza de
quem deseja avançar nesse caminho” (AMC 2.21.2). Se Deus nã o
condescender em responder, essas pessoas ficarã o tristes e “imaginarã o
que Deus está descontente com elas e ficarã o sobrecarregadas” (AMC
2.21.2). Deus nã o deseja ou se agrada “que a comunicaçã o com ele seja
realizada dessa maneira” (AMC 2.21.2). Ele é um Deus amoroso que
pode ser indulgente com os seus filhos, “desde que sejam bons e
simples”. “Mas o facto de ele as responder nã o significa que esteja
satisfeito com esta prá tica” (AMC 2.21.2).

O problema com esta abordagem espiritual ecoa o que foi ouvido


anteriormente sobre a busca da nossa pró pria satisfaçã o na oraçã o. Sã o
Joã o da Cruz volta a admoestar fortemente a este respeito: “Considero o
desejo de conhecer as coisas por meios sobrenaturais muito pior do
que o desejo de gratificaçõ es espirituais na parte sensível da alma”
(AMC 2.21.4). Sã o Joã o da Cruz é inflexível ao sublinhar que nã o há
necessidade de ir além ou fora do caminho da fé. A fé, à medida que
avança, incita a alma a uma submissã o crescente à vontade de Deus em
todas as coisas, mesmo quando o conforto da clareza está ausente da
nossa perspectiva. A entrega a Deus, mesmo nas trevas obscuras, é
sempre um ato superior à busca de orientaçã o direta por meio de uma
mensagem especial de Deus. Deve-se sempre presumir que o salto de fé
na busca da vontade de Deus é muito mais agradável para ele do que a
dependência de uma mensagem especial que nos diz o que fazer a
seguir na vida. A seguinte advertência de Sã o Joã o da Cruz, se estiver
correta, indica que Deus nã o está nada feliz com a nossa busca por
comunicaçõ es sobrenaturais especiais dele. A repercussã o de tais
prá ticas é muitas vezes vista em frutos lamentáveis na vida. “Deus,
embora irado, condescende desta e de muitas outras maneiras com os
desejos das almas. As Escrituras fornecem muitos testemunhos e
exemplos disso. . . . Digo apenas que o desejo de comunicar-se com
Deus desta forma é extremamente perigoso – mais do que posso dizer.
A pessoa apegada a tais caminhos se desviará muito e muitas vezes
ficará muito confusa. Quem os estima compreenderá por experiência o
que quero dizer” (AMC 2.21.7).

Sã o Joã o da Cruz encerra esta discussã o particular com comentá rios


sobre o que ele chama de locuçõ es sobrenaturais recebidas pelo
espírito interior. Novamente, ele nã o se refere a locuçõ es místicas
extraordiná rias, mas a três categorias de experiência interior que
necessitam de discernimento e compreensã o adequada. A primeira ele
chama de “locuçõ es sucessivas”. Estas nã o sã o tã o incomuns na vida de
oraçã o, pois acontecem durante o tempo de reflexõ es meditativas, no
silêncio da oraçã o. Pessoas que praticam uma meditaçã o discursiva
com uma absorçã o atenta, procedendo de ponto a ponto no
pensamento, podem descobrir à s vezes que estã o se deparando com
verdades desconhecidas nunca antes consideradas “com tanta
facilidade e clareza que lhes parecerá que nã o estã o fazendo nada e
outra pessoa está interiormente raciocinando, respondendo e
ensinando” (AMC 2.29.1). Tudo isto acontece como se a alma
“mantivesse um diá logo”. O Espírito Santo está presente para ajudar a
pessoa a formar estes “conceitos, palavras e julgamentos”, mas a
verdade é que a pessoa pronuncia estas afirmaçõ es para si mesma. O
intelecto, recolhido e unido à verdade, e assistido pelo Espírito Santo, é
assim iluminado nas verdades. O erro é pensar que estas declaraçõ es
vêm completamente somente de Deus, como se Deus do alto, por assim
dizer, estivesse falando dos céus para a alma. “Qualquer pessoa que
tenha esta experiência nã o pode deixar de pensar que estas declaraçõ es
ou palavras vêm de outra pessoa. Eles nã o sabem a facilidade com que o
intelecto, ao lidar com conceitos e verdades comunicadas por outro,
pode formar para si palavras que também parecem vir de outro” (AMC
2.29.2).
O problema nesta questã o é que embora o Espírito Santo nã o engane,
a pessoa pode ser enganada na medida em que o intelecto, ao formar as
suas proposiçõ es e palavras, é capaz de abraçar verdades incompletas e
parciais e perder outros aspectos da verdade. Uma recepçã o defeituosa
da comunicaçã o é bem possível. Escreve Sã o Joã o da Cruz, por exemplo:
“Conheci uma pessoa que, ao viver estas sucessivas locuçõ es, formou,
entre algumas muito verdadeiras e só lidas sobre o Santíssimo
Sacramento, outras que eram francas heresias” (AMC 2.29.4). Mais
comumente, e talvez com pertinência hoje, as almas considerarã o
palavras ou mensagens recebidas na silenciosa lembrança da oraçã o
como locuçõ es diretas do pró prio Deus, quando na realidade a pessoa é
a origem da declaraçã o supostamente proferida por Deus. Sã o Joã o da
Cruz poderia estar falando aos nossos dias com estas palavras: “Temo
muito o que está acontecendo nestes nossos tempos: se alguma alma,
depois de alguns centavos de reflexã o, experimenta uma dessas
locuçõ es em alguma lembrança, é imediatamente batizará todos como
vindos de Deus e, supondo isso, dirá : 'Deus me disse', 'Deus me
respondeu'. No entanto, isto nã o será verdade, mas, como salientá mos,
estas pessoas serã o elas pró prias, mais frequentemente, aquelas que
pronunciam as palavras” (AMC 2.29.4).

A verdade é que, no desejo de tais “locuçõ es” e no apego a elas, as


almas muitas vezes respondem a si mesmas em oraçã o e “pensam que
Deus lhes responde e lhes fala” (AMC 2.29.5). É evidente que sã o
necessá rias moderaçã o e autodisciplina para corrigir o que pode ser
um sério dano à vida espiritual. O perigo é especialmente sério se as
instruçõ es ouvidas na oraçã o forem vistas como orientaçõ es divinas,
quando na verdade o caminho proposto para alguma escolha de açã o é
contrá rio à vontade de Deus. A pessoa humana é facilmente ingênua ao
pensamento de receber favores divinos desta maneira: “Eles pensam
que algo extraordiná rio aconteceu e que Deus falou, quando na
realidade pouco mais do que nada terá acontecido, ou nada, ou ainda
menos do que nada” (AMC 2.29.5).
A principal objecçã o à dependência desta abordagem espiritual a
Deus é, mais uma vez, que ela constitui uma barreira ao verdadeiro
caminho da fé mais profunda. Ao prestar atençã o a tais “locuçõ es”, ou
procurá -las, a pessoa nã o vive no “abismo da fé” (AMC 2.29.7). Buscar
esse tipo de instruçã o especial é um impedimento para uma fé mais
profunda. Como escreve Sã o Joã o da Cruz, “o intelecto deve permanecer
na obscuridade e caminhar pelo amor nas trevas da fé e nã o por muitos
raciocínios” (AMC 2.29.5). Sã o Joã o da Cruz prossegue perguntando
retoricamente por que o intelecto deveria privar-se de tais verdades se
o Espírito Santo ilumina o intelecto através delas. Sua resposta é que a
iluminaçã o superior virá sempre por meio de uma lembrança “mais
pura e mais refinada” na fé, “na qual nã o há compreensã o clara” (AMC
2.29.6). Prestar atençã o à instruçã o distinta ou clara é contrá rio a
abraçar “a comunicaçã o do abismo da fé” (AMC 2.29.7). Isto é muito
superior em valor, embora nã o satisfaça imediatamente a mente ou o
espírito. “Nesta fé, Deus ensina a alma de forma sobrenatural e secreta
e a eleva em virtudes e dons de uma forma que ela nã o conhece” (AMC
2.29.7). O caminho da humildade também exige o reconhecimento de
que qualquer suposiçã o de comunicaçõ es especiais de Deus pode
simplesmente alimentar a vaidade de uma alma. Como observa Sã o
Joã o da Cruz com certa pungência:

No entanto, alguns intelectos sã o tã o vivos e sutis que, enquanto


recolhidos na meditaçã o, raciocinam natural e facilmente sobre alguns
conceitos, e formam locuçõ es e declaraçõ es muito vividamente, e
pensam que estes sã o de fato vindos de Deus. Mas essa noçã o é falsa,
pois um intelecto um tanto liberto da operaçã o dos sentidos tem a
capacidade de fazer isto e ainda mais com a sua pró pria luz natural e
sem qualquer outra ajuda sobrenatural. Tal ocorrência é frequente. E
muitos sã o iludidos por isso, pensando que deles é o desfrute de um
alto grau de oraçã o e comunhã o de Deus; conseqü entemente, eles
pró prios escrevem as palavras ou pedem que outros o façam. Mas
acontece que a experiência nã o vale nada, nada de substancial em
termos de virtude provém dela e serve apenas para induzir a vangló ria.
(AMC 2.29.8)

Depois do que foi dito, a questã o do segundo e terceiro tipos de


locuçõ es interiores pode ser tratada mais rapidamente. O segundo tipo
é chamado de locuçã o interior formal e ocorre fora de qualquer
recolhimento espiritual na oraçã o meditativa. Dá a aparência de um
enunciado que vem independentemente da pessoa que o recebe. Uma
pessoa nã o está de forma alguma ponderando sobre o assunto, e o
pensamento ou algumas palavras de repente vêm à mente, claramente
presentes e, por assim dizer, ouvidas. Novamente, isso nã o significa
uma experiência mística extraordiná ria, mas alguma palavra ouvida no
espírito interior. Pode haver palavras explícitas, ou à s vezes nã o, ou
ideias e inspiraçõ es dirigidas ao espírito interior. “Todas estas palavras
vêm sem qualquer intervençã o do espírito porque sã o recebidas como
se uma pessoa falasse com outra” (AMC 2.30.2). Se vêm de Deus,
geralmente têm o objetivo de ensinar alguma verdade ou lançar alguma
luz de direçã o na vida de uma pessoa. Os mesmos cuidados com
possíveis exageros ou enganos precisam ser observados como nas
instruçõ es anteriores. O terceiro tipo de locuçã o interior é menos
problemá tico; é chamada de locuçã o substancial e envolve Deus
concedendo uma virtude ou força à alma por meio da expressã o falada
em palavras. “Por exemplo, se nosso Senhor dissesse formalmente à
alma: 'Seja bom', ela seria imediatamente substancialmente boa; ou se
ele dissesse: 'Ame-me', imediatamente teria e experimentaria dentro de
si a substâ ncia do amor de Deus; ou se dissesse a uma alma com muito
medo: 'Nã o tema', ela sentiria sem demora grande fortaleza e
tranquilidade” (AMC 2.31.1). Este terceiro tipo de locuçã o interna
geralmente nã o é problemá tico porque o foco está em um comando
virtuoso. Ao contrá rio do terceiro tipo, porém, o problema da segunda
forma de locuçã o interior inclui a possibilidade de que as comunicaçõ es
diabó licas ocorram desta maneira. Isso por si só é motivo para exercer
uma séria cautela. A seguinte instruçã o de Sã o Joã o da Cruz é enfá tica
sobre a rejeiçã o de tais comunicaçõ es, quer tal comunicaçã o venha ou
nã o de Deus. O perigo é que a alma esteja realmente enganada e possa
causar danos a si mesma.

Uma pessoa nã o deve prestar mais atençã o a todas essas locuçõ es


formais do que à s outras, pois além de ocupar o espírito com assuntos
irrelevantes para a fé, meio legítimo e pró ximo para a uniã o com Deus,
farã o da pessoa uma vítima fá cil dos enganos do diabo. . À s vezes é
difícil discernir as locuçõ es proferidas por um Espírito bom ou as que
provêm de um Espírito mau. . . . As pessoas nã o devem fazer o que estas
palavras lhes dizem, nem devem prestar atençã o a elas – sejam elas de
um espírito bom ou mau. No entanto, estas locuçõ es devem ser
manifestadas a um confessor maduro ou a uma pessoa discreta e sá bia
que dará instruçõ es e conselhos e considerará o que é apropriado fazer.
Mas a atitude de uma pessoa em relaçã o a eles deveria ser de
resignaçã o e negaçã o. (AMC 2.30.5)

As observaçõ es finais deste capítulo podem voltar-se


apropriadamente para a seçã o intermediá ria deste tratamento sobre
comunicaçõ es especiais de Deus. Sã o Joã o da Cruz inicialmente
contrasta a abordagem lícita e necessá ria pela qual foram feitas
perguntas a Deus no Antigo Testamento em busca de visõ es e
revelaçõ es e tais tendências apó s a revelaçã o de Jesus Cristo. Os
profetas do Antigo Testamento desejavam revelaçõ es e à s vezes
questionavam a Deus para informá -los sobre assuntos desconhecidos, e
Deus respondia. “Mas nesta era de graça, agora que a fé é estabelecida
através de Cristo e a lei evangélica se manifesta, nã o há razã o para
questioná -lo desta forma, ou esperar que ele responda como antes”
(AMC 2.22.3). Temos tudo o que precisamos em Jesus Cristo: “Ao dar-
nos o seu Filho, a sua ú nica Palavra (pois nã o possui outra), Ele nos
falou tudo ao mesmo tempo nesta única Palavra – e não tem mais nada a
dizer ” (AMC 2.22). .3; grifo nosso). É uma resposta impressionante ao
desejo de luz adicional de Deus. A tentativa de questionar Deus ou de
desejar uma revelaçã o especial sobre algum assunto é um
comportamento tolo e ofensivo a Deus. O caminho da humildade e da
auto-anulaçã o é o caminho seguro e seguro. A longa citaçã o a seguir é
bastante severa em sua rejeiçã o ao desejo de comunicaçõ es especiais
de Deus por curiosidade ou mesmo por alguma suposta grande
necessidade de orientaçã o pessoal. Mas também é uma bela declaraçã o
de fé. Em Jesus Cristo temos tudo e muito mais. A sua presença na
Eucaristia é suficiente para alimentar a nossa alma e comunicar o
mistério profundo dos seus desejos para as nossas vidas.

Deus poderia responder da seguinte forma: Se eu já te contei todas as


coisas na minha Palavra, meu Filho, e se nã o tenho outra palavra, que
resposta ou revelaçã o posso fazer agora que supere esta? Fixe os olhos
somente nele, porque nele falei e revelei tudo e nele você descobrirá
ainda mais do que pede e deseja. Você está apelando para locuçõ es e
revelaçõ es que estã o incompletas, mas se você voltar seus olhos para
ele, você as encontrará completas. Pois ele é toda a minha locuçã o e
resposta, visã o e revelaçã o, que já falei, respondi, manifestei e revelei a
você, dando-o a você como irmã o, companheiro, mestre, resgate e
recompensa. . . . Se você deseja que eu responda com uma palavra de
conforto, contemple meu Filho sujeito a mim e aos outros por amor a
mim, e aflito, e você verá o quanto ele lhe responderá . Se você deseja
que eu lhe declare algumas verdades ou eventos secretos, fixe seus
olhos apenas nele e você discernirá escondidos nele os mistérios mais
secretos, a sabedoria e as maravilhas de Deus. (AMC 2.22.5, 6)
5
Ascetismo: Recuperaçã o de um Valor Negligenciado

Neste capítulo abordamos um assunto mais firmemente estabelecido, a


saber, as instruçõ es de Sã o Joã o da Cruz no livro 1 de A Subida do Monte
Carmelo sobre ascetismo e abnegaçã o. Este ensinamento fará mais
sentido agora, depois de termos visto a sua compreensã o do grande
papel da purificaçã o nas faculdades humanas em prol da uniã o com
Deus. Infelizmente, o ascetismo é uma palavra largamente esquecida na
espiritualidade contemporâ nea, apesar da sua importâ ncia na tradiçã o
cató lica. Na verdade, nunca foi um tema precioso ou uma atividade
cató lica popular. Sempre esteve sujeito a noçõ es exageradas que o
distorcem e esvaziam de valor. Hoje pode existir outra razã o para o seu
virtual desaparecimento do ensino espiritual, que é o foco excessivo no
caminho interior das prá ticas meditativas silenciosas que ultimamente
tem preocupado a espiritualidade. Escritos sobre a busca de Deus por
meio de métodos de atençã o plena meditativa normalmente ignoram a
abnegaçã o ou a disciplina corporal como pré-requisito para o
crescimento espiritual. Isto nã o quer dizer que estes escritos encorajem
a frouxidã o moral, mas simplesmente que a necessidade de algum
compromisso com o ascetismo e com prá ticas reais de abnegaçã o nã o é
encontrada neles. Francamente, isto nã o é um bom sinal do seu valor
como ensinamento para as almas que procuram um relacionamento
mais pró ximo com Deus. A negligência de um elemento ascético na
busca de Deus deixa sem soluçã o a retençã o de tendências indulgentes
na vida. O esforço de buscar a Deus acaba muitas vezes como uma
busca egocêntrica, em vez de uma busca pura e sacrificial em resposta
à s pró prias palavras de Jesus no Evangelho e na imitaçã o de vidas
santas.
Antes de examinar o ensinamento de Sã o Joã o da Cruz, digamos
primeiro que a ascese nã o significa assumir prá ticas extremas de
austeridade ou penitências severas, embora muitas vezes vidas santas
tenham dado exemplos disso, incluindo as vidas de Sã o Joã o da Cruz e
alguns de seus companheiros na reforma carmelita. No entanto, alguma
evidência de uma qualidade ascética é certamente uma necessidade em
toda vida espiritual saudável, dada a atraçã o sedutora que a natureza
humana, ferida pelo pecado original, experimentará pelos prazeres dos
sentidos. O ascetismo é uma resposta, um contrapeso ao perigo moral
da tentaçã o sensual e a todas as tendências ao egoísmo. Na prá tica,
implica privar-se voluntariamente de confortos e prazeres fá ceis em
troca de um aumento abençoado na força espiritual. Em toda a
espiritualidade tradicional, é ensinada como um meio para o fim maior
da uniã o com Deus. A formaçã o em há bitos de mortificaçã o sempre foi
uma preparaçã o essencial para uma busca séria de Deus. Nunca foi
ensinado que o ascetismo assegura a chegada a Deus, mas serve a
funçã o preliminar de ajudar alguém a abandonar tendências
indulgentes e a forjar um desejo mais puro por Deus.

Na verdade, remonta a séculos a ideia de que as prá ticas ascéticas de


abnegaçã o inculcam na alma um espírito viril pronto para enfrentar os
rigores dos testes espirituais que certamente ocorrerã o mais tarde na
vida. Naturalmente, nem todos, mesmo nos mosteiros trapistas ou nos
conventos de clausura carmelitas, têm sucesso em todas as exigências
das privaçõ es pessoais, mas alguma proficiência na abnegaçã o tem sido
geralmente assumida para uma vida espiritual dedicada. No passado,
nã o existia um mosteiro ou convento, e na verdade nenhum seminá rio
nos tempos antigos, que nã o promovesse prá ticas de mortificaçã o em
relaçã o ao sono, alimentaçã o, vestuá rio, horá rios, conforto e assim por
diante. Privaçõ es comunitá rias combinadas com penitências pessoais.
Tudo isso diminuiu enormemente nas ú ltimas décadas e, em muitos
casos, desapareceu completamente em locais onde esperávamos
encontrá -lo, nomeadamente nas congregaçõ es religiosas. Nã o é exagero
dizer que os tomos tradicionais de espiritualidade tornaram-se
volumes empoeirados que revestem as prateleiras das seçõ es nã o
utilizadas das bibliotecas dos seminá rios e das casas religiosas. Em
muitos seminá rios diocesanos, uma sala de recreaçã o com geladeira
bem abastecida e adega substituiu a capela para o horá rio noturno. Os
diretores espirituais nestas casas de formaçã o, com algumas exceçõ es,
geralmente evitam as expressõ es “auto-renú ncia” ou “autonegaçã o”,
exceto à s vezes para exortar à prá tica abnegada de uma tolerâ ncia sem
julgamento em relaçã o à s tendências sexuais dos outros. Sã o Joã o da
Cruz adota uma abordagem bastante diferente, para dizer o mínimo.
Somente correndo o risco de subestimar as exigências de uma vida
santa se pode presumir que ele expressa uma exigência antiquada de
avanço espiritual nestas palavras intransigentes:

A mortificaçã o dos apetites é necessá ria para a fecundidade espiritual.


Atrevo-me a dizer que sem esta mortificaçã o tudo o que é feito em prol
do progresso na perfeiçã o e no conhecimento de Deus e de si mesmo
nã o é mais proveitoso do que a semente lançada em terreno nã o
cultivado. Conseqü entemente, a escuridã o e a grosseria sempre estarã o
com a alma até que seus apetites sejam extintos. Os apetites sã o como
uma catarata no olho ou partículas de poeira nele; até serem
removidos, eles obstruem a visã o. (AMC 1.8.4)

Certamente, apenas com base nesta passagem, podemos dizer que


Sã o Joã o da Cruz nã o mostra sinais de reaçã o alérgica ao valor da auto-
renú ncia e da mortificaçã o. Com efeito, ele poderia ser chamado, em
vez de Doutor Místico, de Doutor da abnegaçã o da Igreja. Para ele, o
tema da abnegaçã o permeia todas as etapas da vida espiritual. Ele nã o
apenas propõ e a mortificaçã o dos apetites no sentido estrito da
disciplina corporal como trabalho preliminar da vida espiritual. O
princípio da abnegaçã o, numa aplicaçã o mais ampla do termo, também
desempenha para ele um papel fundamental na pró pria vida interior de
oraçã o, como já observamos. O espírito de auto-renú ncia ajuda a
esculpir uma faixa de purificaçã o nas profundezas da alma,
preparando-a para a graça da contemplaçã o e auxiliando também numa
resposta adequada à s graças contemplativas. A importâ ncia essencial
da purificaçã o para o avanço da alma no amor explica a necessidade
essencial de abnegaçã o, primeiro aprendida nas privaçõ es físicas, mas
depois transferida para os desejos interiores da alma.

Para Sã o Joã o da Cruz, a uniã o com Deus é o grande objetivo de tudo


na vida. Exige uma jornada contínua de purificaçã o, uma vasta morte
para si mesmo, alimentada por uma dinâ mica de esvaziamento de si
mesmo que afetará todas as á reas da vida exterior e interior. Através de
todos os tipos de purificaçã o, a necessidade é morrer para si mesmo,
negando-se a si mesmo. Recordemos que o pró prio Jesus proclama
precisamente esta mesma necessidade no Evangelho: «Se o grã o de
trigo nã o cair na terra e morrer, fica só ; mas se morrer, dá muito fruto”
(Jo 12,24). A morte proposta nesta passagem evangélica nã o é a morte
no final de uma vida, mas a morte como entrega de si, como imolaçã o
de si por outro, a morte que pode ser um longo martírio de muitos anos
de vida. Noutra declaraçã o, Jesus proclama: “Se alguém quiser vir apó s
mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). Toda
vida espiritual séria tem este ú nico objetivo – a uniã o com Deus – e isso
só pode significar, de alguma forma misteriosa, uma identificaçã o com o
Senhor Jesus Cristo crucificado. Uma frase de abertura em A Subida do
Monte Carmelo , antes do seu Pró logo, anuncia o tipo de orientaçã o
espiritual que podemos esperar receber de Sã o Joã o da Cruz – uma
orientaçã o intensa, intensa e intransigente, sem tempo a perder. A
uniã o com Cristo crucificado nã o será possível sem a “nudez completa”
na oferta do nosso amor ao Senhor: “Este tratado explica como chegar
rapidamente à união divina . Apresenta instruçõ es e doutrinas valiosas
tanto para iniciantes quanto para proficientes, para que possam
aprender como se livrar de todas as coisas terrenas, evitar obstá culos
espirituais e viver naquela completa nudez e liberdade de espírito
necessá rias para a uniã o divina” (Pró logo AMC; ênfase adicionada) .

O exercício da abnegaçã o pressupõ e, entã o, um objetivo profundo:


morrer para si mesmo em prol da uniã o com Deus. O que é necessá rio
nesta busca, na perda de si exigida pelo amor, pelo menos no que diz
respeito à abnegaçã o ascética? Claramente, nã o é para morrer de fome.
Pelo contrá rio, inicialmente e bastante difícil, é aceitar privaçõ es
voluntá rias na vida; quanto mais radical melhor, embora com bom
senso e um certo respeito pela moderaçã o. A libertaçã o dos apegos ao
conforto e ao prazer exige escolhas decisivas. A tarefa nã o é procurar
experiências dolorosas ou penitências severas, mas sim afastar-se
voluntariamente de uma vida fá cil de prazeres agradáveis. Esta reduçã o
da procura de prazeres, da gratificaçã o dos nossos desejos impulsivos, é
sempre, a princípio, um trabalho exigente. Sã o Joã o da Cruz comenta as
trevas que isto provoca no espírito interior, à medida que os desejos sã o
temperados e disciplinados: “Privar-se da satisfaçã o dos apetites em
todas as coisas é como viver nas trevas e no vazio” (AMC 1.3. 1). A
privaçã o leva inevitavelmente a esta experiência de escuridã o interior.
Nas renú ncias dirigidas aos prazeres dos sentidos, pode surgir o
primeiro gosto de uma fome espiritual que, com o tempo, pode ser
estendida a regiõ es muito mais profundas da alma.

A maioria das pessoas, até começarem a privar-se, têm pouca


consciência de quã o indulgentes os nossos sentidos podem ser na
satisfaçã o dos nossos desejos imediatos. Isto é particularmente
verdadeiro no que diz respeito aos prazeres da comida, o que torna a
comida um bom ponto de partida na questã o da restriçã o ascética.
Restringir-nos a comer apenas durante as refeiçõ es e nã o tomar mais
nada entre elas, moderar a nossa ingestã o, nem sempre escolher de
acordo com a preferência, jejum moderado e constante em rotinas
previsíveis – estas dificilmente sã o medidas extremas. Mas rapidamente
eles começam a nos ensinar como dizer “nã o” aos desejos que de outra
forma seriam satisfeitos sem pensar. Estas liçõ es de abnegaçã o,
aprendidas pela primeira vez nas privaçõ es físicas, podem ser
utilizadas em muitas á reas da vida espiritual, especialmente no
exercício da caridade ou na conquista do orgulho, mas também na vida
de oraçã o, quando a oraçã o é difícil, como veremos. . O poder de
comandar e a força de recusar sã o indispensáveis para a virtude, mas
também sã o essenciais para a vida contemplativa, como também
veremos. Toda abnegaçã o torna-se uma forma de morrer para si
mesmo, o que em si é um princípio fundamental da espiritualidade, mas
também promove uma vontade vibrante que é capaz de dar livre e
generosamente a Deus. A liberdade interior para amar sem restriçõ es
depende de abraçar um princípio espiritual ú ltimo de que “Ele deve
crescer, mas eu devo diminuir” (Jo 3,30), como ensinou Sã o Joã o
Batista, e sem o qual nã o há caminho aberto para Deus. .

Por outro lado, a ausência de um há bito virtuoso de abnegaçã o quase


sempre significará que as satisfaçõ es corporais e as experiências
prazerosas sã o identificadas, até certo ponto, com a felicidade pessoal.
Esta tendência de procurar o prazer em prol da felicidade, mesmo
quando esses prazeres nã o sã o gravemente pecaminosos, nã o tem um
pequeno efeito na nossa vida espiritual. Nã o nos perdemos, como pede
Jesus, enquanto nos preocupamos em agradar a nó s mesmos. Uma vida
ocupada com a busca habitual pelo prazer dos sentidos pode nã o ser
uma vida ruim, mas está fadada a sofrer um embotamento espiritual.
Pouca fome da alma pode ser sentida quando o desejo de gozo dos
sentidos nos domina diariamente até certo ponto. Um fogo de amor a
Deus dificilmente pode pegar fogo antes de arder novamente,
substituído por desejos inferiores. Talvez a seguinte declaraçã o do livro
2 de A Subida do Monte Carmelo deva ser apresentada e ponderada
neste ponto. O que Sã o Joã o da Cruz está dizendo aqui, que é em grande
parte sobre oraçã o, raramente é adotado, sem dú vida em parte porque
o há bito de abnegaçã o nas privaçõ es físicas nunca é adotado de
maneira séria. A importâ ncia desta declaraçã o surpreendente tornar-
se-á mais evidente em discussõ es posteriores sobre a oraçã o, mas a sua
admoestaçã o relativamente à abnegaçã o, se for ignorada, alerta para
danos inevitáveis ao caminho espiritual.

Gostaria de persuadir as pessoas espirituais de que o caminho que leva


a Deus. . . exige apenas a ú nica coisa necessá ria: a verdadeira
abnegaçã o, exterior e interior, através da entrega de si mesmo ao
sofrimento por Cristo e à aniquilaçã o em todas as coisas. No exercício
desta abnegaçã o, tudo o mais, e ainda mais, é descoberto e realizado. Se
falharmos neste exercício, a raiz e a soma total de todas as virtudes, os
outros métodos equivaleriam a nada mais do que andar em círculos
sem chegar a lugar nenhum. . . . Eu nã o consideraria vá lida nenhuma
espiritualidade que queira caminhar com doçura e tranquilidade e fugir
da imitaçã o de Cristo. (AMC 2.7.8)

Para Sã o Joã o da Cruz, nã o sã o apenas os prazeres e gozos dos


sentidos em si que constituem o cerne do problema. A experiência
humana de satisfaçã o sensorial é inevitável. Mesmo os monges do
deserto dos primeiros séculos cristã os, que enfrentaram extremas
dificuldades físicas, sem dú vida preferiram o sabor de uma folha cozida
a outra ou consideraram uma fonte de á gua fresca uma escolha melhor
do que outra. O Evangelho conta que Sã o Joã o Baptista, no seu deserto,
juntamente com o consumo de gafanhotos desagradáveis, sobreviveu
também com mel. A perspectiva cristã nesta matéria, quando saudável,
defende uma abordagem equilibrada. Nã o propõ e uma denegriçã o da
vida corporal a ponto de destruí-la ou danificá -la. Somos uma unidade
inseparável de corpo e alma como pessoas humanas, e a vida corporal
tem uma dimensã o sagrada, uma verdade que tem consequências de
longo alcance na moralidade. Mas essa unidade de corpo e alma é
precisamente o ponto e a questã o de importâ ncia no ascetismo. Nada
da vida corporal pode ser vivido como se estivesse separado da
existência da alma.

Ainda mais importante, as atividades corporais inevitavelmente


envolvem a vontade. A vontade e seus desejos permanecem sempre
numa espécie de consó rcio dinâ mico com a atividade corporal,
emocional e intelectual. Ao mesmo tempo, a vontade é uma realidade
primá ria nas nossas vidas pela maneira como coopera ou se rebela
contra os convites agraciados de Deus. Buscar a uniã o com Deus exige
uma determinaçã o profundamente enraizada da nossa alma para dar a
nossa vontade plenamente em amor a Deus. Isto nã o pode ser realizado
sem que os desejos da vontade se alinhem com o objetivo de uma uniã o
com a vontade de Deus em todas as facetas da vida corporal, emocional
e intelectual. Mais importante ainda, a vontade é a faculdade do amor
na alma. A vontade deve estar vazia de desejos de gratificaçã o se, por
meio de um grande amor, for buscar a Deus como desejo primá rio.
Tudo o que toca e entra nos desejos da vontade é crucial para a
possibilidade de uma uniã o com Deus por meio do amor. Resta agora
explicar como a vontade, na sua capacidade de amar, é afetada pelos
princípios da abnegaçã o e do ascetismo. Estas duas afirmaçõ es do livro
2 de A Subida ao Monte Carmelo definem com efeito a natureza da
santidade e ao mesmo tempo expressam a importâ ncia essencial da
purificaçã o da vontade na santidade.

A uniã o sobrenatural existe quando a vontade de Deus e a da alma


estã o em conformidade, de modo que nada em uma é repugnante à
outra. Quando a alma se livra completamente do que é repugnante e
inconformado com a vontade divina, ela descansa transformada em
Deus através do amor. . . . Uma alma abre espaço para Deus eliminando
todas as manchas e manchas das criaturas, unindo perfeitamente a sua
vontade à de Deus; pois amar é trabalhar para despojar-se e privar-se
para Deus de tudo o que nã o é Deus. Quando isso for feito, a alma será
iluminada e transformada em Deus. (AMC 2.5.3, 7)

Sã o Joã o da Cruz ensinará repetidamente uma liçã o particular que


deve ser dominada com o tempo. A recusa em ceder ao desejo de
satisfaçã o dos apetites é o princípio subjacente que deve motivar todas
as prá ticas de abnegaçã o. A privaçã o dos sentidos só tem valor na
medida em que purga e purifica a vontade em seu desejo e cobiça por
satisfaçõ es imediatas. O objetivo é uma nudez de desejo, uma pobreza
de desejo, para que o desejo interior seja consumido, em vez disso, por
uma intensa saudade de Deus. O desejo nã o morre como um fogo sem
combustível para alimentá -lo; antes, torna-se um fogo concentrado de
desejo maior que pode ser direcionado a Deus e ao seu prazer. A
abnegaçã o de todos os tipos pode abrir caminho para essa
transformaçã o interior. Idealmente, o ato interior de recusa – o “nã o” a
algo – é acompanhado por um “sim” interior da vontade de oferecer a
Deus este sacrifício por amor, no desejo de estar unido a Deus. Quando
esta prá tica sacrificial se torna mais habitual em relaçã o à s
gratificaçõ es que poderiam ser desfrutadas no prazer dos sentidos,
surge um vazio que Sã o Joã o da Cruz descreve como entrar numa noite
de escuridã o: “Quaisquer indivíduos que possam ter negado e rejeitado
a gratificaçã o que todas as coisas lhes proporcionam , mortificando seu
apetite por eles, vivem como se estivessem na noite, nas trevas, que
nada mais sã o do que um vazio dentro deles de todas as coisas” (AMC
1.3.2).

O foco, mais uma vez, nã o está simplesmente em negar o prazer em


si, mas em superar o desejo persistente de gratificaçã o dos nossos
apetites. Apetites insistentes, quando satisfeitos e desordenados,
causam estagnaçã o espiritual. Quando cedemos a eles impensadamente
ou impulsivamente, eles têm um efeito dissipador sobre a vontade,
tornando assim a nossa alma inquieta, atormentada, difícil de agradar.
“Essa é a característica de quem tem apetite; estã o sempre insatisfeitos
e amargos, como quem tem fome” (AMC 1.6.3). Por outro lado, quando
negamos os nossos apetites e nos recusamos a satisfazê-los, deixando-
nos vazios, a vontade é energizada e aberta à graça. Mais uma vez, o
alvo crítico nã o é simplesmente o prazer, mas o desejo de prazer e
gratificaçã o. O desejo de gratificaçã o pesa sobre a vontade quando ela
anseia por algo que nã o é a vontade de Deus. Se alguma coisa prazerosa
é concedida numa escolha, ela é escolhida para nosso pró prio deleite e
procurada por nó s mesmos. O há bito de nos entregarmos ao prazer
invariavelmente produz apegos a prazeres particulares. Acabamos
desejando e cobiçando de forma consumista; o efeito persistente sobre
a vontade é um peso de alma espiritualmente prejudicial. Pode haver
um forte inchaço na alma, assim como pode haver no corpo. Sã o Joã o da
Cruz comentará com astú cia que mesmo sem a oportunidade de
escolher os prazeres dos sentidos, o pró prio desejo por esses prazeres
pode ter um efeito prejudicial.
Nã o estamos discutindo a mera falta de coisas; esta falta nã o despojará
a alma se ela ansiar por todos esses objetos. Estamos lidando com a
desnudaçã o dos apetites e das gratificaçõ es da alma. É isso que o deixa
livre e vazio de todas as coisas, embora as possua. Visto que as coisas
do mundo nã o podem entrar na alma, elas nã o sã o em si um estorvo ou
um dano para ela; antes, é a vontade e o apetite que habitam dentro de
nó s que causam o dano quando focados nessas coisas. (AMC 1.3.4)

Pode ser ú til, numa breve digressã o, explicar a compreensã o da


vontade e das suas operaçõ es que Sã o Joã o da Cruz teria absorvido dos
seus estudos teoló gicos na Universidade de Salamanca, de base tomista,
em meados da década de 1560. Este ensinamento sobre a vontade é
central para a sua pró pria doutrina espiritual. Dito de forma sucinta, o
testamento apresenta três tipos distintos de operaçã o, três modos
diferentes de estar “em ato”. Assim como nosso braço, como ó rgã o
físico, pode lançar um objeto, levantá -lo ou puxá -lo, a vontade se exerce,
ou está “em açã o”, em três modos diferentes de operaçã o. A primeira
operaçã o é a vontade em estado de desejo, antes de qualquer escolha:
isto é, a vontade que deseja algo, inclinada e atraída para algo, ansiando
por isso, cheia de desejo por isso. Esta operaçã o inicial do desejo na
vontade depende sempre do intelecto. Uma lei fundamental da vida
espiritual atua aqui: o que atrai o intelecto atrai a vontade em desejo. O
pró prio Jesus apontou esta verdade no Sermã o da Montanha: “Porque
onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coraçã o” (Mt 6,21).
Em outras palavras, aquilo que nossa mente exalta e valoriza, nossa
vontade é atraída a buscar. O inverso também se aplica: o que é
percebido como repugnante pelo intelecto, ou medroso e ameaçador,
provoca aversã o na vontade, isto é, uma retirada do desejo, um desejo
de fugir ou evitar algo.

Este ensinamento contém uma implicaçã o espiritual de grande


importâ ncia. A vida apetitiva do desejo na vontade submete-se à s
atraçõ es ou aversõ es que lhe sã o alimentadas pelo intelecto. Quanto
mais compulsiva e obsessivamente a mente se detém num objeto de
desejo, mais a vontade é invadida pelo desejo por ele. Quanto mais a
mente sente medo ou ansiedade em relaçã o a um objeto de aversã o,
mais a vontade sofre uma dolorosa contraçã o e afastamento em
qualquer lembrança dele. Nesta base, surge a importâ ncia da
“austeridade mental” como um elemento crítico da formaçã o na prá tica
do ascetismo e de toda a auto-renú ncia. Quando a mente nã o se ocupa
mais pensando em algo, há pouco ou nenhum desejo ou aversã o por
isso. Isso se aplica a Deus, ao beisebol, ao vinho ou à oraçã o. Os desejos
de gratificaçã o, que Sã o Joã o da Cruz identifica como tã o problemá ticos,
sã o corrigidos, se possível, desviando a mente da atraçã o que alimenta
esses desejos. A aversã o ao que é difícil de suportar em nossas vidas
também desaparece quando a mente dá menos atençã o a isso. A
austeridade mental – o acalmar de uma necessidade mental de
gratificaçã o impulsiva ou do medo mental de sofrer alguma coisa – abre
o caminho, por sua vez, para que a vontade volte seu desejo para Deus
com mais sinceridade. O vazio de uma vontade desimpedida, isto é, uma
vontade nã o dominada pelo desejo doentio nesta primeira operaçã o da
vontade, é um requisito absoluto para a transformaçã o espiritual.

Antes de continuar com as outras duas operaçõ es da vontade, talvez


seja benéfico ouvir uma passagem muito desafiadora do livro 1 de A
Subida do Monte Carmelo que propõ e como a vontade nesta primeira
operaçã o do desejo pode ser rapidamente purificada e refinada e a
alma preparado, por sua vez, para a graça da contemplaçã o. Devemos
tomar nota especial de que a afirmaçã o começa com a frase “esforçar-se
para estar sempre inclinado”. A primeira operaçã o da vontade na sua
inclinaçã o precisa ser estreitada e focada de maneira sacrificial se
quisermos que nossas vidas sejam conformadas aos desejos de Deus. A
seguinte afirmaçã o é um exemplo do rigor do ensinamento de Sã o Joã o
da Cruz, mas é também um testemunho marcante da importâ ncia da
vontade na sua primeira operaçã o de desejo.

Esforce-se para estar sempre inclinado:


nã o para o mais fá cil, mas para o mais difícil;
nã o para os mais agradáveis, mas para os mais desagradáveis;
nã o para o mais gratificante, mas para o menos agradável;
nã o ao que significa descanso para você, mas ao trabalho duro;
nã o ao consolador, mas ao desconsolador;
nã o para o má ximo, mas para o mínimo;
nã o para os mais elevados e preciosos, mas para os
mais baixos e desprezados;
nã o querer algo, mas nã o querer nada.
(AMC 1.13.6)

A segunda operaçã o da vontade, familiar a todos, é quando a vontade


realmente escolhe uma açã o, exercendo o poder de aceitar ou recusar,
de deixar ir ou de prosseguir, de tomar posse ou de libertar, e assim por
diante. Em cada escolha que fazemos, como ensina Sã o Tomá s de
Aquino, estamos sempre escolhendo algo desejável. Pode nã o ser toda a
realidade de uma escolha que seja desejável, pois nenhum pecado é
desejável em si mesmo como uma ofensa contra Deus. Mas, pela sua
natureza, no ensinamento de Tomá s de Aquino, a vontade nã o pode
exercer uma escolha para uma acçã o, excepto se algum aspecto de uma
escolha for percebido como desejável e oferecer alguma perspectiva de
satisfaçã o se for escolhida. É fá cil perceber que o prazer que nos induz à
tentaçã o de pecar atende a este critério de escolha desejável.
Novamente, podemos ver que o desejo alimentado à vontade pelas
atraçõ es do intelecto pode afetar uma eventual escolha. O que é
fortemente desejado é muitas vezes o que é escolhido com indulgência,
a menos que vivamos com algum grau de consciência disciplinada.
Idealmente, deveríamos desejar dar prazer a Deus em nossas escolhas,
e nossas açõ es deveriam seguir esse desejo de agradar a Deus e, em
ú ltima aná lise, de cumprir sua vontade. Se esse desejo de agradar a
Deus se tornar o desejo principal que compele a nossa vontade,
estaremos no caminho da uniã o com Deus. Mas, claro, é necessá ria uma
vida inteira de perseverança espiritual para seguir este difícil caminho.
A terceira operaçã o é o deleite ou saciedade que a vontade
experimenta quando, depois de desejar algo e depois escolhê-lo, a
vontade experimenta uma satisfaçã o nessa escolha. Ou, inversamente,
esta operaçã o implicará a frustraçã o que a vontade experimenta na
insatisfaçã o por nã o poder escolher o que a atrai no desejo ou por nã o
encontrar satisfaçã o naquilo que escolheu. O que ouvimos nestas
descriçõ es é novamente a ligaçã o de uma operaçã o com a outra. Deve-
se notar neste ponto que a interligaçã o destas três operaçõ es é o
ensinamento fundamental de Sã o Tomá s de Aquino sobre o habitus da
virtude e do vício. Como assim? O que dá prazer à vontade
normalmente retorna novamente de maneira previsível para despertar
na vontade o desejo pelo mesmo prazer. Este ensinamento, que
pressupõ e um jogo de movimento e fluxo através destas três operaçõ es,
é decisivo para enfrentar o verdadeiro desafio da uniã o com a vontade
de Deus. Todas as três operaçõ es devem ser cada vez mais permeadas
pela graça divina e pela caridade sobrenatural. Uma vida santa é aquela
em que a vontade deseja os desejos de Deus, escolhe em açã o a vontade
de Deus e encontra prazer naquilo que agrada a Deus. A santidade é, de
fato, literalmente um estado de alma, no qual a vontade nestas três
operaçõ es é inflamada pela caridade teoló gica.

Com esta compreensã o, nã o deveria surpreender que Sã o Joã o da


Cruz, ao abordar um obstá culo essencial à santidade, escreva que a
vontade no seu desejo está facilmente sujeita a uma condiçã o dispersa e
dissipada. O desejo da vontade é como um fogo de energia na pessoa
humana. Mas vaza através de vá rias rachaduras, por assim dizer,
quando diversos objetos reivindicam uma necessidade urgente de
gratificaçã o.

Como a força do desejo está dividida, o apetite torna-se mais fraco do


que se estivesse completamente fixado num ú nico objeto. Quanto mais
objetos houver dividindo um apetite, mais fraco se tornará esse apetite
para cada um. É por isso que os filó sofos dizem que a virtude quando
unida é mais forte do que quando dispersa. É portanto claro que se o
apetite da vontade se derramar em algo diferente da virtude, ele
enfraquecerá na prá tica da virtude. Quem tem a vontade dividida entre
ninharias é como a á gua que, vazando no fundo, nã o sobe mais alto e,
portanto, é inú til. (AMC 1.10.1).

A implicaçã o nesta passagem é que se Deus pudesse ser o “ú nico


objeto” que desejamos, uma vida seria dramaticamente afetada. Mas tal
estado de alma requer um temperamento sustentado e uma purificaçã o
dos mú ltiplos e diversos desejos que podem dividir a força e a energia
da vontade. “A alma que nã o se concentra num só apetite, no desejo de
Deus, perde o calor e a força na prá tica da virtude” (AMC 1.10.1). O
interesse desta ú ltima afirmaçã o está especialmente no uso da palavra
“recordado”. É necessá rio um vigor de austeridade mental para nos
libertarmos do efeito apegado dos desejos e das suas batidas
repetitivas na nossa mente em busca de atençã o, para que com o tempo
possamos aproximar-nos de um dia em que só Deus atraia o nosso
desejo de forma mais exclusiva. A possibilidade contrá ria traz uma
advertência contundente: “Os apetites nã o mortificados resultam na
morte da alma em seu relacionamento com Deus” (AMC 1.10.3).

Sã o Joã o da Cruz insiste em particular no dano espiritual causado


pelos desejos repetidamente tolerados e satisfeitos. É digno de nota o
grande peso que recai sobre a vontade devido a há bitos de escolha
indisciplinados. Uma pessoa indulgente com desejos desnecessá rios “é
como alguém com febre, cuja sede aumenta a cada minuto e que se
sente mal até a febre passar” (AMC 1.6.6). O retorno dos desejos
insistentes, sempre que escolhemos com indulgência, é previsível. A
fadiga e o cansaço de espírito sã o a consequência, e nã o a satisfaçã o
real. “A alma [está ] cansada e cansada de todos os seus apetites e de sua
satisfaçã o, porque a satisfaçã o só causa mais fome e vazio” (AMC 1.6.6).
Os apetites, escreve ele, acabam governando a pessoa e “assemelham-se
a crianças pequenas, inquietas e difíceis de agradar, sempre reclamando
com a mã e por isso ou aquilo, e nunca satisfeitas” (AMC 1.6.6). Nã o
pode haver espírito de recolhimento mais profundo na pessoa sujeita à s
exigências de apetites insistentes, e isso nã o significa apenas desejo
sensorial. Qualquer comportamento indulgente pelo qual satisfazemos
inconscientemente as nossas necessidades imediatas – na fala, no
paladar, nas distraçõ es, nos entretenimentos – é suficiente para nos
afastar do caminho do auto-esvaziamento. Quando satisfazemos esses
apetites levianamente e impensadamente, ficamos apegados ao deleite
que eles prometem. “Eles agitam e perturbam a pessoa assim como o
vento perturba a á gua. E perturbam tanto a alma que nã o a deixam
descansar em nenhum lugar ou coisa” (AMC 1.6.6).

O que talvez seja mais percetível neste tratamento é a compreensã o


do dano nos apegos como um impedimento ao crescimento espiritual.
Os apegos habituais, mesmo quando nã o envolvem um pecado
evidente, podem ser mais prejudiciais, na visã o de Sã o Joã o da Cruz, do
que “o cometimento diá rio de muitas outras imperfeiçõ es e pecados
veniais esporá dicos que nã o resultam de um mau há bito. Estes ú ltimos
nã o atrapalharã o tanto a pessoa quanto o apego a alguma coisa” (AMC
1.11.4). A razã o do dano tem a ver com o efeito dos apegos habituais na
operaçã o do desejo na vontade. O desejo por algo que nos deleite ou
aplaque alguma necessidade obsessiva volta repetidamente e acaba
roubando de nó s o desejo por Deus. A seguinte afirmaçã o é uma forte
justificativa para a necessidade de conquistar apegos, mesmo em
pequenas á reas de prazer indulgente, a fim de libertar o desejo mais
profundo da nossa alma por Deus.

Faz pouca diferença se um pá ssaro está amarrado com um fio fino ou


com uma corda. Mesmo que esteja amarrado com um fio, o pá ssaro será
mantido preso com a mesma segurança como se estivesse amarrado
com uma corda; isto é, ficará impedido de voar desde que nã o rompa o
fio. É certo que o fio é mais fá cil de quebrar, mas nã o importa quã o
facilmente isso seja feito, o pá ssaro nã o voará sem antes fazê-lo. Este é
o destino de quem está apegado a alguma coisa: por mais virtude que
tenha, nã o alcançará a liberdade da uniã o divina. (AMC 1.11.4)
Ao encerrar esta discussã o sobre o ascetismo, podemos notar a
radicalidade do ensinamento e, simultaneamente, a evidente ló gica
espiritual por trá s dele. As exigências da abnegaçã o sã o inseparáveis do
papel central da vontade no avanço espiritual. O destaque do perigo dos
apetites e apegos quando sã o satisfeitos voluntariamente é porque
esses há bitos imergem a faculdade da vontade de uma maneira
contrá ria à vontade de Deus. Eles obstruem as operaçõ es da vontade,
assim como nossas artérias podem ficar entupidas e bloqueadas,
impedindo o sangue saudável de fluir livremente. “Uma pessoa tem
apenas uma vontade e se esta estiver sobrecarregada ou ocupada por
alguma coisa, a pessoa nã o possuirá a liberdade, a solidã o e a pureza
necessá rias para a transformaçã o divina” (AMC 1.11.6). A primeira
operaçã o do desejo na vontade é de extrema importâ ncia na vida
espiritual. Ele fica comprometido e prejudicado quando os desejos sã o
satisfeitos. A operaçã o do desejo da vontade nã o se volta para Deus
numa necessidade amorosa e numa inclinaçã o para agradá -lo quando
outras realidades criadas, algumas bastante insignificantes, ou outras
claramente pecaminosas e indulgentes, tomam cativo o desejo da
vontade. Nã o podemos avançar em direçã o a Deus, na verdade, nã o
podemos ser libertados do emaranhado de apetites e apegos, sem um
desejo consumidor de Deus, ou, como escreve Sã o Joã o da Cruz, “se a
parte espiritual da alma nã o for inflamada com outras , anseios mais
urgentes por coisas espirituais” (AMC 1.14.2).

A série de versículos que se segue é uma conclusã o adequada para


esta discussã o. Eles resumem as demandas mais profundas de um
espírito de abnegaçã o. O esforço espiritual para buscar nada além do
pró prio Deus, radicalmente exposto nestes versículos, é uma
proposiçã o que se estende muito além de meras prá ticas de abnegaçã o.
Uma pura pureza de desejo é necessá ria para impulsionar a alma no
caminho contemplativo para Deus. Vale a pena guardar esses versículos
na memó ria. Eles podem ser lidos como um comentá rio por excelência
à s palavras de Sã o Joã o Batista: “Ele deve crescer, mas eu devo
diminuir” (Jo 3,30). E o que eles nos ensinam? Um desejo intenso por
Deus nã o é distinto de um amor intenso por Deus. O esvaziamento
dinâ mico do desejo, deixando-o permanecer insatisfeito, abre-nos a
uma paixã o avassaladora por Deus. Quando desejamos apenas ele como
nosso amor ú ltimo, esta pureza de desejo leva necessariamente a
vontade profundamente ao mistério de Deus. Veremos com o tempo o
significado que estes versículos têm sobre o papel da vontade na oraçã o
de contemplaçã o. Idealmente, a oraçã o arde interiormente com um
ú nico grande desejo por nada além do pró prio Deus.

Para alcançar satisfaçã o em tudo,


desejo satisfaçã o em nada.
Chegar a possuir tudo
nã o deseja a posse de nada.
Para chegar a ser todo
desejo de nã o ser nada.
Para chegar ao conhecimento de tudo,
nã o deseje o conhecimento de nada.

Para vir a desfrutar o que você nã o tem,


você deve seguir um caminho pelo qual você nã o gosta.
Para chegar ao conhecimento que você nã o tem,
você deve seguir um caminho que você nã o conhece.
Para chegar à posse que você nã o possui,
você deve seguir um caminho pelo qual você nã o possui.
Para vir a ser o que você nã o é,
você deve seguir um caminho em que você nã o é.

Quando você atrasa algo,


você deixa de correr em direçã o ao todo.
Pois para ir do tudo ao tudo
você deve negar a si mesmo tudo em tudo.
E quando você chega à posse de tudo,
você deve possuí-lo sem querer nada.
Porque se você deseja ter algo em todo
o seu tesouro em Deus nã o é puramente o seu tudo.

Nesta nudez o espírito encontra a sua quietude e descanso. Pois, ao nã o


cobiçar nada, nada o cansa, puxando-o para cima, e nada o oprime,
empurrando-o para baixo, porque está no centro da sua humildade.
Quando cobiça alguma coisa, por isso mesmo se cansa. (AMC 1.13.11–
13)
6
A Purificaçã o da Vontade Somente pelo Amor

Depois de expor estes princípios da ascese, voltamo-nos para a


purificaçã o da vontade pela virtude teologal da caridade. Sã o Joã o da
Cruz trata deste assunto na ú ltima seçã o do livro 3 de A Subida ao
Monte Carmelo . O ensino nã o é simplesmente uma questã o de
abnegaçã o que leva ao esvaziamento da vontade de Deus. Embora a
tarefa ascética seja importante e necessá ria, o que é indispensável para
a graça da contemplaçã o é uma capacidade desenvolvida para um
esvaziamento mais profundo . Nenhuma graça de contemplaçã o pode
ser esperada enquanto nos entregarmos a tendências de cobiça em
nossas vidas. A libertaçã o dos desejos imoderados e egocêntricos que
nos voltam interiormente para nó s mesmos é, portanto, uma
preparaçã o necessá ria para qualquer vida mais profunda de oraçã o.
Procurar agradar a nó s mesmos como motivo para escolhas é sempre
uma variaçã o dessa prejudicial virada para dentro. Na opiniã o de Sã o
Joã o da Cruz, esta tendência exige sérios esforços de inversã o. Se
aspiramos à graça da contemplaçã o, a nossa vontade deve entregar-se
com vigor à vontade de Deus. Temos que nos esforçar para dar deleite a
Deus por meio de nossas escolhas e de nossas renú ncias, e nã o
buscando encontrar prazer e deleite simplesmente para nó s mesmos. À
medida que deixamos de agradar a nó s mesmos, tornamo-nos mais
vazios e receptivos interiormente aos sussurros de Deus. A graça da
contemplaçã o na oraçã o tem entã o uma janela aberta, se Deus decidir
concedê-la. Caso contrá rio, essa janela estará bem fechada. O objetivo
deste capítulo é compreender os desafios mais profundos nesta
purificaçã o da vontade em prol das graças contemplativas. À medida
que a vontade se exercita na auto-renú ncia interior, ela se abre à uniã o
amorosa com a vontade de Deus. Este vínculo crescente com a vontade
de Deus é um pré-requisito necessá rio para a oraçã o da contemplaçã o.
Sã o Joã o da Cruz vê a vontade como a faculdade unitiva no caminho
contemplativo da alma para a uniã o com Deus. Por si só , esta ênfase faz
do tema da purificaçã o da vontade pela caridade um componente
essencial da espiritualidade. A resposta do pró prio Jesus Cristo no
Evangelho, respondendo à pergunta “qual mandamento é o primeiro de
todos?” (Mc 12,28), é “amar o Senhor teu Deus com todo o teu coraçã o,
e com toda a tua alma, e com todo o teu entendimento, e com todas as
tuas forças” (Mc 12,30; grifo nosso). Curiosamente, na passagem do
Evangelho de Sã o Marcos, Jesus cita o livro do Deuteronô mio (Dt 6,5),
no qual se identificam o coraçã o, a alma e a força, mas Jesus acrescenta
também a necessidade de amar “com todo o entendimento”. A mente
também deve entregar-se ao amor de Deus de maneira completa. Isto
nã o implica, naturalmente, um estudo constante, mas antes reafirma o
necessá rio vínculo entre a mente e a vontade conforme explicado no
ú ltimo capítulo. As atraçõ es que atraem o intelecto provocam desejos
na vontade. Uma atençã o amorosa a Deus e à sua vontade cria na
vontade uma chama de desejo de doaçã o num esforço diá rio de amor a
Ele. A vontade nunca opera de forma isolada; o intelecto deve
acompanhá -lo. Por essa razã o, a austeridade mental torna-se um fator
primordial na formaçã o da vontade de amar a Deus de maneira total.

Deus pede por todos ; mas damos tudo a ele? Este é um claro desafio
se aspiramos à s graças contemplativas. É claro que isso nã o significa
vender tudo e doar todos os nossos bens – no sentido material. Mas
pode exigir a necessidade de um espírito de maior auto-oferta à medida
que a nossa vida continua. A alma contemplativa é certamente formada
pelo desejo interior de esquecer-se de si mesmo e entregar-se mais
plenamente a Deus. A maneira pela qual a vontade é central para esta
disposiçã o é o nosso foco atual. Dada a importâ ncia da mente na sua
influência sobre a vontade, como já foi afirmado, é, no entanto,
essencial afirmar que o esforço para amar com todo o nosso ser e força
é, em ú ltima aná lise, uma questã o da nossa vontade. A presença da
caridade teoló gica, ou seja, do amor sobrenatural , reside na vontade e
nas suas três operaçõ es. A força da alma para amar, para o bem ou para
o mal, está sempre sujeita à vontade. Conforme nossa vontade governa
e escolhe, nossa alma é moldada e moldada, com a ajuda da graça. E o
que a vontade governa exatamente? Toda a vida corporal, mental e
emocional da pessoa humana está sob o governo da vontade – todas as
faculdades, paixõ es e apetites. Os pensamentos e a vida mental, os
sentimentos tolerados, saboreados e perseguidos, as escolhas adotadas
na açã o, tudo isso está sob o domínio da vontade. Um pequeno
pará grafo na seçã o de abertura sobre a vontade no livro 3 de A
Ascensão ao Monte Carmelo atesta a importâ ncia da vontade em
determinar quã o plenamente a alma responde à graça e direciona toda
a sua força de amor para Deus. Na medida em que a contemplaçã o
depende do amor, a purificaçã o da vontade para um amor maior é uma
condiçã o essencial para qualquer uniã o contemplativa mais profunda
com Deus. “A força da alma compreende as faculdades, as paixõ es e os
apetites. Toda essa força é governada pela vontade. Quando a vontade
dirige essas faculdades, paixõ es e apetites para Deus, afastando-se de
tudo o que nã o é Deus, a alma preserva suas forças para Deus e passa a
amá -lo com todas as suas forças” (AMC 3.16.2).

Sã o Joã o da Cruz dá grande importâ ncia em particular ao exercício da


vontade na purificaçã o dos chamados sentimentos desordenados. O
que ele entende por sentimentos sã o as paixõ es da alma, que, se nã o
controladas ou regularmente toleradas, causam constante turbulência e
perturbaçã o nas nossas vidas. A razã o é que as paixõ es, se nã o forem
moderadas, apegam-se fortemente à vontade e pesam nas três
operaçõ es da vontade. Nenhuma interioridade mais profunda com Deus
pode ser mantida sem uma disciplina das paixõ es. Esses sentimentos,
se nã o forem governados por uma força de vontade exercida, tendem a
dominar uma vida, apegando-se opressivamente à vontade,
influenciando os seus desejos, as suas escolhas e a sua busca de
prazeres. As paixõ es podem levar-nos a uma instabilidade contínua na
vida espiritual, incluindo a vida de oraçã o. No tratamento de Sã o Joã o
da Cruz, existem quatro paixõ es ou sentimentos primá rios: alegria,
esperança, tristeza e medo. O desafio é governar essas paixõ es de tal
maneira que “uma pessoa se alegra apenas com o que é puramente para
a honra e gló ria de Deus, nã o espera por mais nada, sente tristeza
apenas por assuntos pertinentes a isso, e teme apenas a Deus” (AMC
3.16. 2). Essa afirmaçã o por si só apresenta uma exigência
imensamente difícil. Mas o resultado de exercer ou nã o exercer controle
sobre essas paixõ es e direcioná -las para Deus tem consequências:
“Quando essas emoçõ es sã o desenfreadas, sã o a fonte de todos os vícios
e imperfeiçõ es, mas quando sã o postas em ordem e acalmadas, dã o
origem a todas as virtudes” (AMC 3.16.5).

Claramente, como ouvimos nestas palavras, o envolvimento da


vontade com as paixõ es é um desafio significativo para o crescimento
na espiritualidade. A vontade nã o pode ser permeada pela caridade
sem um esforço concentrado de purgar e conter as paixõ es imoderadas,
de modo que possamos direcionar um ú nico fogo de paixã o
concentrada dentro da alma para o pró prio Deus. Se recordarmos que a
vontade é uma “caverna” de vasto vazio capaz de ser preenchida pelo
amor infinito de Deus, apreciaremos melhor este ensinamento. As
regiõ es internas de profundidade da vontade devem ser esvaziadas de
uma espécie de influência pesada e subversiva proveniente de paixõ es
indisciplinadas. Para que a purificaçã o da vontade pela caridade
sobrenatural tenha êxito como Deus deseja, as paixõ es devem
submeter-se a um governo de autocontrole. Esta purificaçã o é
inseparável de uma presença intensificada de caridade na vontade, à
medida que a pessoa exerce renú ncia à s tendências auto-indulgentes.
Este trabalho implica o esforço concreto para subjugar o impacto das
paixõ es sobre a vontade, para que nã o interfiram na entrega mais plena
da vontade a Deus. A centralidade deste esforço pela santidade é
evidente nestas breves palavras: “ Toda a questão de alcançar a união
com Deus consiste em purificar a vontade dos seus apetites e emoçõ es
para que de uma vontade humana e humilde ela possa ser
transformada em vontade divina, tornada idêntica à vontade de Deus”
(AMC 3.16.3; grifo do autor).
Sã o Joã o da Cruz dá muita ênfase particularmente à paixã o da alegria,
pois ela afeta a vontade. É um corretivo interessante para o que pode
ser, sem a nossa consciência, um impedimento comum ao avanço
espiritual. Sã o Joã o da Cruz nã o defende a tristeza, naturalmente. Cada
santo dá provas de um profundo contentamento e de uma atraçã o
radiante que flui de sua vida de relaçõ es estreitas com Deus. Como diz o
ditado, nã o existe santo triste. Por outro lado, nó s que nã o somos
santos tendemos a buscar nossas alegrias e deleites em todos os tipos
de tentaçõ es temporais que nã o têm ligaçã o com Deus. Perseguimos
alegrias e deleitamo-nos no gozo dos prazeres e das posses e na busca
de experiências de felicidade passageira, em vez de buscarmos um
estado permanente de alegria encontrado na pró pria alma quando nos
entregamos mais plenamente a Deus. E qual é a natureza de tal alegria
de alma; ou melhor, qual deveria ser a causa da alegria espiritual em
nossas vidas? Sã o Joã o da Cruz é bastante forte ao apresentar o que
chama de princípio espiritual fundamental: “A vontade deve alegrar-se
apenas naquilo que é para honra e gló ria de Deus, e a maior honra que
lhe podemos dar é servi-la segundo os princípios evangélicos”.
perfeiçã o; qualquer coisa que nã o esteja incluída em tal serviço nã o tem
valor para os seres humanos” (AMC 3.17.2). Poderíamos moderar um
pouco essa afirmaçã o. Nem todos terã o vocaçã o para assumir os votos
da vida religiosa, com as suas rigorosas exigências, mas todos podem
ter uma séria fome da vontade de Deus na vida. Nessa fome de Deus e
da sua vontade, podemos encontrar a nossa maior alegria espiritual
nesta vida. Se, de fato, aspiramos a uma uniã o com Deus, as palavras
seguintes, perto do final de A Noite Escura, expressam claramente a
séria exigência de amor que é necessá ria, nã o importa qual seja o nosso
estado de vida. Vale a pena incluí-los como um comentá rio adicional
nesta discussã o:

Nã o se pode alcançar esta uniã o sem uma pureza notável, e esta pureza
é inatingível sem uma mortificaçã o vigorosa e uma nudez em relaçã o a
todas as criaturas. . . . Pessoas que se recusam a sair à noite em busca do
Amado e a despojar-se e mortificar a sua vontade, mas procuram o
Amado na sua pró pria cama e conforto, como fez a noiva [Sg. 3:1], nã o
conseguirá encontrá -lo. Como declara esta alma, ela o encontrou
quando partiu na escuridã o e com anseios de amor. (DN 2.24.4)

Lembremos, antes de prosseguirmos, que o grau de nossa uniã o com


a vontade de Deus determina a medida do amor em nossa alma. É o
nosso amor unido à vontade de Deus que é a fonte da alegria profunda
e permanente em nossa alma. Mas uma vontade unida a Deus requer
uma vontade esvaziada e purificada para Deus nas três operaçõ es da
vontade. Tudo o mais procurado de forma excessiva, à parte da vontade
de Deus, que parece trazer felicidade, tem alguma qualidade enganosa.
Se estivermos em conflito com a vontade de Deus, qualquer aparência
de felicidade que pareçamos desfrutar dissipa-se eventualmente ou
desaparece completamente. O princípio que Sã o Joã o da Cruz defende é
uma recomendaçã o concreta para o uso quotidiano, embora toda a
nossa vida dependa desta observâ ncia: a determinaçã o de procurar as
nossas satisfaçõ es na vida, e no dia a dia, estimando o que agrada a
Deus. Este foco no desejo de dar prazer a Deus nos alinha à busca da
vontade de Deus. Encontrar alegria em dar prazer a Deus pode voltar a
animar o desejo em todas as nossas atividades, nos ambientes mais
descontraídos e nas circunstâ ncias mais tensas de qualquer provaçã o.

Este mesmo conselho é também uma questã o de exercício de uma fé


profunda, na medida em que exige que realmente acreditemos que
podemos tocar o Coraçã o de Deus e deleitar-lhe com as nossas escolhas,
particularmente com as nossas escolhas sacrificiais. É ú til observar que
Sã o Joã o da Cruz ensina muitas vezes uma ascese do amor na vida
interior. A abnegaçã o e a renú ncia devem ser exercidas na vida interior
em resposta à s paixõ es e aos nossos pensamentos mais íntimos. A
austeridade mental como força de espírito para desviar a nossa atençã o
daquilo que interiormente no nosso pensamento provoca as paixõ es é
sempre uma marca de uma qualidade espiritual séria. Esta mesma
austeridade mental é capaz de dirigir a nossa atençã o no amor para o
pró prio Deus e no desejo de agradá -lo. Neste sentido, a luta contra as
paixõ es é uma preparaçã o para uma volta sincera do nosso desejo ao
pró prio Deus em oraçã o. Por outro lado, a negligência a este respeito
tem consequências. Sem algum esforço de austeridade mental e
contençã o interior, as paixõ es tendem a pegar fogo facilmente e podem
queimar como incêndios descontrolados dentro da alma. Em muitas
vidas, eles causam estragos, tornando a vida sujeita a exigências
prementes e instáveis. A menos que ocorra uma conversã o e a vontade
exerça alguma governança rigorosa, uma vida de oraçã o mais profunda
nunca atrairá atraçã o. Todas as instruçõ es que ouvimos neste capítulo
sã o uma extensã o da importâ ncia de um ascetismo de amor para uma
aplicaçã o mais profunda na interioridade de nossas vidas. Este esforço
de auto-esvaziamento em nossa vida interior para Deus é uma
disciplina essencial se a graça da contemplaçã o quiser encontrar uma
fome e um desejo adequados na alma.

