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1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761
Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: cedetusa@cedet.com.br
Editor:
Diogo Chiuso
Assistente editorial:
Thomaz Perroni
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
Cesar Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Rodrigo Gurgel
Silvio Grimaldo de Camargo
F C
1. Ascética – 248.2
2. Catolicismo – 282
SUMÁRIO
P
PRÓLOGO
“Gema Galgani, se não por hábito e por profissão, sem dúvidas pelo desejo
e pelo afeto, merecidamente deve estar incluída entre as Religiosas Filhas de
São Paulo da Cruz”.
Ela, “não foi de fato passionista, mas o foi sempre com o coração
e com o desejo vivo”, constituindo um baluarte para a congregação.
E, se antes mesmo Gema já era passionista de coração, agora se
encontra, de fato, entre as Filhas da Paixão, como tanto almejava e
profetizou, pois seus restos mortais repousam no seu Mosteiro-
Santuário em Lucca. Sua ligação com as Monjas se tornou tão
estreita que muitas das fundações deram o seu nome aos
Mosteiros, sendo desta forma a Padroeira principal dos mesmos,
inclusive do primeiro Mosteiro fundado aqui no Brasil, que é também
o primeiro da América Latina.
Apesar de sua breve existência – 25 anos –, Gema tem muito a
nos ensinar: a vivência do Amor Divino; a acurada atenção às
inspirações e à presença do nosso santo anjo da guarda; a intensa
vida de oração; a constante abnegação de si mesma para uma
verdadeira ascensão ao Senhor; a intercessão fervorosa pela
salvação das almas e conversão dos pecadores. Sua sede e amor a
Deus nos contagia e nos inspira a buscar a sua divina presença na
vivência dos valores cristãos, da prática dos sacramentos,
sobretudo do amor a Jesus Eucaristia, e da Configuração com o
Senhor Crucificado. Enfim, a buscar as coisas do alto, pois aí deve
estar o nosso tesouro!
M P M S G – SP,
fevereiro de 2013.
APRESENTAÇÃO
P .H E O , C.P.
Às Filhas de Maria.
m. c.
1“Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).
2 Cf. Jo 17, 16.
CAPÍTULO PRIMEIRO
A querida Gema só contava dois anos quando o pai no-la confiou para ser
educada em nossa casa. Desde essa idade, revelou uma inteligência
precoce, parecendo já estar nela desenvolvido o uso da razão. Era séria,
refletida, cuidadosa em tudo o que fazia, e nada tinha de comum com as
companheiras, nem mesmo com as mais crescidas. Ninguém a viu jamais
chorar ou brigar; condescendente para com todos, conservava sempre o
semblante sereno e risonho. – Quer a acariciassem ou repreendessem,
mostrava-se invariavelmente a mesma;sua resposta era um sorriso, e sua
atitude de uma calma imperturbável.
Entretanto, era dotada de gênio vivo e ardente. Em todo o tempo que nos
foi dada a ventura de tê-la conosco, nunca foi preciso castigá-la,porque, nos
pequeninos defeitos, próprios daquela idade, bastava uma leve advertência
para logo atender ao que se lhe dizia.
Estavam também na escola dois de seus irmãos e duas irmãs, com os
quais não só nunca teve a menor questão, antes pelo contrário, cedia-lhes
com bondade as melhores frutas de sua merenda, privando-se delas para
dar-lhes prazer. No jantar em comum, contentava-se com tudo, e o sorriso
que lhe pairava constantemente nos lábios era, como dissemos, somente a
sua queixa ou aprovação. Decorou depressa, e desde o princípio, todas as
orações que se costumava recitar cotidianamente no Instituto, sendo áreas
tantas, que duravam cerca de meia hora.
Aos cinco anos de idade tomava o breviário e lia o Ofício da Santíssima
Virgem e também o dos Defuntos com a facilidade e perfeição de uma
pessoa madura, tanta era a diligência que a santa menina empregava
naquele estudo, sabendo que o breviário é um tecido de louvores ao Senhor.
Assídua ao trabalho, prontamente aprendia tudo o que lhe ensinavam,
embora fosse superior às suas forças. À vista de tão raras qualidades em
uma menina, era Gema ternamente amada na escola, especialmente pelas
companheiras, que não se fartavam de estar ao seu lado.
Desta inocente e virtuosa menina, diremos ainda que, por sua causa,
recebemos de Deus uma graça extraordinária.
Estando ela conosco na escola, apareceu em Lucca a tosse
convulsa(coqueluche) e todos de nossa família foram atacados. Tratando-se
de uma doença contagiosa, em consciência, não podíamos conservar mais
no colégio aqueles cinco meninos. Não sabendo o que fazer, consultamos o
pároco da freguesia da família Galgani, que nos aconselhou que não os
abandonássemos, tanto mais que a mãe estava gravemente enferma
naquela ocasião. Aceitei seu conselho; a querida Gema rezou a pedido nosso
e a doença cessou sem que nenhum dos alunos sofresse.
Ouvi o melhor que pude a Santa Missa, rezando por mamãe; quando, de
repente, senti uma voz no coração que me disse: “Queres dar-me tua
mamãe?” Sim, respondi, mas leva-me também convosco. “Não!” –
respondeu-me a mesma voz – “dá-me de boa vontade tua mamãe; tu, por
ora, deves ficar com teu pai. Eu a levarei para o Céu, fica certa”. Fui obrigada
a responder: sim!; acabada a Missa, corri para casa. Meu Deus!
Esta foi a primeira voz do céu que sabemos ter Gema ouvido entre
as inumeráveis que se seguiram depois, e que faremos conhecer
neste livro. A circunstância da Crisma, isto é, da descida do Divino
Espírito Santo naquela alma inocente, é uma prova convincente de
que foi o verdadeiro autor desta revelação, mais tarde veridicamente
demonstrada.
Gema tinha feito a Deus o sacrifício do que de mais caro possuía
no mundo; o merecimento desse ato lhe estava garantido no céu.
Entrou em casa e achou a mãe no fim da vida. Ajoelhou-se perto da
cama, derramou algumas lágrimas pela força da dor, rezou com o
coração traspassado de angústia, e declarou não poder mais
abandonar aquela cabeceira até receber os últimos suspiros de sua
mãe.
Esperava sempre (ainda que resignada à vontade do céu que
pouco antes generosamente tinha aceito aos pés do altar) poder
acompanhá-la, e com ela ir para o paraíso.
A doença deteve-se um pouco, e a boa senhora sentiu algumas
melhoras, mas de momentânea duração. Em breve agravou-se de
novo seu estado, não dando mais lugar à mínima esperança.
Gema continuava sempre firme com toda a ternura, junto àquele
leito do qual, nem por instantes, queria se afastar.
O coração do extremoso pai, porém, não resistiu mais ao receio de
que ela sucumbisse até antes da mãe, e obrigou-a a ir para a casa
de sua cunhada, D. Helena Landi, em São Januário, estabelecendo
que lá ela ficaria até segunda ordem.
A criança obedeceu e partiu logo.
A enferma, no dia 17 de setembro de 1886, como uma santa,
cessou de viver, aos 39 anos de idade. A triste notícia foi
imediatamente dada à Gema, ainda na casa da tia, e tanto mais
admirável foi a resignação com que aquela criança de apenas 8
anos a recebeu, quanto mais cruciante foi a dor que dilacerou seu
terno coração com tão cruel separação.
É assim, meu Deus, que vos apraz fazer sofrer as almas que vos
são mais caras, desde os seus mais tenros anos.
1 Foi canonizado por Pio XII, em 1938. São João Leonardi (1541-1609), natural da
região de Lucca, farmacêutico, fundou a Ordem dos Clérigos Regulares da Mãe de Deus
na Igreja Santa Maria della Rosa. Nesta igreja, Santa Gema frequentava a Santa Missa,
próxima à casa dos Giannini, e do cômodo onde ela faleceu. Em 8 de agosto de 2006, o
Papa Bento XVI, o proclamou santo patrono de todos os farmacêuticos. O pai de Santa
Gema, assim como Sr. Mateus Gianinni que mais tarde a acolheu, eram farmacêuticos.
2 Nota do autor: Eis os nomes dos filhos do Sr. Henrique Galgani, com as datas
dosnascimentos e mortes:
Guido nasceu a 30 de maio de 1871.
Heitor nasceu a 21 de março de 1873.
Gino a 5 de junho de 1876 e morreu em Lucca, a 11 de setembro de 1894.
Gema Maria Humberta Pia nasceu a 12 de março de 1878 e morreu a 11 de abril de
1903.
Antonio nasceu a 14 de março de 1880 e morreu em Lucca, a 21 de outubro de 1902.
Ângela nasceu a 30 de setembro de 1881.
Julia nasceu a 30 de outubro de 1883 e morreu em Lucca a 19 de agosto de 1902.
Do outro filho, morto ao nascer, não se pode obter notícia certa. [Obviamente que já são
falecidos os três que ainda viviam na época em que o livro fora escrito – NE].
3 Foi este sacerdote que pagou pelas primeiras edições desta biografia em 1907. In:
Piélagos, Fernando. Santa Gema Galgani. São Paulo: Paulinas – ٢٠٠٤; pg. ١٠١ – NC.
4 Em italiano essa palavra significa ‘pedra preciosa’ – NC.
5 Grande intuição do Venerável Padre Germano acerca do ministério espiritual da mãe –
NC.
6 Os sacramentos da Iniciação Cristã são: Batismo, a Crisma e a Comunhão. A Santa
Igreja de Rito Romano, até as reformas pós-conciliares, ocorridas na segunda metade do
século XX, ministrava os sacramentos nesta ordem. Agora, optou-se por postergar o
sacramento da Crisma para depois da Primeira Comunhão, invertendo-se a ordem dos dois
últimos.
CAPÍTULO II
Manifestei este desejo à minha mestra, e ela começou, a cada dia, a dar-
me algumas dessas instruções, escolhendo para este fim a hora em que as
outras meninas estavam deitadas. Uma noite em que me explicava alguns
pormenores da crucifixão, da coroação de espinhos e outros suplícios de
Jesus, descreveu-os tão vivamente que senti uma intensa dor e me sobreveio
uma febre violenta que me obrigou a ficar de cama no dia seguinte. À vista
disso, a mestra desistiu das lições. Ouvia então as práticas. Todos os dias o
bom pregador dizia: quem se alimenta de Jesus, viverá de Sua vida. Estas
palavras me enchiam de consolação, e assim raciocinava comigo mesma:
então, quando Jesus estiver comigo, eu não viverei mais em mim, porque
Jesus é quem viverá em mim! E morria de desejo de chegar a poder dizer
depressa estas palavras: Jesus, vive em mim! Outras vezes, meditando
nesse assunto, passava a noite inteira em viva ansiedade. Preparei-me para
a confissão geral, que fiz em três vezes ao Sr. Padre Volpi; terminei-a no
sábado, véspera do feliz dia, 17 de junho de 1887, para o qual se tinha
transferido a festa do Sagrado Coração de Jesus.
Meu pai, não sei se já vos disse que o dia da festa do Sagrado Coração de
Jesus é também o dia da minha festa. Ontem, meu pai, passei um dia no
paraíso, estive todo o tempo com Jesus, sempre falei em Jesus, fui feliz com
Jesus e também chorei com Jesus; no recolhimento interior me fez ficar, mais
do que de costume, unida ao meu querido Jesus.
Oh! Pensamentos tão frios do mundo, afastai-vos de mim; quero estar
sempre com Jesus e somente com Jesus.
Meu pai, para aonde me leva o meu pensamento? Ao belo dia da minha
Primeira Comunhão. Ontem, festa do Sagrado Coração de Jesus, senti de
novo a alegria da Primeira Comunhão. Outra vez foi-me concedida a
felicidade do Paraíso. Mas que é gozá-la só por um momento, quando depois
a gozaremos para sempre? O dia da Primeira Comunhão, posso bem dizê-lo,
foi aquele em que meu coração mais se abrasou de amor por Jesus.
Quanto fui feliz!, quando com Jesus no coração pude exclamar: ó meu
Deus, o vosso coração é o meu, o que vos torna feliz, também faz a minha
ventura! Que mais me faltava para estar contente? Nada! Comparei a paz do
coração que senti no dia da minha Primeira Comunhão, com a paz que gozo
agora: não acho diferença alguma!
Ó meu pai, meu pai... mas todos os dias não são iguais. Passo alguns dias
de modo que me envergonho de mim mesma! Oh! Quantas vezes tenho
cedido aos atrativos deste mundo! Ó Jesus, vinde depressa, tirai-me o
coração! Tomai posse dele para que eu, com meus pecados, não vo-lo torne
a roubar. Ó meu Deus – e aqui, de novo ficava fora de si, escrevendo –
quisera eu fazer um feixe de todas as minhas más inclinações e vo-las
apresentar, a fim de que, com o fogo do vosso amor, Vos dignásseis
consumi-las. Mas, ó meu Deus, se eu não posso fazer tanto de uma só vez,
tomarei, como fim especial, perseguir todas as minhas paixões; e prometo-
vos não me aproximar da Vossa Mesa se antes não tiver conseguido alguma
vitória sobre mim mesma
NA ESCOLA:
ONDE GEMA REVELOU SEU VERDADEIRO CARÁTER E
ESPÍRITO DE PIEDADE (1888-1894)
Era a alma da escola – atesta uma das professoras –; nada se fazia sem a
sua coadjuvação durante todo o tempo em que ficou conosco. Todas as
colegas lhe dedicavam sempre muito afeto e queriam que tomasse parte em
suas festas e divertimentos, embora ela tivesse um gênio retraído, fosse de
poucas palavras, firme, e algumas vezes aparentemente incivil.
Assim parecia exteriormente, mas é certo que não era esse o seu
caráter. Falava pouco, com medo de que, deixando-se levar pelos
sentidos, caísse na dissipação e viesse a ofender a Deus, como por
vezes, de forma muito ingênua, confiou ao seu diretor. Ela sabia tão
bem dominar-se, que fazia parecer natural o que era fruto de
virtude.
Uma pessoa, vendo-a tão séria e reservada, chamou-a de altiva e
soberba. Porém, ela sorrindo, perguntou: “Que quer dizer soberba?
Eu nem penso nisso; não respondo, porque não sei o que dizer.
Ademais, ignoro se respondo bem ou mal, assim prefiro estar
calada; e adeus”.
Depois de crescida, recordando-se de ter sido algumas vezes
censurada como soberba, acrescentava com aquela sua candura e
humildade incomparáveis:
Sim, eu tinha por demais esse pecado, mas Jesus sabe se eu o conhecia
ou não. Frequentemente ia procurar as mestras, as outras alunas e a
superiora para pedir-lhes perdão desta falta; depois, ao recolher-me durante
muitas noites, chorava sozinha, mas sem conhecer este pecado.
Oh! Tivessem todos esta soberba, cuja raiz produz tão belos frutos
de humildade!
O traço dominante do seu caráter era exatamente a vivacidade.
Quem atentamente a observasse, reconheceria logo que o seu
temperamento era ardente, fervendo-lhe o sangue nas veias; e que
sem a violência que se fazia continuamente a si mesma, teria sido,
como diziam, uma criatura de gênio arrebatado; além disso, com o
espírito pronto e perspicaz que possuía, teria podido elevar-se
acima de qualquer outro.
Quantas vezes não a vi comprimir os primeiros acessos da cólera
até a custa de esforços musculares? E como era grande a minha
admiração,contemplando uma virtude tão generosa, constante e
espontânea numa simples menina!
O mesmo atestam outras pessoas:
Ela era dotada de gênio vivo, mas calmo, porque sempre se vencia. Nunca
se perturbava nem discutia; e quando a censuravam ou maltratavam,
respondia primeiro com um amável olhar, e depois com um sorriso tão doce
que, não raras vezes, forçava a adversária a atirar-se ao pescoço e apertá-la
amorosamente ao coração.
E por que teria eu de agradar ao mundo? Estúpida sou por certo; e que
fazer se me julgam como sou? Quanto ao mais, não me importo com isso.
Jesus se fazia sentir cada vez mais em minha pobre alma, e me dizia tão
belas palavras que me faziam desfrutar de grandes consolações.
1 Cf. Mt 5, 37.
2 1Sm 16, 7.
3 Referência à Bem-aventurada Elena Guerra – NC.
4 Santa Bartolomea Capitanio (1807-1833), fundadora com Santa Vincenza Gerosa
(1784-1847), das Irmãs da Caridade, conhecidas como Irmãs de Maria Menina, ambas
canonizadas em 1950 por Pio XII, depois da própria Santa Gema – NC.
5 A Irmã Júlia Sestini, Oblata do Espírito Santo, foi uma das mestras que mais teve
influência espiritual sobre Santa Gema. Teve também a graça de estar presente na
canonização de sua aluna – NC.
6 Lc 2, 52.
7 Purificações passivas; na linguagem de São João da Cruz, noite escura. “Tal
Purificação produz passivamente na alma a negação de si mesma e de todas as coisas”.
São João da Cruz, Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2000; p. 440 – NC.
8 “Quando Deus, de fato, põe a alma nesta noite escura a fim de purificar-lhe o apetite
sensitivo, por meio da aridez, não a deixa encontrar gosto ou sabor em coisa alguma”. Ibid.
op. cit., p. 462 – NC.
9 Já no pontificado de Papa Leão XIII, se havia incentivado a prática da comunhão
frequente, mas ainda não era coisa ordinária. São Pio X será o grande incentivador da
prática da comunhão frequente como meio utilíssimo para as almas que seriamente
aspiram a santidade – NC.
10 Cf. Fl 3, 2.
11 “No Rito Romano Antigo, na formação ao sacerdócio, os seminaristas tinham uma
caminhada que incluía as Ordens Menores: Ostiarato, Leitorato, Exorcistado, Acolitado.
Nas Ordem Maiores, havia também o subdiaconado” (Dom Gaspar Lefebvre, Missal
Cotidiano; Bruges: Desclèe, 1955, p. 1895-1919). Nas reformas promovidas após o
Concílio Vaticano II, as ordens menores foram suprimidas, mantendo-se os ofícios do
Leitorato e Acolitado. Também o subdiaconado foi suprimido, assim como o rito da tonsura,
permanecendo somente o Diaconato e Presbiterado. Contudo, nos institutos ligados à
forma extraordinária do Rito Romano, ainda permanecem as ordens menores – NC.
CAPÍTULO IV
Esta sua resolução não a pôde cumprir com todo aquele rigor que
desejara porque o seu pai, que lhe conhecia o caráter vivo e
ardente, sob pretexto de dar aos seus outros filhos uma pessoa de
confiança que os acompanhasse nos passeios, obrigava a jovem a
sair de casa, ao menos, de vez em quando.
Obedecia, então, Gema; mas transposta apenas à porta de casa,
tomava certos atalhos, dela bem conhecidos, e saía logo do
povoado; dirigindo-se para o campo; procurava um lugar isolado que
unia os benefícios do ar livre às vantagens da solidão.
Mas até nesta inocente diversão, tomada só por obediência e
usada com tanta cautela, veio o demônio aborrecê-la. Certo dia, um
jovem oficial do exército, que a tinha observado, pôs-se a
acompanhá-la. Não o percebeu a boa donzela, porque andava
sempre de olhos baixos; mas quando alguém a avisou o que
sucedida, afligiu-se ao extremo, chorou muito e, depois de se ter
encomendado fervorosamente a Deus, tomou a firme resolução de
não sair mais de casa, a não ser para ir à igreja vizinha de São
Frediano. Parecia difícil manter um tal propósito por causa da
oposição de seu pais; mas tão bem ela soube dispor as coisas, que
o conseguiu quase completamente.
E assim, foi no retiro do lar doméstico que se aperfeiçoaram as
virtudes e se acendeu o fervor deste anjo. Julgando-se muito
deficiente na virtude, punha todo o seu cuidado em estimular-se no
caminho da perfeição: “Gema – repetia ela constantemente – deve
mudar e entregar-se toda a Deus”.
Para crescer no fervor, sabia aproveitar-se de tudo: das
solenidades da Igreja, da beleza da natureza, da sucessão das
estações e até dos brinquedos e divertimentos, aos quais por vezes
se entregava, como a inocente passatempos.
Estava para findar o ano de 1895 e o pensamento de um ano novo
inspirou-lhe desejos de uma vida mais perfeita. Levantando-se do
lugar da meditação, tomou um caderno, no qual costumava notar os
bons propósitos:
Neste novo ano, proponho começar uma vida nova. Que me acontecerá
neste ano? Não sei... Entrego-me a Vós, ó meu Deus; todas as minhas
esperanças e os meus afetos serão para Vós. Sinto-me fraca, ó Jesus! Mas,
com o vosso auxílio espero e resolvo viver de outro modo, isto é, mais unida
convosco.
Um dia – conta ela – fiquei penetrada de tanta dor ao olhar, isto é, ao fitar
os olhos no crucifixo, que caí no chão desmaiada. Meu pai, que estava
presente, repreendeu-me dizendo que me fazia mal ficar sempre em casa e
sair tão cedo pela manhã. Ao que eu respondi: “O que me faz mal é estar
longe de Jesus Sacramentado”. Dito isto, fui esconder-me no meu quarto e
foi aquela a primeira vez que desabafei a minha dor a sós com Jesus.
Isto quer dizer que até então a virtuosa Serva de Deus tinha
sempre concentrado em seu coração a dor que lhe causavam
semelhantes trabalhos.
Embora não o diga ela, é muito provável que, nessa hora, Jesus
lhe estivesse visivelmente presente, como em tantas outras
ocasiões.
Para manter e tornar eficazes estas suas resoluções,
acrescentava:
Posso dizer, sem exagero, que após a morte de minha mãe, nunca passei
um só dia sem sofrer alguma coisa por Jesus.
Entramos no ano de 1897, ano tão doloroso para toda a família. Eu só, sem
coração – assim dizia para ocultar o que nela era virtude heroica –,
permanecia indiferente a tantas desgraças. O que principalmente entristecia
aos outros – note-se bem aos outros, não a ela –, era ficarem privados de
todos os meios, ao mesmo tempo que o nosso pai lutava contra tão grave
doença. Compreendi, numa manhã, a grandeza do novo sacrifício que Jesus
ia exigir de mim. Chorei muito; mas naqueles dias de dor, Jesus se fazia
sentir ainda mais perto à minha alma; depois, ao ver meu pai tão resignado a
morrer, deu-me tão grande força que suportei a acerba desgraça com
bastante tranquilidade. No dia em que ele faleceu, Jesus proibiu que me
entregasse a prantos inúteis. Passei-o, então, rezando e muito conformada
com a Santíssima Vontade de Deus, que naquele instante tomava para si o
ofício de Pai celeste e terrestre. Depois da morte de meu pai, achamo-nos
sem coisa alguma, nem tínhamos com que viver.
Isto acontecia no dia 11 de novembro de 1897, tendo Gema
dezenove anos e oito meses.
Estes são os mimos com que Deus favorece as almas que lhe são
mais caras. Feliz de quem sabe recebê-los como tais de suas
santas mãos! Quanto a Gema, tão predileta, tinha ainda mais que
sofrer como veremos no capítulo seguinte.
1 Aqui aparece o primeiro sinal do magistério espiritual que o santo anjo da guarda de
Santa Gema veio posteriormente a exercer em sua vida espiritual. O Papa Emérito Bento
XVI, no dia 29 de julho de 2009, ao relatar o evento em que fraturou sua mão direita, disse
que seu anjo da guarda, “não impediu meu infortúnio, seguindo certamente ordens
superiores. Talvez o Senhor quisesse me ensinar a ter mais paciência e humildade, dar-me
mais tempo para a oração e para a meditação” – NC.
2 Anterior ao advento das modernas técnicas de anestesia – NC.
CAPÍTULO V
Oh! Quantas vezes na minha longa doença Ele me fazia sentir no coração
palavras consoladoras!
A dita senhora em breve voltou para retomar o seu livro. Mas quão
diverso foi o sentimento da piedosa jovem quando lho restituiu, do
que experimentara quando o recebeu! O coração apertou-se no
peito e duas lágrimas deslizaram dos olhos, pelo que, aquela
senhora, comovida, resolveu deixar-lhe o livro por mais algum
tempo.
Tive logo a sua licença. E, além disso, deu-me outra consolação: permitiu-
me fazer voto de virgindade, o que até então não tinha deixado; e naquela
própria noite, em presença dele, eu o fiz o voto perpétuo.
Não entendia nada de tudo isto, mas para lhe agradecer, beijei-lhe o hábito.
Ele então tirou o coração de madeira – que os Passionistas trazem no peito
–, deu-me a beijar, colocou-o sobre meu peito, por cima dos lençóis, e, de
novo, me repetiu: “Minha Irmã!” e desapareceu.
NO CONVENTO DA VISITAÇÃO:
GEMA FAZ OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS, MAS NÃO É ACEITA
(ABRIL E MAIO – 1899)
1 A Ordem da Visitação foi fundada por São Francisco de Sales “para dar a Deus filhas
da oração tão interiores, que sejam achadas dignas de servir sua Majestade infinita e de
adorá-La em espírito e verdade. Deixando para as grandes Ordens já estabelecidas na
Igreja honrar NossoSenhor com obras excelentes e virtudes impressionantes, eu quero que
as minhas filhas não tenham outro ideal senão aquele de glorificá-Lo com o seu
abaixamento”. Giuseppe Gioia. Nello spirito della visitazione, Milano: San Paolo, 2006, p.
107. Bem diverso da vocação de Santa Gema, nitidamente passionista, São Paulo da Cruz
desejava “um mosteiro de almas grandes e santas, mortas a todo o criado, e que se
assemelhem a Jesus em sua Paixão e a Maria ao pé da Cruz”. Paolo Risso, E Ele a
fascinou, São Paulo: Loyola – ١٩٩٠, p. ٧٩ – NC.
2 Obra de misericórdia e dever filial: rezar pela alma de nossos pais e parentes falecidos,
para que sejam libertos do Purgatório. “Não basta chorar, precisamos orar. E nunca se
precisa tanto de orações como depois da morte. No Purgatório, as pobres almas estão
como o paralítico à beira da piscina que dizia a Jesus: ‘Senhor, eu não tenho alguém que
me lance à piscina para ser curado’. Dependem aquelas Almas santas de nossos
sufrágios, de nossas orações e sacrifícios. Deus as entregou à nossa caridade. Sempre é
eficaz a nossa oração pelas almas”, Ascânio Brandão, Tenhamos compaixão das pobres
almas do purgatório; Belo Horizonte: Divina Misericórdia, 2011, p. 113 – NC.
3 Diz-nos o Doutor São João da Cruz, no livro II, capítulo XIX, da Subida ao Monte
Carmelo: “Não havemos de reparar, portanto, em nosso sentido e linguagem quanto às
revelações divinas, sabendo que o sentido e linguagem de Deus são muito diferentes do
que pensamos, e difíceis para nosso modo de entender”. Exemplifica: “Uma alma
inflamada em grandes desejos de sofrer o martírio talvez ouça a voz de Deus responder às
suas aspirações dizendo-lhe: “Tu serás mártir”. Esta promessa enche-a interiormente de
imensa consolação, e lhe dá confiança que assim acontecerá. Contudo essa pessoa não
sofrerá o martírio, e palavra divina será verdadeira. Mas como explicá-lo, se não se
realiza? Porque se cumpre e poderá cumprir segundo a parte essencial e principal da
profecia, isto é, Deus dará à alma o amor e a recompensa do martírio, e assim é verdadeira
a sua promessa satisfazendo-lhe os desejos; pois a aspiração formal da mesma alma não
era sofrer tal ou qual gênero de morte, mas servir a Deus nos trabalhos e exercitar o seu
amor por ele como mártir”, São João da Cruz, Obras Completas; Vozes, Petrópolis, 2000,
p. 263-264 – NC.
CAPÍTULO VII
FENÔMENOS MÍSTICOS:
A SERVA DE DEUS RECEBE O INSIGNE DOM DOS ESTIGMAS
DE JESUS CRUCIFICADO (1899)
Ah! com a esposa dos Cantares,2 meu dileto é para mim como um
ramalhete de mirra; nele só quero ver o que escolheu de preferência para si:
a cruz. Quem desejar, vá contemplá-lo no Tabor; escolho para mim o Calvário
em companhia da querida Mãe das Dores.
Queres amar sempre a Jesus? Não cesses então, por momento que seja,
de sofrer por Ele. A cruz é o trono dos verdadeiros amantes; a cruz é o
patrimônio dos eleitos nesta vida.
1 1Cor 1,23.