Sã o Joã o da Cruz prossegue enumerando vá rios aspectos do


mundanismo que podem levar cativa a nossa paixã o de alegria e que
Deus preferiria que nã o perseguíssemos com tanta energia como causa
de alegria em nossas vidas. A primeira categoria é o que ele chama de
bens temporais, procurados pelo deleite e pela satisfaçã o que trazem à s
nossas vidas. A busca de “riquezas, status, posiçõ es e outras coisas que
reivindicam prestígio” (AMC 3.18.1), buscadas a partir de desejos e
ambiçõ es mundanas, é uma forma de ignorar e resistir à vontade de
Deus. Alcançar satisfaçã o nessas vaidades que elevam nosso status na
vida é abraçar, à s vezes, uma tensã o permanente com Deus. Podemos
alcançar as nossas ambiçõ es, mas o sucesso no mundo talvez nã o seja
de forma alguma o que Deus queria que desejá ssemos principalmente
na vida, que era, antes, procurá -lo primeiro, acima de todas as outras
coisas. O pró prio deleite experimentado nas conquistas mundanas
muitas vezes obscurece o espírito com um egoísmo que assume o
controle de um senso de identidade pessoal e para muitas pessoas
nunca é superado. Tornamo-nos obtusos e espiritualmente
entorpecidos, incapazes de discernir a transitoriedade das nossas vidas
à medida que avançamos cada dia mais perto do nosso julgamento final
e da entrada na eternidade. Na opiniã o de Sã o Joã o da Cruz, o status e o
sucesso nã o devem ser motivo de alegria, exceto na medida em que
podem ser empregados no serviço de Deus. Talvez estes pensamentos
ofereçam um convite para repensarmos e modificarmos as nossas
atitudes mundanas, se tivermos perseguido realizaçõ es mundanas e
agora pudermos ver através do engano de procurar nelas a nossa
felicidade. Pode haver coisas que fazem parte de nossas vidas que nã o
podem ser revertidas ou eliminadas, mas devemos fazer um esforço
para que possam ser voltadas até certo ponto para o serviço de Deus.
Continuar a buscar alegrias nos prazeres da vida mundana é conceber
mal o propó sito da vida. Sã o Joã o da Cruz expressa na seguinte
afirmaçã o uma exigência difícil, mas no contexto da busca da uniã o com
Deus, nã o é surpreendente. Ele está se referindo a uma alegria
excessiva na satisfaçã o mundana:

O coraçã o do tolo, afirma o Sá bio, é onde há alegria; mas o coraçã o do


sá bio é onde há tristeza [Ecl. 7:4]. A alegria cega o coraçã o e nã o
permite que ele considere e pondere as coisas, enquanto a tristeza faz
as pessoas abrirem os olhos e verem a vantagem ou o dano nas coisas. .
. . Nada além do que pertence ao serviço de Deus deve ser objeto de
nossa alegria. Qualquer outra alegria seria vã e inú til, pois a alegria que
nã o está em harmonia com Deus nã o tem valor para a alma. (AMC
3.18.5, 6)

Pode ser difícil para nó s assimilar ou talvez aceitar literalmente o que


Sã o Joã o da Cruz aborda em termos tã o fortes. Se vivermos no mundo e
nã o num mosteiro, estas exigências podem parecer irracionais. Tais
observaçõ es, para Sã o Joã o da Cruz, nã o visam conquistar o pú blico em
geral. Ele escrevia para carmelitas dedicados e preferia uma exposiçã o
direta das exigências da santidade. Na verdade, porém, mesmo para
nó s, ele está afirmando o papel crucial da nossa vontade na santidade e
descrevendo o que acontece por meio das três operaçõ es da vontade.
Sã o Joã o da Cruz continua explicando mais detalhadamente o dano à
alma no abraço de alegrias que sã o buscadas apenas para a satisfaçã o
humana, sem referência a Deus. O dano essencial se deve à natureza da
vontade em suas operaçõ es. A vontade que está dividida e dispersa na
busca de muitos desejos egocêntricos é uma vontade dissipada em seu
centro. Se cobiçarmos outras coisas além de Deus, enquanto nã o nos
preocupamos com Deus, e encontrarmos prazeres passageiros nelas,
sem pensar em Deus, nã o poderemos deixar de enfraquecer nosso
desejo por Deus. É como se a vontade tivesse um ú nico impulso
energético em qualquer hora, uma força e um impulso, que a
impulsionasse em qualquer hora em direçã o ao alvo de um objeto de
desejo. Se direcionarmos o desejo da vontade para as tentaçõ es
oferecidas pelas coisas deste mundo, nos afastaremos ao mesmo tempo
de Deus. O afastamento de Deus ocorre, muitas vezes inadvertidamente,
porque estamos fixados em alcançar prazeres e satisfaçõ es que nã o se
alinham com a vontade de Deus para nó s e que, na verdade, podem ser
diretamente opostas à sua vontade. Todo dano à alma tem alguma
ligaçã o com os desejos da vontade e com os deleites que a alma abraça
nas escolhas. Nó s nos afastamos de Deus por causa de coisas criadas
que têm pouco valor em comparaçã o com a busca por Deus. Sã o Joã o da
Cruz inicia a passagem seguinte com uma advertência sobre quã o
insignificantes podem ser os princípios pelos quais desviamos nossos
desejos da busca de Deus como o amor principal em nossas vidas.

Ficaríamos sem tinta, sem papel e sem tempo se descrevêssemos o mal


que assola a alma porque ela volta sua afeiçã o para os bens temporais.
Algo muito pequeno pode levar a grandes males e destruir bênçã os
notáveis, assim como uma faísca inextinguível pode acender imensos
incêndios capazes de queimar o mundo.

Todo este dano tem a sua origem e raiz num dano privado principal
incorporado nesta alegria: o afastamento de Deus. Assim como
aproximar-se de Deus através da afeiçã o da vontade dá origem a todo
bem, o afastamento dele através da afeiçã o da criatura gera todo dano e
mal na alma. A medida do dano reflete a intensidade da alegria e do
carinho com que a vontade se une à criatura, pois nessa proporçã o ela
se afasta de Deus. (AMC 3.19.1)

Há uma chave interpretativa clara para este ensinamento naquilo que


já expusemos a respeito das três operaçõ es da vontade. Pela natureza
das suas três operaçõ es trabalhando em conjunto, a vontade
normalmente encontra-se “girando para trá s” no seu desejo para as
coisas que deram prazer a qualquer escolha particular. O padrã o é
repetido consistentemente: desejo por algo, seguido por uma escolha
por isso, seguido por uma satisfaçã o subsequente nessa escolha. O
impulso nã o para por si só ; uma vez ativado, ele retorna e se repete. O
desejo volta a ser sentido pelo que foi previamente escolhido com
algum deleite. O padrã o tende a se repetir. Esta é precisamente a
natureza de todos os vícios. Os há bitos de pecado repetitivo,
especialmente envolvendo assuntos sensuais, seguem esse padrã o de
rotaçã o através do desejo, da escolha indulgente, do deleite temporá rio
e passageiro e do retorno do desejo. O grande dano que ocorre, se os
desejos sã o satisfeitos e o deleite é experimentado desta maneira
repetida, é que a pró pria mente fica entorpecida no seu relacionamento
com Deus. A busca pela satisfaçã o pode dominar a alma de maneiras
que nã o envolvem necessariamente pecado grave, mas que, mesmo
assim, despejam areia, por assim dizer, sobre o que de outra forma
poderia ser um fogo de anseio por Deus. Se uma alma se entrega a
apegos desta maneira, é muito improvável que experimente muito
desejo por Deus e, portanto, pouco desejo de oraçã o. E quã o comum é
esta verdade até hoje, mesmo entre aqueles que, por uma profissã o
escolhida, como sacerdotes ou religiosos, se dedicam ao serviço de
Deus. Sã o Joã o da Cruz identifica assim um dano principal quando uma
alma se alegra com delícias egocêntricas e egocêntricas: “embotamento
da mente e escuridã o do julgamento na compreensã o da verdade e no
julgamento bem de cada coisa como ela é em si” (AMC 3.19.3). Essa
estupidez mental se traduz em tibieza em relaçã o a Deus e aos assuntos
espirituais. As coisas da espiritualidade nã o atraem desejo quando as
delícias da vontade sã o satisfeitas em outro lugar. Tende a haver um
impulso progressivo nessas tendências, na medida em que a vontade é
uma faculdade de energia. Quanto mais aumentam o apetite e a sede
por uma coisa, menos há atraçã o ou fome por outra. Por exemplo, o
desejo por dinheiro, escreve Sã o Joã o da Cruz no século XVI, tal como o
ouro derramado em Espanha pelas coló nias espanholas no Novo
Mundo, pode tornar-se um ídolo e um deus, dominando o desejo de
satisfaçã o e liderando, se perseguido em excesso, até a perda de Deus.
Suas palavras sã o igualmente pertinentes em nossos dias: “Lá fora, no
mundo, com a razã o obscurecida quanto aos assuntos espirituais pela
cobiça, eles servem ao dinheiro e nã o a Deus, e sã o movidos pelo
dinheiro e nã o por Deus, e dã o primeiro. consideraçã o ao preço
temporal e nã o ao valor e recompensa divinos. De inú meras maneiras,
eles fazem do dinheiro o seu principal deus e objetivo e dã o-lhe
precedência sobre Deus, o seu fim ú ltimo” (AMC 3.19.9).

O principal dano à vontade por ceder aos nossos desejos está na


força do apego a uma coisa criada que entã o captura a alma. Os apegos
sã o uma consequência de toda busca avarenta. Podemos conseguir o
que queremos, mas o custo é ter uma espécie de presença estranha
invadindo a nossa alma e dominando os nossos pensamentos e desejos.
Um espírito de possessividade toma conta da vida interior. Nã o
queremos perder o que temos ou renunciar ao que continuamos
desejando para desfrutar. Para Sã o Joã o da Cruz, a busca da nossa
alegria nas coisas deste mundo leva muitas vezes rapidamente a um
apego possessivo por elas: “Pois nã o pode haver alegria voluntá ria
sobre as criaturas sem possessividade voluntá ria, assim como nã o pode
haver alegria , na medida em que é uma paixã o, desacompanhada da
habitual possessividade do coraçã o. A negaçã o e a purgaçã o de tal
alegria deixam o julgamento tã o claro quanto o ar quando os vapores
desaparecem” (AMC 3.20.2). Esse há bito de possessividade em relaçã o
a qualquer coisa é uma qualidade de desejo constante e excessivo na
vontade. É o desejo de se apegar a algo, de reivindicá -lo para si, de tê-lo
prontamente disponível para consumo e prazer. O há bito entra na alma
como uma presença pesada que pesa sobre a alma, a ponto de uma
busca indulgente por qualquer prazer continuar a se repetir. Isto
equivale a uma vontade desviada do caminho, desequilibrada,
dominada por necessidades egocêntricas, na sua operaçã o de desejo.
Possessividade desse tipo é sempre um sinal de avareza na alma.

O desapego, por outro lado, é uma qualidade de alma muito


favorecida por Sã o Joã o da Cruz. Da mesma forma, entra nas três
operaçõ es da vontade. Ele escreve, de forma impressionante, que o
desapego é “liberdade do coraçã o para Deus. Com isso a alma se dispõ e
a todos os favores que Deus lhe conceder. Sem isso, ele nã o os concede”
(AMC 3.20.4). O desapego da alma significa que a alma está
verdadeiramente em liberdade, livre para se deleitar com as coisas sem
ter necessidade delas; livre para recusar um prazer sem dor excessiva;
nã o dominado pelo desejo e pela necessidade de encontrar satisfaçã o.
Na alma desapegada, nada é procurado simplesmente por uma questã o
de auto-satisfaçã o. Os desejos nã o sã o satisfeitos como se a demanda
por satisfaçã o precisasse ser atendida. Nã o é de surpreender que o
desapego cresça na alma na medida em que o pró prio Deus seja o
grande desejo da alma. É uma consequência natural tratar outras coisas
além de Deus com menos importâ ncia, à medida que Deus se torna uma
busca mais séria em nossas vidas. É certo que pode parecer haver uma
severidade intransigente neste ensinamento de Sã o Joã o da Cruz. Mas
justifica-se pela pureza absoluta que pressupõ e uma verdadeira
liberdade de coraçã o. Nada deve agarrar-se à nossa alma, aprisionando-
a, se quisermos Deus como o Amado das nossas vidas. O apego a algo
que oferece deleite e prazer pode ser o obstá culo mais enganador,
porque parece nos oferecer felicidade. No entanto, muitas vezes a
mesma coisa que promete felicidade traz consigo alguma forma de
dependência persistente para satisfaçõ es intermitentes. Em contraste,
uma liberdade interior para amar mais plenamente é sentida quando o
nosso coraçã o se recusa a ser oprimido por qualquer coisa ou pessoa
separada de Deus. Como veremos, a oraçã o exige precisamente esta
qualidade cultivada de desapego na alma. A oraçã o prospera ou luta
dependendo do desapego, porque este está sempre presente num
grande amor a Deus. Uma declaraçã o poderosa extraída do Cântico
Espiritual nos adverte que o que está em ú ltima aná lise no desapego é
se Jesus, nosso Senhor, se torna Jesus o verdadeiro Amado da nossa
vida:

Você pode verdadeiramente chamar Deus de Amado quando está


totalmente com ele, nã o permitindo que seu coraçã o se apegue a nada
fora dele e, assim, normalmente centralizando sua mente nele. . . .
Alguns chamam o Noivo de amado quando ele nã o é realmente seu
amado, porque seu coraçã o nã o está totalmente voltado para ele. Como
resultado, a petiçã o deles nã o tem muito valor aos seus olhos. Eles nã o
obtêm seu pedido até que mantenham seu espírito mais continuamente
com Deus por meio da perseverança na oraçã o, e seu coraçã o com seu
amor afetuoso esteja mais inteiramente voltado para ele. Nada é obtido
de Deus exceto pelo amor. (SC 1.13)

Ao expor o seu ensinamento sobre o desapego como intrínseco ao


amor maior, Sã o Joã o da Cruz escreve também no livro 3 de A Subida do
Monte Carmelo sobre o apelo sedutor que o fascínio da beleza pode
representar para a alma. Ele está abordando nã o os perigos ó bvios da
tentaçã o sensual, mas sim a maneira espontâ nea como somos afetados
tã o rapidamente pelas atraçõ es que encontramos na aparência física
das pessoas. A tendência de sermos enganados pela beleza e de nos
sentirmos atraídos por uma aparência atraente é uma experiência
comum. Identificamos facilmente a bondade com um comportamento
exterior atraente, mas essa pode nã o ser uma avaliaçã o precisa. Sã o
Joã o da Cruz oferece o seu pró prio comentá rio sincero sobre esta
tendência: “A beleza e todos os outros dotes naturais sã o apenas terra,
surgindo da terra e a ela retornando; graça e elegâ ncia sã o apenas a
fumaça e o ar desta terra” (AMC 3.21.2). Ele nos alerta para nã o nos
deixarmos enganar pela beleza. Suas palavras sã o adequadas para
qualquer um que possua beleza natural e para aquele que contempla a
beleza em outra pessoa: “Essas graças e dá divas naturais sã o uma
provocaçã o e ocasiã o de pecado tanto para o possuidor quanto para
quem vê, que dificilmente há um coraçã o que escape de esta armadilha”
(AMC 3.21.1). O realismo de Sã o Joã o da Cruz, que durante cinco anos
foi confessor e guia espiritual de 130 Irmã s no Convento da Encarnaçã o
de Á vila e encontrou muitas Irmã s jovens no seu trabalho, fica evidente
nestas palavras: “Tã o poucas serã o encontrados, nã o importa quã o
santos sejam, que nã o tenham sido um tanto arrebatados e perplexos
por esta bebida de alegria e prazer na beleza e nas graças naturais”
(AMC 3.22.4). O esforço deve consistir em manter uma consciência
calma nos nossos encontros humanos, permanecendo pouco possessivo
em relaçã o aos outros, desapegado da procura das nossas pró prias
conquistas nas relaçõ es humanas. Isto nã o significa ser frio e distante
dos outros, mas ter liberdade para amar como Deus deseja que amemos
os outros. “Ao nã o se apegar a ninguém, apesar desses bens naturais
aparentes e enganosos, a pessoa permanece desimpedida e livre para
amar tudo racional e espiritualmente, que é a forma como Deus deseja
que ela seja amada. Como resultado, percebemos que ninguém merece
amor, exceto pela virtude. E quando se ama com este motivo, o amor é
segundo Deus e extremamente gratuito” (AMC 3.23.1).

O ponto essencial que Sã o Joã o da Cruz está defendendo é a


necessidade de manter Deus no centro de nossas vidas, nã o apenas
como alguém que é adorado e adorado, mas como o Amado que
desejamos agradar em todas as coisas, em todas as horas.
Naturalmente, existem satisfaçõ es sensoriais e prazeres inocentes na
vida, na comida, no comer e na boa companhia, por exemplo, que nã o
exigem eliminaçã o de nossas vidas. Sã o Joã o da Cruz oferece a simples
instruçã o de que, no encontro com qualquer satisfaçã o dada aos nossos
sentidos, devemos tentar voltar a nossa gratidã o e consciência para
Deus. Nã o há necessidade de evitar todas as satisfaçõ es, mas sim de
usá -las para um amor maior a Deus. “Pois quando a vontade, ao tomar
consciência do deleite proporcionado por um objeto de visã o, audiçã o
ou tato, nã o para com essa alegria, mas imediatamente se eleva a Deus,
sendo movida e fortalecida para isso por aquele deleite, ela está
fazendo algo muito bom” (AMC 3.24.4). A verdadeira questã o aqui é o
tipo de gratificaçã o procurada, se é auto-orientada para o nosso pró prio
prazer ou usada inocentemente para louvar e amar a Deus pelas suas
dá divas; e, claro, se é pecaminoso ou nã o. O esforço deve ser o de tornar
essas alegrias e satisfaçõ es inseparáveis do nosso amor a Deus, nunca
esquecendo a gratidã o a ele. Pode-se cultivar o há bito de lembrar-se de
Deus até mesmo nos prazeres dos sentidos, agradecendo-lhe pelo que
se vive. Durante sua vida, Sã o Joã o da Cruz era conhecido por deleitar-
se com a beleza dos cená rios naturais de montanhas, florestas e
riachos; sua poesia também está repleta desse deleite sensual. “As
pessoas espirituais, entã o, em qualquer gratificaçã o sensorial que surja
em seu caminho, seja por acaso ou por sua pró pria intençã o, devem se
beneficiar dela apenas para irem a Deus” (AMC 3.24.7). Caso contrá rio,
haverá danos e obstá culos na vida espiritual, pois permitimos que a
vontade seja oprimida pelo desejo de delícias procuradas por alguma
forma de auto-satisfaçã o. Pessoas com inclinaçõ es sensoriais, por
exemplo, muitas vezes tendem a ter mais dificuldade com o esforço de
se recolherem em oraçã o e buscarem silenciosamente a presença de
Deus em silêncio solitá rio.

Sã o Joã o da Cruz aborda ainda outra forma de gratificaçã o que deve


ser temperada como uma alegria procurada para sua pró pria satisfaçã o.
Este é o problema de nos regozijarmos no nosso pró prio exercício da
virtude, em fazer da motivaçã o para as boas obras na nossa vida a
satisfaçã o que elas nos podem dar de viver de forma correta, nobre ou
mesmo heroica. É novamente o mesmo esforço de auto-renú ncia ouvido
anteriormente, mas tocado agora num acorde diferente. Devemos
voltar o nosso pensamento para agradar a Deus e dar-lhe honra como o
ú nico motivo digno para as nossas açõ es. Sem dú vida, queremos
também fazer o bem aos outros, mas isto deveria significar, em ú ltima
aná lise, fazer o bem para a salvaçã o e a santificaçã o dos outros. É uma
verdade bá sica repetida em toda a tradiçã o cató lica que o valor das
obras está no amor com que sã o realizadas. Pequenos atos feitos com
muito amor têm um valor além da nossa conta; na verdade, nã o há nada
pequeno quando o amor é grande. As seguintes palavras de Sã o Joã o da
Cruz certamente afetaram inú meras carmelitas em conventos de
clausura ao longo dos ú ltimos quatro séculos. Mas por que nã o nó s
também, pois eles têm uma pertinência equivalente para vidas fora dos
muros dos mosteiros:

Os cristã os devem ter em mente que o valor das suas boas obras, jejuns,
esmolas, penitências, etc., nã o se baseia tanto na quantidade e na
qualidade, mas no amor de Deus praticado neles; e conseqü entemente
que essas obras sã o de maior excelência na medida em que o amor de
Deus pelo qual sã o realizadas é mais puro e completo e que o interesse
pró prio diminui com respeito ao prazer, conforto, louvor e alegria
terrena ou celestial. Eles nã o devem concentrar-se no prazer, no
conforto, no sabor e em outros elementos de interesse pró prio que
essas boas obras e prá ticas geralmente envolvem, mas recordar sua
alegria em Deus e o desejo de servi-lo por esses meios. E através da
purgaçã o e das trevas quanto a esta alegria nos bens morais, eles
deveriam desejar em segredo que somente Deus se agradasse e se
alegrasse com suas obras. (AMC 3.27.5)

O que ouvimos, com efeito, é que uma tendência cultivada para o


ocultamento deve acompanhar toda vida espiritual séria. O que Deus vê
é apenas o que importa; as coisas que ninguém mais vê ou conhece sã o
muitas vezes, em vidas santas, a maior verdade de sua santidade. O
motivo do amor para dar prazer a Deus, quando esse desejo anima o
â mago de uma vida, leva logicamente a uma vida de dons secretos
estendidos a Deus ao longo de um dia. O interesse pró prio na satisfaçã o
de elogios e reconhecimento de obras, pelo contrá rio, está em
contradiçã o directa com este princípio. Sã o Joã o da Cruz comenta esta
tendência nociva: “Como procuram satisfaçã o nas suas obras,
geralmente nã o as realizam, a menos que vejam que delas resultará
alguma gratificaçã o ou elogio” (AMC 3.28.4). A consequência nestas
vidas é limitar o bem que fazem, limitando a sua generosidade ao que
será visivelmente visto e apreciado. É hoje tã o diferente do que era no
tempo de Sã o Joã o da Cruz? “Há tanta miséria entre os seres humanos
em relaçã o a este tipo de dano que acredito que a maioria das obras
realizadas publicamente sã o defeituosas, inú teis ou imperfeitas aos
olhos de Deus. A razã o é que as pessoas nã o estã o desligadas destes
respeitos e interesses humanos” (AMC 3.28.5). Ele comenta essa infeliz
necessidade de receber elogios, reconhecimentos, elogios e
agradecimentos de outras pessoas pelos trabalhos realizados. “Pode-se
dizer que nestas obras alguns adoram mais a si mesmos do que a Deus.
E isto é verdade se eles realizam tais trabalhos por estas razõ es e nã o o
fariam sem eles” (AMC 3.28.5). A correcçã o que Sã o Joã o da Cruz
oferece é fundamental e claramente nã o é apropriada apenas para a
vida num mosteiro ou convento de clausura. É adequado a toda vida
que se coloca regularmente diante da presença oculta de Nosso Senhor
na Eucaristia. “Essas pessoas devem esconder o seu trabalho para que
somente Deus possa vê-lo, e nã o devem querer que ninguém preste
atençã o nele. Nã o deveriam apenas escondê-lo dos outros, mas até de si
mesmos: nã o deveriam desejar nem a complacência de estimar o seu
trabalho como se tivesse valor, nem a obtençã o de satisfaçã o. Este é o
significado das palavras de nosso Salvador: Não saiba a mão esquerda o
que faz a direita [Mt. 6:3]” (AMC 3.28.6).

Outro insight interessante neste tratamento é a observaçã o de que


somos facilmente iludidos ao pensar que as obras que nos dã o alguma
satisfaçã o particular têm maior valor aos olhos de Deus. Na verdade, o
oposto pode ser verdadeiro: “Aquelas obras que geralmente exigem
mais mortificaçã o de uma pessoa (que nã o está avançada no caminho
da perfeiçã o) sã o mais aceitáveis e preciosas aos olhos de Deus por
causa da abnegaçã o nelas exercida, do que sã o aqueles dos quais se
pode obter consolo, o que muito facilmente leva à busca de si mesmo”
(AMC 3.28.8). Perseverar nas dificuldades e permanecer fiel ao dever e
ao compromisso nem sempre é honrado com o respeito que merece.
Mas este apego inabalável à retidã o moral e espiritual é um deleite para
Deus. Quando nã o procuramos a nossa pró pria satisfaçã o, na verdade,
quando esta foi temperada e eliminada do nosso motivo subjacente nas
açõ es, tornamo-nos mais maleáveis para Deus. Podemos ser usados por
ele mais facilmente. A diligência na fidelidade à s nossas escolhas na
vida é proporcional ao nosso desejo de deleitar a Deus por meio dessa
fidelidade. O contrá rio, no entanto, é frequentemente visto. Aqueles que
buscam a pró pria satisfaçã o, a pró pria felicidade ou realizaçã o, sem se
preocupar com o compromisso fiel, tendem a há bitos de inconstâ ncia.
As resoluçõ es, se tomadas, nã o sã o cumpridas; as obras nã o foram
concluídas; promessas sã o pronunciadas com ousadia e depois
quebradas. É comum que trabalhos sejam assumidos e depois
abandonados, incluindo o trabalho de buscar Deus, a santidade ou uma
vocaçã o específica. A busca habitual da pró pria satisfaçã o tem
repercussõ es prejudiciais nos compromissos espirituais. Se a tendência
nã o for corrigida, o fruto é percebido com o tempo, à s vezes de forma
trá gica. A passagem a seguir deve ser lida como um comentá rio sobre
as escolhas finais de um compromisso com o casamento, o sacerdó cio
ou a vida religiosa empreendida numa vida.

Como resultado, as pessoas geralmente se tornam inconstantes na


prá tica de boas obras e resoluçõ es; deixam estes de lado e assumem
outros, começando e parando sem nunca terminar nada. Como sã o
motivados pela satisfaçã o, que é mutável – e em alguns temperamentos
mais do que em outros – o seu trabalho termina quando a satisfaçã o
termina, e a sua resoluçã o também, mesmo que possa dizer respeito a
um empreendimento importante. Podemos dizer daqueles para quem a
energia e a alma do seu trabalho é a alegria que nele encontram, que
quando a alegria acaba, o bom trabalho cessa e eles nã o perseveram.
(AMC 3.29.2)

Se voltarmos por um momento à vontade nas suas três operaçõ es,


podemos ver quã o importantes sã o as consequências naquilo que Sã o
Joã o da Cruz ensina. A terceira operaçã o da vontade – aquilo em que
nos deleitamos e encontramos satisfaçã o – torna-se inevitavelmente
uma motivaçã o para aquilo que perseguimos. O desafio que Sã o Joã o da
Cruz coloca é examinar a pureza dos nossos motivos na vida espiritual.
Se procurarmos dar deleite a Deus acima de todas as outras satisfaçõ es,
estaremos no caminho da santidade e no caminho das prováveis graças
da contemplaçã o na oraçã o. Estamos permitindo que a nossa vontade
seja esvaziada por um amor maior a Deus, e isso sempre afeta a nossa
vida de oraçã o. Se, no entanto, nos retirarmos para a busca das nossas
pró prias satisfaçõ es, motivados pelo interesse pró prio, seremos
obrigados a sofrer uma diminuiçã o do desejo por Deus. A oraçã o
também manca e cambaleia. As satisfaçõ es em outras coisas que nã o
Deus sã o muitas vezes escolhidas repetidamente como desejos de
experimentar novamente as mesmas satisfaçõ es, como dissemos.
Aquilo em que encontramos prazer volta para provocar um desejo na
vontade de desfrutar do prazer mais uma vez. A armadilha desse
padrã o nunca é superada em muitas vidas; o egoísmo subjacente nunca
é liberado de uma vida. Uma busca séria por Deus pode ser muito
diferente. O desejo consumidor de nossa alma pode ser dar deleite a
Deus com um motivo puro de amor. Quando este desejo preenche
também a oraçã o, as repercussõ es seguem-se e os frutos com o tempo
mostram-se, incluindo as graças iniciais da contemplaçã o. Ao concluir
este capítulo, recorremos a três pequenos aforismos de valor singular
extraídos de Os Ditos de Luz e Amor . Por um lado, sã o a prova do quanto
Sã o Joã o da Cruz pode dizer em poucas palavras. Os dois primeiros
aforismos expressam a recompensa no amor pelo desapego e por uma
grande paixã o da alma pela vontade de Deus, que também afeta a vida
de oraçã o. O terceiro aforismo sobre o amor tem um impacto ainda
mais poderoso. Talvez possa servir durante toda a vida como um exame
penetrante de consciência.

Se você purificar sua alma de apegos e desejos, compreenderá as coisas


espiritualmente. Se você negar seu apetite por eles, desfrutará de sua
verdade, compreendendo o que há de certo neles. (SLL 49)

De que adianta você dar uma coisa a Deus se ele lhe pede outra?
Considere o que Deus quer e entã o faça-o. Como resultado, você
satisfará melhor o seu coraçã o do que com algo para o qual você mesmo
está inclinado. (SLL 73)
Quando a noite chegar, você será examinado em amor. Aprenda a amar
como Deus deseja ser amado e abandone seus pró prios modos de agir.
(SLL 60)
7
barricadas no caminho da contemplaçã o

Podemos ver este pró ximo capítulo como um argumento em defesa dos
rigores da purificaçã o propostos nas muitas instruçõ es anteriores. É
um capítulo preparató rio para um exame mais concentrado da oraçã o
de contemplaçã o nos capítulos subsequentes. O tratado de A Noite
Escura começa no livro 1 com um tratamento vívido de certas
imperfeiçõ es comumente vistas naqueles que ainda estã o nos está gios
iniciais da busca espiritual. Sã o Joã o da Cruz refere-se aqui a pessoas
que já se comprometeram com o há bito dos exercícios espirituais e da
oraçã o diá ria, geralmente no contexto estruturado da vida religiosa,
mas também entre os leigos, mas que normalmente ainda nã o
compreendem a seriedade de se entregarem totalmente a Deus. Eles
nã o foram experimentados nos rigores da virtude dedicada e ainda nã o
enfrentaram as á rduas lutas interiores que devem ser suportadas
durante algum tempo antes que uma profundidade de qualidade
espiritual envolva a alma. Nã o pode haver resistência testada em uma
alma que nã o teve tempo suficiente para perseverar em duras
provaçõ es.

Esta exigência nã o é apenas uma necessidade de tempero e


amadurecimento na experiência da vida espiritual. O teste essencial é
muito mais fundamental. Como um astuto psicó logo espiritual, Sã o Joã o
da Cruz mergulha abaixo da superfície das vidas e identifica a
motivação das almas no período inicial da busca espiritual como muitas
vezes manchada e impura. Quase todas as pessoas neste período inicial
da vida espiritual professam estar buscando apenas a Deus, enquanto
ao mesmo tempo a pessoa mostra sinais de estar excessivamente
preocupada consigo mesma na busca espiritual. Sã o Joã o da Cruz
comenta explicitamente: “Como a motivaçã o nos seus trabalhos e
exercícios espirituais é a consolaçã o e a satisfaçã o que neles
experimentam, e como nã o foram condicionados pela á rdua luta da
prá tica da virtude, possuem muitos defeitos e imperfeiçõ es em o
desempenho de suas atividades espirituais” (DN 1.1.3). Nesta seçã o
incisiva no início de A Noite Escura , ele usa o esquema dos sete vícios
capitais para expor sete vícios espirituais que geralmente afligem as
almas no período inicial de uma vida espiritual. Revela-se um
comentá rio interessante sobre o fator do interesse pró prio subjacente
na busca da vida espiritual. Esta tendência à preocupaçã o consigo
mesmo exige um claro esforço de mortificaçã o interior, se quisermos
buscar a Deus com o espírito altruísta que pode levar eventualmente a
graças contemplativas na oraçã o.

Sã o Joã o da Cruz começa com orgulho, um orgulho que muitas vezes


é gerado pelos sentimentos elevados e inflamados por Deus que nã o
sã o incomuns nos primeiros dias de oraçã o comprometida. As almas
neste tempo, especialmente nos conventos, sentem um fervor por fazer
todas as coisas para Deus com uma diligência e um brilho exterior que
vem facilmente. O resultado geralmente é uma complacência nas suas
obras e na devoçã o que marca a sua vida interior de oraçã o. Esses
sentimentos de fervor se devem principalmente à graça? Podem ser até
certo ponto, mas mesmo assim o vício espiritual é ativado pela falta de
maturidade espiritual neste momento inicial. Os sinais e sintomas nã o
sã o difíceis de ver na sensaçã o de avanço superior de uma pessoa,
quando na verdade a alma está apenas começando. Sã o Joã o da Cruz
descreve um sintoma típico: “Desenvolvem um desejo um tanto vã o, à s
vezes muito vã o, de falar de coisas espirituais na presença dos outros, e
à s vezes até de instruir em vez de ser instruídos; em seus coraçõ es
condenam outros que nã o parecem ter o tipo de devoçã o que gostariam
que tivessem” (DN 1.2.1).

Curiosamente, o diabo está atento a tais assuntos e tem a intençã o de


nã o ver uma alma entrar mais genuinamente no caminho espiritual da
humilde autocompreensã o. Sã o Joã o da Cruz diz que à s vezes o diabo
pode inspirar uma pessoa a um maior fervor de devoçã o e a uma maior
disponibilidade para realizar boas obras precisamente para inchar e
expandir o orgulho da alma. Esta certamente nã o é a nossa expectativa
habitual. Também nestas almas as relaçõ es com a autoridade, seja na
vida religiosa, seja na direçã o espiritual ou com a pró pria Igreja,
começam possivelmente a manifestar tensõ es. As pessoas desejam
aprovaçã o e estima pela sua aparente qualidade espiritual. Eles
assumem que esta qualidade elevada deve ser vista pelos outros, pois é
bastante visível para eles e, portanto, deve ser reconhecida e
respeitada. E com esse respeito, escreve Sã o Joã o da Cruz, devem vir
permissõ es e encorajamento para seguirem o seu pró prio caminho
preferencial até Deus. Eles têm opiniõ es contundentes sobre o que
acham que é melhor para o seu pró prio avanço espiritual e, talvez,
opiniõ es fortes sobre á reas de preocupaçã o espiritual numa
congregaçã o ou na Igreja. Se nã o houver este incentivo que os confirme
nas suas preferências ou nas suas opiniõ es, “procuram rapidamente
algum outro conselheiro espiritual mais do seu agrado, alguém que os
felicite e se impressione com os seus feitos; e fogem, como fariam com a
morte, daqueles que tentam colocá -los no caminho seguro, proibindo
essas coisas - e à s vezes até se tornam hostis para com esses diretores
espirituais” (DN 1.2.3).

O Sacramento da Confissã o, escreve Sã o Joã o da Cruz, pode ser um


sinal sintomá tico de orgulho na alma. Hoje, quando a Confissã o talvez
nã o seja suficientemente respeitada pelo seu profundo impacto numa
alma humilde em busca de misericó rdia, as palavras sã o um lembrete
de que o sacramento pretende ser uma exposiçã o nua da nossa alma
diante de Deus. Sã o Joã o da Cruz foi confessor durante muitos anos de
algumas centenas de freiras em conventos carmelitas na Espanha. Estas
Irmã s tinham claramente a intençã o de dar a Deus uma oferta total da
sua vida; ainda assim, eles aparentemente poderiam cair em falhas e
impedimentos espirituais que ele frequentemente via. O orgulho é uma
armadilha particular que se esconde nas vidas que aspiram a fazer uma
grande doaçã o a Deus. A presença de falhas e imperfeiçõ es pessoais é
um aguilhã o que humilha a alma ou leva na direçã o oposta ao orgulho,
como veremos. Sã o Joã o da Cruz escreverá nesta seçã o sobre o orgulho
espiritual manifestado na conversa privada e na Confissã o: “À s vezes
minimizam as suas faltas, outras vezes desanimam por elas, pois se
sentiam já santos, e tornam-se impacientes e zangados consigo
mesmos, o que é mais uma falha” (DN 1.2.5). E mais uma vez ele volta à
questã o da motivaçã o, que muitas vezes é de interesse pró prio: “Eles
estã o muitas vezes extremamente ansiosos para que Deus remova as
suas falhas e imperfeiçõ es, mas o seu motivo é a paz pessoal e nã o
Deus” (DN 1.2.5). A natureza humana é muito vulnerável à s feridas do
pecado original que permanecem em nossa alma por toda a vida. O
orgulho espiritual que pode vazar nas piedosas Confissõ es das boas
almas era evidentemente evidente para Sã o Joã o da Cruz. Ele escreve
sobre as Irmã s religiosas no comentá rio a seguir, mas a declaraçã o é um
lembrete para todos nó s da necessidade de tratar este sacramento da
misericó rdia com o má ximo respeito, como uma entrada direta no olhar
de Deus sobre a nossa alma.

Muitos querem ser os preferidos dos seus confessores e por isso sã o


consumidos por mil invejas e inquietaçõ es. O constrangimento proíbe-
os de relatar claramente os seus pecados, para que a sua reputaçã o nã o
diminua aos olhos do seu confessor. Confessam os seus pecados sob a
luz mais favorável, de modo a parecerem melhores do que realmente
sã o, e assim vã o ao confessioná rio para se desculparem em vez de se
acusarem. À s vezes, eles confessam as coisas má s que fazem a um
confessor diferente, para que o seu pró prio confessor possa pensar que
nã o cometem pecado algum. Portanto, no seu desejo de parecerem
santos, eles gostam de relatar o seu bom comportamento ao seu
confessor, e em termos tã o cuidadosos que essas boas açõ es parecem
maiores do que realmente sã o. Seria mais humilde da parte deles. . .
fazer pouco caso do bem que fazem e desejar que ninguém, nem o seu
confessor, nem ninguém, o considere de qualquer importâ ncia. (DN
1.2.4)
Por outro lado, o valor da humildade é fortemente defendido por Sã o
Joã o da Cruz de uma forma que a maioria das pessoas nã o reconhece
como qualidades de humildade séria. A verdadeira humildade inclina as
almas a verem as suas açõ es como insignificantes e a mantê-las
escondidas, longe do louvor. As almas humildes “nã o apenas dã o pouca
importâ ncia à s suas açõ es, mas também tiram delas muito pouca auto-
satisfaçã o” (DN 1.2.6). Eles nã o fazem coisas pela satisfaçã o de serem
apreciados ou reconhecidos. Suas açõ es nã o sã o pretexto para auto-
estima e auto-felicitaçã o. Pelo contrá rio, estã o mais frequentemente
conscientes da “inadequaçã o do seu serviço” a Deus. “Quanto mais
fazem, menos satisfaçã o obtêm disso” (DN 1.2.6). Porque o seu amor
por Deus é grande, eles pensam que estã o fazendo muito pouco por ele.
Gostariam de fazer muito mais para demonstrar o seu amor, mas sã o
incapazes, e este sentimento de inadequaçã o é uma consciência
humilhante. “Essa solicitude amorosa os instiga, os preocupa e os
absorve a tal ponto que eles nunca percebem o que os outros fazem ou
deixam de realizar” (DN 1.2.6). O seguinte comentá rio, se for imitado,
aponta a nossa vida na direçã o da santidade: “Eles pensam que sã o
insignificantes e querem que os outros também pensem isso e
menosprezem e menosprezem as suas açõ es. Além disso, embora
outros elogiem e valorizem as suas obras, essas almas sã o incapazes de
acreditar nelas; tais elogios lhes parecem estranhos” (DN 1.2.6).

A segunda imperfeiçã o frequentemente vista no início da busca


espiritual é a avareza espiritual. A avareza aqui nã o é direcionada ao
acú mulo de coisas materiais, mas envolve um desejo possessivo de
experiências espirituais. Sã o Joã o da Cruz fala assim de pessoas que vã o
orar por aquilo que pode ser recebido no sentimento durante a oraçã o,
procurando sempre experiências consoladoras. “Eles dificilmente
parecem satisfeitos com o espírito que Deus lhes dá” (DN 1.3.1). O
resultado com o tempo sã o muitas vezes almas descontentes, “infelizes
e rabugentas porque nã o encontram nas coisas espirituais o consolo
que desejam” (DN 1.3.1). Eles querem sentir-se elevados e comovidos
em suas vidas espirituais, como se esta fosse a medida das relaçõ es com
Deus. Talvez em reaçã o à frustraçã o na oraçã o interior, uma busca
obsessiva por novos estímulos espirituais possa começar a ocupar uma
vida. Certamente, isso nã o é tudo que existe em tal vida, e a virtude é
praticada, mas a imperfeiçã o indica uma insegurança da alma. Um
sintoma dessa insegurança pode ser uma preocupaçã o excessiva em
adquirir sinais de piedade que aplaquem a falta de profundidade
espiritual. Exemplos desta fraqueza sã o apresentados aqui:

Muitos nunca se cansam de ouvir conselhos, ou aprender má ximas


espirituais, ou guardá -las e ler livros sobre elas. Passam mais tempo
nisso do que na luta pela mortificaçã o e pela perfeiçã o da pobreza
interior a que estã o obrigados. Além disso, sobrecarregam-se com
imagens e rosá rios excessivamente decorados. Eles agora abandonam
estes, agora pegam outros; num momento eles estã o trocando e no
pró ximo trocando novamente. Agora eles querem esse tipo, agora
querem outro. E eles preferem uma cruz a outra por causa de sua
elaboraçã o. (DN 1.3.1)

Sã o Joã o da Cruz deixa claro que nã o está simplesmente criticando as


fraquezas humanas do sentimento piedoso. Ele está abordando a
possessividade do apego à s coisas secundá rias, um impedimento mais
sério à vida espiritual. A incapacidade da alma de direcionar sua
atençã o para o grande objetivo de buscar o pró prio Deus pode ocorrer
porque ela está ocupada com bugigangas de valor barato, por assim
dizer, que substituem a entrega mais generosa a Deus. A devoçã o,
escreve Sã o Joã o da Cruz, nã o depende dos apetrechos externos e do
ambiente em que rezamos. A beleza ou a simplicidade do rosá rio que
temos nas mã os nã o determina o valor das Ave-Marias que com ele
rezamos. Uma representaçã o artística vívida de Jesus crucificado na
cruz pode, num determinado dia, aumentar a nossa admiraçã o pelo seu
amor. No entanto, a oraçã o nunca depende da posse de objetos que
estimulem os nossos sentidos para o ato interior de amor. A
imperfeiçã o aqui da avareza espiritual é esquecer que Deus ama
principalmente a nossa disposiçã o de abraçar a pobreza e o nosso
desejo de agradá -lo. Este ú ltimo deve ser o motivo principal da oraçã o,
na verdade, o ú nico motivo para reter e manter qualquer coisa em
nossa posse pessoal. Como ele escreve na ilustraçã o:

Conheci uma pessoa que, durante mais de dez anos, lucrou com uma
cruz toscamente feita de uma palma abençoada e mantida unida por
um alfinete enrolado nela. Essa pessoa carregava tudo e nunca se
separaria dele até que eu o pegasse – e a pessoa nã o era alguém de mau
julgamento ou pouca inteligência. Vi outra pessoa que orava com contas
feitas de espinhas de peixe. Certamente, a devoçã o nã o foi por isso
menos preciosa aos olhos de Deus. . . . Portanto, aqueles que sã o bem
orientados desde o início nã o se apegam aos instrumentos visíveis nem
se sobrecarregam com eles. (DN 1.3.2)

A seguir, Sã o Joã o da Cruz aborda a imperfeiçã o do que ele chama de


luxú ria espiritual. Ele reconhece aqui a possibilidade de que as pessoas
espirituais à s vezes sofram tentaçõ es involuntá rias contra a pureza
num momento que menos se esperaria, nomeadamente, no meio dos
exercícios espirituais. Sentimentos impuros podem surgir, escreve ele,
de três causas fora do controle da alma. A primeira causa pode ser que
os exercícios espirituais à s vezes sã o uma atividade prazerosa para o
espírito interior. A pessoa nã o está procurando suscitar pensamentos
impuros, mas a vida corporal nã o deixa de ser afetada pelos
sentimentos espirituais amorosos que à s vezes podem preencher uma
pessoa. A gratificaçã o dos sentimentos espirituais à s vezes transborda
corporalmente. O resultado pode ser alguma repercussã o sensual
experimentada, normalmente com desagrado e como algo indesejável.
A necessidade é simplesmente mortificar isso, nã o nos voltando para o
aspecto corporal, deixando-o fora da nossa atençã o direta e deixando-o
desaparecer. A segunda causa possível é o diabo, que para perturbar
uma alma precisamente no momento da oraçã o, tentará excitar
sentimentos impuros na experiência corporal da oraçã o. Novamente, a
resposta adequada será nã o prestar atençã o à agitaçã o corporal. O
perigo subtil, também, é que uma alma desista da oraçã o ou a reduza a
uma abordagem mais superficial por causa desta tentaçã o, pensando
que a pró pria oraçã o se tornou a ocasiã o para a tentaçã o. Isto é um erro
e faria o jogo do diabo, que quer que uma alma diminua ou abandone a
oraçã o e por isso provocou a tentaçã o. A terceira causa dos sentimentos
impuros na oraçã o, escreve Sã o Joã o da Cruz, é o medo deles. Uma
espécie de preocupaçã o ansiosa com a impureza surge em certas almas
quando se voltam para a oraçã o. Talvez eles tenham se convertido de
uma época mais relaxada de comportamento imoral na vida, e uma
preocupaçã o preocupante com a impureza se torna uma lembrança
recorrente para eles, especialmente perturbadora em seu tempo de
silêncio a só s com seus pró prios pensamentos e imaginaçã o durante a
oraçã o.

Como ú ltimo item digno de nota no tratamento da luxú ria espiritual,


Sã o Joã o da Cruz fala da questã o do apego. Os seres humanos, mesmo
sem a tentaçã o da impureza, tendem a ter grande satisfaçã o no consolo
humano da amizade. A amizade é sempre boa quando leva a Deus, mas
nã o é boa quando se torna uma barreira para Deus. Os afetos que
podemos sentir por outra pessoa tendem a revelar a sua verdadeira
natureza quando somos honestos connosco pró prios. Ou Deus é amado
tanto como sempre ou mais, ou acabamos nos afastando da nossa
necessidade e fome de Deus porque uma satisfaçã o humana começou a
substituir Deus como nosso contentamento primá rio na experiência do
amor. Na passagem seguinte, Sã o Joã o da Cruz usa o termo luxú ria
como uma expressã o, nã o simplesmente de desejo impuro, mas de um
apego desordenado a outra pessoa. Mais uma vez, o contexto destas
observaçõ es dirige-se à vida conventual; no entanto, certamente há
aqui liçõ es gerais, incluindo o cuidado com as amizades no mundo que
podem competir com a fidelidade exigida pelas nossas vocaçõ es.

Alguns adquirem espiritualmente uma simpatia por outros indivíduos,


que muitas vezes surge da luxú ria e nã o do espírito. Esta origem lasciva
será reconhecida se, ao recordar esse afeto, houver remorso de
consciência, e nã o um aumento na lembrança e no amor de Deus. A
afeiçã o é puramente espiritual se o amor de Deus cresce à medida que
cresce, ou se o amor de Deus é lembrado tantas vezes quanto a afeiçã o é
lembrada, ou se a afeiçã o dá à alma um desejo por Deus. . . . Mas quando
o amor nasce deste vício sensual tem efeitos contrá rios. À medida que
um amor cresce, o outro diminui, e a lembrança dele também diminui.
Se o amor desordenado aumenta, entã o, como se verá , a alma esfria no
amor de Deus e, por causa da lembrança desse outro amor, esquece-o -
nã o sem sentir algum remorso de consciência. (DN 1.4.7)

A imperfeiçã o paralela ao vício capital da raiva tem muito a ver com o


desejo das almas de gratificaçã o espiritual em seus exercícios
espirituais de oraçã o. Quando o deleite e a satisfaçã o desaparecem ou
desaparecem da oraçã o, e nenhum sabor espiritual é experimentado, a
alma imatura mergulha frequentemente num estado de frustraçã o
indulgente. Logo o sintoma da raiva começa a aparecer. Encontrando
agora um desagrado na oraçã o, “eles ficam irritados nas obras que
fazem e irritam-se facilmente com a menor coisa, e ocasionalmente sã o
tã o insuportáveis que ninguém consegue suportá -los” (DN 1.5.1). Esta
irritabilidade manifesta-se muitas vezes depois de estas almas terem
experimentado algum consolo na oraçã o. Em vez de serem fortalecidos
na virtude por aquilo que poderia ser considerado uma graça, ficam
perturbados pelo retorno insípido e vazio à s exigências diá rias da vida
e pela necessidade de exercer um á rduo esforço na virtude e no
trabalho. É comum experimentar essa espécie de “decepçã o” apó s um
período de consolo na oraçã o. Mas a alma nã o deve permitir que esse
pequeno desâ nimo influencie a sua abordagem à doaçã o generosa fora
do tempo de oraçã o. Sã o Joã o da Cruz menciona também o problema de
outra forma de raiva espiritual comumente vista. Isto significa voltar-se
com “um certo zelo indiscreto” de raiva pelos pecados dos outros, e
“reprovar esses outros, e à s vezes até sentir o impulso de fazê-lo com
raiva, o que de fato eles ocasionalmente fazem, estabelecendo-se como
senhores de virtude” (DN 1.5.2). Outros ficam irados com “uma
impaciência desumana” com suas pró prias falhas e culpas. “Eles sã o tã o
impacientes com essas imperfeiçõ es que gostariam de se tornar santos
em um dia” (DN 1.5.3). A necessidade de aceitar um longo esforço na
vida espiritual é sempre uma consciência salutar. A ú ltima frase da
passagem seguinte, sob outro ponto de vista, é certamente um
comentá rio antigo de Sã o Joã o da Cruz.

Muitos desses iniciantes fazem numerosos planos e grandes resoluçõ es,


mas como nã o sã o humildes e nã o desconfiam de si mesmos, quanto
mais resoluçõ es tomam, mais quebram e maior se torna a sua raiva.
Eles nã o têm paciência para esperar até que Deus lhes dê o que
precisam, quando ele assim o desejar. A atitude deles é contrá ria à
mansidã o espiritual. . . . Alguns, porém, sã o tã o pacientes quanto ao seu
desejo de progresso que Deus preferiria vê-los um pouco menos. (DN
1.5.3)

A gula espiritual é a pró xima na lista das imperfeiçõ es. Como escreve
Sã o Joã o da Cruz: “Muitos, atraídos pelo deleite e satisfaçã o obtidos nas
suas prá ticas religiosas, lutam mais pelo sabor espiritual do que pela
pureza e discriçã o espirituais; no entanto, é esta pureza e discriçã o que
Deus procura e considera aceitável ao longo de toda a jornada
espiritual de uma alma” (DN 1.6.1). Mais uma vez, vemos que a
motivaçã o primá ria nas boas prá ticas pode ser um desejo egocêntrico
de experimentar algum sentimento espiritual de deleite. Sã o Joã o da
Cruz comenta que o sintoma desta imperfeiçã o é, por vezes, adotar
prá ticas excessivas de penitência ou jejum. A açã o nã o ocorre
puramente por um desejo de mortificaçã o ou de oferecer penitência
pelo bem dos outros, mas por algum motivo impuro de satisfaçã o. Estas
almas carecem de discriçã o e moderaçã o; ainda mais, eles falham em
buscar conselhos e conselhos de outra pessoa. Preferem empreender
penitências por vezes extremas e cansativas, que ocasionalmente
resultam em algum dano à sua saú de.

No entanto, a sua principal falha neste excesso normalmente nã o é a


presunçã o da sua capacidade física ilimitada para a penitência. É deixar
de se colocar em obediência a outrem no exercício das penitências. O
perigo é que esta falta de vontade de se submeter a alguma forma de
obediência se estenda rapidamente a outras á reas do esforço espiritual.
Uma aversã o à submissã o de qualquer espécie toma conta da vida,
sendo substituída pelo desejo de estar no comando, orientando a
pró pria conduta. “Seu ú nico anseio e satisfaçã o é fazer o que se sentem
inclinados a fazer” (DN 1.6.2). Sã o Joã o da Cruz escreve talvez a partir
da sua pró pria experiência sobre a dificuldade que algumas almas
apresentam em se submeterem à direçã o espiritual de outra: “Algumas
insistem muito para que o seu diretor espiritual lhes permita fazer o
que elas mesmas querem fazer, e finalmente quase forçar a permissã o
dele” (DN 1.6.3). As recusas provocam fortes reaçõ es de desgosto pelo
diretor, como alguém que se opõ e a Deus porque discorda dos desejos
deles. “Eles têm a impressã o de que nã o servem a Deus quando nã o lhes
é permitido fazer o que querem” (DN 1.6.3). O problema remonta ao
desejo de satisfazer o que agrada a si mesmo: “Eles pensam que
gratificar-se e satisfazer-se é servir e satisfazer a Deus” (DN 1.6.3). O
desejo de ceder à penitência corporal de forma excessiva serve como
ilustraçã o do que é um problema de implicaçõ es muito mais profundas.
O problema de pedir penitências nã o parece ser o nosso problema hoje.
Mas o orgulho tem formas de se manifestar em todas as épocas. A
obediência à orientaçã o de outra pessoa pode ser algo oneroso,
especialmente quando se expressa desaprovaçã o. O seguinte
comentá rio sobre as almas que querem praticar as suas pró prias
penitências excessivas, procurando arbitrariamente os seus pró prios
caminhos, em vez de se submeterem à orientaçã o de outrem, continua a
ser uma instruçã o ú til e de ampla aplicaçã o, especialmente quando faz
mençã o à necessá ria prá tica de uma “penitência”. da razã o”.

Tais indivíduos sã o irracionais e muito imperfeitos. Subordinam a


submissã o e a obediência (que é uma penitência da razã o e da discriçã o
e, consequentemente, um sacrifício mais agradável e aceitável a Deus) à
penitência corporal. Mas a penitência corporal sem obediência nã o
passa de uma penitência de animais. E como os animais, eles sã o
motivados nessas penitências pelo apetite pelo prazer que nelas
encontram. Dado que todos os extremos sã o viciosos e dado que
através de tal comportamento estas pessoas estã o a fazer a sua pró pria
vontade, elas crescem no vício e nã o na virtude. Pois através desta
conduta tornam-se pelo menos espiritualmente glutõ es e orgulhosos, já
que nã o trilham o caminho da obediência. (DN 1.6.2)

Sã o Joã o da Cruz continua falando da gula espiritual na pró pria


oraçã o. O primeiro exemplo está na recepçã o da Sagrada Comunhã o.
Nã o é incomum, escreve ele, que as almas meçam as suas relaçõ es com
Deus pelos sentimentos de satisfaçã o recebidos ou nã o recebidos no
precioso tempo apó s a Sagrada Comunhã o. Se os sentimentos sã o
entendidos como um sinal de proximidade ao Coraçã o de Deus, entã o
naturalmente a alma dá muito valor ao fato de ocorrer alguma
experiência de deleite. Mas esta é uma visã o errô nea, embora seja tã o
evidente nos está gios iniciais e mesmo posteriores da vida espiritual.
Nesse caso, falta a importâ ncia da fé profunda no nosso encontro com
os mistérios ú ltimos da nossa vida cató lica. A Eucaristia é um
sacramento de grande mistério na intimidade da nossa uniã o com
Nosso Senhor. O mistério à s vezes nã o é suficientemente honrado
quando as almas buscam uma experiência de deleite emocional como
seu desejo principal na Sagrada Comunhã o. Jesus na Eucaristia
permanece o Senhor de mistério transcendente absoluto, mesmo
quando se entrega totalmente a nó s. Sã o Joã o da Cruz é contundente em
sua crítica a esta forma de desejo superficial ao receber Nosso Senhor e
Deus na Sagrada Comunhã o:

Ao receberem a Comunhã o, eles passam todo o tempo tentando obter


algum sentimento e satisfaçã o, em vez de louvarem e reverenciarem
humildemente a Deus que habita dentro deles. E fazem isso de tal
maneira que, se nã o obtiverem nenhum sentimento e satisfaçã o
sensatos, pensam que nã o realizaram nada. Como resultado, eles
julgam muito mal a Deus e nã o conseguem compreender que os
benefícios sensoriais sã o os menores entre aqueles que este Santíssimo
Sacramento concede, pois a graça invisível que ele concede é uma
bênçã o maior. Deus muitas vezes retira deleite e prazer sensorial para
que as almas possam fixar os olhos da fé nesta graça invisível. Nã o só ao
receber a Comunhã o, mas também em outros exercícios espirituais, os
iniciantes desejam sentir Deus e saboreá -lo como se fosse
compreensível e acessível. Este desejo é uma imperfeiçã o grave e, por
envolver impureza de fé, é contrá rio ao caminho de Deus. (DN 1.6.5)

A seçã o sobre a gula espiritual termina com uma reiteraçã o da


necessidade de abandonar o desejo por sentimentos de deleite e
satisfaçã o na oraçã o. Estas sã o almas “sempre em busca de alguma
gratificaçã o nas coisas de Deus” (DN 1.6.6). É um caminho de busca
pró pria que pouco tem a ver com o amor genuíno, que sempre liberta a
alma da preocupaçã o consigo mesma e do que é recebido para si. O erro
é uma interpretaçã o errada dos verdadeiros efeitos do amor sobre a
alma. Estas almas ainda nã o compreendem com profundidade
suficiente o desejo de Deus de purgar a alma de todo egoísmo. “Eles
pensam que toda a questã o da oraçã o consiste em procurar satisfaçã o
sensorial e devoçã o” (DN 1.6.6). Quando isso nã o acontece, eles ficam
desconsolados e pensam que perderam tempo. “Perdem a verdadeira
devoçã o e o espírito”, escreve Sã o Joã o da Cruz, “que residem na
desconfiança de si mesmos e na perseverança humilde e paciente para
agradar a Deus” (DN 1.6.6). O perigo é que uma alma perca o interesse e
até desista de uma busca séria pela oraçã o. “Uma vez que nã o
encontram prazer na oraçã o, ou em qualquer outro exercício espiritual,
sentem extrema relutâ ncia e repugnâ ncia em voltar a ela e à s vezes até
desistem” (DN 1.6.6). A liçã o é bastante clara. O há bito de abnegaçã o em
relaçã o ao nosso pró prio desejo de satisfaçã o na oraçã o é necessá rio se
quisermos trilhar o caminho autêntico para a perda de nó s mesmos por
amor a Deus.

Sã o Joã o da Cruz acaba com as duas ú ltimas imperfeiçõ es, a inveja


espiritual e a preguiça espiritual, com certa conveniência, como se
estivesse cansado do assunto. A inveja espiritual é o que poderíamos
esperar que fosse: a tristeza que as almas sentem ao ver outros
avançando à sua frente nas prá ticas espirituais, pelo menos de acordo
com a sua pró pria medida desse avanço. Eles ficam aborrecidos e
perturbados ao ouvirem outros elogiados por suas qualidades
espirituais. “Eles anseiam por preferência em tudo” (DN 1.7.1). O
espírito competitivo pode ser evidente tanto nas comunidades
religiosas como no mundo. A ú nica diferença sã o os critérios de avanço
e superioridade em relaçã o aos demais. Mas isso também é um
problema. Na vida espiritual, os sinais de aproximaçã o a Deus, quando
autênticos, ficam em grande parte ocultos aos olhos dos outros. Uma
vez que percebemos que nada visto na aparência transmite toda a
verdade de uma alma diante do olhar de Deus, muita inveja espiritual
deverá se dissipar.

A preguiça espiritual, ú ltima imperfeiçã o tratada, manifesta-se à s


vezes no cansaço experimentado nos exercícios espirituais e na oraçã o,
quando a alma parece nã o receber nada pelos seus esforços. A
inclinaçã o para fugir e evitar o que se tornou á rduo leva algumas almas
a diminuir o seu compromisso espiritual e talvez a realizar os exercícios
espirituais sem qualquer esforço fervoroso. O tédio é um problema
especial neste sentido, uma vez que se segue uma experiência mais
difícil na oraçã o ou no compromisso espiritual. “Como estã o tã o
acostumados a encontrar prazer nas prá ticas espirituais, ficam
entediados quando nã o o encontram” (DN 1.7.2). Ou ficam entediados
“quando lhes dizem para fazer algo desagradável” (DN 1.7.4). Aqueles
que estã o acostumados a buscar gratificaçã o e prazer em seus
exercícios espirituais tendem a fugir do que é desagradável e do que
exige muita perseverança. O resultado é uma reaçã o imatura de
negligência e uma desistência do que foi iniciado. “Se eles nã o recebem
na oraçã o a satisfaçã o que desejam - pois afinal é apropriado que Deus
retire isso para experimentá -los - eles nã o querem voltar a isso, ou à s
vezes desistem da oraçã o ou vã o para ela a contragosto” (DN 1.7.2). A
questã o volta mais uma vez ao que a alma realmente busca na oraçã o.
Alguns, sob o pretexto de buscarem a Deus, “esforçam-se para
satisfazer a sua pró pria vontade e nã o a de Deus” (DN 1.7.2). O esforço
da alma para ser dó cil e maleável diante de Deus, permitindo que os
recô nditos internos da alma sejam purificados e formados sob sua mã o,
é uma necessidade imensa. A descoberta do impulso para a auto-busca
voluntá ria naquilo que até entã o parecia uma busca de Deus é uma
visã o valiosa, se a verdade da nossa pró pria necessidade puder ser
revelada. Como escreve Sã o Joã o da Cruz: “Muitos destes principiantes
querem que Deus deseje o que eles querem e ficam tristes se tiverem
que desejar a vontade de Deus. Eles sentem aversã o a adaptar sua
vontade à de Deus. Por isso, acreditam frequentemente que aquilo que
nã o é a sua vontade, ou que nã o lhes traz satisfaçã o, nã o é a vontade de
Deus e, por outro lado, que se estã o satisfeitos, Deus também o está .
Eles medem Deus por si mesmos e nã o por Deus” (DN 1.7.3).

O que temos encontrado nestas representaçõ es da imperfeiçã o é uma


espécie de resumo concreto das exigências do amor reiteradas ao longo
dos escritos de Sã o Joã o da Cruz. Uma alma que aspira à uniã o com
Deus deve verdadeiramente deixar-se esvaziar e purificar de forma
radical. O caminho da purificaçã o pode levar muito tempo ou ter uma
duraçã o relativamente curta, dependendo em grande parte da
seriedade com que levamos em mortificar as nossas pró prias
tendências egocêntricas. Esta é a liçã o principal destas pá ginas sobre os
vícios espirituais no início de A Noite Escura . A grande necessidade da
nossa alma é refinar o nosso desejo de agradar somente a Deus e
deixar-nos vazios e sem importâ ncia em nossa pró pria opiniã o. Temos
que nos entregar, nos despojar da preocupaçã o consigo mesmo; nunca
é suficiente simplesmente ser generoso em açõ es de caridade. A
admoestaçã o evangélica para nos perdermos por amor é um esforço de
exigências interiores e exteriores que nã o permite nenhum
compromisso nem retorno a si mesmo. Tais esforços nã o sã o
infrutíferos. Sã o a preparaçã o para o anseio mais puro por Deus e a
acessibilidade a Deus, características de uma alma pronta para receber
a graça da contemplaçã o.
8
A Luz Nascente do Dom da Contemplaçã o

Estamos agora prontos para retomar o ensinamento de Sã o Joã o da


Cruz sobre a contemplaçã o. No entanto, pode ser benéfico aprofundar
um pouco o assunto, que é o que faz Sã o Joã o da Cruz nos seus escritos.
Em algumas ocasiõ es, por exemplo, ele menciona um motivo principal
para pegar sua caneta. Uma questã o de importâ ncia crítica para ele –
“extremamente necessá ria para tantas almas” (Pró logo 3 do AMC) – é o
dano causado à s almas que nã o reconhecem os sintomas iniciais das
graças contemplativas e nã o ajustam a sua abordagem à oraçã o de
acordo. Nã o conseguir avançar para a contemplaçã o quando a graça
está sendo oferecida é, para ele, uma grande desgraça. A falta de
compreensã o é a razã o ó bvia e uma espécie de desculpa; no entanto,
esta ignorâ ncia tem consequências e requer soluçã o. A perda é
inestimável, nã o apenas para determinadas almas, mas para a vasta
fecundidade que uma alma contemplativa pode suportar pelo bem dos
outros. Sã o Joã o da Cruz nã o perde tempo em abordar o assunto. As
primeiras pá ginas do Pró logo da Subida ao Monte Carmelo expressam o
seu lamento. Quando ele se refere à “noite escura” na passagem
seguinte, ele está se referindo à experiência inicial de purificaçã o que
ocorre quando a graça da contemplaçã o começa. O que nã o deve faltar
nesta passagem é também a frase de abertura. As graças iniciais da
oraçã o contemplativa nã o pressupõ em a raridade de uma vida santa,
mas uma vida sinceramente empenhada na busca sincera da virtude.

Embora essas almas tenham começado a caminhar pelo caminho da


virtude, e Nosso Senhor deseje colocá -las na noite escura para que
possam avançar para a uniã o divina, elas nã o avançam. A razã o para
isto pode ser que à s vezes eles nã o querem entrar na noite escura ou se
deixarem colocar nela, e que à s vezes se entendem mal e nã o têm
diretores adequados e alertas que lhes mostrem o caminho para o
cume. Deus dá a muitas almas o talento e a graça para avançar, e se
desejassem fazer esse esforço, chegariam a este estado elevado. E por
isso é triste vê-los continuar em seu humilde método de comunhã o com
Deus porque nã o querem ou nã o sabem como avançar, ou porque nã o
recebem orientaçã o para romper com os métodos dos iniciantes.
(Pró logo AMC 3)

Nestas observaçõ es preliminares, é invocada a metá fora da “noite


escura”, um termo que já encontramos. É uma imagem para
purificaçõ es de vá rios tipos na vida espiritual. Uma das experiências
mais assustadoras de uma “noite escura” de purificaçã o ocorre
exatamente no início das graças contemplativas, à s quais ele acaba de
se referir nestas palavras do Pró logo à Subida do Monte Carmelo . A
imagem da escuridã o assume diferentes significados no decorrer de
suas obras. Mas na discussã o da contemplaçã o, a metá fora da noite
escura invoca a confusã o e a incompreensã o que perturbam as almas
quando as graças contemplativas começam, deixando-as muitas vezes
incapazes, por ignorâ ncia, de enfrentar o desafio de avançar na oraçã o.
Este período transitó rio de entrada na contemplaçã o é um tema
importante para Sã o Joã o da Cruz. Normalmente, as almas sã o lançadas
em um tumulto interno nesse momento. Uma experiência dolorosa
invade o silêncio da oraçã o que está em desacordo com a sua
compreensã o da oraçã o até aquele momento. Para muitas pessoas,
parece quase como se ocorresse uma lesã o na alma que nã o tem
explicaçã o. No entanto, o que realmente está acontecendo é um
chamado à graça para cruzar o limiar de uma “noite escura” de
purificaçã o interior no silêncio da oraçã o.

A escuridã o pode ser vista em parte como uma metá fora para a
incapacidade da alma de compreender o que está acontecendo. Mas é
também uma descriçã o, como veremos, dos benefícios da pró pria
experiência neste período agraciado de purificaçã o na oraçã o. Uma
entrada mais profunda no mistério do amor infinito de Deus exige,
como vimos no capítulo sobre a fé, que a nossa alma sofra uma certa
cegueira do intelecto enquanto exercemos a certeza da nossa fé. E,
infelizmente, as almas quase sempre resistem a este efeito de graça
mais profunda. Nã o se rendem à iniciativa da graça de Deus porque nã o
compreendem o que está acontecendo. Todas as indicaçõ es parecem
apontar para algo que deu errado na oraçã o, como se tivesse ocorrido
um desvio na estrada e o caminho correto tivesse sido perdido. A
pró pria ignorâ ncia se torna um sério obstá culo neste momento. A alma
se recusa a avançar na graça porque nã o sabe o que significa avançar.
Para a maioria das pessoas, a experiência parece inicialmente ser mais
um colapso na oraçã o do que um convite a uma intimidade mais
profunda com Deus. A grande necessidade neste momento, que Sã o
Joã o da Cruz pretende suprir, é o conhecimento do que está
acontecendo, seguido de um adequado ajuste na oraçã o de acordo com
instruçõ es confiáveis. Sem uma orientaçã o só lida, é improvável que a
nossa alma faça a escolha necessá ria para alterar a forma como reza de
uma forma que responda adequadamente à s graças contemplativas.
Este ajustamento exige o abandono dos métodos familiares de oraçã o e
a adopçã o de novas abordagens. Uma declaraçã o do Pró logo de The
Ascent é descritiva a esse respeito:

Ao resistir a Deus que os conduz, eles fazem pouco progresso e falham


no mérito porque nã o aplicam a sua vontade; como resultado, eles
devem suportar um sofrimento maior. Algumas almas, em vez de se
abandonarem a Deus e cooperarem com Ele, dificultam-no com a sua
actividade indiscreta ou com a sua resistência. Assemelham-se a
crianças que esperneiam e choram e lutam para andar sozinhas quando
as mã es querem carregá -las; ao caminharem sozinhos, nã o avançam ou,
se o fazem, é no ritmo de uma criança. (Pró logo AMC 3)

Outro fator também pode ser enfatizado. Uma capacidade sensível de


envolver experiências interiores paradoxais é um elemento crucial na
navegaçã o da alma através deste intervalo confuso da vida espiritual. A
dificuldade pode explicar por que Sã o Joã o da Cruz está tã o interessado
em fazer deste período de transiçã o na oraçã o um componente
importante dos seus escritos. As almas nesta fase da vida espiritual
necessitam de conselhos e encorajamento claros. O que pode parecer
desanimador e sombrio de uma maneira subjetiva pode ser sintomá tico
de uma experiência mais profunda de Deus. Mas como uma alma pode
saber? A experiência purificadora da oraçã o neste momento facilmente
convida a falsas interpretaçõ es. A cooperaçã o com as graças
contemplativas é muito importante, mas isto pressupõ e uma
interpretaçã o correta do que está acontecendo. Quase sempre alguma
orientaçã o é necessá ria. Tentar viver esta purificaçã o sozinho, sem
instruçã o, tende a confundir e até paralisar as almas. Abordar
precisamente esta situaçã o foi um motivo principal para Sã o Joã o da
Cruz, se medirmos o nú mero de passagens nos seus escritos em que ele
retorna ao ensinamento sobre os primeiros está gios da contemplaçã o.
Ele é um mestre da clareza tanto no diagnó stico dos sintomas
contemplativos iniciais quanto no tratamento da pró pria oraçã o
contemplativa. Com efeito, ele está oferecendo uma orientaçã o
necessá ria para almas que muitas vezes nã o conseguem encontrar
direçã o em outro lugar.