2 Referência ao Cântico dos Cânticos. Refere-se ao ramalhete de mirra, como símbolo
da Paixão de Cristo, muito antigo na linguagem mística. São Bernardo de Claraval, no
Sermão 43 sobre o Cântico dos Cânticos, consagrará tal simbologia. “Entre tantos ramos
desta planta balsâmica não esqueci a mirra que bebeu na cruz, nem aquela que o ungiram
no sepulcro. Com a primeira se apropriou da amargura de meus pecados; com segunda
consagrou a futura incorrupção do meu corpo”, São Bernardo de Claraval, Obras
completas de San Bernardo V.;Madrid, BAC. 1987; pg. 583 – NC.
3 A Venerável Madre Gema Eufêmia de Jesus Giannini (1884-1971), amiga e irmã de
Santa Gema, foi monja passionista no Mosteiro tão desejado por Santa Gema em Lucca.
Alma mística de grande união com Deus, sua saúde sempre lhe trouxera grande
tribulações. Em meio a elas, em 1937, diante do Santíssimo Sacramento, teve a intuição de
que Deus queria que os locais onde nasceu, viveu e morreu Santa Gema fossem
custodiados por almas consagradas, sob a proteção de Santa Gema, e dedicadas à obras
de caridade. Por isso, fundou as Irmãs de Santa Gema – NC.
4 São Francisco de Assis (1182-1226), fundador da Ordem dos Frades Menores e, com
Santa Clara, fundador da Ordem das Damas Pobres, e também da Ordem Terceira
Franciscana. Foi o primeiro estigmatizado, recebendo os estigmas no dia 17 de setembro
de 1224 – NC.
5 Santa Catarina, terceira dominicana, recebeu os estigmas em 1 de abril de 1370,
porém pediu a Nosso Senhor e ele concedeu-lhe que estes ficassem invisíveis durante
toda a sua vida, sendo visíveis somente na hora de sua morte – NC.
6 Santa Verônica Giuliani (1660-1727), monja capuchinha, abadessa do Mosteiro de
Cittá di Castello, na Itália. Estigmatizada e grande escritora mística. Deixou inúmeros
escritos, incluindo diários descrevendo sua vida espiritual. Pela sua grandeza, muitos
desejam sua proclamação como Doutora da Igreja – NC.
7 Referência a Gl 6, 14
8 A Serva de Deus Louise Lateau (1850-1883) foi uma famosa estigmatizada belga, cuja
notícia dos estigmas se espalhou por toda Europa, sendo pesquisada por inúmeros
médicos. O seu diretor espiritual foi o Passionista Padre Serafim do Sagrado Coração
Gianmaria (1804-1879), companheiro do Beato Domingos da Mãe de Deus Barbieri, na
fundação da Bélgica, grande estudioso e autor de um famoso Tratado de Mística. Além
disso, foi professor do Padre Germano em Ere, na Bélgica – NC.
9 Trata-se da italiana Madre Joana Maria da Cruz de Rovereto, religiosa da Ordem de
Santa Clara (1603-1673). Abadessa, fundadora e grande escritora mística – NC.
10 A Serva de Deus Maria Margarida Diomira do Verbo Encarnado Allegri (1651-1677),
das religiosas Estabelecidas na Caridade. Seu processo de beatificação foi reaberto
recentemente, em 23 de maio de 2008. Estas religiosas, desde 1989, estão presentes no
Brasil. Não confundir com outra mística de nome semelhante, a Venerável Madre Maria
Diomira do Verbo Encarnado (1708-1768), monja capuchinha, abadessa do mosteiro de
Fanano. Ambas italianas – NC.
11 Chamadas graças gratis datae. “O fim é sempre superior aos meios. Agora então, a
graça santificante dispõe-nos imediatamente a união com Deus, nosso último fim; enquanto
que os carismas ou graças gratis datae, como a profecia ou o dom de milagres, somente
nos inclinam, como meios de certo modo externos, a receber a graça que une a Deus”.
Sum. Theol. I-II, q 111, a.5; apud: Fr. R. Garrigou-Lagrange, O. P., Las tres edades de la
vida interior, t. II, Madrid, Palabra, 1999, p. 931 – NC.
CAPÍTULO VIII
Percebi – diz ela – que naquela noite Gema sofria mais do que de costume
e estava em êxtases. Tomei-lhe um braço e vi grandes vestígios de sangue
vermelho. Enxuguei com um lenço que ficou todo manchado. Sofria tanto que
no êxtase eu a ouvia dizer: “Mas serão os teus açoites, ó Jesus?”; calculei
então que fosse a flagelação. Repetiu-se este fato durante todas as quatro
sextas-feiras de março de 1901.
Na primeira, aconteceu como já referi; na segunda, Gema ficou com a
carne dilacerada; na terceira, mais despedaçada ainda, a ponto de se lhe
verem os ossos; e na quarta, não se pode exprimir: eram chagas por todo o
corpo, que teriam tido a profundidade de um centímetro.
Depois de dois ou três dias tudo desaparecia. Uma vez, que eu quis atar
um pano em duas delas, ficaram sem cicatrizar, inflamaram-se, e, quando fui
cuidá-las, muito a fiz sofrer; mais tarde sararam por si, lentamente.
As chagas tinham a seguinte disposição: duas em um braço, do
comprimento de quatro a cinco centímetros e muito profundas; duas em uma
perna, redondas e maiores do que uma moeda de dois francos de prata; uma
no peito, bem no meio, na direção da garganta; duas acima dos joelhos e
muito maiores, mais compridas do que redondas; duas nos joelhos e nos
cotovelos, que descobriam quase os ossos; uma quase redonda e profunda,
sobre a planta dos pés; e duas nas pernas. Além dessas, havia outras que eu
não vi muito bem. A princípio, eram como disse: talhos; depois rasgões
profundos. E perguntando-lhe a razão, respondeu: “primeiramente, eram
açoites que eu recebia, e agora são flagelos”. E concluindo: se quiser fazer
delas uma ideia, lembre-se do grande crucifixo que temos em casa, diante do
qual Gema costumava rezar. As mesmas manchas roxas, os mesmos
rasgões da pele e da carne, igualmente longos e profundos que causavam
igual pena ao contemplá-los. O sangue corria em grande abundância e,
estando ela de pé, era tanto que corria até o chão; e se deitada, molhava não
só o lençol, mas passava a ponto de embeber todo o colchão. Medi alguns
rios de sangue e eram de quarenta e cinquenta centímetros de comprimento
e cinco de largura.
E de outra vez:
Jesus, eu Vos daria também as minhas mãos e os meus pés, mas não
posso, o confessor me proibiu. Tomai meu coração, este eu Vo-lo posso dar.
Eu Vos cederia minhas mãos, ó Jesus, mas não posso!
Agora, pois, o que falta para que possamos assegurar que Gema
atingiu o cume da santidade?; já que escreveu o apóstolo São Paulo
“Aqueles que manifestam em si a verdadeira imagem do Filho de
Deus, são os predestinados e eleitos”.6
1 Jo 3, 8.
2 Refere-se à tia Cecília Gianinni, irmã do senhor Mateus Gianinni, da família que a
acolheu. Ela acompanhou maternalmente a nossa Santa Gema com amor e cuidado. Foi
uma das mais importantes testemunhas no seu processo de beatificação e canonização.
Morreu em 1931 aos 84 anos – NC.
3 A já citada mística belga – ver nota na página 71 – NC.
4 Expressão latina significando: “eis o Homem!” (Jo 19, 5). Na iconografia cristã, faz
referência a imagem de Cristo no momento em que Pilatos mostra-o à turba, após a sua
flagelação, coberto com manto, coroado de espinhos e com a cana que, por burla,
puseram-lhe os soldados.
5 Manifestação do fenômeno chamado de hipertermia, ou incendium amoris. Também as
costelas de São Felipe Néri sofreram esse alargar, após a experiência mística da festa de
Pentecostes de 1544. Tal fenômeno ela partilha com muitos outros místicos passionistas,
como o Pai São Paulo da Cruz, a Venerável Lucia Magano, e a Serva de Deus Edvige
Carboni.
Sobre esse fenômeno, o dominicano Royo Marín aponta três graus: simples calor,
adores intensíssimos, queimadura material. Santa Gema apresentou todos os três. Cf.
Antonio Royo Marín, Teologia de la Perfección Cristiana. Madrid: BAC, 2011, pg. 926 – NC.
6 Cf. Rm 8, 29.
CAPÍTULO IX
A impressão foi tal – ela escreveu – que não posso descrevê-la. A primeira
vez que os vi, senti uma especial estima e afeição por eles; e desde aquele
dia não perdi mais nenhum sermão.
Era o último dia das Santas Missões. Todo o povo estava reunido na igreja
para a comunhão geral. Eu também comunguei com muitas pessoas, e Jesus
que, como é natural, ficou satisfeito com este ato de piedade, fez-se sentir à
minha alma e me perguntou: “Gema, agrada-te o hábito com que está
revestido aquele Sacerdote?” (e mostrou-me um Padre Passionista, que
estava a pouca distância de mim).4 Não me lembro de ter falado a Jesus com
palavras, o coração, porém, mais ainda se expressava, palpitando mais
fortemente. “Agradar-te-ia”, acrescentou Jesus, “seres revestida também com
um hábito igual?” – Meu Deus!, exclamei... E sem me deixar bem
compreender a que queria aludir, Jesus disse: ‘Serás uma filha da minha
Paixão e uma filha predileta. Um destes será teu pai; vai e revela-lhe tudo’.5
Então não tive mais medo de contar tudo ao confessor, e ele me disse que,
se Jesus não lhe manifestasse bem claramente esses fatos, não acreditaria
em tais fantasias.
I. X. P.8
Eu, abaixo assinado, atesto ter visto no mês de julho do ano de 1899, sobre
as mãos da jovem Gema Galgani, certas chagas que nada tinham de natural.
Nas palmas, via-se como um pedaço de carne sobreposto, semelhante à
cabeça de um prego do tamanho de um vintém; nas costas de ambas as
mãos um rasgão bem profundo.
A falta de carne nessas feridas parecia ocasionada por um prego
pontiagudo que tivesse sido encravado no lado oposto.
Eu e a pessoa que comigo observou, não hesitamos em dizer que eram
estigmas produzidos por uma causa toda sobrenatural.
De fato, reparando nas mãos da jovem, na quinta-feira de noite, nada
víamos; observando-as na manhã de sexta, achamo-las do modo que
descrevemos; e de novo examinando no sábado, só restava uma pequena
cicatriz avermelhada.
Na fé.
Ele (o confessor) fez como entendeu, mas tudo se realizou como Jesus
tinha predito...
Desde aquele dia em que tive a visita do médico, começou para mim uma
nova vida [...]
Com essas palavras o divino Mestre dava a entender que por mais
justa e reta que fosse aquela dedicação e confiança em seu
ministro, não se deveria abater se tivesse que perdê-lo sem ser por
sua culpa, devendo ficar satisfeita com ter sempre a Jesus.
Foram suficientes essas palavras, que Gema bem compreendeu,
para restituir-lhe a paz ao seu coração aflito, desapegá-la de todo
sentimento humano e induzi-la a entregar-se inteiramente a Deus.
E como em tudo regulava-se pelos princípios da virtude, embora
receasse que aquele bom prelado formasse uma opinião menos
favorável a seu respeito, não cessou de ter por ele a maior
solicitude, suplicando sempre a Jesus que o iluminasse e
consolasse como se deduz das cartas por ela escritas a ele e a
outras pessoas de sua íntima confiança. Até quando estava em
êxtase nos colóquios que fazia, como mostrarei depois, enquanto
desafogava com Deus o coração extenuado e traspassado de dor,
via-se muitas vezes, que a preocupava o pensamento do confessor.
Ó Jesus, ide consolar monsenhor que está tão triste! Uns julgam de um
modo e alguns de outro. Mas Vós estais mais satisfeito assim? Quando me
preferis? Agora que todos me chamam de louca ou antes, quando me
chamavam de santa? Agora, não é verdade?
Que diremos pois, caro leitor, deste sublime panegírico feito por
uma pessoa tão autorizada?
Era Mons. Camillo Moreschini, antes Padre Pedro Paulo,
Passionista, conhecido e estimado na Itália pela sua doutrina, zelo e
prudência no governo, na direção das almas e no ministério
apostólico.
Por essas raras qualidades, depois de ter sido o Superior Geral de
toda a congregação dos Passionistas, o Sumo Pontífice Pio X lhe
confiou a visita apostólica de doze importantes dioceses, e acabou
elevando-o a sede arquiepiscopal de Camerino.
Ora, de um tal personagem quem não aceitará como
importantíssimo o testemunho acerca dos prodígios que se deram
com Gema?
Deus quis reerguer esta sua Serva do desprezo em que tinha
caído na opinião de diversas pessoas por causa dos estigmas. Para
esse fim, depois do Padre Caetano, que foi o primeiro a reconhecer
a ação divina, mandou o Padre Pedro Paulo que completou tão bela
obra.
Tão bom é o Senhor com os que O temem, e tão exatas as
palavras do salmo:
Lança-te nos braços de teu Senhor, e Ele tomará cuidado de ti, nutrindo-te
como faz a mãe com seu filhinho: “Jacta super Dominum curam tuam, et ipse
te enutriet”.4
1 “É, com efeito, coisa fácil aos olhos de Deus enriquecer repentinamente o pobre” –
Eclo ٢٣ ,١١.
2 Jo 20, 27.
3 Aqui, o Venerável Padre Germano apresenta o seu maior temor, que saído do mundo
privado de Gema, ela se tornasse um nova Louise Lateau, prejudicando a sua vida
espiritual. A discrição em torno de Santa Gema, e em especial dos estigmas, foi sempre
uma preocupação para ele – NC.
4 “Depõe no Senhor os teus cuidados, porque Ele será o teu sustentáculo” – Sl 55.
CAPÍTULO XI
Monsenhor, o que uma de minhas tias me fez ontem à noite? Quando fui ter
com ela, veio toda encolerizada e me disse: “Esta noite não tens a tua irmã
para defender-te (era a Julia). Mostra-me donde é que saiu todo aquele
sangue, senão acabo com a tua vida à força de pancadas’. Eu me
conservava calada e ela com uma das mãos me segurava pelo pescoço, e
com a outra queria despir-me; mas não o conseguiu. Naquele momento
tocaram a campainha e ela me deixou. Mas não acabou aqui; quando fui me
deitar, voltou e disse que era hora de deixar aqueles fingimentos e que eu
tinha enganado a todos. “Olha, disse, se não me dizes de donde saiu aquele
sangue, não te deixarei mais sair de casa sozinha e não te mandarei mais em
nenhum lugar”. Imagine, ao ouvir aquelas palavras, pus-me a chorar e não
sabia que fazer. Finalmente, resolvi falar, e respondi-lhe assim: “São as
blasfêmias; ao ouvir blasfemar, vejo que Jesus sofre tanto e eu sofro com
Ele; meu coração comprime-se e sai aquele sangue”.