Uma observaçã o adicional é pertinente: sempre houve ideias


ingênuas que cercam a noçã o de oraçã o contemplativa. Uma é que esta
oraçã o é completamente passiva e inteiramente dependente da açã o de
Deus dentro da alma. Mas a cooperaçã o é essencial. A natureza
desconcertante da contemplaçã o implica a necessidade de escolhas
interiores realizadas com uma resposta clara. A “noite escura” deve ser
tratada de maneira adequada, de maneira receptiva, ou entã o a alma se
verá como se estivesse andando de cabeça baixa e batendo contra uma
parede grossa. A alma deve chegar a um sentido intuitivo do destino a
que esta purificaçã o na oraçã o está conduzindo. Tem que saber,
claramente, que nã o é um caminho fá cil e pavimentado que conduz ao
cume rochoso do Monte Carmelo. Nas palavras de Sã o Joã o da Cruz, a
alma é conduzida a uma “nudez de espírito”, a esse vasto vazio das
“cavernas” das faculdades interiores. Um forte senso de mistério
invisível deve nos atrair na busca de Deus. Ao mesmo tempo, a visã o do
caminho estreito deve manter o nosso foco. Um desejo determinado de
buscar a Deus a todo custo é essencial, como Sã o Joã o da Cruz deixa
claro ao seu leitor nesta breve e incisiva observaçã o do Pró logo: “Nã o
estamos escrevendo sobre temas morais e agradáveis dirigidos ao tipo
de pessoas espirituais. que gostam de se aproximar de Deus por
caminhos doces e satisfató rios. Apresentamos uma doutrina
substancial e só lida para todos aqueles que desejam alcançar esta
nudez de espírito ” (Pró logo AMC 8; grifo nosso).

Também pode ser dito nesta fase preliminar que a experiência da


“noite escura”, embora aguda e dolorosa nas primeiras oraçõ es
contemplativas, nã o é simplesmente uma provaçã o que desce sobre a
alma como uma doença temporá ria, apenas para ser suportada até que
passe. . Em vez de uma provaçã o que desaparece com o passar do
tempo, significa uma mudança extremamente importante nas relaçõ es
com Deus. É a entrada numa espécie de vazio nu de interioridade tã o
propícia a relaçõ es “apofá ticas” mais profundas com um Deus oculto.
Com o início da contemplaçã o, a realidade da fé assume um papel muito
mais intenso na vida espiritual. O reconhecimento da necessidade da
vontade de se entregar totalmente a Deus também se torna mais agudo.
Como veremos, existem respostas adequadas que facilitam o avanço de
uma alma na contemplaçã o. Sã o Joã o da Cruz vai dar muitas instruçõ es
e orientaçõ es. Mas a necessidade primá ria é avançar para uma nova
experiência de oraçã o que contradiga as nossas expectativas anteriores
de oraçã o. A nossa alma tem de aprender um sentido diferente da
presença oculta de Deus na oraçã o, um sentido que lhe permita
aproximar-se da alma, mas que também traga uma pobreza dolorosa à
alma na sua oraçã o.

O problema de resistir a Deus nestas questõ es, por ignorâ ncia, é um


ponto revelador. Com efeito, a tentaçã o de resistir à iniciativa de Deus
está no centro do dilema paradoxal de qualquer forma de purificaçã o
interior. A questã o da resistência a Deus é especialmente interessante
na discussã o da contemplaçã o inicial. A resistência neste momento nã o
é a noçã o comum de recusa a Deus por causa da indiferença ou da
rebeliã o. Lembremo-nos de que estes nã o sã o o tipo de almas, se
recebem graças contemplativas, que normalmente se colocam em
oposiçã o a Deus na sua conduta de vida. Mas no â mbito da oraçã o,
muitas vezes resistem à liderança e iniciativa divina, nã o percebendo o
dano que estã o causando a si mesmos quando deixam de “praticar o
abandono à orientaçã o de Deus quando Ele deseja que avancem”
(Pró logo 4 do IMC). A questã o em jogo pode ser simplesmente uma
preferência obstinada pela pró pria maneira de orar e uma recusa em
fazer os ajustes necessá rios, apesar dos sinais de necessidade de
mudança. “Eles nã o se adaptam voluntariamente à obra de Deus de
colocá -los no caminho puro e confiável que conduz à uniã o” (Pró logo
AMC 3). O que é esse caminho confiável de oraçã o será , no devido
tempo, objeto de exame cuidadoso.

Ainda outro fator desperta a ira de Sã o Joã o da Cruz nesta questã o


das primeiras graças contemplativas, que ele menciona no Pró logo de A
Ascensão e repete em outras ocasiõ es. Este é o problema dos diretores
espirituais que com mã o pesada constrangem as almas e as forçam a
continuar orando de maneiras meditativas que nã o sã o mais adequadas
para elas. Estes guias nã o compreendem os sintomas do avanço de uma
alma na sua oraçã o e oferecem um diagnó stico desinformado. Com
efeito, segundo Sã o Joã o da Cruz, muitas vezes atormentam as almas
com a sua orientaçã o assertiva e aumentam a dificuldade deste tempo
de provaçã o interior. Eles rapidamente concluem que as dificuldades na
oraçã o que acompanham a oraçã o contemplativa inicial têm alguma
causa na infidelidade pessoal e no retrocesso. As dificuldades, na sua
opiniã o, podem ser devidas apenas a uma falha pessoal ou a alguma
falha de concentraçã o e foco na oraçã o. Maior esforço e esforço
normalmente sã o recomendados. Infelizmente, uma frustraçã o para a
alma é fruto desta orientaçã o. É impossível saber a frequência com que
tais conselhos eram dados na época de Sã o Joã o da Cruz. Mas é notável
a sua pró pria indignaçã o com esta tendência de direçã o espiritual. Foi
uma causa para as almas nã o avançarem em resposta à s graças
contemplativas. Aparentemente, em muitos casos, significou uma perda
permanente de oportunidades. Ele escreve fortemente sobre esse
assunto na seguinte passagem:

É á rduo e difícil para uma alma nestes períodos da vida espiritual


quando ela nã o consegue compreender a si mesma ou encontrar
alguém que a compreenda. Acontecerá aos indivíduos que, enquanto
sã o conduzidos por Deus por um caminho sublime de obscura
contemplaçã o e aridez, no qual se sentem perdidos e cheios de trevas,
provaçõ es, conflitos e tentaçõ es, encontrarã o alguém que, no estilo de
Os consoladores de Jó [Jb. 4:8-11], proclamarã o que tudo isso se deve à
melancolia, à depressã o ou ao temperamento, ou a alguma maldade
oculta, e que, como resultado, Deus os abandonou. Portanto, o veredicto
habitual é que estes indivíduos devem ter vivido uma vida má , uma vez
que tais provaçõ es os afligem. (Pró logo AMC 4)

Estas palavras sã o um lembrete ú til, aliá s, de que no delicado


domínio da espiritualidade, é melhor ser guiado por Deus (ou pelos
escritos de um santo) do que colocar a vida espiritual em mã os
inferiores. Existem muitas baixas no empreendimento da busca
espiritual. É realmente notável que o caminho para a santidade possa
ser facilmente traçado pela tola ignorâ ncia, mesmo entre as pessoas
mais inteligentes. Nesta questã o está certamente presente um exemplo
da experiência inicial das graças contemplativas. O paradoxo de
experiências aparentemente negativas servindo como sinal de sério
avanço na vida espiritual é obviamente um ponto difícil de avaliaçã o. Na
verdade, as provaçõ es que podem advir das almas devido a maus
conselhos podem ser um teste para saber se uma alma se confiará
totalmente a Deus, nã o confiando em interpretaçõ es equivocadas para
medir as relaçõ es com Deus. O abandono em Deus, embora sofrendo
trevas interiores, como veremos, muitas vezes desencadeia um salto da
alma mais profundamente no mistério de Deus. O comentá rio do
pró prio Sã o Joã o da Cruz na passagem que se segue é uma afirmaçã o
sutil. Nã o estamos no controle desta jornada em oraçã o a Deus. Muitas
vezes nã o podemos fazer nada além de permitir que as graças
misteriosas da purificaçã o tomem conta de nossa alma de forma
secreta e incompreensível e sigam seu caminho. No â mbito da vida
interior com Deus, tentar resolver os problemas ou esforçar-se por
superar as dificuldades muitas vezes nã o é uma boa escolha. Temos que
deixar Deus ser o dono da nossa alma. As relaçõ es com ele na oraçã o
sã o sempre muito pessoais, exigindo um grande respeito pelo mistério
da mã o de Deus em açã o. Estas palavras expressam a sabedoria de Sã o
Joã o da Cruz no seu respeito a Deus e à s almas: “É um período para
deixar estas pessoas sozinhas na purgaçã o que Deus opera nelas, um
tempo para dar conforto e encorajamento para que desejem suporte
este sofrimento enquanto Deus quiser, pois até entã o nenhum remédio
– seja o que for que a alma faça ou diga o confessor – é adequado”
(Pró logo 5 da AMC).

Tanto em A Ascensão do Monte Carmelo como em A Noite Escura ,


pouco antes das seçõ es extensas que tratam da oraçã o contemplativa,
há passagens introdutó rias notáveis que ecoam o tom de frustraçã o que
ouvimos agora expresso no Pró logo de A Ascensão . Os comentá rios
nestes dois casos servem como uma preparaçã o imediata para o seu
ensinamento sobre a oraçã o contemplativa. Mas é novamente
impressionante ver Sã o Joã o da Cruz introduzir este assunto,
lamentando suavemente o dano causado à s almas quando elas nã o
estã o conscientes do verdadeiro funcionamento das graças
contemplativas. Nestas observaçõ es, um refinamento adicional é a
referência explícita à prá tica da oraçã o meditativa antes do início das
graças contemplativas. O exercício diá rio da oraçã o silenciosa da
meditaçã o é assumido como bem conhecido das almas no contexto do
ensinamento de Sã o Joã o da Cruz sobre a contemplaçã o. Na histó ria da
Igreja, começando no início dos anos 1500, e depois sob a influência
particularmente de Santo Iná cio de Loyola (1491-1556) e dos seus
importantes Exercícios Espirituais , um treinamento inicial na oraçã o da
meditaçã o ocorreu em quase todos os ambientes religiosos. vida. Sã o
Joã o da Cruz escreve já com este pano de fundo em mente. Uma breve
descriçã o desta oraçã o de meditaçã o pode ser ú til.

A oraçã o meditativa, tal como ensinada neste contexto cató lico,


consiste normalmente numa reflexã o silenciosa durante meia hora ou
mais sobre uma secçã o do Evangelho ou outras porçõ es das Escrituras.
Um método primá rio é ler diariamente alguma parte selecionada das
Escrituras, especialmente dos quatro Evangelhos, e entã o contemplar
com a imaginaçã o cenas específicas, entrando como uma espécie de
observador no evento descrito, procurando extrair liçõ es significativas
de nossos Palavras do Senhor, concluindo finalmente com resoluçõ es
para a pró pria conduta e busca da virtude. Um termo mais técnico para
esse tipo de oraçã o é chamá -la de meditaçã o discursiva. Tomamos um
pensamento reflexivo ou uma visã o particular de uma cena do
Evangelho e depois passamos para o pró ximo pensamento ou pró xima
cena, e assim por diante, durante o período de tempo definido.
Subjacente ao esforço está o desejo de aprofundar o conhecimento de
Deus e de Jesus na sua humanidade encarnada como Deus e, em ú ltima
aná lise, de conhecê-lo pessoalmente e amá -lo. A oraçã o é sempre por
amor; é também induzir desejos claros de uma vida virtuosa e de
imitaçã o de vidas santas. Uma suposiçã o subjacente à prá tica da
meditaçã o é que este método de oraçã o geralmente produz
experiências satisfató rias, especialmente quando uma pessoa começa a
meditar no Evangelho. O interesse que Jesus desperta, a profunda
influência que ele exerce, a atraçã o de suas palavras e açõ es, quando
uma pessoa tem amor verdadeiro por ele, geralmente é forte no uso
deste método de oraçã o. Mas o método ao longo do tempo, depois de
muitos meses, ou alguns anos, tende a produzir retornos decrescentes.
Os Evangelhos tornam-se familiares e os sentimentos da alma tendem a
estagnar à medida que uma prá tica constante de tal oraçã o ocorre
durante um certo período de tempo.

Esta extinçã o dos sentimentos e da satisfaçã o tangível é o contexto


para a experiência purificadora na oraçã o que será uma indicaçã o,
entre outras, do possível início das graças contemplativas. Mais uma
vez, a “noite escura dos sentidos”, expressã o que Sã o Joã o da Cruz
adopta para este tempo de transiçã o, será invocada como metá fora
reveladora desta purificaçã o, que seca o sentimento e fecha
experiências fecundas de reflexã o ou de imaginaçã o. . Em vez da “luz”
que durante algum tempo brilhou sobre a prá tica da reflexã o
meditativa, proporcionando novos insights e consolo constante, a alma
começa a encontrar uma dissonâ ncia acentuada com a sua experiência
anterior na oraçã o. Uma sensaçã o perturbadora de luta com o exercício
da meditaçã o começa a surgir. E nã o há nenhuma razã o compreensível
ou qualquer soluçã o evidente para corrigir isto. Nã o é simplesmente
como se uma ferramenta usada na oraçã o estivesse quebrada naquele
momento, uma ferramenta que poderia ser consertada ou substituída
por uma ferramenta melhor; nem é simplesmente uma necessidade de
encontrar um método melhorado de reflexã o que possa lançar uma luz
mais rica na meditaçã o; nem se trata de manipular os sentimentos e
restaurá -los ao seu antigo calor. A realidade do que agora parece ser um
esforço ineficaz na oraçã o tem origem na açã o de Deus sobre a alma.
Aparentemente, ele procura, por um lado, expor a alma a uma maior
consciência da sua pró pria pobreza interior.

Talvez deva ser dito também que muitas pessoas que abordam a
oraçã o com seriedade suficiente para dedicar tempo a uma oraçã o
diá ria de meditaçã o nã o percebem quã o seriamente Deus leva a alma. O
que possivelmente começa a acontecer – o início das graças
contemplativas na oraçã o – é um sinal de que Deus nã o busca apenas
uma forma devota de oraçã o de uma alma, seja lá o que isso possa
significar. Ele deseja que a alma se entregue a ele, para que ele, por sua
vez, possa dar à alma um dom mais completo de si mesmo. A discussã o
da oraçã o contemplativa nunca é simplesmente para ajudar uma alma
no avanço da oraçã o. Esse objetivo está sempre subordinado ao
propó sito mais primá rio da oraçã o interior de abrir uma porta dentro
de nossa alma para uma uniã o progressiva da alma com Deus. Duas
passagens substanciais de The Ascent que incluem observaçõ es
preliminares sobre a oraçã o contemplativa podem ser ú teis neste ponto
para expor o cená rio contextual da oraçã o em que uma alma se
encontrará necessitada deste ensinamento sobre a contemplaçã o. A
incapacidade de praticar a oraçã o da meditaçã o é enfatizada nestes
pará grafos. No entanto, a questã o mais crítica é a falha da alma em
compreender a necessidade de um ajuste na oraçã o neste momento. A
reaçã o comum por ignorâ ncia é fazer escolhas na oraçã o que minam a
graça e trabalhem em detrimento da alma.

Muitas pessoas espirituais, depois de terem se exercitado em


aproximar-se de Deus através de imagens, formas e meditaçõ es
pró prias para iniciantes, erram muito se nã o determinam, ousam ou
sabem desapegar-se desses métodos palpáveis aos quais estã o
acostumados. Pois Deus deseja entã o conduzi-los a graças mais
espirituais, interiores e invisíveis, removendo a gratificaçã o derivada da
meditaçã o discursiva. Eles ainda tentam manter esses métodos,
desejando percorrer o caminho da consideraçã o e da meditaçã o,
usando imagens como antes. Eles acham que devem sempre agir dessa
maneira. Esforçando-se para meditar, eles extraem pouca ou nenhuma
satisfaçã o. Em vez disso, a aridez, o cansaço e a inquietaçã o da alma
aumentam na medida em que eles se esforçam, através da meditaçã o,
por aquela antiga doçura, agora inalcançável. (AMC 2.12.6)

Outra passagem complementar desta mesma seçã o enfatiza o zelo


problemá tico que muitas vezes é demonstrado quando uma alma luta
para recuperar experiências anteriores de satisfaçã o na oraçã o
meditativa que nã o estã o mais disponíveis.

Assim, na sua luta com consideraçõ es e meditaçõ es discursivas,


perturbam a sua quietude. Eles ficam cheios de aridez e provaçõ es por
causa dos esforços para obter satisfaçã o por meios que nã o sã o mais
adequados. Podemos dizer que quanto mais intensos forem os seus
esforços, menor será o seu ganho. Quanto mais persistem na meditaçã o,
pior se torna o seu estado, porque arrastam a alma para mais longe da
paz espiritual. Assemelham-se a quem abandona o maior pelo menor,
volta atrá s num caminho já percorrido e quer refazer o que já está feito.
(AMC 2.12.7)

Se nos voltarmos, finalmente, para algumas passagens paralelas de A


Noite Escura , encontraremos uma nuance diferente na descriçã o da
frustraçã o da alma. Sã o Joã o da Cruz sonda aqui com mais força a
necessidade de uma purificaçã o. A satisfaçã o que a meditaçã o
proporcionava, e que agora está dolorosamente ausente, pode ter
alimentado um certo egoísmo na oraçã o. Deus começa a afastar a alma
de uma forma “humilde” de oraçã o que, até certo ponto, estava repleta
de tendências sutis de auto-absorçã o. A oraçã o meditativa pode ter se
tornado, com o tempo, um esforço para chegar a experiências
agradáveis para si mesmo. Agora Deus começa a retirar esse egoísmo
da oraçã o, deixando a alma insatisfeita. Na visã o de Sã o Joã o da Cruz,
uma açã o direta de Deus, embora oculta e secreta, está implicitamente
presente nas lutas que a alma enfrenta neste momento. Estas nã o sã o
principalmente lutas com uma incapacidade pessoal para orar ou um
colapso na vida espiritual geral. Pelo contrá rio, Deus está secretamente
trabalhando esvaziando a alma em oraçã o silenciosa em prol de um
maior encontro de fé consigo mesmo. A ênfase na seguinte passagem de
A Noite Escura está no papel vigilante e supervisor de Deus no período
de transiçã o para a oraçã o contemplativa. As provaçõ es daquele tempo
nã o pretendem impedir a oraçã o com barreiras intransponíveis, mas
conduzi-la a uma nova profundidade. As palavras desta passagem de
Sã o Joã o da Cruz começam com um comentá rio contundente sobre a
oraçã o meditativa. Nã o é que ele rejeite esta prá tica; tem o seu lugar no
período formativo da vida espiritual. Mas ele insiste que é um tipo de
oraçã o que deve ser abandonada com o advento das graças
contemplativas.

Visto que a conduta desses iniciantes no caminho de Deus é humilde e


nã o muito distante do amor ao prazer e a si mesmo, como explicamos,
Deus deseja retirá -los dessa maneira vil de amar e conduzi-los a um
grau mais elevado de amor divino. amor. E deseja libertá -los do humilde
exercício dos sentidos e da meditaçã o discursiva, pela qual o procuram
de forma tã o inadequada e com tantas dificuldades, e conduzi-los ao
exercício do espírito, no qual se tornam capazes de uma comunhã o com
Deus mais abundante e mais livre de imperfeiçõ es. (DN 1.8.3)

E num comentá rio ainda mais descritivo da mesma secçã o da


dolorosa luta na oraçã o neste momento de transiçã o, Sã o Joã o da Cruz
expõ e a perturbaçã o de uma alma em nã o saber por que a oraçã o agora
se tornou uma prova e uma reversã o do anterior. experiência em
oraçã o. Estes comentá rios preliminares, amplos em si mesmos, sã o, no
entanto, simplesmente a preparaçã o para examinar o que uma alma
deve fazer ao responder ao cará ter incomum da graça divina neste
momento, que abordaremos no pró ximo capítulo:

Conseqü entemente, é no momento em que realizam seus exercícios


espirituais com deleite e satisfaçã o, quando, em sua opiniã o, o sol do
favor divino brilha mais intensamente sobre eles, que Deus obscurece
toda essa luz e fecha a porta e a fonte da doce á gua espiritual eles
provavam quantas vezes e por quanto tempo desejassem. . . . Deus
agora os deixa em tal escuridã o que eles nã o sabem que caminho tomar
em suas imaginaçõ es discursivas. Eles nã o conseguem avançar um
passo na meditaçã o, como costumavam fazer, agora que as faculdades
dos sentidos interiores estã o absorvidas nesta noite. Ele os deixa em tal
secura que eles nã o apenas deixam de receber satisfaçã o e prazer de
seus exercícios e obras espirituais, como faziam anteriormente, mas
também consideram esses exercícios desagradáveis e amargos. . . . Esta
mudança é uma surpresa para eles porque tudo parece funcionar ao
contrá rio. (DN 1.8.3)

Uma ú ltima nota de interesse podem ser as declaraçõ es que Sã o Joã o


da Cruz faz a respeito do cronograma, por assim dizer, para a iniciaçã o
da alma nas graças contemplativas. Para algumas pessoas, o
pensamento pode ser que esta é uma graça rara, um estado privilegiado
de oraçã o apenas para os mais santos. Os comentá rios de Sã o Joã o da
Cruz deixam claro que as graças contemplativas sã o uma progressã o
ordiná ria na vida de uma alma sinceramente generosa com Deus. “Deus
faz isso depois que os iniciantes se exercitaram por um tempo no
caminho da virtude e perseveraram na meditaçã o e na oraçã o” (DN
1.8.3; grifo nosso). O principal requisito para ultrapassar este limiar na
oraçã o é o esforço para agradar a Deus em obediência à sua vontade e
uma relutâ ncia em ofendê-lo deliberadamente. Quando as almas se
entregam a Deus e à sua vontade e adquiriram, até certo ponto, um
verdadeiro espírito sacrificial, nã o é surpreendente que Deus se
aproxime. Quando levamos o Evangelho a sério, abraçamos algum
desapego do mundo e dos seus prazeres, e procuramos perder-nos em
açõ es generosas para com os outros, nã o é de admirar que Deus seja
generoso connosco. A maneira como ele se aproxima de uma alma,
como estamos vendo, será inesperada, inicialmente mais cheia de
provaçõ es do que de aparente favor, mas isso é outra questã o. É
importante sublinhar que, segundo o ensinamento de Sã o Joã o da Cruz,
a graça da contemplaçã o pode esperar-nos, desde que amemos
sinceramente o Senhor e demonstremos este amor na acçã o. A religiosa
fiel no cumprimento dos seus votos; o seminarista para o sacerdó cio
leva a sério a oraçã o, o estudo e a virtude; a pessoa casada, devota e
sacrificial no amor ao cô njuge e à família: estas almas sã o candidatas ao
início da oraçã o contemplativa, se se entregarem a uma prá tica
comprometida da oraçã o silenciosa. Sem alguma dedicaçã o à oraçã o
silenciosa, é claro, nã o haverá oraçã o contemplativa. Mas pode ser uma
possibilidade mais disponível do que normalmente se pensa. A
descriçã o que se segue de The Dark Night torna evidente esta verdade.

Quando Deus vê que eles cresceram um pouco, ele os afasta do doce


peito para que se fortaleçam, deixa de lado os panos e os tira de seus
braços para que se acostumem a andar sozinhos. . . . Isso geralmente
acontece com os iniciantes recolhidos mais cedo do que com outros,
uma vez que eles estã o mais livres de ocasiõ es de retrocesso e
reformam mais rapidamente seus apetites pelas coisas mundanas. Uma
reforma dos apetites é a exigência para entrar na noite feliz dos
sentidos [oraçã o contemplativa inicial]. Normalmente nã o passa muito
tempo apó s os está gios iniciais de sua vida espiritual antes que os
iniciantes comecem a entrar nesta noite de sentido [oraçã o
contemplativa inicial]. E a maioria entra, porque é comum vê-los sofrer
essas aridez. . . . Poderíamos citar numerosas passagens da Sagrada
Escritura, pois sendo esta purgaçã o sensorial [oraçã o contemplativa
inicial] tã o habitual, encontramos muitas referências a ela por toda
parte, especialmente nos Salmos e nos Profetas. Mas nã o quero perder
tempo citando-os, porque a prevalência da experiência desta noite
deveria ser suficiente. (DN 1.8.3, 4, 5)

Todas as passagens que referimos neste capítulo sã o declaraçõ es


preparató rias de Sã o Joã o da Cruz antes de mergulhar de forma mais
concentrada no tema da contemplaçã o. É hora agora, neste pró ximo
capítulo, de examinar mais atentamente as instruçõ es magistrais deste
santo sobre a contemplaçã o - começando com os sintomas das graças
contemplativas iniciais, depois nos capítulos subsequentes abordando a
conduta necessá ria para a alma na oraçã o contemplativa e, finalmente,
expondo mais profundamente a conduta adequada. compreensã o da
purificaçã o do intelecto e da vontade na oraçã o contemplativa.
9
Os sinais incipientes da graça da contemplaçã o

Voltamos agora a nossa atençã o para uma das contribuiçõ es mais


importantes para a espiritualidade nos escritos de Sã o Joã o da Cruz.
Isto diz respeito aos sinais que indicam a necessidade de interromper a
prá tica da meditaçã o discursiva e passar para uma oraçã o de
contemplaçã o. Duas coisas podem ser enfatizadas antes de fornecer um
tratamento extenso desses sinais. Uma é que a prá tica de meditaçã o da
alma como método diá rio de oraçã o é presumida neste ensinamento.
Uma pessoa tem um compromisso regular com a oraçã o silenciosa e
emprega algum método de consideraçã o reflexiva sobre os Evangelhos
ou outras partes das Escrituras, conforme mencionado anteriormente.
Os sinais que Sã o Joã o da Cruz identificará nã o fazem sentido senã o
como prova e luta que entram na oraçã o da meditaçã o. Nã o há aqui
nenhum incentivo para renunciar ao esforço preliminar da meditaçã o,
como se alguém pudesse simplesmente entrar num relacionamento
mais agraciado e íntimo com Deus, saltando à frente na oraçã o
contemplativa como um método preferido de oraçã o. As etapas
preliminares devem ser observadas. É indispensável um período
propedêutico para aprender a orar reflexivamente em silêncio. Temos
que aprender a pensar em nosso Senhor e nos mistérios da fé para
podermos entrar em um amor mais profundo por nosso Deus. Este
esforço, por sua vez, deve ser acompanhado por uma busca séria pela
virtude e pela fidelidade à vontade de Deus. Uma vida sem uma clara
dimensã o sacrificial nã o deve esperar graças da contemplaçã o na vida
interior de oraçã o.

O segundo ponto importante a salientar é a delicadeza do


discernimento e o momento adequado desta mudança de um método
de oraçã o para um estado diferente de oraçã o. Sã o Joã o da Cruz insiste
para que uma alma nã o corra prematuramente de uma para outra; nem,
pelo contrá rio, atrasar e esperar hesitantemente quando os sinais se
tornarem evidentes. Como ele escreve: “No momento oportuno, deve-se
abandonar esta meditaçã o imaginativa, para que a jornada para Deus
nã o seja prejudicada, mas, para que nã o haja regressã o, nã o se deve
abandoná -la antes do tempo devido” (AMC 2.13.1). ). Uma ú ltima
observaçã o introdutó ria: Costuma-se ouvir que Sã o Joã o da Cruz
apresenta três sinais que indicam a necessidade desta transiçã o para a
contemplaçã o. Na verdade, ele tem dois tratamentos explícitos sobre o
assunto – no livro 2 de A Subida do Monte Carmelo e no livro 1 de A
Noite Escura – cada um oferecendo três sinais, mas nã o os mesmos em
cada caso. Combinando as duas seçõ es, podemos realmente falar de
cinco sinais, ponto nunca mencionado, ao que parece, em comentá rios
sobre o assunto. Todos estes sinais devem ser “marcados” e presentes
até certo ponto para garantir que o abandono da oraçã o meditativa em
prol da contemplaçã o na oraçã o seja conduzido pela graça.

O primeiro sinal identificado no tratamento de A Subida do Monte


Carmelo é a incapacidade de fazer uma meditaçã o discursiva com
qualquer satisfaçã o, uma mudança marcante em relaçã o à experiência
anterior de reflexã o meditativa na oraçã o silenciosa. Esta incapacidade
de fazer o que foi feito com bastante facilidade e prazer até entã o é
naturalmente uma causa de perturbaçã o para a alma. A frustraçã o que
começa a ocorrer na meditaçã o logo se torna uma condiçã o constante
na oraçã o, apesar dos esforços para superá -la. A prova também
transborda em sentimentos e talvez se torne mais perceptível aí: “A
secura é agora o resultado da fixaçã o dos sentidos [a imaginaçã o] em
assuntos que antes proporcionavam satisfaçã o” (AMC 2.13.2). A aridez
aguda e persistente que se segue é um sinal de que esta atividade de
meditaçã o nã o é mais lucrativa. Até certo ponto, a gratificaçã o
normalmente acompanha a atividade agraciada, como comenta Sã o
Joã o da Cruz: “Isso está de acordo com o que os filó sofos sustentam:
Quod sapit, nutrit (O que é saboroso nutre e engorda)” (AMC 2.14.1). É
uma observaçã o interessante que pode levantar uma objeçã o. Nã o se
pode dizer à s vezes o contrá rio? Acontece também que o que
representa dificuldade é muitas vezes um meio usado por Deus para
avançar uma alma na graça. Mas neste contexto, com a perda de
qualquer fecundidade satisfató ria da meditaçã o e sem qualquer
mudança ao longo do tempo, o princípio mantém-se verdadeiro como
um sinal de que é indicado um ajustamento na oraçã o. Sem nenhuma
satisfaçã o obtida com a meditaçã o, a graça da oraçã o parece estar em
outro lugar. Uma passagem de The Dark Night descreve vividamente a
experiência da meditaçã o como um esforço frustrante e fú til neste
momento:

Eles entã o ficam cansados e se esforçam, como era seu costume, para
concentrar suas faculdades com alguma satisfaçã o em um assunto de
meditaçã o, e pensam que se nã o fizerem isso e nã o sentirem que estã o
trabalhando, nã o estarã o fazendo nada. Este esforço deles é
acompanhado por uma relutâ ncia e repugnâ ncia interiores por parte da
alma, pois teria prazer em permanecer naquela quietude e ociosidade
sem trabalhar com as faculdades. Conseqü entemente, prejudicam a
obra de Deus e nã o lucram por conta pró pria. Na busca pelo espírito,
perdem o espírito que era a fonte da sua tranquilidade e paz. Sã o como
quem abandona o que já foi feito para fazer de novo, ou como quem sai
de uma cidade para voltar a entrar nela, ou como um caçador que
abandona a presa para voltar a caçar. É inú til, entã o, que a alma tente
meditar porque nã o aproveitará mais este exercício. (DN 1.10.1)

Em The Dark Night , este sinal de incapacidade de meditar é o


terceiro da série; é o ú nico sinal que se sobrepõ e em ambos os tratados.
No tratamento de A Noite Escura , o sinal é descrito como uma
“impotência, apesar dos esforços, para meditar e fazer uso da
imaginaçã o, do sentido interior, como era costume anterior” (DN 1.9.8).
Sã o Joã o da Cruz explica que uma forma diferente de comunicaçã o de
Deus começa a acontecer na oraçã o. Assim, a incapacidade de meditar
nã o é um sintoma de retrocesso ou de perda do foco adequado na
oraçã o, o que a frustraçã o pode parecer demonstrar. Anteriormente,
Deus usava a meditaçã o como meio de ensinar sobre si mesmo, mas o
fazia de uma maneira um tanto desligada de um contato mais pessoal
consigo mesmo. A reconstituiçã o imaginativa de cenas do Evangelho,
embora à s vezes vívida e desperta os sentimentos, nã o é equivalente ao
imediatismo do contato pessoal real com Deus. A reflexã o discursiva,
embora capaz de um pensamento perspicaz, também nã o equivale ao
encontro do pró prio Deus na sua infinidade de amor. Em vez disso,
neste momento de transiçã o para a graça da contemplaçã o, uma
espécie de experiência negativa na incapacidade de reflexã o discursiva
começa a ser constante na oraçã o meditativa. As seguintes palavras de
A Noite Escura transmitem algum aspecto deste sintoma inicial em
palavras que precisarã o de mais comentá rios no devido tempo: “[Deus]
começa a comunicar-se através do espírito puro por um ato de simples
contemplaçã o em que nã o há sucessã o discursiva de pensamento. Os
sentidos exteriores e interiores da parte inferior da alma nã o podem
atingir esta contemplaçã o. Como resultado, o poder imaginativo e a
fantasia nã o podem mais repousar em qualquer consideraçã o ou
encontrar apoio nela” (DN 1.9.8).

O segundo sinal listado em A Subida do Monte Carmelo é mencionado


apenas nesta obra, e nã o em A Noite Escura . Este sinal pode ser melhor
entendido como relacionado à dolorosa incapacidade de meditar em
oraçã o silenciosa. Aqui Sã o Joã o da Cruz escreve sobre uma consciência
de aversã o ou relutâ ncia em direcionar a imaginaçã o com concentraçã o
fixa para assuntos específicos para consideraçã o espiritual. Contudo,
nã o é só isso que está acontecendo. Da mesma forma, a imaginaçã o nã o
mostra nenhum desejo de insistir em preocupaçõ es temporais que
possam substituir, de forma distraída, a incapacidade de focar um
assunto espiritual. A imaginaçã o parece sofrer um enrijecimento geral
de seu funcionamento normal, pelo menos no momento da oraçã o. É
visivelmente incapaz, na oraçã o, de assumir interesses espirituais como
fazia anteriormente. Ao mesmo tempo pode haver um fluxo de
distraçõ es perturbando a mente, mas nenhuma delas chama a atençã o
como um interesse desejável. Essas distraçõ es sã o irritaçõ es para a
mente. Sã o Joã o da Cruz sublinha em A Subida ao Monte Carmelo que o
segundo sinal da incapacidade de fixar a imaginaçã o nos assuntos é
importante para confirmar a fiabilidade do primeiro sinal, a
incapacidade de meditar. Alguém pode ser incapaz de meditar por
causa da “melancolia” ou porque uma abordagem negligente entrou na
vida geral e levou a uma certa perda de interesse pela oraçã o. Nesse
caso, as distraçõ es podem ser uma fuga do esforço da oraçã o. A mente
entã o os persegue como uma busca atraente. Uma compreensã o
realista da natureza humana está presente no seguinte comentá rio:
“Pode ser que a incapacidade de imaginar e meditar resulte da
dissipaçã o e da falta de diligência. O segundo sinal, a relutâ ncia e
ausência de desejo de pensar em coisas estranhas, deve estar presente.
Quando essa incapacidade de concentrar a imaginaçã o e as faculdades
dos sentidos nas coisas de Deus resulta da dissipaçã o e da tibieza, há
um desejo de pensar em outras coisas e uma inclinaçã o para abandonar
a meditaçã o” (AMC 2.13.6).

Voltamo-nos agora para A Noite Escura para um terceiro sinal de


graças contemplativas iniciais. Neste tratado, é o primeiro de uma série
de três sinais. Aqui Sã o Joã o da Cruz centra-se no importante sintoma
de uma aguda aridez de sentimentos na oraçã o e fora da oraçã o. Uma
descriçã o imediata do texto pode ser ú til: “Visto que essas almas nã o
obtêm satisfaçã o ou consolaçã o das coisas de Deus, também nã o obtêm
nenhuma das criaturas. Visto que Deus coloca uma alma nesta noite
escura para secar e purgar seu apetite sensorial, ele nã o permite que
ela encontre doçura ou deleite em nada” (DN 1.9.2). É um sinal
significativo, nã o apenas porque traz uma séria prova à oraçã o. Nesse
caso, pode exigir apenas um esforço de perseverança. Pelo contrá rio, e
mais importante ainda, o enfraquecimento dos sentimentos como apoio
na oraçã o é sintomá tico de uma obra da graça que leva a uma maior
perda de si mesmo na oraçã o e em toda a vida. Sem nenhuma satisfaçã o
ou prazer sentido de forma tangível na oraçã o, a alma deveria voltar-se
em seu vazio mais intensamente para buscar somente a Deus. Nosso
Senhor está começando a mostrar a uma alma de maneira mais
profunda que ela pertence exclusivamente a ele. Infelizmente,
geralmente leva tempo para que esse insight ganhe força e provoque
um reconhecimento. A reaçã o inicial mais comum é um foco
preocupado na dor da aridez interior. Sã o Joã o da Cruz deixa claro
também que a falta de satisfaçã o nas coisas de Deus se estende também
a uma á rida ausência de consolaçã o nas coisas fora da oraçã o. Agora
parece que no trabalho e nas relaçõ es humanas nada atrai tã o
fortemente a alma; a vida emocional parece seca e amortecida de uma
forma geral.

A constâ ncia e a prevalência da aridez neste sentido geral sã o uma


primeira amostra do que pode eventualmente se tornar um desapego
abençoado de tudo o que nã o é Deus. Mas algumas graças levam mais
tempo para dar frutos. Este sinal nã o é uma questã o de uma pessoa
dividida entre desejos conflitantes, ambos com apelo atraente. Em vez
disso, a alma é simplesmente oprimida por um vazio geral de
sentimentos. Um diagnó stico psicoló gico desta condiçã o de vazio
afetivo provavelmente a confundirá com alguma forma de depressã o
leve. Mas, na verdade, as energias da pessoa para Deus e para fazer o
bem nã o diminuem em nada, o que em si é uma indicaçã o
impressionante da graça em açã o. O á rido vazio de sentimento nã o se
traduz numa falta de doaçã o virtuosa, e é claro que é importante
lembrar isto. O problema é simplesmente uma dolorosa ausência de
sentimento em todas as coisas que sã o buscadas por causa de Deus. Em
A Noite Escura , Sã o Joã o da Cruz fornece uma explicaçã o ú til de por que
os sentimentos ficam tã o secos e vazios na oraçã o neste momento. A
graça da contemplaçã o é um movimento para um encontro mais
profundo com Deus, abaixo da experiência superficial do sentimento.
Na passagem seguinte, o termo “sentido” ou “sensorial”, em contraste
com “espírito”, refere-se a sentimentos na oraçã o.

A razã o desta aridez é que Deus transfere os seus bens e a sua força do
sentido para o espírito. Como a parte sensorial da alma é incapaz dos
bens do espírito, ela permanece privada, seca e vazia. Assim, enquanto
o espírito prova, a carne nã o prova absolutamente nada e torna-se fraca
no seu trabalho. Mas através deste alimento o espírito fica mais forte e
mais alerta, e torna-se mais solícito do que antes em nã o falhar com
Deus. Se no início a alma nã o experimenta esse sabor e deleite
espiritual, mas sim secura e desgosto, a razã o é a novidade envolvida
nesta troca. (DN 1.9.4)

Um quarto sinal, que é o segundo dos três tratados em A Noite Escura


, é um doloroso autoquestionamento na pessoa devido à experiência de
perder a satisfaçã o nas coisas de Deus. A alma pensa que deve estar em
reversã o e em declínio espiritual: “A alma pensa que nã o está servindo
a Deus, mas sim voltando atrá s, porque tem consciência desse desgosto
pelas coisas de Deus” (DN 1.9.3). Em outras palavras, uma alma está
convencida de que deve ser culpada pela condiçã o em que se encontra
agora. A aversã o sentida pelas suas prá ticas habituais na oraçã o parece
confirmar a existência de alguma falha pessoal e infidelidade como
causa deste estado. A ú nica razã o possível para a dolorosa experiência
na oraçã o deve ser alguma falha moral ou falta de fidelidade. É
necessá rio, pensa a alma, descobri-lo e erradicá -lo. Quanto mais
ignorante for a alma sobre o que se passa na graça, maior será a
probabilidade de sofrer este sinal com alguma intensidade.

Este sinal é interessante em parte porque em muitas almas leva a um


escrupulosidade por um tempo. A introspecçã o no
autoquestionamento, a desconfiança de si mesmo e da genuinidade dos
motivos pessoais é uma afliçã o comum neste momento. Lembremo-nos
de que estas sã o pessoas de grande virtude se estiverem
experimentando esses sintomas contemplativos. Agora eles começam a
restringir seu auto-exame, tentando erradicar tudo em suas vidas que
possa apresentar imperfeiçã o, causando-lhes tristeza com essa atençã o
autopreocupada. Poderíamos comentar também que enquanto os três
sinais anteriores manifestam fortemente os seus sintomas em todos os
casos, este quarto sinal parece exibir uma força proporcional à
sensibilidade de uma pessoa. Se uma pessoa ignora o que está
acontecendo na graça e, ao mesmo tempo, é muito sensível à sua aridez,
a tendência de culpar a si mesma pelo que parece ser uma queda nas
relaçõ es com Deus na oraçã o é ampliada. Ao discutir este sinal, Sã o Joã o
da Cruz esclarece também a clara distinçã o entre uma frouxidã o morna
que esvazia a consolaçã o da alma e a perda de afetividade bem
diferente que é um sinal de entrada na graça da contemplaçã o. Sã o
estados de alma muito diferentes, embora os sintomas de aridez e
aversã o na oraçã o possam parecer semelhantes. Como escreve Sã o Joã o
da Cruz:

É ó bvio que esta aversã o e esta secura nã o sã o fruto da frouxidã o e da


tibieza, pois as pessoas mornas nã o se importam muito com as coisas
de Deus nem sã o interiormente solícitas com elas. Há ,
conseqü entemente, uma diferença notável entre secura e mornidã o. Os
mornos sã o muito relaxados e negligentes em sua vontade e espírito, e
nã o têm nenhuma preocupaçã o em servir a Deus. Aqueles que sofrem
da secura purgativa sã o normalmente solícitos, preocupados e
angustiados por nã o servirem a Deus. (DN 1.9.3)

O ú ltimo ou quinto sinal, identificado apenas em A Subida do Monte


Carmelo e o terceiro sinal dessa série, é o mais significativo e entrará na
discussã o mais longa de Sã o Joã o da Cruz sobre a contemplaçã o. É o
ú nico entre esses sinais por nã o ter uma dimensã o dolorosa. Os outros
quatro sinais evidenciam que a oraçã o da meditaçã o nã o funciona mais
adequadamente, e o fazem com alguma frustraçã o dolorosa ou
perturbaçã o para a alma. Quando discernidos como presentes juntos,
estes quatro sinais demonstram a necessidade de ir além daquilo que
nã o funciona mais na oraçã o. Eles precisam ser discernidos antes de
responder ao quinto sinal, que apontará a alma na direçã o de um novo
estado de oraçã o. Este quinto sinal indica, sem que a alma o perceba
normalmente, um desejo e uma inclinaçã o para entrar na graça da
contemplaçã o. Por essa razã o, é apropriado que o quinto sinal pertença
ao final desta série e seja confirmado somente depois que a alma tenha
sofrido até certo ponto os sinais anteriores.
Antes de examinar este sinal, um comentá rio pode ser ú til. Uma
mudança deliberada para uma forma diferente de orar nã o deveria
ocorrer, segundo Sã o Joã o da Cruz, simplesmente porque se sente uma
inclinaçã o para desfrutar de uma oraçã o mais tranquila. A possibilidade
de uma mudança prematura é a razã o pela qual uma série de sinais
devem ser apresentados. Sã o Joã o da Cruz, como já dissemos, entende a
graça da contemplaçã o como um passo de transiçã o apó s um período
de tempo comprometido fazendo uso da oraçã o meditativa, geralmente
pelo menos por um ano nas melhores almas. No entanto, este ú ltimo
sinal é extremamente importante por si só quando é evidente
juntamente com os outros quatro sinais. Deus usa os sintomas
presentes neste quinto sinal para atrair a si uma alma de forma mais
direta e pessoal na oraçã o. Ao mesmo tempo, um comentá rio adicional
também é apropriado. O ensinamento de Sã o Joã o da Cruz a respeito
deste sinal nã o tem como objetivo principal propor um novo método de
oraçã o. Em vez disso, ele pretende, em seu tratamento extenso, extrair
as repercussõ es mais profundas para a oraçã o que sã o primeiramente
indicadas por uma inclinaçã o delicada sentida no silêncio da oraçã o,
conforme descrito abaixo neste sinal. Quase imperceptível à primeira
vista, esta inclinaçã o para uma maior quietude na oraçã o pode levar,
com o tempo, a relaçõ es muito mais profundas com Deus. Responder a
esta inclinaçã o é de fundamental importâ ncia nos primeiros está gios da
contemplaçã o. Uma resposta adequada também abre o caminho para
um avanço posterior na graça da contemplaçã o. Segue-se a breve
declaraçã o com que Sã o Joã o da Cruz introduz este sinal em A Subida do
Monte Carmelo . No decorrer do nosso exame, esta descriçã o inicial terá
que ser ampliada e ampliada longamente. Mas mesmo aqui Sã o Joã o da
Cruz já fala da porta de entrada na contemplaçã o, o que implica uma
necessá ria entrega do espírito interior a uma nova experiência de
oraçã o.

O terceiro e mais seguro sinal é que a pessoa gosta de permanecer


sozinha na consciência amorosa de Deus, sem consideraçõ es
particulares, em paz interior, sossego e repouso, e sem os atos e
exercícios (pelo menos discursivos, aqueles em que se avança de um
ponto a outro). ponto) do intelecto, memó ria e vontade. Tal pessoa
prefere permanecer apenas na consciência e conhecimento amoroso
geral que mencionamos, sem qualquer conhecimento ou compreensã o
particular. (AMC 2.13.4)

No ú ltimo capítulo, numa referência anterior de A Ascensão (AMC


2.12.6-7) à transiçã o da meditaçã o para um estado de contemplaçã o, já
foi mencionada a incerteza que acompanha este sinal. Pode ser difícil
para as pessoas responderem à graça presente neste sinal porque
parece indicar a necessidade de abandonar uma determinada prá tica
de oraçã o sem que a pessoa saiba muito bem o que fazer a seguir. É
mais fá cil comentar do ponto de vista de um praticante conhecedor da
oraçã o, como é Sã o Joã o da Cruz, do que para um contemplativo neó fito
discernir corretamente uma nova abordagem a ser adotada na oraçã o
silenciosa, sem uma direçã o clara. Mesmo quando recebe bons
conselhos para fazê-lo, a alma tem que descobrir por si mesma que
seguir a inclinaçã o que sente para permanecer quieta, sem a busca do
esforço meditativo, é um limiar que deve cruzar sem ansiedade. Tem
que saber por si mesmo que reduzir a sua actividade mental, na
verdade, deixá -la desvanecer-se de um esforço consciente na oraçã o e,
em vez disso, permitir-se permanecer só e em silêncio com o Senhor,
nã o é uma traiçã o à oraçã o.

Como veremos, a instruçã o implícita que Sã o Joã o da Cruz repete de


vá rias maneiras é a necessidade de a alma ir onde, no fundo do desejo,
ela deseja ir. Resistir à inclinaçã o de permanecer quieto e a só s com
Deus apenas frustra a alma. E, no entanto, a relutâ ncia em avançar na
graça neste momento é comum. Estas sã o almas virtuosas e, portanto,
desejosas de fazer as coisas da maneira correta, de acordo com as
orientaçõ es, o treinamento e a obediência. No contexto da época de Sã o
Joã o da Cruz, foi-lhes ensinado um método de oraçã o meditativa para
praticar e, na verdade, para se esforçarem para melhorar na sua prá tica.
E muitas vezes pensam que nã o é correto renunciar à meditaçã o,
apesar da sua inclinaçã o para fazê-lo. Geralmente hesitam em entrar no
que pode parecer um estado interior de inatividade. A seguinte
passagem daquela seçã o anterior de The Ascent captura algo do dilema
e algo da nova experiência que está começando a se manifestar. A alma
muitas vezes nã o sabe o que fazer com o que “sente” nesta inclinaçã o
delicada e mais profunda. Uma resposta parcial ao dilema também é
introduzida na passagem:

Já nã o provarã o aquela comida sensata, como dissemos, mas


desfrutarã o de outra comida, mais delicada, interior e espiritual. Nã o
trabalhando com a imaginaçã o eles adquirirã o esse alimento espiritual,
mas pacificando a alma, deixando-a em sua quietude e repouso mais
espirituais. Quanto mais espirituais eles sã o, mais eles param de tentar
realizar atos particulares com suas faculdades, pois ficam mais absortos
em um ato geral e puro. Uma vez que as faculdades chegam ao fim da
jornada, elas param de funcionar, assim como deixamos de caminhar
quando chegamos ao fim da nossa jornada. Se tudo consistisse em ir,
nunca se chegaria; e se em todos os lugares encontrá ssemos meios,
quando e onde poderíamos desfrutar do fim e da meta? (AMC 2.12.6)

O grande desafio, ironicamente, é combater uma resistência inicial à


graciosa atração da contemplaçã o. A relutâ ncia das almas em seguir
uma inclinaçã o delicada sentida obscuramente dentro delas pode ser
bastante forte. Eles hesitam, talvez escrupulosamente, em entrar num
silêncio interior diferente de qualquer silêncio anteriormente
experimentado na oraçã o. A hesitaçã o é compreensível, porque esta
entrada numa espécie de quietude inativa pareceria contrá ria à
atividade que ostensivamente os obriga se um período de meditaçã o for
programado na vida de oraçã o. Muita coisa depende de uma alma ser
livre e aberta a um convite sutil da graça. É ser atraído para uma
quietude mais profunda, nã o apenas de silêncio externo e ausência de
ruído, mas para uma pureza de quietude interior na qual Deus atrai
para si o espírito interior da alma. Esta quietude interior é um lugar de
descanso para o qual a alma é atraída e onde deseja entrar, mas a
pessoa pode ainda nã o reconhecer tal “lugar” como um verdadeiro
destino para a oraçã o. Como escreve Sã o Joã o da Cruz: “Como estes
indivíduos nã o compreendem o mistério desta nova experiência,
imaginam-se ociosos e sem fazer nada” (AMC 2.12.7).

E assim a reaçã o inicial é muitas vezes pensar que está ocorrendo


uma tentaçã o à ociosidade. Como resultado, é comum ver nas almas
uma tentativa forçada de exercer algum esforço extenuante na reflexã o
meditativa, o que apenas agita a alma. Nã o é a vontade de Deus que eles
pratiquem atividades meditativas agora, mas eles se esforçam para
fazê-lo de qualquer maneira. Na descriçã o de Sã o Joã o da Cruz, essas
almas chegaram a uma meta sem perceberem a sua chegada. Ao tentar
meditar ou refletir em oraçã o, eles agem de uma maneira que vai contra
seus pró prios interesses. O apego à atividade meditativa é
contraproducente, resultando na maioria das vezes em uma mente
distraída. Em vez disso, o que deveriam fazer é ceder ao delicado desejo
que sentem de permanecer quietos e sozinhos na presença de Deus.
Deveriam permanecer sem trabalho de pensamento, desfrutando de
uma paz sutil e de um anseio por Deus. O esforço para forçar a reflexã o
activa traz frustraçã o; é um obstá culo à sua oraçã o. No entanto,
acontece frequentemente que as almas nã o reconhecem as graças reais
que actuam sobre os seus desejos e atracçõ es neste momento. Eles
colocam suas cabeças na pedra de amolar, por assim dizer, e tentam
continuar fazendo o que lhes é familiar em sua conduta de oraçã o.
Como escreve Sã o Joã o da Cruz:

É triste ver muitos perturbarem a sua alma quando esta deseja


permanecer nesta calma e repouso de quietude interior, onde está
repleta da paz e do revigoramento de Deus. Desejando fazê-lo refazer
os seus passos e afastar-se da meta em que agora repousa, eles atraem
a sua alma para uma atividade mais exterior, para as consideraçõ es, que
sã o os meios. Eles fazem isso com forte repugnâ ncia e relutâ ncia na
alma. A alma quer permanecer naquela paz que ela nã o entende, como
se estivesse no seu devido lugar. As pessoas sofrem se, depois de
trabalharem para chegar ao seu local de descanso, sã o forçadas a
regressar ao seu trabalho. (AMC 2.12.7)

Para que as graças contemplativas sejam recebidas frutuosamente, a


atraçã o para permanecer nesta condiçã o vazia de quietude interior
deve ser percebida como um convite de Deus que se eleva de uma
regiã o mais profunda do espírito interior. A alma deve perceber que
entrar nessa quietude inativa nã o é uma tentaçã o para uma escolha
infiel que de alguma forma ameaça a oraçã o. Na verdade, o efeito
primá rio da graça contemplativa nã o é incapacitar as reflexõ es. Pelo
contrá rio, e muito mais significativamente, torna possível um encontro
diferente com Deus. A tranquilidade interior convida-nos a entrar num
ambiente de profundidade na alma para um novo contacto com a
presença do Senhor. A alma deve atravessar esta fronteira com uma
certa confiança cega em Deus. Um esforço consciente de atividade na
oraçã o deve dar lugar a uma receptividade mais profunda, atraindo a
alma para uma açã o divina sutil dentro dos recessos da alma. Cruzar
esse limiar em direçã o a Deus acontece através da entrega à
tranquilidade pacífica e por um simples desejo de amar dentro da alma.
E, o que é mais importante, isso nã o acontece sem alguma cooperaçã o
da alma. É necessá ria uma escolha definitiva de abster-se de atividade
mental. Da mesma forma, é necessá ria uma escolha para não resistir à
inclinaçã o de permanecer num silêncio silencioso e sem pensar, se essa
graça for concedida. A compreensã o de que Deus convida a esta
escolha, de que ele está misteriosamente trabalhando, pode, é claro,
ajudar uma alma. Como escreve Sã o Joã o da Cruz numa passagem
marcante de A chama viva do amor , a hesitaçã o de uma alma pode ruir
precisamente ao voltar o seu pensamento para a aparente intençã o de
Deus em tudo isto.

Custou muito a Deus trazer essas almas a este está gio, e ele valoriza
muito o seu trabalho de tê-las introduzido nesta solidã o e vazio em
relaçã o à s suas faculdades e atividades para que pudesse falar aos seus
coraçõ es, que é o que Ele sempre deseja. Visto que é ele quem agora
reina na alma com abundâ ncia de paz e calma, ele mesmo toma a
iniciativa de fazer falhar os atos naturais das faculdades, pelos quais a
alma trabalhando a noite inteira nada realizou [Lc. 5:5]; e ele alimenta o
espírito sem a atividade dos sentidos porque nem o sentido nem a sua
funçã o sã o capazes do espírito. (LF 3,54)

A questã o toda é, no entanto, muito delicada na descriçã o. O início da


contemplaçã o nã o é apenas uma deriva passiva com uma corrente
interior de graça que transporta facilmente a alma para a presença de
Deus. A alma deve aprender a entregar-se a uma atençã o serena e
amorosa e descobrir que no pró prio silêncio está escondido o mistério
de Deus. É necessá rio aprender que nada se perde quando se abandona
o pensamento ativo e reflexivo, desde que a atençã o permaneça voltada
para o mistério da presença divina. Deixar-se levar desta forma, para
que o pró prio Deus permeie a “atividade” interior da oraçã o, requer um
ajuste gradual a uma nova atraçã o sentida interiormente na alma.
Receptividade é certamente a palavra-chave do conselho. A alma deve
receber a inclinaçã o para a quietude e responder a ela com entrega,
sem procurar agarrar-se a uma experiência que possa reivindicar como
sua. Tem que confiar que Deus está misteriosamente pró ximo e
esforçar-se para ser receptivo à sua açã o oculta e atrativa. Sã o Joã o da
Cruz oferece esta descriçã o:

O conselho adequado para esses indivíduos é que aprendam a


permanecer nessa quietude com uma atençã o amorosa a Deus e nã o
prestem atençã o à imaginaçã o e ao seu trabalho. Nesta fase, como foi
dito, as faculdades estã o em repouso e nã o funcionam ativamente, mas
passivamente, recebendo o que Deus está realizando nelas. Se à s vezes
a alma põ e em funcionamento as faculdades, nã o deve empregar
esforços excessivos nem raciocínios estudados, mas deve proceder com
mansidã o de amor, movida mais por Deus do que pelas pró prias
capacidades. (AMC 2.12.8)
O ajustamento essencial a esta nova etapa da oraçã o é, portanto, de
natureza dupla. Os quatro sinais anteriores demonstram a necessidade
de abandonar a oraçã o meditativa porque ela nã o funciona mais. Se
uma alma se percebe culpada pela incapacidade de meditar, tende a
impedir e bloquear o desejo que sente delicadamente de um silêncio a
só s com Deus. Tem que lutar contra, se necessá rio, uma preocupaçã o
ansiosa de que está falhando em diligência se nã o prosseguir mais com
a oraçã o meditativa. O conselho para confiar no coraçã o e em seu
desejo mais profundo neste momento é adequado. A escolha de deixar
para trá s a meditaçã o acontece mais facilmente na medida em que a
pessoa é mais dó cil à inclinaçã o mais profunda. No entanto, permanece
o dilema sobre o que fazer agora num estado tranquilo e solitá rio, sem
pensar e imaginar nenhum assunto. Este é o segundo aspecto de um
ajuste necessá rio. Uma alma quase sempre se encontra inicialmente
num estado transitó rio de alguma confusã o. É preciso atravessar uma
ponte sem saber o que significa estar do outro lado de um silêncio sem
pensar. A recomendaçã o de abraçar um “conhecimento amoroso” de
Deus nã o é suficientemente refinada na maioria das vidas para ser
claramente identificada como um alvo de desejo. A alma pode estar
sujeita a ondas suaves de desejo intermitente e sentir uma inclinaçã o
atraindo-a. Quando abandona a meditaçã o e dá lugar ao desejo de
“permanecer só na consciência amorosa de Deus” (AMC 2.13.4),
abandonando as consideraçõ es, é possível que em breve encontre uma
nova satisfaçã o. “A paz, a tranquilidade e o repouso interiores” (AMC
2.13.4) podem agora permeá -lo gradualmente, sem qualquer
necessidade de responder com atos e exercícios. A preferência por
permanecer naquela quietude e paz pode ser sentida suavemente, sem
perceber muito bem que está sendo atraída para um amor mais
profundo por Deus. Ao mesmo tempo, muitas vezes se experimenta
uma falta de percepçã o porque também se sente uma aridez dolorosa. A
aridez pode ser forte apesar do desejo obscuro de entrar num amor
maior a Deus. Um trecho de A Noite Escura expõ e um pouco da
dificuldade desse momento de adaptaçã o. Também identifica benefícios
que advêm precisamente da dificuldade.

Os indivíduos geralmente nã o percebem esse amor no início, mas


experimentam antes a secura e o vazio de que estamos falando. Entã o,
em vez deste amor que depois se acende, eles abrigam, em meio à
secura e ao vazio de suas faculdades, um cuidado e uma solicitude
habituais por Deus, acompanhados de tristeza ou medo de nã o servi-lo.
É um sacrifício muito agradável a Deus - o de um espírito angustiado e
solícito por seu amor [Sl. 51:17]. A contemplaçã o secreta produz esta
solicitude e preocupaçã o na alma até que, depois de ter purificado um
pouco a parte sensorial de suas propensõ es naturais por meio desta
aridez, começa a acender no espírito este amor divino. Entretanto,
porém, como naquele que está em tratamento, tudo sofre nesta
purgaçã o escura e seca do apetite, e a alma, libertada de numerosas
imperfeiçõ es, adquire muitas virtudes, tornando-se assim capaz deste
amor. (DN 1.11.2)

A delicada atraçã o de permanecer neste Deus tranquilo e


simplesmente amoroso, apesar da forte aridez, é algo notável. A atraçã o
por esse amor pode ser dificilmente percebida porque nã o é sentida
com tanta força. Mas o que a alma experimenta claramente é uma
relutâ ncia em refletir ativamente com a mente. Como escreve Sã o Joã o
da Cruz em A Ascensão , a alma “prefere permanecer apenas na
consciência e no conhecimento amoroso geral. . . sem qualquer
conhecimento ou compreensã o particular” (AMC 2.13.4). A combinaçã o
de uma dolorosa ausência de sentimento e uma aversã o à meditaçã o
reflexiva é a razã o pela qual as pessoas muitas vezes nã o discernem a
graça da contemplaçã o nas suas vidas. A nova experiência é tã o
estranhamente diferente e incomparável com experiências anteriores
de fortes sentimentos de deleite encontrados na satisfaçã o meditativa,
que foi capaz de tocar as emoçõ es de forma inequívoca. Os aspectos
difíceis da contemplaçã o no seu período inicial podem parecer nã o
indicar absolutamente nada de uma nova graça. Tornar-se
sensivelmente consciente da delicada quietude e calma como um
ambiente interior de graça é destacado na seguinte passagem de The
Ascent . Mais uma vez, é necessá ria uma escolha: primeiro um desapego
e depois uma entrega à inclinaçã o interior sentida na alma:

Na verdade, no início deste estado o conhecimento amoroso é quase


imperceptível. Há duas razõ es para isso: primeiro, o conhecimento
amoroso inicialmente tende a ser extremamente sutil e delicado, quase
imperceptível; segundo, uma pessoa habituada ao exercício da
meditaçã o, que é totalmente sensata, dificilmente percebe ou sente esta
nova experiência insensível e puramente espiritual. Isto é
especialmente verdade quando, por nã o conseguir compreendê-lo, a
pessoa nã o se permite descansar nele, mas se esforça para obter outra
experiência, mais sensorial. Embora a paz interior seja mais abundante,
o indivíduo nã o deixa espaço para experimentá -la e desfrutá -la. (AMC
2.13.7)

Quanto mais uma alma, ao responder à graça contemplativa, se torna


“habituada” à calma que a atrai de dentro, mais provável é que um
“conhecimento geral e amoroso de Deus” surja dos recessos da alma.
Com o tempo, pode-se esperar que esse conhecimento amoroso
permeie a consciência da alma de forma mais distinta e mais atraente.
No entanto, parece claro que este ú ltimo sinal é, de certa forma, o mais
difícil de discernir. Os quatro sinais anteriores exibem fortes reaçõ es
negativas. Este ú ltimo sinal é sempre sutil em seu início e delicado em
sua atraçã o, e responder a ele significa responder a uma graça que pode
nã o parecer tã o garantida. Em muitos casos, pode ser que uma alma se
entregue a esta inclinaçã o sem o saber. É conduzido por Deus e se
entrega ao conhecimento calmo e amoroso sem pensar muito no que
está fazendo. Isto certamente pode ser verdade na vida de almas
simples que nã o sã o tã o analíticas e intelectuais. Como comenta Sã o
Joã o da Cruz: “É digno de nota que este conhecimento geral é à s vezes
tã o recô ndito e delicado (especialmente quando mais puro, mais
simples e mais perfeito), espiritual e interior que a alma nã o o percebe
nem o sente, embora o a alma está ocupada com isso” (AMC 2.14.8). A
ú ltima frase parece deixar claro que muitas vezes as almas entram
inicialmente nas graças da contemplaçã o sem perceberem que o fazem.
O conhecimento amoroso geral que desce sobre a alma é acompanhado
por uma profunda calma interior e atrai a alma como a fragrâ ncia de
pã o recém-assado para um homem faminto. O homem faminto
simplesmente se move na direçã o daquele pã o, sem pensar muito no
que está fazendo. E é precisamente isto que pode acontecer na oraçã o.
Quanto mais uma alma segue a inclinaçã o mais profunda para entrar
nesta calma interior e paz tranquila, mais provável é que a alma comece
a ser atraída pelo simples desejo de amar que está recebendo na graça.
O movimento em direçã o à contemplaçã o é uma resposta a esta graça:
“Quanto mais as pessoas se habituarem a esta calma, mais aumentará a
sua experiência deste conhecimento amoroso geral de Deus. Esse
conhecimento é mais agradável do que todas as outras coisas porque,
sem o trabalho da alma, proporciona paz, descanso, sabor e deleite”
(AMC 2.13.7).