Não foi a única vez que Gema teve que sofrer em casa por não
poderem seus parentes compreender a ação maravilhosa do
Senhor. A outra tia, a boa D. Helena, adoentada como andava, não
podia sempre acompanhá-la à igreja, e D. Carolina não queria que
ela fosse só.
Para afligi-la ainda mais, sentia a curiosidade de algumas pessoas
da casa, que a espiavam continuamente quando estava no quarto:
pelas fechaduras procuravam ver alguma coisa. Outras vezes,
surpreendendo-a pelas mesmas gretas em êxtase, raciocinavam
entre si de diversos modos, e convidavam as amigas a virem ver a
Gema naquele estado.
À vista disso, a pobre donzela se queixava com o seu confessor e
com Nosso Senhor, que lhe tinha também ordenado que
conservasse aqueles fatos ocultos aos olhos dos profanos.
Nestas condições podemos avaliar o contentamento de Gema,
quando se apresentou uma ocasião favorável de se afastar dos
seus, e ir para uma habitação de santos, onde podia livremente
ocupar-se só com Deus, sem ser perturbada por ninguém.
Entretanto, a boa senhora D. Cecília, tendo assim ensejo de
admirar mais a ingênua simplicidade e a singularíssima modéstia da
nossa jovem, foi-se afeiçoando cada vez mais a ela. No princípio,
ficou também um pouco perplexa a respeito dos fenômenos
extraordinários que frequentemente se davam. E para compreendê-
los, observava-a continuamente, vigiando seus menores
movimentos. Gema, pelo seu lado naturalmente reservada e
modesta, esforçava-se o quanto podia para que não fossem
percebidos. Tão indigna como se considerava, receava dar
escândalo à sua benfeitora quando esta viesse a saber dos
inúmeros favores que Deus lhe concedia.
Mas de nada serviu a sua delicada solicitude: querendo o Senhor
que os dons da sua graça fossem conhecidos, assim, muitas vezes,
os segredos da piedosa donzela eram revelados. Eis com que
termos ela refere em uma carta ao confessor uma destas suas
desventuras, como costumava clamá-las:
Ontem, Jesus fez-me sofrer muito: todo o dia tive o suor de sangue; não
estava porém em casa e sim com D. Cecília Giannini. Jesus me recomenda
continuamente que não deixe perceber nada, senão Ele me castigará. Diz-me
sempre que me devo envergonhar de mostrar-me a qualquer pessoa, porque
minha alma está cheia de defeitos.
1 Seu irmão, Heitor Galgani, veio para o Brasil. Residiu em Araraquara, no estado de
São Paulo. Sem fé, nem mesmo casou-se na Igreja. Recebeu através de um amigo uma
estampa de sua irmã, que como recordação manteve como amor fraternal. Em 1923, um
sacerdote redendorista, Padre Zartman, devoto de Santa Gema, foi chamado para vê-lo na
sua enfermidade, e espantou-se com um descrente irmão de uma santa. Contou-lhe as
maravilhas da vida da sua irmã, que ele desconhecia, e retornou para Deus. Falecendo na
Paz do Senhor em 1927. Fernando Piélagos, Santa Gema Galgani, São Paulo: Paulinas,
٢٠٠٤; p.١٠٦-١٠٥ – NC.
2 Não parece ser oriunda do Apóstolo, mas de Prov. 21, 30: “non est sapientia non est
prudentia non est consilium contra Dominum” – NC.
3 “Anneta” em italiano: era a primogênita da família Giannini. Casada com Adolfo Perna,
teve a honra participar da canonização de sua amiga na Basílica de São Pedro, a 2 de
maio de 1940 – NC.
4 Era uma famosa cidade de veraneio; ainda hoje pertencente à Província de Lucca –
NC.
CAPÍTULO XII
Quanto à nossa Gema, digo-lhe somente que cada vez acho nela coisas
mais extraordinárias, e quando a contemplo, parece que vejo em seu
semblante uma pessoa que não é deste mundo. Que felicidade a de conviver
com este anjo! Um mundo de palavras não seria suficiente para descrever o
seu estado. É um verdadeiro anjo encarnado, isto exprime tudo!
Não sou eu também pobre? Jesus me tirou tudo, e entretanto não me deixa
faltar coisa alguma; pelo contrário, sou muito bem tratada! Mas e os outros
pobres? Devem sofrer todas as necessidades?
Por esta última frase é fácil compreender como a santa virgem, por
mais estimada que se visse, e tratada com o maior carinho e
atenções, sentia claramente a humilhação da sua posição, e de
certo modo se envergonhava de si mesma. Porém, resignada como
era à vontade de Deus, conservava-se calma, esperando que Ele
dispusesse dela e de tudo o que lhe dizia respeito, conforme o seu
beneplácito. E soube sempre dissimular tão bem, que jamais
alguém percebeu a pena que, por esse motivo, pesava sobre o seu
coração.
As dores que o Senhor dera a mãe dos meninos, eu as tomei sobre mim, e
posso dizer-lhe que são dores atrozes. Padre, nem sei mesmo o que será de
mim.
PADRES PASISONISTAS:
GEMA E O SEU NOVO DIRETOR ESPIRITUAL (1900-1903)
Por que hoje não me atendeis, ó meu bom Jesus? Fizestes tanto só por
uma alma e não quereis agora salvar aquela? Salvai-a Jesus, salvai-a... Sede
bom, Jesus, não me faleis assim... Na boca de quem é a própria misericórdia,
esta palavra – abandono – soa tão mal.
Não a deveis dizer. Não medistes o sangue que derramastes pelos
pecadores, e agora quereis pesar a quantidade dos nosso pecados?... Não
me atendeis? A quem então devo recorrer?
Vosso sangue foi derramado tanto por ele como por mim. A mim me salvais
e a ele não?
Não me levantarei mais daqui: dizei-me que o salvais. Ofereço-me como
vítima por todos, mas particularmente por ele prometo-Vos não recusar coisa
alguma: dai-me! É uma alma... Pensai, Jesus, que é uma alma que Vos
custou tanto!
Tornar-se-á bom, não pecará mais.
Eu não apelo de nenhum modo para a Vossa Justiça, mas para a Vossa
Misericórdia. Vamos, Jesus, ide buscar esse pobre pecador, dai-lhe um
aperto de coração, e vereis como se converterá... experimentai ao menos...
Ouvi Jesus; dizeis que já lhe destes muitas inspirações para convencê-lo,
mas nunca o chamastes de filho; Ensaiai, pois, dizei-lhe que sois seu pai e
ele vosso filho.
Vereis, vereis como a este doce nome de pai, aquele coração endurecido
se abrandará...
O Senhor, para mostrar à sua serva quanta razão ele tinha de ficar
firme, começou a manifestar-lhe uma a uma, com as mais
minuciosas circunstâncias de tempo e de lugar, as culpas daquele
pecador, concluindo já ter ele enchido a medida.
A pobre donzela pareceu ficar perturbada; deixou cair os braços e
deu um profundo suspiro, como quem perde a última esperança de
vencer. Porém, ergueu-se logo daquele desânimo e voltou à luta.
Eu sei... eu sei, ó Jesus, que ele vos tem ofendido muito, mas eu vos tenho
ofendido ainda mais, e entretanto tendes usado de misericórdia para comigo.
Bem o sei, meu bom Jesus, que ele vos fez chorar muito, mas não penseis
em seus pecados, mas só no sangue que derramastes por eles. Quanta
caridade tendes tido comigo, ó Jesus!
Peço-Vos que todas as provas de amor que me tendes dado, Vós as
dispenseis agora ao meu pecador. Recordai-Vos, ó meu bom Jesus, que eu
quero vê-lo salvo.
Triunfai, triunfai peço-Vos, por caridade!
Bem – exclamou – eu sou uma pecadora! Vós mesmo dizeis que pior do
que eu não se pode achar. Sim, eu o confesso não mereço que me atendais.
Mas apresento-Vos outra intercessora em favor do meu pecador; é a vossa
própria Mãe, que intercede por ele.
Oh! Sereis capaz de dizer não à vossa Mãe?2 Certamente que a ela não
direis não.
Respondei-me, pois, Jesus, que perdoais ao meu pecador.
Vê-se por estas palavras que a maior parte desta direção era feita
por meio de cartas. O Senhor, porém, querendo que uma alma, que
lhe era tão cara, fosse melhor atendida, dispunha os sucessos de
modo que frequentemente se me apresentassem ocasiões de viajar
e passar pela cidade de Lucca. Então, hospedando-me, com
permissão dos meus superiores, na casa da família Giannini, tinha
toda a facilidade de ajudar a esta santa donzela e continuar meus
estudos e minhas experiências a respeito de sua alma.
Certamente era uma consolação dirigir uma alma tão virtuosa,
desapegada de coração e de espírito de todas as coisas da terra, e
mais ainda de si mesma; humilde, dócil, afetuosa, tão pronta para o
sacrifício, cheia de fé e de amor celeste, e ao mesmo tempo tão
natural em tudo, que ninguém a distinguiria de qualquer outra jovem.
Não me demorarei aqui em descrever todas as raras virtudes da
minha filha espiritual, tendo que falar sobre esse ponto com toda a
minuciosidade nos capítulos seguintes.
Direi somente que ter que tratar com ela, ocupar-me com seu
espírito, auxiliá-la para que se aperfeiçoasse cada vez mais e
correspondesse fielmente aos impulsos da graça divina, não me
ocasionava o menor enfado; pelo contrário, proporcionava-me
dulcíssima satisfação e podia estar longas horas conferenciando
com ela a respeito de assuntos espirituais, sem perceber o passar
do tempo.
Gema falava pouco, até mesmo com o seu diretor, custando a
responder às perguntas; porém, suas palavras eram tão justas,
acertadas e repassadas de celestial unção, que encantava ouvi-la.
Muito mais expansiva era quando escrevia. Parecia que a
ausência do interlocutor lhe tirava a dificuldade que sempre sentia
em manifestar a sua alma; assim, escrevia longas cartas, sem arte e
conforme lhe ditava o coração e o espírito de Deus; mas eram tão
corretas que nada deixava a desejar. Primeiramente eram dirigidas
ao confessor, depois ao diretor com mais frequência e inteira
confiança.
Eu guardava as suas cartas; sempre as relia e meditava sobre
elas, confrontando umas com as outras e, cada vez mais me
confirmava o bom espírito daquela donzela, então a fazia correr a
passos de gigante no caminho da santidade.
Quantas vezes não chorei enternecido e maravilhado e, erguendo
as mãos ao céu, apresentava a Deus aquelas página admiráveis,
frutos da sua divina graça! Em 1909, publiquei grande parte delas
em um grande volume, juntamente com outros escritos. Queira o
leitor lê-los se ainda não os conhece e ele me dará razão.
Não sei como, no presente capítulo, tomei para mim o título de
novo diretor de Gema, pois que por mais que esta Serva de Deus
assim o entendesse, não posso concordar com ela. Pois o confessor
e diretor de Gema, desde seus primeiros anos até à morte, foi
sempre o Bispo Dom João Volpi.3 Não fiz mais do que auxiliá-lo, por
dispor de mais tempo para ocupar-me com ela, não estando preso
pelas conveniências de prudência e cautela que lhe impunha o seu
cargo, obrigando-o a ceder de um modo reservado e mostrar até
oposição e desprezo. Mas o verdadeiro diretor de Gema era mesmo
o Espírito Santo,4 que se compraz em tomar especialmente para si o
cuidado de certas almas; era seu divino Esposo Jesus, sua celeste
Mãe e o anjo da guarda, como já vimos e veremos ainda mais.
O que está fora de dúvida é que, por ter eu conhecido e ajudado a
esta Serva de Deus, meu pobre espírito recebeu dons
extraordinários. Senti reanimar-se em meu coração a fé, o desejo do
céu, o amor à virtude.
A vós rendo infinitas graças, ó Jesus, que, por caminhos tão
admiráveis, provedes ao bem das almas que a Vós só desejam
agradar!
1 “[...] e o que é vil e desprezível no mundo, Deus o escolheu, como também aquelas
coisas que nada são, para destruir as que são” (1Cor 1, 28).
2 Por isso, a Tradição da Igreja, cristalizada na Ladainha Lauretana, acostumou-se a
chamar Maria Santíssima de Mãe de Misericórdia e Refúgio dos Pecadores – NC.
3 Ainda que hoje seja clara a origem dos fenômenos extraordinários de Santa Gema, a
prudência de Mons. Volpi era justificada. Ele amava esta sua filha espiritual, e pôde
aprender muito na direção de Santa Gema. Mas não resta dúvida que a Providência de
Deus, deu Santa Gema à Congregação Passionista, e que sentia que o seu pai espiritual
era o Venerável Padre Germano – NC.
4 O Venerável Padre Germano apresenta aqui uma realidade maravilhosa: é o Espírito
Santo quem gera os santos. Mas que responsabilidade a do diretor espiritual! Para auxiliar
os sacerdotes, a Congregação para o Clero preparou um subsídio para confessores e
diretores espirituais: o Sacerdote ministro da Misericórdia Divina – Subsídio para
Confessores e Diretores Espirituais. Importante ressaltar o que diz o seu parágrafo 78: “O
objetivo da direção espiritual consiste principalmente em ajudar a discernir os sinais da
vontade de Deus. Normalmente, fala-se de discernir a luz e as moções do Espírito Santo.
Existem momentos nos quais tais consultas são mais necessárias. É necessário levar em
conta o “carisma” peculiar da vocação pessoal ou da comunidade na qual vive quem pede
ou dá o conselho” – NC.
CAPÍTULO XIV
AS VIRTUDES:
O ESPÍRITO DE SANTIDADE PECULIAR À SERVA DE DEUS
1 Santa Gema foi agraciada com as mais extraordinárias graças: como estigmas, o suor
de sangue, o incendium amoris, etc. Mas não repousava em nada disso a santidade de
Santa Gema. É a sua simplicidade que a distingue. A espiritualidade de Santa Gema é
aquela da simplicidade evangélica. E é esse frescor que emana de todos os seus escritos.