Por ú ltimo, neste capítulo sobre os sinais da contemplaçã o precoce,


deveríamos ouvir a interpretaçã o que Sã o Joã o da Cruz fornece sobre a
mudança que ocorre do conhecimento de Deus normalmente recebido
na meditaçã o para o muito diferente “conhecimento amoroso” de Deus
que é o dom da contemplaçã o. Esta diferença também ilumina o
discernimento necessá rio para reconhecer o importante quinto sinal.
Se recuarmos um pouco, certamente poderemos dizer que uma ló gica
do amor está em açã o na prá tica da meditaçã o. A prá tica repetida de
olhar para Nosso Senhor enquanto ouve atentamente as suas palavras
no Evangelho pode levar a alma a um amor habitual por Ele. Mas
quando a alma se torna mais dominada pelo amor a Deus, os actos de
amor isolados e separados que podem ocorrer inconsistentemente em
vá rios momentos na oraçã o meditativa sã o susceptíveis, com o início
das graças contemplativas, de se fundirem num anseio de amor mais
contínuo. O que acabamos de dizer tem uma verdade paralela na vida
de caridade para com os outros, e isto também é um sintoma de cruzar
o limiar da contemplaçã o. Com o tempo, a pró pria alma, e nã o apenas
os atos específicos que ela realiza, pode tornar-se repleta de uma
qualidade constante de amor. É como se a chama do desejo amoroso
por Deus ardesse agora quase sem cessar. Este estado mais contínuo de
anseio por Deus e pela sua vontade é uma condiçã o essencial para a
contemplaçã o. Sã o Joã o da Cruz ensina que à s vezes Deus favorece uma
alma e a atrai para o conhecimento amoroso da contemplaçã o sem
grande necessidade de atos prévios de conhecimento e percepçã o
adquiridos através da meditaçã o. A razã o para isso, podemos supor, é
porque o amor da alma está contínua e generosamente em açã o. Se for
assim, a meditaçã o em si nem sempre é o trampolim para a
contemplaçã o. Muitas almas abrem-se à contemplaçã o porque estã o
simplesmente apaixonadas por Deus e generosas e sacrificadas em
todos os sentidos com Ele. É sempre o amor que conduz à graça da
contemplaçã o. A passagem seguinte implica que esta “colocaçã o” de
uma alma por Deus na contemplaçã o pode ocorrer precisamente
porque uma alma se distingue pelo seu amor. Como ele escreve:

Deve-se saber que o propó sito da meditaçã o discursiva sobre assuntos


divinos é a aquisiçã o de algum conhecimento e amor a Deus. Cada vez
que os indivíduos adquirem através da meditaçã o algum deste
conhecimento e amor, eles o fazem através de um ato. Muitos atos, em
qualquer á rea, gerarã o um há bito. Da mesma forma, através de muitos
atos particulares deste conhecimento amoroso, uma pessoa atinge o
ponto em que um há bito é formado na alma. Deus também costuma
efetuar esse há bito em muitas almas, colocando-as em contemplaçã o
sem esses atos como meios, ou pelo menos sem muitos deles. (AMC
2.14.2; grifo nosso)

O ensinamento nesta passagem lança mais luz sobre o discernimento


de se afastar da atividade de meditaçã o para a receptividade calma de
um conhecimento tranquilo e amoroso de Deus, conforme descrito no
quinto sinal. O conhecimento adquirido através da meditaçã o foi um
conhecimento amoroso de Deus, recebido de forma intermitente no
início, em momentos isolados, e cada vez mais uma característica
constante na oraçã o. De alguma forma, sem que a alma esteja
consciente, este conhecimento amoroso de Deus pode tornar-se um
estado habitual mais geral de amor dentro da alma. Presumivelmente,
também é levado fora da oraçã o para açõ es de sacrifício e generosidade
como forma de expressar amor a Deus. Quando a alma se volta agora
para a oraçã o, este amor por Deus, um amor direto e pessoal por ele,
está disponível para ser abraçado e nutrido com uma certa
imediatismo. Muitas vezes a alma ainda nã o percebe esta mudança na
sua pró pria condiçã o interior e continua a seguir um método familiar
de meditaçã o. Mas ao recorrer ao silêncio da oraçã o, o poder de atraçã o
do desejo de amar somente a Deus está mais intensamente presente.
Mais frequentemente agora, quando a oraçã o começa, uma alma pode
sentir, se for receptiva, que uma resposta imediata à presença de Deus
pode substituir a necessidade de procurar um pensamento ou imagem
que possa levá -la a concentrar-se em Deus. Como escreve Sã o Joã o da
Cruz:

O que a alma, portanto, foi gradualmente adquirindo através do


trabalho de meditaçã o em ideias particulares foi agora, como dissemos,
convertido em conhecimento amoroso geral habitual e substancial. Este
conhecimento nã o é distinto nem particular, como era o conhecimento
anterior. Conseqü entemente, no momento em que a oraçã o começa, a
alma, como alguém que possui um estoque de á gua, bebe
pacificamente, sem o trabalho e a necessidade de buscar a á gua através
dos canais de consideraçõ es, formas e figuras passadas. No momento
em que se recolhe na presença de Deus, entra num ato de
conhecimento geral, amoroso, pacífico e tranquilo, bebendo sabedoria,
amor e deleite. (AMC 2.14.2)

A facilidade com que a contemplaçã o pode ocorrer quando uma alma


está acostumada a aproximar-se de Deus com uma entrega mais
profunda de si mesma é evidente nesta passagem. O grande obstá culo
para a alma neste momento, por outro lado, como já foi mencionado,
reside numa abordagem excessivamente conscienciosa da oraçã o que
resiste à adaptaçã o. E num sentido real, isto envolve uma falta de
entrega a Deus. A consciência de “fazer oraçã o”, conforme ensinado no
treinamento, nã o é necessariamente uma virtude; na verdade, pode ser
uma falha que faz com que a alma relute em alterar seus há bitos. A
pessoa pode ter se acostumado durante muitos meses, à s vezes durante
anos, a preencher um tempo silencioso de oraçã o com um olhar
imaginativo sobre o Evangelho ou na busca de insights espirituais. A
familiaridade com o método treinou a pessoa a buscar satisfaçã o na
aquisiçã o de novos pensamentos ou no desfrute de alguma sensaçã o de
amar a Deus. As resoluçõ es virtuosas que podem concluir tal oraçã o
dã o ao momento da oraçã o uma sensaçã o de propó sito. Para muitas
almas, torna-se muito difícil aceitar que uma oraçã o menos ativa,
menos investigativa, uma oraçã o mais inconclusiva, mais aberta, possa
ser um avanço na oraçã o. A sugestã o de permanecer quieto parece
convidar a preguiça da inatividade à oraçã o e produzir resultados
infrutíferos. Como já mencionamos, essas almas, se recebem graças
contemplativas, sã o as pessoas fervorosas e dedicadas da vida
espiritual. Sã o pessoas que se entregam generosamente à caridade e à
vontade de Deus. Eles trabalham duro e se gastam. Caso contrá rio, a
graça da contemplaçã o nã o estaria ocorrendo. Mas é precisamente esta
consciência que pode funcionar contra eles neste momento. Eles nã o
estã o acostumados a uma aceitaçã o mais receptiva das graças sutis de
Deus. Se a pessoa puder confiar interiormente e permitir que a alma
siga seu instinto mais profundo de amor, conforme descrito no quinto
sinal, entã o a porta se abre para o desejo interior agraciado de nã o
buscar nada além de amar a Deus em oraçã o. Infelizmente, uma
mentalidade activa pode tender durante algum tempo a resistir ao
abandono “aparente” dos frutos concretos da sua oraçã o. Tal alma pode
preferir, como comenta Sã o Joã o da Cruz, fazer repetidamente o que já
foi feito e concluído. A aversã o pode ser forte a fazer o que se pensa ser
nada. No entanto, quã o equivocado isso pode ser. Sã o Joã o da Cruz
emprega uma imagem marcante: tirar a casca de um pedaço de fruta,
para que fique pronto para comer, e depois tentar descascá -lo
novamente:

Muitos se comportam de forma semelhante no início deste estado. Eles


pensam que toda a questã o [da oraçã o] consiste em compreender
ideias particulares e em raciocinar através de imagens e formas (a
casca do espírito). Como nã o encontram estas imagens naquela
quietude amorosa e substancial onde nada é compreendido de
particular e onde gostam de descansar, acreditam que estã o perdendo
tempo e se desviando do caminho certo; e eles se voltam em busca de
restos de imagens e raciocínios. Eles nã o têm sucesso na busca porque
a casca já foi removida. (AMC 2.14.4)

E o que acontece como resultado? A insatisfaçã o descrita nos quatro


sinais anteriores continua para a alma e o fracasso em avançar em
direçã o ao encontro agraciado com Deus na contemplaçã o que o quinto
sinal indica. A passagem continua:

Nã o há prazer da substâ ncia nem capacidade de meditar, e eles ficam


perturbados com a ideia de retroceder e se desviar. Eles estã o
realmente se perdendo, mas nã o da maneira que imaginam, pois estã o
perdendo o exercício dos seus pró prios sentidos e do primeiro modo de
experiência. Essa perda indica que eles estã o se aproximando do
espírito que lhes é transmitido, e quanto menos entendem, mais
penetram na noite do espírito – o tema deste livro. Eles devem passar
por esta noite para uma uniã o com Deus além de todo conhecimento.
(AMC 2.14.4)

É evidente que há uma grande necessidade de responder com


entrega a Deus quando a graça da contemplaçã o começa a manifestar-
se. A vontade da alma de passar além da experiência familiar da oraçã o
para uma oraçã o mais obscura, onde o “Deus além de todo
conhecimento” é encontrado, requer comentá rios e aná lises cuidadosos
de acordo com o ensinamento exato de Sã o Joã o da Cruz. Esta discussã o
sobre a conduta da alma na oraçã o de contemplaçã o continuará como
tema do pró ximo capítulo.
10
A Conduta da Alma na Oraçã o Contemplativa

A abordagem adequada à oraçã o silenciosa por uma alma que


experimenta os sinais iniciais de contemplaçã o é o pró ximo tó pico
importante. Nã o se trata de adotar um método específico de oraçã o,
mas sim de nos habituarmos a um ambiente interior diferente da alma
na oraçã o. Uma maior profundidade nas relaçõ es com Deus trará um
novo sentido misterioso da sua realidade pessoal. Conforme destacado
no ú ltimo capítulo do quinto sinal, há uma inclinaçã o sutil de graça que
atrai a alma em contemplaçã o para entrar em suas pró prias
profundezas interiores e tranquilas. Esta atraçã o tem origem em Deus,
e a nossa alma deve deixar-se seduzir por essa quietude interior, um
lugar de mistério. Uma disposiçã o receptiva da alma é especialmente
necessá ria neste momento. Com o início das graças contemplativas,
uma chama de amor arde secretamente nos recô nditos da alma. A
nossa alma deve permanecer perto dessa chama, nã o a perturbando,
nã o deixando que este fogo se apague, o que poderíamos fazer
procurando ocupar-nos de alguma forma activa na oraçã o. Em vez
disso, permanecendo num estado receptivo de desejo tranquilo, numa
atençã o amorosa para com o nosso Senhor, sem tentar pensar
reflexivamente ou evocar qualquer imagem diante dos nossos olhos
interiores, a nossa alma dispõ e-se à graça da contemplaçã o.

Ao permanecer neste estado receptivo de quietude, sem um trabalho


de atividade mental interior, a alma nã o atrapalha, por assim dizer, e
assim obstrui a graça da contemplaçã o. Este esforço nã o é uma questã o
de praticar um método ou técnica de oraçã o. A grande necessidade é
simplesmente permanecer na presença do amor de nosso Senhor sem
pensar tã o conscientemente no que estamos fazendo. A busca pelo
pensamento e pela atividade é desnecessá ria; antes, a atitude receptiva
de um desejo silencioso por Deus é o que é necessá rio. A seguinte
passagem de A Noite Escura é talvez a instruçã o mais clara e bá sica
sobre como nossa alma deve se comportar quando os sintomas da
contemplaçã o se tornam evidentes. Pode servir bem na introduçã o
deste capítulo. A combinaçã o de um afastamento de um método
anterior de atividade na oraçã o e de uma rendiçã o necessá ria a uma
delicada inclinaçã o interior é bastante explícita na passagem. Com
efeito, afirma a necessidade de aceitar uma nova forma de
contentamento na oraçã o.

A atitude necessá ria na noite dos sentidos [contemplaçã o incipiente] é


nã o prestar atençã o à meditaçã o discursiva, pois este nã o é o momento
para isso. Deveriam permitir que a alma permanecesse em repouso e
quietude, mesmo que lhes pareça ó bvio que nã o estã o fazendo nada e
perdendo tempo, e mesmo que pensem que essa relutâ ncia em pensar
em qualquer coisa se deve à sua negligência. Através da paciência e da
perseverança na oraçã o, eles estarã o fazendo muita coisa sem atividade
da sua parte. Tudo o que se exige deles aqui é a liberdade da alma, que
se libertem do impedimento e da fadiga das ideias e pensamentos, e
nã o se preocupem em pensar e meditar. Eles devem contentar-se
simplesmente com uma atençã o amorosa e pacífica a Deus, e viver sem
preocupaçã o, sem esforço e sem desejo de prová -lo ou senti-lo. Todos
esses desejos inquietam a alma e a distraem da pacífica, tranquila e
doce ociosidade da contemplaçã o que lhe é comunicada. (DN 1.10.4)

Em A Subida ao Monte Carmelo , Sã o Joã o da Cruz nos instrui que as


almas no período inicial de aclimataçã o à s graças contemplativas
podem “encontrar-se nesta consciência amorosa ou pacífica sem
primeiro terem se envolvido em qualquer trabalho ativo (no que diz
respeito a atos particulares) com seus faculdades; eles nã o estarã o
trabalhando ativamente, mas apenas recebendo” (AMC 2.15.2). O
comentá rio sugere que à s vezes, uma vez que a contemplaçã o começa
como uma graça, podemos entrar em oraçã o esperando uma espécie de
liberaçã o do nosso espírito interior para um desejo silencioso por
nosso Senhor. Outros dias podem ser diferentes; na verdade, a variaçã o
e a imprevisibilidade podem ser uma experiência mais frequente.
Quando nã o há liberaçã o do desejo, como acabamos de mencionar,
podemos empreender esforços gentis que nos disponibilizem ao
encontro com a presença amorosa de nosso Senhor. Sã o Joã o da Cruz
escreve, por exemplo: “Por outro lado, muitas vezes acharã o necessá rio
ajudar-se suave e moderadamente com a meditaçã o para entrar neste
estado” (AMC 2.15.2). A frase-chave de interesse aqui é “. . . para entrar
neste estado”. A experiência inicial da contemplaçã o muitas vezes exige
que tentemos “colocar-nos” num ambiente interior através do qual a
graça da contemplaçã o possa acender-se mais prontamente. Existem
maneiras pelas quais essa entrada em um silêncio interior propício à
contemplaçã o pode ocorrer. Estas escolhas nã o se tornam causa direta
da contemplaçã o, que é uma graça gratuita. Em vez disso, eles dispõ em
a alma para uma receptividade a um tranquilo anseio interior por Deus
que abre o caminho para responder à s graças contemplativas. Por
exemplo, a repetiçã o de uma curta frase sagrada, como a Oraçã o de
Jesus (“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim,
pecador.”), ou de um ú nico versículo de um salmo; olhar em silêncio
para uma imagem sagrada ou para um crucifixo ou uma está tua de
Maria; ou olhar com amor para o taberná culo em silêncio - estes sã o
exemplos possíveis que permitem que a mente fique quieta e o espírito
interior entre em anseio por Deus. A escolha em cada caso é entregar-se
a uma quietude interior sem pensamento ativo. E entã o pode ser
encontrado um delicado desejo de amar que está atraindo a alma de
dentro de suas pró prias profundezas. Este desejo de amar é a condiçã o
crucial para a contemplaçã o. Na passagem seguinte, Sã o Joã o da Cruz
concentra-se na atraçã o essencial do amor neste período inicial de
contemplaçã o:

O fogo do amor nã o é comumente sentido no início, ou porque nã o tem


chance de se apoderar, devido à impureza da parte sensorial, ou porque
a alma, por falta de compreensã o, nã o criou dentro de si um lugar
pacífico para isto; embora à s vezes com ou sem essas condiçõ es a
pessoa comece a sentir um certo anseio por Deus. À medida que o fogo
aumenta, a alma toma consciência de ser atraída pelo amor de Deus e
nele acesa, sem saber como ou onde se origina essa atraçã o e esse amor.
À s vezes, esta chama e esse acendimento aumentam a tal ponto que a
alma deseja a Deus com anseios urgentes de amor. (DN 1.11.1)

Sã o Joã o da Cruz questiona se, com o início da contemplaçã o, a


pessoa à s vezes precisa voltar à meditaçã o como forma de oraçã o. Será
que um limiar foi ultrapassado na contemplaçã o de uma vez por todas,
eliminando a necessidade de pensamento reflexivo na oraçã o? Será que
uma pessoa ganha alguma vez meditando como antes se agora desfruta
da graça da contemplaçã o? Sua resposta demonstra bom senso
espiritual: “Enquanto alguém puder fazer meditaçã o discursiva e
extrair satisfaçã o, nã o deve abandonar este método. A meditaçã o deve
ser interrompida somente quando a alma for colocada nessa paz e
quietude” (AMC 2.13.2). Uma verdade é certamente clara: a transiçã o
para a natureza delicada da oraçã o contemplativa nunca é tã o definitiva
e completa no momento do seu início. A alma precisa adquirir o gosto
pela inclinaçã o interior para uma volta calma e amorosa em direçã o à
presença de nosso Senhor. Seria uma noçã o impró pria imaginar que
isto acontece como um salto num lago que nos mantém à tona sem
qualquer esforço da nossa parte. Uma imagem melhor da experiência
inicial de contemplaçã o é pensar em permitir que um barco amarrado à
costa seja libertado do que o prende, para que possa flutuar em á guas
mais profundas. O remador pode ter que se exercitar um pouco no
início para colocar o barco em movimento. A meditaçã o pode ser uma
ajuda nesse desatamento e libertaçã o, se a atividade for feita
suavemente, de uma forma mais simples, sem esforço e força, atraindo
a nossa alma para uma consciência amorosa do nosso Senhor.
Certamente a prá tica de uma repetiçã o silenciosa de uma frase ou de
um enfoque gentil e receptivo em uma ú nica declaraçã o de Jesus no
Evangelho ou em um salmo pode servir a esse propó sito. Estas sã o
formas, se feitas com simplicidade e sem esforço, de facilitar e encorajar
uma libertaçã o tranquila em á guas mais profundas. Entã o, em certos
dias, a calma interior da contemplaçã o pode inclinar a nossa alma a
entrar no descanso mais profundo em Deus que marca a graça interior
da contemplaçã o. Como Sã o Joã o da Cruz descreve este período de
adaptaçã o inicial:

Nã o quisemos dizer que aqueles que começam a ter esse conhecimento


amoroso geral nunca mais deveriam tentar meditar. No início deste
estado, o há bito da contemplaçã o nã o é tã o perfeito que alguém possa
entrar neste ato à vontade, nem alguém está tã o distante da meditaçã o
discursiva a ponto de ser sempre incapaz dela. Pode-se, à s vezes,
meditar discursivamente de maneira natural como antes e descobrir
algo novo nisso. Na verdade, à partida, ao julgar pelos sinais acima
mencionados que a alma nã o está ocupada em repouso e conhecimento,
os indivíduos necessitarã o de recorrer à meditaçã o. Esta necessidade
continuará até que adquiram o há bito da contemplaçã o até certo ponto
perfeito. A indicaçã o disto será que cada vez que pretendem meditar,
notam imediatamente esse conhecimento e paz, bem como a sua
pró pria falta de poder ou desejo de meditar, como dissemos. Até chegar
a este está gio (daqueles já proficientes em contemplaçã o), as pessoas
ora meditarã o e ora estarã o em contemplaçã o. (AMC 2.15.1)

Com base nestes comentá rios preliminares, seria bom destacar


instruçõ es mais específicas sobre o que fazer na oraçã o quando os
sinais de contemplaçã o se manifestarem. Como deveríamos responder,
no silêncio da oraçã o, à delicada inclinaçã o de permanecer só s e quietos
numa consciência amorosa de Deus? Para Sã o Joã o da Cruz, um
componente importante dessa resposta é sempre o que nã o fazer.
Deveríamos fazer todos os esforços para evitar trabalhar ativamente
com as faculdades do intelecto, da memó ria e da vontade. O que
significa nã o trabalhar activamente neste sentido nã o é propor uma
passividade exagerada, mas, antes, encorajar um afastamento da
actividade ordiná ria com a qual estas faculdades estã o habituadas a
ocupar-se na oraçã o. Esta poderia ser a busca reflexiva do intelecto por
insights religiosos, a recuperaçã o de pensamentos ou imagens
espirituais pela memó ria, ou a vontade de realizar atos interiores para
falar palavras a Deus para preencher o que parece ser um espaço vago
na oraçã o. A dimensã o afetiva dos sentimentos também exige
contençã o. Nã o devemos procurar sentir nada, mas sim tentar esquecer
os sentimentos. Qualquer esforço para aproveitar alguma experiência
de Deus a fim de “sentir sua presença” desviará a alma. A grande
necessidade na oraçã o agora é render-se e deixar ir, para que a nossa
alma se sinta atraída para uma inclinaçã o mais profunda de ansiar pelo
nosso Senhor enquanto permanece na sua presença. Isto deve ocorrer
sem observar ou examinar o que está acontecendo.

Há um conhecimento dado na contemplaçã o, como ensina Sã o Joã o


da Cruz, mas dado de forma obscura e secreta, como veremos. Nã o é um
conhecimento que é levado para fora da oraçã o por causa de uma
anotaçã o no diá rio. O conhecimento na contemplaçã o é concedido pela
inclinaçã o do amor. Na verdade, é precisamente um conhecimento pelo
amor e pelo amor. Nã o surge pensando no amor, mas na simples
consciência do desejo de amar. É um conhecimento de querer Deus, de
querer amar a Deus. Sã o Joã o da Cruz escreve em A Noite Escura : “Pois
a contemplaçã o nada mais é do que um influxo secreto, pacífico e
amoroso de Deus, que, se nã o for dificultado, incendeia a alma no
espírito de amor” (DN 1.10.6). O “influxo de Deus” é o amor que atrai a
alma para amar em troca. No período inicial de contemplaçã o, a alma
deve responder da melhor maneira possível a esse “influxo secreto,
pacífico e amoroso de Deus”. Fá -lo quando mantém uma atençã o
amorosa para com Deus, sem pensar em si mesmo. Ele faz isso, nã o
como um método ou técnica, mas simplesmente cedendo ao seu desejo
e inclinaçã o mais profundos, que é voltar o seu amor para o Amado. A
seguinte passagem de The Ascent é reveladora; os aspectos combinados
da graça e de uma necessá ria receptividade da alma sã o fortemente
sublinhados.
Mas uma vez colocados nela [contemplaçã o], como já apontamos, eles
nã o trabalham com as faculdades. É mais exato dizer que entã o o
trabalho é feito na alma e o conhecimento e o deleite já foram
produzidos, do que que a alma faz qualquer coisa além de amar a Deus
atentamente e abster-se do desejo de sentir ou ver qualquer coisa.
Nesta consciência amorosa, a alma recebe passivamente a
autocomunicaçã o de Deus, assim como as pessoas recebem luz
passivamente, sem fazer mais nada além de manter os olhos abertos.
(AMC 2.15.2)

A natureza da passividade na contemplaçã o deveria ser mais


esclarecida, pois sã o possíveis conceitos errados e interpretaçõ es falsas.
A alma nã o está mergulhando num estado de esquecimento quieto. Nã o
é desaparecer num estado interior de nada, com perda de identidade e
de toda consciência. A passividade sublinhada por Sã o Joã o da Cruz tem
a ver com o afastamento de qualquer busca ativa de um conhecimento
ou de uma experiência. A passividade está na recusa de dirigir ou
controlar o que está acontecendo. A alma permite que Deus assuma a
liderança. Por outro lado, há uma certa receptividade ativa necessá ria
em tal oraçã o, pelo menos no seu início. Nossa alma deve aceitar a
inclinaçã o que delicadamente experimenta de ser atraída para uma
“caverna” interior de quietude amorosa, onde um desejo por Deus está
presente profundamente dentro dela. O esforço, empreendido com
suavidade e delicadeza, consiste em permanecer aberto, receptivo, livre
para ser atraído, mas também recusando-se a agarrar-se a uma
experiência ou a qualquer tipo de conhecimento. Como afirmou Sã o
Joã o da Cruz na ú ltima passagem, nã o se é totalmente passivo em
manter os olhos abertos para receber a luz. A entrega a essa luz ocorre
passivamente, mas nã o pode ocorrer, exceto se a nossa alma estiver
disposta a ser receptiva e nã o obstruir essa disposiçã o receptiva. O
resultado é um conhecimento concedido à alma por um amor ao qual
ela se entrega. Como escreve Sã o Joã o da Cruz: “Esta recepçã o da luz
infundida sobrenaturalmente na alma é o conhecimento passivo.
Afirma-se que esses indivíduos nã o fazem nada, nã o porque nã o
consigam compreender, mas porque entendem sem nenhum esforço
além de receber o que é concedido. Isto é o que acontece quando Deus
concede iluminaçõ es e inspiraçõ es, embora aqui a pessoa receba
gratuitamente esse conhecimento geral obscuro” (AMC 2.15.2).

É importante também reafirmar que a inclinaçã o a permanecer


sozinho e tranquilo com Deus, num desejo pacífico e numa consciência
amorosa, sem fazer atos ou praticar exercícios discursivos, deve ser um
verdadeiro estado de graça concedido a uma alma. O perigo no domínio
da oraçã o mais profunda é buscar possessivamente um “estado de
oraçã o” que nã o é concedido pela graça. Há pessoas que podem
escolher, por preferência, cultivar um estado de “quietude induzida” na
oraçã o. A prá tica, por exemplo, de repetir lentamente uma ú nica
palavra ou um mantra, como ensina a chamada “oraçã o centralizadora”,
pode ser um exemplo disso. O método pode trazer “quietude” ao
psiquismo, esvaziando os pensamentos da mente e transmitindo uma
tranquilidade perceptível aos sentimentos internos. Mas estes efeitos
têm a sua provável origem na repetiçã o rítmica do mantra. É uma grave
deturpaçã o identificar esta prá tica e os seus efeitos com a oraçã o
contemplativa genuína. Os sintomas induzidos pelo método sã o
perfeitamente capazes de coexistir com uma indiferença em algumas
vidas à grave imoralidade pessoal. Isso por si só deveria levantar
questõ es. Nenhum método de oraçã o anunciado como uma prá tica
contemplativa de oraçã o pode dispensar a necessidade de buscar uma
vida virtuosa e sacrificial. Contudo, mesmo para uma pessoa em estado
de graça, a paz interior tranquila e tranquilizante experimentada em
abordagens pseudo-contemplativas representa uma característica
duvidosa e ilusó ria. Esses efeitos sã o geralmente buscados como um
objetivo em si mesmos, como parte de uma busca auto-orientada, em
vez de surgirem como uma inclinaçã o movida por uma graça que atrai a
alma para Deus. Nesse caso, o foco real nã o está direcionado para Deus.
E a passividade do vazio interior, com a mente sem fazer nada, torna-se
com o tempo uma condiçã o prejudicial para a alma. A pessoa nã o
estaria se voltando com amorosa atençã o para Deus, mas descendo
para um exercício progressivo de auto-absorçã o. Os frutos, como
sempre, sã o vistos na hora certa. Sem abordar, é claro, as prá ticas
contemporâ neas, Sã o Joã o da Cruz é, no entanto, claro sobre a
importâ ncia de um discernimento cuidadoso. O quinto sinal, conforme
descrito anteriormente, é delicado, mas precisa ser um pouco sentido, e
talvez inegavelmente reconhecido como presente, para garantir a sua
genuinidade. A tentaçã o enganosa para aqueles que descobrem um
novo interesse pela oraçã o é mergulhar prematuramente, sem a
concessã o divina da graça, no que parece ser um estado mais elevado
de oraçã o, mas que apenas acaba por voltar a alma para dentro de si
mesma. Estas sã o as palavras de advertência de Sã o Joã o da Cruz:

Se os indivíduos nã o tivessem esse conhecimento ou atençã o a Deus,


eles, como consequência, nã o estariam fazendo nada nem recebendo
nada. Tendo abandonado a meditaçã o discursiva das faculdades
sensíveis e ainda carente da contemplaçã o (o conhecimento geral em
que as faculdades espirituais - memó ria, intelecto e vontade - sã o
atuadas e unidas neste conhecimento passivo e preparado), eles não
teriam qualquer atividade relativa a Deus . (AMC 2.14.6; grifo nosso)

A genuinidade de uma verdadeira graça contemplativa torna-se


evidente precisamente pelo ato de entrega à inclinaçã o interior de
permanecer tranquilamente no anseio por Deus. A entrega a esse
desejo de amar transmite uma consciência em si. A alma é
misteriosamente atraída a inclinar-se para as profundezas interiores, e
chega a tempo de conhecer e reconhecer esse desejo como um anseio
pelo pró prio Deus. Ocorre uma pacificaçã o do espírito interior,
tornando-se mais perceptível e desejável. O esvaziamento do
pensamento ocorre facilmente em alguns dias, nã o por uma expulsã o
metó dica de pensamentos, mas porque os pensamentos perderam
importâ ncia. A atençã o amorosa à presença do Outro substitui o
pensamento ou a imaginaçã o. Podemos parecer que nã o estamos
fazendo nada, sem nada aparentemente alcançado e nada tã o concreto
sendo perseguido. Mas, como insiste Sã o Joã o da Cruz, a nossa alma
realiza muito se se deixa levar para a quietude amorosa interior. É nas
“cavernas interiores” que se realiza um encontro de amor com Nosso
Senhor, mas muitas vezes de forma inconsciente. Este é um encontro
muito superior a qualquer oraçã o anterior, apesar da experiência
comum de uma pobreza sentida na pró pria alma. A pobreza se
aprofunda na medida em que abraçamos uma “nudez pura” e uma
simplicidade na oraçã o, sem buscar nada para nó s mesmos. O esforço
de nã o buscar nada além de Deus coincide com a necessidade de nã o
desejar nenhuma outra satisfaçã o na oraçã o. O resultado é maior
nudez, pobreza, pureza e simplicidade no momento da oraçã o
silenciosa. A passagem a seguir aborda concretamente a conduta da
alma na contemplaçã o em seu está gio inicial.

Quando as pessoas espirituais nã o conseguem meditar, devem


aprender a permanecer na presença de Deus com uma atençã o
amorosa e um intelecto tranquilo, mesmo que pareçam estar ociosas.
Pois pouco a pouco e muito em breve a calma e a paz divinas com um
conhecimento maravilhoso e sublime de Deus, envolto em amor divino,
serã o infundidas em suas almas. Eles nã o devem interferir nas formas
ou nas meditaçõ es e imaginaçõ es discursivas. Caso contrá rio, a alma
ficará inquieta e será arrastada do seu contentamento pacífico para o
desgosto e a repugnâ ncia. E se, como dissemos, surgirem escrú pulos
sobre a sua inatividade, eles devem lembrar que a pacificaçã o da alma
(torná -la calma e pacífica, inativa e sem desejos) nã o é uma conquista
pequena. Isto é, de facto, o que o nosso Senhor nos pede através de
David: Vacate et videte quoniam ego sum Deus [Sl. 46:10]. Isto seria
como dizer: Aprenda a estar vazio de todas as coisas – interior e
exteriormente – e você verá que eu sou Deus. (AMC 2.15.5)

A insistência em ser pobre e vazio, avesso à busca pró pria, é crucial


especialmente nestes primeiros está gios de contemplaçã o. O “amarrar”
das faculdades, como se nã o pudessem funcionar bem, é um verdadeiro
sabor de pobreza para a alma. Qualquer esforço consciente para
aproveitar as experiências de oraçã o neste momento causará frustraçã o
e impedirá as graças. A necessidade é simplesmente deixar ir e permitir
que Deus lidere. Permanecer quieto em resposta a um desejo mais
profundo por esta atençã o silenciosa talvez nã o seja tã o difícil. Uma
graça está sendo dada justamente para esta atraçã o de estar
silenciosamente atento à presença de Deus. O maior desafio pode ser
abster-se de tentar agarrar-se possessivamente a alguma experiência
em tal oraçã o. Qualquer ato autoconsciente revela-se debilitante para a
oraçã o contemplativa. Nã o estamos mais “no controle” de nossa oraçã o
e à s vezes precisamos nos lembrar disso. A falta de controle deve ser
aceita em dois níveis. A ligaçã o das faculdades – a chamada “ligadura”
destas faculdades – de modo que elas sejam incapazes de exercer
esforços discursivos de reflexã o ou atividade imaginativa com qualquer
proveito é uma forma de perder o controle sobre a oraçã o. A outra é a
necessidade muito mais delicada de dar lugar a um desejo que muitas
vezes parece um passo à frente da alma. Pode ser difícil identificar um
sentimento de desejo no coraçã o, mas isso nã o tem importâ ncia. A
graça da contemplaçã o está presente quando a nossa alma, por assim
dizer, olha para o outro lado, isto é, olha na direçã o da face invisível de
Deus. Se examinarmos esta experiência de contemplaçã o, analisá -la ou
tentarmos mantê-la de alguma forma, ela desaparece. A ú ltima frase
desta passagem transmite o ponto; pode nos lembrar da necessidade de
nos escondermos se quisermos encontrar o Deus que se esconde em
nossa oraçã o:

Se aqueles em quem isso ocorre souberem ficar quietos, sem cuidado


ou solicitude com qualquer trabalho interior ou exterior, logo, nessa
despreocupaçã o e ociosidade, experimentarã o delicadamente o
alimento interior. Esta reflexã o é tã o delicada que geralmente se a alma
deseja ou tenta experimentá -la, nã o consegue. Pois, como digo, esta
contemplaçã o é ativa enquanto a alma está ociosa e despreocupada. É
como o ar que escapa quando alguém tenta agarrá -lo com a mã o. (DN
1.9.6)
Na teologia espiritual posterior, a palavra “ligadura” recentemente
mencionada tornou-se ú til para descrever o efeito de ligaçã o ou de
aperto sobre as faculdades na sua incapacidade de se exercitarem na
meditaçã o discursiva ou de encontrarem nela satisfaçã o. Esta
amarraçã o das faculdades se estende até o período inicial de
contemplaçã o. Tudo agora na oraçã o torna-se à s vezes muito obscuro e
imperceptível para a alma. A graça está trabalhando para atrair a alma
para o silêncio mais profundo, onde Deus esconde sua presença nos
recessos e cavernas interiores da alma. Mas, por enquanto, a alma é
incapaz de avaliar o que está acontecendo. Está mais consciente do
aperto que sente e da incapacidade de se mover livremente em
qualquer atividade interna. A inclinaçã o que se agita suavemente
dentro da alma pela graça infundida nã o é tã o perceptível. O que a
nossa alma conhece, se estiver atenta à sua inclinaçã o interior, é um
desejo de estar a só s com Deus no silêncio, que compensa o
estreitamento das faculdades e a sua incapacidade: “Ordinariamente
esta contemplaçã o, que é secreta e escondida do mesmo quem o recebe,
transmite à alma, juntamente com a secura e o vazio que produz nos
sentidos, uma inclinaçã o para permanecer só e na quietude” (DN 1.9.6).
E, no entanto, muitas vezes acontece que as almas nã o se rendem a esta
inclinaçã o de permanecerem silenciosamente a só s com Deus. A razã o
geralmente é o estado confuso da experiência no período inicial de
contemplaçã o. A seguinte passagem de A Noite Escura insiste na
importâ ncia, com efeito, de um exercício de inteligência espiritual para
permitir que Deus faça a sua obra de santificaçã o nesta nova
experiência de contemplaçã o. A entrega receptiva a Deus é sempre a
disposiçã o chave que uma alma deve cultivar na contemplaçã o.

E ainda que mais escrú pulos venham à tona quanto à perda de tempo e
à s vantagens de fazer outra coisa, já que nã o pode fazer nada nem
pensar em nada na oraçã o, a alma deve suportá -los pacificamente,
como se ir orar significasse permanecer tranquilo. e liberdade de
espírito. Se os indivíduos desejassem fazer algo por si mesmos com as
suas faculdades interiores, impediriam e perderiam os bens que Deus
grava nas suas almas através dessa paz e ociosidade. Se um modelo
para pintura ou retoque de um retrato se deslocasse por vontade de
fazer algo, o artista nã o conseguiria terminar e a obra ficaria estragada.
Da mesma forma, qualquer operaçã o, afeiçã o ou pensamento a que uma
alma se apegue quando deseja permanecer na paz interior e na
ociosidade causaria distraçã o e inquietaçã o, e a faria sentir secura e
vazio sensorial. Quanto mais a pessoa busca algum apoio no
conhecimento e no afeto, mais a alma sentirá a falta deles, pois esse
apoio nã o pode ser fornecido por esses meios sensoriais. (DN 1.10.5)

Na verdade, nada tã o evidente pode ser entendido à primeira vista


sobre a maneira pela qual Deus está trabalhando em segredo dentro da
alma neste momento. E assim a primeira reaçã o de uma alma é muitas
vezes esforçar-se para exercitar-se mais vigorosamente na oraçã o e
buscar algum tipo de insight ou satisfaçã o. Isto nã o é surpreendente,
dado o facto, como comentamos antes, de que uma alma que tenha sido
séria na sua prá tica da virtude seja a provável candidata a submeter-se
a estas graças iniciais da contemplaçã o. Uma pessoa acostumada a uma
busca dedicada pela virtude geralmente aceita que periodicamente há
necessidade de trabalhar mais arduamente em prol da santidade. Uma
resposta paralela é frequentemente adotada ao reagir à dificuldade
experimentada na oraçã o silenciosa quando as graças contemplativas
começam. Esse tipo de pessoa diligente pensa com razã o que um
esforço mais concertado deve ser feito na oraçã o e que isso resolverá o
“problema”. Mas esta reaçã o revela-se contraproducente quando a
graça da contemplaçã o está presente: “Deus conduz a alma por um
caminho tã o diferente, e assim a coloca neste estado, que um desejo de
trabalhar com as faculdades mais atrapalharia do que ajudaria o seu
trabalho; enquanto no início da vida espiritual tudo era exatamente o
contrá rio” (DN 1.9.7). Além disso, as faculdades, ao submeterem-se à s
graças contemplativas, nã o recuperam a certa altura a aptidã o para
fazer o que nã o se tornou mais adequado para a alma na oraçã o. A
etapa da reflexã o meditativa foi concluída. O efeito vinculativo sobre as
faculdades, a sua incapacidade de funcionar como anteriormente, é um
sinal claro da necessidade de ir além de um trabalho activo com o
intelecto, a memó ria e a vontade na oraçã o. Sã o Joã o da Cruz assim
comenta:

A razã o é que agora neste estado de contemplaçã o, quando a alma deixa


a meditaçã o discursiva e entra no estado de proficiente [isto é, oraçã o
contemplativa], é Deus quem trabalha nela. Ele, portanto, liga as
faculdades interiores e nã o deixa apoio no intelecto, nem satisfaçã o na
vontade, nem lembrança na memó ria. Neste momento, os pró prios
esforços de uma pessoa sã o inú teis, mas sã o um obstá culo à paz
interior e à obra que Deus está produzindo no espírito através daquela
aridez de sentido. Sendo esta paz algo espiritual e delicado, o seu fruto
é tranquilo, delicado, solitá rio, satisfató rio e pacífico, e muito distante
de todas as outras gratificaçõ es dos iniciantes, que sã o muito palpáveis
e sensoriais. (DN 1.9.7)

Pode ser ú til voltar por um momento à noçã o de conhecimento pelo


amor na contemplaçã o. A ligaçã o das faculdades em ligadura nã o é
incompatível com a alma ser atraída pelo amor e a alma saber disso. O
conhecimento sobrenatural dado na contemplaçã o é certamente um
novo sabor na oraçã o, embora nã o seja imediatamente atraente e nã o
seja facilmente digerido. A mudança da meditaçã o para a contemplaçã o
implica, com efeito, uma maneira diferente de conhecer a Deus. Sã o
Joã o da Cruz escreve em A Ascensão sobre um “conhecimento amoroso”,
um “conhecimento amoroso geral” (AMC 2.14.2), um conhecimento
“onde nada se entende de particular e no qual gostam de descansar”
(AMC 2.14.4). ), “um ato de conhecimento geral, amoroso, pacífico e
tranquilo” (AMC 2.14.2). A ênfase está em um conhecimento amoroso .
Quanto mais espiritual e penetrante for este conhecimento amoroso, e
quanto mais interior for para a alma, mais a alma nã o o percebe de
maneira clara, mesmo sendo um conhecimento amoroso. “Quanto mais
puro, mais simples e mais perfeito é o conhecimento geral, mais escuro
ele parece ser e menos o intelecto percebe” (AMC 2.14.8). Talvez
possamos questionar como pode ser um conhecimento se nã o é
percebido. A resposta seria que se trata de um conhecimento por amor ,
um conhecimento por meio de uma inclinaçã o que atrai a alma. Se nã o
for percebido ou sentido inicialmente, o motivo é a delicadeza dessa
inclinaçã o e o forte sentimento de incapacidade devido à ligadura das
faculdades. Mas com o tempo este conhecimento é sentido, por assim
dizer, se uma alma for receptiva. É sentida como uma simples inclinaçã o
ao amor na quietude interior da oraçã o. O desejo de amar é o que é
dado à alma neste conhecimento, a consciência de um desejo nas
profundezas ocultas da alma de amar a Deus.

Para ser receptivo a esta inclinaçã o para o amor, o intelecto precisa,


entã o, renunciar à busca de outras formas de pensamento e de
qualquer busca por conhecimento específico. Por outras palavras, deve
cooperar com a “vinculaçã o” das faculdades, que já nã o proporcionam
as suas antigas satisfaçõ es. Somente desta forma o desejo interior de
amar se torna conhecido pela nossa consciência. O que pode parecer a
ausência de um objeto de conhecimento é substituído por uma
consciência simples e pura de um desejo de amor na alma. A falta de um
foco direto em um ato do intelecto dá lugar a uma inclinaçã o para o
amor em um nível mais profundo de consciência na alma: “Este
conhecimento e luz geral sobrenatural brilha tã o pura e simplesmente
no intelecto e é tã o despojado e livre de todas as formas inteligíveis (os
objetos do intelecto) que sã o imperceptíveis à alma” (AMC 2.14.10). Sã o
Joã o da Cruz amplia ainda mais esse conhecimento dado na
contemplaçã o. Embora muitas vezes imperceptível ao intelecto, ainda
assim toca a vontade de forma mais perceptível. Por se tratar de um
conhecimento por amor, nã o deveria surpreender que a contemplaçã o
afete mais fortemente a vontade do que o intelecto. Este ú ltimo
geralmente permanece em um estado de escuridã o obscura. Esta
diferença de experiência para o intelecto e a vontade na contemplaçã o é
notável, e veremos este ensinamento novamente no pró ximo capítulo. A
ausência de um objeto direto de conhecimento para o intelecto é muitas
vezes acompanhada por uma experiência vaga, indistinta, mas
perceptível, da vontade atraída pelo amor. Sã o Joã o da Cruz comenta
esta diferença:

Quando, porém, há também uma comunicaçã o à vontade, como quase


sempre há , as pessoas nã o deixarã o de compreender mais ou menos
que estã o ocupadas com esse conhecimento se quiserem discernir o
assunto. Pois terã o consciência do deleite do amor, sem conhecimento
particular daquilo que amam. Como resultado, eles chamarã o isso de
conhecimento amoroso geral. Esta comunicaçã o, conseqü entemente, é
chamada de conhecimento amoroso geral, pois assim como é
transmitida obscuramente ao intelecto, também um vago deleite e
amor sã o dados à vontade sem qualquer conhecimento distinto do que
é amado. (AMC 2.14.12)

Ao tratar da conduta da alma no período inicial da contemplaçã o,


uma consideraçã o que deve ser abordada diz respeito aos quatro sinais
anteriores identificados da contemplaçã o incipiente. Esses sinais e
sintomas desaparecem completamente quando a pessoa responde à
graça da contemplaçã o? Eles nã o estã o mais presentes quando a alma
começa a permanecer quieta e a só s com Deus, afastando-se do
pensamento ativo, a fim de se entregar a uma atençã o amorosa para
com Deus? É evidente que a meditaçã o discursiva ou imaginativa
cessará na medida em que a contemplaçã o se tornar mais proeminente
como uma graça na oraçã o. Um substitui o outro. Já mencionamos o
comentá rio de Sã o Joã o da Cruz de que no período de transiçã o, que
pode durar pelo menos alguns meses, geralmente há necessidade de
retornar à s vezes à meditaçã o antes que a contemplaçã o seja mais
firmemente estabelecida como uma graça consistente na oraçã o. Mas
um avanço na contemplaçã o tornará a meditaçã o discursiva mais
desnecessá ria com o tempo. O segundo sinal de relutâ ncia em fazer uso
da imaginaçã o seguirá o mesmo padrã o. O quarto sinal de preocupaçã o
e solicitude pela falha pessoal como causa da dificuldade na oraçã o
neste momento também desaparece à medida que a meditaçã o é
interrompida e a contemplaçã o se torna mais firmemente uma graça
aceita na oraçã o.

Por outro lado, o terceiro sinal de aridez, um doloroso vazio de


sentimento na oraçã o, é bem diferente no tratamento de Sã o Joã o da
Cruz. Nã o é uma característica transitó ria e se estende até o novo
estado de contemplaçã o. Tende a permanecer um aspecto purificador
da oraçã o, mesmo por longos anos, e desempenha o seu pró prio papel
no avanço da contemplaçã o na alma. Uma observaçã o poderia ser feita
a esse respeito. Na teologia espiritual, a entrada na contemplaçã o é uma
passagem do caminho purgativo para o caminho iluminativo. A ú ltima
frase como um novo está gio de avanço espiritual parece implicar um
tempo de maior luz e consolo para a alma. Mas a realidade real é
certamente, em parte, uma experiência prolongada de busca de Deus
numa dolorosa ausência de sentimento e na escuridã o da obscuridade
da fé. A presença de um Deus oculto que deve ser procurado com maior
amor torna-se uma experiência dominante agora na oraçã o, muitas
vezes durante longos anos. Apesar destas características, que à
primeira vista dificilmente sã o consistentes com a ideia de uma etapa
“iluminativa”, é importante que a alma nã o se desvie do caminho que
empreendeu, para nã o arruinar a boa obra que Deus iniciou. A
aclimataçã o da alma a um encontro mais profundo com Deus é crucial
neste tempo e, na verdade, para toda a vida. Isto nã o significa
necessariamente uma experiência de oraçã o mais satisfató ria. Significa,
na maior parte, que uma alma deve entregar-se em amor a um novo
sentido de intimidade com a presença de Deus.

A perseverança sustenta toda a vida espiritual, mas tem especial


pertinência no período inicial de contemplaçã o. A chamada “noite
escura dos sentidos” é o termo que Sã o Joã o da Cruz emprega para o
período de transiçã o da meditaçã o para a contemplaçã o. Como
metá fora, refere-se ao esvaziamento da satisfaçã o na oraçã o meditativa.
A frase fala especialmente da aguda secura de sentimento que aflige a
oraçã o silenciosa, muitas vezes sem trégua. Mas este vazio de
sentimento, mesmo que doloroso, é mais do que uma característica
transitó ria que afecta a oraçã o durante um período de tempo
passageiro, como dissemos. É um aspecto da purificaçã o que
geralmente continua por muito tempo depois que a alma cruzou o
limiar da contemplaçã o na oraçã o. Isso evoca a necessidade de
perseverança constante. E, no entanto, a aridez é uma das maneiras
pelas quais a contemplaçã o – ao contrá rio da expectativa – começa a
conceder benefícios frutíferos à alma. É notável que Sã o Joã o da Cruz,
ao identificar os primeiros frutos da oraçã o contemplativa, percebe
todos eles como ligados ao sofrimento da aridez que continua na oraçã o
da contemplaçã o. Os benefícios da aridez aumentam à medida que o
sofrimento desta experiência de oraçã o continua. O primeiro desses
benefícios é um conhecimento mais refinado de si mesmo e da
verdadeira miséria de si mesmo – devido à secura e ao vazio da
satisfaçã o na oraçã o. “As aridezes e os vazios das faculdades em relaçã o
à abundâ ncia anteriormente vivenciada e a dificuldade encontrada na
prá tica da virtude fazem com que a alma reconheça a sua pró pria
humildade e miséria, o que nã o era aparente na época da sua
prosperidade” (DN 1.12.2 ). A ênfase está em um novo conhecimento de
si mesmo que ocorre em meio à aridez. Quando tudo é relativamente
consolador e produtivo na oraçã o, com insights e satisfaçõ es fá ceis, a
alma provavelmente tende a sentir certo prazer em suas pró prias
realizaçõ es. Em contrapartida, novos ganhos na graça ocorrem de
forma paradoxal, nomeadamente, no sofrimento da vida interior:

Agora que a alma está vestida com essas outras vestes de trabalho,
secura e desolaçã o, e suas antigas luzes foram obscurecidas, ela possui
luzes mais autênticas nesta virtude mais excelente e necessá ria do
autoconhecimento. Considera-se nada e nã o encontra satisfaçã o em si
mesmo porque tem consciência de que por si só nã o faz nem pode fazer
nada. Deus estima esta falta de auto-satisfaçã o e o desâ nimo que as
pessoas têm por nã o servi-lo mais do que todos os seus feitos e
gratificaçõ es anteriores, por mais notáveis que tenham sido, visto que
foram ocasiã o de muitas imperfeiçõ es e de muita ignorâ ncia. (DN
1.12.2)

Sã o Joã o da Cruz inclui outros benefícios que advêm de um sentido


de identidade mais humilde, que também é fruto da aridez vivida na
contemplaçã o. Um benefício é uma abordagem mais respeitosa à
majestade de Deus. A alma nã o está mais inclinada a tratar Deus como
alguém com quem pode ser “descortês e imprudente” (DN 1.12.3). Mais
consciente da sua pró pria miséria e necessidade, o tom de aproximaçã o
da alma a Deus ganha em respeito e discriçã o. Sã o Joã o da Cruz aponta
o exemplo de Moisés, que depois de se encontrar com Deus e falar
diretamente com ele, “teve plena consciência da sua miséria aos olhos
de Deus, pois era assim que lhe convinha ouvir a voz de Deus”. palavra”
(DN 1.12.3). Ao mesmo tempo, em suas angú stias e aridez, a alma
percebe muito mais a grandeza de Deus: “A noite escura com suas
aridez e vazios é o meio para o conhecimento de Deus e de si mesmo”
(DN 1.12.6). Nã o podemos crescer no verdadeiro conhecimento da
grandeza de Deus, exceto avançando no conhecimento de nossas
pró prias necessidades diante de Deus. Começa assim a aprofundar-se
uma humildade espiritual: “Conscientes da pró pria secura e miséria, a
ideia de serem mais avançados que os outros nem sequer ocorre nos
seus primeiros movimentos, como acontecia antes; pelo contrá rio,
percebem que os outros sã o melhores” (DN 1.12.7).

Sã o Joã o da Cruz também escreve sobre o benefício da aridez numa


lembrança mais habitual de Deus, no medo de retroceder no caminho
espiritual. A preocupaçã o com as falhas pessoais é uma expressã o do
desejo da alma de agradar a Deus. As tentaçõ es, talvez à s vezes graves e
induzidas por demô nios, podem prevalecer. No entanto, ao resistir-lhes,
a alma avança no seu amor por Deus. Eles servem a um propó sito
definido: “Pois se uma alma nã o for tentada, provada e provada através
de tentaçõ es e provaçõ es, os seus sentidos nã o serã o fortalecidos na
preparaçã o para a sabedoria” (DN 1.14.4). Agora, uma qualidade mais
profunda de um medo santo de ofender a Deus e de usar mal seus
grandes dons toma conta. As virtudes tendem a operar em uma
harmonia recém-descoberta: paciência e tolerâ ncia ao enfrentar a
aridez, perseverança na insatisfaçã o com os exercícios espirituais, a
obstinaçã o somente em Deus crescendo como motivo na vida. Nada
mais atrai tanto a alma quanto a oportunidade de servir a Deus e amá -
lo. Sã o Joã o da Cruz escreve sobre este ponto:

Essas aridezes, entã o, fazem as pessoas caminharem com pureza no


amor de Deus. Eles nã o sã o mais movidos a agir pelo deleite e
satisfaçã o que encontram em um trabalho, como talvez fossem quando
derivaram isso de suas açõ es, mas pelo desejo de agradar a Deus. Eles
nã o sã o presunçosos nem presunçosos, como era seu costume na época
de sua prosperidade, mas temerosos e inquietos consigo mesmos e
desprovidos de qualquer auto-satisfaçã o. (DN 1.13.12)

Um comentá rio final neste capítulo pode ser feito sobre quanto
tempo dura a experiência purificadora de uma contemplaçã o á rida e
sombria. A alma, mesmo nesta aridez e escuridã o, saboreia a graça da
contemplaçã o. Dependendo da sua resposta à inclinaçã o para
permanecer quieto e afastar-se do pensamento, abre-se à graça da
contemplaçã o. No entanto, a aridez e a ausência de satisfaçã o
acompanharã o este avanço na contemplaçã o ao longo dos pró ximos
anos. Os benefícios que acabamos de mencionar como frutos desta
experiência também irã o se aprofundar. Nã o há como saber como Deus
trata uma alma de maneira diferente de outra. Mas uma longa
experiência de aridez regular deveria ser esperada como um curso
normal na oraçã o contemplativa. Sã o Joã o da Cruz reconhece que um
fator que pode desempenhar um papel será a coragem ou a fraqueza
que uma alma demonstra ao suportar a purificaçã o. Deus nã o força
muito uma alma que nã o está disposta a enfrentar o sofrimento; mas tal
alma leva muito mais tempo para percorrer o caminho do encontro
divino. A coragem assume um papel fundamental na contemplaçã o,
especialmente no que diz respeito à aridez e à incapacidade de
satisfaçã o na oraçã o. A alma deve desviar os olhos das suas pró prias
lutas e entrar mais puramente no caminho da graça que leva a Deus.
Sã o Joã o da Cruz oferece uma passagem marcante sobre a questã o da
duraçã o da purificaçã o que se realiza na contemplaçã o.

Nã o podemos dizer com certeza quanto tempo uma alma será mantida
neste jejum e penitência dos sentidos. Nem todos passam por isso da
mesma forma, nem as tentaçõ es sã o idênticas. Tudo é distribuído de
acordo com a vontade de Deus e a maior ou menor quantidade de
imperfeiçã o que deve ser eliminada de cada um. Na medida do grau de
amor ao qual Deus deseja elevar uma alma, ele a humilha com maior ou
menor intensidade, ou por mais ou menos tempo. Aqueles que possuem
maior capacidade e força para o sofrimento, Deus expurga com mais
intensidade e rapidez. Mas aqueles que estã o muito fracos ele mantém
esta noite por muito tempo. . . . Deus age com outras almas mais fracas
como se estivesse se mostrando e depois se escondendo; ele faz isso
para exercitá -los em seu amor, pois sem esses afastamentos eles nã o
aprenderiam a alcançá -lo. No entanto, como é evidente através da
experiência, as almas que passam para um estado tã o feliz e elevado
como é a uniã o de amor geralmente devem permanecer nesta aridez e
tentaçõ es por um longo tempo, nã o importa quã o rapidamente Deus as
conduza. (DN 1.14.5, 6)

Uma coisa é certa em todos os casos quando uma alma é introduzida


na contemplaçã o. Deus deseja levar essa alma à uniã o com seu amor.
Podemos supor que respondemos melhor ao seu amor na medida em
que nos entregamos inteiramente a tudo o que Ele nos pede para
abraçar na vida interior de oraçã o. E, de igual importâ ncia, na medida
em que nos esforçamos por doar-nos generosamente a tudo o que Ele
nos pede nos acontecimentos e nas oportunidades quotidianas de
caridade e de sacrifício. No entanto, a maneira como a contemplaçã o
afecta uma vida continua a ser uma questã o ú nica de relaçõ es
totalmente pessoais entre cada alma e Deus numa longa vida de oraçã o.
11
Uma Receptividade Pura a Deus na Contemplaçã o

Sã o Joã o da Cruz faz outro tratamento importante sobre o período


inicial de contemplaçã o, desta vez em uma parte considerável de seu
comentá rio à terceira estrofe de seu poema “A Chama Viva do Amor” no
tratado de mesmo nome. É uma seçã o rica com comentá rios mais
extensos sobre a adaptaçã o da meditaçã o à contemplaçã o. Aborda em
particular como o intelecto deve responder ao silenciamento da mente
que acompanha a graça da contemplaçã o. Antes de examinar o
comentá rio, vale a pena ver como esta seçã o é introduzida. Sã o Joã o da
Cruz afirma mais uma vez que muitas vezes é durante um período
bastante precoce de uma vida espiritual séria que a contemplaçã o é
concedida como uma graça. Isto nã o significa que a prá tica da oraçã o
contemplativa seja deliberadamente escolhida como método de oraçã o.
Pelo contrá rio, se uma alma é fiel na busca da virtude e da vontade de
Deus, nã o é incomum experimentar, apó s um tempo razoavelmente
curto, os sinais iniciais de uma contemplaçã o incipiente. Um ajuste
necessá rio deve entã o ocorrer na oraçã o, como já vimos. Mas isso pode
acontecer nã o muito depois de a vida espiritual assumir uma dedicaçã o
determinada. Um ano de fiel observâ ncia e generosidade numa
congregaçã o religiosa mais rigorosa pode ser suficiente, segundo Sã o
Joã o da Cruz, dependendo da graça de Deus. É um ponto significativo
que vale a pena sublinhar, porque muitas pessoas nã o percebem que a
contemplaçã o é uma graça que Deus quer conceder à s almas que
abordam seriamente a oraçã o e a virtude. Nã o é uma graça reservada à s
chamadas almas de elite ou apenas aos que habitam os claustros e os
mosteiros. Se formos fervorosos em responder generosamente a Deus,
com todas as exigências que as nossas vocaçõ es implicam, podemos
esperar que Ele seja finalmente generoso em conceder esta graça. Como
escreve Sã o Joã o da Cruz em A Chama Viva do Amor :
Deve-se saber que a prá tica dos iniciantes é meditar e realizar atos e
reflexã o discursiva com a imaginaçã o. Os indivíduos neste estado
deveriam receber matéria para meditaçã o e reflexã o discursiva, e
deveriam por si mesmos realizar atos interiores e lucrar nas coisas
espirituais a partir do deleite e da satisfaçã o dos sentidos. Pois ao
sermos alimentados com o sabor das coisas espirituais, o apetite é
arrancado das coisas sensuais e enfraquecido em relaçã o à s coisas do
mundo. Mas quando o apetite foi um pouco alimentado, e se acostumou
de certa forma à s coisas espirituais, e adquiriu alguma fortaleza e
constâ ncia, Deus começa a desmamar a alma, como dizem, e a colocá -la
no estado de contemplaçã o. Isto ocorre em algumas pessoas depois de
muito pouco tempo , especialmente entre os religiosos; ao negarem mais
rapidamente as coisas do mundo, eles acomodam seus sentidos e
apetites a Deus e passam para o espírito em sua atividade, Deus
trabalhando assim neles. Isso acontece quando cessam os atos
discursivos e as meditaçõ es da alma, bem como a sua satisfaçã o e fervor
sensível iniciais, e ela nã o consegue praticar a meditaçã o discursiva
como antes ou encontrar qualquer suporte para os sentidos. A parte
sensorial fica seca porque suas riquezas sã o transferidas para o
espírito, que nã o pertence aos sentidos. (LF 3.32; ênfase adicionada)

Como seria de esperar, Sã o Joã o da Cruz sublinha que com os


sintomas e sinais já identificados no capítulo anterior, a alma deve
aprender a exercitar-se na oraçã o “de uma forma totalmente contrá ria à
anterior” (LF 3.33). Ele é explícito e inequívoco em sua instruçã o de que
neste momento “eles nã o deveriam meditar” (LF 3.33). Um esforço para
meditar ou refletir sobre um assunto em oraçã o levaria inevitavelmente
à distraçã o. Mesmo com algum esforço mental, uma alma sofreria, em
oraçã o, uma incapacidade de concentrar o pensamento de qualquer
maneira espiritualmente proveitosa. Da mesma forma, nã o deve haver
busca de satisfaçã o nos sentimentos. Isto também prejudica e se opõ e à
graça da contemplaçã o dada delicadamente neste momento. É
necessá rio abandonar qualquer busca ativa na oraçã o. Na verdade,
deveria haver um abandono da autonomia pessoal na conduçã o da
pró pria oraçã o. Este requisito necessitará de mais explicaçõ es, mas a
declaraçã o seguinte é bastante direta na advertência contra um uso
laborioso das faculdades no silêncio da oraçã o com o início das graças
contemplativas: “Os indivíduos podem com a maior facilidade
perturbar e impedir estas unçõ es por nã o mais do que o menor ato que
possam desejar de sua memó ria, intelecto ou vontade; ou fazendo uso
de seus sentidos, apetite e conhecimento, ou de sua pró pria satisfaçã o e
prazer. Tudo isso é gravemente prejudicial e causa grande tristeza e
pena” (LF 3.41).

Em vez de a oraçã o ser uma actividade que dirigimos ou perseguimos


para nossa satisfaçã o, devemos permitir que a oraçã o neste período de
transiçã o passe para as mã os de Deus. Ele está secretamente presente
na alma e trabalhando através de graças contemplativas. Nossa pró pria
atividade deve ser rendida para que nosso espírito interior possa ser
atraído para uma tranquilidade pacífica que incline nossa alma. Se nã o
renunciarmos à atividade de meditaçã o ou ao pensamento reflexivo, ou
ao desejo de sentir satisfaçã o, impediremos a açã o mais oculta de Deus.
Em suma, o trabalho ativo que estamos acostumados a realizar no
momento da oraçã o – e pode haver outros exemplos além da reflexã o
discursiva sobre as Escrituras, como a leitura excessiva ou a recitaçã o
de oraçõ es formais nã o obrigató rias – está agora em desacordo com a
açã o de Deus e deveria ser interrompida em troca de um silêncio mais
receptivo. No meio da pró pria oraçã o, a alma pode achar este um
ensinamento difícil de abraçar. A renú ncia a uma rotina de atividade em
oraçã o é totalmente contrá ria à experiência anterior de oraçã o. No
entanto, é esta escolha de abandonar uma abordagem activa na oraçã o
que pode determinar se a graça da contemplaçã o encontra uma porta
aberta para as profundezas da alma. Como ensina Sã o Joã o da Cruz:

Se antes buscavam satisfaçã o, amor e devoçã o e os encontravam, agora


nã o deveriam desejá -los nem buscá -los; pois nã o apenas deixam de
consegui-lo através de sua pró pria diligência, mas, pelo contrá rio,
procuram a secura. Através da atividade que desejam realizar com os
sentidos, eles se desviam do bem pacífico e tranquilo que está sendo
secretamente dado ao seu espírito. . . . Tal atividade colocaria um
obstá culo no caminho do agente principal que, como digo, é Deus, que
secreta e silenciosamente insere na alma sabedoria e conhecimento
amorosos, sem atos específicos. (LF 3.33)

Aqui, no tratamento de A Chama Viva do Amor , Sã o Joã o da Cruz


repete diversas vezes a necessidade de exercer uma “atençã o amorosa”
a Deus. Esta é a sua principal recomendaçã o sobre o que uma alma
pode fazer neste momento, à medida que se ajusta à graça da
contemplaçã o. A nossa alma deve libertar-se da reflexã o e do
pensamento activos, mas ao mesmo tempo deve fazer um esforço para
permanecer atenta num desejo silencioso e amoroso dirigido a Deus.
Uma atençã o amorosa, na visã o de Sã o Joã o da Cruz, nã o exige um
trabalho de concentraçã o. À s vezes pode ocorrer facilmente porque a
alma é atraída precisamente pelas graças contemplativas a contemplar,
por assim dizer, a presença misteriosa de Deus. Uma inclinaçã o
agraciada geralmente subjacente a qualquer sentimento de emoçã o
ocorre na contemplaçã o. A alma sente um desejo simplesmente de
voltar-se com seu ser interior para Deus. Talvez nã o seja sentido tã o
fortemente no início, nem por nenhuma emoçã o, mas o desejo é, no
entanto, real e gradualmente se faz conhecido no silêncio da oraçã o.
Essa inclinaçã o deve ser delicadamente sentida neste momento para
que a graça tenha um efeito frutífero na alma. Na verdade, a capacidade
de responder a um sentimento delicado da alma é extremamente
importante quando essas graças sutis estã o operando. Rendemo-nos a
Deus talvez mais plenamente em oraçã o quando fazemos o que é mais
fá cil. A entrega a Deus é justamente o que queremos fazer, sob o efeito
da graça. Neste momento, a alma, em seu anseio, quer simplesmente
permanecer numa inclinaçã o amorosa de desejo para com Deus.
Nenhuma atividade é necessá ria para isso, nenhum ato deliberado
precisa ser empreendido, com exceçã o talvez de uma frase curta
repetida lentamente em silêncio para ancorar a alma por um tempo.
Um ú nico versículo de um salmo ou da Oraçã o de Jesus pode servir a
esse propó sito. Idealmente, uma corrente constante de desejo interior
por Deus ocupa a alma e pode prender a atençã o da alma. Recuar para
alguma atividade de pensamento ou tentar exercer atos específicos
apenas interferiria na inclinaçã o mais profunda da alma. Os recô nditos
ocultos da alma desejam simplesmente ser levados em direçã o a Deus
em graça, e isso é suficiente. Sã o Joã o da Cruz enfatiza especialmente a
qualidade receptiva da alma neste momento. A “inatividade” que ele
recomenda na passagem seguinte refere-se à falta de exercício de atos
deliberados da nossa parte. Mas, na verdade, a alma deve estar ativa até
certo ponto na sua receptividade a Deus quando a graça da
contemplaçã o ainda está numa fase delicada. Uma atençã o amorosa a
Deus tornou-se agora a sua resposta a esta graça e uma forma de
atividade silenciosa na oraçã o: “Assim, os indivíduos também devem
proceder apenas com uma atençã o amorosa a Deus, sem praticar atos
específicos. Devem comportar-se passivamente, como dissemos, sem
esforços pró prios, mas com a consciência simples e amorosa, como
quando se abre os olhos com atençã o amorosa” (LF 3.33).

A atençã o que uma alma dirige a Deus nã o precisa de um método


para controlar a atividade mental, mas vem “naturalmente” para a alma
como uma coisa desejável a fazer. A princípio, esta experiência tem um
elemento de purgaçã o; a alma normalmente nã o sente nada e pode
parecer nã o saber o que está fazendo. A purgaçã o é um sinal da
disparidade entre Deus se comunicar e a alma receber uma
comunicaçã o que nã o consegue assimilar de maneira adequada. No
entanto, a nossa alma tem que aprender a ser a receptora, mesmo que
inicialmente nã o entenda o que está acontecendo. A necessidade
primeira é aprender a receber de Deus o dom que ele faz de si mesmo.
Com efeito, uma adequada receptividade à presença de Deus
condiciona um avanço na contemplaçã o: “A pura contemplaçã o consiste
em receber” (LF 3.36). Deus se torna o grande doador agora em oraçã o.
E o que ele está dando é ele mesmo, de maneira imediata e misteriosa.
Ele comunica nã o novas percepçõ es ou mensagens particulares à alma,
nem experiências elevadas de natureza mística, mas simplesmente ele
mesmo no mistério de sua presença. Isso é suficiente, mesmo que a
experiência seja tipicamente obscura e sombria inicialmente.

A alma, por sua vez, só pode receber a presença de Deus no silêncio


de uma “atençã o amorosa passiva” (LF 3.34). A simples consciência de
desejar a Deus com qualquer outro pensamento torna-se um modo de
receptividade à açã o secreta de Deus. A consciência de querer Deus é a
maneira silenciosa da alma de comungar com Deus. Uma troca amorosa
mú tua em silêncio ocorre entã o misteriosamente entre a alma e Deus. É
como se uma fonte sagrada, na qual flui o amor, se abrisse entre Deus e
a alma por meio dessa consciência amorosa. O fluir da “á gua viva” (Jo
4,10) continua enquanto a alma recebe a comunicaçã o oculta da
presença de Deus através do seu pró prio desejo de Deus. Este desejo
vai além de qualquer capacidade natural da alma. Ela flui como uma
corrente profunda dentro da alma, atraindo a alma para Deus. A
experiência de Deus para uma alma neste início de contemplaçã o,
descrita como um “conhecimento simples e amoroso” de Deus, pode
parecer indefinida, até mesmo insípida. Mas para Sã o Joã o da Cruz é
uma consciência amorosa bastante real para a alma, uma nova
experiência de Deus. É um conhecimento através de uma inclinaçã o
interior para o amor, um conhecimento de ser atraído nas profundezas
da alma para o amor por Deus. Como explica Sã o Joã o da Cruz: “Visto
que Deus, entã o, como o doador comunga com os indivíduos através de
um conhecimento simples e amoroso, eles também, como os
receptores, comungam com Deus através de um conhecimento ou
atençã o simples e amoroso, entã o o conhecimento é, portanto, unido
com conhecimento e amor com amor. O receptor deve agir de acordo
com o modo do que é recebido, e nã o de outra forma, para recebê-lo e
mantê-lo da forma como é dado” (LF 3.34).

Sã o Joã o da Cruz insiste, entã o, que a alma mantenha esta atitude


interior de atençã o amorosa passiva como uma espécie de disposiçã o
para a contemplaçã o. A palavra passiva neste contexto pode ser ajudada
por comentá rios que estendem ainda mais o que foi dito no capítulo
anterior. O que Sã o Joã o da Cruz ensina agora é a necessidade de
permanecer numa disposiçã o interior de receptividade e entrega a
Deus – “muito passivo e tranquilo, sem fazer nenhum ato” (LF 3.34). A
passividade é compreendida observando o seu oposto. Atos cometidos
deliberadamente, mesmo sob a aparência de alguma boa intençã o,
impedem a comunicaçã o divina do conhecimento amoroso dado à alma.
O conhecimento amoroso, um conhecimento por inclinaçã o, um
conhecimento de ser atraído ao amor, é uma graça recebida de Deus.
Mas pode ser desviado e bloqueado através da adopçã o de actos por
nossa pró pria iniciativa. Uma entrega de si mesmo em uma
receptividade a Deus é tudo o que é necessá rio agora, e nã o qualquer
outra busca de nossa parte. O principal requisito para a alma é estar
vazia, vazia de atividade interna – “desobstruída, ociosa, quieta, pacífica
e serena, de acordo com o modo de Deus” (LF 3.34) – permitindo-se ser
atraída por um profundo e silencioso inclinaçã o para o pró prio Deus.
Neste ponto, a oraçã o nã o é mais uma busca, uma busca, uma busca por
Deus. Um véu foi levantado e a alma passou para dentro, por assim
dizer, para uma sala interior. Nã o há necessidade de correr atrá s de
nada ou de superar uma barreira. Uma alma precisa apenas receber a
corrente mais profunda do desejo que a atrai em direçã o ao amor por
Deus. Numa frase reveladora, Sã o Joã o da Cruz comenta: “Pois a palavra
de Deus é o efeito que ele produz na alma” (LF 1.7). Uma escuta
delicada, um amor atento, um silêncio na solidã o de uma presença
misteriosa, bastam estas disposiçõ es interiores. “Só Deus é o agente que
fala secretamente à alma solitá ria e silenciosa” (LF 3.44). A passagem
mais longa a seguir é impressionante no que diz respeito à facilidade
com que a alma deve entrar em reverência pela comunicaçã o de Deus
sobre sua presença na contemplaçã o. A noçã o de recepçã o passiva é
esclarecida aqui:

Se, como eu digo – e é verdade – este conhecimento amoroso é recebido


passivamente na alma de acordo com o modo sobrenatural de Deus, e
nã o de acordo com o modo natural da alma, os indivíduos, se quiserem
recebê-lo, devem estar muito atentos. aniquilados em suas operaçõ es
naturais, desimpedidos, ociosos, quietos, pacíficos e serenos, de acordo
com o modo de Deus. Quanto mais o ar é limpo de vapores e quanto
mais silencioso e simples ele é, mais o sol o ilumina e aquece. Uma
pessoa nã o deve ter apego a nada, nem à prá tica da meditaçã o, nem a
qualquer sabor, seja sensorial ou espiritual, nem a quaisquer outras
apreensõ es. Os indivíduos deveriam ser muito livres e aniquilados em
relaçã o a todas as coisas, porque qualquer pensamento ou reflexã o
discursiva ou satisfaçã o em que quisessem apoiar-se os impediria,
inquietaria e faria barulho no silêncio profundo dos seus sentidos e do
seu espírito, que eles possuem para o por causa desta escuta profunda e
delicada. Deus fala ao coraçã o nesta solidã o. . . em suprema paz e
tranquilidade enquanto a alma ouve, como Davi, o que o Senhor Deus
lhe fala [Sl. 85:8], pois ele fala desta paz nesta solidã o. (LF 3.34)

As ú ltimas frases desta passagem sã o comoventes e provocativas.


Deus fala à solidã o do coraçã o na contemplaçã o. Podemos dizer que ele
fala da sua paz nesta solidã o. Quando a nossa alma “sente” que está
sendo atraída para dentro de si mesma, para esta solidã o de paz, para
um estado de inclinaçã o de escuta, ela deve se soltar e deixar-se levar
para dentro, em direçã o a essa inclinaçã o de amor. Esse desapego nos
alinha com a receptividade passiva que conduz à contemplaçã o. Se, por
outro lado, nã o houver uma sensaçã o particular de paz interior
atraindo a alma para dentro, deveríamos entã o manter uma atençã o
amorosa da melhor maneira possível, tentando nã o interferir com Deus
através da atividade reflexiva. A simplicidade da vigilâ ncia À quele
procurado no amor é o esforço especial necessá rio neste momento em
que a nossa alma se sente pequena e ainda nã o tem inclinaçã o para a
reflexã o discursiva. Talvez sem que ela mesma saiba, a alma tem um
desejo mais profundo de se entregar por amor a Deus. Se essa
inclinaçã o começar a ser sentida, será necessá rio apenas liberar e
deixar ir. A alma simplesmente responde à tendência subjacente de ser
atraída para a comunicaçã o que Deus faz de si mesma através de um
desejo silencioso por ele. Em outras palavras, a “prá tica” de uma
atençã o amorosa à s vezes é necessá ria porque nada pode ser sentido
de uma inclinaçã o mais profunda. A atençã o amorosa dispõ e a alma a
permanecer a só s com Deus, num silêncio de escuta e de absorçã o
interior em paz. O desejo calmo e amoroso por Deus é uma disposiçã o
preparató ria para conduzir nossa alma através do silêncio e da solidã o
até a presença de Deus. Se, pela graça, Deus concede alguma
comunicaçã o contemplativa de sua presença, ela vem através do desejo
amoroso da alma por Deus. Na passagem seguinte, Sã o Joã o da Cruz
descreve como a graça da contemplaçã o opera sobre uma pessoa. Isto
ocorre de uma forma claramente diferente da atividade autodirigida,
mas também requer uma cooperaçã o da nossa parte:

Quando acontecer, portanto, que as almas tenham consciência desta


maneira de serem colocadas na solidã o e no estado de escuta, deveriam
até esquecer a prá tica da atençã o amorosa que mencionei, para
permanecerem livres para o que o Senhor entã o deseja delas. Eles
deveriam fazer uso dessa consciência amorosa somente quando nã o se
sentirem colocados nesta solidã o ou ociosidade interior ou
esquecimento ou escuta espiritual. Para que possam reconhecê-lo,
sempre acontece com uma certa paz, calma e absorçã o interior. (LF
3,35)

Sã o Joã o da Cruz insiste de vá rias maneiras, numa frase que vale a


pena repetir, que “a pura contemplaçã o consiste em receber” (LF 3.36).
E assim a necessidade da contemplaçã o é permanecer estritamente
desapegado de buscar qualquer tipo de conhecimento na oraçã o ou
qualquer gratificaçã o particular. A alma é cada vez mais despojada no
silêncio da contemplaçã o e chega a uma perda mais profunda de si
mesma, nã o simplesmente como fator purificador que acompanha o
avanço espiritual, mas como realidade essencial desta oraçã o de
contemplaçã o. A necessidade de mortificar o impulso de buscar
satisfaçõ es anteriores na oraçã o é uma exigência séria. Essa tentaçã o
pode ser mais comum do que se pensa, especialmente com os primeiros
primó rdios das graças contemplativas. A alma talvez nã o sinta muito no
início das graças contemplativas e, talvez, gostaria de algum conforto ou
alguma sensaçã o de realizar um esforço valioso na oraçã o. Mas a
melhor abordagem é avançar no que agora começou. O desejo de
solidã o interior e a inclinaçã o para a quietude interior na oraçã o,
sintomas do quinto sinal da contemplaçã o, indicam o “lugar” onde
reside a graça, à espera do nosso encontro silencioso com a presença de
Deus. A alma deve aceitar a dor do que pode parecer uma ociosidade ou
inatividade mental e simplesmente se esforçar para manter uma
atençã o amorosa voltada para Deus. E deve evitar afastar-se
distraidamente da sua atençã o à presença de Deus. Com o tempo, torna-
se evidente a compreensã o de que a acçã o de Deus é maior no seu
impacto amoroso do que a nossa pró pria actividade mental. Sã o Joã o da
Cruz dirige a seguinte passagem aos diretores espirituais que guiam
essas almas, mas pode ser lida como uma recomendaçã o para a conduta
da pró pria alma.

Quando uma alma se aproxima deste estado, esforce-se para que ela se
desapegue de toda satisfaçã o, prazer, prazer e meditaçõ es espirituais, e
nã o a inquiete com cuidados e solicitudes com coisas celestiais ou,
menos ainda, com coisas terrenas. Leve-o ao mais completo
recolhimento e solidã o possível, pois quanto mais solidã o ele obtiver e
quanto mais se aproximar dessa tranquilidade ociosa, mais
abundantemente o espírito da sabedoria divina será infundido em sua
alma. Esta sabedoria é amorosa, tranquila, solitá ria, pacífica, branda e
inebriante do espírito, pela qual a alma se sente terna e suavemente
ferida e levada, sem saber por quem ou de onde ou como. A razã o é que
esta sabedoria é comunicada sem a atividade da pró pria alma. (LF 3.38)

É bom repetir, depois de ouvir estas instruçõ es, que a nossa alma
deve fazer a sua parte. Nem tudo é passividade na contemplaçã o.
Embora a contemplaçã o seja principalmente uma obra de Deus
recebida pela alma, nó s mesmos devemos ter cuidado para nã o
escolher atividades que impeçam esta obra da graça, que podemos
facilmente realizar por ignorâ ncia. Nossa alma deve se esforçar para
aceitar a lembrança silenciosa para a qual somos atraídos, ao mesmo
tempo em que nos protegemos contra distraçõ es. Quanto mais
entramos numa solidã o de aparente “inatividade”, de nã o fazer nada no
nosso espírito interior, e abraçamos a tranquilidade que a acompanha,
mais a graça da contemplaçã o tem a oportunidade de atrair a nossa
alma para camadas mais profundas de inclinaçã o no alma. A solidã o,
curiosamente, consiste em estar sozinho e vazio, sem reflexõ es e
conhecimentos ou satisfaçõ es sentidas; uma solidã o, ou seja, sem a
companhia dessas reflexõ es e satisfaçõ es. É uma solidã o de desapego
vazio que pode parecer ociosa e infrutífera, sem conseguir nada. E, no
entanto, o efeito deste vazio solitá rio é separar cada vez mais a alma do
desejo por qualquer coisa que nã o seja o pró prio Deus. Sã o Joã o da Cruz
insiste na necessidade de acalmar a ansiedade a este respeito, se esta
for sentida. A inatividade da alma em relaçã o à s atividades anteriores
na oraçã o pode causar um pensamento ansioso de retrocesso ou perda
de tempo. Mas o vazio da “inatividade” na verdade grava na alma um
grande presente de desapego interior. Este desapego de buscar
qualquer coisa na oraçã o que nã o seja o pró prio Deus terá frutos
espirituais significativos. Como insiste Sã o Joã o da Cruz:

E um pouco disto que Deus opera na alma nesta santa ociosidade e


solidã o é um bem inestimável. . . . O mínimo que uma pessoa consegue
sentir é um afastamento e um estranhamento em relaçã o a todas as
coisas, à s vezes mais do que outras vezes, acompanhado de uma
inclinaçã o para a solidã o e de um cansaço com todas as criaturas e com
o mundo, no suave sopro do amor. e vida no espírito. Tudo o que nã o
está incluído nesta alienaçã o torna-se desagradável, pois, como dizem,
uma vez provado o espírito, toda a carne se torna amarga. (LF 3.39)

Apesar do que possa parecer, entã o, nesta quietude interior, uma


inatividade mental na oraçã o, há , pelo contrá rio, uma atividade séria
ocorrendo em resposta à graça. A atividade é a receptividade a uma
açã o de Deus que devemos escolher aceitar de Deus. É evidente que nã o
é fá cil responder à exigência contemplativa de uma receptividade
silenciosa. Certamente nã o significa receber experiências exaltadas em
oraçã o. Pelo contrá rio, a grande necessidade inicial da alma numa
disposiçã o receptiva é aceitar tornar-se pobre e despossuída em si
mesma, para que Deus seja livre para agir secretamente dentro dela.
Mas, novamente, isto nã o acontece exceto com um espírito de
cooperaçã o corajosa na atitude interior da nossa alma. Seria incorreto,
claro, afirmar que a contemplaçã o é “causada” ou induzida por
qualquer coisa que fazemos. Mas definitivamente requer o cultivo de
disposiçõ es interiores que sã o escolhidas até certo ponto. A nossa alma
deve dispor-se a tornar-se um cená rio adequado para Deus agir e
depois responder adequadamente a um imenso dom do pró prio Deus. A
receptividade à pobreza interior que pode acompanhar o esvaziamento
nu da alma permite que Deus atue na comunicaçã o de si mesmo.
Idealmente, ele nã o encontra interferência nossa. Sã o Joã o da Cruz
descreve a disposiçã o interior da receptividade desta maneira:

Mesmo que a alma nã o esteja fazendo nada, Deus está fazendo algo
nela. Os Diretores devem esforçar-se para desembaraçar a alma e levá -
la à solidã o e à ociosidade, para que ela nã o fique presa a nenhum
conhecimento particular, terreno ou celestial, ou a qualquer cobiça por
alguma satisfaçã o ou prazer, ou a qualquer outra apreensã o; e de tal
forma que seja vazio pela pura negaçã o de cada criatura, e colocado na
pobreza espiritual. Isto é o que a alma deve fazer de si mesma, como
aconselha o Filho de Deus: Quem não renuncia a todos os bens não pode
ser meu discípulo [Lc. 14:33]. . . . Quando a alma se liberta de todas as
coisas e atinge o vazio e o despojamento delas, o que equivale ao que
ela pode fazer de si mesma, é impossível que Deus deixe de fazer a sua
parte comunicando-se a ela, pelo menos silenciosa e secretamente. É
mais impossível do que seria que o sol nã o brilhasse em terreno claro e
organizado. (LF 3.46)

Talvez o ajuste mais difícil para muitas pessoas seja interpretar de


maneira positiva a aparente ociosidade mental da experiência inicial de
contemplaçã o. É um momento de teste. Como dissemos, sã o almas que
nã o teriam chegado a esta conjuntura de graças contemplativas nas
suas vidas se nã o fossem pessoas devotas e trabalhadoras. Pode
parecer totalmente incongruente com tudo o que sabem sobre a vida
espiritual que a graça permeie um momento de oraçã o em que nã o
estã o a dirigir ativamente o seu coraçã o, mente e vontade para alcançar
algo com alguma dedicaçã o e esforço. Fazer boas obras na vida pode
parecer exigir, de maneira paralela, fazer boas coisas em oraçã o. A
recomendaçã o, pelo contrá rio, da ausência de actividade, da
necessidade de permanecer quietos e vazios de pensamento, atentos a
uma inclinaçã o muito delicada de permanecer a só s com Deus, pode
parecer muito contrá ria ao seu sentido espiritual. Talvez por ser tã o
difícil de aceitar para algumas pessoas, Sã o Joã o da Cruz é bastante
forte neste ponto ao insistir que o esvaziamento da mente será uma
necessidade para o encontro direto com Deus na contemplaçã o. A
ausência de pensamento reflexivo pode parecer, para algumas almas,
uma entrada na ausência de toda compreensã o, quase um convite a
mergulhar num estado de esquecimento interior. Mas esta descriçã o
nã o é de forma alguma o que acontece na atençã o ao amor que
distingue uma preparaçã o para a graça da contemplaçã o. Um
afastamento da compreensã o – por nã o perseguir pensamentos
específicos – torna-se a entrada inicial na verdade de que Deus nã o
pode ser compreendido ou apreendido em pensamento. Em vez de
compreender algo sobre Deus, ou mesmo de procurar compreender, a
alma simplesmente acredita . Idealmente, abraça num ú nico ato
contínuo o grande “sim” de acreditar na presença de Deus sem pensar
em nenhum pensamento particular. Acredita com uma certeza
incontestável que Deus simplesmente existe e está presente no amor
naquele momento e hora da oraçã o. A verdade de sua presença no amor
é tudo com que o intelecto precisa se ocupar. Como escreve Sã o Joã o da
Cruz:

“Ou”, você dirá , “ele nã o entende nada em particular e, portanto, será


incapaz de progredir”. Respondo que, pelo contrá rio, se tivesse
conhecimentos particulares nã o avançaria. A razã o é que Deus
transcende o intelecto e é incompreensível e inacessível para ele.
Portanto, embora o intelecto compreenda, nã o se aproxima de Deus,
mas se afasta dele. Deve afastar-se de si mesmo e do seu conhecimento
para caminhar até Deus com fé, crendo e nã o compreendendo. Assim
alcança a perfeiçã o, porque está unido a Deus pela fé e nã o por
qualquer outro meio, e chega a Deus mais por nã o compreender do que
por compreender. (LF 3.48)

Podemos observar com esta passagem que o vazio de pensamentos


particulares é compensado pelo intelecto abraçando um encontro mais
profundo com Deus na certeza de uma fé mais pura. Seria errado dizer
que o vazio da mente é cultivado por si só na contemplaçã o, como
propõ em alguns dos métodos de esvaziamento da mente da
espiritualidade contemporâ nea. Nas verdadeiras graças contemplativas,
nã o há noçã o de uma inatividade mental destinada a tranqü ilizar a
alma numa condiçã o de esquecimento interior. Na contemplaçã o
genuína, outros fatores significativos estã o em jogo. O afastamento da
busca por pensamentos específicos é, em parte, uma admissã o de que
pensamentos específicos nã o se aproximam da verdade mais profunda
de Deus, disponível no silêncio da contemplaçã o. Pensamentos
específicos devem ser renunciados em troca de uma crença simples e
intensa em Deus como uma presença pessoal imediata na oraçã o. Com
efeito, o encontro com Deus presente pessoalmente no mistério
substitui o pensamento em Deus. A incompreensibilidade de Deus
naquele encontro pessoal torna-se a grande verdade contemplativa
conhecida na certeza da fé. É um conhecimento muito superior a
qualquer pensamento sobre Deus. É provável que uma escuridã o
envolva a mente precisamente ao abraçar esse conhecimento. A
escuridã o que acompanha o encontro contemplativo com Deus na fé
deve ser “compreendida” entã o como a verdade mais profunda de um
encontro pessoal genuíno com Deus. A alma precisa simplesmente
descansar no que pode parecer uma ausência de conhecimento e uma
experiência sem qualquer realizaçã o pessoal. Uma escuridã o de
incompreensã o permeia a alma, mas ao mesmo tempo, recordemos,
uma profunda saudade de Deus confirma a sua presença imediata. A
incompreensã o experimentada pela alma nã o a impede de ansiar por
Alguém cuja realidade é impossível de compreender em qualquer
compreensã o direta. Esta consciência na contemplaçã o de uma
presença amada, apesar das trevas, é um estado salutar da alma,
conduzindo-a ao mistério do contacto real de Deus com a alma. Na
passagem seguinte, Sã o Joã o da Cruz descreve o efeito sobre o intelecto
da submissã o mais profunda da fé na oraçã o contemplativa:

Nã o se perturbe por causa disso; se o intelecto nã o recua (o que faria se


desejasse ocupar-se com conhecimentos particulares e outras reflexõ es
discursivas), mas deseja permanecer na ociosidade, ele avança. Esvazia-
se assim de tudo o que lhe é compreensível, porque nada disso é Deus;
como já dissemos, Deus não cabe num coração ocupado . Nesta questã o
de buscar a perfeiçã o, nã o voltar atrá s é avançar; e o intelecto avança
estabelecendo-se mais na fé. Assim avança obscurecendo-se, pois a fé é
escuridã o para o intelecto. Visto que o intelecto nã o pode compreender
a natureza de Deus, ele deve caminhar rendendo-se a ele e nã o através
da compreensã o, e assim avança através da nã o compreensã o. . . .
Deveria evitar ocupar-se com conhecimentos particulares, pois nã o
pode chegar a Deus através deste conhecimento, o que antes o
impediria no seu avanço em direçã o a ele. (LF 3.48; grifo nosso)

Sã o Joã o da Cruz coloca neste ponto do tratado uma possível objeçã o:


se o intelecto nã o entende nada e nã o guarda nada em sua mente que
possa atrair a vontade ao desejo, entã o a vontade nã o tem nada que o
atraia ao desejo. O resultado pareceria ser um vazio insípido e sem
valor. Um intelecto vazio e ocioso pareceria resultar em uma vontade
sem ancoragem e ociosa, sem nada para atraí-la ou direcioná -la, o que,
à primeira vista, pareceria nã o ter nenhum bom propó sito na oraçã o.
Em geral, a vontade é incapaz de amar quando o intelecto nada lhe dá
para amar. Sã o Joã o da Cruz usa esta objeçã o para nos lembrar que na
contemplaçã o o pró prio Deus está trabalhando infundindo luz no
intelecto e amor na vontade. É um “conhecimento sobrenatural
amoroso” que Deus concede à alma na contemplaçã o. O conhecimento
é, portanto, apropriadamente descrito como uma consciência de amor,
uma consciência de querer Deus e de precisar profundamente de Deus.
Mesmo sem a ajuda habitual do intelecto para atraí-lo para um objeto
específico de desejo, a vontade está recebendo graça infundida para ser
atraída para o pró prio Deus em fortes inclinaçõ es. O intelecto na fé já
está cheio de certeza do mistério evidente da presença de Deus. A
contemplaçã o torna-se para a alma um estado de conhecimento, um
conhecimento de amar um Deus que está além da compreensã o, e ainda
assim presente no encontro imediato de amá -lo nesta hora de oraçã o.
Numa declaraçã o contundente, Sã o Joã o da Cruz escreve: “Podemos
afirmar que este conhecimento é como a luz que transmite calor, pois
essa luz também acende o amor” (LF 3.49). Talvez a melhor maneira de
descrever esta graça seja falar da nossa alma sabendo que está sendo
atraída pelo amor, mas incapaz de ver como isso está acontecendo.
Permanece cego ao encontro, mas sabe inegavelmente que está
apaixonado. O intelecto e a vontade, sob os efeitos da fé e da caridade,
trabalham em conjunto na contemplaçã o. Mas os efeitos da fé e da
caridade podem ser bem diferentes. É mais frequente que o intelecto
permaneça nas trevas, enquanto a vontade é atraída por um anseio de
amor a Deus. Estas sã o as palavras de Sã o Joã o da Cruz para descrever
esta dupla açã o na graça:

O amor está , portanto, presente na vontade da mesma forma que o


conhecimento está presente no intelecto. Assim como esse
conhecimento infundido por Deus no intelecto é geral e obscuro,
desprovido de compreensã o particular, o amor na vontade também é
geral, sem qualquer clareza decorrente da compreensã o particular.
Visto que Deus é luz e amor divinos em sua comunicaçã o de si mesmo
com a alma, ele igualmente informa essas duas faculdades (intelecto e
vontade) com conhecimento e amor. Visto que Deus é ininteligível nesta
vida, o conhecimento dele é obscuro, como digo, e o amor presente na
vontade é moldado a partir desse conhecimento. (LF 3.49)

Porque o ponto é significativo para a contemplaçã o, vale a pena fazer


referência a duas outras passagens incisivas nas quais Sã o Joã o da Cruz
ensina que geralmente a vontade é mais afetada no amor como
experiência notável na contemplaçã o do que o intelecto deveria passar
por qualquer avanço incomum no conhecimento. É importante
distinguir o contraste entre a experiência da vontade na contemplaçã o
e a experiência do intelecto. A contemplaçã o é principalmente um
conhecimento por amor e, portanto, a experiência da vontade torna-se
o fator experiencial dominante na maioria dos casos de contemplaçã o.
A primeira das seguintes passagens é retirada de A Noite Escura , a
segunda de O Cântico Espiritual . A repetida alusã o a este ponto indica a
sua importâ ncia também para Sã o Joã o da Cruz:

Quando Deus infunde estes bens espirituais [contemplaçã o], a vontade


pode muito facilmente amar sem a compreensã o do intelecto, assim
como o intelecto pode conhecer sem a vontade amorosa. Visto que esta
noite escura de contemplaçã o consiste em luz e amor divinos - assim
como o fogo emite luz e calor - nã o é incongruente que esta luz
amorosa, quando comunicada, à s vezes atue mais sobre a vontade
através do fogo do amor. Entã o o intelecto fica nas trevas, sem ser ferido
pela luz. Outras vezes, esta luz amorosa ilumina o intelecto com
compreensã o e deixa a vontade na secura. Tudo isso é semelhante a
sentir o calor do fogo sem ver a sua luz ou ver a luz sem sentir o calor
do fogo. O Senhor trabalha assim porque infunde a contemplaçã o como
quer. (DN 2.12.7)

Na passagem do Cântico Espiritual , a insistência está mais na


experiência profunda do amor na oraçã o de contemplaçã o:

Deve-se saber que o ensino de alguns sobre a incapacidade da vontade


de amar o que o intelecto nã o conhece primeiro deve ser entendido
naturalmente. Naturalmente, é impossível amar sem primeiro
compreender o que é amado, mas, sobrenaturalmente, Deus pode
facilmente infundir e aumentar o amor sem a infusã o ou aumento de
conhecimento particular. Esta é a experiência de muitas pessoas
espirituais; eles freqü entemente sentem que estã o ardendo no amor de
Deus, sem nenhum conhecimento mais particular do que antes. Eles
entendem pouco, mas amam muito, ou entendem muito, mas amam
pouco. Na verdade, aquelas pessoas espirituais cuja compreensã o de
Deus nã o é muito avançada geralmente progridem de acordo com a sua
vontade, enquanto a fé infundida é suficiente para o seu conhecimento.
Através desta fé Deus infunde neles a caridade e aumenta esta caridade
e o seu agir, o que significa um amor maior, embora, como dissemos, o
seu conhecimento nã o aumente. Assim, a vontade pode beber amor
sem que o intelecto beba conhecimento. (SC 26.8)

Estas sã o declaraçõ es profundas, certamente, sobre a natureza


experiencial da contemplaçã o. Em A Chama Viva do Amor , Sã o Joã o da
Cruz prossegue dizendo que a oraçã o pode variar, de modo que à s vezes
Deus comunica mais ao intelecto, nomeadamente, o sentido mais
profundo da sua incompreensibilidade ou talvez uma certeza mais
profunda de quã o real é a sua presença em mistério naquela hora
específica. Outras vezes, com mais frequência, ele se comunica de forma
mais significativa com a vontade, de modo que o sentimento interior de
saudade de Deus é a realidade muito mais forte experimentada na
oraçã o. A imagem de um fogo emitindo calor e luz, como acabamos de
encontrar na passagem de A Noite Escura , é realmente ú til nesse
sentido. À s vezes, um ou outro fenô meno afeta mais intensamente a
experiência da oraçã o. Da mesma forma, na contemplaçã o, a vontade ou
o intelecto sã o afetados de maneiras distintas que podem ter muito a
ver com a singularidade de uma alma. Deus conduz pessoas diferentes
de maneiras diferentes, sempre em prol de uma entrega maior no amor
a si mesmo.
No entanto, à s vezes, nesta comunicaçã o delicada, Deus fere e se
comunica mais a uma faculdade do que a outra; à s vezes se
experimenta mais conhecimento do que amor, e outras vezes mais
amor do que conhecimento; e da mesma forma, à s vezes, todo
conhecimento é sentido sem nenhum amor, ou todo amor sem nenhum
conhecimento. . . . Ele pode inflamar a vontade com um toque do calor
do seu amor, mesmo que o intelecto nã o compreenda, assim como uma
pessoa pode sentir o calor do fogo sem vê-lo. (LF 3.49)

Com base nessas passagens, podemos afirmar que a obscuridade


com que o intelecto conhece Deus como incompreensível na escuridã o
da contemplaçã o encontra seu paralelo na experiência da vontade de
Deus na contemplaçã o. Há uma atraçã o da vontade de uma forma que
ela nã o consegue assimilar com satisfaçã o. Pode nã o ser sentido de
maneira clara, mas a vontade experimenta que é misteriosamente
atraída por uma inclinaçã o mais profunda para com Deus como Aquele
que é desconhecido. A vontade, poderíamos dizer, está cegamente
inflamada em seu desejo por Deus na contemplaçã o. Deseja sem saber
claramente como sofre esse desejo. Esta é a principal razã o pela qual
nã o há necessidade de ficar ansioso ao contemplar a inatividade. A
vontade e o intelecto precisam apenas ser receptivos à açã o de Deus
que ocorre secretamente, muitas vezes nas camadas mais profundas da
alma. Sã o Joã o da Cruz escreve assim sobre a experiência:

A vontade muitas vezes se sente acesa, ternamente comovida ou


cativada, sem saber como ou compreender nada mais particularmente
do que antes, pois Deus está ordenando nela o amor. . . . Nã o há razã o
para temer a ociosidade da vontade nesta situaçã o. Se a vontade deixa
de realizar atos de amor por si mesma e, no que diz respeito a
conhecimentos particulares, Deus os realiza nela, inebriando-a
secretamente com o amor infundido, seja por meio do conhecimento da
contemplaçã o ou sem ele, como acabamos de dizer, esses atos sã o
muito mais deleitosos e meritó rios do que os atos que a alma realiza
por si mesma, assim como Deus, que a move e infunde esse amor, é
muito melhor. (LF 3,50)

Também é importante reconhecer que a vontade só pode receber


esta açã o de Deus atraindo o seu desejo quando a vontade está vazia e
desapegada. Da mesma forma que o intelecto deve afastar-se da
atividade do pensamento e da reflexã o, a vontade deve libertar-se de
qualquer impulso apetitivo para tomar posse de satisfaçõ es ou
sentimentos particulares. Tal como o intelecto, deve ser totalmente
receptivo na sua disposiçã o interior. A vontade também deve entrar
numa espécie de solidã o de vazio, sozinha e vazia de desejos
secundá rios, nã o querendo nada além do pró prio Deus. Este vazio é o
cená rio interior para Deus atrair a vontade no amor. Uma “quietude
solitá ria” na vontade – muito parecida com a lembrança silenciosa do
intelecto – pode muitas vezes ser suficiente para permitir que as graças
contemplativas atuem secretamente nas camadas internas da vontade.
A necessidade, como acontece com o intelecto, é que a vontade nã o vá
em busca de gratificaçõ es particulares de alguma proximidade sentida
com Deus. Mais uma vez ouvimos a necessidade de algum aspecto de
cooperaçã o e de mortificaçã o interior, que envolve a recusa de interferir
ou intrometer-se na acçã o de Deus. A nudez e o vazio da vontade a
dispõ em para a possibilidade de Deus acender a vontade no amor. Mas
este estado de anseio receptivo por Deus deve ser cultivado pela alma
em oraçã o.

Deus infunde este amor na vontade quando esta está vazia e desligada
de outros prazeres e afetos particulares, terrenos ou celestiais. Cuide,
entã o, de esvaziar a vontade de seus afetos e desvinculá -la deles. Se nã o
retroceder pelo desejo de alguma satisfaçã o ou prazer, avança, embora
nã o experimente nada de particular em Deus, ascendendo acima de
todas as coisas até ele. Embora nã o desfrute de Deus de maneira muito
particular e distinta, nem o ame num ato tã o claro, desfruta-o obscura e
secretamente naquela infusã o geral, mais do que todas as coisas
particulares, pois entã o vê claramente que nada o satisfaz tanto. como
aquela quietude solitá ria. E o ama acima de todas as coisas amáveis. (LF
3.51)

Sã o Joã o da Cruz reconhece a dificuldade que esta receptividade pode


representar inicialmente para a alma. Muitas vezes pode ter que amar
sem poder deleitar-se com seu amor. Deve inclinar-se no desejo para o
que permanece muitas vezes obscuro para a alma. A necessidade de
abster-se de atos particulares, mesmo atos de amor praticados de
forma deliberada, é um requisito. A vontade deve permitir-se
permanecer passiva e receptiva diante do impulso de amor que ocorre
nas correntes mais profundas das cavernas da alma. Deve desapegar-se
da busca de um prazer ou de uma satisfaçã o definitiva no amor e
deixar-se levar pelo amor como um objeto frá gil varrido por uma
corrente de vento. E muitas vezes tem de aceitar que nã o pode sentir
este efeito de forma tangível. Permanecendo em paz, nã o inquieta ou
agitada, a vontade deve simplesmente fazer o que pode fazer de sua
parte, que é permanecer ansiando por Deus. O requisito essencial é nã o
interferir de forma intrusiva na açã o de Deus, uma açã o que é bastante
real da parte de Deus, mesmo sem a nossa consciência.

Portanto, nã o se deve perturbar, pois a vontade progride se nã o puder


concentrar-se nas satisfaçõ es e prazeres de atos particulares. Pois ao
nã o voltar atrá s no abraço de algo sensível, avança para o inacessível,
que é Deus; e por isso nã o é de admirar que nã o o sinta. Para caminhar
para Deus, a vontade deve caminhar desapegada de todas as coisas
agradáveis, e nã o apegada a elas. Cumpre assim bem o mandamento do
amor, que é amar a Deus sobre todas as coisas; isso nã o pode ser feito
sem nudez e vazio em relaçã o a todos eles. (LF 3.51)

Ao concluir este capítulo, podemos notar nestas ú ltimas passagens a


forte insistência em uma qualidade desapegada de alma se quisermos
amar a Deus com intensidade. Na verdade, uma receptividade pura a
Deus na oraçã o é inseparável de uma pureza de desapego em relaçã o
aos desejos secundá rios que podem nos ocupar. O princípio dominante
da contemplaçã o é que Deus só é conhecido através do amor. Mas o
amor a Deus na oraçã o mais profunda da contemplaçã o depende desta
qualidade desapegada de “nudez e vazio” dentro da alma em relaçã o a
todas as coisas que nã o sejam Deus. A contemplaçã o floresce quando a
alma está inflamada por um desejo puro de Deus, receptiva a um desejo
profundamente interior de amá -lo. Avança quando um desejo nu da
alma “avança para o inacessível, que é Deus” (LF 3.51). Avançar em
direçã o ao inacessível implica naturalmente incertezas experienciais. O
caminho da contemplaçã o vivido na oraçã o quotidiana nã o está traçado
com sinais claros e marcas precisas de progresso. Existe um segredo de
amor na contemplaçã o, muitas vezes despercebido pela alma, e
raramente existe qualquer forma de conhecimento expansivo ou
excepcional. O conhecimento de Deus somente pelo amor geralmente
predomina na contemplaçã o. Para a maioria das pessoas, um avanço na
contemplaçã o simplesmente intensifica uma intençã o pura, nua e
receptiva da alma em direçã o à presença misteriosa do pró prio Deus.
Mas esta é uma grande graça. Quando um desejo puro por Deus arde
dentro de uma alma no silêncio da oraçã o, purifica o envolvimento da
alma com a presença de Deus, abrindo-a para o mistério maior do seu
amor infinito que permeia toda a vida. E na pró pria oraçã o, esse desejo
puro esvazia a tendência ao interesse pró prio. É da natureza do amor
puro deste tipo incutir o desapego de si mesmo e substituir a
preocupaçã o consigo mesmo por um apego a Deus na pureza nua do
desejo mais íntimo da alma. Nosso pró ximo capítulo abordará o dilema
da escuridã o interior que normalmente acompanha a experiência mais
profunda de um auto-esvaziamento nu na contemplaçã o. A escuridã o
interior também exige uma disposiçã o calma de desapego. A
receptividade ao amor no meio das trevas interiores é o caminho
seguro para um maior amor a Deus.
12
O desafio interior da escuridã o paradoxal

Apó s estes ú ltimos capítulos sobre contemplaçã o, fazemos uma pausa


agora para explorar mais profundamente a noçã o de escuridã o na
oraçã o contemplativa. Existem, em particular, algumas seçõ es em The
Dark Night que oferecem material de muito interesse e benefício.
Encontrar segurança na experiência da escuridã o é um dos paradoxos
que encontramos no tratamento da contemplaçã o de Sã o Joã o da Cruz.
A ideia de segurança na escuridã o pode soar à primeira vista como
medidas de protecçã o para afastar o perigo; ou a necessidade de
salvaguardas e estratagemas para evitar que as trevas se infiltrem e
prejudiquem a vida interior. Mas é claro que nã o é isso que Sã o Joã o da
Cruz quer dizer. Pelo contrá rio, a alma caminha com segurança na
oraçã o contemplativa apenas por uma rendiçã o cega a uma condiçã o de
escuridã o interior, enquanto animada ao mesmo tempo por uma
intensa certeza de fé. Um princípio espiritual essencial deve ser
assimilado para o progresso na contemplaçã o: “ Nas trevas [a alma]
caminha com segurança” (DN 2.16.1; grifo nosso).

Se estamos crescendo na oraçã o contemplativa, devemos aprender a


aceitar, apesar de uma possível repugnâ ncia e aversã o, a experiência
recorrente de escuridã o obscura que permeará em vá rios graus a vida
interior da nossa oraçã o. Lutar diretamente contra ela, ou lutar para
superá -la e fazê-la desaparecer, impedirá o nosso avanço na oraçã o
contemplativa. A escuridã o de nã o conhecer a Deus de maneira
satisfató ria é uma prova da mente e do espírito, exigindo o exercício de
uma maior certeza na fé. Contudo, conduz à fecundidade de conhecer
mais intensamente a Deus no amor como o Amado que no mistério está
além das limitaçõ es do conhecimento humano. A escuridã o do
“desconhecimento” ilumina-se com uma qualidade diferente de
conhecimento quando a presença divina de nosso Senhor é encontrada
pela alma com um amor e uma entrega mais intensos. No início deste
capítulo, um verso de um dos poemas menores de Sã o Joã o da Cruz
intitulado “Estrofes sobre um êxtase vivido em alta contemplaçã o” pode
servir como uma introduçã o adequada.

Quanto mais alto sobe,


menos compreende,
porque é escura a nuvem
que ilumina a noite;
quem sabe disso
permanece sempre no desconhecimento
transcendendo todo o conhecimento . (estrofe 5)

Para qualquer pessoa que experimente isso pela primeira vez, a


sensaçã o obscura na oraçã o de perder o controle sobre Deus e até
mesmo, estranhamente, de nã o conhecê-lo, pode parecer quase um
sinal de uma doença espiritual. Mas a experiência nã o é um estado
prejudicial à saú de e é importante que isso seja realizado sem muita
demora. Um doloroso sentimento de incompreensã o em relaçã o a Deus
é um aspecto da oraçã o interior mais profunda. Existem razõ es claras
para esta experiência de escuridã o, ao mesmo tempo que causa
confusã o na oraçã o. A desproporçã o entre a natureza de Deus e a nossa
natureza humana limitada torna-se uma experiência de oraçã o na
medida em que a nossa alma se aproxima de Deus. Mesmo que Deus
nos ame com grande ternura e misericó rdia, permanece um abismo
incomensurável entre Deus e a nossa alma. Uma vez iniciada a graça da
contemplaçã o, esta verdade da transcendência divina nã o é mais
simplesmente uma afirmaçã o doutriná ria acreditada na fé. Agora torna-
se experimentado na pró pria oraçã o; e nã o, é claro, por qualquer olhar
exaltado para as misteriosas profundezas da presença divina. Em vez
disso, a realidade da transcendência infinita de Deus pode parecer
penetrar na experiência da oraçã o como uma névoa vinda do oceano,
envolvendo e envolvendo a mente. Nã o é, estritamente falando, uma
ausência de conhecimento que ocorre, mas sim uma consciência de
estar sendo esticado desconfortavelmente e até mesmo oprimido pela
realidade de Deus. O encontro com Deus na oraçã o, mais direto e
imediato na contemplaçã o, traz à oraçã o um forte sentimento de
cegueira, e muitas vezes de forma dolorosa.

Este efeito contemplativo sobre a alma tem razõ es teoló gicas, como
observa Sã o Joã o da Cruz: “Quanto mais claras e ó bvias sã o as coisas
divinas em si mesmas, mais escuras e ocultas elas sã o naturalmente
para a alma” (DN 2.5.3). Podemos recordar dos capítulos anteriores a
ocultaçã o de Deus dentro da alma e os efeitos da fé mais profunda no
intelecto. Pairando sempre no pano de fundo da compreensã o da
contemplaçã o de Sã o Joã o da Cruz está a verdade da
incompreensibilidade ú ltima de Deus e da necessidade da alma de se
prostrar na fé diante do seu mistério infinito. Por exemplo, por mais
calmo que seja o tom da afirmaçã o a seguir, as palavras implicam quã o
difícil é para uma alma apaixonada por Deus experimentar a escuridã o
da contemplaçã o. Deus é conhecido no amor, mas apenas por um
conhecimento que excede os limites de todas as noçõ es familiares de
conhecimento. É um “saber pelo desconhecer”. Como escreve Sã o Joã o
da Cruz numa passagem do Cântico Espiritual :

Por causa de sua obscuridade, ela chama de noite de contemplaçã o. Por


esse motivo, a contemplaçã o também é chamada de teologia mística,
significando o conhecimento secreto ou oculto de Deus. Na
contemplaçã o, Deus ensina a alma muito silenciosa e secretamente,
sem que ela saiba como, sem o som das palavras e sem a ajuda de
qualquer faculdade corporal ou espiritual, em silêncio e quietude, na
escuridã o, para todas as coisas sensoriais e naturais. Algumas pessoas
espirituais chamam esta contemplaçã o de conhecimento por
desconhecimento. (SC 39.12)

Para fornecer alguma explicaçã o para esta noçã o paradoxal de um


conhecimento por meio do desconhecimento, precisamos ponderar
mais profundamente o efeito das graças contemplativas nas faculdades
e apetites da alma. Devido ao seu efeito avassalador sobre as operaçõ es
naturais das faculdades humanas, a graça da contemplaçã o causa uma
espécie de perturbaçã o tanto na vida apetitiva como nas faculdades da
alma. Com o início das graças contemplativas, essas faculdades e
apetites ficam impossibilitados de conduzir-se em sua atividade
habitual, como mencionamos anteriormente. Eles sã o incapazes de
atingir suas satisfaçõ es naturais como apetites e faculdades. Esta
frustraçã o no nível natural é metaforicamente identificada como
escuridã o. Mas também é uma escuridã o experiencial real, e nã o apenas
uma metá fora. As faculdades e os apetites experimentam uma
incapacidade de operar de acordo com as suas disposiçõ es habituais e
inclinaçõ es naturais, o que significa, na verdade, que podem obter
pouca ou nenhuma satisfaçã o no esforço da oraçã o. O que eles
buscavam anteriormente de Deus foi acompanhado por apetites e
desejos naturais. Isto requer agora uma mudança radical para uma
receptividade puramente sobrenatural que responda à açã o divina
dentro da alma. Como escreve Sã o Joã o da Cruz em A Chama Viva do
Amor :

O desejo da alma por Deus nem sempre é sobrenatural, mas apenas


quando Deus o infunde e ele mesmo dá força para isso. Isto é muito
diferente do desejo natural, e até que Deus infunda o desejo, há muito
pouco ou nenhum mérito. Assim, quando você, por seu pró prio poder,
deseja Deus, seu desejo nã o passa de um apetite natural; nem será nada
mais até que Deus o informe sobrenaturalmente. Quando você por si
mesmo se torna apegado à s coisas espirituais e preso ao seu sabor, você
exercita seu apetite natural e assim coloca a catarata diante de seus
olhos. (LF 3,75)

Este é um comentá rio significativo para uma melhor compreensã o da


contemplaçã o. É necessá rio um movimento da atividade natural para
uma experiência receptiva de uma açã o sobrenatural. Em outras
palavras, uma transiçã o dentro da alma deve ocorrer com o início das
graças contemplativas. Sobrenaturalmente, ocorre um deslocamento,
como um médico quebrando um osso para restaurá -lo para a cura. A
transformaçã o para uma disposiçã o contemplativa dentro das
faculdades e apetites nã o é facilmente aceita por nenhuma alma, assim
como uma pessoa nã o fica feliz por ter um osso quebrado por um
médico. A principal dificuldade geralmente é que a alma nã o tem
referência para interpretar o que está acontecendo nesta transiçã o. Ele
experimenta esta ruptura na sua vida interior como uma condiçã o
diferente de qualquer experiência anterior na vida interior de oraçã o.
No entanto, só tem um recurso seguro, como insiste Sã o Joã o da Cruz. A
alma só caminha com segurança quando permite que essas faculdades e
apetites interiores permaneçam nas trevas ou, melhor ainda, sejam
abraçados pelas trevas. Devem entregar-se a esta experiência interior
sem tentar resolvê-la ou mitigar os seus efeitos. A seguinte passagem de
A Noite Escura transmite esta necessidade de aceitaçã o de uma
experiência inteiramente nova na oraçã o:

Oh, entã o, alma espiritual, quando você vir seus apetites escurecidos,
suas inclinaçõ es secas e constrangidas, suas faculdades incapacitadas
para qualquer exercício interior, nã o se aflija; pense nisso como uma
graça, pois Deus está libertando você de si mesmo e tirando de você a
sua pró pria atividade. Por mais que suas açõ es tenham sido bem-
sucedidas, você nã o trabalhou tã o completa, perfeita e seguramente -
por causa de sua impureza e estranheza - como faz agora que Deus o
pega pela mã o e o guia nas trevas, como se você fosse cego. ao longo de
um caminho e para um lugar que você nã o conhece. Você nunca teria
conseguido chegar a este lugar, nã o importa quã o bons fossem seus
olhos e seus pés. (DN 2.16.7)

Esta experiência da escuridã o é precisamente a “noite de


contemplaçã o”. Parafraseando as palavras de Sã o Joã o da Cruz sobre os
efeitos da contemplaçã o na vida interior, podemos dizer que ela
amortece, adormece, priva a capacidade de encontrar prazer. Liga a
imaginaçã o e a memó ria, torna o intelecto incapaz de compreender, faz
com que a vontade se sinta constrangida e á rida, sem desejo sentido.
Todas as faculdades podem parecer vazias e inú teis, amarradas e
algemadas. “E sobre tudo isso paira uma nuvem densa e pesada que
aflige a alma e a mantém afastada de Deus ” (DN 2.16.1; grifo nosso). A
ú ltima frase é a mais reveladora. Está realmente acontecendo um
sofrimento, o sofrimento, ao que parece, de perder o contato com Deus.
A incapacidade da vida interior para funcionar normalmente
corresponde a uma incapacidade de encontrar Deus de qualquer forma
satisfató ria. E, no entanto, ao contrá rio de qualquer impressã o de um
estado de alma perturbado, a declaraçã o seguinte esclarece a verdade
real subjacente a estes sintomas como uma condiçã o saudável da alma:
“Como resultado, a alma afirma que na escuridã o caminha
seguramente” (DN 2.16.1). ). A alma pode prosseguir e avançar na
resposta à s graças contemplativas, aceitando a escuridã o e o vazio em
suas operaçõ es naturais: “Na medida em que a alma caminha nas trevas
e no vazio em suas operaçõ es naturais, ela caminha com segurança”
(DN 2.16.3) . Esta atitude na oraçã o nã o é fá cil e nã o é aprendida tã o
rapidamente por nenhuma alma. Sã o Joã o da Cruz reconhece a
dificuldade e levanta uma objeçã o que ele por sua vez responderá :
“Visto que as coisas de Deus em si mesmas produzem o bem na alma,
sã o benéficas e dã o segurança, por que Deus nesta noite obscurece os
apetites e faculdades, de modo que estes nã o obtêm satisfaçã o com
essas coisas boas e acham difícil ocupar-se com elas - em alguns
aspectos, ainda mais difícil do que ocupar-se com outras coisas? (DN
2.16.4).

Sua resposta é reiterar a capacidade humilde e impura dos apetites e


faculdades naturais para as coisas de Deus. Eles precisam ser
reformulados de maneira radical se, como vastas “cavernas de
sentimento” interiores, puderem ser preenchidos por Deus. Somente
através de uma purificaçã o e esvaziamento da sua atividade natural, na
qual normalmente procuram satisfaçõ es naturais mesmo nos exercícios
espirituais da oraçã o, podem tornar-se adequados para a recepçã o de
uma satisfaçã o espiritual mais profunda que tem uma fonte no pró prio
Deus. Mas isto requer especialmente uma resposta alerta e atenta na
oraçã o. Uma abordagem disciplinada para nã o buscar as satisfaçõ es
mais fá ceis do passado é crucial para o avanço de uma alma na oraçã o
contemplativa. Como escreve Sã o Joã o da Cruz: “Neste momento nã o
deve haver atividade ou satisfaçã o relativa aos objetos espirituais,
porque as faculdades e apetites da alma sã o impuros, humildes e muito
naturais. E mesmo que Deus desse a essas faculdades a atividade e o
deleite das coisas sobrenaturais e divinas, eles seriam incapazes de
recebê-las, exceto à sua pró pria maneira, de maneira muito bá sica e
natural” (DN 2.16.4).

O ponto fundamental aqui é sutil e facilmente ignorado nas vidas


espirituais. Podemos encontrar satisfaçõ es familiares nas coisas de
Deus que, na verdade, serã o, em grande parte, simplesmente
satisfaçõ es naturais, semelhantes à s que podemos desfrutar em coisas
que nã o sã o espirituais. A suposiçã o das pessoas religiosas é que as
satisfaçõ es encontradas nas coisas espirituais e na oraçã o devem ser
devidas ao favor e à graça divinos. Muitas vezes acredita-se que essas
satisfaçõ es sinalizam um avanço sobrenatural. Mas isto nã o é
necessariamente assim. Como escreve Sã o Joã o da Cruz: “Quantas
pessoas têm numerosas inclinaçõ es para com Deus e para com as coisas
espirituais, empregam nelas as suas faculdades, obtêm grande
satisfaçã o ao fazê-lo, e pensam que as suas acçõ es e apetites sã o
sobrenaturais e espirituais, quando talvez já nã o o sejam. do que
natural e humano” (DN 2.16.5).

As palavras sã o uma reprovaçã o, talvez, para todos os que


identificam a profundidade das suas relaçõ es com Deus pela satisfaçã o
que obtêm das suas prá ticas de piedade, por exemplo, num sentimento
reconfortante de paz interior. É necessá ria uma compreensã o mais
profunda das nossas relaçõ es com Deus. A descriçã o que Sã o Joã o da
Cruz vai encorajar para a nossa busca nã o é exagerada de uma paralisia
interior. Pelo contrá rio, é aceitar a incapacidade bá sica das nossas
faculdades de funcionar nos modos normais da inclinaçã o natural, uma
vez que Deus concede a graça da contemplaçã o. Na “noite de
contemplaçã o”, a mente é incapaz de gerar insights; a vontade nã o pode
despertar nenhum desejo espiritual; os sentimentos muitas vezes sã o
completamente á ridos. Estas frustraçõ es pareceriam inicialmente
indicar uma diminuiçã o na oraçã o. Mas os sintomas sã o secundá rios em
relaçã o à açã o espiritual oculta que ocorre nos recô nditos mais
profundos da alma na oraçã o contemplativa. Neste nível mais profundo,
sem uma escolha directa da nossa parte, está a ocorrer uma acçã o de
Deus que requer a nossa cooperaçã o para nã o interferir nela.
Interferiríamos com Deus se procurá ssemos retomar uma abordagem
ativa na oraçã o, tentando recuperar as nossas antigas satisfaçõ es na
oraçã o. Em vez disso, cooperamos entregando o controle da nossa
oraçã o ao pró prio Deus. Temos que renunciar à nossa inclinaçã o para
dirigir a nossa pró pria atividade em oraçã o. A entrega da alma na
contemplaçã o é ser receptiva especialmente à vontade que é atraída em
amor a Deus, e talvez de uma forma que nã o podemos confirmar na
experiência. Isto nã o pode acontecer sem um aquietamento preliminar
da “atividade” dentro das nossas faculdades em oraçã o. A condiçã o para
esta receptividade é esclarecida por Sã o Joã o da Cruz nesta breve
declaraçã o: “Se a alma, em seus atos interiores, deve ser movida por
Deus divinamente, ela deve ser obscurecida, adormecida e pacificada
em relaçã o ao seu estado natural. capacidade e operaçõ es até que estas
percam a força” (DN 2.16.6).

A experiência para a alma pode ser mais desconfortável do que a


descriçã o sugere. Permitir que a inclinaçã o natural das nossas
faculdades “seja obscurecida, adormecida e pacificada” pode ser
totalmente contrá ria ao nosso desejo natural e pode provocar uma forte
resistência interior. Muitas pessoas de temperamento ativo ou que têm
força de vontade para enfrentar desafios terã o dificuldade em
permanecer simplesmente receptivas a uma açã o divina que nã o
podem medir ou “ver”. Para usar outra imagem, poderíamos comparar
esta açã o de Deus na contemplaçã o com a “dominaçã o” de um cavalo
jovem quando ele pega um cavaleiro e começa a ser treinado e sujeito a
outro. O cavalo perde a autonomia para correr na direçã o que quiser. A
alma sob o impacto da açã o oculta de Deus na contemplaçã o vai
perdendo certa autonomia para dirigir a pró pria oraçã o. Está a sofrer
uma profunda modificaçã o nas suas faculdades interiores precisamente
por perder o controlo da sua oraçã o. Com efeito, é entrar num lugar
novo e desconhecido de encontro com Deus. Esta adaptaçã o a uma açã o
divina que se realiza com maior destaque na vida de oraçã o significará
sempre uma experiência de escuridã o interior e de alguma incerteza:

Para chegar a uma terra nova e desconhecida e viajar por estradas


desconhecidas, os viajantes nã o podem ser guiados pelo seu pró prio
conhecimento; em vez disso, têm dú vidas sobre o seu pró prio
conhecimento e procuram a orientaçã o de outros. Obviamente, nã o
poderã o alcançar novos territó rios ou obter este conhecimento
adicional se nã o seguirem estes caminhos novos e desconhecidos e
abandonarem os que lhes sã o familiares. Da mesma forma, as pessoas
que aprendem novos detalhes sobre a sua arte ou ofício devem
trabalhar nas trevas e nã o com o que já sabem. Se recusarem pô r de
lado o seu conhecimento anterior, nunca farã o qualquer progresso
adicional. A alma também, quando avança, caminha nas trevas e no
desconhecimento. (DN 2.16.8)

A obscuridade de ser levado “para um lugar que você nã o conhece”


(DN 2.16.7) trará benefícios que somente uma perspectiva espiritual
pode discernir. O paradoxo novamente vem à tona. A alma avança com
segurança na medida em que nã o percebe o caminho que percorre nas
trevas. Tem que andar cego; ela ganha e lucra espiritualmente, embora
“normalmente pense que está se perdendo” (DN 2.16.8). Na verdade, a
escuridã o pode aumentar e tornar-se mais profunda com o tempo, à
medida que a alma se aproxima de Deus. Esta experiência mais dura de
obscuridade interior naturalmente nã o é recebida como uma mudança
favorável, assim como perder um caminho familiar numa floresta
escura ao anoitecer seria uma ocorrência bem-vinda. Mas neste caso, a
perda da experiência familiar na oraçã o é fortuita e proveitosa. A alma
“está se perdendo no que conheceu e provou, e segue por um caminho
que nã o prova nem conhece” (DN 2.16.8). As faculdades e apetites na
oraçã o estã o passando por uma mudança de operaçõ es naturais para
operaçõ es sobrenaturais. O teste crucial para a alma é nã o voltar para
trá s e inverter a direçã o. Deve continuar a caminhar cegamente, sem
procurar regressar aos velhos métodos familiares de oraçã o. A
segurança é encontrada em manter-se firme no desejo e no amor,
apesar da experiência da escuridã o interior. Como escreve Sã o Joã o da
Cruz numa passagem anterior de A Noite Escura: “Conseqü entemente,
tais pessoas nã o deveriam se importar se as operaçõ es de suas
faculdades estã o sendo perdidas para elas; eles deveriam desejar que
isso fosse feito rapidamente para que nã o fossem obstá culo à operaçã o
da contemplaçã o infundida que Deus está concedendo” (DN 1.10.6).

Sã o Joã o da Cruz descobre outra imagem de contemplaçã o sombria


nas “á guas escuras” invocadas no Salmo 17 [Sl. 18:11]: “Deus fez das
trevas o seu esconderijo e esconderijo, e das á guas escuras nas nuvens
do ar o seu taberná culo ao seu redor” (DN 2.16.11). As “á guas escuras”,
como afirma o versículo, sã o um taberná culo e morada de Deus. A
imagem requer alguma reflexã o. O taberná culo, tal como o conhecemos
nas nossas igrejas cató licas, encerra a presença real do divino Senhor
na Eucaristia. Na imagem do salmo, o taberná culo das trevas é um
recinto onde o Senhor se esconde. As trevas sã o a parede deste
taberná culo, dentro da qual o Senhor reside na sua presença oculta.
Esta é a sua morada, e a alma tem que entrar neste muro de trevas se
quiser aproximar-se do Deus oculto. A escuridã o entã o esconderá a
alma também: “Nesta escuridã o a alma está escondida e protegida de si
mesma e do dano das criaturas” (DN 2.16.13). A ideia de um
taberná culo onde Deus se esconde na sua presença corporal na
Eucaristia é-nos familiar. A imagem de um tabernáculo de trevas ,
porém, onde Deus se esconde dentro de nó s, pode nã o nos atrair
inicialmente. Talvez uma visita a uma igreja na calada da noite, com
todas as luzes apagadas e apenas a lâ mpada do taberná culo piscando
na escuridã o, possa capturar o significado mais profundo desta
imagem. O profundo sentido da presença real de nosso Senhor no meio
daquela escuridã o pode ser inegavelmente evidente. Na certeza da fé
intensa, podemos conhecer paralelamente a presença inegável de
Nosso Senhor nas trevas da contemplaçã o. A seguinte passagem deste
comentá rio sobre as “á guas escuras” transmite quã o profundamente
Sã o Joã o da Cruz valoriza a disponibilidade da nossa alma para
caminhar através das trevas no nosso caminho para Deus. Nas trevas,
na intensa certeza da fé, a nossa alma caminha segura. Essa consciência
é um insight sério que nã o é comumente adotado. Naturalmente
preferimos luz e satisfaçã o, mas muitas vezes estas podem nos enganar.
O caminho mais seguro, pelo menos para o contemplativo, é a escuridã o
da fé intensa.

Oh, que miserável é esta vida! Vivemos em meio a tantos perigos e


achamos muito difícil chegar à verdade. As coisas mais claras e
verdadeiras sã o para nó s as mais obscuras e duvidosas e,
consequentemente, fugimos daquilo que mais nos convém. Abraçamos
o que nos enche os olhos de mais luz e satisfaçã o e corremos atrá s do
que é o pior para nó s, e caímos a cada passo. Em quanto perigo e medo
vive o homem, visto que a pró pria luz dos seus olhos naturais, que
deveria ser o seu guia, é a primeira a enganá -lo no seu caminho para
Deus, e visto que deve manter os olhos fechados e trilhar o caminho na
escuridã o se quiserem ter certeza de para onde vã o e estar protegidos
contra os inimigos de sua casa, de seus sentidos e faculdades. (DN
2.16.12)

Sã o Joã o da Cruz oferece uma visã o adicional sobre a necessidade de


uma “contemplaçã o sombria” ao falar de um “segredo” essencial na
contemplaçã o. Sempre há uma comunicaçã o de Deus à alma na
contemplaçã o. A questã o, entretanto, é que tipo de comunicaçã o
ocorre? No Cântico Espiritual , Sã o Joã o da Cruz escreve duas pequenas
frases que transmitem o grande segredo que opera na contemplaçã o:
“Para Deus, olhar é amar. . . pois Deus olhar é amar” (SC 31.8; 32.3). A
alma em contemplaçã o, mesmo desconhecida para si mesma, está sob o
domínio e a atraçã o deste olhar divino de amor. A comunicaçã o de Deus
à alma ocorre através do amor, por meio de um profundo anseio por
Deus na alma humana, e geralmente sem qualquer experiência notável
para o intelecto, a nã o ser a escuridã o de sua compreensã o. Pelo amor,
uma sabedoria é transmitida secretamente à alma sobre o valor
incomparável do amor. O conhecimento pelo amor na contemplaçã o
muitas vezes nã o traz nada além de um conhecimento do amor em seu
poder de atraçã o sobre a alma. A atraçã o da vontade humana
apaixonada pela vontade de Deus; o desejo amoroso de entregar-lhe a
alma; à s vezes, mais raramente, uma chama viva acendeu-se na alma
como se estivesse na proximidade de um imenso fogo invisível e
pró ximo: estas sã o as realidades da comunicaçã o divina do amor à alma
na contemplaçã o. Sã o Joã o da Cruz comenta o segredo desta
comunicaçã o divina pelo amor:

Chama esta contemplaçã o sombria de “secreta”, pois, como


mencionamos, a contemplaçã o é a teologia mística, que os teó logos
chamam de sabedoria secreta e que Sã o Tomá s diz ser comunicada e
infundida na alma através do amor. Esta comunicaçã o é secreta e
obscura para o trabalho do intelecto e das outras faculdades. Na medida
em que estas faculdades nã o a adquirem, mas o Espírito Santo a
infunde. . . a alma nã o sabe nem entende como isso acontece e por isso
chama isso de segredo. (DN 2.17.2)

O segredo está na incapacidade da alma de compreender ou


compreender a contemplaçã o de qualquer forma satisfató ria. É um
conhecimento por amor que nã o oferece clareza para a mente levar
consigo como uma lembrança. A alma simplesmente sabe que está
sendo atraída, à s vezes com intensidade, pelo seu amor por Deus. Mas
isto é suficiente; nenhum outro conhecimento é necessá rio. A infusã o
interior de amor é recebida de Deus e atribuída a ele, sem necessidade
de compreensã o. O sigilo nesta descriçã o nã o deve ser equiparado,
contudo, a uma total falta de compreensã o. A experiência do amor na
contemplaçã o tem um aspecto secreto de inefável, mas isso nã o
significa que seja totalmente desconhecida. Simplesmente nã o pode ser
transmitido na descriçã o: “Nã o apenas uma pessoa nã o se sente
disposta a expressar esta sabedoria, mas também nã o encontra meios
adequados ou comparaçã o para significar uma compreensã o tã o
sublime e um sentimento espiritual tã o delicado” (DN 2.17.3). Embora
nenhuma imagem ou ideia possa envolver esta experiência de amor,
“ainda assim, a alma está claramente consciente de que compreende e
saboreia aquela sabedoria deliciosa e maravilhosa” (DN 2.17.3). Esta é a
sabedoria do amor que se dá na contemplaçã o. A linguagem de Deus é
falada no silêncio da oraçã o por meio do amor. Sã o Joã o da Cruz escreve
muito bem sobre a inefabilidade desta linguagem divina:

A linguagem de Deus tem esta característica: por ser muito espiritual e


íntima da alma, transcendendo tudo o que é sensorial, silencia
imediatamente toda a capacidade e composiçã o harmoniosa dos
sentidos exteriores e interiores. . . . Visto que a sabedoria desta
contemplaçã o é a linguagem de Deus para a alma, do Espírito Puro para
o espírito puro, tudo o que é inferior ao espírito, como o sensorial, falha
em percebê-lo. Conseqü entemente, esta sabedoria é secreta para os
sentidos; eles nã o têm nem o conhecimento nem a capacidade de falar
sobre isso, nem sequer desejam fazê-lo porque está além das palavras.
(DN 2.17.3, 4)

Sã o Joã o da Cruz propõ e outro aspecto deste segredo de


contemplaçã o: “Tem a característica de esconder dentro de si a alma”
(DN 2.17.6). Quanto mais intenso o amor na contemplaçã o, mais ele
esconde a alma nas regiõ es mais profundas da alma. O amor tem o
efeito de atrair a alma para o seu centro oculto, para as cavernas
interiores onde o pró prio Deus se esconde. A habitaçã o de Deus na
alma assume uma nova ressonâ ncia de atraçã o quando percebemos que
o amor nos permite render-nos à presença de Deus que reside dentro
de nó s. Sã o Joã o da Cruz escreve de forma contundente que “o centro da
alma é Deus” (LF 1.12). Esta verdade nunca é compreendida de maneira
final e conclusiva. Pelo contrá rio, serve para animar uma vida de oraçã o
numa doaçã o progressiva da alma a Deus. Há uma passagem profunda
em A Chama Viva do Amor precisamente sobre o amor como o caminho
dinâ mico que conduz a alma ao seu centro oculto em Deus. O amor nã o
é um ideal ou uma noçã o abstrata aqui. Requer uma plenitude de
generosidade sacrificial exterior e entrega e oferta interior a Deus.
Estas palavras de Sã o Joã o da Cruz sã o provocativas para qualquer alma
apaixonada por Deus, pois percebe que uma busca incessante pelo
amor é tudo o que importa na vida:

O amor é a inclinaçã o, a força e o poder para a alma seguir seu caminho


para Deus, pois o amor a une a Deus. Quanto mais graus de amor tiver,
mais profundamente penetra em Deus e se centra nele. Podemos dizer
que existem tantos centros em Deus possíveis para a alma, cada um
mais profundo que o outro, quantos graus de amor a Deus sã o possíveis
para ela. Um amor mais forte é um amor mais unitivo, e podemos
entender desta forma as muitas mansõ es que o Filho de Deus declarou
estarem na casa de seu Pai [Jo. 14.2]. Portanto, para que a alma esteja
no seu centro - que é Deus, como dissemos - é suficiente que ela possua
um grau de amor, pois apenas por um grau ela está unida a ele pela
graça. Caso tenha dois graus, torna-se unido e concentrado em Deus em
outro centro mais profundo. Caso chegue a três, centra-se num terço.
Mas uma vez atingido o grau final, o amor de Deus chegou a ferir a alma
no seu centro ú ltimo e mais profundo. (LF 1.13)

Toda esta entrada mais profunda no mistério do amor acontece,


entã o, num grande segredo. Nã o há marcas de progresso para a mente
mapear e pelas quais navegar na experiência interior da contemplaçã o:
“O caminho para Deus é tã o oculto e secreto para os sentidos da alma
quanto os passos de alguém que anda sobre as á guas, imperceptíveis
para o sentidos do corpo” (DN 2.17.8). A experiência do amor na
contemplaçã o simplesmente atrai a alma mais profundamente para
baixo das camadas de amor dentro de sua pró pria alma. A ênfase numa
aventura amorosa desconhecida e oculta é forte: “Sã o irreconhecíveis
os traços e pegadas que Deus deixa naqueles que deseja trazer para si,
engrandecendo-os na uniã o com a sua sabedoria” (DN 2.17.8) . Sã o Joã o
da Cruz escreve que à s vezes a sabedoria da contemplaçã o
“ocasionalmente envolve as almas no seu abismo secreto, que elas têm
a aguda consciência de serem levadas para um lugar distante de
qualquer criatura” (DN 2.17.6). O efeito de tal oraçã o é
inexprimivelmente profundo, desligando a alma da preocupaçã o com
assuntos mundanos que sã o de pouca importâ ncia aos olhos de Deus. O
amor nesta experiência contemplativa da vastidã o interior da alma leva
a um conhecimento secreto do amor como a ú nica busca digna na vida.
A descriçã o a seguir pode ser lida tendo em vista o seu efeito na vida de
uma alma apó s um período de oraçã o. As palavras podem nos lembrar
novamente da descriçã o anterior das faculdades como cavernas
internas da alma onde Deus pode entrar e habitar. “Eles, portanto,
sentem que foram levados a um deserto extraordinariamente profundo
e vasto, inatingível por qualquer criatura humana, a um deserto imenso
e ilimitado, quanto mais delicioso, saboroso e amoroso, mais profundo,
mais vasto e mais solitá rio ele é. Eles têm consciência de estarem tanto
mais ocultos quanto mais elevados estã o acima de toda criatura
temporal” (DN 2.17.6).

Mais uma imagem usada por Sã o Joã o da Cruz para descrever a


contemplaçã o é falar desta sabedoria secreta como uma escada. As
comunicaçõ es que o segredo da contemplaçã o traz à alma têm um
duplo efeito: elevam a alma no amor e humilham-na até ao ponto da
humilhaçã o, à medida que a alma percebe o seu escasso retorno de
amor a Deus. A combinaçã o é necessá ria, a de ser exaltado no amor e
humilhado pelo amor. “Pois nesta estrada descer é subir e subir é
descer” (DN 2.18.2). O aspecto mais comovente desta dupla qualidade é
a aparente inconsistência encontrada na experiência da contemplaçã o.
Deus nã o permite que a alma experimente apenas uma exaltaçã o de
amor elevado. Ele humilha a alma de vá rias maneiras, deixando-a
muitas vezes por longos períodos num aparente deserto de humilhante
vazio dentro de si mesma. Esta também é uma característica inevitável
no caminho da contemplaçã o. A alma sobe e desce uma escada de
experiências mutáveis em suas relaçõ es com Deus. Nada permanece tã o
estável e previsível. A procura contínua de autoconhecimento exige um
mergulho em experiências da necessidade absoluta que a alma tem de
Deus em todos os sentidos. Somente sendo humilhada a alma se esvazia
para uma nova entrada nas profundezas do amor divino. O resultado é
uma eliminaçã o saudável da presunçã o, vangló ria, julgamento ou
condenaçã o de outros; pois “essas pessoas pensam interiormente que
sã o realmente piores do que todas as outras” (DN 2.19.3). Todo desejo
se torna mais concentrado em dar prazer a Deus e prestar-lhe serviço
em troca dos favores que ele concedeu. Sã o Joã o da Cruz escreve sobre
este contraste de experiências na contemplaçã o de uma forma que
algumas pessoas acharã o necessá rio ponderar e lembrar. Aqueles que
esperam um nivelamento das provaçõ es interiores na oraçã o e a
chegada finalmente de uma experiência estável e segura de
proximidade com Deus, em vez do caminho tortuoso e tortuoso
descrito na passagem seguinte, podem tomar nota destas palavras:

A alma, se desejar prestar muita atençã o, reconhecerá claramente como


neste caminho sofre muitos altos e baixos, e como imediatamente apó s
a prosperidade se seguem algumas tempestades e provaçõ es, tanto que
aparentemente a calma foi dada para preveni-la e fortalecê-la. contra a
penú ria futura. Vê também como a abundâ ncia e a tranquilidade
sucedem à miséria e ao tormento, e de tal forma que pensa que foi
obrigado a jejuar antes de celebrar aquela festa. Este é o procedimento
comum no estado de contemplaçã o até chegar ao estado de
tranquilidade: a alma nunca permanece em um estado, mas tudo é
subida e descida. (DN 2.18.3)

Experiências diversas e contraditó rias sã o um padrã o típico, como


afirma esta passagem, no caminho contemplativo para Deus. Essas
experiências contrá rias à s vezes ocorrem em combinaçã o. Podemos
ficar perplexos, por exemplo, sobre como o avanço na oraçã o pode
envolver tanto uma sabedoria amorosa como uma ausência de
compreensã o. Uma maneira de explicar isto é que na contemplaçã o
Deus prefere que a sua instruçã o no amor seja uma liçã o oculta para a
alma. O amor pode muitas vezes ser recebido em oraçã o sem que a
alma saiba como isso ocorre. Será possível que Deus possa conduzir a
alma a um amor maior naquilo que pode parecer um vazio de encontro
com Ele? O segredo do que está acontecendo no reino oculto da alma
fornece a pista sagrada para esta realidade. O segredo do amor divino
que atrai a alma para profundezas interiores invisíveis é uma verdade
essencial na contemplaçã o. O reconhecimento na fé desta açã o secreta
do amor é uma necessidade crucial para que a alma seja ensinada pelo
amor: “Através desta contemplaçã o”, escreve Sã o Joã o da Cruz numa
passagem anterior de A Noite Escura , “Deus ensina a alma
secretamente e o instrui na perfeiçã o do amor sem que ele faça nada ou
entenda como isso acontece” (DN 2.5.1). Uma alma pode nã o ter
consciência dos grandes desejos por Deus que inflamam as camadas
mais profundas da sua alma, mas isso nã o significa que esses desejos
nã o estejam ardendo sob a consciência. Deus mantém a alma
inconsciente, nas trevas, para despojá -la e esvaziá -la de todos os
impulsos egoístas. Ele deseja um “afastamento de si mesmo”, através do
qual uma alma nã o possa medir o seu progresso no amor, que
permanece em recô nditos mais profundos de ocultaçã o. A primeira
estrofe de “A Noite Escura”, interpretada por Sã o Joã o da Cruz, é uma
alusã o poética a este efeito de contemplaçã o. A estrofe diz o seguinte:

Numa noite escura,


incendiado pelos anseios urgentes do amor
— ah, que pura graça! —
saí sem ser visto,
minha casa agora estava toda silenciosa.