(...) O estigmatino Padre Cornélio Fabro fala que a experiência mística de Santa Gema é
“diretíssima”; não será sua simplicidade que abriu o caminho reto até a união? Divo Barsotti
dirá: “É necessário tornar-se simples como Gema. À simplicidade toda as coisas falam uma
linguagem que transcende a poesia”. Tito Paolo Zecca, Gema Galgani, Milano: Pauline,
1996; p.7 e 158 – NC.
2 Mt 18, 3.
3 Sum. Theo. II-II, q.109 – a.3.
4 Cf. Mt 5, 37.
5 Cf. 1Sm 3.
CAPÍTULO XV
DESAPEGO:
OS MEIOS DE QUE GEMA SE SERVIUPARA SE ELEVAR À
GRANDE PERFEIÇÃO
Meu pai, minha tia que, como sabe, estava doente, morreu. Ela era boa,
mas recomende-a a Jesus, se ainda precisa de sufrágios.3 Tonino também
faleceu, pobre irmão! Sofreu tanto! Diga a Jesus que use de misericórdia
para com ele.
Vós a conheceis, Sr. Padre, quanto era boa esta minha irmã, mas Jesus a
quis para Si: anteontem, Júlia morreu; porém, não fiz exclamações, não
chorei, porque sabia que Jesus não queria. Viva Jesus!
O Senhor sabe, sr. Padre, quanto se amavam essas duas irmãs. A nossa
pobre Gema, porém, não se deixou abater, e fez logo o oferecimento do
sacrifício a Deus pela alma da irmã e depois agradeceu a Jesus. Veja que
virtude heroica! Quanto a mim, eu chorava muito, e Gema me consolava
dizendo: “Não chore”.
Esta bendita donzela por mais que fosse toda do Céu e não da
Terra, e no seu exterior aparentasse indiferença e retraimento para
com todos, possuía um coração terno e afetuoso. Não sabendo,
pela sua ilibada pureza, o que fosse amor sensual ou simplesmente
humano, não estava por esse lado sujeita a dúvidas ou escrúpulos.
Amava com toda a liberdade do espírito a todos aqueles com quem
vivia.
Não era fácil de perceber, mas quem a observasse atentamente,
de perto, veria que este anjo sabia amar e, em certos casos,
demonstrava-o com muitos obséquios e finezas.
Contudo, seu perfeito coração não se prendia a ninguém, e
receber ou não correspondência em suas afeições, era para ela o
mesmo. Quando sentia a dor da perda ou da ausência de uma
pessoa querida, este sentimento era momentâneo. E logo corria na
presença de Jesus, e Lhe dizia: “De bom grado Vos ofereço mais
este sacrifício, ó meu bom Jesus! Só com Jesus, só!” – e
imediatamente se acalmava.
Até mesmo para com o seu diretor espiritual, era completo o
desapego. Nunca se queixou com ele, quer da falta de visitas, quer
da demora das suas respostas epistolares.
Não se zangue comigo – escrevia-lhe –, se lhe digo que preciso muito vê-
lo, mas, se não vier, fico contente igualmente. Em todo o caso, pergunte a
Jesus; se Ele lhe disser que venha, venha depressa! Escrevi três cartas e o
senhor não me respondeu nunca: parece-me que Jesus quer que o senhor
me aconselhe como devo regular-me neste ponto. Prometo-lhe ser boa e
obedecer-lhe, mas, se não tem tempo nem vontade de escrever, faça como
quiser; entreguei-me toda à vontade de Deus!
Eu quero ser toda de Jesus – dizia –, e que preciso eu amar mais nesta
Terra, desde que possuo a Jesus? Oh! Mundo, e todas as criaturas, nada
sois para mim, nem eu sou para vós. Assim, não posso nem quero amar-vos
mais.
Vivo neste mundo, mas aqui me considero como uma alma desterrada –
veja a figura expressiva: “como uma alma desterrada”–, porque nunca, nunca
o meu pensamento se afasta de Jesus; fora de Dele tudo é desprezo!
Estou bem contente vendo que o tempo passa depressa e menor é a minha
permanência no mundo, onde nada me atrai. Meu coração aspira sempre por
um bem tão grande, que não acho entre os objetos criados; por um bem que
me satisfaça, me console e me dê repouso.
Olhe, meu pai – dizia-me –, trata-se de uma mãe de família com tantos
filhos. Que seria destes meninos se perdessem a mãe? Permita-me que faça
ver isto a Jesus. Que falta me fariam dois anos de menos?
Ontem o senhor me disse que rogasse a Jesus que me tirasse todos estes
fatos extraordinários ou que lhe desse um conhecimento perfeito de tudo – ou
à pessoa que o Senhor mandasse. Rezei muito, pedindo esta graça com toda
a força de minha alma. Pareceu-me que minha cabeça me prometeu fazer
em tudo a vontade do confessor. Disse a Jesus que, se é Ele que
verdadeiramente me aparece, está tudo bem; mas se é o demônio, que se vá
embora, que não o quero; e se é a minha cabeça, não a suportarei mais e a
despedaçarei. Se julga que estas minhas palavras não são sinceras, diga-
me, pois não quero proferir mentiras nem fazer nenhum pecado.
Que Jesus faça como quiser. Que Ele esteja contente e todos também
contentes. E por ventura mereço eu consolações? Basta que eu O possa ver
na outra vida; não me importa sofrer nesta!
1 Cf. Lc 9, 23.
2 O Venerável Padre Germano parece querer salientar aqui o trabalho da graça de Deus,
e o esforço pessoal de Santa Gema, no caminho de santificação. E para tal, acaba por
pintar com cores muito fortes certas características femininas, bem ao gosto do início do
século XX – NT
3 Orações e sacrifícios para a libertação do Purgatório.
CAPÍTULO XVI
A BOA GEMA:
DA SUA PERFEITA OBEDIÊNCIA
Espero não ser molesto ao leitor com estas citações, antes, creio
que lhe será agradável, embora a custo de alguma repetição,
conhecer melhor pelas suas próprias palavras, a bela alma da boa
Gema:
Dá-me licença, meu pai, que eu renove a Jesus o meu pedido de me tirar
depressa desta vida para O possuir na glória? Vivo sempre tremendo pelo
receio do perigo de ofendê-Lo.
Meu Deus, que hei de fazer? Assim que percebi – conta ela mesma –,
levantei-me, fugi depressa para longe, deixei Jesus, e assim obedeci e fiquei
satisfeita.
Pobre Jesus! – dizia mais tarde – quantas vezes tenho sido incivil para com
Ele, tenho-O repelido resolutamente, para obedecer ao confessor; e Ele tão
bom, não se mostrava triste comigo!
Que fazer? Jesus se demorava ainda, mas via bem o embaraço em que eu
estava. Para obedecer, devia despedir a Jesus, porque a hora fixada se tinha
esgotado. Jesus, ainda me disse: ‘Dá-me um sinal de que daqui em diante
sempre me obedecerás’. Porém, eu exclamei: Jesus, ide-Vos embora, que
não Vos quero mais.3
Meu pai, de joelhos lhe peço perdão de tudo. Não, não, nunca mais
pensarei em fazer o que fiz, nem em dizer o que disse contra sua ordem.
Creia que todo o dia do Domingo me esteve presente a sua repreensão. Terei
todo o cuidado em nunca mais fazer profecias sobre a chegada das suas
cartas. Do que eu fiz e disse, me arrependo muito, detesto-o, e não o
repetirei. Escreva para o futuro quando quiser, que eu não ousarei infringir a
sua ordem.
Meu pai, venci! Hoje cedo, antes da Sagrada Comunhão, soube, com
certeza, que esta manhã devia vir uma carta sua. Sofri um pouco pelo grande
desejo que sentia de dar essa notícia: mas abafei-o e conservei-me calada,
conforme a obediência me mandava. Assim, tudo vai bem, não é mesmo?
Estou pronta – respondeu-me logo a boa Gema – a fazer tudo que o senhor
me mandar. Espero que Jesus me dê forças para obedecer, e estou certa de
que na primeira sexta-feira próxima (do mês), não rejeitarei mais nenhum
alimento.
Em seguida:
Jesus me prometeu mostrar-lhe sua vontade a meu respeito, contanto que
eu lhe peça com humildade, como já tenho feito. Assim, estou em paz,
esperando que a santíssima vontade de Deus se cumpra em mim em tudo.
1 Lc 9, 23.
2 Designa-se aqui por confessor o Servo de Deus Mons. João Volpi; e diretor, o
Venerável Padre Germano, autor do livro – NC.
3 Aqui aparece a obediência heroica de Santa Gema. Ainda que interiormente chamada
por Deus, atendia o critério objetivo da obediência ao diretor – NC.
4 Como vimos na nota da página 82: Manifestação do fenômeno chamado de
hipertermia, ou incendium amoris. Também as costelas de São Felipe Néri sofreram esse
alargar, após a experiência mística da festa de Pentecostes de 1544. Tal fenômeno ela
partilha com muitos outros místicos passionistas, como o Pai São Paulo da Cruz, a
Venerável Lucia Magano, e a Serva de Deus Edvige Carboni.
Sobre esse fenômeno, o dominicano Royo-Marín aponta três graus: simples calor,
adores intensíssimos, queimadura material. Santa Gema apresentou todos os três. Cf.
Antonio Royo Marín, Teologia de la Perfección Cristiana. Madrid: BAC, 2011, pg. 926 – NC.
5 Pr 21, 28. Texto da Vulgata de São Jerônimo.
CAPÍTULO XVII
A BOA GEMA:
DA SUA PROFUNDA HUMILDADE
Em seguida repete:
Por caridade, meu pai – escreveu-me –, não fale de mim com ninguém,
senão para dizer o que sou na realidade. Humilhar-me-ei, converter-me-ei,
pedirei perdão pelo engano que uso para iludir a boa fé de todos, e Jesus,
infinitamente bom, me perdoará.
Ora, falando dos seus dons naturais, ela possuía muitos e raros;
viveza e perspicácia de espírito, fortaleza de alma, caráter resoluto;
contudo, vendo-a e conversando com ela, nada se acha de singular.
Pedia sempre conselho, auxílio e direção – parecendo não ter
capacidade de, por si mesma, tomar qualquer decisão.
Tinha aprendido bem no colégio o francês, o desenho e a pintura,
mas ninguém, depois que ela deixou os estudos, lhe ouviu uma
palavra nessa língua, ou percebeu que pegasse num pincel ou tintas
para desenhar. Soube-se o quanto era versada nessas artes
somente pelas professoras, depois da sua morte.
Gema também tinha uma grande aptidão para a poesia, mas não
se serviu deste talento, por mais instâncias que lhe fizessem,
dizendo ser uma vaidade, ou ao menos uma perda de tempo.
Possuía também uma belíssima voz e gosto para o canto. Quem
conhecia a sua grande paixão para louvar a Jesus e à sua celeste
Mãe, podia esperar que, ao menos estando só no trabalho,
prorrompessem de seus inocentes lábios piedosos cânticos. Mas
não, jamais alguém a ouviu cantar, nem à meia voz.
É claro que estas mortificações praticadas constantemente por
uma donzela de tão pouca idade, de gênio tão animado ativo, são
sinais evidentes de acrisolada virtude.
Que direi dos dotes da sua alma? Gema possuía-os em grau
extremo; era rica de um cortejo de virtudes que a punham ao lado
das almas mais privilegiadas, cuja vida é tão admirada. Tinha dons
tão extraordinários que causa espanto as suas simples descrições.
Todos os percebiam e se edificavam; só ela mostrava não conhecê-
los, ou não lhes prestava atenção, a não ser para humilhar-se ainda
mais diante de Deus e dos homens.
Quantas vezes não se deteve em importunar ao Senhor para que
lhe tirasse aquelas graças assinaladas, que ela pensava não lhe ser
digna de tê-las, e as desse antes a outros que melhor soubessem
cor-responder!
Não me mandeis fazer – ela dizia a Jesus – o que não está a meu alcance,
porque não sirvo para nada. Vede como tantas graças que me concedeis, e
não sei como hei de corresponder! Procurai, procurai outra pessoa que as
mereça mais do que eu.
Certa vez, quando Gema se afligia por este motivo, o Senhor, que
para ela era um bom Mestre no exercício da humildade, para melhor
confirmá-la nesta virtude, fez-lhe sentir no coração as seguintes
palavras: “Faze o que podes; quero servir-me de ti exatamente
porque és a mais pobre e pecadora de todas as minhas criaturas”.
Ela, com ingênua familiaridade, respondeu: “Jesus, farei o que Vos
parecer melhor, e estarei contente”.
Noutra ocasião, Deus lhe fez contemplar a própria alma ao clarão
da sua infinita luz, para que se humilhasse àquela vista, e dizia-lhe
ao coração que devia envergonhar-se de aparecer diante das outras
pessoas. Gema não só se humilhava e corava de si mesma, como
ficava aturdida. “Se meu pai visse”, confiou-me um dia, “como minha
alma é feia! Jesus me a tem mostrado”.
Também para se fazer amar ainda com mais generosidade, o
bondoso Senhor mostrava não lhe dar importância, apresentando-
lhe com um ar muito severo.
Jesus – dizia ela – mal me lança um olhar e, se olha para mim, está tão
sério que às vezes não tenho coragem de encará-Lo; parece-me até que me
repele! Grande tormento é este! Veja pois, meu pai, estou quase abandonada
de Jesus pelos meus pecados. Que farei agora? A quem recorrerei?
Pergunte a Jesus, e ouça o que Ele lhe disser.3
Deveria pensar, meu caro pai, em tudo o que me falta para ser digna filha
de Jesus, e em vez disso... – Estes pontos, que muitas vezes Gema usava,
significam o muito que ela via, sentia e não podia exprimir – deveria combater
valorosamente, vencendo-me; e em vez disso... Não me resta senão
humilhar-me sob a mão poderosa de Deus, e rezar sem procurar a minha
satisfação.
Era esta uma chaga que a piedosa virgem tinha aberta no meio do
coração, a qual ao mais leve toque se avivava e derramava sangue.
Eis que estamos no mês de maio – escrevia ainda –, penso nos grandes
benefícios que me fez a minha Mãe nos primeiros anos de minha vida, e
envergonho-me porque não tenho correspondido àquele coração e àquela
mão que, com tanto amor me os tem proporcionado. Pelo contrário, e o que é
pior é que só com ingratidões tenho compensado os grandes benefícios que
Ela me faz.