“Saí sem ser visto”: As palavras transmitem esta necessidade de


afastar-se de si mesmo para entrar na sabedoria amorosa da
contemplaçã o. A sabedoria descoberta nas trevas é uma sabedoria de
pobreza interior. A alma tem que aceitar que simplesmente nã o
entende quando está imersa nas trevas. Ela fica pobre por causa dessa
ausência de compreensã o. Os “anseios urgentes do amor” podem nã o
ser sentidos, mesmo que esse amor seja uma realidade profunda que
consome o desejo interior da alma. A sabedoria é um estado intenso de
saber que Deus está agindo sobre a alma e animando o seu amor,
mesmo que a alma nã o consiga compreender como isso ocorre. Através
de uma profunda certeza na sua fé, a alma nã o se deixa mergulhar
numa obscura confusã o de sombras perturbadoras. Cede
silenciosamente a Deus, abandonando-se a Deus, apesar da imersã o nas
trevas. As rédeas da oraçã o sã o entregues a Deus e nada se perde com
isso. A afirmaçã o a seguir vem imediatamente apó s a estrofe que
acabamos de citar. Salienta a importâ ncia desta libertaçã o de si mesmo,
acolhendo na oraçã o as trevas da pobreza interior. O caminho para a
sabedoria contemplativa é sempre percorrer um caminho de pobreza
interior:

Pobre, abandonado e sem apoio de nenhuma das apreensõ es da minha


alma (na escuridã o do meu intelecto, na angú stia da minha vontade e
na afliçã o e angú stia da minha memó ria), deixado nas trevas da fé pura,
que é uma noite escura por essas faculdades naturais, e com minha
vontade tocada apenas pelas tristezas, afliçõ es e anseios do amor de
Deus, saí de mim mesmo. Isto é, afastei-me da minha maneira baixa de
compreensã o, da minha maneira débil de amar e do meu método pobre
e limitado de encontrar satisfaçã o em Deus. (DN 2.4.1)

A incapacidade total que pode ser sentida por uma alma nã o é


principalmente uma condiçã o a ser suportada estoicamente. Pode ser
um cená rio interior para uma grande entrega a Deus, se a alma for dó cil
e receptiva. A entrega a Deus nas sombras da escuridã o interior torna-
se, por assim dizer, o caminho estreito para um amor contemplativo
maior. O que se segue é um paradoxo maravilhoso, a saber, que uma luz
penetrante é dada por meio do vazio purificador da escuridã o interior.
A luz divina recebida na alma, sob camadas de escuridã o, é uma marca
de contemplaçã o. Uma alma pode nã o experimentar esta luz da
sabedoria de uma forma clara, mas a luz do amor é dada e
eventualmente manifesta-se na visã o mais pura da alma em relaçã o a
todos os assuntos da vida. A alma percebe com mais sabedoria e
segurança que todas as coisas estã o nas mã os de Deus. Todas as coisas
começam a assumir um sentido de propó sito mais surpreendente no
plano divino. Esta sabedoria do amor é inseparável da pobreza da alma.
Quanto mais pobre a alma se torna em si mesma, mais profundamente
ela pode penetrar no mistério da acçã o de Deus. Na verdade, é mais
provável que uma penetraçã o mais profunda no significado espiritual
dos acontecimentos ocorra fora da oraçã o, precisamente quando a
pobreza da escuridã o interior está oprimindo a alma dentro da oraçã o.
O requisito essencial para tal compreensã o mais profunda é estar vazio
e pobre durante o tempo de oraçã o. Devemos simplesmente nos apegar
a Deus na escuridã o dessa pobreza. A alma pode tornar-se, por vezes,
um vaso ferido de desejo doloroso, à espera de ser preenchido pelo
pró prio Deus. Contudo, os frutos sã o grandes quando as trevas sã o
suportadas com uma certeza perseverante da presença amorosa de
Deus. “O sofrimento mais puro produz a compreensã o mais pura” (SLL,
127). Há uma promessa maravilhosa nesse curto aforismo. A seguinte
passagem pode servir como uma descriçã o conclusiva para tal estado
de alma:

Por isso o Apó stolo diz que a pessoa espiritual penetra todas as coisas,
até mesmo as coisas profundas de Deus [1 Cor. 2:10]. O que o Espírito
Santo diz através do Sá bio aplica-se a esta sabedoria geral e simples,
isto é, que toca em todos os lugares por causa de sua pureza [Sb. 7:24],
porque nã o é particularizado por nenhum objeto distinto de afeto. E
isto é característico do espírito purificado e aniquilado de todo
conhecimento e afeto particular: nã o encontrando satisfaçã o em nada
nem compreendendo nada em particular, e permanecendo em seu vazio
e escuridã o, ele abraça todas as coisas com grande preparaçã o. E as
palavras de Sã o Paulo sã o verificadas: Nihil habentes, et omnia
possidentes (Nã o tendo nada, mas possuindo todas as coisas) [2 Cor.
6:10]. Tal pobreza de espírito merece esta bem-aventurança. (DN 2.8.5)
Devemos acreditar que Deus ama esta pobreza na alma humana se
pretendemos percorrer o caminho da contemplaçã o. Mas estejamos
conscientes de que a pobreza tem sempre uma companheira tranquila.
A pobreza e as trevas operam juntas para trazer profundidade
contemplativa à alma. Nã o há necessidade de temê-los. A escuridã o
talvez seja difícil até começarmos a nos ajustar a uma percepçã o
diferente. Mas a alma deve conhecer também a sua pobreza essencial, a
sua pró pria incapacidade natural na busca de Deus. Esta nã o é apenas
uma atitude de tolerâ ncia. A necessidade é permanecer sempre um
pobre mendigo de amor esperando em Deus. A compreensã o de que
Deus ama a nossa alma mais intensamente quando esta é pobre e
desamparada no seu anseio por Ele é um limiar por si só para relaçõ es
mais profundas com Deus. A receptividade a Deus, ao silêncio de Deus e
ao nosso pró prio vazio torna-se entã o a tarefa imperativa. O
esvaziamento da alma na contemplaçã o nã o é uma prova pequena.
Significa despedir-se de um eu que está destinado a desaparecer.
Devemos abrir mã o do controle e permitir que Deus remodele a nossa
alma à sua maneira. O nosso esforço essencial deve ser simplesmente
cultivar uma acessibilidade à acçã o divina do amor, muitas vezes sem
saber o que Deus está a fazer nas camadas mais profundas da nossa
alma. Podemos confiar que assim ocorrerá um afastamento gracioso de
nó s mesmos, deixando-nos abertos ao ato de amor de Deus, vivo nas
profundezas da nossa alma. Em certo sentido, esta perda de nó s
mesmos é a ú nica coisa necessá ria se quisermos amar como Deus
deseja ser amado, ou seja, amar com o seu amor presente dentro de
nó s. Uma progressã o dolorosa, talvez, esta perda de si mesmo por amor
a Deus, e ainda assim, em qualquer dia de oraçã o, abre a passagem
através de uma fronteira de silêncio solitá rio para o encontro eterno
com a presença infinita do amor de Deus.
13
A Vontade na Oraçã o Inflamada pelo Amor Puro

Numa carta escrita a um frade carmelita desconhecido, em 14 de abril


de 1589, dois anos e meio antes de sua morte, Sã o Joã o da Cruz expô s,
num espaço relativamente curto, um notável tratado menor sobre a
importâ ncia da vontade na oraçã o. É digno de alguma atençã o,
especialmente depois do capítulo anterior sobre a experiência das
trevas na contemplaçã o. A verdade teoló gica que sustenta o conteú do
desta carta é a transcendência de Deus em sua infinitude divina. Um
efeito primá rio da transcendência infinita de Deus é a sua
inacessibilidade à experiência imediata das nossas faculdades naturais.
Deus, em sua realidade como Deus, está sempre além do alcance de
nossa experiência pessoal. Esta verdade agora familiar da teologia
apofá tica desempenha um papel importante na oraçã o. Embora seja
mais comum falar da verdade apofá tica da incompreensibilidade de
Deus para o nosso intelecto, isto tem uma verdade complementar na
inacessibilidade de Deus à nossa vontade na oraçã o, apesar do que
podem parecer ser experiências diretas dele.

Mas o que exatamente significa um termo tã o forte como


inacessibilidade? É mais fá cil aceitar que a mente nã o pode
compreender a natureza divina do que submeter-se a um ensinamento
sobre a oraçã o que possa parecer sugerir uma barreira ao Coraçã o de
Deus. Sã o Joã o da Cruz é bastante cuidadoso e preciso na escolha das
palavras. Ele nã o diz que Deus é incognoscível ou que uma porta está
fechada para um encontro real com ele. Na verdade, como já vimos, ele
identifica a contemplaçã o como um conhecimento amoroso de Deus, ou
um conhecimento pelo amor. A inacessibilidade de Deus que ele
enfatiza, aqui nesta carta e em outros lugares, tem a ver com a
experiência que a alma tem da vontade humana em uniã o com a
vontade de Deus, que ocorre até certo ponto na contemplaçã o. Uma
explicaçã o da experiência apofá tica nesta uniã o de vontades está no
cerne desta carta.

Pode ser ú til recordar inicialmente a operaçã o da inclinaçã o na


vontade, a primeira operaçã o da vontade, conforme descrita no capítulo
5. A vontade, pela sua inclinaçã o natural, dentro ou fora da oraçã o,
procura a satisfaçã o de tomar posse daquilo que ela possui. desejos.
Esta inclinaçã o natural desempenha um papel crucial na oraçã o. A
possibilidade na oraçã o é que em certos dias o deleite da consolaçã o
possa ser recebido no decorrer da oraçã o. Esta satisfaçã o, que pode ser
agraciada, pode, no entanto, desviar a alma de uma busca pura por
Deus, se se tornar o desejo principal buscado na oraçã o. O desejo de um
gosto ou sentimento espiritual, como Sã o Joã o da Cruz repete muitas
vezes nos seus escritos, pode substituir a necessidade muito maior de
voltar o nosso desejo plena e exclusivamente para o pró prio Deus,
numa grande entrega a ele. Numa carta a uma freira carmelita de
Có rdoba, escrita quase na mesma época, em julho do mesmo ano, ele
escreve: “Para possuir Deus em tudo, você nã o deve possuir nada em
tudo. Pois como pode o coraçã o que pertence a um pertencer
completamente ao outro?” (L17). O desejo puro pelo pró prio Deus tem
que ser uma necessidade consumidora para uma alma que ame a Deus
com intensidade. Os desejos secundá rios de experiências de satisfaçã o
na oraçã o devem ser entendidos como uma busca inferior.

Este ensinamento acarreta novas percepçõ es e desafios. Nada que


possa ser desfrutado como satisfaçã o na oraçã o deve ser interpretado
como apropriaçã o de Deus, assim como nenhum conhecimento de Deus
recebido em oraçã o é equivalente à compreensã o da verdadeira
verdade de Deus. Nenhuma amostra da presença de Deus na oraçã o
remove a inacessibilidade de Deus em sua natureza divina à
experiência imediata da alma humana. Pensar o contrá rio é ser
enganado. É necessá rio, entã o, nã o nos determos em nenhuma
experiência de satisfaçã o na oraçã o, como se uma posse de Deus tivesse
sido desfrutada nesse deleite. Pelo contrá rio, a alma deve aceitar que a
verdade mais profunda da oraçã o se estende sempre além de qualquer
experiência de oraçã o. A inclinaçã o da vontade na oraçã o deve
permanecer sempre desejosa pelo pró prio Deus, sem chegar, por assim
dizer, a um destino com alguma satisfaçã o. Na verdade, um desejo puro
por Deus nunca chega a uma saciedade final nesta vida, mas é
inflamado cada vez mais ao longo do tempo com um desejo
intensificado por Deus. Se desfrutarmos de algum prazer na oraçã o em
qualquer dia, esta experiência nã o transmite a verdade mais profunda
da oraçã o, que muitas vezes está escondida nas camadas invisíveis da
alma. Além disso, nã o devemos fazer da recuperaçã o de um prazer
experimentado em qualquer dia de oraçã o a motivaçã o para o pró ximo
momento de oraçã o. Qualquer descanso excessivo em oraçã o, num gozo
de saciedade, sem libertaçã o dessa satisfaçã o, é arriscar, na oraçã o
subsequente, que partiremos em busca de algo menos que Deus. Esta
tendência de buscar experiências agradáveis é parar prematuramente
na busca pelo pró prio Deus. A carta começa esclarecendo a natureza da
vontade como faculdade do desejo, mas também afirmando que nada
de particular que a vontade possa experimentar em satisfaçã o é uma
experiência do pró prio Deus. Deus está simplesmente além de todo
prazer que podemos desfrutar em oraçã o. “Observe que cada coisa
particular em que a vontade pode se alegrar é doce e deliciosa, pois é,
na opiniã o da pessoa, satisfató ria; e nada delicioso e doce em que
alguém possa se alegrar é Deus. Pois, visto que Deus nã o é apreensível
à s faculdades, ele nã o pode ser objeto dos apetites e das satisfaçõ es da
vontade. Visto que a alma nã o pode desfrutar de Deus essencialmente
nesta vida, toda a doçura e deleite que ela experimenta, por mais
sublime que seja, nã o pode ser Deus” (L13).

O ponto inicial da instruçã o é expor uma ilusã o enganosa bastante


comum nas almas: a saber, desviar a busca de Deus na oraçã o para uma
busca por experiências pessoais na oraçã o. Uma deliciosa satisfaçã o na
oraçã o, se recebida, pode facilmente ser considerada uma confirmaçã o
de maior proximidade com Deus e, por essa razã o, digna de ser
buscada. A natureza humana, por sua inclinaçã o natural, pode
enamorar-se do deleite consolador que pode ser experimentado na
oraçã o. O verdadeiro problema nesta tendência é a identificaçã o de
uma experiência de oraçã o com uma experiência do pró prio Deus. O
caminho puro para Deus na oraçã o consiste em nã o parar em nenhuma
experiência passageira de oraçã o. Deus, em sua realidade
transcendente, estende-se além de qualquer experiência recebida na
oraçã o. Qualquer satisfaçã o que possa ser experimentada na oraçã o,
mesmo o que pareça um gosto da presença de Deus de alguma maneira
imediata, não é uma experiência do pró prio Deus em seu mistério
infinito. Se a busca por experiências subjetivas se torna a busca que
motiva a oraçã o interior, uma sutil auto-busca se enraíza na prá tica da
oraçã o. Para evitar essa tendência, deveria ser adoptada uma
contramedida clara. Se ocorrer uma experiência gratificante na oraçã o,
ela deverá ser abandonada posteriormente. Em suma, é necessá rio um
grande desapego na oraçã o, que deixa a vontade vazia e talvez muitas
vezes insatisfeita no seu desejo. O forte conselho de Sã o Joã o da Cruz é
nã o parar diante de nenhum prazer passageiro, mas sim abandoná -lo e
seguir em frente. Mais uma vez, o princípio subjacente a esta
compreensã o é que a realidade de Deus nã o pode ser apreendida em
nenhuma experiência particular. A alma, com efeito, deve proteger-se
de qualquer ilusã o de que de alguma forma se apoderou de Deus numa
experiência de oraçã o.

Visto que a vontade nunca provou Deus tal como ele é, nem o conheceu
através de alguma gratificaçã o do apetite e, conseqü entemente, nã o
sabe como é Deus, ela nã o pode saber o que é o prazer de Deus; nem
seu ser, apetite e satisfaçã o podem desejar a Deus, pois ele transcende
toda a sua capacidade. Assim, é ó bvio que nenhuma dessas coisas
específicas nas quais ela pode se regozijar é Deus. Para estar unida a
ele, a vontade deve, conseqü entemente, ser esvaziada e desapegada de
todo apetite desordenado e satisfaçã o com respeito a cada coisa
particular em que possa regozijar-se, seja terrena ou celestial, temporal
ou espiritual, para que seja purificada e limpa de todas as satisfaçõ es,
alegrias e apetites desordenados, ele poderia estar totalmente ocupado
em amar a Deus com suas afeiçõ es. (L13)

O que Sã o Joã o da Cruz ensina aqui nesta perspectiva apofá tica da


inacessibilidade de Deus à nossa experiência? Podemos retornar a uma
instruçã o essencial sobre a contemplaçã o. A contemplaçã o é um
conhecimento pelo amor, como vimos, uma consciência na oraçã o da
vontade que anseia interiormente por Deus. Quando Deus é amado na
contemplaçã o, a experiência pode, ocasionalmente, proporcionar
prazer, porque o amor é gratificante. Mas esta gratificaçã o, por mais
forte que seja, nã o significa em si uma posse experiencial do pró prio
Deus. E é isso que Sã o Joã o da Cruz, nesta carta, identifica como um
problema para as almas, que muitas vezes identificam uma experiência
de sentimentos na oraçã o com a presença de Deus como a fonte
imediata desses sentimentos. A necessidade é tratar os sentimentos de
gratificaçã o no amor como uma realidade muito secundá ria na oraçã o.
Os olhos da alma devem permanecer voltados para o pró prio Deus, que
permanece sempre inacessível à alma e fora do alcance da experiência,
apesar da mais gratificante exaltaçã o de sentimentos que uma alma
pode desfrutar na oraçã o. A alma conhece Deus através do amor, nã o
através de uma gratificaçã o experiencial. E conhece-o na verdade do
amor como Aquele que permanece um Ser de mistério. O Deus oculto
de amor infinito é o Deus que deve ser engajado e procurado em
oraçã o. Talvez valha a pena recordar as frases marcantes que
encontramos no início do livro, no comentá rio da primeira estrofe do
Cântico Espiritual , que também enfatizava a inacessibilidade de Deus à
nossa experiência direta.

Você faz muito bem, ó alma, em buscá -lo sempre como alguém oculto,
pois você exalta a Deus e se aproxima muito dele quando o considera
mais alto e mais profundo do que qualquer coisa que você possa
alcançar. Portanto, nã o preste atençã o, nem parcial nem totalmente, a
nada que suas faculdades possam compreender. . . . Nunca pare para
amar e deleitar-se em sua compreensã o e experiência de Deus, mas
ame e deleite-se naquilo que você nã o pode compreender ou
experimentar dele. Esse é o caminho. . . de buscá -lo com fé. Por mais
certo que possa parecer que você encontra, experimenta e compreende
Deus, porque ele é inacessível e oculto, você deve sempre considerá -lo
oculto e servir aquele que está oculto de maneira secreta. (SC 1.12)

Outra verdade igualmente importante a ser reconhecida está


implícita nesta passagem do Cântico Espiritual e depois ampliada ainda
mais na carta. O amor na contemplaçã o, quando se aprofunda e nã o
para, necessariamente leva a alma pela graça para a realidade
incompreensível de Deus. É como se uma corrente subjacente de desejo
inflamado muito mais profunda estivesse ocorrendo na contemplaçã o
do que a vontade pode perceber em qualquer experiência de uma
gratificaçã o específica. A corrente mais profunda do amor que flui
através da vontade pode muitas vezes ser atraí-la para Deus sem que a
pessoa tenha plena consciência desse fato. O que é sentido de alguma
maneira tangível é um componente parcial e até superficial da
realidade mais profunda em açã o na contemplaçã o. A vontade está
unida a Deus pelo amor na contemplaçã o, mas de uma maneira
impossível para a vontade saborear em sua plena verdade. A uniã o da
vontade humana com a vontade de Deus ocorre precisamente como
uma verdade inacessível na contemplaçã o. A ênfase importante na
passagem seguinte desta carta é contrastar a distinçã o entre amor e
gratificaçã o como o caminho para a verdade de Deus na oraçã o. Sã o
Joã o da Cruz faz uma observaçã o astuta de que a operaçã o da vontade
no amor nã o é a mesma que a gratificaçã o dos sentimentos da vontade
no amor. O amor na operaçã o da vontade é sempre a realidade mais
rica, substituindo qualquer experiência de gratificaçã o sentida que a
alma possa desfrutar temporariamente. É a operaçã o do amor, muitas
vezes invisível, que deve ser a busca essencial da oraçã o.

Pois se de alguma forma a vontade pode compreender Deus e unir-se a


ele, é através do amor e nã o através de qualquer satisfaçã o do apetite. E
como o deleite, a doçura e a satisfaçã o que podem advir à vontade nã o
sã o amor, nenhum dos sentimentos deliciosos pode ser um meio
adequado para a uniã o da vontade com Deus; é a operaçã o da vontade
que é o meio proporcional para esta uniã o. A operaçã o da vontade é
bastante distinta do sentimento da vontade: pela sua operaçã o, que é o
amor, a vontade se une a Deus e termina nele, e nã o pelo sentimento e
satisfaçã o do seu apetite que permanece na alma e nã o vai mais longe.
(L13)

O que dizer, entã o, dos sentimentos de amor que podem ser


experimentados na oraçã o? Eles devem ser negados ou mortificados?
Ignorado ou renunciado? Sã o Joã o da Cruz escreve que eles deveriam
ser tratados simplesmente como fatores secundá rios na oraçã o, de
importâ ncia incidental. A consciência de uma corrente inflamada de
amor na vontade é muito mais significativa, porque é a verdade mais
profunda. No entanto, pode nã o ser encontrado de forma experiencial
pela sua verdade mais profunda. No entanto, numa resposta receptiva a
um anseio por Deus no fundo da alma, esta realidade de amor é
promovida. A abordagem equivocada, por outro lado, é permitir que a
busca por sentimentos na oraçã o domine o exercício da oraçã o. Para
muitas pessoas, os sentimentos podem tornar-se um item cobiçado na
oraçã o, bem como uma fonte de frustraçã o e instabilidade contínuas –
uma necessidade possessiva de uma satisfaçã o que de alguma forma é
sentida e depois se torna a medida da oraçã o, um há bito difícil de
abandonar. Os sentimentos de amor, por mais deliciosos que sejam,
deveriam ser apenas um meio de reconhecer a realidade mais
inacessível do amor, operando em camadas ocultas de profundidade na
vontade e na alma. A verdade maior ocorre na “caverna” invisível da
vontade, à medida que ela passa por um profundo “desejo da alma” por
Deus. Existe em toda vida contemplativa uma necessidade, pelo menos
por um tempo, de libertar a alma da busca de sentimentos, a fim de
abraçar esse reconhecimento mais profundo. O amor na vontade, mais
do que em qualquer sentimento, é a verdade muito mais profunda na
oraçã o e na contemplaçã o. Como escreve Sã o Joã o da Cruz:
Os sentimentos só servem como estímulos ao amor, se a vontade quiser
ultrapassá -los; e eles nã o servem mais. Assim, os sentimentos
deliciosos nã o conduzem por si mesmos a alma a Deus, mas antes
fazem com que ela se apegue a sentimentos deliciosos. Mas a operaçã o
da vontade, que é o amor de Deus, concentra o afeto, a alegria, o prazer,
a satisfaçã o e o amor da alma somente em Deus, deixando de lado todas
as coisas e amando-o acima de todas elas. Portanto, se as pessoas sã o
movidas ao amor de Deus sem depender da doçura que sentem, deixam
de lado essa doçura e centram o seu amor em Deus, a quem nã o podem
sentir. Se amassem a doçura e a satisfaçã o, parando e permanecendo
nelas, fazendo dos meios um fim e uma meta, o trabalho da vontade
seria, conseqü entemente, defeituoso. (L13)

Mais uma vez, a verdade essencial que justifica este ensino é a


transcendência de Deus à experiência humana. O esforço da alma na
contemplaçã o deve consistir em voltar o seu desejo exclusivamente
para o pró prio Deus, inclinando-se na direçã o do mistério inacessível
de Deus. O amor exige esta fixaçã o do nosso desejo no pró prio Deus,
nã o cedendo a satisfaçõ es secundá rias como alvos de busca. A ló gica da
contemplaçã o baseia-se no efeito mú tuo da fé e do amor na oraçã o. Na
fé, a alma conhece Deus como incompreensível. Este Deus, que é ao
mesmo tempo pessoal e incompreensível, é o Deus que deve ser amado
com todo o desejo e vontade da alma. A vontade só pode amar a Deus
na verdade à luz da fé. O amor na vontade volta-se para um Deus
desconhecido na plenitude da sua realidade transcendente. No entanto,
na fé ele pode ser conhecido como Alguém que é intensamente amado.
Nossa alma deve amar precisamente o que é incompreensível e
inacessível em Deus, se quisermos amar na verdade. Pois a
incompreensibilidade e a inacessibilidade sã o a verdade da nossa
experiência imediata dele. Temos que amar, numa frase reveladora,
“segundo as exigências da fé”. A tensã o aqui é exatamente o oposto do
que se poderia supor. A aparente escuridã o da fé que permanece
cegamente diante da incompreensibilidade da transcendência de Deus
pode parecer convidar a uma vaga qualidade de amor. Muito pelo
contrá rio, segundo Sã o Joã o da Cruz. A imensa magnitude da
transcendência de Deus, quando ele é totalmente pessoal no seu amor
por nó s, produz uma visã o essencial para a oraçã o. Esta dupla
consciência desperta um grande desejo de amá -lo em seu mistério
ú ltimo de ocultaçã o. Quando a alma ama intensamente aquilo que em
ú ltima aná lise nã o pode conhecer, isso nã o diminui a intensidade do
nosso amor por Deus como o Amado. Sã o Joã o da Cruz esclarece este
importante ensinamento para a oraçã o contemplativa nesta passagem:

Visto que Deus é incompreensível e inacessível, a vontade, para centrar


nele a sua atividade de amor, nã o deve fixar-se naquilo que pode tocar e
apreender com o apetite, mas naquilo que é incompreensível e
inacessível ao apetite. Amando assim, a alma ama verdadeira e
certamente de acordo com as exigências da fé; também no vazio e na
escuridã o em relaçã o aos seus sentimentos, indo além de todos os
sentimentos que possa vivenciar na compreensã o de seus conceitos.
Assim acredita e ama acima de tudo o que pode compreender. (L13)

Nesta carta, Sã o Joã o da Cruz passa a abordar algumas percepçõ es


equivocadas que medem a oraçã o pelo que é vivenciado nos
sentimentos da vontade. A falta de sentimento nã o indica uma falha em
encontrar Deus na oraçã o. Nem o grande prazer sentido na oraçã o
confirma uma posse mais profunda de Deus na oraçã o. Dadas estas
verdades, que agora nos sã o familiares, é tolice procurar tal deleite e é
equivocado lamentar a ausência de tais experiências na oraçã o. Estas
sã o compreensõ es superficiais da oraçã o que nos desviam do nosso
objetivo de buscar a Deus com uma alma pura e nua. A verdade
inescapável na oraçã o é uma espécie de encruzilhada: ou procuramos
Deus num desejo puro por Ele, ou procuramos algo para nó s mesmos. A
pureza da nossa alma na oraçã o está em proporçã o direta com a nossa
busca pura e nua somente por Deus. Esta tarefa é uma exigência
essencial da contemplaçã o, na medida em que a alma pode à s vezes
experimentar consolaçã o e deleite e, inversamente, pode sofrer grande
frustraçã o no seu amor quando nenhuma satisfaçã o é recebida por
longos períodos. Pode ser como se as primeiras palavras de Jesus no
Evangelho de Sã o Joã o a André e, presumivelmente, ao pró prio Joã o
pairassem como uma pergunta dentro da oraçã o em todos os
momentos: “O que você procura?” (Jo 1:38). Quando uma alma
responde de alguma maneira: “Só tu, Senhor, nada além de ti”, entã o ela
está entrando num desejo nu de Deus. Este desejo puro conduz, por sua
vez, a uma uniã o mais profunda da nossa vontade com a vontade de
Deus, que é precisamente um fruto espiritual que toda oraçã o
contemplativa promove e aprofunda. Sã o Joã o da Cruz escreve de forma
resumida sobre este ponto:

Portanto, seriam muito tolos aqueles que pensassem que Deus está
falhando com eles por causa de sua falta de doçura e deleite espiritual,
ou se alegrariam, pensando que possuem Deus por causa da presença
dessa doçura. E eles seriam mais tolos se fossem em busca dessa
doçura em Deus e se regozijassem e ficassem detidos nela. Com tal
atitude, eles nã o estariam mais buscando a Deus com suas vontades
fundamentadas no vazio da fé e da caridade, mas estariam buscando a
satisfaçã o e a doçura espirituais, que sã o criaturas, seguindo seu
pró prio prazer e apetite. E assim nã o estariam mais amando a Deus
puramente, acima de todas as coisas, o que significa centralizar nele
toda a força da vontade. Ao estar ligada e apegada a essa criatura por
meio do apetite, a vontade nã o se eleva acima dela até Deus, que é
inacessível. É impossível que a vontade alcance a doçura e o deleite da
uniã o divina e receba e sinta os doces e amorosos abraços de Deus sem
a nudez e o vazio do seu apetite com respeito a cada satisfaçã o
particular, terrena e celestial. (L13)

A conclusã o desta notável carta volta a enfatizar o esvaziamento do


nosso desejo apetitivo por tudo o que nã o seja o pró prio Deus. O
caminho para a uniã o com Deus é um caminho de purificaçã o radical da
nossa vontade nos seus desejos e delícias. Nada menos que Deus deve
consumir o nosso desejo em oraçã o. Sã o Joã o da Cruz percebe
claramente a vontade como um apetite de imensa capacidade. Tantas
coisas criadas podem capturar o desejo da vontade e fazê-la ansiar por
uma posse. Como já vimos com bastante clareza, o despojamento do
apetite da vontade por amor a Deus nunca é um exercício apenas de
abnegaçã o no ascetismo corporal ou em atos virtuosos de doaçã o. Há
também uma necessidade contínua de purificar a vontade no puro
refinamento do seu desejo na oraçã o. A alma deve concentrar o seu
desejo em direçã o a Deus numa aspiraçã o de entrega total. Caso
contrá rio, aguarda sempre uma purificaçã o adicional. O esvaziamento
do nosso desejo por qualquer coisa que nã o seja Deus é o caminho
exclusivo para uma uniã o no amor com Deus. Como conclui Sã o Joã o da
Cruz:

Quando o apetite está centrado em alguma coisa, torna-se estreito por


isso mesmo, pois fora de Deus tudo é estreito. Para que a alma tenha
sucesso em caminhar para Deus e unir-se a ele, ela deve ter a boca de
sua vontade aberta apenas para o pró prio Deus, vazia e despojada de
todo pedacinho de apetite, para que Deus a preencha com seu amor e
doçura; e deve permanecer com esta fome e sede apenas de Deus, sem
desejar ser saciado por qualquer outra coisa, pois aqui embaixo nã o
pode desfrutar de Deus como ele é em si mesmo. E o que é agradável –
se houver desejo, como eu digo – impede essa uniã o. Isaías ensinou isso
quando disse: Todos vocês que têm sede, vinde à s á guas [Is. 55:1]. Ele
convida à abundâ ncia das á guas divinas da uniã o com Deus apenas
aqueles que têm sede somente de Deus e que nã o têm dinheiro, isto é,
apetites. (L13)

Depois de examinar esta carta, pode ser benéfico retornar a dois


capítulos comoventes do livro 2 de A Subida do Monte Carmelo . Estes
capítulos expõ em o duro desafio da santidade e enriquecem o que
acaba de ser ensinado sobre a operaçã o da vontade no amor e a
necessidade da vontade ser esvaziada em prol da uniã o com Deus. Para
Sã o Joã o da Cruz, o grau em que a nossa vontade está unida à vontade
de Deus determina a profundidade do amor na nossa alma. A vontade
humana que procura a uniã o com a vontade de Deus é também uma
condiçã o essencial para qualquer progresso na oraçã o. Num certo
sentido, a oraçã o contemplativa depende inteiramente deste esforço de
dar generosamente a nossa vontade à vontade de Deus. Esta é a ú nica
condiçã o sem a qual a contemplaçã o desmoronará como graça. Uma
breve frase capta esta exigência de toda alma que busca o encontro
contemplativo com Deus na oraçã o: “À alma mais avançada no amor,
mais conformada com a vontade divina, Deus se comunica mais” (AMC
2.5.4). Por outro lado, a resistência à vontade de Deus impede o
progresso na oraçã o. Isso nã o significa necessariamente escolher o
pecado. A resistência a qualquer indicaçã o clara da vontade de Deus
detém as graças contemplativas e põ e-lhes fim, a menos que esta
oposiçã o da nossa parte seja superada. No â mbito interior da oraçã o, o
despojamento do nosso desejo por qualquer coisa menos do que Deus e
a sua vontade é uma necessidade constante de que a oraçã o avance.
Deve ser uma disposiçã o interior cultivada e deve afetar as nossas
escolhas fora da oraçã o. Há uma necessidade consciente de escolher
esta disposiçã o e respeitar a sua importâ ncia.

O desejo de estar unido à vontade de Deus nã o envolve apenas açõ es


de submissã o à vontade de Deus fora da oraçã o, embora estas respostas
sejam extremamente importantes. Como foi fortemente ensinado na
carta que acabamos de examinar, implica também uma disposiçã o para
deixar de lado as satisfaçõ es como um objetivo de amor dentro da
pró pria oraçã o. Somente Deus deve ser buscado no amor – o Deus que,
apesar do que poderia ser o nosso amor intenso, permanece o Amado
inacessível além de uma satisfaçã o experiencial de amor. A tensã o da
purificaçã o pode tornar-se um ambiente inevitável e duradouro vivido
na oraçã o. Tudo o que podemos fazer à s vezes, pode parecer, é cooperar
na disposiçã o abnegada do amor. A seguinte breve declaraçã o pode ser
ú til para encorajar a mortificaçã o da nossa vontade fora da oraçã o, mas
talvez seja ainda mais pertinente para a necessidade de um espírito de
mortificaçã o dentro da vida interior de oraçã o: “Uma alma abre espaço
para Deus, eliminando todos os manchas e manchas das criaturas,
unindo perfeitamente a sua vontade à de Deus; pois amar é trabalhar
para despojar-se e privar-se para Deus de tudo o que nã o é Deus.
Quando isso for feito, a alma será iluminada e transformada em Deus. E
Deus comunicará à alma o seu ser sobrenatural de tal maneira que ela
parecerá ser o pró prio Deus e possuirá o que o pró prio Deus possui”
(AMC 2.5.7).

O que exige essencialmente este despojamento e privaçã o na vida


interior de oraçã o? Buscar experiências de qualquer tipo em oraçã o
sempre entrará em conflito com o caminho puro de buscar somente a
Deus. A contemplaçã o, como dom de Deus à nossa oraçã o, nã o é uma
experiência a ser desfrutada; antes, promove em nossa alma uma uniã o
abnegada com Deus. “A preparaçã o para esta uniã o”, como escreve Sã o
Joã o da Cruz, “nã o é a compreensã o da alma, nem o gosto, o sentimento
ou a imaginaçã o de Deus ou de qualquer outro objeto, mas a pureza e o
amor, o despojamento e a perfeiçã o renú ncia a todas essas experiências
somente para Deus” (AMC 2.5.8). Em outras palavras, um vazio nu no
desejo da vontade abre o caminho para um verdadeiro encontro com
Deus na contemplaçã o. O Deus do amor infinito é conhecido no puro
anseio da vontade por Aquele que está sempre muito além da nossa
escassa capacidade.

Muitas pessoas que praticam a oraçã o adotam uma abordagem


contrá ria. Eles buscam a sua pró pria gratificaçã o e satisfaçã o, em vez do
que agrada a Deus. Para nossa surpresa, talvez, o que agrada a Deus em
nossa oraçã o pode muitas vezes contradizer nossa pró pria preferência.
O que Deus deseja especialmente é que nos esvaziemos por amor a ele;
Nada menos e nada mais. No entanto, quã o difícil é aceitar esta ideia de
oraçã o como um progresso no auto-esvaziamento, em vez de um
caminho de avanço no conhecimento e na experiência de Deus. Como
escreve Sã o Joã o da Cruz nesta seçã o: “Penso que é possível afirmar que
quanto mais necessá ria é a doutrina, menos ela é praticada pelas
pessoas espirituais” (AMC 2.7.4). Esta “doutrina”, por assim dizer, é a
realidade da cruz encontrada, nã o apenas nas provaçõ es da vida, mas
nas experiências interiores purificadoras da vida de oraçã o. Se
esquecermos que a cruz é encontrada nã o apenas nas provaçõ es
exteriores da vida, mas na pró pria oraçã o, ergueremos uma barreira no
caminho para um maior amor a Deus. A identificaçã o com o Amado, que
é o Senhor crucificado, deve ser plenamente abraçada na pró pria
oraçã o, se quisermos que a oraçã o avance de maneira genuína. A
procura de consolaçã o nã o é apenas uma falta e uma fraqueza
indulgente, mas essencialmente uma recusa em abraçar o Senhor
crucificado como o Amado. As seguintes palavras sã o uma dura
repreensã o a esta tendência: “Pelas minhas observaçõ es, Cristo é pouco
conhecido por aqueles que se consideram seus amigos. Pois os vemos
andando em busca dele suas pró prias consolaçõ es e satisfaçõ es,
amando-se muito, mas nã o o amando muito, buscando suas amargas
provaçõ es e mortes. Refiro-me a quem se considera seu amigo, e nã o a
quem vive afastado e distante dele” (AMC 2.7.12).

Sã o Joã o da Cruz insiste fortemente na “estreiteza” do caminho da


santidade e da oraçã o mais profunda. Deve-se buscar o despojamento e
o despojamento de tudo o que é gratificante na oraçã o, a fim de
conquistar o amor pró prio e, assim, buscar somente a Deus. É uma
porta estreita pela qual a nossa alma deve passar se quiser responder à
preciosa graça da contemplaçã o. A alma deve ser leve e preparada,
despojada e vazia de desejos, exceto pelo pró prio Deus e por tudo o que
ele pedirá de nossas vidas. O amor pró prio, em todos os seus disfarces
possíveis, deve ser cada vez mais exposto e, entã o, erradicado. A
tendência indulgente de buscar nosso pró prio consolo na oraçã o deve
ser cruelmente mortificada. A forma mais comum de indulgência
espiritual é justamente buscar a pró pria satisfaçã o de qualquer
maneira, em vez de aceitar o doloroso vazio de uma á rida purificaçã o
na oraçã o. Todo desejo da alma em oraçã o por qualquer coisa que nã o
seja o pró prio Deus – isto é, por consolo e satisfaçã o emocional – é um
obstá culo prejudicial neste caminho de oraçã o mais profunda. Na
verdade, é raro, segundo Sã o Joã o da Cruz, que Deus encontre almas
que o procurem com este tipo de desejo consumidor e exclusivo de si
mesmo, aconteça o que acontecer. No entanto, talvez alguns de nó s
devamos estar entre essas almas. Se assim for, há necessidade de uma
visã o espiritual radical movida pelo amor, como testificam estas
palavras: “Poucos há com o conhecimento e o desejo de entrar nesta
suprema nudez e vazio de espírito. . . . Este é um empreendimento em
que somente Deus é buscado e ganho; portanto, somente Deus deve ser
buscado e ganho” (AMC 2.7.3).

O que ouvimos nestas palavras desafiadoras é que a abnegaçã o


exigida pela contemplaçã o é uma disciplina do reino espiritual, um tipo
de ascetismo espiritual dirigido principalmente aos desejos que
cultivamos na oraçã o. A vontade, em sua operaçã o de amor, deve livrar-
se de todo obstá culo que a impeça de ter um desejo puro por Deus. O
principal estorvo é a grande ruína do desejo de satisfaçõ es no amor. Em
vez disso, a nossa alma deve procurar mais profundamente o que o
pró prio Jesus ensina como o verdadeiro caminho para a uniã o com Ele,
ou seja, perder-nos no amor por Ele. A profunda pobreza de espírito é
um requisito essencial na oraçã o e na vida espiritual. Na oraçã o, esta
pobreza surge quando a nossa alma abraça a aniquilaçã o de todos os
desejos, exceto um puro anseio pelo pró prio Deus. Sã o Joã o da Cruz
oferece uma passagem impressionante nesta seçã o de A Subida ao
Monte Carmelo sobre o verdadeiro significado da exigência de Jesus
para que a alma se perca por ele, se quiser ganhar a sua verdadeira vida
(Mc 8,34-35). . Poucas pessoas percebem as implicaçõ es mais
profundas desta negaçã o e perda de si, tal como é vivida na vida
interior de oraçã o. Sã o Joã o da Cruz nota a diferença entre uma forma
menor de renú ncia e a grande abnegaçã o da alma que deve ocorrer na
oraçã o.

Oh, quem pode tornar este conselho de nosso Salvador sobre a


abnegaçã o compreensível, praticável e atraente, para que as pessoas
espirituais possam se tornar conscientes da diferença entre o método
que muitos deles pensam ser bom e aquele que deveria ser usado em
viagens? essa rua! Eles sã o da opiniã o de que qualquer tipo de
afastamento do mundo, ou reforma de vida, é suficiente. Alguns se
contentam com um certo grau de virtude, perseverança na oraçã o e
mortificaçã o, mas nunca alcançam a nudez, a pobreza, o altruísmo ou a
pureza espiritual (que sã o todas iguais) sobre as quais o Senhor nos
aconselha aqui. Pois eles ainda alimentam e vestem o seu eu natural
com sentimentos e consolaçõ es espirituais, em vez de se despojarem e
negarem a si mesmos por causa de Deus. (AMC 2.7.5)

Ele prossegue enfatizando a diferença entre a abnegaçã o em relaçã o


à indulgência mundana e o maior esforço de abnegaçã o que deve
confrontar as tendências à indulgência espiritual na oraçã o. Muitas
pessoas boas nã o avançam na vida espiritual e nunca abraçam a graça
da contemplaçã o nas suas vidas porque se recusam a aceitar a
exigência de mortificar os seus desejos espirituais por prazeres
consoladores na oraçã o. No entanto, este desapego da nossa pró pria
preferência é essencial se quisermos receber a graça da contemplaçã o e
cooperar com ela ao longo do tempo. Antes de entrarmos neste
caminho de um desejo mais sério por Deus, é pouco provável que
pensemos na oraçã o mais profunda como uma prova de perseverança e
mortificaçã o interior. Mas esta prova é um aspecto sério e inevitável do
caminho contemplativo. As purificaçõ es da oraçã o interior sã o palco de
martírio para algumas almas, sobretudo para as mais sensíveis. Mas se
avançarmos no tempo, sem parar apesar dos sofrimentos interiores,
seremos capazes de receber na contemplaçã o as grandes graças que
Deus deseja conceder. Num dos seus comentá rios mais incisivos para
aqueles que desejam amar a Deus, Sã o Joã o da Cruz escreve:

Eles acham que a negaçã o de si mesmo nos assuntos mundanos é


suficiente sem a aniquilaçã o e a purificaçã o no domínio espiritual.
Acontece que, quando um pouco deste alimento só lido e perfeito (a
aniquilaçã o de toda doçura em Deus - a pura cruz espiritual e a nudez
da pobreza de espírito de Cristo) lhes é oferecido com secura, desgosto
e provaçã o, eles fogem dele como se morte e vagar em busca apenas de
doçura e comunicaçõ es deliciosas de Deus. Tal atitude nã o é a marca
registrada da abnegaçã o e da nudez de espírito, mas a indicaçã o de um
desejo espiritual por doces. Através deste tipo de conduta tornam-se,
espiritualmente falando, inimigos da cruz de Cristo. (AMC 2.7.5)

Sã o Joã o da Cruz continua a propor desafios ainda mais radicais


neste exigente trecho da Subida ao Monte Carmelo . Ele insiste que
devemos aprender a preferir as experiências difíceis da aridez na
oraçã o ao que parece mais desejável na experiência da consolaçã o. Este
conselho vai além de uma mera recomendaçã o de renú ncia no sentido
de buscar prazer na oraçã o. Exige uma mudança de perspectiva pela
qual agora inclinamos a nossa inclinaçã o na oraçã o para experimentar a
dura aridez como caminho para um amor maior. Pelo que sabemos
agora sobre seus ensinamentos, isso nã o deveria ser muito
surpreendente. Na sua opiniã o, a consolaçã o na oraçã o, se nã o for
claramente negada como um desejo na oraçã o, será procurada
implicitamente pela nossa inclinaçã o natural. A experiência agradável
na oraçã o é naturalmente procurada, nã o a experiência dolorosa. A
experiência da insatisfaçã o seca está fadada a provocar frustraçã o, a
menos que, numa mudança radical de abordagem, escolhamos
conscientemente preferi-la como o nosso desejo. Esta é uma escolha
significativa por si só , que certamente nã o deve ser ignorada. Significa,
primeiro, aceitar que a insatisfaçã o á rida é um estado de oraçã o
excelente e saudável. Esse conselho implica uma abordagem à oraçã o
bastante contrá ria à nossa inclinaçã o natural. Mas Sã o Joã o da Cruz leva
ainda mais longe esta compreensã o. Ele insiste que devemos preferir a
insatisfaçã o na oraçã o. E porque? Esta condiçã o conduz, através da
pobreza e da nudez de espírito, a um vazio interior na nossa alma que
Deus pode preencher consigo mesmo na contemplaçã o. A
recomendaçã o aqui é nã o fazer da oraçã o uma prá tica penitencial. Pelo
contrá rio, é abrir a nossa alma a um desapego nu de si mesmo,
precisamente porque este caminho nos abre a graças mais profundas
da contemplaçã o. “Pois neste caminho só há lugar para a abnegaçã o
(como afirma nosso Salvador) e para a cruz. A cruz é um bastã o de
apoio e ilumina e facilita muito o caminho” (AMC 2.7.7). Essas palavras
referem-se tanto à oraçã o quanto ao exercício da abnegaçã o em açõ es
fora da oraçã o. As exigências do amor sã o realmente formidáveis. A
passagem seguinte expõ e esta compreensã o da abnegaçã o que deve
penetrar na nossa vida interior de oraçã o. Pode ser lido como um
exemplo da mais pura radicalidade no ensinamento de Sã o Joã o da
Cruz:

Um espírito genuíno busca mais o desagradável em Deus do que o


delicioso, inclina-se mais para o sofrimento do que para a consolaçã o,
mais para renunciar a tudo por Deus do que para a posse, e para a
secura e a afliçã o do que para a doce consolaçã o. Ela sabe que este é o
significado de seguir a Cristo e negar a si mesmo, que o outro método é
talvez uma busca de si mesmo em Deus – algo totalmente contrá rio ao
amor. Buscar-se em Deus é o mesmo que procurar as carícias e as
consolaçõ es de Deus. Buscar Deus em si mesmo implica nã o só o desejo
de prescindir destas consolaçõ es por amor de Deus, mas também a
inclinaçã o a escolher por amor a Cristo tudo o que há de mais
desagradável, seja em Deus ou no mundo; e é isso que significa amar a
Deus. (AMC 2.7.5)

Este capítulo começou com a notável carta tratando da pureza da


vontade em entregar todos os seus desejos somente a Deus. A operaçã o
da vontade no amor é de fato distinta da experiência do sentimento da
vontade. O que temos ouvido agora, destas passagens selecionadas de A
Subida do Monte Carmelo , é uma confirmaçã o deste ensinamento. A
pureza de uma vontade nua e fixada apenas em Deus exige uma atitude
de oraçã o extremamente exigente. No entanto, deve ser cultivada
apesar da sua natureza intransigente, se aspiramos a relaçõ es
contemplativas com Deus. O despojamento e o despojamento do amor
pró prio só podem ocorrer na oraçã o quando renunciamos ao desejo de
nosso pró prio prazer e consolo na oraçã o. Este esvaziamento do desejo
permite que a nossa vontade se incline numa pureza de desejo
inflamado pelo pró prio Deus. A contemplaçã o tem fases preliminares
de entrega que devem ser cumpridas se a nossa alma quiser abrir-se à s
correntes ocultas do anseio que levam a oraçã o a regiõ es mais
profundas de um encontro com Deus. A grande entrega inicialmente
exigida é abandonar todo o nosso desejo de satisfaçã o e consolo, que
pode ter motivado a oraçã o em algum momento de nossas vidas. Esta
entrega, por sua vez, permite que a nossa alma se esqueça mais
completamente de si mesma – uma necessidade central na
contemplaçã o. Perder a preocupaçã o consigo mesmo revela-se um
grande benefício para a receptividade essencial à contemplaçã o. O
abandono de si mesmo ocorre porque nada é buscado para nó s
mesmos. Isso abre nossa alma para querer apenas o que Deus quer nos
dar em qualquer dia. A vontade de querer somente Deus pode entã o
permear cada vez mais o tempo de oraçã o. Sã o Joã o da Cruz expressa
esta tarefa como uma aceitaçã o receptiva da aniquilaçã o da nossa alma
por causa do amor a Deus nestas palavras marcantes desta mesma
seçã o de A Ascensão :

David diz dele: Ad nihilum redactus sum et nescivi [Fui reduzido a nada e
nã o entendi] [Sl. 73:22], para que aqueles que sã o verdadeiramente
espirituais possam compreender o mistério da porta e do caminho (que
é Cristo) que conduz à uniã o com Deus, e que possam perceber que sua
uniã o com Deus e a grandeza do trabalho que realizam irã o ser medido
pela aniquilaçã o de si mesmos para Deus nas partes sensoriais e
espirituais de suas almas. Quando forem reduzidos a nada, o mais alto
grau de humildade, a uniã o espiritual entre suas almas e Deus será um
fato consumado. Esta uniã o é o estado mais nobre e sublime que se
pode alcançar nesta vida. O caminho, portanto, nã o consiste em
consolaçõ es, delícias e sentimentos espirituais, mas na morte viva da
cruz, sensorial e espiritual, exterior e interior. (AMC 2.7.11)

Levados a nada, aniquilados no amor a Deus, vazios de desejos,


exceto um intenso desejo por Deus - estas frases nã o podem transmitir
o que, no entanto, deve tornar-se a necessidade imperiosa na
profundidade da nossa oraçã o. O caminho para a santidade é
exactamente como Jesus o descreveu no Evangelho: tomar a nossa cruz
e segui-lo, perdendo-nos por um grande amor por ele. Esta ú ltima
exigência de amor conduz-nos sempre ao Calvá rio e deve ser ouvida no
centro da nossa oraçã o. “Onde eu estiver, aí estará também o meu
servo” (Jo 12,26). Inevitavelmente, neste caminho, somos convidados a
aproximar-nos do nosso Senhor crucificado, escondido no silêncio da
nossa oraçã o.
14
Feridas do Amor: Marcas da Contemplaçã o

Temos agora uma apreciaçã o mais profunda tanto pelas duras


exigências da contemplaçã o como pela sua inegável atraçã o. Mas ainda
nã o expusemos totalmente o desafio interior. A ocultaçã o da presença
de Deus, misteriosamente pró xima da nossa alma, mas conhecida
apenas pelo amor, está no centro da contemplaçã o. A presença oculta
de Deus é uma verdade de provocaçã o inevitável, nunca totalmente
levantada ou superada durante a vida, mostrando muitas variaçõ es na
experiência de uma alma. À s vezes, a presença oculta de Deus é mais
forte no silêncio da oraçã o; outras vezes, é encontrado fora da oraçã o,
na oportunidade repentina de sacrifício ou no rosto disfarçado de Jesus
escondido num pobre. Deus sendo evasivo, escondendo-se atrá s das
sombras, falando em sussurros silenciosos, desaparecendo de vista
mesmo no encontro com ele, é tudo uma realizaçã o de uma fé maior.
Sua presença nã o tem qualidade previsível e nã o oferece nenhuma
promessa de reconhecimento fá cil. As sombras e as trevas podem
tornar-se, durante longos períodos, o ambiente normal da oraçã o.
Quando a escuridã o se estende ao longo do tempo e é maior, a ideia da
retirada de Deus pode perturbar as almas na sua oraçã o silenciosa, por
mais pró ximas que estejam de Deus.

O paradoxo contemplativo das trevas como cená rio para um contacto


muito pessoal com Deus implica, por vezes, uma necessidade de
segurança. Isto ocorre à medida que aprofundamos uma calma certeza
de fé na oraçã o e continuamos a ansiar por nosso Senhor com amor e a
render-nos a ele em rendiçã o. Ao mesmo tempo, ao longo de anos de
oraçã o diá ria comprometida, Deus trabalha para levar a alma a uma
maior entrega ao seu misterioso amor pessoal. Um requisito definitivo
para avançar na contemplaçã o é que ele permaneça o Amado durante
todos os acontecimentos da vida, incluindo os mais angustiantes, e
dentro de toda a experiência incerta da pró pria oraçã o. A
disponibilidade para aceitar tudo o que Deus permite ou escolhe para
nó s deve ser fomentada a todo custo. Deus comunica seu amor à nossa
alma, mesmo nas trevas, quando buscamos, nã o a nossa pró pria
vontade, mas a conformidade com a vontade de Deus. Este desejo de
conformidade com os seus desejos é o segredo de todo grande amor a
Deus. Se ele permanece verdadeiramente o Amado que é procurado em
tudo, a sua vontade guiando o nosso desejo mais profundo da alma, é
uma condiçã o essencial para a busca contemplativa de Deus. Com
palavras citadas anteriormente, mas dignas de recordaçã o pelo seu
grande desafio e promessa, Sã o Joã o da Cruz expressa esta necessidade
no Cântico Espiritual , no seu comentá rio à primeira estrofe:

Quando Deus é amado, ele responde prontamente aos pedidos de seu


amante. Isto ele ensina através de Sã o Joã o: Se você permanecer em
mim, peça o que quiser e isso será feito a você [Jo. 15:7]. Você pode
verdadeiramente chamar Deus de Amado quando está totalmente com
ele, nã o permitindo que seu coraçã o se apegue a nada fora dele e, assim,
normalmente centralizando sua mente nele. . . . Alguns chamam o Noivo
de amado quando ele nã o é realmente seu amado, porque seu coraçã o
nã o está totalmente voltado para ele. Como resultado, a petiçã o deles
nã o tem muito valor aos seus olhos. Eles nã o obtêm seu pedido até que
mantenham seu espírito mais continuamente com Deus por meio da
perseverança na oraçã o, e seu coraçã o com seu amor afetuoso esteja
mais inteiramente voltado para ele. Nada é obtido de Deus exceto pelo
amor. (SC 1.13)

A exigência clara nestas palavras é de um compromisso intransigente


com o amor. Nã o é de surpreender que, para uma alma que aspira a
avançar na contemplaçã o, esta exigência possa levar, com o tempo, a um
sofrimento por amor, até mesmo a uma espécie de martírio por amor.
Se quisermos que Deus continue a ser o Amado, a busca por Ele requer
uma perseverança na abnegaçã o e no esvaziamento de nó s mesmos na
nossa vida interior. O martírio na contemplaçã o, se esta nã o for uma
expressã o muito forte, deve-se em grande parte a um encontro mais
profundo, ao longo do tempo, com a ocultaçã o do Amado. Ninguém que
ama intensamente a Deus pode deixar de sofrer pela incapacidade de
sentir a sua presença no amor. Muitas vezes, para uma alma
contemplativa, esta experiência pode ser interpretada – na verdade,
erradamente – como uma escolha da parte de Deus de se distanciar do
contacto pró ximo e sem qualquer razã o que possa ser percebida.
Mesmo quando uma alma aceita esta prova, a ocultaçã o de Deus,
quando Nosso Senhor parece silencioso, retraído ou ausente por mais
tempo, fere a alma que o ama com intensidade. Pode parecer que nunca
encontrará o descanso no amor que procura em Deus. Quaisquer visitas
de consolaçã o do Senhor, se ocorrerem, sã o normalmente breves e
servem apenas para devolver a alma posteriormente à dor de sua fome
solitá ria. Isto também é uma marca de graça contemplativa. A fome
abre fissuras profundas nas cavernas da alma. A alma anseia e fica
esperando, apenas para ficar insatisfeita. A ferida interior do vazio, sem
outro desejo senã o o de pertencer a Deus, afina a alma para o dom
maior do pró prio Deus. Sã o Joã o da Cruz tem passagens marcantes nos
comentá rios das estrofes do Cântico Espiritual sobre a alma ferida de
amor por Deus. Mas a sua poesia é talvez a primeira evidência deste
efeito doloroso de amar intensamente a Deus. Um exemplo é a segunda
estrofe do “Câ ntico Espiritual”:

Pastores, vocês que sobem


pelos currais até o morro,
se por acaso virem
aquele que mais amo,
digam-lhe que estou doente, sofro e morro. (SC estrofe 2)

A “ferida de amor” é uma frase especial para Sã o Joã o da Cruz. Esta


ferida pode tornar-se uma espécie de companheira silenciosa na vida
interior de oraçã o, à medida que a alma se envolve na dura experiência
contemplativa de Deus, escondendo-se do seu amor. Na verdade, a
ocultaçã o de Deus, quando na verdade ele está presente na alma, pode
ferir mais a alma do que se Deus simplesmente partisse e a deixasse em
paz. Sã o muitas as possibilidades de experimentar na oraçã o esta ferida
da alma, todas elas ligadas ao intenso amor da alma por Deus. O gosto
amargo na oraçã o de um longo silêncio de Deus, talvez sem nada das
Escrituras falando tã o pessoalmente, pode parecer que a alma nã o
merece a comunicaçã o de Deus. A raspagem do coraçã o até um estado
de aridez é outro tipo de ferida. Nã o é algo que uma alma simplesmente
ignora. Estas provaçõ es nã o sã o apenas um sofrimento na oraçã o, mas
também podem constituir uma prova de tudo fora da oraçã o. Pode levar
algumas almas a um sentimento de futilidade em tudo o que procuram
fazer para Deus. Eles podem ficar cegos para os frutos reais que estã o
produzindo para Deus. Nenhum alívio, nenhum conforto humano pode
intervir para aliviar esta condiçã o. Ao mesmo tempo, Sã o Joã o da Cruz
deixa claro que nenhuma alma avança para a uniã o com Deus senã o por
meio das feridas do amor, de uma forma ou de outra. A alma que
percorre o caminho da contemplaçã o pode ser como uma pessoa com
uma doença no coraçã o, incapaz de se libertar de um sofrimento
constante enquanto o toque curador do Amado permanecer ausente.
No entanto, o ferimento da alma torna-se, com efeito, a maneira pela
qual Deus leva cativa a alma que tem grande amor por ele. Sã o Joã o da
Cruz invoca este estado de alma ao escrever sobre o coraçã o roubado
por Deus, imagem comovente central em outra estrofe do “Câ ntico
Espiritual”:

Por que, já que você feriu


este coraçã o, você nã o o cura?
E por que, já que você roubou de mim,
você deixa assim
e nã o consegue levar o que roubou? (estrofe 9)

A duraçã o da espera pelo Amado, ferida de amor por ele, é um fator


decisivo para levar a alma a um maior amor a Deus. Podemos ouvir essa
verdade implícita no grito da noiva na estrofe que acabamos de ler.
Cada longo período de espera por Deus provoca um amor mais intenso;
cada atraso persistente inflama o desejo em um coraçã o “roubado” por
Deus. Deus parece fazer uma alma esperar mais, quanto mais ele deseja
que essa alma anseie mais intensamente por si mesma. Se uma alma
tiver sorte, ela perceberá um padrã o depois de um tempo. A ausência
de qualquer encontro direto com Deus na oraçã o pode prolongar-se por
um período que parece insuportável. Nada que uma alma faça em açã o
generosa e sacrifício fora da oraçã o altera a sensaçã o de vazio interior.
Mas entã o, inesperadamente, a experiência de um amor forte e
libertador retorna e é sentida novamente na oraçã o. A alma, depois de
ter sido ferida pelo amor, entra mais plenamente num amor mais
profundo pelo Amado. À medida que o Cântico Espiritual avança, Sã o
Joã o da Cruz invoca este padrã o de ausência e reaparecimento do amor
na busca da alma pelo Amado. Numa curta passagem no início do
Cântico Espiritual , ele descreve a dor de um desejo por Deus quando
ele está “ausente” como um sinal da profundidade do amor em uma
alma. A ferida do descontentamento esculpida numa alma é um sinal
claro do seu desejo consumidor por Deus: “A ausência do Amado
provoca gemidos contínuos no amante. Como ela nã o ama nada fora
dele, ela nã o encontra descanso ou alívio em nada. É assim que
reconhecemos as pessoas que amam verdadeiramente a Deus: se nã o se
contentam com nada menos que Deus” (SC 1.14).

Pode haver necessidade de ponderar declaraçõ es como esta durante


muitos anos na vida. A maneira usual de experimentar o amor humano
por alguém que é muito amado é desfrutar de uma grande satisfaçã o.
Estar na presença de alguém amado de maneira ú nica traz uma delícia
além de qualquer experiência comparável. Mas Sã o Joã o da Cruz nã o
escreve sobre o amor româ ntico ou sobre as alegrias da vida de casado.
Quando Deus é o Amado, a balança gira na direçã o oposta. Uma
insatisfaçã o crescente começa a invadir a alma à medida que o seu
amor por Deus se aprofunda. Deus nã o pode ser possuído pelo amor,
apenas desejado e procurado perpetuamente. A alma pode encontrar-
se na oraçã o da contemplaçã o confrontando diariamente a imensurável
distâ ncia que pode sentir de Deus. Esta frustraçã o pode estender-se,
como mencionado, a todas as á reas da vida, onde “nã o encontra
descanso ou alívio em nada”. Uma espécie de santo descontentamento
torna-se o destino da alma apaixonada por Deus, o que pode ser uma
observaçã o surpreendente. Naturalmente, isto nã o significa um
mergulho em algum tipo de atitude depressiva. Pelo contrá rio, o
descontentamento torna-se um estímulo para a alma se entregar mais
generosamente em todos os sentidos a Deus. Estas almas costumam
ficar mais absortas no desejo de agradar a Deus precisamente naqueles
momentos em que Deus parece mais distante e ausente.

Esta resposta santa ao descontentamento interior pode ser a


principal razã o pela qual os santos se tornaram santos. Nã o é que os
seus esforços de sacrifício e doaçã o tenham sido empreendidos por
obrigaçã o ou para chamar a atençã o de Deus e induzir o seu favor. Pelo
contrá rio, para a alma que ama intensamente, parece nã o haver outra
escolha desejável do que dar a Deus um dom em tudo. O despojamento
de todas as coisas fora de Deus como indignas de uma busca
apaixonada na vida é uma reaçã o típica na vida santa. Mas é também
fruto e sintoma da contemplaçã o. O esvaziamento do desejo por outras
coisas que nã o sejam Deus torna-se, em algum momento, uma forma de
satisfaçã o para a alma. Esta mudança incomum pode ocorrer mais
prontamente quando a alma reconhece que tornar-se pobre e vazio de
si é uma forma de agradar ao Amado. Um contentamento mais
profundo da alma começa a ser encontrado na pobreza e na
desapropriaçã o de todas as coisas, exceto Deus. Num certo sentido,
cada alma tem que fazer esta descoberta por si mesma de uma forma
que permaneça pessoal e permanente, como descrito nestas palavras:
“A vontade está satisfeita com nada menos do que a sua presença e a
visã o dele” (SC 6.2). Torna-se um insight importante na vida de
contemplaçã o perceber a insuficiência de buscar qualquer coisa nesta
vida para uma felicidade ú ltima que nã o seja agradar a Deus. Como
escreve Sã o Joã o da Cruz:
Mas o que estou dizendo, se eles estã o satisfeitos? Mesmo que possuam
tudo, nã o ficarã o satisfeitos; na verdade, quanto mais tiverem, menos
satisfeitos ficarã o. A satisfaçã o do coraçã o nã o se encontra na posse de
coisas, mas em ser despojado de todas elas e na pobreza de espírito.
Visto que a perfeiçã o consiste nesta pobreza de espírito, em que Deus é
possuidor de uma graça muito íntima e especial, a alma, tendo-a
alcançado, vive nesta vida com alguma satisfaçã o, embora nã o
completa. (SC 1.14)

Algumas reflexõ es adicionais sobre o tema de ser ferido por amor


podem melhorar a nossa compreensã o do amor que flui da
contemplaçã o. Se pensarmos por um momento no que Deus faz com
uma alma que ele favorece, é evidente que ele procura atraí-la para um
amor exclusivo por si mesmo. Nada fora de Deus pode consumir os
desejos e afeiçõ es mais profundos da alma. A incapacidade de
encontrar satisfaçã o duradoura em qualquer coisa, incluindo a pró pria
oraçã o por longos períodos, torna-se um estímulo contínuo para a
alma. A fome de Deus consome entã o a alma, e nada mais que possa ser
buscado faz outra coisa senã o trazê-la de volta ao desejo de Deus. Nada
na vida satisfaz tanto; em vez disso, tudo causa lembrança de Deus. É
como se todas as coisas que valem a pena lembrar tivessem se tornado
uma lembrança de um tempo passado com Deus. Os acontecimentos,
mesmo de um ú nico dia, trazem a alma de volta ao desejo por ele. Este
desejo consumidor dentro de uma alma é, em ú ltima aná lise, de posse
de Deus, e ainda assim essa posse em amor se mostra impossível. A
alma pode vir a conhecer isso como uma verdade aceita na mente. E, no
entanto, é comum que uma alma contemplativa em seu coraçã o nã o
veja o desejo de apoderar-se de Deus como um anseio inatingível. Em
vez disso, mergulha mais intensamente no seu desejo por Deus,
incitando assim a sua pró pria insatisfaçã o.

Esta insatisfaçã o no amor é um estado abençoado que anima um


avanço mais profundo na vida contemplativa. A ferida do amor
insatisfeito marca todo esforço contemplativo. Ao mesmo tempo que tal
amor é doloroso, é cada vez mais procurado. É possível, neste sentido,
que tudo numa vida sirva ao misterioso plano de Deus para inflamar
um desejo maior por Deus. Deus se torna mais solícito com essas almas,
mesmo quando mantém sua ocultaçã o. E assim ele os leva a uma
doaçã o generosa e a uma vida mais sacrificial, proporcionando essas
oportunidades. Digamos novamente: os santos eram santos porque
eram contemplativos em sua vida mais profunda de oraçã o e almas de
grande doaçã o sacrificial fora da oraçã o. Quando Deus consome o
anseio da alma, a alma nã o quer nada além de procurá -lo e provar seu
amor por ele. A santa insatisfaçã o do amor com os seus desejos
insaciáveis faz com que a alma se perca cada vez mais pelo amor e pelos
outros. Por trá s desses desejos de doaçã o está sempre um desejo da
alma de que Deus se mostre mais plenamente. Esta disposiçã o é
captada numa passagem do Cântico Espiritual que poderíamos dizer
equivalente a uma oraçã o ouvida:

Meu Senhor, meu Esposo, você se entregou a mim parcialmente; agora


você pode se entregar completamente. Você se revelou a mim como
através das fissuras de uma rocha; agora você pode me dar essa
revelaçã o com mais clareza. Você se comunicou por meio de outras
pessoas, como se estivesse brincando comigo; agora você pode fazer
isso verdadeiramente, comunicando-se por si mesmo. Em suas visitas,
à s vezes, parece que você está prestes a me dar a joia de possuí-lo; mas
quando tomo consciência disso, encontro-me sem possuí-la, pois você
esconde esta joia como se estivesse brincando. Agora entregue-se
totalmente, entregando-se inteiramente a mim por inteiro, para que
toda a minha alma possa ter posse completa de você. (SC 6.6)

Com efeito, a ferida perpétua do amor é a insatisfaçã o persistente


dentro de uma alma que ama Deus. Nenhuma experiência de paz,
tranquilidade ou satisfaçã o em qualquer momento alivia por muito
tempo a insatisfaçã o crô nica da alma por nã o possuir maior
proximidade com o Amado. Essa condiçã o nã o representa
necessariamente toda a jornada de uma vida. Mas tem muita
importâ ncia na transformaçã o de uma alma apaixonada. O pró prio
Evangelho fala fortemente da necessidade de nos perdermos para
ganhar o dom maior de uma vida nova com o Senhor. A interaçã o entre
o prazer da presença de Deus e o sofrimento por sua aparente ausência
é o principal meio pelo qual Deus permite que uma alma perca mais de
si mesma por ela. Nesta arena de testes espirituais, a competiçã o é
travada em prol do pró prio amor. No Cântico Espiritual , Sã o Joã o da
Cruz escreve que duas coisas ferem diretamente a alma de maneiras
profundas: o sentimento incontrolável à s vezes de ausência ou
afastamento de Deus; em segundo lugar, ainda mais, as partidas de
Deus depois das suas visitas de consolaçã o, ou como diz Sã o Joã o da
Cruz, “a rapidez com que se mostra e depois se esconde” (SC 1.15).
Como ele escreve, há um propó sito divino nessas mudanças de
experiência para a alma: “Ele geralmente visita almas devotas para
alegrá -las e animá -las, e depois sai para experimentá -las, humilhá -las e
ensiná -las. Por causa de suas visitas, suas retiradas sã o sentidas com
maior tristeza” (SC 1.15).

Sã o Joã o da Cruz amplia o tema. Ele frisa que o coraçã o fica


“inflamado” no amor por essas feridas infligidas pela partida de Deus:
“Inflamam tanto a vontade em seu afeto que ela arde nesta chama e
fogo de amor” (SC 1.17). Simplesmente suscitar um anseio por Deus
nã o é o ú nico efeito disso e nã o deve ser identificado com um desejo
emocional por Deus. Pelo contrá rio, o efeito primá rio é que a alma
começa a perder -se no seu sofrimento. Perde-se nas suas pró prias
necessidades, precisamente ao ser consumido pelo amor a Deus. Uma
profunda transformaçã o da alma está começando a ocorrer: “Tã o
intenso é esse ardor que a alma parece se consumir naquela chama, e o
fogo a faz sair de si mesmo, a renova totalmente e muda seu modo de
ser, como em é o caso da fênix que se queima no fogo e ressurge das
cinzas” (SC 1.17). Os apetites e afeiçõ es da alma sã o tomados por um
intenso anseio por Deus, e nada importa tanto para uma alma quanto o
pró prio Deus. Nã o quer nada além de amar; o resultado,
previsivelmente, pode ser uma grande generosidade em açõ es e
sacrifícios. “A alma, pelo amor, é reduzida a nada, nada conhecendo
senã o o amor” (SC 1.18).