Peço a Jesus – escrevia-me –, paciência, não para mim, mas para esta tia
que tanto se preocupa comigo. Eu não queria nada do que ela me faz. Se
visse, meu pai, em certas ocasiões ela me prefere aos outros, chega a trazer
o fogo para me aquecer o leito. Ora, isto é coisa que se faça comigo? Diga-
me, a mim que mereceria ser tratada como uma galinha (como me diz o
confessor); em vez disso enche-me de carinhos e minha boca não se abre e
eu não lhe sei dizer nem um obrigado. Oh! Se eu pudesse ao menos com
minhas fracas orações proporcionar algum bem a quem tanto me ajuda!
Gostaria que todos me considerassem como uma escrava.
Noutra carta:
Se soubesse, meu pai, de que meios Jesus usou para confundir a minha
soberba! Oh! Se conhecesse quanto sou má! Quem me dera a virtude
necessária para atrair a Jesus? Reze, e faça rezar a fim de que Ele me dê
brevemente as graças necessárias para reparar minha tão grande miséria,
esclarecer minha mente a fazer-me conhecer as horríveis trevas em que
estou.5
Continua:
Mande rezar por mim todas as almas santas, a fim de que, por mais baixa e
indigna que seja, Jesus se glorifique na minha pobre alma.
Eu rezei, sim; mas o Senhor sabe muito bem que as minhas pobres
orações são fracas e sem valor, e Jesus escondido, não as atenderá.
Sabe, meu pai, Jesus afinal se cansou de mim pela minha grande frieza;
mas tem tanta razão! Por isso agradeço-Lhe sempre e adoro-O.
Eu sei, eu sei porque Jesus permite que eu sofra assim do demônio. Eu lhe
direi na confissão, meu pai, mas tenho-me arrependido tanto! Parece-me que
o meu próprio anjo da guarda se envergonha de estar perto de mim.
Se o Senhor achar bom, meu pai, diga ao anjo que fique escondido para
não se deixar ver pelos outros.
Veja, meu pai, como estou sempre tão atrasada, como me repugna o
sofrer! Que fortaleza de espírito! Quase que me atrevo a escolher das mãos
de Jesus, quais os sofrimentos que quero e quais os que não quero. Reze
pela minha alma.
Já há muito tempo que lhe digo certas coisas, e assim não devia ter mais
acanhamento; mas, em vez disso, sinto que sempre que devo escrever ou
confessar-me, este se aumenta. Mas não é vergonha nem sei como exprimi-
lo; é quase medo.
Mas de que enganos podia ser capaz esta alma tão cândida, que
nem sabia como era possível enganar a alguém?
Que ela mesma o certifique, como me disse uma vez, fazendo-me
a seguinte angélica pergunta:
Quisera que o senhor, meu pai, me explicasse o que quer dizer engano,
porque eu não queria enganar a ninguém.
Eu me esforço por ocultar tudo; mas temo que num movimento imprevisto
outros possam saber o que Jesus quer que eu guarde em segredo. Pelo
caminho, na Igreja, procuro disfarçar, mas não o consigo sempre; e assim
podem dedicar-me uma estima que não mereço.
Era também este seu grande receio, que lhe fazia desejar com
ardor encerrar-se num convento. Além de outros motivos, pensava:
na clausura estarei oculta aos olhos dos mundanos.
Como já disse, em todo o tempo em que dirigi esta bendita
donzela, eu a vi sempre indiferente a tudo, sem desejos,
inclinações, nem vontade própria, como se estivesse inteiramente
morta a si mesma. Somente neste ponto de encerrar-se no convento
é que a achei tão firme, que tive muitas vezes de repreendê-la e
mortificá-la. Em quase todas as suas cartas com muita vivacidade
volta a este assunto:
Meu pai, não me deixe no mundo. O mundo não é feito para mim; tenho
medo. Venha depressa a Lucca e feche- me no convento. Oh! Porque me
deixa assim exposta aos olhos de todos? E que seria de mim, se viessem a
saber certas coisas?
E assim continuou por muito tempo até que Deus lhe fez conhecer
que tinha outros desígnios para ela. Este temor excessivo, unido a
uma reserva ilimitada em conservar-se oculta até aos olhos dos
seus diretores, quando não era grande a necessidade de se
manifestar a eles, nos fez perder muitas notícias importantes da vida
desta virgem. Mas o Senhor assim permitiu para deixar à nossa
imitação um perfeito exemplo de humildade.
Cheguei quase a dizer que o coração de Gema sentia como uma
ferida mortal, quando vinha a saber que alguém mostrava ter dela
boa opinião.
Muitas vezes recebia cartas de pessoas importantes. Para
poderem aproximar-se dela, combinavam com as pessoas da
família para que não desconfiasse do motivo da visita. A boa
donzela procurava, porém, logo afastar-se como costumava, e
esconder-se.
Quando, porém, a obediência a obrigava a atendê-las, via-se a
violência que sofria, como quem está andando sobre espinhos; e
logo que podia, saia, com algum pretexto ou de alguma forma
premeditada, embora se expusesse a passar por extravagante.
Assim, recordo-me que, entre outras, uma vez achando-me
naquela casa, apresentou-se um respeitável prelado que desejava
vê-la. Gema, não podendo eximir-se, logo quando a chamaram,
correu a apanhar um grande gato da casa e, parecendo divertir-se
com ele, fazendo-lhes carícias e festas infantis (o que nunca tinha
feito antes em toda a sua vida) apresentou-se àquele prelado. O
artifício deu o resultado que ela desejava, pois ele sacudiu os
ombros e deu-lhe pouca importância. Ela, então, alegre por ter
obtido o seu intento sem mais comprimentos ao importuno visitante,
saltando com o gato nos braços, se retirou.
Ditosa loucura que aos olhos de Deus é sabedoria e virtude, Bem-
aventurada humildade, que conservando o homem no seu lugar,
inclina o Senhor a descer para ela e cumulá-lo de graças: Humilibus
dat gratiam!7
Mas continuemos e consideremos detidamente o segundo motivo
que induzia a esta Serva de Deus a humilhar-se tanto, isto é, os
inúmeros pecados que ela pensava cometer a cada passo, e os
defeitos de que se julgava possuída.
Não quero pecar – dizia –, mas sou tão má! Procuro não fazer nenhum
pecado, mas por mais que me esforce, sempre receio. O mal está em que
não percebo quando peco. Só o percebo depois que está feito, só Jesus sabe
que eu não o faria.
Mas será mesmo verdade – dizia-me com ansiedade –, que Jesus, está
contente com minha alma? Oh! Como muitas vezes me envergonho e tremo
ao ver-me tão impura na presença de Jesus, que é a própria pureza! Tenho
desconhecido muitas vezes a Jesus, tenho-me revoltado quando me
chamava. Meu pai, peça repetidamente a Jesus o perdão de meus pecados;
diga-Lhe que, para reparar as minhas culpas, não me parecerão suficientes
mil dores no corpo e na alma. Oh! Meu Deus, o castigo nunca será tanto
quanto mereço! Castigai-me embora, mas tirai-me o peso de tantos pecados
meus, que me oprimem e me esmagam. Ai de mim, se por um momento que
fosse, eu perdesse de vista minhas culpas e iniquidades! Oh! Que desgosto
sinto de mim mesma; Jesus é por mim desrespeitado! Só me conforta um
pouco entre tantas misérias a boa vontade que me parece sentir.
Estas e outras palavras, repetidas sob mil formas, cada qual mais
expressiva e tocante, aparecem quase em todas as cartas da
humilde Serva de Deus, especialmente quando escrevia estando em
êxtase.
A respeito deste sentimento tão forte e constante, não me lembro
de ter lido coisa igual na vida de outras santas. Uma vez Jesus lhe
apareceu chorando; e ela, como já referi, falando na sua ilimitada
simplicidade, perguntou-Lhe porque chorava. Depois, lembrando-se
desta aparição, me disse um dia:
Se algum dia, meu pai, visse que está minha alma em perigo, si visse que
estou nas mãos do demônio, pense nisto e ajude-me, pois quero salvar
minha alma a todo custo. Que devo fazer para isso?
Oh! Meu pai, ainda não pode avaliar a grande necessidade que tenho dos
seus conselhos! Se soubesse o alívio que sinto quando recebo umas linhas
suas! As suas palavras me animam a sofrer e a chorar. Ajude-me, ajude-me,
se não ver-me-á em breve reduzida a cinzas de pecados.
Não era tanto pelo perigo de perder sua alma e condenar-se que
Gema tinha esse horror ao pecado, como, e muito mais, pelo amor
que tinha a Deus a quem o pecado ofende.
Como este amor tinha atingido um grau tão eminente, pode-se
compreender que a sua contrição pelas grandes afrontas que
julgava ter cometido, e continuava a cometer, contra o Sumo Bem,
fosse incomensurável.
Perdoai-me, Jesus! Oh! Meu Pai, meu Pai, perdoai-me todos os meus
pecados!
Havia tantos dias que eu não sentia mais a dor dos meus pecados, mas
Jesus quis de novo conceder-me esta graça. Ontem à noite, chorei muito aos
pés de Jesus. Quanto eram ao mesmo tempo amargas e doces essas
lágrimas, meu pai, e que aperto fortíssimo sentia no coração, que parecia
querer estalar de dor.
Mas de que aplicações, meu pai, pode precisar, e que pecados quer que eu
lhe faça conhecer? Pense que quantos se podem cometer dos piores todos
eu tenho cometido. Receio que quando tiver lido todo este escrito, e
conhecido todos os meus pecados, ficará horrorizado e não quererá mais
servir-me de pai; e então sim!
Meu Jesus, seja sempre feita a vossa santíssima vontade! Quanto sofro em
ter que escrever certas coisas! A repugnância que senti no princípio em vez
de diminuir vai sempre aumentando e sinto uma pena mortal. Talvez queirais,
ó meu Deus, que eu escreva também aqueles íntimos segredos que me
revelastes por vossa bondade, a fim de que eu me conserve mais baixa e
humilde. Se quereis, ó Jesus, estou pronta a obedecer também neste ponto.
Fazei-me conhecer a vossa Vontade.
Mas de que servirão estes escritos? Para vossa maior glória, ó Jesus? Ou
para me fazer continuar a cair sempre nos pecados? — Vós que quisestes
que eu escrevesse, e a quem obedeci, pensai nisto; na chaga do vosso lado
escondo todas as minhas palavras, querido e amável Jesus!
Meu pai, parece-me que há muito tempo que Jesus me inspira que vos
peça uma graça; mas não se contrarie, porque só farei o que me disser. Não
há nada de mau por certo em conceder-me, mas o senhor apresentará mil
razões para se opor. Dirá que eu estou magra, que não há necessidade, etc.,
porém, estas considerações – não se admire o leitor destas palavras, é
Gema quem escreve – nada valem. Ouça: concorda que eu peça a Jesus o
privilégio de, enquanto viver, não sentir mais o gosto dos alimentos. Este
favor é necessário, e espero que Jesus lhe inspirará que me conceda. Mas
de qualquer maneira eu ficarei satisfeita.
Ontem ganhei uma boa vitória sobre a minha língua tão comprida, mas
custou-me tanto reprimi-la! Então, renovei a minha resolução de nunca mais
falar sem ser interrogada. Se soubesse que tempestade houve ontem entre
mim e minha tia! Mas o silêncio tudo venceu. Comecei a observar o meu
propósito, porém, com que dificuldade!
Este trabalho era todo interior, pois ela, inteligente que era,
procedia de modo que ninguém percebesse. Somente os íntimos
que conviviam com ela conheciam perfeitamente que a virtuosa
jovem lutava sem cessar, e que o seu coração era como um altar,
onde se imolavam constantemente as vítimas da mortificação.
Para conseguir melhor o seu intento, começou logo a macerar a
carne com duras penitências.4 Quantas vezes importunou ao
confessor para que lhe permitisse usar a disciplina e os cilícios,
cadeias e outros instrumentos desse gênero! E sabia com tanto jeito
insinuar-se em seu espírito que frequentemente obtinha a desejada
licença, o que considerava como uma graça singular. A maior parte
das vezes, porém, depois de se ter afadigado em fabricar esses
instrumentos, eram-lhe tirados das mãos, ficando-lhe só a boa
vontade para oferecer ao Senhor.
Fui eu que lhe tirei o último dos que lhe restavam, e consistiam
num cinto armado de sessenta pontas bem agudas, uma disciplina
de cinco cordas igualmente de ferro, e uma longa corda de nós aos
quais se prendiam pontas e pregos, com os quais apertava com
força a carne.
Não desanimava, porém, a virtuosa donzela; e procurava se
indenizar de mil outros modos. Dizia-me ela:
E em seguida:
Meu pai, eu desejo pedir-lhe uma licença, e estou certa que, se Jesus lhe
mandar uma pequena inspiração, o senhor me dará logo. Desejaria fazer
uma promessa a Jesus de não procurar mais comodidade em coisa alguma,
e não duvide que, se eu obtiver este favor, saberei regular-me bem, sem cair
em excessos.
Vede Jesus, é o meu corpo que sente, mas eu farei com que se aquiete.
Muitas vezes chora, não me quer dar razão, mas estou alerta. Ontem,
parecia querer revoltar-se, mas eu o obriguei a sossegar, dando-lhe alguns
castigos.
Gema, não te fies em ti mesma; repara que toda a ocasião pode ser para ti
um perigo; fora de Jesus tudo é engano; vive só com Ele, e purifica o teu
caminho sem cuidar de mais nada.
Depois concluía:
Não, não, eu não quero pecar, de hoje para sempre prefiro morrer do que
cometer um pecado. Quereria antes ficar cega toda a vida, do que ofender
por de leve que seja a Jesus contra a santa modéstia; e assim preferia ficar
privada de todos os sentidos do meu pobre corpo, do que pecar com algum.
Não sei a fé que possa merecer uma revelação, que teve uma
alma piedosa, conhecida por mim, na qual o Senhor claramente
faltou, fazendo o mais belo elogio de Gema; para que não se perca,
apraz-me referi-la aqui, tanto mais que nada contém que não seja
conforme a verdade reconhecida.
Esta donzela a quem tanto amo e de quem tanto sou amado – disse Jesus
–, me pede sem cessar amor e pureza, e eu que sou o verdadeiro amor e a
própria pureza, lhe tenho concedido tanto quanto uma criatura humana pode
receber. A esta filha eu sempre guardei uma pureza de coração, como a que
deve ter a esposa eleita do celeste e divino Esposo, conservando-a naquela
inocência, como um lírio celeste no meu puro amor.
Agradeçamos a Jesus, que hoje o dia se passou do melhor modo, como lhe
foi agradável.
Mas a boa Gema não se sentia ainda satisfeita. Tendo ouvido dizer
que os santos, para reprimir tais tentações, tomavam disciplinas,
usavam cilícios, e que um deles chegou a se mergulhar num tanque
de água gelada, ela, não sabendo distinguir, entre as tentações
internas que vem da concupiscência e as puramente externas, que,
como lhe acontecia, batem à porta, sem que o mau instinto seja a
causa; e, julgando ter necessidade como eles dos mesmos
remédios, pensou ser de seu dever imitá-los.
Lançou mão desses meios com tanto ardor que teria despedaçado
o seu corpo inocente se a obediência não o tivesse impedido. Mas
tal era o medo que tinha de ofender, naqueles angustiosos
momentos, à angélica virtude, que se esquecia de tudo, até de pedir
licença ao confessor para qualquer penitência, e recorria sem
moderação às correias, à disciplina, à corda nodosa cheia de pregos
que, com força, amarrava em torno da cintura.
Quantas vezes aquelas pontas agudas não lhe penetravam na
carne viva, fazendo-lhe derramar muito sangue, e causando-lhe tão
acerbas dores, que a faziam desmaiar a cair por terra!
Quem não ficaria comovido até às lágrimas, se uma só vez tivesse
podido observar nesse estado, como me foi dado, essa generosa
vítima da santa pureza?
Fez mais ainda. Um dia, ao sair da mesa, o demônio lhe apareceu,
como em outras vezes, sob aquelas formas horríveis, e, bufando de
raiva, declarou que havia de vencê-la a todo o custo. A modesta
virgem empalideceu, ergueu as mãos aos céus, e sem mais refletir,
correu ao jardim da casa, onde havia um grande tanque de água
gelada, fez o sinal da cruz, e apesar de ser inverno, atirou-se dentro,
ficando enregelada.
Ter-se-ia certamente afogado se uma mão invisível não a tivesse
ajudado a sair daquele banho perigoso. Deste modo, a nossa Gema
se tornou êmula dos generosos e veneráveis da hagiografia cristã,
conquistando o nome glorioso de heroína.
Diante destes exemplos, como não se deveriam envergonhar
tantos cristãos, que dizendo que querem seguir a Jesus Cristo no
caminho de santidade, mostram-se tão delicados com o seu corpo,
e lentos em refrear as suas inclinações desordenadas?
Por ventura, não disse o Salvador a todos os seus seguidores que
sem violência não se obtém o reino do Céu?12
DA SUA FORTALEZA:
AS GRANDES PROVAÇÕES A QUE DEUS SUBMETEU A SUA
SERVA, E DE QUÃO HEROICA FOI EM SUPORTÁ-LAS
Além da cruz que todos os que seguem a Cristo devem, por assim
dizer, fabricar com suas mãos e carregar durante toda a vida com
mortificação, abnegação e penitência, há outra que o Senhor
prepara por si mesmo para as almas privilegiadas: é o sofrimento.
Desta é que de um modo especial falou quando disse: “Quem
quiser seguir-me, deve tomar e carregar a sua cruz”.1
Todos os santos têm carregado esta cruz, assim como todos têm
abraçado a primeira. Com a mortificação, abnegação e penitência
voluntárias fazem o que podem para cooperar na obra da própria
santificação. Com o sofrimento, recebido com paciência, Deus
completa a obra; e quanto mais perfeita quer torná-la, tanto maior
soma de dores lhes envia.
Tal é a filosofia do Evangelho: Per multas tribulationes oportet nos
intrare in regnum Dei,2 isto é, quem quiser ver estabelecido o reino
de Deus no seu coração, deve passar pelo fogo e pela água de
grandes tribulações, não podendo haver verdadeira santidade sem
sofrimento.
A cada novo grau de perfeição a que a alma se eleva, deve
corresponder nova provação, a que os doutores místicos chamam
“purgação passiva3 “até que, concluído o trabalho, e chegando a
alma ao último grau, que é a perfeita semelhança com Jesus Cristo,
possa exclamar: “Agora sim, que estou crucificada com Jesus”.4 “Eu
não vivo mais, é Jesus que vive em mim”.5
Ora, sendo a nossa Gema destinada por Deus a tão alta
santidade, e a passar por todos os graus da teologia mística, era de
esperar que a amargura da dor não lhe fosse dada a gotas, mas sim
em torrentes.
Assim foi – e tanto tenho que dizer sobre este assunto, que o leitor
ficará assombrado.
Por tudo o que já temos referido nas páginas anteriores da
presente biografia, é fácil compreender como esta Serva de Deus foi
provada com aflições extraordinárias e constantes desde a infância.
Não repetirei o que já é sabido, mas tratarei de descrever o martírio
do último tempo da sua vida, quando a sua virtude atingia o cume
da perfeição.
Aquelas primeiras penas não eram senão um ensaio, pelo qual o
Senhor a ia preparando gradualmente a maiores imolações, que se
deviam consumar no Calvário de Jesus, isto é, no leito da morte.
Como o sofrimento não pode ser meritório nem preencher o fim
ordenado pela divina Providência se não é voluntário, o Senhor
começou por inspirar a Gema um vivo desejo de sofrer servindo-se
na ocasião oportuna, dos meios mais ternos e eficazes ao mesmo
tempo.
Aparecia-lhe às vezes com a cruz às costas e lhe dizia: “Gema,
queres minha cruz? Vê o presente que te preparei”. Ela respondia:
“Dai-me-a, sim, meu Jesus, mas dai-me também a força porque
meus ombros são débeis e posso cair sob o seu peso”. Continuava
Jesus: “Desagradar-te-ia se eu te desse a beber o meu cálice até a
última gota?” E Gema: “Jesus, faça-se a vossa santíssima vontade”.
Outras vezes ela o via pregado na Cruz, coberto de chagas,
derramando sangue.
Quero sofrer com Jesus, não me falem noutra coisa. Quero ser semelhante
a Jesus, sofrer enquanto viver, e sempre viver para sempre sofrer!
Que intenção tinha ela nesta demora que com tanta insistência
pedia ao Senhor, já o dei a entender antes, quando falei do temor
que a humilde donzela tinha de atrair a atenção geral, pelos
fenômenos extraordinários que se davam com ela.
As palavras ditas pelo Senhor lhe pareciam indicar tormentos,
dores misteriosas e difíceis de suportar. Por isso suplicava
tremendo, ao menos pelo que se referia ao lado visível da expiação
anunciada, que esperasse um pouco até que aprouvesse a Deus
abrigá-la num convento. Desde aquele dia Gema não parecia a
mesma; o pensamento da missão recebida de Deus a transformara
em uma nova criatura; a sede de toda sorte de sofrimentos
queimava e lhe dilacerava o coração, e para apagá-la eram precisas
torrentes de fogo. Ouvi-a ainda:
Sofrer, sofrer, mas sem nenhuma consolação nem o menor alívio; sofrer só
por amor.
De fato, para ela, amar e sofrer eram a mesma coisa, como o era
ser amada e ser atribulada, pelo que acrescentava:
Estou muito contente: Jesus não cessa de amar-me, quero dizer, não cessa
de me afligir cada vez mais.
Procuro a Jesus e não o acho. Parece que se afastou e não quer mais
saber de mim, e aonde irei eu? Que será mim? Pobre Jesus! Tenho-vos
desgostado demais! Mas permitireis que vos torne a achar, não é? Aplacai-
vos, aplacai-vos e voltai para mim. Eu, longe de Vós, não posso viver!
Não poderíeis vós também dizer-me o que devo fazer para achar a Jesus?
Dizei-lhe que não posso mais...
Meu Deus, não vedes que assim sucumbo? Sem Vós eu morro. Lembrai-
vos que sou uma pobre órfã. Só tenho a Vós, e Vós me fugis?
1 Lc 9, 23.
2 At 14, 22 – “Confirmavam as almas dos discípulos e exortavam-nos a perseverar na fé,
dizendo que é necessário entrarmos no Reino de Deus por meio de muitas tribulações”.
3 O que na doutrina do Doutor Místico, São João da Cruz, é denominado “noite escura”.
“Esta noite escura é um influxo de Deus na alma, que a purifica de suas ignorâncias, tanto
naturais como espirituais. Chamam-na os contemplativos de contemplação infusa, ou
teologia mística. Nela vai Deus, em segredo, ensinando a alma e instruindo-a na perfeição
do amor, sem que a alma nada faça, nem entenda como é esta contemplação infusa”. São
João da Cruz, Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 494 – NC.
4 Faz referência a Gl 6, 14.
5 Gl 2, 20.
6 São Bernardo de Claraval (1090-1153). Abade cisterciense, Doutor da Igreja. Faz
menção ao V Sermão, dos Sermões para Festa de Todos os Santos – NC.
7 Col 1, 24 – “O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu
corpo que é a Igreja”.
8 O Papa Bento XVI disse no Encontro com os Párocos e o Clero da Diocese de Roma,
em 22 de fevereiro de 2007: “Parece-me que devemos ir até ao fundo, chegar ao próprio
Senhor, que ofereceu a reparação pelo pecado do mundo, e procurar reparar: digamos,
estabelecer o equilíbrio entre o plus do mal e o plus do bem”. – NC.
9 O Venerável Padre Germano abordará essa mesma visão aqui em três lugares
diferentes. À luz da história do século XX, podemos inseri-la na linha espiritual da Aparição
em la Sallete, e na que ocorreu em 1917, em Fátima. Nosso Senhor revelou-lhe “um plano
universal eclesial para reparação dos pecados gravíssimos que mancham a consciência
dos homens, especialmente batizados e consagrados, para mobilizações de muitas almas
vítimas e vítimas fortes”. Carmelo A. Naselli, Uma missione speciale affidata da Gesú a
Santa Gema Galgani. Ricerche di storia e spiritualità passionista, Roma, Curia Generale
Passionisti, 1979, p. 11. – NC.
10 O Concílio Vaticano II pede aos fiéis: “que aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao
oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada;
que, dia após dia, por Cristo mediador, progridam na unidade com Deus e entre si, para
que finalmente Deus seja tudo em todos”, SC, 48 – NC.
11 “Devemos ser conscientes da nossa missão: com Cristo, nele, devemos redimir o
mundo na medida em que sofremos”. Divo Barsotti, La mistica della riparazione. Melara,
Edizione Parva, 2010, p.22 – NC.
12 “Eis aí porque são tão raros os verdadeiros contemplativos e, sobretudo, os que
alcançam a mais íntima união e familiar comunicação com Deus, por ser tão raro – mesmo
entre os que se passam por bons, recolhidos e fervorosos – os que de verdade se decidem
a dar este passo decisivo de não negar a Deus em absolutamente nada daquilo que veem
claro que ele lhes pede, e corresponder assim, com toda sinceridade e fidelidade, o quanto
para a nossa santificação exija de cada um.” Fr. Juan G. Arintero, O.P., Cuestones
Místicas, Madrid, BAC, 1956, p. 363 – NC.
13 Eis aqui mais expressão, que só se compreende à luz da espiritualidade reparadora.
Consolar a Cristo Crucificado ao partilhar de sua cruz, para sermos cooperadores na obra
de Redenção – NC.
14 De profundis, “Das profundezas”. Faz menção ao salmo 129. Na tradição da Igreja é
recitado em favor das santas almas do purgatório. De certa maneira, Santa Gema passou
por um “purgatório de amor”, onde, entre as noites, sua alma foi se purificando e
configurando a Cristo Crucificado – NC.
CAPÍTULO XXI
Mas que oração melhor do que esta, que partia de um coração tão
generoso e atraía o próprio Deus para ser o espectador de tão
terrível luta!
Outras vezes atacando-a por outro lado bem diferente, o maligno
procurava repentinamente sugerir-lhe maus pensamentos: “Que
fazes, dizia-lhe blasfemando; és tão estúpida que rezas a um
malfeitor? Não vês como te tortura, pregando-te na cruz com ele?
Como podes amar a quem nem sequer conheces e que faz sofrer a
quem o ama?”.
Estas e outras iníquas sugestões eram como poeira atirada ao
vento, mas afligiam profundamente aquela alma tão terna e amante,
obrigada a ouvir ultrajar com tais blasfêmias a seu Jesus. No meio
de tantas penas, a serva de Deus, achava algum conforto
recorrendo a seu pai espiritual, comunicando-lhe o que ocorria e
como procedia a fim de que a dirigisse e aconselhasse. Este auxílio
não podia agradar ao malvado inimigo e, para estorvá-lo, ou antes
para afastá-la do seu guia espiritual, e fazê-la ficar só, começou a
apresentar-lhe mil razões.
Descrevia-o na sua imaginação com as cores mais desfavoráveis,
como um homem ignorante, fanático e iludido, e esforçava-se por
todos os meios de convencê-la e assustá-la, de modo que quase a
pobrezinha se via perdida.
Uma vez entre outras, escreveu-me:
Parece que bastaria esta fé em Deus para desarmá-lo; mas não foi
assim. Vendo que era inútil todo o seu artifício para tirar a confiança
no diretor, empregou a violência física, atirando-se a ela quando
perseverava em escrever; arrancava-lhe a pena da mão, rasgava o
papel, e levantava-a da mesa puxando-a pelos cabelos com tanta
força que suas mãos brutais ficavam cheias deles.
Retirando-se, gritava furibundo: “Guerra, guerra a teu pai,
enquanto ele viver neste mundo!”.2
Direi de passagem que o malvado soube sustentar a palavra:
“Creia-me meu pai”, dizia-me a própria Gema, “pelo que ele me diz,
sei que o demônio ainda lhe tem mais raiva do que a mim”.
Levou a sua audácia até a tomar o semblante do sacerdote com
quem a piedosa donzela costumava confessar-se. Indo ela um dia à
igreja, enquanto se preparava junto ao confessionário, viu que o
confessor já estava no seu lugar esperando-a, sem poder saber por
onde ele tinha passado para entrar. Admirada, sentiu grande
perturbação interior, conforme sempre lhe acontecia, quando se
apresentava o espírito do mal. Entretanto, aproximou-se e começou
a sua confissão como de costume.