Na verdade, um grave sofrimento no amor pode resultar disso - “uma


espécie de imenso tormento e desejo de ver Deus” (SC 1.18). A falta de
qualquer libertaçã o desta dor suportada por amor é uma verdade
espiritual dramá tica. Fala muito diretamente do pró prio Deus na sua
maneira de amar uma alma muito amada: “Tã o extremo é este tormento
que o amor parece ser insuportavelmente rigoroso com a alma, nã o
porque a tenha ferido, mas ela considera essas feridas como sendo
favorável à sua saú de - mas porque a deixou assim sofrendo por amor, e
nã o a matou para que ela o visse e se unisse a ele na vida do amor
perfeito” (SC 1.18). Mas com o tempo a fecundidade deste amor
manifesta-se de modo particular. A ferida do amor tem por efeito, com o
passar do tempo, fazer com que a alma “saia de si mesma e entre em
Deus” (SC 1.19), o que nã o significa tomar posse de Deus. Pelo
contrá rio, entrar em Deus provoca um desejo profundo de agradar a
Deus de qualquer maneira possível, que está fadado a transbordar em
sacrifício e caridade fora da oraçã o. Um afastamento espiritual de si
mesmo, um esquecimento de si mesmo, ocorre na alma. Este
afastamento de si mesmo é uma libertaçã o que agora anima a busca
exclusiva da alma por Deus. Sã o Joã o da Cruz escreve a este respeito
que “há duas maneiras de ir atrá s de Deus”:

Uma consiste no afastamento de todas as coisas, efetuado através da


aversã o e do desprezo por elas; a outra, de sair de si mesmo através do
esquecimento de si, que se realiza pelo amor de Deus. Quando o amor
de Deus realmente toca a alma, como dizemos, ele a eleva de tal
maneira que nã o apenas a impele a sair de si mesmo nesse
esquecimento, mas até a afasta de seus apoios, maneiras e inclinaçõ es
naturais, induzindo-a assim a clamar por Deus. (SC 1.20)

Ao ler esta passagem, podemos recordar a estrofe inicial do “Câ ntico


Espiritual” e, em particular, o seu ú ltimo verso: “Saí para te chamar, mas
você tinha ido embora”. A saída do Amado para o esconderijo nã o
apenas constrange a alma e a leva à desolaçã o. Também leva a alma a
sair de si mesma em busca dele. Nesse sentido, a incapacidade da alma
de encontrar o Amado em oraçã o nã o é uma espécie de estado
conclusivo, muito menos uma condiçã o terminal. É verdade que a
experiência da presença do Amado, seguida rapidamente do seu
desaparecimento, pode muitas vezes deixar a alma numa terra de
ninguém de incerteza interior. Cheia de um anseio inflamado por Deus,
mas sentindo um vazio dentro de si, a alma parece nã o ter nada para se
sustentar. Conhece apenas um retorno familiar ao vazio. Mas isto nã o é
tudo o que está acontecendo, pois o amor é provocado com maior
intensidade no tempo da aparente ausência do Senhor. Na passagem a
seguir, podemos observar um doloroso estado de alma e considerá -lo
lamentável; ou podemos perceber o grande movimento do amor
esculpindo-se nas profundezas da alma, e de fato podemos desejar a
mesma graça em nossas vidas: “'Mas você se foi.' É como dizer: No
momento em que desejei agarrar-me à tua presença nã o te encontrei, e
o desapego de um sem apego ao outro me deixou suspenso no ar e
sofrendo, sem nenhum apoio seu ou de mim mesmo” ( SC 1.21).

O que se descreve é um sofrimento interior da alma, certamente. É o


sofrimento inseparável de um grande amor a Deus na oraçã o da
contemplaçã o. A alma se ofereceu totalmente, se entregou e ainda
assim experimenta esse vazio na oraçã o. Ao se render a Deus, toda alma
provavelmente espera em troca uma intimidade com Deus. Mas, como
parte do caminho contemplativo, deve suportar este vazio nã o aliviado
e a ferida do amor insatisfeito. E Deus parece deixá -lo neste estado,
“sem nenhum apoio seu ou de mim mesmo” (SC 1.21). Como resultado,
uma alma só pode sentir-se um pouco perdida, sem saber para onde se
virar, sem outra opçã o senã o render-se novamente. O ato de entrega
leva a alma em seu amor a Deus a um amor maior. Esta é a realidade de
um amor profundo por Deus na contemplaçã o. Apó s a entrega, inicia-se
para a alma uma espera por Deus, uma necessidade de perseverança no
amor que pode continuar por muito tempo. O desejo de um amor mais
intenso pode nã o ser concedido apesar da oferta pura da alma. Pois
quem pode saber como Deus escolhe agir com determinadas almas?
Esta espera é uma ferida de amor, causando sofrimento nas correntes
ocultas do desejo dentro da alma, como escreve Sã o Joã o da Cruz: “A
alma amorosa vive em constante sofrimento pela ausência do seu
Amado, pois já está entregue a ele e espera pela recompensa dessa
entrega: a entrega do Amado a ela. No entanto, ele nã o o faz. Agora
perdida para si mesma e para todas as coisas por causa do seu ente
querido, ela nã o ganhou nada com a sua perda, pois nã o o possui” (SC
1.21).

Mais tarde , no Cântico Espiritual , Sã o Joã o da Cruz oferece uma visã o


adicional sobre o sofrimento da alma em seu anseio por Deus. A
experiência de ser ferido por amor a Deus na contemplaçã o intensifica-
se à medida que a alma se aproxima de Deus. A sensaçã o de vazio
aumenta na medida em que a alma se entrega mais plenamente a Deus.
A proximidade de Deus, que certamente se agrada de tal alma, apenas
aumenta o peso interior de uma alma que ainda nã o possui o amor a
Deus que anseia. É necessá rio confrontar um princípio espiritual rígido
aqui. À medida que uma alma está mais unida a Deus, normalmente nã o
desfruta de um contato mais consolador com Deus. Pelo contrá rio, é
provável que experimente, pelo menos de forma intermitente, o seu
pró prio vazio e muitas vezes sofra uma escuridã o interior pesada e
purificadora. O paradoxo da escuridã o mais intensa que ocorre quando
Deus está mais pró ximo da alma pode ser uma verdade estranha para
nó s quando o encontramos pela primeira vez. Quanto mais a alma se
aproxima da luz de Deus, mais densas sã o as trevas interiores que ela
pode experimentar dentro de si. Enquanto Deus nã o se comunica de
uma forma clara, mas, antes, deixa uma alma sem qualquer sentimento
dele, uma tensã o e uma tensã o habitam a experiência do amor. E, no
entanto, toda esta purificaçã o interior é marcada por um propó sito
aparente no desígnio de Deus de refinar uma alma e prepará -la para
novos dons de graça. A seguinte passagem do Cântico Espiritual nã o
indica necessariamente no seu contexto o drama espiritual da “noite
escura da alma”, de que falaremos no pró ximo capítulo. As palavras
expressam uma verdade experiencial que acompanha a contemplaçã o
desde o seu início na graça, embora muito menos desde o início. A
intensidade do amor aproxima a alma de Deus, mas também esmaga a
alma até certo ponto sob uma nuvem de escura incompreensã o. O
sofrimento na contemplaçã o é um padrã o que pode ser esperado
simplesmente porque a alma está intensamente fixada no seu amor por
Deus.

A razã o pela qual a alma sofre tã o intensamente por Deus neste


momento é que ela está se aproximando dele; assim ela tem maior
experiência dentro de si do vazio de Deus, das trevas muito pesadas, e
do fogo espiritual que a seca e a purifica para que assim purificada ela
possa se unir a ele. Na medida em que Deus nã o comunica algum raio
de luz sobrenatural de si mesmo, ele é uma escuridã o intolerável para
ela quando está espiritualmente perto dela, pois o excesso de luz
sobrenatural escurece a luz natural. (SC 13.1)

Imediatamente depois de ouvir as palavras desta passagem, a estrofe


citada anteriormente do “Câ ntico Espiritual”, o nono, em que a ferida do
coraçã o humano é comparada ao coraçã o apreendido e roubado,
merece mais atençã o. A alma que ama com intensidade perde a posse
do pró prio coraçã o, experiência familiar a todo grande amor. Mas
quando o amor em questã o é pelo pró prio Deus, as implicaçõ es sã o
imensas. Deus tende a permitir um grande sofrimento no fundo da
alma, uma “escuridã o muito pesada”, tornando-se ele mesmo
“escuridã o intolerável para ela quando está espiritualmente perto dela”,
como acabamos de ler. O drama da intensidade espiritual na
contemplaçã o traz implicaçõ es importantes. A contemplaçã o nã o é para
uma alma sem coragem. O martírio do amor é uma perspectiva real na
experiência do amor ao pró prio Deus. Ouçamos novamente a evocativa
nona estrofe, seguida pelas reflexõ es do pró prio Sã o Joã o da Cruz sobre
a ferida da alma pelo amor:
Por que, já que você feriu
este coraçã o, você nã o o cura?
E por que, já que você roubou de mim,
você deixa assim
e nã o consegue levar o que roubou? (estrofe 9)

Um pouco à semelhança da primeira estrofe lida no início do livro,


estas palavras de reclamaçã o expõ em a dor de uma alma amorosa e
impaciente para que o Amado demonstre algum gesto do seu amor,
nomeadamente, manifestando a sua presença. Em vez disso, há apenas
a afliçã o de uma ferida nã o curada e a sua ausência contínua. Contudo,
como comenta Sã o Joã o da Cruz neste ponto, a alma sente-se como se
tivesse sido privada da sua essência, na medida em que o amor é a sua
verdade mais profunda. Agora que o seu amor foi totalmente entregue,
ele está vazio e despojado. O ensinamento sobre o amor aqui é
marcante no contexto da contemplaçã o. A natureza do amor é que ele
“vive” em tudo o que é amado; neste caso, na pessoa do Amado. Mas o
Amado partiu, ao que parece, para algum lugar distante, de distâ ncia
imensurável. Como resultado, a alma sofre um terrível vazio no qual
nem sequer possui a si mesma. Nã o pode reivindicar nenhuma
segurança, nenhuma substâ ncia, mesmo da sua pró pria verdade. A
verdade da alma está no seu amor pelo Amado, mas ele desapareceu e
abandonou-o, despojando-o. A dor deixa-o sem outro recurso senã o
sair em busca do Amado. A insatisfaçã o e a dor que o leva em busca do
Amado nã o deixa de ser um estado salutar. A alma verdadeiramente
apaixonada por Deus sai de si mesma com fome, esquecendo-se de si
mesma, e busca maneiras de agradar a Deus. Ela anseia por ele, e nada
mais a satisfaz a nã o ser encontrar maneiras de demonstrar amor por
ele, mesmo que ele pareça ausente. Em certo sentido, é um recipiente
vazio de desejo doloroso; em outro sentido, é uma alma de expectativa.
Torna-se, no melhor sentido do termo, uma alma “impulsionada” na sua
busca, intensamente desejosa de Deus, firme na sua determinaçã o de
permanecer neste caminho de um grande amor ao Amado. Sã o Joã o da
Cruz escreve lindas palavras em seu comentá rio a esta estrofe sobre o
que estar apaixonado por Deus faz à alma:

Diz-se que os amantes têm seus coraçõ es roubados ou apreendidos


pelo objeto de seu amor, pois o coraçã o se afastará de si mesmo e se
fixará no objeto amado. Assim, seu coraçã o ou amor nã o é para si
mesmos, mas para aquilo que amam. Conseqü entemente, a alma pode
saber claramente se ama ou nã o a Deus puramente. Se ela o ama, seu
coraçã o ou amor nã o estará voltado para si mesma ou para sua pró pria
satisfaçã o e ganho, mas para agradar a Deus e dar-lhe honra e gló ria. Na
medida em que ela ama a si mesma, tanto menos ama a Deus. (SC 9.5)

Estes comentá rios sobre o efeito de estar apaixonado por Deus


aprofundam-se na sua intensidade no tratamento de Sã o Joã o da Cruz.
O ataque ao coraçã o roubado por Deus pode tornar-se um estado de
dor incontrolável. O coraçã o apaixonado por Deus já nã o tem paz,
precisamente por causa do seu amor. Está inquieto no seu anseio pelo
Amado, ansioso por ele, desejoso de qualquer sinal da sua presença. A
alma nã o pode viver sem retornar continuamente ao pensamento do
Amado. Vive com uma sensaçã o de incompletude perpétua e frustrada
com o seu desejo mais profundo. Uma espécie de doença espiritual
parece dominá -lo, mas é claro que esta nã o é uma condiçã o prejudicial
à saú de. Pois a frustraçã o mergulha a alma num desejo maior de doaçã o
e generosidade. Nesta seçã o do seu comentá rio à nona estrofe, Sã o Joã o
da Cruz escreve um comovente pará grafo sobre o coraçã o roubado por
Deus no amor. As ú ltimas linhas sã o especialmente memoráveis:

Se o coraçã o foi verdadeiramente roubado por Deus ficará evidente em


qualquer um destes dois sinais: se ele anseia por Deus ou se nã o
encontra satisfaçã o em nada além dele, como a alma demonstra aqui. A
razã o é que o coraçã o nã o pode ter paz e descanso enquanto nã o
possui, e quando é verdadeiramente atraído, nã o tem mais posse de si
mesmo ou de qualquer outra coisa. E se nã o possuir completamente o
que ama, nã o poderá deixar de ficar cansado, proporcionalmente à sua
perda, até possuir o objeto amado e ficar satisfeito. Até esta posse, a
alma é como um recipiente vazio esperando para ser preenchido, ou
uma pessoa faminta ansiando por comida, ou alguém doente gemendo
por saú de, ou como alguém suspenso no ar sem nada em que se apoiar.
Tal é o coraçã o verdadeiramente amoroso. (SC 9.6)

O que devemos fazer com tal descriçã o do amor? Aonde tudo isso
leva? E o que ele está nos ensinando sobre o amor na oraçã o? Para Sã o
Joã o da Cruz, uma verdade essencial da contemplaçã o, mesmo na
experiência das trevas e da provaçã o interior, é o modo de comunicaçã o
do amor de Deus. Nas correntes ocultas da alma, nos anseios mais
profundos e despercebidos dentro da alma, Deus expressa seu amor. A
experiência de um desejo de amar, penetrando nas “camadas” mais
profundas da alma, é uma melhor indicaçã o de um encontro com Deus
do que qualquer sentido de experiência direta. Desejos, anseios, as
feridas de um amor impaciente por Deus - estes sã o os meios pelos
quais Deus informa à alma que ele está pró ximo. A experiência de uma
saudade de Deus na insatisfaçã o pode parecer contradizer a ideia da
sua presença pró xima. Mas isso está incorreto. A alma deve aprender os
caminhos de Deus, tã o contraditó rios em alguns aspectos ao amor
humano, e escolher aceitá -los, nã o desanimando nem oprimindo o
difícil caminho do amor. A breve declaraçã o que se segue pode trazer
benefícios tanto para os nossos esforços fora da oraçã o como para a
busca contemplativa de permanecermos fixos no Amado em oraçã o,
apesar das dificuldades. “Ela o ama mais do que todas as coisas, quando
nada a intimida em fazer e sofrer por amor a ele tudo o que estiver a
seu serviço” (SC 2.5).

A grande tarefa espiritual, em certo sentido, é declarada aqui; a saber,


nã o se deixar intimidar pela exigência essencial de agradar a Deus de
qualquer maneira disponível. Um amor puro por Deus, se é isso que
realmente buscamos, requer uma fé profunda e perseverante ao longo
da vida. Cada toque no Coraçã o de Deus, mesmo o mais pequeno,
comove-o, apesar do que pode parecer uma açã o como sendo um mero
nada em magnitude. A compreensã o de que o amor muitas vezes
consiste em pequenas coisas feitas com grande amor deve ser abraçada
por qualquer amor significativo de Deus nesta vida. O pensamento mais
intimidante talvez nã o seja o de que devemos fazer coisas
extravagantes ou exorbitantes para Deus; antes, que devemos aceitar
ser reduzidos a atos aparentemente insignificantes que escondem um
amor profundo, porque também estes penetram no Coraçã o de Deus. É
difícil para muitas pessoas pensar que um grande amor consiste na
fidelidade aos pequenos detalhes de um dia. E, no entanto, um serviço
amoroso a Deus deve incluir tanto pequenos atos de heroísmo como os
atos mais aclamados publicamente. Quando o amor é grande, nada é
pequeno. Mas podemos ficar intimidados pelo pensamento errô neo de
que essas sã o coisas inú teis que ocupam nossas pequenas vidas, que
nunca avançaram para feitos importantes de grandeza espiritual. O
contrá rio talvez seja verdade aos olhos de Deus. Abraçar o pequeno ato
com amor profundo é uma forma de superar o peso da insatisfaçã o por
nã o chegar à posse de um amor consolador por Deus. Em Os Ditos de
Luz e Amor , Sã o Joã o da Cruz inclui uma esplêndida declaraçã o sobre o
valor da ocultaçã o das pequenas açõ es:

Deus fica mais satisfeito com uma obra, por menor que seja, feita
secretamente, sem o desejo de que seja conhecida, do que com mil
obras feitas com o desejo de que as pessoas as conheçam. Aqueles que
trabalham para Deus com o mais puro amor nã o apenas nã o se
importam se os outros vêem as suas obras, mas nem sequer procuram
que o pró prio Deus as conheça. Tais pessoas nã o deixariam de prestar a
Deus os mesmos serviços, com a mesma alegria e pureza de amor,
mesmo que Deus nunca soubesse disso. (SLL 20)

No seu comentá rio à estrofe 35 do “Câ ntico Espiritual”, Sã o Joã o da


Cruz oferece ainda outra visã o perspicaz do que acontece quando o
desejo interior da alma de amar é assumido exclusivamente com Deus.
A insatisfaçã o com tudo menos que Deus coloca a alma cada vez mais
numa espécie de solidã o interior fechada. A alma está sozinha no seu
desejo, sem outra companhia, porque nada neste mundo atrai
realmente o seu desejo maior. Nada além de Deus oferece uma
satisfaçã o que vale a pena buscar com qualquer chamada paixã o da
alma. A solidã o da alma de que fala Sã o Joã o da Cruz nã o é ausência de
companhia humana. É um estado interior de separaçã o de qualquer
satisfaçã o que nã o seja a de Deus. Nã o desejar nada além de Deus é
estar sozinho com o desejo de Deus. Nada mais entra nessa solidã o
dentro da alma. Na visã o de Sã o Joã o da Cruz, esta insatisfaçã o que a
alma sente por nã o possuir Deus torna-se por sua vez imensamente
atrativa para Deus, um pensamento realmente maravilhoso: “Na
medida em que ela desejava viver separada de todas as coisas criadas,
na solidã o para ela Pelo amor de sua amada, ele mesmo se apaixonou
por ela por causa dessa solidã o e cuidou dela, acolhendo-a em seus
braços, alimentando-a em si com todas as bênçã os e guiando-a para as
alturas de Deus” (SC 35.2).

É uma noçã o surpreendente que Deus encontre o afastamento da


alma do conforto e da satisfaçã o em qualquer coisa que nã o seja ele
mesmo, como uma solidã o na alma que ele entã o deseja preencher com
sua pró pria companhia. É benéfico permanecer nesse pensamento. As
satisfaçõ es que buscamos nas coisas deste mundo tornam-se, por assim
dizer, companheiras da alma, embora permaneçam para nó s desejáveis.
Mas a alma que se esvazia dos desejos de conforto ou de companhia
humana anseia mais intensamente pela companhia divina que ainda a
espera. “Nã o há companhia que dê consolo à alma que anseia por Deus;
aliá s, até que ela o encontre, tudo causa maior solidã o” (SC 35.3). A
solidã o aqui é o vazio da alma interior sem o conforto de qualquer
satisfaçã o, incluindo possivelmente o companheirismo de relaçõ es
humanas íntimas. Na verdade, isso ocorre em algumas vidas. Deus
encontra entã o na alma uma solidã o aberta e só para si quando ela se
encontra neste estado de afastamento de todas as coisas e de todos os
favores. “Ele se sente apaixonado por ela e quer ser o ú nico a conceder-
lhe esses favores” (SC 35.6). Num belo pensamento, Sã o Joã o da Cruz
escreve que o pró prio Deus fica entã o ferido de amor pela alma. À
medida que Deus vê a alma ferida de amor por ele na sua solidã o, ele
por sua vez é ferido de amor pela alma. É um pensamento espiritual
notável. O vazio de desejo na alma por tudo que nã o seja Deus atrai um
desejo imenso de Deus ferido de amor por aquela alma. A ferida do
amor presente em Deus procurará entã o aliviar a ferida do amor na
alma solitá ria. Este é um insight contemplativo profundo. O que se
segue é uma passagem marcante de Sã o Joã o da Cruz comentando dois
versos da estrofe 35 do “Câ ntico Espiritual”, refletindo o que acaba de
ser dito sobre essas feridas mú tuas no Coraçã o de Deus e no coraçã o de
uma alma:

[só ele, que também carrega]


na solidã o a ferida do amor.
Ou seja, ele está ferido de amor pela noiva. O Noivo tem um grande
amor pela solidã o da alma; mas ele está muito mais ferido pelo amor
dela, pois, ferida de amor por ele, ela desejou viver sozinha em relaçã o
a todas as coisas. E ele nã o quer deixá -la sozinha, mas ferido pela
solidã o que ela abraça por ele, e vendo que ela está insatisfeita com
qualquer outra coisa, só ele a guia, atraindo-a e absorvendo-a em si
mesmo. Se ele nã o a tivesse encontrado na solidã o espiritual, nã o teria
causado isso nela. (SC 35.7)

Podemos achar esses tipos de passagens muito além de nossas


forças, elevadas demais para nosso atual estado de aspiraçã o espiritual.
Mas quem pode dizer para onde Deus conduzirá uma alma no decorrer
de uma vida em que a oraçã o tem sido uma necessidade consistente? O
desejo de uma alma de amar a Deus e considerar tudo o mais de pouca
ou nenhuma importâ ncia comparado a ele talvez nã o ocorra até um
está gio tardio em muitas vidas. No entanto, este desejo leva a uma
perda crescente da busca egoísta, como exige o Evangelho. O amor a
Deus tem sempre o efeito de desligar a alma do interesse excessivo por
si mesma e das coisas passageiras que nã o permanecem depois desta
vida. A alma, por exemplo, nã o procura mais brilhar exteriormente para
os outros ou chamar a atençã o de olhos interessados. Somente Deus
importa; a busca vã parece frívola e sem valor. Nã o há ganho para a
alma senã o aproximar-se dele e agradá -lo. Sã o Joã o da Cruz descreve
este amor exclusivo a Deus nas seguintes palavras que podem servir
quase como um testemunho de esforço contemplativo. Mas este é
também o programa para uma vida santa: “Aquele que anda no amor de
Deus nã o procura ganho nem recompensa, mas procura apenas perder
com a vontade todas as coisas e a si mesmo para Deus; e esta perda o
amante julga ser um ganho” (SC 29.11).

A vigésima nona estrofe do poema apresenta ainda outra bela


imagem, especialmente depois de ouvir estas ú ltimas palavras, neste
caso da alma se perdendo em si mesma quando nada do esforço e da
satisfaçã o mundana é suficiente para sustentar uma vida:

Se, entã o, nã o for mais


visto ou encontrado no terreno comum,
você dirá que estou perdido;
que, atingido pelo amor,
me perdi e fui encontrado. (estrofe 29)

Sã o Joã o da Cruz, ao comentar esta estrofe, afirma que as obras da alma


tornam-se obras cada vez mais ocultas quando um amor forte a anima
com intenso desejo de agradar a Deus. A insatisfaçã o da alma leva com
o tempo a um desejo intenso de dar apenas a Deus e de realizar todas
as suas obras somente aos seus olhos. Nenhum cuidado ou
preocupaçã o é com a visã o de outras pessoas vendo alguma coisa. Isto,
por sua vez, leva a alma a ficar “perdida”. Ele desaparece em sua pró pria
ocultaçã o, afastado dos olhos dos outros. Nada está em exibiçã o; nada é
buscado para sua pró pria satisfaçã o. Tudo é apenas para a atençã o do
Amado, o ú nico que vê. Sã o Joã o da Cruz afirma, incisivamente, que
poucas pessoas podem ser encontradas que executam as suas obras
com “perfeiçã o e nudez de espírito”; a maioria das pessoas “pensa no
que os outros dirã o ou como seu trabalho aparecerá” (SC 29.8). Estas
almas anteriores estã o perdidas para si mesmas, enquanto outras nã o.
Neste ú ltimo caso, o desejo das almas de satisfaçã o em si mesmas e nas
boas obras que realizam para Deus torna-se um obstá culo à sua busca
por Deus e um obstá culo à contemplaçã o. Esta pureza de procurar de
forma oculta apenas agradar a Deus é um desafio imenso. A alma oculta
encontra em sua ocultaçã o o caminho secreto para a realizaçã o dos
olhos de Deus repousando sobre a alma mais continuamente. Perdidos
em si mesmos, eles sã o encontrados nele. Esta pura intençã o da alma,
nã o se desviando do caminho do vazio nu, é essencial para o amor. A
passagem a seguir transmite a beleza dessa empreitada de forma
impressionante:

Para nã o falhar com Deus ela falhou com tudo o que nã o é Deus, isto é,
ela mesma e todas as outras criaturas, perdendo tudo isso por amor a
ele. Quem está verdadeiramente apaixonado abrirá mã o de todas as
outras coisas para se aproximar da pessoa amada. Por isso a alma
afirma aqui que se perdeu. Ela conseguiu isso de duas maneiras:
perdeu-se em si mesma ao nã o prestar atençã o a si mesma em nada, ao
concentrar-se no seu Amado e entregar-se a ele livre e
desinteressadamente, sem nenhum desejo de ganhar nada para si;
segundo, ela se perdeu para todas as criaturas, nã o prestando atençã o a
todos os seus pró prios assuntos, mas apenas aos do seu Amado. E isso é
perder-se propositalmente, que é desejar ser encontrado. (SC 29.10)

Talvez seja importante um ú ltimo pensamento sobre a natureza da


insatisfaçã o nas relaçõ es da alma com Deus. Isto tem a ver com a ferida
da incompreensã o que uma alma experimenta no seu amor a Deus.
Como escreve Sã o Joã o da Cruz sobre a alma que busca conhecer a
Deus: “Todo o conhecimento de Deus possível nesta vida, por mais
extenso que seja, é inadequado, pois é apenas um conhecimento parcial
e muito remoto” (SC 6.5). Na experiência de uma alma que ama muito,
nunca há um conhecimento de Deus na oraçã o que pareça suficiente,
nunca uma saciedade que chegue, mesmo que temporariamente, a uma
consciência adequada de Deus. Algum grau de frustraçã o da
consciência é a habitual conclusã o da oraçã o, mesmo depois de o amor
da alma ter crescido muito. O amor simplesmente nunca fica satisfeito
quando o amor é pelo Divino Amado, como já vimos antes. Agora Sã o
Joã o da Cruz descreverá esta experiência de amor insatisfeito como
uma espécie de morte pela alma nesta vida. A morte por amor ocorre
enquanto a alma ainda vive esta vida. A morte é o encontro lento e
profundo com a imensa incompreensã o que a nossa alma deve aceitar
no seu conhecimento inadequado de Deus. Sempre há mais para
encontrar em Deus. A pró pria oraçã o é a arena para esta luta com uma
experiência de amor incompreensível: “Ela vive morrendo até que o
amor, ao matá -la, a faz viver a vida do amor, transformando-a no amor.
Essa morte do amor é causada na alma por meio de um toque de
conhecimento supremo da divindade, o “nã o sei o que” que ela diz estar
por trá s de sua gagueira. . . . E ela morre ainda mais ao perceber que
nã o morre totalmente de amor” (SC 7.4).

Esta descriçã o nã o pretende simplesmente reafirmar um aspecto


apofá tico na busca de Deus na oraçã o. Uma ferida na alma ocorre a cada
vislumbre da imensa realidade do amor divino. A incapacidade da alma
de chegar a Deus e o morrer que isso impõ e à alma intensificam as
feridas do amor. E, no entanto, esta experiência leva a alma cada vez
mais à profundidade da contemplaçã o. Sã o Joã o da Cruz prossegue
comentando a frase enigmá tica que acabamos de usar: “Há um certo
'nã o sei o que' que se sente que ainda está por ser dito, algo
desconhecido ainda por ser dito, e um traço sublime de Deus ainda nã o
investigado, mas revelado à alma, uma compreensã o elevada de Deus
que nã o pode ser expressa em palavras. Por isso ela chama isso de algo
'nã o sei o quê'. Se o que entendo me fere de amor, o que nã o entendo
completamente, mas de que tenho experiência sublime, é morte para
mim” (SC 7.9).

Podemos afirmar, a partir desta passagem, que na contemplaçã o a


dimensã o apofá tica da infinidade do amor de Deus, sempre além do
alcance da alma, é realmente mais uma ferida para o amor da alma do
que uma frustraçã o para o intelecto. A alma deseja intimidade com
Deus e encontra o seu amor como uma vasta imensidã o que se estende
muito além do alcance do seu desejo mais intenso. Uma alma deseja a
sua presença e, no entanto, descobre que a presença de Deus é
avassaladora na sua inacessibilidade. A alma gostaria de ver, mas está
cega e sofre esta escuridã o. Gostaria de sentir Deus pró ximo e tocá -lo,
se isso fosse possível, e conhece muito bem esta impossibilidade. Sã o
Joã o da Cruz afirma que, em raras ocasiõ es, a alma pode receber uma
experiência e um favor de Deus que a faça “compreender claramente
que tudo ainda precisa ser compreendido” (SC 7.9). A afirmaçã o é, na
verdade, de uma realizaçã o totalmente insatisfató ria. No entanto, essa
compreensã o é precisamente um favor que ultrapassa todos os outros.
“Essa compreensã o e experiência de que a divindade é tã o imensa que
ultrapassa a compreensã o completa é de fato um conhecimento
sublime” (SC 7.9). A alma toma consciência da verdade absoluta do ser
infinito de Deus, além do alcance de sua escassa compreensã o. Com
efeito, a alma entra por uma espécie de passo cego e cambaleante na
verdade mais clara. Este favor, apesar da sua insatisfaçã o, altera todas
as oraçõ es subsequentes por uma alma. Deus se torna totalmente
pessoal em sua presença pró xima e ainda assim se estende até as vastas
extensõ es infinitas dos céus, além de qualquer recinto de amor
humano. As seguintes palavras transmitem eloquentemente a natureza
experiencial deste aspecto “apofá tico” da contemplaçã o:

Um dos favores notáveis que Deus concede brevemente nesta vida é


uma compreensã o e uma experiência de si mesmo tã o lú cida e elevada
que se chega a saber claramente que Deus nã o pode ser completamente
compreendido ou experimentado. Esta compreensã o é um pouco
parecida com a dos Bem-aventurados no céu: aqueles que
compreendem mais a Deus compreendem mais claramente a infinidade
que ainda precisa ser compreendida; aqueles que o vêem menos nã o
percebem tã o claramente o que resta para ser visto. (SC 7.9)

O pró prio Nosso Senhor e o nosso conhecimento dele sã o


continuamente descritos por Sã o Joã o da Cruz nesses termos. Nunca
alcançamos o ponto final em nosso conhecimento de Jesus. O Evangelho
oferece um claro testemunho histó rico das suas palavras e açõ es. No
entanto, a verdade de quem ele é como nosso Deus se estende além de
nossa posse e compreensã o por toda a vida. A busca é interminável
porque o amor nunca chega a um conhecimento conclusivo do Amado
que morreu numa cruz em Jerusalém por nó s. A ú nica porta de entrada
para esse conhecimento maior é ficar ferido de amor por ele. Talvez
tenhamos que sofrer uma ferida perpétua na alma para abrir
repetidamente uma porta para os tesouros ilimitados escondidos no
Coraçã o de nosso Senhor. A imagem usada por Sã o Joã o da Cruz na
passagem seguinte capta tanto o encontro incompleto sentido por uma
alma como a ferida da alma que daí resulta. Pode servir como uma
conclusã o adequada para este capítulo. Enquanto ele escreve, de forma
mais impressionante:

Há muito para se compreender em Cristo, pois ele é como uma mina


abundante com muitos recantos de tesouros, de modo que, por mais
profundo que os indivíduos possam ir, eles nunca chegam ao fim ou ao
fundo, mas em cada recanto encontram novos veios com novas riquezas
em todos os lugares. Por esse motivo, Sã o Paulo disse de Cristo: Em
Cristo habitam escondidos todos os tesouros e sabedoria [Col. 2:3]. A
alma nã o pode entrar nestas cavernas nem alcançar estes tesouros se,
como dissemos, nã o passar primeiro à sabedoria divina através dos
estreitos do sofrimento exterior e interior. Pois nã o se pode alcançar
nesta vida o que é alcançável destes mistérios de Cristo sem ter sofrido
muito e sem ter recebido numerosos favores intelectuais e sensíveis de
Deus, e sem ter passado por muita atividade espiritual; pois todos esses
favores sã o inferiores à sabedoria dos mistérios de Cristo, pois servem
como preparativos para chegar a essa sabedoria. (SC 37.4)
15
Sofrimento por Amor de um Amado Crucificado

Certamente uma atmosfera de grande desafio permeia os escritos de


Sã o Joã o da Cruz. É possível que a ênfase recorrente na purificaçã o, nas
provaçõ es interiores, na insatisfaçã o na oraçã o ou nas feridas do amor
em certas seçõ es dos escritos de Sã o Joã o da Cruz tenha um efeito
chocante ou intimidador. Sua atençã o à s experiências dolorosas pode
parecer propor uma espiritualidade de fardos intermináveis e de
resistência impossível. Do nosso ponto de vista, esse foco pode ser
excessivo. Nã o é que nos faltem lutas e tribulaçõ es. Quem nã o os
experimenta? No entanto, o nosso pensamento pode ser que as
questõ es de provaçã o e dificuldade devem ser reduzidas ao mínimo e
levadas a uma conclusã o o mais rapidamente possível. Para muitas
pessoas, mesmo de forte convicçã o religiosa, as experiências comuns de
fadiga e dor competem com a busca de prazeres e confortos. Muitas
vezes encontramos uma maneira de nos compensar com prazeres
mundanos se por algum tempo enfrentamos provaçõ es e dificuldades.
Talvez nã o ponderemos o Evangelho com profundidade suficiente.
Sofrer por causa de um profundo amor a Deus pode ser uma noçã o
negligenciada na nossa compreensã o do amor, embora claramente nã o
seja para Sã o Joã o da Cruz: “Deixa que Cristo crucificado te basta, e com
ele sofre e descansa, e portanto, aniquile-se em todas as coisas internas
e externas” (SLL 92). Esse tipo de conselho nã o é comumente ouvido
em nenhum momento na Igreja.

Para Sã o Joã o da Cruz, escrevendo a quem procura a santidade, nã o


se pode fugir à necessidade de sofrer por amor no caminho da uniã o
com Deus. Na verdade, ele insistirá que um limiar de compreensã o deve
ser ultrapassado ao perceber os abençoados efeitos de suportar o
sofrimento. As provaçõ es exteriores fortalecem a alma e as lutas
interiores concedem ao espírito interior uma profundidade que de
outra forma seria inatingível. Um refinamento da alma ocorre quando a
alma exerce coragem nas provaçõ es. O desapego começa a se tornar
uma espécie de “segunda natureza” dentro da alma. Este desapego de si
sempre acompanha um amor maior, como proclama outro aforismo: “O
amor nã o consiste em sentir grandes coisas, mas em ter um grande
desapego e em sofrer pelo Amado” (SLL 115). Ou seja, sofremos bem,
aprofundando o nosso amor, quando o desapego de nó s mesmos nos
permite voltar mais plenamente a nossa atençã o para o Outro. O
oposto, pelo contrá rio, é claramente debilitante. A repugnâ ncia e o
medo humanos em relaçã o ao sofrimento, especialmente no
pensamento de sofrer de alguma forma desconhecida, sã o um
obstá culo ao avanço espiritual. É um dos favores essenciais que Deus
concede em graça quando uma alma começa a oferecer corajosamente
o seu sofrimento pelos outros e o aceita sem ressentimentos. Uma alma
logo percebe uma força totalmente nova e sem precedentes em sua
experiência. Existem duas passagens marcantes de A Chama Viva do
Amor sobre o sofrimento que podem aumentar a nossa consciência da
presença de Deus na provaçã o. Recordemos que este tratado foi escrito,
nã o para carmelitas enclausuradas, mas para uma leiga espanhola. A
primeira passagem fala com efeito das mã os de Deus atadas quando vê
uma alma incapaz de suportar o sofrimento por amor a ele, o que pode
implicar a recusa de aceitar mortificaçõ es voluntá rias ainda menores.
Nã o podemos avançar na oraçã o a menos que estejamos prontos a
renunciar à busca da satisfaçã o na oraçã o, como vimos. Mas este
desapego de si mesmo requer também a capacidade de suportar
privaçõ es e dificuldades fora do momento da oraçã o.

E aqui deve ser salientado por que tã o poucos alcançam este elevado
estado de perfeita uniã o com Deus. Deve-se saber que a razã o nã o é que
Deus queira que apenas alguns desses espíritos sejam tã o elevados; ele
preferiria querer que tudo fosse perfeito, mas encontra poucos vasos
que suportem um trabalho tã o elevado e sublime. Visto que ele os prova
nas pequenas coisas e os acha tã o fracos que imediatamente fogem do
trabalho, nã o querendo ficar sujeitos ao menor desconforto e
mortificaçã o, segue-se que nã o os achando fortes e fiéis naquela
pequena [Mt. 25:21, 23], em que os favoreceu começando a talhá -los e
poli-los, ele percebe que eles serã o muito menos fortes nessas
provaçõ es maiores. Como resultado, ele nã o prossegue purificando-os e
levantando-os do pó da terra através do trabalho da mortificaçã o. Eles
precisam de maior constâ ncia e coragem do que demonstraram. (LF
2.27)

A segunda passagem, memorizada por outra grande carmelita, Santa


Teresinha de Lisieux (1873-1897), afirma os profundos benefícios que
advêm à alma que nã o resiste ao caminho do sofrimento por amor ao
Amado. A compreensã o de que todo amor sério exige a companhia do
Amado em seu sofrimento é uma compreensã o essencial. Mas também
deve tornar-se uma experiência real dentro da nossa alma interior que
nos leve através de um limiar nas nossas relaçõ es com Deus. Ouvimos
novamente na passagem seguinte a necessidade de renunciar ao desejo
de consolaçã o no amor. O verdadeiro caminho do amor é o do
abnegaçã o e da humilde pobreza interior. Este é um empreendimento
caro em contemplaçã o. Só o afastamento de nó s mesmos nos abre ao
dom que Deus quer dar de si mesmo. A compreensã o de que bênçã os,
bênçã os abundantes e incalculáveis, estã o por vir se uma alma estiver
disposta a deixar ir e a render-se a tudo o que Deus pede é uma graça
inestimável. A sensaçã o de ultrapassar um limiar e mudar para sempre
é por vezes forte em passagens de Sã o Joã o da Cruz, como nesta,
pará grafo caro a Santa Teresinha de Lisieux:

Ó almas que nos assuntos espirituais desejam caminhar em segurança e


consolaçã o! Se você soubesse o quanto lhe cabe sofrer para alcançar
essa segurança e consolo, e como sem sofrimento você nã o pode
alcançar o seu desejo, mas sim voltar atrá s, de forma alguma você
procuraria conforto, seja de Deus ou das criaturas. Em vez disso, você
carregaria a cruz e, colocado sobre ela, desejaria beber o fel puro e o
vinagre. Vocês considerariam uma boa sorte que, morrendo para este
mundo e para si mesmos, vocês vivessem para Deus nas delícias do
espírito, e sofrendo com paciência e fidelidade as provaçõ es exteriores,
que sã o pequenas, vocês mereceriam que Deus fixasse seus olhos em
vocês. e purgá -lo mais profundamente através de provaçõ es espirituais
mais profundas, a fim de lhe dar mais bênçã os interiores. (LF 2.28)

Se nos voltarmos, ainda que de forma um tanto aleató ria, para as


passagens de Sã o Joã o da Cruz, encontraremos repetidas insistências
nesta importâ ncia do sofrimento por amor ao Amado. O desejo maduro
de sofrer por Jesus Cristo introduz a alma no mistério mais profundo do
amor divino. No entanto, quã o difícil é tal exigência e quanta coragem
pode exigir. Nenhuma preocupaçã o por uma aceitaçã o humana mais
fá cil entre os nossos irmã os e amigos, nenhuma negligência nas açõ es
solicitadas por Deus, nenhuma objeçã o que proteste contra a nossa
incapacidade para as exigências vindas de Deus: em suma, nada pode
ser permitido impedir a nossa busca por Deus. Nã o apenas o amor, mas
a intensidade do amor deve impelir a busca por um amor maior: “Como
o desejo com que ela o procura é autêntico e o seu amor é intenso, ela
nã o quer deixar nenhum meio possível sem tentar” (SC 3.1). Ouvimos
nesta afirmaçã o uma verdade que talvez nã o seja suficientemente
reconhecida. A vida contemplativa é tudo menos passiva; exige uma
generosidade activa através da qual a alma se estende deliberadamente
na doaçã o, mesmo além das suas forças humanas, para que a graça
possa sustentá -la. As obras devem abundar fora da oraçã o para que a
oraçã o seja permeada de amor. Como vimos, um abençoado estado de
insatisfaçã o permeia uma alma que ama muito. A alma que ama muito
torna-se esquecida de si mesma e generosa nas açõ es, e ainda assim
considera essas açõ es ainda dolorosamente insuficientes para
expressar a verdadeira profundidade do seu amor. Estas breves
palavras do Cântico Espiritual transmitem a verdade oculta da
santidade: “A alma que ama verdadeiramente a Deus nã o é preguiçosa
em fazer tudo o que pode para encontrar o Filho de Deus, seu Amado.
Mesmo depois de ter feito tudo, ela fica insatisfeita e acha que nã o fez
nada” (SC 3.1).

A motivaçã o de todo grande amor por Deus está contida nesta


passagem. Temos que fazer o que for possível através dos nossos
esforços de açã o e com um motivo implícito: queremos que o nosso
Senhor saiba que ele é muito amado. Esta nã o é uma observaçã o ou
exortaçã o piedosa. O desejo da alma de que nosso Senhor saiba o
quanto ele é amado, pelo menos por nossa pró pria alma, pode tornar-se
um impulso irresistível que afeta tudo o mais na vida. Talvez seja esta
paixã o por Deus que falta em muitas vidas comprometidas com
princípios religiosos e prá ticas espirituais. É a paixão por Deus numa
alma que explica o desejo de uma doaçã o mais sacrificial. Viver para as
almas e mortificar a pró pria vida pelo bem dos outros é essencial para a
santidade: “Uma alma deve, através dos seus pró prios esforços, fazer
todo o possível” (SC 3.2) - isto é, tudo o que for possível para o bem das
almas. Por outro lado, talvez seja comum que pessoas religiosas que
afirmam ter dado tudo a Deus mantenham uma generosidade
cautelosa, nã o ampliando a sua capacidade de doaçã o. O segredo das
vidas santas é totalmente diferente. Nestas vidas, o sacrifício e a
caridade estã o unidos numa parceria e até indistinguíveis. O
esvaziamento de um é inseparável da doaçã o do outro. Sã o Joã o da
Cruz, numa das suas passagens mais contundentes, repreende aqueles
que nã o estã o dispostos a pagar este preço maior por amor:

Muitos desejam que Deus nã o lhes custe mais do que palavras, e mesmo
estas falam mal. Eles desejam fazer por ele quase nada que possa
custar-lhes alguma coisa. Alguns nem sequer se levantariam de um
lugar de sua preferência se nã o recebessem assim algum deleite de
Deus em sua boca e em seu coraçã o. Eles nã o darã o nem um passo para
se mortificarem e perderã o algumas de suas satisfaçõ es, confortos e
desejos inú teis. No entanto, a menos que procurem a Deus, nã o o
encontrarã o, por mais que clamem por ele. (SC 3.2)
A custosa busca de Deus, dentro e fora da oraçã o, é um caminho
estreito, como ouvimos fortemente nestas palavras. Mas recordemos do
segundo capítulo a imagem das cavernas da alma e “ o vasto vazio da
sua capacidade profunda ” (LF 3.18; grifo nosso). Na graça da
contemplaçã o, o sofrimento do amor pelo Amado desce até estas vastas
profundezas da alma. Uma fome ilimitada de Deus impulsiona a busca
apaixonada por Deus na oraçã o. Existe uma profundidade infinita na
alma que pode ser entregue a Deus. Esta é a realidade por trá s das
palavras duras que acabamos de ouvir de Sã o Joã o da Cruz. Uma fome
sem limites deve surgir do “vasto vazio” dos recantos interiores da
alma. Mas para que isso ocorra, uma dispendiosa purificaçã o do desejo
deve ocorrer em nossa alma, para que somente Deus seja buscado com
o mais profundo desejo. É a vasta e ilimitada imensidã o dentro da alma
que exige a necessidade de auto-esvaziamento e que explica o
sofrimento da alma na contemplaçã o. O sofrimento do amor intensifica-
se na medida em que a fome de amar encontra pouca ou nenhuma
saciedade. Nã o podemos viver sem esta fome de possuir Deus em amor
se quisermos trilhar o caminho da contemplaçã o. A fome, se for para
sustentar a nossa oraçã o, é como um grito abafado da alma, sem
resposta, se nã o inédito, um grito para que Deus levante a barreira do
seu esconderijo dentro das cavernas interiores da alma. Se à s vezes se
realiza um encontro mais tangível com Deus na oraçã o, é sempre
insuficiente que uma alma que anseia e tem uma fome sem limites do
nosso amado Senhor se manifeste mais plenamente. Mas Sã o Joã o da
Cruz assegura-nos que esta frustraçã o é um sinal de progresso na
contemplaçã o e aumenta o amor da alma. A alma ganha no amor e
intensifica o seu amor justamente sofrendo por amor. No Cântico
Espiritual , Sã o Joã o da Cruz escreve sobre o misterioso processo em
açã o no amor contemplativo:

É digno de nota que qualquer alma com amor autêntico nã o pode ficar
satisfeita até que realmente possua Deus. Todo o resto nã o só nã o
consegue satisfazê-lo, mas, como dissemos, aumenta a fome e o apetite
de vê-lo como ele é. Cada vislumbre do Amado recebido através do
conhecimento ou sentimento ou qualquer outra comunicaçã o (que é
como um mensageiro trazendo à alma a notícia de quem ele é) aumenta
ainda mais e desperta seu apetite, como as migalhas dadas a alguém
que está faminto. Achando difícil atrasar-se tã o pouco, ela implora:
“Agora entregue-se totalmente!” (SC 6.4)

Sem saciar a fome, o amor, no entanto, continua a agitar as


profundezas invisíveis da alma em um desconforto constante. A
insuficiência do que se vive na oraçã o pode caracterizar longos
períodos de oraçã o. O aspecto difícil da oraçã o deve-se precisamente à
vasta profundidade da alma como receptá culo do pró prio Deus. “Bens
ilimitados” sã o o “ponto final” nunca alcançado desta recepçã o. Pois a
capacidade da alma de ser preenchida por Deus é igualmente infinita - “
qualquer coisa menos do que o infinito falha em preenchê-la ” (LF 3.18;
ênfase adicionada). A ú nica coisa necessá ria, a saber, um amor maior,
pode se tornar a ú nica coisa experimentada como mais dolorosa. . A
razã o é a incapacidade do amor da alma de se estender e se estender
até essas profundezas ilimitadas. “O amor é incurável”, escreve Sã o Joã o
da Cruz, “exceto pelas coisas que estã o de acordo com o amor” (SC
11.11). O mistério das relaçõ es contemplativas com Deus está nesta
afirmaçã o, se a compreendermos à luz da vasta capacidade de amar da
alma. Para qualquer alma apaixonada por Deus, a ferida do amor é
incurável, a menos que consiga chegar a um amor pelo Amado que
preencha as regiõ es internas da alma.

Mas isso alguma vez acontece? Nã o é que a alma deseje


principalmente uma experiência de amor. Pelo contrá rio, aprende,
através das suas profundezas, a sofrer com uma fome de amor pelo
Amado. Esta exigência contemplativa de amar pelo amor em si, e nã o
por uma experiência subjetiva de amor, torna-se o impulso interior
irresistível na contemplaçã o e na santidade. A alma com fome intensa é
levada pela graça continuamente a querer amar mais. E, no entanto,
pode encontrar-se por vezes quase como que paralisado, numa
incapacidade de amar mais, preso naquilo que pode considerar o seu
pró prio desejo escasso. Sã o Joã o da Cruz escreve que, apesar do
sofrimento, esta pode ser uma conjuntura fortuita no caminho
contemplativo. Quando a alma reconhece a sua pró pria falta de amor,
ela chega a um insight agraciado. Agora está pronto para um amor
maior, que muitas vezes vem depois da dolorosa sensaçã o da
insuficiência do seu amor. A consciência da falta de amor é um
reconhecimento que pode inflamar a necessidade urgente de uma cura
pelo pró prio amor. Como descreve Sã o Joã o da Cruz esta compreensã o
da alma: “Quem sente em si a doença do amor, a falta de amor, mostra
que tem algum amor, porque tem consciência do que lhe falta através
do que tem. Quem nã o sente esta doença mostra que ou nã o tem amor
ou é perfeito no amor” (SC 11.14).

A exigência de buscar uma jornada sem fim no amor é, em certo


sentido, o có digo de conduta contemplativo. Ouvimos anteriormente,
no ú ltimo capítulo, que “Deus nã o faz uso de outra coisa senã o o amor”
(SC 28.1). É o tipo de afirmaçã o que pode provocar um auto-exame
regular, especialmente em vidas demasiado ocupadas para dedicar
mais tempo a Deus em oraçã o. E o que poderia implicar a ideia de Deus
usar “nada além do amor”? É precisamente um amor caro que Deus
utiliza nas vidas contemplativas em favor de outras almas. O conforto
de um amor que aquece o nosso coraçã o em paz nã o é o presente que
deveríamos esperar do Senhor Jesus Cristo crucificado. Ele pode
preferir, em vez disso, que a nossa vida se una à sua pró pria Paixã o,
para produzir maior fecundidade para outras almas. O grande esforço
do amor contemplativo é perseverar num amor que nos aproxima, ao
longo do tempo, da crucificaçã o de Jesus Cristo. “Tende fortaleza no
coraçã o contra tudo o que te move para aquilo que nã o é Deus, e sê
amigo da Paixão de Cristo ” (SLL 95; grifo nosso). Nenhuma
recomendaçã o de rotina é apresentada com tais palavras. A
perseverança necessá ria para um grande amor a Jesus Cristo
crucificado nã o tem limites. A medida da realizaçã o de tal amor só pode
ser encontrada na Paixã o de Jesus no Calvá rio. Ao mesmo tempo,
devemos manter os olhos no prêmio do amor, que é entregar-nos ao
Amado pregado numa cruz em Jerusalém. Esse desejo motivador – de
mostrar a ele o quanto ele é amado – dura uma vida inteira que sempre
se estende antes de nossas vidas. A centralidade do amor na busca
contemplativa está certamente exposta nestas palavras:

Pois o salá rio do amor nada mais é, e a alma nã o pode desejar outra
coisa senã o mais amor, até que o amor perfeito seja alcançado. O amor é
pago apenas com o pró prio amor. . . . A alma que ama nã o espera o fim
do seu trabalho, mas o fim do seu trabalho. O seu trabalho é amar, e
deste trabalho, que é o amor, ela espera o fim, que é a perfeiçã o e a
plenitude dele. Até que este trabalho seja realizado. . . ela considera
seus dias e meses vazios e considera suas noites longas e cansativas.
(SC 9.7)

Pode ser uma promessa que desperta em nó s um desejo profundo de


que um dia possamos conquistar um grande amor, como afirmam as
primeiras palavras desta passagem. O sofrimento do amor que desce à s
profundezas ilimitadas da alma tem a sua recompensa, se o amor for
tenaz no seu anseio e empenhado na açã o. “Pois Deus retribui muito
bem as provaçõ es interiores e exteriores com bens divinos para a alma
e o corpo, por isso nã o há provaçã o que nã o tenha uma recompensa
correspondente e considerável” (LF 2.31). A ú nica condiçã o necessá ria
para avançar no amor, especialmente na provaçã o, é dar tudo a Deus: “É
propriedade do amor perfeito nã o querer tomar nada para si, nem
atribuir nada a si mesmo, mas tudo ao amado” (SC 32.2). Ouvimos
nestas palavras um segredo sagrado sobre o caminho do amor.
Continuamente, deve haver uma doaçã o de si mesmo, uma perda e
imolaçã o de si mesmo, uma oferta final de si mesmo, porque passamos
a saber que pessoalmente, para nó s, o Amado é tudo o que importa. A
determinaçã o de nos doarmos desta maneira exige o heroísmo de uma
vida santa. Mas quem poderia dizer que esta santidade nã o se destina
à s nossas pró prias vidas? É mais do que uma beleza admirável que está
presente nas vidas santas. Eles sã o os grandes vencedores
precisamente por perderem tudo por causa de um amor além de
qualquer outro amor possível nesta vida. Eles perfuraram a sabedoria
suprema de se oferecerem ao amor por Deus e se apoderaram do
verdadeiro propó sito da vida. Há uma variaçã o ilimitada de
circunstâ ncias possíveis nestas vidas santas, mas mesmo assim elas
apresentam uma certa qualidade comum. É invocado nesta passagem
perto do final do Cântico Espiritual :

O poder e a tenacidade do amor sã o grandes, pois o amor captura e liga


o pró prio Deus. Feliz é a alma amorosa, pois possui Deus como seu
prisioneiro, e ele se entrega a todos os seus desejos. Deus é tal que
aqueles que agem com amor e amizade para com ele o farã o fazer tudo
o que desejam, mas se agirem de outra forma nã o há como falar com ele
ou poder com ele, mesmo que cheguem a extremos. No entanto, pelo
amor, eles o amarram com um fio de cabelo. (SC 32.1)

Se colocarmos tais observaçõ es no contexto da oraçã o, obteremos


uma visã o mais profunda da contemplaçã o. O conhecimento
contemplativo de Deus que chega através do amor à oraçã o é diferente
de qualquer outra noçã o de conhecimento. Como examinamos
anteriormente, é um conhecimento experiencial por amor. Este amor,
podemos afirmar agora, depende da tenacidade do espírito interior
para mergulhar nas profundezas invisíveis do amor. Uma qualidade
constante de amor alimenta um amor cada vez maior. Mas lembremo-
nos de outra verdade ensinada por Sã o Joã o da Cruz: O sofrimento do
amor envolve necessariamente a nossa mente. Na verdade, nossa mente
em oraçã o pode precisar ser especialmente tenaz. A contemplaçã o nã o
implica uma expansã o expansiva do pensamento ou da visã o até
impressionantes profundezas da consciência. Pelo contrá rio, traz a
experiência de uma pobreza naquilo que conhecemos de Deus, até pelo
amor. É aconselhável fazer uma pausa ocasional na oraçã o para
recordar quã o vasta é a capacidade da nossa alma para Deus. Quando a
nossa mente é silenciada pela cegueira, esta consciência pode ser
necessá ria. Há sempre uma profundidade de açã o oculta na oraçã o que
pode passar despercebida. Grandes graças podem passar
despercebidas na pró pria oraçã o, fechada à vista dos nossos olhos
cegos. Na expressã o de Sã o Joã o da Cruz, entramos com a mente, pela
contemplaçã o, no “mato” da sabedoria de Deus. Como imagem neste
contexto, um “mato” sugere a obscuridade densa e impenetrável na
contemplaçã o que só podemos atravessar com pequenos passos.
Caminhamos, na melhor das hipó teses, obscuramente apaixonados,
numa cegueira guiada pelo amor, atraídos por um grande sentido de
mistério para a Pessoa do Amado que procuramos. Desconhecida pela
alma, sem meios de medida exata, a tenacidade do amor leva-nos
interiormente, ao longo do tempo, à sabedoria de conhecer o amor
incompreensível de Deus. Ele é conhecido pelo amor precisamente
como Aquele que é desconhecido no seu amor infinito. Nunca
compreendemos completamente, mas esta sabedoria do amor é
concedida à queles que perseveram no amor e sofrem por amor. A
verdade da sabedoria adquirida no amor nã o pode ser transmitida
adequadamente, porque nunca é concluída: “Este emaranhado de
sabedoria e conhecimento de Deus é tã o profundo e imenso que nã o
importa o quanto a alma saiba, ela sempre pode ir mais longe; é vasto e
suas riquezas incompreensíveis” (SC 36.10).

Este encontro contemplativo com a incompreensibilidade de Deus


como amor infinito – captado na imagem do “mato da sabedoria de
Deus” – é uma experiência de sofrimento que nã o desaparece porque a
alma simplesmente o aceita ou se habitua a ele. A exigência do amor
para enfrentar as profundezas misteriosas de Deus exige uma
determinaçã o de alma que nunca relaxa em algum momento. O nosso
encontro com Deus, no qual nã o o compreendemos, mesmo quando o
desejamos no amor, é um caminho através de um denso emaranhado de
mistério. A recusa de parar na busca de Deus com amor, apesar da sua
incompreensibilidade, pressupõ e uma grande perseverança. É este
amor tenaz que talvez atraia ainda mais Deus para uma alma. Se o
conhecimento pelo amor na contemplaçã o supera todos os outros
conhecimentos que podemos ter de Deus, fá -lo precisamente ao levar-
nos cada vez mais, mesmo por formas que nos sã o desconhecidas, à s
profundezas insondáveis da alma. Deus se esconde nas cavernas mais
profundas, por assim dizer. Ali, no exercício do nosso amor por ele, o
conhecimento de Deus dado à nossa alma nã o é o conhecimento da
perspicá cia e da investigaçã o académica, mas a sensaçã o recorrente de
uma presença misteriosa no amor, escondida na nossa pró pria entrega
de coraçã o a Deus. É um conhecimento de sua presença obtido apenas
através da disposiçã o de sofrer por amor a ela. A alma deve estar
pronta para mergulhar humildemente no emaranhado da sua pró pria
cegueira e falta de compreensã o sem limites, apesar do sofrimento que
isso possa acarretar. O sofrimento por amor é, como tal, o limiar para
um grande amor a Deus. Um grande desejo de Deus deve animar este
movimento da alma no amor.

No entanto, a alma quer entrar neste emaranhado e


incompreensibilidade de julgamentos e caminhos porque ela está
morrendo de desejo de penetrá -los profundamente. Conhecê-los é um
deleite inestimável que supera todo entendimento. . . . Portanto, a alma
deseja ardentemente ser envolvida por esses julgamentos e conhecê-los
mais profundamente. E, em troca, será para ela um conforto e uma
felicidade singulares passar por todas as afliçõ es e provaçõ es deste
mundo e por tudo, por mais difícil e doloroso que possa ser um meio
para esse conhecimento, até mesmo a angú stia e a agonia da morte,
tudo para se ver mais dentro do seu Deus. (SC 36.11)

Esta passagem afirma mais do que simplesmente o valor do


sofrimento. O anseio interior da alma é sempre em prol de uma maior
entrada no conhecimento de Deus como o Amado. “Morrer de desejo”
invoca uma saudade vibrante na alma, mas também implica uma
espécie de martírio para a alma apaixonada. O martírio do amor ocorre
quando o amor da alma penetra nas profundezas sem limites, onde o
amor nunca é totalmente saciado. No entanto, nada impedirá a alma de
voltar sempre para procurar ali o mistério impenetrável de Deus. Se a
escuridã o aumenta, ainda assim o amor se intensifica à medida que a
alma sofre esta escuridã o em limites mais profundos dentro das
cavernas da alma. O conhecimento que ela abrange é um conhecimento
de que Deus supera em amor tudo o que é conhecido. É um
conhecimento pelo amor que só pode reivindicar a certeza cega de um
encontro misterioso com Deus. No entanto, a certa altura, uma alma
percebe que isso é suficiente, mesmo que implique sofrimento. Se ama
com pureza, esse amor é tudo o que é necessá rio em qualquer dia de
oraçã o. Uma grande sabedoria é recebida em tal compreensã o. O
sofrimento interior mais puro é inseparável da experiência mais pura
do amor profundo. É surpreendente encontrar novamente palavras de
Sã o Joã o da Cruz que podem ser relidas inú meras vezes e, no entanto,
parecem nunca atingir o seu impacto final:

O sofrimento é o meio de ela penetrar ainda mais profundamente no


emaranhado da deliciosa sabedoria de Deus. O sofrimento mais puro
traz consigo o conhecimento mais puro e íntimo e, conseqü entemente,
a alegria mais pura e elevada, porque é um conhecimento que vem de
dentro. . . . Oh! Se pudéssemos compreender agora plenamente como
uma alma nã o pode alcançar o emaranhado e a sabedoria das riquezas
de Deus, que sã o de muitos tipos, sem entrar no emaranhado de muitos
tipos de sofrimento, encontrando nisto o seu deleite e consolo; e como
uma alma com um desejo autêntico de sabedoria divina quer primeiro o
sofrimento para entrar nesta sabedoria pelo matagal da cruz! (SC 36.12,
13)

A ligaçã o entre o sofrimento por amor e a entrada em um


conhecimento contemplativo mais profundo é profundamente expressa
nesta passagem. O “sofrimento mais puro” torna-se a porta aberta para
o “conhecimento mais puro e íntimo” do amor. Num certo sentido,
estamos no centro do ensinamento contemplativo de Sã o Joã o da Cruz.
O que significará , entã o, penetrar mais profundamente por meio “de
muitos tipos de sofrimento. . . no emaranhado da deliciosa sabedoria de
Deus”? A esperança de toda alma contemplativa é que Deus toque a
alma cada vez mais com sua presença amorosa . Mas é evidente que isto
nã o significa o que poderíamos pensar antes de compreender melhor o
caminho da contemplaçã o. Agora estamos mais familiarizados com o
que esperar. A escuridã o é certamente um aspecto inevitável; na
verdade, o fato de o intelecto passar por uma experiência purificadora
da escuridã o espiritual é um princípio contemplativo bá sico: “Quando a
luz divina da contemplaçã o atinge uma alma ainda nã o totalmente
iluminada, ela causa escuridã o espiritual. . . também priva a alma. . . e
escurece” (DN 2.5.3). A escuridã o espiritual na oraçã o é uma forma de
sofrimento, mas há outra escuridã o que pode afligir a alma,
perturbando as suas profundezas de maneiras profundas, estendendo-
se para além da pró pria oraçã o. Esta é a experiência chocante, devido à
luz avassaladora e à pureza de Deus que enche a alma, de ser tomado
pelo pensamento de uma possível rejeiçã o por parte de Deus. A
convicçã o de nã o ser apenas indigno de Deus, mas de se considerar
rejeitado por Ele por causa da impureza incorrigível da alma é uma
afliçã o terrível para uma alma que ama a Deus com intensidade. O
sofrimento pode ser agudo, penetrando nas profundezas da alma. Mas
se a alma nã o se detém no caminho do amor, perseverando na fé,
também este sofrimento é fecundo. As seguintes palavras de The Dark
Night sã o uma introduçã o ao intenso sofrimento que uma vida
avançada de oraçã o pode trazer. Mas também fornecem uma visã o
sobre por que isso ocorre com uma alma tã o comprometida e tenaz no
seu amor por Deus. Deus deseja queimar a impureza de uma alma,
ainda oprimida nas regiõ es mais profundas da alma pelo amor pró prio.

A alma, por causa de sua impureza, sofre imensamente no momento em


que esta luz divina a atinge verdadeiramente. Quando esta luz pura
atinge para expulsar toda impureza, as pessoas se sentem tã o impuras e
miseráveis que parece que Deus está contra elas e elas estã o contra
Deus. . . . Contemplando claramente a sua impureza por meio desta luz
pura, embora nas trevas, a alma compreende claramente que nã o é
digna nem de Deus nem de qualquer criatura. E o que mais o entristece
é pensar que nunca será digno e que nã o há mais bênçã os para isso.
Essa luz divina e sombria provoca profunda imersã o da mente no
conhecimento e no sentimento das pró prias misérias e males; traz
alívio a todas essas misérias para que a alma veja claramente que por si
mesma nunca possuirá mais nada. (DN 2.5.5)

Este sofrimento gravíssimo no caminho contemplativo para Deus foi


chamado na teologia espiritual posterior de “noite escura da alma”. Nã o
é a frase exata que Sã o Joã o da Cruz usa. Ele fala antes da noite do
espírito. Mas o conceito e a descriçã o sã o dele. Pode ser ú til expor
algumas observaçõ es sobre esta grave provaçã o espiritual, porque em
certas vidas pode haver um sabor menor de sofrimento que pode se
assemelhar a esta representaçã o. É importante saber o impacto desta
noçã o se pretendemos levar a oraçã o a sério durante toda a vida. A
passagem abaixo do livro 2 de A Noite Escura transmite a violenta
sensaçã o de convulsã o que uma alma pode experimentar à medida que
cresce em um amor mais intenso por Deus. A afliçã o, como mostra a
citaçã o anterior, se deve ao toque puro da presença divina sobre a
impureza da alma humana. Quando Deus perfura a alma mais
plenamente com a sua presença – uma alma que já lhe abriu cavernas
profundas dentro de si – uma profunda purgaçã o está fadada a ocorrer.
Normalmente, podemos esperar uma bênçã o e conforto na ideia de
sermos “tocados” pela graça por Deus. Mas a verdadeira realidade da
contemplaçã o, e muito mais neste caso de grave purgaçã o espiritual, é
um encontro da escassa capacidade da alma de amar com a vasta
magnitude do amor divino. A escuridã o que envolve a alma em todos os
está gios da contemplaçã o se deve em parte à incompreensã o que ela
experimenta de Deus. Esta escuridã o, por sua vez, pode à s vezes deixar
a alma sozinha dentro de si, na sua pró pria miséria. Agora, nesta
discussã o sobre a noite escura da alma, vemos uma manifestaçã o muito
mais intensa deste padrã o. O que se segue é apenas uma descriçã o
inicial da noite escura da alma, pois Sã o Joã o da Cruz retrata o encontro
de dois extremos no divino e no humano:
O extremo divino é a contemplaçã o purgativa, e o extremo humano é a
alma, a receptora desta contemplaçã o. Visto que o extremo divino ataca
para renovar a alma e divinizá -la (despojando-a das afeiçõ es e
propriedades habituais do velho eu ao qual a alma está fortemente
unida, apegada e conformada), ele desembaraça e dissolve a substâ ncia
espiritual — absorvendo-o numa escuridã o profunda — que a alma, ao
ver as suas misérias, sente que está se dissolvendo e sendo desfeita por
uma cruel morte espiritual. . . . É apropriado que a alma esteja neste
sepulcro de morte sombria para que alcance a ressurreiçã o espiritual
que espera. (DN 2.6.1)

O grande sofrimento da alma que acabamos de descrever pode


cristalizar-se, como escreve Sã o Joã o da Cruz, numa “convicçã o de que
Deus o rejeitou e, com aversã o, lançou-o nas trevas” (DN 2.6.2). Estas
sã o palavras notavelmente fortes se pensarmos que tal pessoa é muito
santa neste momento da vida. Perguntamo-nos também se tal condiçã o
de alma pode estar relacionada com acontecimentos pessoais numa
vida santa. Nos seus desígnios providenciais, Deus opera através de
efeitos convergentes para realizar os seus propó sitos para a vida
interior das almas. Uma vida santa, por exemplo, pode ter
contratempos e erros nos assuntos externos que convencem
fortemente a alma de que as suas falhas desapontaram Deus de uma
maneira terrível. Poderíamos considerar, por exemplo, a dor de uma
fundadora de uma ordem religiosa que sofre agudamente pela perda de
Irmã s que deixam a congregaçã o por razõ es que poderiam ter sido
evitadas com maior cuidado ou por intervençõ es oportunas. A santa
fundadora pode sofrer muito com a dú vida de que sua pró pria
negligência ou falha pessoal causou esses afastamentos e, portanto,
feriu o Coraçã o de Deus. Estas experiências pessoais podem acentuar o
que entã o começa a invadir a alma como parte de um refinamento
ardente do seu amor. A alma nesta noite escura, como a descreve Sã o
Joã o da Cruz, fica totalmente convencida, apesar do seu grande amor, de
que Deus a rejeitou por causa da sua indignidade ou fracasso. O
sentimento de abandono de Deus pode tornar-se tã o inegável, gravado
tã o profundamente no coraçã o, que nada que uma alma contemple em
pensamento parece capaz de reverter esta convicçã o. A sua ausência
diá ria na escuridã o da oraçã o parece apenas confirmar esta verdade.
Lembremo-nos que estas sã o almas com o fundo da alma já aberto no
amor e por isso vulneráveis à s feridas do amor de uma forma muito
mais intensa.

Poderíamos fazer uma pausa para um comentá rio que possa lançar
luz sobre o significado espiritual do que está acontecendo em tais
descriçõ es. Para as almas sérias com Deus, o mistério do sofrimento
pelo Amado pode ultrapassar um limiar do amor em determinado
momento da vida. O limiar do significado é perceber que a habitaçã o do
Senhor na alma é uma presença interior do Cristo da Paixã o. Jesus
crucificado vive a sua Paixã o de modo misterioso, numa alma de grande
amor e, de modo particular, através do dom da contemplaçã o. A alma
nã o se une simplesmente a Deus no vasto anseio que sente por Nosso
Senhor dentro de si. Ele passa a conhecer pessoalmente dentro de si
uma contínua imitaçã o e replicaçã o da Paixã o de Jesus. Naturalmente,
isto é uma mera amostra do sofrimento de Cristo, mas mesmo assim é
uma amostra real. As palavras de Jesus para que permaneçamos nele, e
ele permaneça em nó s (Jo 15,4-5), agora assumem uma qualidade e um
significado diferentes. Já nã o é simplesmente a sua presença que atrai a
atraçã o da alma nestas palavras. Agora compreende que estas palavras
significam permanecer na sua Paixã o, para que a sua Paixã o habite na
alma. Esta realizaçã o secreta, totalmente pessoal e direta, desperta na
alma uma capacidade diferente de amar. A comunicaçã o do amor de
Deus a uma alma exprime-se agora no sabor da sua Paixã o
misteriosamente unida à pró pria vida e existência da alma. Isto pode
acontecer na oraçã o, mas também fora da oraçã o. A Paixã o de Cristo já
nã o é um acontecimento do passado, ponderado com amor e
distanciado dele. A alma experimenta agora como uma verdade
misteriosa que o pró prio Cristo revive elementos da sua Paixã o na vida
da alma. Este limiar contemplativo, uma vez ultrapassado, coloca toda a
purificaçã o e luta anteriores sob uma nova luz. A presença permanente
do pró prio Cristo na sua Paixã o permeia agora o caminho espiritual. E o
amor pode, como resultado, saltar para grandes profundezas dentro
das cavernas ilimitadas da alma.

A característica mais ameaçadora descrita na noite escura da alma é


certamente a sensaçã o de rejeiçã o por parte de Deus. A convicçã o de
estar perdido, permanentemente perdido e abandonado, nã o é
adequadamente descrita se for considerada apenas como uma
purificaçã o grave que despoja a alma até ao seu nada. A verdade é
antes, como acabamos de sugerir, que a experiência reproduz de
maneira misteriosa a pró pria Paixã o de Jesus; neste caso, a experiência
do abandono de Jesus na cruz. A noite escura da alma só é
compreendida adequadamente em uniã o com o sentimento de
abandono de Jesus no Calvá rio. Sã o Joã o da Cruz escreve que esta
experiência para uma alma, reconhecidamente incomum e rara,
informa, no entanto, o caminho genuíno para a uniã o com Deus. Nã o há
progresso espiritual mais profundo, exceto que a alma se mova em uma
espécie de alinhamento sagrado com Jesus Cristo como “o caminho, e a
verdade, e a vida” (Jo 14:6). Ele nã o é simplesmente Mestre e Senhor
nestas palavras, mas o Amado que oferece a sua Paixã o à quelas almas
que lhe sã o amadas como o seu caminho, a sua verdade e a sua vida. Um
mistério de uniã o com Ele acontece, por assim dizer, sob o signo da
Paixã o. No livro 2 de A Subida ao Monte Carmelo , na seçã o sobre a fé,
Sã o Joã o da Cruz escreve assim sobre o aniquilamento sofrido por
Cristo como modelo e exemplo para a alma na sua pró pria oferta. A
verdade espiritual de uma uniã o com nosso Senhor nã o consiste em
experiências e eventos separados, paralelos e distintos, isto é, um
sofrimento sofrido pela alma separada de Cristo. Pelo contrá rio, ocorre
uma uniã o de Cristo com a alma no seu sofrimento, à medida que Nosso
Senhor revive a sua Paixã o naquela alma. A segunda metade da
passagem seguinte, que citamos anteriormente, vale a pena ser lida
novamente neste contexto. A noite escura da alma, quando a alma é
reduzida a nada, é uma uniã o com a experiência do pró prio Cristo na
cruz do Calvá rio.

No momento da sua morte foi certamente aniquilado na sua alma, sem


qualquer consolaçã o ou alívio, pois o Pai o havia deixado assim na mais
profunda aridez da parte inferior. Ele foi assim compelido a gritar: Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste ? [Mt. 27:46]. Este foi o
abandono mais extremo, sensivelmente, que ele sofreu em sua vida. E
com isso ele realizou o trabalho mais maravilhoso de toda a sua vida. . . .
Isto é, ele trouxe a reconciliaçã o e a uniã o da raça humana com Deus
através da graça. O Senhor conseguiu isso, como digo, no momento em
que foi mais aniquilado em todas as coisas. . . . David diz dele: Ad
nihilum redactus sum et nescivi [Fui reduzido a nada e nada sabia] [Sl.
73:22], para que aqueles que sã o verdadeiramente espirituais possam
compreender o mistério da porta e do caminho (que é Cristo) que
conduz à uniã o com Deus, e que possam perceber que sua uniã o com
Deus e a grandeza do trabalho que realizam irã o ser medido pela
aniquilaçã o de si mesmos para Deus nas partes sensoriais e espirituais
de suas almas. Quando forem reduzidos a nada, o mais alto grau de
humildade, a uniã o espiritual entre suas almas e Deus será um fato
consumado. (AMC 2.7.11)

Sã o Joã o da Cruz estende a sua discussã o e observaçõ es em A Noite


Escura para dizer que muitas vezes acontece que nesta noite do espírito
“tais pessoas também se sentem abandonadas e desprezadas pelas
criaturas, particularmente pelos seus amigos” (DN 2.6.3). Mais uma vez,
ouvimos o eco agudo da pró pria Paixã o de Jesus nesta severa prova da
alma. Deus tem a sua maneira de trazer todo o peso de um
despojamento total da alma para a oraçã o e para as circunstâ ncias
externas de uma vida. Mas o verdadeiro significado destas
circunstâ ncias ú nicas e da desolaçã o interior é um grande mistério
pessoal para a alma. É um verdadeiro sabor de uniã o de alma com
Nosso Senhor no Calvá rio. A pobreza da alma neste momento nã o é
simplesmente o desapego abnegado da satisfaçã o humana de tempos
anteriores, mas algo muito mais profundo e opressivo. A pobreza torna-
se uma dor no â mago da alma, que ela sofre sozinha. E, no entanto, ao
mesmo tempo, uma qualidade diferente de humildade está sendo
forjada nas profundezas da alma. O nada da alma nã o é de forma
alguma uma noçã o abstrata de piedade. É uma verdadeira miséria
experiencial. A alma está reduzida a nada e, no entanto, está bem viva
no olhar de amor de Deus. O que é especialmente importante insistir é
que a alma nã o duvide do seu amor por Deus. Pelo contrá rio, conhece
intensamente esse amor e é ativo em manifestá -lo em açã o. O que sofre
é o sentimento interior de perder o amor de Deus:

Embora as pessoas que sofrem esta purgaçã o saibam que amam a Deus
e que dariam mil vidas por ele (de fato, pois as almas que passam por
essas provaçõ es amariam a Deus com muita sinceridade), elas nã o
encontram alívio. Em vez disso, esse conhecimento causa-lhes uma
afliçã o mais profunda. Pois amando a Deus tã o intensamente que nada
mais lhes preocupa, e conscientes da sua pró pria miséria, sã o incapazes
de acreditar que Deus os ama. Eles acreditam que nã o têm nem nunca
terã o dentro de si nada que mereça o amor de Deus, mas sim todas as
razõ es para serem odiados nã o apenas por Deus, mas por todas as
criaturas para sempre. Eles lamentam ver dentro de si motivos para
merecer a rejeiçã o por parte daquele a quem tanto amam e por quem
anseiam. (DN 2.7.7)

O incrível insight ao ler Sã o Joã o da Cruz é perceber que com essas


palavras ele descreve uma alma que está em uma condiçã o muito
afortunada. A pessoa nã o percebe isso, obviamente, mas a realidade é
que tal alma está muito pró xima de Deus no seu amor. Uma alma
contemplativa pode estar, de facto, muito perto de Deus, apesar do seu
estado interior conturbado, quando parece incapaz de elevar a sua
mente a Deus ou de lhe demonstrar qualquer afeiçã o. Numa imagem
impressionante, Sã o Joã o da Cruz escreve que em tal momento, “parece
como aconteceu a Jeremias que Deus colocou uma nuvem diante da
alma para que a sua oraçã o nã o passasse através [Lam. 3:44]” (DN
2.8.1). A imagem de uma barreira ao contacto com o pró prio Deus é
uma noçã o difícil. Mesmo nos está gios iniciais da contemplaçã o, o
encontro com a escuridã o é mais do que simplesmente uma prova a ser
suportada com paciência. Pelo contrá rio, a nossa incapacidade de
compreender Deus ou de compreender, por vezes, o que acontece na
oraçã o exige uma aceitaçã o por parte da alma da sua incapacidade
essencial diante de Deus. A pobreza vivida nas trevas pode sempre
tornar-se caminho para grandes graças invisíveis. Mas para que as
graças contemplativas penetrem mais profundamente, a alma deve
deixar-se abater pela prostraçã o do espírito. Deve ceder na oraçã o à sua
pró pria incapacidade diante de Deus, a um desamparo completamente
aberto diante de Deus, exercendo a sua certeza de fé nas trevas. A
fecundidade deste sofrimento manifesta-se no devido tempo. Sã o Joã o
da Cruz faz um breve comentá rio sobre a oraçã o de uma alma nesta
condiçã o de alma. A declaraçã o recomenda em particular a oraçã o
humilde de uma alma prostrada: “Na verdade, este nã o é o momento de
falar com Deus, mas o momento de colocar a boca no pó , como diz
Jeremias, para que talvez possa surgir alguma esperança real [ Lam.
3:29], e o tempo de sofrer pacientemente esta purgaçã o. É Deus quem
está trabalhando agora na alma, e por esta razã o a alma nada pode
fazer. Conseqü entemente, essas pessoas nã o podem orar em voz alta,
nem estar atentas aos assuntos espirituais, nem ainda menos atender
aos assuntos e negó cios temporais” (DN 2.8.1).

Palavras angustiantes, certamente, transmitindo a aguda consciência


da incapacidade de uma alma de ajudar a si mesma; no entanto, este
caminho de prostraçã o na oraçã o – “colocar a boca no pó” – é o abraço
de uma humildade mais profunda diante de Deus. A provaçã o das
trevas exige sempre uma rendiçã o humilde. A alma está sendo
purificada na luz ardente da pureza de Deus. E a experiência dessa
queimaçã o é necessariamente dura e ameaçadora para qualquer alma.
Um princípio contemplativo bá sico está em açã o: “Quanto mais claras e
evidentes as coisas sobrenaturais sã o em si mesmas, mais escuras elas
sã o para o nosso intelecto” (DN 2.8.2). A afliçã o interior da noite escura
da alma nã o é primordialmente uma noçã o penitencial neste
tratamento. A afliçã o é o caminho de entrada na luz consumidora do
amor divino lançada nas profundezas ilimitadas da alma. A pureza de
coraçã o, no entendimento de Sã o Joã o da Cruz, vai muito além de uma
fuga casta da inclinaçã o pecaminosa, até uma imolaçã o absoluta da
alma diante do esplendor de Deus. “A limpeza do coraçã o”, escreve Sã o
Joã o da Cruz, “é nada menos que o amor e a graça de Deus”. Essa
afirmaçã o pode parecer comum até ouvirmos o que se segue: “Os puros
de coraçã o sã o chamados abençoados por nosso Salvador [Mt. 5:8], e
chamá -los de bem-aventurados equivale a dizer que foram tomados
com amor, pois a bem-aventurança nã o deriva de outra coisa senã o do
amor” (DN 2.12.1). Estas palavras estã o situadas no meio de um
tratamento sobre a natureza de uma dura provaçã o na vida interior. A
pureza buscada por Deus pode nã o ter como fim queimar a alma com
uma necessidade ilimitada de Deus. No entanto, isso certamente nã o é
lamentado pela alma que ama. Deus nã o deixa uma alma nas cinzas,
mas antes fortalece-a com a presença do seu amor divino. Uma
declaraçã o final sobre a veemência do amor nesta seçã o sobre
provaçõ es espirituais sérias oferece uma ú ltima palavra provocativa: “A
força e a veemência do amor têm esta característica: tudo lhe parece
possível e acredita que todos estã o ocupados como sã o; nã o acredita
que alguém possa ser empregado de outra forma ou procurar alguém
que nã o seja aquele a quem procura e ama; acredita que nã o há mais
nada para desejar ou ocupar e que todos estã o empenhados em buscá -
lo e amá -lo” (DN 2.13.7).

As passagens citadas neste capítulo estã o longe de comentar as lutas


iniciais de uma alma que começa a receber a graça da contemplaçã o. No
entanto, é importante ponderar as descriçõ es para qualquer pessoa que
deseje avançar no amor a Deus. O dom da contemplaçã o só progride à
medida que se aprofunda o amor por um Amado que é nosso Senhor
Jesus crucificado. Só depois de muito tempo, talvez, esta verdade venha
totalmente à luz. Mas desde o início do caminho de contemplaçã o
somos convidados a uma consciência diferente do encontro com Deus.
Este caminho nã o é uma subida sublime a alturas de vistas
deslumbrantes. A contemplaçã o encontra a sua morada mais no olhar
de uma alma amorosa sobre o rosto desfigurado de Jesus no Calvá rio,
que pergunta se podemos manter-nos mais tempo diante dos seus
olhos. A ideia de sofrimento tem uma qualidade repugnante até
percebermos que se tornou a fissura aberta dentro da nossa alma para
a presença real do amor divino na sua verdade mais profunda. A
experiência do sofrimento torna-se precisamente a realizaçã o de um
grande amor nas regiõ es mais profundas da alma. E o amor é sempre a
ú ltima palavra na busca por uma oraçã o mais profunda.

Poderíamos também observar que a possibilidade, nã o apenas de


sofrer por amor, mas de morrer por amor a Deus, é a grande
perspectiva que, em ú ltima aná lise, Sã o Joã o da Cruz nos oferece. Os
sofrimentos do caminho contemplativo têm esta finalidade secreta:
morrer por amor ao Amado. Uma necessidade impaciente, constrangida
e apaixonada de Deus consome uma alma que sofre por amor a Deus. É
a maneira como o grã o de trigo cai na terra e morre, para que dê fruto.
Podemos questionar como intensidades deste tipo podem estar
presentes nas vidas. Na verdade, eles podem estar ocultos em grande
parte. Quã o verdade é que as nossas vidas, no contexto das
circunstâ ncias diá rias que enfrentamos, nunca podem ser equiparadas
aos fogos ocultos do desejo que podem inflamar-nos de maneiras além
da medida. Certamente, o amor oculto das almas por Deus é
insuspeitado à vista dos outros ao seu redor. Amar a Deus com
impaciência, até mesmo com desespero, é a liçã o urgente que Sã o Joã o
da Cruz ensina continuamente. Talvez uma ú ltima declaraçã o deste
santo o diga melhor no final deste capítulo: “Assim, Deus faz a alma
morrer para tudo o que ele nã o é, para que, quando for despojada e
esfolada de sua pele velha, ele possa vesti-la novamente. ”(DN 2.13.11).
Por amor a uma alma, Jesus reveste-a com a sua pró pria Paixã o. A alma
que ama deve reconhecer isto como um imenso favor concedido em
amor. Em suma, é a constâ ncia de uma imolaçã o oferecida no amor, se
estivermos dispostos a aceitá -la, que conduz ao grande encontro
contemplativo com Deus – ou seja, à realizaçã o de Nosso Senhor
permitindo que a sua Paixã o volte a acontecer dentro de nó s. Este fruto
misterioso é consequência apenas de um intenso amor contemplativo.
É evidente que uma grande coragem no amor é uma necessidade
primá ria na busca contemplativa de Deus.
16
Conselhos de despedida: Perda de si mesmo pelo amor
maior

O conselho que Sã o Joã o da Cruz deu em cartas e em algumas breves


instruçõ es à s freiras e frades carmelitas é informativo e, nã o
surpreendentemente, muitas vezes rigoroso nas suas exigências. Nã o
precisamos ser religiosos ou sacerdotes para aproveitar estas
recomendaçõ es para viver uma vida santa. As exigências sã o as do
Evangelho, se uma alma deseja perder-se, doar-se, por amor de Deus.
Os mesmos princípios de santidade, embora nem sempre nos exatos
detalhes e aplicaçõ es, serã o pertinentes em toda vida que aspira a uma
uniã o mais estreita com nosso Senhor. A orientaçã o pessoal que Sã o
Joã o da Cruz deu à s almas pode servir como ú ltimo capítulo, revelando
outros traços do seu coraçã o e da sua alma e facilitando a descida do
Monte Carmelo que subimos vigorosamente nos capítulos anteriores. É
melhor começar com alguns dos comentá rios contidos nas cartas.
Infelizmente, existem apenas trinta e três cartas que sobreviveram à
sua morte. Muitos foram destruídos, em parte por causa dos medos
gerados pelas suspeitas e perseguiçõ es dirigidas a ele no ú ltimo
período de sua vida. Mais tarde na vida, ele sofreu muito dentro de sua
pró pria ordem com mal-entendidos, mas também com a turbulência
eclesial neste período do início da Reforma Protestante, quando a
chamada oraçã o mental levantava questõ es e à s vezes era
menosprezada e desconfiada. Pela qualidade das cartas existentes, só
podemos lamentar a triste perda de muitas outras cartas que ele
escreveu.

Sã o Joã o da Cruz, como observamos, era mestre na observaçã o


contundente. Escreve em 1582 a uma prioresa carmelita de Caravaca,
Madre Ana de San Alberto, “para nã o andar com medos que intimidam
a alma” (L3). Nã o sabemos o que causou esta ansiedade, mas sabemos
que nã o é incomum, nas nossas vidas humanas, sermos ocasionalmente
levados ao medo e ao desamparo. Sã o Joã o da Cruz insiste que ela nã o
deve recuar, intimidar-se, mas exercer confiança ao apelar a Deus. E
depois uma grande observaçã o nesta carta: “Devolva a Deus o que ele
lhe deu e lhe dá a cada dia. Parece que você quer medir Deus pela
medida da sua pró pria capacidade, mas nã o será assim” (L3). As
palavras identificam um problema frequentemente visto nas almas. O
foco em nó s mesmos nos leva a pensar que Deus só pode fazer até certo
ponto, dadas as nossas limitaçõ es e incapacidades. A ideia pode parecer
humilde ao presumir que nã o merecemos favores maiores. Mas este
pode ser um pretexto enganoso para nã o procurarmos uma maior
generosidade para com Deus. Nã o há limites, nem limites, para o que
Deus pode dar à s nossas almas. Nã o devemos limitá -lo pela medida da
nossa pró pria capacidade, mas simplesmente esperar muito dele e
depois retribuir tudo o que é dado. Sã o Joã o da Cruz conclui esta carta
com palavras certamente edificantes a esta prioresa carmelita:
“Prepara-te, porque Deus deseja conceder-te um grande favor” (L3).
Qualquer pessoa que leia Sã o Joã o da Cruz regularmente pode
considerar também a necessidade de se preparar para favores
inesperados de Deus.

À comunidade carmelita de Beas, por quem tinha um amor


duradouro e a quem visitava frequentemente como guia espiritual e
confessor, escreve em 1586, exortando estas freiras a mortificarem a
tendência humana de procurarem as suas pró prias satisfaçõ es nas suas
buscas espirituais. Seu objetivo deve ser tornar-se “desonerado” para
receber de Deus o que ele deseja dar, o que muitas vezes nã o é o que é
esperado ou previsível, mas, antes, algo caro que levará a alma mais
profundamente no caminho da entrega. para Deus. Ele lembra que a
busca pela paz interior e pelo contentamento, tã o comum nas pessoas
espiritualizadas, pode ser um impedimento ao vazio que Deus quer ver
dentro de uma alma para que possa preencher esse vazio. A frase-chave
é intransigente: “Quem busca satisfaçã o em algo nã o se mantém mais
vazio para que Deus o preencha com seu deleite inefável” (L7). O final
desta carta é um encorajamento a manterem os olhos fixos em Nosso
Senhor e a seguirem “os seus passos de mortificaçã o, com total
paciência, em total silêncio, e com todo desejo de sofrer, tornando-se
carrascos das próprias satisfações , mortificando-se ”. , se porventura
resta algo que deve morrer e algo ainda impede a ressurreiçã o interior
do Espírito que habita em suas almas” (L7; grifo nosso).

Quase no mesmo dia, um ano depois, há uma espécie de carta de


acompanhamento para a mesma comunidade carmelita de Beas. A
mortificaçã o que ele exortou na primeira carta com aquela frase
incomum – tornar-se “carrascos de suas pró prias satisfaçõ es” – é agora
dirigida à prá tica do silêncio. Talvez tivesse recebido alguma
reclamaçã o sobre o assunto da Madre Prioresa, Ana de Jesú s, que
alguns anos antes, como mencionado, lhe solicitara o comentá rio do
Cântico Espiritual . Embora o seu conselho nã o possa ser tã o
surpreendente para os carmelitas, pode valer a pena ponderar em
nossas pró prias vidas: “Falar distrai, enquanto o silêncio e o trabalho
recolhem e fortalecem o espírito” (L8). O silêncio que ele recomenda é
um silêncio interior que atrairá mais plenamente a alma para a
presença de Nosso Senhor. Ele sugere que Jesus adora aproximar-se da
alma que ama o silêncio. Este silêncio nã o é apenas uma espécie de
prá tica externa; é uma forma de desapego interior e de perda de si
mesmo - o silêncio do esquecimento de si mesmo, o silêncio da
austeridade mental, afastando-se da preocupaçã o desnecessá ria com
assuntos externos que perturbam os pensamentos e nã o podem, em
qualquer caso, ser resolvidos no momento. A necessidade urgente de
silêncio é um ensinamento forte nesta carta. O silêncio é em si um
caminho sagrado para Deus porque nos deixa a só s com Deus, como
afirmam estes comentá rios nesta carta:

Nunca, seja na adversidade ou na prosperidade, deixe de aquietar o seu


coraçã o com o mais profundo amor, para sofrer o que quer que surja. . . .
Tenham isto em mente, filhas: a alma que é rá pida em falar e conversar
é lenta em se voltar para Deus. Pois quando está voltado para Deus, é
entã o forte e interiormente atraído para o silêncio e para a fuga de toda
conversa. Pois Deus deseja que uma alma se alegre com ele mais do que
com qualquer outra pessoa, por mais avançada e prestativa que a
pessoa possa ser. . . . A nossa maior necessidade é calar-nos diante deste
grande Deus com o apetite e com a língua, pois a única linguagem que
ele ouve é a linguagem silenciosa do amor . (L8; grifo nosso)

Em 1588, Sã o Joã o da Cruz escreveu algumas palavras memoráveis a


outra carmelita, uma ex-prioresa, Madre Leonor Bautista, residente na
comunidade de Beas. Nesta carta ele volta à expressã o de receber um
“grande favor” de Deus, que no caso dela é o favor de poder desfrutar
de Deus na solidã o, apesar da dor por alguma provaçã o sem nome.
Como ex-prioresa, esta tristeza pode dever-se ao seu afastamento de
um lugar que amava e ao novo ajustamento que agora enfrenta numa
fase posterior da vida. Seu conselho é novamente inflexível; neste caso,
trata-se da necessidade de aceitar uma prova vinda dos outros: “Por
amor a ele, nã o se importe que façam com você o que quiserem, pois
você não pertence a si mesmo, mas a Deus ” (L9; grifo nosso) . A ú ltima
frase capta uma exigência essencial de santidade. Pertencemos a Deus,
e ele deve ser livre para fazer o que quiser, mesmo na medida do
sofrimento custoso que entra em nossas vidas. Tudo deve ser entregue
a Deus, tudo deve ser um seguimento oferecido a Ele e à s almas. A
caridade pode ser exercida sempre, mesmo sem retribuiçã o de amor.
Na mesma linha de pensamento, numa magnífica declaraçã o, escrita
cinco meses antes de sua morte, quando sofria uma grave prova de
calú nia e perseguiçã o dentro de sua pró pria congregaçã o, escreveu em
uma carta a outra prioresa carmelita de Segó via, Madre María de la
Encarnació n: “Nã o pense outra coisa senã o que Deus ordena tudo, e
onde nã o há amor, coloque amor, e você extrairá amor” (L26).

Numa outra carta de 1589 a uma prioresa carmelita, Madre Leonor


de San Gabriel, que também tinha sido transferida e pode também ter
sofrido por causa disso, ele escreve dois anos antes de sua morte sobre
a importâ ncia de um esvaziamento radical, uma doaçã o tudo a Deus, se
quisermos permitir que Deus encha a nossa alma consigo mesmo. As
palavras recordam a grande importâ ncia da primeira operaçã o do
desejo na vontade que tratamos anteriormente. Deus é muito ativo em
tocar com graça os desejos da vontade. “Quanto mais ele quer dar, mais
nos faz desejar – até a ponto de nos deixar vazios para nos encher de
bens” (L15). Ele comenta com Madre Leonor que a sua mudança de
local está certamente no plano de Deus, que deveria ser visto como um
presente despojá -la em prol de uma pura auto-oferta a Deus. A
solicitude pessoal de Deus pela alma que o ama intensamente muitas
vezes leva essa alma a uma profundidade de solidã o em que a ú nica
companhia da alma é o pró prio Deus. Ele insiste, como sempre, na
necessidade do auto-esvaziamento:

Como as imensas bênçã os de Deus só podem entrar e caber num


coraçã o vazio e solitá rio, o Senhor quer que você fique sozinho. Pois ele
te ama de verdade com o desejo de ser ele mesmo toda sua companhia.
. . . Esforce-se cuidadosamente para se contentar apenas com sua
companhia, para que possa descobrir nela toda felicidade. Mesmo que a
alma esteja no céu, ela nã o será feliz se nã o conformar a sua vontade a
isso. E seremos infelizes com Deus, mesmo que ele esteja sempre
presente conosco, se o nosso coraçã o nã o estiver sozinho, mas apegado
a outra coisa. (L15)

Talvez, ao ler tais comentá rios nestas cartas, possamos considerar


que elas se destinam apenas a almas intensamente religiosas
encerradas em conventos de clausura. Sã o Joã o da Cruz nã o escreveu
apenas aos Carmelitas; sobreviveram duas cartas a uma leiga de
Granada, Doñ a Juana de Pedraza, nas quais sã o feitos comentá rios
memoráveis. A primeira carta, de 1589, é uma resposta a algumas
“dores, afliçõ es e solidã o” que esta mulher está sofrendo. Sã o Joã o da
Cruz escreve inicialmente que estas experiências de dor “sã o todas
comparáveis a batidas e batidas na porta da sua alma para que ela
possa amar mais” (L11). Depois, continuando, volta ao conselho
familiar de um necessá rio esvaziamento e desapego: “No que diz
respeito à alma, o mais seguro é nã o se apoiar em nada nem desejar
nada. . . . Nã o deixe a alma se apegar a nada. . . Vejo isso comigo mesmo:
quanto mais as coisas sã o minhas, mais coloco meu coraçã o e minha
alma e me importo com elas” (L11). Na perspectiva de Sã o Joã o da Cruz,
mesmo quando escreve a uma leiga que vive no mundo, nã o é
surpreendente que Deus permita que o sofrimento venha das coisas
que sã o mais caras à nossa vida. Fazendo referência à famosa histó ria
do Gênesis, de Abraã o prestes a oferecer seu filho Isaque como
holocausto em sacrifício (Gn 22,1-19), ele escreve a ela: “Mas porque
nos convém nã o passar sem a cruz, assim como nosso Amado nã o
passou sem ele, mesmo até a morte do amor, Deus ordena nossos
sofrimentos para que possamos amar o que mais desejamos, fazer
maiores sacrifícios e valer mais. Mas tudo é breve, pois só dura até que
a faca seja levantada; e entã o Isaque permanece vivo com a promessa
de uma descendência multiplicada” (L11).

Nove meses depois, em outubro de 1589, ele escreve uma carta


espiritual muito comovente a esta mesma mulher, que neste momento
passa por uma prova de escuridã o interior e lhe escreveu com algum
desamparo a respeito de sua provaçã o. A carta de Sã o Joã o da Cruz nã o
tenta confortá -la no seu estado de angú stia. Em vez disso, ele oferece
uma forte contradiçã o com o que considera ser a má interpretaçã o da
escuridã o interior que ela parece estar experimentando. O pensamento
de que Deus desapareceu e abandonou a sua alma, como ela
aparentemente escreveu, é recebido por um comentá rio fortemente
expresso sobre o verdadeiro favor que Deus está estendendo à sua
alma. A sua alma está sendo convidada a uma maior confiança em Deus,
que está realmente pró ximo dela, neste momento de escuridã o interior.
A escuridã o é simplesmente o reino experiencial de uma provaçã o
interior. A verdadeira realidade por trá s de qualquer experiência de
escuridã o é a presença pró xima de Deus, forjando uma uniã o mais
profunda com a alma. Uma citaçã o mais longa desta bela carta merece
nossa atençã o. Quem durante a vida nã o pode lucrar em algum
momento com essas palavras?

Já que você anda nessas trevas e vazios de pobreza espiritual, você


pensa que tudo e todos estã o falhando com você. Nã o é de admirar que
nisso também pareça que Deus está falhando com você. Mas nada está
falhando com você, nem você tem que discutir nada, nem há nada para
discutir. . . . Aqueles que nã o desejam nada além de Deus nã o andam nas
trevas, por mais pobres e sombrios que sejam aos seus pró prios olhos.
E aqueles que nã o andam presunçosamente, ou de acordo com as suas
pró prias satisfaçõ es, sejam elas de Deus ou das criaturas, nem fazem a
sua pró pria vontade em nada, nã o têm nada em que tropeçar ou
discutir com alguém. Você está fazendo um bom progresso. Nã o se
preocupe, mas fique feliz! Quem é você para se orientar? Isso nã o
acabaria bem! Você nunca esteve melhor do que agora porque nunca foi
tã o humilde ou tã o submisso, ou considerou a si mesmo e todas as
coisas do mundo tã o pequenas. . . . Que necessidade há para estar certo
senã o caminhar ao longo do caminho plano da lei de Deus e da Igreja, e
viver apenas na fé obscura e verdadeira e na esperança certa e na
caridade completa, esperando todas as nossas bênçã os no céu, vivendo
aqui embaixo como peregrinos, pobres, exilados, ó rfã os, sedentos, sem
caminho e sem nada, esperando tudo no céu? Alegre-se e confie em
Deus, pois ele lhe deu sinais de que você pode muito bem fazê-lo e, de
fato, deve fazê-lo. (L19)

Passamos agora para outra forma de escrita. Sã o Joã o da Cruz


escreveu também algumas pá ginas de instruçõ es, intituladas As
Precauções , à s freiras carmelitas de Beas, que, como mencionado, era
um convento muito querido por ele. Esta nã o é uma carta em si , mas
uma breve instruçã o contendo comentá rios prá ticos sobre como viver
uma vida religiosa santa com dedicaçã o. É interessante saber que ele
escreveu essas instruçõ es em meados dos trinta anos, apenas alguns
meses depois de escapar da prisã o com os Frades Calced em Toledo.
Talvez estejamos ouvindo liçõ es de vida interior que ele mesmo
aprendeu nesses difíceis nove meses. Pode ser lido com grande
benefício para todos os que desejam apreciar as sérias exigências da
santidade, e nã o apenas para aqueles que podem estar num claustro,
num mosteiro ou numa comunidade religiosa séria. Apresenta-nos,
também, à s lutas humanas que transitam para o mundo privado da vida
religiosa dedicada, fora dos olhos do pú blico. A obra está dividida em
três seçõ es que abordam os impedimentos do mundo, do diabo e da
carne, com três cuidados identificados contra cada um desses
“inimigos” da alma.

Ele aborda o que considera uma tarefa imediata para quem ingressou
na vida religiosa. A necessidade, escreve Sã o Joã o da Cruz, de evitar o
mundanismo exige que a alma “tenha um amor igual e um
esquecimento igual por todas as pessoas” (P 5). Ele exorta fortemente
estas irmã s a se afastarem do apego aos parentes, nã o porque as
famílias nã o sejam amadas, mas porque a fraqueza natural do coraçã o
pode facilmente preocupar-se com relaçõ es de sangue. Ele exorta estas
religiosas a “considerarem todos como estranhos” (P 6), mesmo dentro
do convento, o que é uma forma de evitar serem apanhadas na procura
de amizades que aliviem uma fome humana natural, mas que apenas
impeçam um amor puro e dedicaçã o para Deus. Ele escreve de uma
maneira que pode parecer um tanto severa aos nossos ouvidos: “Nã o
ame mais uma pessoa do que outra, pois você errará ; quem ama mais a
Deus é o mais digno de amor e você nã o sabe quem é” (P 6). A
necessidade sentida por algumas pessoas de relaçõ es estreitas no
contexto de um convento de clausura abre as almas ao grave erro de
pensar que amam mais se cultivam um amor especial por uma ou outra
pessoa. Ele insiste que, em ú ltima aná lise, devemos viver somente para
Deus em tal ambiente e amar os outros com serenidade e serenidade
por causa da caridade. Nas relaçõ es comunitá rias, o objectivo deve ser
um elevado padrã o de caridade, e nã o um amor sentimental pelos
outros que seja instável e desigual. A segunda precauçã o contra o
mundanismo é “abominar todo tipo de posses e nã o se preocupar com
esses bens” (P 7). Mais uma vez, no contexto de um convento, a
preocupaçã o com a alimentaçã o, o vestuá rio ou os bens pessoais é
contrá ria à pobreza que deve estar presente em tais vidas. A terceira
precauçã o contra o mundanismo é mais subtil, mas ainda assim forte na
sua advertência. Ele exorta as freiras a permanecerem desligadas da
turbulência e da perturbaçã o que podem ocorrer mesmo num convento
entre pessoas destinadas à santidade. Ele escreve sobre essa precauçã o:

Guarde-se com muito cuidado para nã o pensar no que acontece na


comunidade e, mais ainda, para nã o falar sobre isso, sobre qualquer
coisa do passado ou do presente relativa a um determinado religioso. . .
. Nunca se escandalize ou surpreenda com qualquer coisa que você veja
ou aprenda, esforçando-se para preservar sua alma no esquecimento de
tudo isso. . . . Mesmo que você vivesse entre os demô nios, você nã o
deveria voltar seus pensamentos para os assuntos deles, mas esquecer
completamente essas coisas e se esforçar para manter sua alma
ocupada pura e inteiramente em Deus, e nã o deixar que o pensamento
desta ou daquela coisa o atrapalhe. de fazer isso. E para conseguir isso,
esteja convencido de que nos mosteiros e nas comunidades nunca
faltam tropeços, pois nunca faltam demô nios que procuram derrubar os
santos; Deus permite isso para provar e testar a religiã o. (P 8, 9)

Nas suas instruçõ es sobre os ataques diretos do diabo, ele começa


alertando as almas para as artimanhas e artimanhas do maligno nos
conventos. O diabo sabe que esse tipo de alma normalmente nã o
escolherá o mal; no entanto, eles sã o capazes de serem enganados pela
aparência do bem. A sua recomendaçã o é, acima de tudo, procurar
aconselhamento adequado sempre que tiver dú vidas e ser “suspeito do
que parece bom, especialmente quando nã o for obrigado pela
obediência” (P 10). Sua primeira precauçã o contra o diabo é nã o
assumir nenhum trabalho além das obrigaçõ es que fazem parte da vida
sem o comando da obediência. O valor da obediência para um religioso
é talvez pouco apreciado pelo mundo exterior, nos seus dias e nos
nossos. O desaparecimento desta virtude da vida religiosa levou à
diminuiçã o da qualidade evidente em muitas congregaçõ es que nã o
muito tempo atrá s, algumas décadas antes, estavam prosperando. Para
Sã o Joã o da Cruz, a perda de si de forma santa, tã o integrante do
Evangelho e da santidade, realiza-se sobretudo através da obediência.
“As açõ es dos religiosos nã o sã o pró prias, mas pertencem à obediência,
e se você as retirar da obediência, terá que considerá -las perdidas” (P
11). A segunda precauçã o nesta seçã o é certamente surpreendente para
a maioria dos leigos: “Sempre olhe para o superior como se fosse Deus,
nã o importa quem ele seja, pois ele ocupa o lugar de Deus” (P 12). A
necessidade, portanto, de evitar olhar para as falhas de um superior,
para o seu cará cter e para as suas contradiçõ es como pessoa, é
igualmente essencial. Caso contrá rio, surge o perigo de que a
obediência seja motivada “pelos traços visíveis do superior, e nã o pelo
Deus invisível a quem você serve através dele” (P 12).

Podemos aprender muito aqui, talvez para nossa surpresa. Uma


grande austeridade mental é necessá ria na vida religiosa genuína, mas
isto é igualmente verdadeiro em todas as vidas. No convento, escreve
Sã o Joã o da Cruz, há uma necessidade contínua de mortificar o apelo
sugestivo de interpretaçõ es que sã o percepçõ es abertamente humanas.
O esforço deve ser permanecer sacrificialmente fixado na realidade da
vontade de Deus expressa através das preferências e ordens de um
superior. Toda esta difícil submissã o é para dar a Deus uma oferta mais
generosa de si mesmo. Sã o Joã o da Cruz, sem dú vida a partir da sua
pró pria experiência com freiras, sublinha que muitas permitem que os
aspectos desagradáveis de um superior minem a sua obediência. Ou,
inversamente, permitem que a personalidade atraente de um superior
atraente prejudique uma motivaçã o pura de obediência. Neste caso,
eles fazem tudo para agradar simplesmente a outra pessoa humana em
vez de Deus. Como ele escreve: “Se você nã o se esforçar, com respeito
aos seus sentimentos pessoais, para nã o se preocupar se este ou outro é
superior, você nã o será de forma alguma uma pessoa espiritual, nem
cumprirá bem seus votos” (P 12). A terceira precauçã o contra o diabo é
a necessidade de praticar uma humildade séria. Um religioso pode fazer
isso especialmente “desejando que [os outros] tenham precedência
sobre você em todas as coisas” (P 13). Isto é testado em particular
quando aqueles que nã o sã o admirados ou atraentes recebem
preferência. A exigência absoluta de perder-se por Deus é a tendência
subjacente em todas essas observaçõ es.

A primeira das três precauçõ es contra o impedimento da carne


começa com uma passagem verdadeiramente memorável. Aos nossos
ouvidos pode parecer que a entrada no recinto da vida religiosa deve
ser uma façanha masoquista de resistência. Mas, claro, este nã o é o
caso. Sã o Joã o da Cruz entende que a perda de si é fundamental para o
avanço de uma vida com Deus; assim, ele escreve como se nã o devesse
haver nada além de acordo com ele. Nã o deveria ser surpresa, entã o, se
Deus permite que a alma seja despojada rapidamente. A primeira
precauçã o sobre o impedimento da carne merece uma citaçã o extensa;
é certo que ele talvez esteja exagerando na conduta da vida no
convento, mas, mesmo assim, seu ponto de vista é claramente afirmado.
O desejo de se entregar totalmente a Deus certamente será testado:

Entenda que você veio ao mosteiro para que todos possam moldá -lo e
experimentá -lo. . . . Você deveria pensar que todos na comunidade sã o
artesã os – como de fato sã o – presentes ali para provar você; que alguns
irã o moldá -lo com palavras, outros com açõ es e outros com
pensamentos contra você; e que em tudo isso você deve ser submisso,
assim como a está tua, ao artesã o que a molda, ao artista que a pinta e
ao dourador que a embeleza. Se você nã o observar esta precauçã o, nã o
saberá vencer a sensualidade e os sentimentos, nem se dará bem na
comunidade com os religiosos, nem alcançará a paz santa, nem se
libertará de muitos tropeços e males. (P 15)

A segunda precauçã o contra a carne é nã o abandonar as obras e os


exercícios porque neles há ausência de satisfaçã o. Da mesma forma, nã o
se deve fazer obras simplesmente porque elas proporcionam prazer e
satisfaçã o para si mesmo. A necessidade de permanecer constante e
perseverante em todos os tipos de trabalho espiritual exige disposiçã o
para continuar em açõ es que nã o trazem nenhum benefício aparente
para si mesmo ou qualquer satisfaçã o. A terceira precauçã o é
semelhante e familiar para nó s neste momento. A alma nã o deve buscar
a satisfaçã o de sentimentos agradáveis na oraçã o e nos exercícios
espirituais, nem recorrer a eles por esse motivo. Caso contrá rio, este
desejo de nossa pró pria satisfaçã o se tornará , com o tempo, o motivo da
oraçã o. Em breve, quando esta satisfaçã o nã o estiver disponível, é
provável que reduzamos os exercícios espirituais ou os tratemos
simplesmente como uma obrigaçã o pesada na vida. A recomendaçã o de
Sã o Joã o da Cruz é o conselho habitual centrado na fecundidade a longo
prazo: “procurai o á rduo e o desagradável e abraçai-o. Através desta
prá tica a sensualidade é controlada; sem essa prá tica você nunca
perderá o amor pró prio nem ganhará o amor de Deus” (P 17).

Há uma outra obra semelhante de Sã o Joã o da Cruz, escrita


novamente quase como uma carta, e neste caso a um Irmã o
desconhecido da sua pró pria ordem. Provavelmente foi escrito quando
ele servia como vigá rio provincial em algum momento entre 1585 e
1587 e é intitulado “Conselhos a um religioso sobre como alcançar a
perfeiçã o”. Nesta curta obra, ele oferece quatro conselhos sobre
resignaçã o, mortificaçã o, prá tica da virtude e solidã o. O conselho de
demissã o recomenda que o Irmã o Carmelita “viva no mosteiro como se
nã o houvesse mais ninguém” (CR 2). Isto parece surpreendente à
primeira vista, ao contrá rio da necessidade de manter um espírito
comunitá rio de caridade. Mas, aparentemente, Sã o Joã o da Cruz estava
consciente do perigo de ser arrastado para as curiosidades e interesses
demasiado humanos pelos assuntos internos num ambiente moná stico.
A necessidade é ser desapegado e mentalmente austero, nã o se
envolvendo em assuntos que nã o digam respeito à pró pria vida de
dedicaçã o somente a Deus. “E assim nunca se deve, por palavra ou por
pensamento, intrometer-se nas coisas que acontecem na comunidade,
nem nos indivíduos dela, desejando nã o notar suas boas ou má s
qualidades ou sua conduta” (CR 2). O conselho é guardar e proteger a
tranquilidade e a quietude da alma em prol da maior oferta a Deus. O
segundo conselho diz respeito à mortificaçã o, e aqui temos novamente
uma citaçã o memorável que pode parecer excessiva no seu tom, a
menos que percebamos quã o realista é a compreensã o de Sã o Joã o da
Cruz. Ouvimos um eco, mas em tons mais nítidos, da primeira
precauçã o contra a carne recentemente citada. Novamente, pode
parecer exagerado. Por outro lado, as pessoas nã o deixam para trá s a
sua fraqueza porque fecham atrá s de si uma pesada porta de madeira
no dia em que entram num convento ou mosteiro. O que devemos notar
é que se trata essencialmente de um conselho sobre a mortificaçã o
interior. Para Sã o Joã o da Cruz, o principal esforço neste sentido é
moderar as paixõ es interiores que podem ser provocadas nas relaçõ es
humanas. E entã o ele escreve:

Você deveria gravar esta verdade em seu coraçã o. E é que você nã o veio
ao mosteiro por nenhum outro motivo que nã o seja para ser trabalhado
e provado na virtude; você é como a pedra que deve ser cinzelada e
moldada antes de ser colocada no edifício. Portanto, você deve
compreender que aqueles que estã o no mosteiro sã o artesã os ali
colocados por Deus para mortificá -los, trabalhando e cinzelando vocês.
Alguns esculpirã o palavras, dizendo o que você preferiria nã o ouvir;
outros, por atos, fazendo contra você o que você preferiria nã o
suportar; outros por seu temperamento, sendo em sua pessoa e em
suas açõ es um incô modo e um aborrecimento para você; e outros pelos
seus pensamentos, sem estimar nem sentir amor por você. Você deve
sofrer essas mortificaçõ es e aborrecimentos com paciência interior,
calando-se por amor a Deus e entendendo que nã o entrou na vida
religiosa por outro motivo senã o para que outros o trabalhassem dessa
maneira, e assim você se tornou digno do céu. (CR 3)

É interessante observar que Sã o Joã o da Cruz sublinha a


inevitabilidade das provaçõ es na vida religiosa, precisamente porque
Deus quer usá -las para a santificaçã o. O encontro com as provaçõ es
permite que as almas se provem diante de Deus. Se um motivo mais
egoísta levou uma pessoa à vida religiosa, com o tempo ele se torna
transparente por uma repugnâ ncia pelo caminho mais difícil. Pode ser
que antes de entrar na vida religiosa, as pessoas nã o prevejam que um
sofrimento mais profundo seja uma realidade naquela vida. Estã o
preparados para as austeridades e privaçõ es físicas, mas nã o esperam
outras formas de provaçã o difícil no contexto comunitá rio pró ximo da
vida humana. O desejo por uma espécie de paz perpétua evapora-se
rapidamente como uma ilusã o de sentimentalismo. A paz interior na
vida religiosa, para Sã o Joã o da Cruz, depende de um grande desapego
de si mesmo. “Como muitos religiosos nã o entendem que entraram na
vida religiosa para carregar a cruz de Cristo, nã o se dã o bem com os
outros. Na hora do acerto de contas eles se sentirã o muito confusos e
frustrados” (CR 4). Em suma, eles esperam muito dos outros. Podemos
assumir que a disposiçã o oposta também é verdadeira. Aqueles que
conseguem carregar a cruz com fortaleza, paciência e espírito de oferta
conseguem viver muito melhor com os aspectos humanos de tal vida na
fecundidade caritativa. Poderíamos parar para pensar que os mesmos
princípios podem informar uma abordagem espiritual saudável à
vocaçã o do casamento e à s suas pró prias provaçõ es. Os princípios
fundamentais da santidade em cada vocaçã o estã o enraizados na
exigência evangélica de nos perdermos por amor de Nosso Senhor. O
terceiro conselho diz respeito à prá tica da virtude num ambiente de
vida religiosa. Aqui Sã o Joã o da Cruz exorta especialmente à constâ ncia
nas observâ ncias religiosas e na obediência, vivendo apenas para Deus.
“Você nunca deve fixar os olhos na satisfaçã o ou insatisfaçã o do
trabalho que está realizando como motivo para fazê-lo ou deixar de
fazê-lo, mas sim em fazê-lo para Deus” (CR 5). Agradar a Deus em tudo
o que fazemos, vivendo diariamente uma oferta sacrificial pelas almas,
é o ú nico motivo digno para as açõ es. A seguinte recomendaçã o é um
eco claro de suas palavras em A Ascensão do Monte Carmelo :

Você deve ter sempre o cuidado de estar sempre inclinado mais para o
difícil do que para o fá cil, para o á spero mais do que para o suave, para
o duro e desagradável em um trabalho mais do que para seus aspectos
deliciosos e agradáveis; e nã o escolha o que é menos uma cruz, pois a
cruz é um fardo leve [Mt. 11h30]. Quanto mais pesado é um fardo, mais
leve ele se torna quando carregado por Cristo. Você também deve
tentar, ocupando sempre o lugar mais baixo, para que nas coisas que
trazem conforto aos seus irmã os na religiã o eles sejam preferidos a
você. (CR 6)

O ú ltimo conselho sobre a solidã o nã o se dirige simplesmente à


solidã o física num mosteiro. O desejo de Sã o Joã o da Cruz é ver a alma
desapegada e vazia, nã o mais dependente da segurança ou de qualquer
outro interesse do mundo exterior. “Você deveria considerar tudo no
mundo como terminado. . . . Nã o dê atençã o à s coisas do mundo, pois
Deus já se retirou e libertou você delas. . . . É muito justo que você nã o
queira ver ninguém e que ninguém te veja” (CR 7, 8). Naturalmente, os
deveres podem exigir relaçõ es com o mundo, mas o homem religioso
deve permanecer concentrado numa tarefa, nã o procurando entreter-se
através do contacto com o mundo exterior. Deve-se cultivar uma solidã o
interior que permaneça separada da indulgência em interesses
desnecessá rios de curiosidade. Sã o Joã o da Cruz exorta o Irmã o
Carmelita a cuidar do seu pensamento para que a fixaçã o solitá ria em
Deus seja ininterrupta tanto quanto possível. “Isso é muito necessá rio
para a solidã o interior, que exige que a alma descarte qualquer
pensamento que nã o seja direcionado a Deus” (CR 9). Este ú ltimo
conselho é certamente demais para a maioria de nó s em nossas
circunstâ ncias de distraçã o e ocupaçõ es ocupadas. Mas nã o sejamos tã o
desdenhosos. O esquecimento das preocupaçõ es mundanas tem a
recompensa de trazer misteriosamente uma alma para a proximidade
de Deus no meio das ocupaçõ es comuns. Podemos supor que Sã o Joã o
da Cruz falava por experiência pró pria, como evidentemente o fez em
cada pá gina das suas obras.

Um ú ltimo comentá rio poderia ser feito sobre a importâ ncia do


aspecto ascético das mortificaçõ es interiores que encontramos nestas
cartas e instruçõ es. O conselho que temos ouvido nã o deixa de ter uma
ligaçã o direta com a possibilidade de graças contemplativas. A recusa
de ser indulgente consigo mesmo, de se retirar para dentro de si
mesmo ou de se voltar para dentro de suas necessidades está no cerne
de todas essas recomendaçõ es. Esta recusa da auto-indulgência em
todas as formas pode tornar-se uma atitude cultivada da alma, com um
efeito profundo ao longo do tempo. É essencialmente uma escolha de
entregar-se a Deus. Cumprida esta condiçã o, a graça da contemplaçã o
encontra um caminho aberto para as cavernas da alma. A contemplaçã o
é um dom de Deus pelo qual Ele preenche um vazio que só ele aceita.
Este princípio é igualmente vá lido em todos os conselhos e
recomendaçõ es que acabamos de ouvir. Nestas cartas e instruçõ es,
somos lembrados, como vimos muitas vezes, que a abnegaçã o se
estende muito além dos sacrifícios físicos; da mesma forma, seus frutos
na vida vã o muito além da mera disciplina corporal. A alma que se
submete ao esvaziamento abre-se ao Coraçã o de Deus. E certamente
boa parte do auto-esvaziamento numa vida ocorre no contexto das
relaçõ es humanas. Estas cartas e instruçõ es oferecem um comentá rio
implícito à s palavras de nosso Senhor no Evangelho de Sã o Joã o: “Todo
ramo que dá fruto, ele poda, para que dê ainda mais fruto” (Jo 15,2). A
poda da alma para uma uniã o maior com Deus acontece principalmente
nas coisas que nã o escolhemos para nó s mesmos. Os testes imprevistos
que surgem na vida comunitá ria religiosa ou, na verdade, na
convivência com o cô njuge no casamento sã o inevitáveis. A mã o
providencial de Deus está certamente presente nesta poda. Se
desejamos que as graças contemplativas prosperem, devemos estar
vigilantes para perceber a mã o amorosa de Deus em todas as formas de
poda da nossa alma e submeter-nos aos seus gestos com muito amor.
Epílogo

Agora ocupo minha alma


e toda minha energia em seu serviço;
Nã o cuido mais do rebanho,
nem tenho qualquer outro trabalho,
agora que cada ato meu é amor. (SC estrofe 28)

Quando Sã o Joã o da Cruz conheceu Santa Teresa de Á vila em setembro


de 1567, poucas semanas depois de sua ordenaçã o sacerdotal, ele
pensava fortemente em uma transferência da Ordem Carmelita para
uma vida de mais completa solidã o e silêncio entre os cartuxos. Ele
mencionou essa possibilidade para ela na conversa inicial. Santa Teresa
compartilhou com ele naquele dia o seu plano para uma reforma
contemplativa também do ramo masculino das Carmelitas. Ela propô s
que ele tentasse primeiro. Afinal, comentou ela, ele havia ingressado na
Ordem da Santíssima Virgem, usando o escapulá rio dela como sinal de
seu vínculo especial com ela. Seria realmente bom, perguntou ela,
“abandonar” a Ordem de Nossa Senhora? Aparentemente, isso foi
persuasã o suficiente. Sã o Joã o da Cruz inverteu o rumo e concordou,
com a condiçã o, como ele disse, de nã o ter que esperar muito. E, de fato,
nã o precisou esperar muito para descobrir quã o solícita Maria é pelo
dom da contemplaçã o à s almas.

O manto oculto de Maria cobre toda a busca contemplativa. Podemos


afirmar que tudo o que Sã o Joã o da Cruz escreveu está encerrado nela
como figura exemplar da contemplaçã o. E, no entanto, esta é em grande
parte uma verdade oculta em seus tratados; ela nã o ocupa um foco de
destaque de forma explícita. No entanto, ela é a principal guia e
professora de sua alma e de toda alma contemplativa. A sua presença
serena é tã o real nestes escritos como a sua companhia maternal com o
seu Filho na sua vida. E o que ela nos ensina, se desejamos esta graça da
contemplaçã o? Talvez devêssemos ouvir à s vezes a sua voz em algumas
palavras de Sã o Joã o da Cruz, como estas que agora nos sã o familiares:
“Quando chegar a noite, você será examinado no amor. Aprenda a amar
como Deus deseja ser amado e abandone seus pró prios modos de agir”
(SLL 60). Se desejamos amar como Deus quer ser amado, uma condiçã o
essencial para o amor deve ser enfrentada. Só podemos amar muito se
buscarmos relaçõ es profundas com Deus em oraçã o. A contemplaçã o é
essencialmente uma marca de amor, fruto de uma alma que busca a
Deus com paixã o. E a paixã o por Deus traduz-se sempre numa
necessidade faminta de oraçã o. Certamente, em todos os momentos da
Igreja, Maria nã o se cansa de ver novas crianças chegando famintas à
sua mesa para que possa instruí-las numa oraçã o de maior
profundidade e de amor mais intenso.

A sua primeira liçã o neste caminho é simplesmente escolher uma


dedicaçã o à oraçã o comprometida. Cada época da histó ria enfrenta o
que poderia ser chamado de dilema da oraçã o, que é essencialmente a
falta de uma atraçã o mais profunda pela oraçã o séria. Naturalmente, há
sempre almas que, em algum momento da vida, encontram um grande
amor pela oraçã o, mas à s vezes o nú mero é muito menor e escasso. Esta
questã o de um compromisso mais profundo com a oraçã o tem graves
repercussõ es. Se uma crise de fé ocorre na Igreja, como há algumas
décadas é notável no nosso tempo, é provável que tenha causas
complexas. Mas, no fundo, toda crise de fé é uma crise de oraçã o e de
espiritualidade. Esta dificuldade nã o é irrespondível; a perda de um
desejo maior por Deus nã o precisa continuar indefinidamente. Maria
pode insistir, no entanto, que é necessá ria uma escolha, a mesma
escolha de oraçã o que uma vez pode ter sido abandonada em vidas. A
descoberta da beleza da oraçã o diante de um taberná culo numa capela
ou igreja silenciosa nã o transforma apenas rapidamente a vida de um
indivíduo. Se for contagiosa entre as almas, a atraçã o pela oraçã o
silenciosa é capaz de desencadear uma revoluçã o silenciosa de
recuperaçã o na fé e na fidelidade cató lica. Já o fez em outros tempos e
pode fazê-lo novamente. Na verdade, é uma aposta acertada que
nenhuma crise de fé supera o poder das almas contemplativas no
exercício da oraçã o oculta. Tem sido repetido frequentemente o truísmo
de que a histó ria da Igreja é, em parte, a histó ria oculta das vidas
contemplativas que sustentam a Igreja. Talvez agora simplesmente
precisemos de mais destas almas, e nã o apenas em claustros ou
mosteiros. Certamente, um retorno à importâ ncia da oraçã o no
sacerdó cio é uma necessidade crucial, tanto no respeito pela
sacralidade da Missa como pela oraçã o privada diante de um sacrá rio. A
conversã o dos sacerdotes a um maior amor pela oraçã o, se fosse
generalizada, teria um impacto indescritível nas almas. A seguinte
citaçã o de Sã o Joã o da Cruz, que viveu também numa época de crise
turbulenta na fé durante o período da Reforma Protestante, pareceria,
entã o, especialmente pertinente para ser colocada num epílogo.
Podemos supor que ele diria exatamente as mesmas palavras hoje:

Afinal, esse amor é o fim para o qual fomos criados. Que aqueles, entã o,
que sã o singularmente ativos, que pensam que podem ganhar o mundo
com suas pregaçõ es e obras exteriores, observem aqui que
beneficiariam muito mais a Igreja e agradariam a Deus, sem falar no
bom exemplo que dariam, se fossem passar pelo menos metade deste
tempo com Deus em oraçã o, mesmo que nã o tenham alcançado uma
oraçã o tã o sublime como esta. Eles certamente realizariam mais, e com
menos trabalho, com um trabalho do que de outra forma fariam com
mil. Pois através de sua oraçã o eles mereceriam esse resultado e seriam
fortalecidos espiritualmente. Sem oraçã o, eles martelavam muito, mas
realizavam pouco, e à s vezes nada, e à s vezes até causavam danos. Deus
nã o permita que o sal comece a perder seu sabor [Mt. 5:13]. Por mais
que pareçam realizar externamente, em substâ ncia nã o realizarã o
nada; nã o há dú vida de que boas obras só podem ser realizadas pelo
poder de Deus. (SC 29.3)

Se, em vez de negligenciarmos a oraçã o, nos lembrarmos das


recompensas da oraçã o, somos lembrados de que os benefícios nã o têm
limites nem fim. Nosso Senhor nos instruiu a pedir favores abençoados;
deveríamos pedir com verdadeiro fervor este dom do amor pela oraçã o
– através da intercessã o de Maria. Entã o poderemos descobrir que
verdades muito maiores surgem em nosso caminho. Inevitavelmente, o
pró prio Deus começará a mostrar-nos o seu mistério de presença de
uma maneira diferente. Sã o Joã o da Cruz compreendeu bem o dom que
podemos desejar e transmitiu-o com estas palavras marcantes: “Pois
como declara Moisés no Deuteronô mio: Nosso Senhor Deus é um fogo
consumidor [Dt. 4:24], isto é, um fogo de amor que, sendo de poder
infinito, pode consumir e transformar inestimavelmente em si a alma
que toca” (LF 2.2). Este fogo interior do amor divino, que refina pelo
seu toque, queima as impurezas e, em ú ltima aná lise, diviniza, invoca o
mistério da contemplaçã o. Deixemo-nos levar a procurá -lo e desejá -lo.
A alma que dá lugar a Deus e libera um profundo desejo interior por
Deus tem uma promessa clara. O fogo consumidor de Deus preencherá
um vazio sagrado nas suas profundezas com o mistério da sua presença
imediata.

Há outra instruçã o, desta vez mais secreta, que podemos aprender de


Maria, a Mã e das almas contemplativas. O fogo do toque de Deus arde
misteriosamente em nó s com base numa condiçã o adicional: devemos
aprender como receber a humildade de Deus. Isto nã o significa
simplesmente praticar a virtude da humildade como uma graça
recebida. Maria conhece e quer ensinar-nos uma verdade mais
profunda que a humildade humana; a saber, que o pró prio Deus é uma
humildade totalmente santa. Na contemplaçã o, ele nos oferece um
encontro misterioso com esta verdade da sua humildade divina.
Humilhando-se, desce ao que é pequeno e escasso, cheio de vazio, e se
oferece com humildade para ser amado. Maria conhece bem esta
revelaçã o da humildade divina. A pequena criança concebida no ventre
da sua Virgem, os anos escondidos em Nazaré de humildade divina, o
abraço da impotência e do abandono no Calvá rio, unida ao seu pró prio
sofrimento silencioso - ela permanece perpetuamente em adoraçã o e
admiraçã o pela descida de Deus sobre a humildade. Uma pura
receptividade à humildade de Deus permanece para sempre em sua
alma. Ela quer que nó s também o saibamos, especialmente quando
rezamos diante da humildade oculta do nosso Deus presente na
Sagrada Eucaristia. A contemplaçã o na presença da Eucaristia pode
absorver-nos misteriosamente na imolaçã o da humildade do Senhor,
que Ele oferece continuamente à vontade do Pai.

Se desejamos, entã o, a graça da contemplaçã o, a nossa alma necessita


de um profundo “sim” a esta humildade de Deus na profundidade da
nossa oraçã o. O “ fiat ” de Maria na Anunciaçã o ecoa através dos séculos
para a nossa emulaçã o e abre o caminho para estas profundezas. Cada
dia, no silêncio, o grande “sim” de um servo para que todos estejam de
acordo com a vontade divina pode acender a chama inicial da nossa
oraçã o. Com o tempo, podemos aprender a nos tornarmos mais
plenamente unidos com o seu contínuo “sim” a Deus. Entã o, como ela,
poderemos ponderar, admirar e adorar a humildade de Deus, que desce
dentro da nossa humildade e nos permite descansar diante dos seus
olhos numa oraçã o de amor mais profundo. Num amor humilde,
encontramos dentro de nó s Aquele que é infinitamente humilde. A
humildade de Deus pode tornar-se, de fato, a grande verdade tá cita da
nossa oraçã o. Mesmo um fraco reconhecimento da sua humildade em
entregar-se ao nosso nada interior permite-nos conhecer a sua
proximidade na hora do esconderijo. Deus, que é totalmente pessoal,
nã o espera muito, mesmo no seu esconderijo, para preencher com a sua
presença estes vislumbres cegos da sua humildade. Nada mais que
façamos pode ser mais frutífero para as almas do que essa oraçã o.
Porque Deus parece nã o recusar os pedidos daqueles que, pobres e
humildes, reconhecem o poder da sua humildade. Que Sã o Joã o da Cruz
provoque em nó s uma necessidade apaixonada de nos tornarmos almas
com grande desejo de interceder pelos outros nos dias atuais.
Apêndice

Uma seleçã o de aforismos memoráveis

(Dos provérbios de luz e amor )

Ó Senhor, meu Deus, quem te buscará com amor simples e puro, e nã o


achará que você é tudo o que se pode desejar, pois você se mostra
primeiro e sai ao encontro daqueles que te procuram? (2)

Deus valoriza em você a inclinaçã o à aridez e ao sofrimento por amor a


ele mais do que todas as consolaçõ es, visõ es espirituais e meditaçõ es
que você poderia ter. (14)

A mosca que se agarra ao mel impede o seu voo, e a alma que se


permite apegar-se à doçura espiritual impede a sua pró pria liberdade e
contemplaçã o. (24)

Se você perder uma oportunidade, será como alguém que deixa o


pá ssaro voar; Você nunca o terá de volta. (32)

Um pensamento humano sozinho vale mais do que o mundo inteiro,


portanto só Deus é digno dele. (35)

O que você mais busca e deseja você nã o encontrará por este seu
caminho, nem através de elevada contemplaçã o, mas com muita
humildade e submissã o de coraçã o. (40)

Reflita que a flor mais delicada perde a fragrâ ncia e murcha mais
rá pido; portanto, guarde-se para nã o tentar andar com um espírito de
deleite, pois você nã o será constante. Escolha antes para si uma
aguardente robusta, desapegada de tudo, e descobrirá paz e doçura
abundantes, pois frutos deliciosos e duradouros sã o colhidos num clima
frio e seco. (42)

Se você deseja alcançar o santo recolhimento, você o fará nã o


recebendo, mas negando. (52)

Nã o poderã o atingir a perfeiçã o as almas que nã o se esforcem por


contentar-se em nã o ter nada, de tal forma que o seu desejo natural e
espiritual seja satisfeito com o vazio; pois isso é necessá rio para
alcançar a mais elevada tranquilidade e paz de espírito.
Conseqü entemente, o amor de Deus na alma pura e simples está quase
continuamente em açã o. (54)

Visto que Deus é inacessível, tome cuidado para nã o se preocupar com


tudo o que suas faculdades podem compreender e seus sentidos
sentirem, para que nã o se satisfaça com menos e perca a leveza de alma
adequada para ir até ele. (55)

Como é que você ousa relaxar tã o destemidamente, já que deve


comparecer diante de Deus para prestar contas da menor palavra ou
pensamento? (74)

Preserve uma lembrança habitual da vida eterna, lembrando que


aqueles que se consideram os mais baixos e os mais pobres, e os
ú ltimos, desfrutarã o do mais alto domínio e gló ria em Deus. (83)

Preserve uma atençã o amorosa a Deus, sem nenhum desejo de sentir


ou compreender qualquer coisa específica a respeito dele. (88)

Entre em você mesmo e trabalhe na presença do seu Noivo, que está


sempre presente te amando. (90)

Deixe Cristo crucificado ser suficiente para você, e com ele sofra e
descanse, e assim aniquile-se em todas as coisas interiores e exteriores.
(92)
Tenha grande amor pelas provaçõ es e pense nelas apenas como uma
pequena forma de agradar o seu Noivo, que nã o hesitou em morrer por
você. (94)

A alma que caminha no amor nã o cansa os outros nem se cansa. (97)

O Pai falou uma Palavra, que era seu Filho, e esta Palavra ele fala
sempre em silêncio eterno, e em silêncio deve ser ouvida pela alma.
(100)

Para se deixar levar pelo amor de uma alma, Deus nã o olha para a sua
grandeza, mas para a grandeza da sua humildade. (103)

A sabedoria entra através do amor, do silêncio e da mortificaçã o. É uma


grande sabedoria saber ficar em silêncio e nã o olhar nem para os
comentá rios, nem para os atos, nem para a vida dos outros. (109)

Se uma alma tem mais paciência no sofrimento e mais tolerâ ncia em ir


sem satisfaçã o, aí está o sinal de que ela é mais proficiente na virtude.
(120)

Desapegado das coisas exteriores, despojado das coisas interiores,


desapropriado das coisas de Deus - nem a prosperidade o deterá nem a
adversidade o impedirá . (125)

O diabo teme uma alma unida a Deus como teme ao pró prio Deus.
(126)

O sofrimento mais puro produz a compreensã o mais pura. (127)

A alma que deseja que Deus se entregue inteiramente a ela, deve


entregar-se inteiramente a ele, sem guardar nada para si. (128)

Velhos amigos de Deus quase nunca falham com ele, pois estã o acima
de tudo que pode fazê-los falhar. (130)
Meu Amado, tudo que é á spero e trabalhoso eu desejo para mim, e tudo
que é doce e delicioso eu desejo para você. (131)

A submissã o de um servo é necessá ria na busca de Deus. Nas coisas


exteriores, a luz ajuda a evitar que caiamos; mas nas coisas de Deus é
verdade exatamente o oposto: é melhor para a alma nã o ver se deve
estar mais segura. (133)

A alma que deseja que Deus se entregue inteiramente a ela, deve


entregar-se inteiramente a ele, sem guardar nada para si. (128)

Ame ser desconhecido por você mesmo e pelos outros. Nunca olhe para
o bem ou o mal dos outros. (135)

Perder sempre e deixar que todos ganhem é uma característica de


almas valentes, de espíritos generosos e de coraçõ es altruístas; é sua
maneira de dar em vez de receber, até o ponto de se doarem. Eles
consideram um fardo pesado possuir-se e lhes agrada mais ser
possuídos pelos outros e afastados de si mesmos, pois pertencemos
mais a esse Bem infinito do que a nó s mesmos. (137)

É seriamente errado ter mais consideraçã o pelas bênçã os de Deus do


que pelo pró prio Deus: oraçã o e desapego. (138)

Fique em silêncio sobre o que Deus pode ter lhe dado e lembre-se
daquela palavra da noiva: Meu segredo para mim [Is. 24:16]. (153)

Quem sabe morrer em todos terá vida em todos. (160)

Os humildes sã o aqueles que se escondem no pró prio nada e sabem


abandonar-se a Deus. (163)

Se você deseja ser perfeito, venda a sua vontade, dê-a aos pobres de
espírito, venha a Cristo com mansidã o e humildade e siga-o até o
Calvá rio e o sepulcro. (165)
Quem foge da oraçã o foge de tudo que é bom. (169)

O que sabe alguém que nã o sabe sofrer por Cristo? (175)


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