A voz e a presença eram do confessor, mas começou logo a dizer-
lhe, palavras desonestas, acompanhadas de atos escandalosos.
“Meu Deus”, exclamou Gema, “que é isto, onde estou?”.
Ao ouvir esses ditos e a tal vista, a inocente donzela pôs-se a
tremer dos pés à cabeça, e por instantes ficou acabrunhada, mas
tomou ânimo, levantou-se, e viu que o pretendido confessor
desaparecera sem que ninguém o tivesse visto sair. Era o demônio
que com tão grosseiro artifício e maldade procurava enganá-la e
fazer-lhe perder toda a confiança no servo de Deus.
Em outra ocasião, porém, ele soube tão bem fingir, que com a
permissão de Deus conseguiu fazer-lhe crer, que era de fato o seu
confessor. Por felicidade eu me achava então em Lucca, e sendo
informado do ocorrido foi-me preciso muito esforço para desenganá-
la e obrigá-la por obediência a que readquirisse a paz e a estima
que tinha perdido daquele santo sacerdote.
Falhando-lhe afinal este artifício, o inimigo tentou outro,
aparecendo à serva de Deus sob a forma de um anjo
resplandecente de luz, e insinuando-se ao seu espírito com a feia
astúcia para perturbá-la. Como a Eva no paraíso terrestre, falou-lhe
usando dos meios mais sutis para iludi-la: “Contempla-me, eu te
posso fazer feliz, jura somente obedecer-me”.
Gema, que desta vez não tinha tido a perturbação que lhe
revelava a presença do mau espírito, o ouviu com sua costumada
ingenuidade, mas Deus veio em seu auxílio.
Às primeiras propostas criminosas daquele rebelde, seus olhos se
abriram e gritou: “Meu Deus, Maria Imaculada, valei-me!”.
Em seguida, adiantou-se para o fingido anjo, e cuspiu-lhe no rosto;
no mesmo momento, desapareceu sob a forma de uma chama,
deixando no assoalho do quarto um monte de cinzas. Gema
continuando a dar conta ao diretor escreveu o seguinte:
Esse desgraçado se esforça por demais; quisera... Mas Jesus, por suas
palavras, me fez recuperar tão grande calma que ele, com todos os seus
esforços, não pôde nem por um momento tirar-me a confiança.
Assim vendo derrotadas todas as suas astúcias, furioso, tirou a
máscara e resolveu declarar-lhe uma guerra aberta. Aparecia-lhe
muitas vezes sob horríveis formas, ora de um monstro ameaçador,
de um cão danado, ou de um homem furioso.4
Depois de ter experimentado aterrorizá-la, precipitava-se sobre
ela, batia-a, mordia-a, atirava-a de um lado para outro, sobre a
cama e no chão. Arrastava-a pelos cabelos e martirizava por todos
os modos o seu corpo inocente.
Ninguém pense poder atribuir estes sofrimentos a impressões
puramente imaginárias, porque os sinais eram visíveis e reais, quer
pelos cabelos arrancados, o corpo lívido, os ossos quebrados, sinais
que permaneciam por muitos dias, e pelas dores atrozes que
padecia a pobre jovem. Às vezes ouvia-se barulho das pancadas,
via-se balançar a cama, subir, elevar-se da terra e tornar a cair.
Estas vexações duravam horas inteiras sem tréguas, e até uma
noite toda. Mas deixemos que a própria Gema nos conte alguma
coisa. A simplicidade de seu estilo e a ingênua sinceridade com que
se exprime, dando conta do seu espírito ao diretor, dispensam todo
o comentário.
Hoje eu julgava estar livre desta feia besta, mas pelo contrário, fui bem
perseguida. Fui deitar-me pensando dormir, mas não me foi possível. Recebi
logo uma pancada tão forte que pensei morrer. O malvado tomou a forma de
um grande cão preto; pôs-me as patas sobre os ombros e maltratou-me tanto
que pensei ter os ossos todos quebrados. Tomando eu a água benta, ele me
torceu o braço com tanta violência que cai no chão com a força da dor. Os
ossos estavam completamente deslocados, mas logo endireitaram porque
Jesus veio, tocou neles e sararam.
Em outra carta:
Oh! Meu Deus – dizia-me –, estive no inferno, sem Deus, sem minha Mãe,
sem meu Anjo. Se saí dele sem pecado, a vós só o devo, ó Jesus. Estou
porém contente porque sofrendo assim, e sofrendo sempre, faço a vossa
Santa Vontade.
1 No diário de São Paulo da Cruz, escrito durante seu Retiro em Castelanazzo, em 1720,
consta no dia 30 de novembro: “[...] disse ao meu Jesus que me ensinasse qual grau de
humildade que mais lhe agrada, e senti dizer-me ao coração: Quando tu te ponhas em
espírito aos pés de todas as criaturas até sob os demônios, isto é aquilo que mais me
agrada, já entendi (quando nos abaixamos) até sob o inferno sob os pés dos demônios,
então Deus eleva ao Paraíso, porque como o demônio quis elevar-se mais alto que o
paraíso e por sua soberba foi lançado ao mais profundo do inferno, assim, vice-versa, a
alma que se humilha até sob o inferno faz tremer o demônio, o confunde, e o Sumo Bem a
exalta ao Paraíso [...]”. Antonio Calabrese, La vita mística di San Paolo della Croce,
Vaticano, LEV, 2001, p. 40 – NC.
2 Satanás tem horror dos santos, mas especialmente de um sacerdote santo. Quantas
almas não serão santificadas através dele! O Venerável Padre Germano sem querer, atesta
seu próprio caminho espiritual, como religioso passionista, como sacerdote e como diretor
espiritual – NC.
3 Os Passionistas possuem no patrimônio espiritual do Instituto uma coroa própria
dedicada a veneração das cinco Chagas de Nosso Senhor. Em honra de cada Sagrada
Chaga, recita-se 5 Glórias, e seguida de uma Ave-Maria em honra de Nossa Senhora das
Dores – NC.
4 “O demônio teme a alma unida a Deus como o Próprio Deus”, São João da Cruz,
Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2000, p.105 – NC.
5 “A experiência dos exorcistas nos demonstra o valor das Relíquias de Santos na luta
contra o Maligno”, diz-nos o Padre Gabriele Amorth, O último exorcista, Campinas,
Ecclesiae, p. 23 – NC.
6 Sobre o uso dos sacramentais: “Os objetos consagrados pelas orações da Igreja tem
uma virtude especial contra satanás”, Fr. Antonio Royo Marín, Teología de la perfección
cristiana, Madrid, BAC, 2001, p. 321 – NC.
7 Diferente do exorcismo, a conjuração “pode ser exercitada em privado inclusive por
leigos com as devidas condições, e tem por finalidade rechaçar como inimigo o demônio, e
reprimir-lhe, em virtude do Divino Nome, para que não prejudique espiritual e
corporalmente”. Idem, p. 323 – NC.
CAPÍTULO XXII
Jesus não me deixou só; faz com que o meu anjo custódio esteja sempre
comigo.
Se algumas vezes eu for má, ó meu querido anjo, não te zangues, quero te
ser grata.
Olha – dizia-lhe – quanto Jesus sofreu pelos homens; considera uma por
uma suas chagas; foi o amor que as abriu. Vê quanto é terrível o pecado,
cuja expiação custa tanta dor e tanto amor.
Diga-me, meu anjo – interrogava a jovem –, que tinha esta manhã o meu
confessor que estava tão sério, e que não me quis ouvir?
Em outra ocasião:
Entretanto – escrevia-me ela –, há tantos dias já que lhe mandei dizer pelo
anjo. Como não fez ainda nada? Ao menos podia mandar dizer mesmo por
ele, que não lhe era possível ocupar-se com este negócio. Em todo caso não
vos zangueis, se insisto de novo nesta carta, porque se trata de assunto
muito importante.
Recorda-te minha filha, que quem ama verdadeiramente a Jesus fala pouco
e suporta tudo. Ordeno-te em nome de Jesus que nunca dês a tua opinião se
não te perguntarem, e não sustentes o teu modo de pensar, mas cedas logo.
Quando cometeres alguma falta, acusa-te sem esperar que outros te
precedam. Obediência pontual ao confessor e a quem fizer suas vezes, sem
nada replicares, e sinceridade com ambos. Lembra-te de guardar a tua vista,
pensando que os olhos mortificados verão a beleza do Céu.
Por esta grande caridade que via no seu Anjo para com ela, Gema
o amava muito, e tinha constantemente o seu nome nos lábios como
no coração:
Não é de admirar, pois, que um amor tão forte, numa alma tão
simples e ingênua, produzisse uma familiaridade que poderá
parecer às vezes até excessiva.
Ao ouvi-la falar com seu querido anjo, julgar-se-ia que tratava
como uma pessoa igual a si, discutindo vivamente para que ele
cedesse à sua opinião. Eu mesmo asseguro que estranhei muito e a
adverti de que não procedia bem, chamado-a de soberba, que em
vez de tremer diante dum espírito celeste, lhe falava com tanta
familiaridade até tratando-o por tu; e para experimentar a sua
virtude, acabei proibido que excedesse de certos limites que lhe
marquei.
Gema abaixou a cabeça e humildemente respondeu:
Tem toda a razão, meu pai, eu me corrigirei. De hoje diante tratarei sempre
por vós ao Anjo e lhe darei todas as demonstrações de reverência e me
conservarei a cem passos de distância quando o tornar a ver.
Aquele bendito anjo me fez ficar inquieta porque eu não queria falar-lhe,
mas ele insistia muito. Afinal, me disse: Deus te abençoe, ó alma confiada a
minha guarda. Imagina, meu pai, eu lhe respondi assim: ó santo Anjo, ouvi,
não mancheis vossa mão comigo, retirai-vos, ide procurar outras almas que
saibam corresponder ao dom de Deus. Eu nada sei fazer. Enfim, fiz com que
me compreendesse. Ele me perguntou: “Mas que temes?” Desobedecer,
respondi. “Não receies”, retorquiu ele, “que é teu diretor que me manda”. Ela
disse apenas: “Perdoe-me, meu anjo, não o posso ouvir”.
Algumas vezes o anjo não lhe aparecia só, mas levava outros
espíritos celestes para fazerem alegre companhia à sua angélica
irmã. Quando eu soube, pelo mesmo motivo dado, mostrei-lhe a
minha reprovação, dizendo que era tempo de acabar com isso.
Eis a sua resposta:
1 Ex 23, 20.
2 Sl 16, 8.
3 A lista aqui não teria fim. Podemos citar, sobretudo, São Pio de Pietrelcina (1887-
1968), o famoso capuchinho, um dos maiores místicos da história da Igreja e grande diretor
espiritual, que tinha muita intimidade com seu santo anjo da guarda – NC.
4 Tb. 12, 12.
5 Outra grande intuição do Venerável Padre Germano. O nosso santo anjo da guarda é
sempre e fielmente nosso mestre na perfeição cristã. Que saudável costume nos foi
transmitido de rezar cotidianamente, e Deus queira mais vezes, a oração ao santo anjo do
Senhor – NC.
6 “Já não quero que fales com homens, mas com anjos”, Santa Teresa de Jesus, Obras
Completas, São Paulo, Loyola, 1995, p. 125 e 801 – NC.
CAPÍTULO XXIII
AS GRAÇAS:
DOM DE ALTÍSSIMA ORAÇÃO DE QUE GEMA FOI FAVORECIDA
Num destes dias passados, cometi uma grande falta, que não sei como
Deus não me fulminou. Oh! Jesus misericordioso. O Padre Lourenço3 me
mandou fazer uma conta; empreguei nela talvez mais atenção do que era
preciso, e saí da presença de Deus. Mas foi apenas por um minuto,
concentrando-me de novo, prontamente pedi perdão a Deus, e Ele me
perdoou.
Vede, ó Jesus, mesmo durante a noite, que horas, que horas!... Durmo,
mas, ó meu bom Jesus, o meu coração não dorme, vela sem cessar, sempre
unido a Vós.
Pode-se compreender que pouco uso este anjo devia fazer das
fórmulas de orações vocais nos seus colóquios com o Senhor.
Rezava o rosário juntamente com a família, de vez em quando a
Coroa da Paixão e das Dores,4 para servirem de pontos na
meditação dos mistérios dolorosos, e mais nada. Podendo fazê-los
mais perfeitos com as luzes que do Céu recebia, compunha-os para
si, conforme a necessidade.
Não me satisfaço – dizia-me – com ler as orações dos livros, nem com
recitar só Padre-Nossos e Ave Marias; não acho neles alimento e canso-me.
Assim, rezo por mim mesma como posso.
Jesus, venho a vossos Pés para pedir-vos uma graça. Se não fosseis
onipotente não vos faria este pedido. Como podeis desprezar minha alma tão
ardente de desejos? Desprezareis os desejos que vós mesmo me
inspirastes? Esta graça eu a quero e vós me dareis, não é verdade? Ó Jesus,
tende piedade de mim que tantas vezes vos tenho pedido pelos outros; tende
piedade de uma pecadora que vos custou a vida. Perdoai-me, meu Deus, sou
órfã, não tenho pai nem mãe, tende piedade dos órfãos; sou fruto da vossa
Paixão.
Na oração estou como fora de mim, não percebo onde me acho e, se estou
fora dos sentidos, fico numa paz e tranquilidade que não posso explicar.
Sinto-me atraída por uma força, mas não é uma força violenta, senão
suavíssima. Quando em seguida gozo da plenitude da doçura que dá a posse
de Jesus, esqueço-me de que estou no mundo; sinto que minha alma está
cheia e nada mais tem que desejar; o coração está satisfeito porque tem
consigo um bem imenso, um bem infinito, incomparável, ilimitado e completo.
Depois da oração não posso voluntariamente procurar nem desejar mais
nada, porque é perfeita a doçura que Jesus, na sua infinita bondade e
caridade, me concede. Nem sempre, porém, sinto esta ventura; às vezes, na
oração, apodera-se de mim uma dor tão forte de meus pecados que parece
que vou morrer.
Vedes, ó leitor, que tão elevada oração está bem próxima da que
se chama contemplação infusa.6 Não é que esta contemplação seja
quase um grau mais perfeito do que a primeira, à qual a alma pode
chegar como quem sobe uma escada. Não obstante tendo a alma
disposições tão belas como vimos em Gema, pode-se bem supor
que Deus não a deixe parar, mas a chame a maior elevação e a
comunicações mais sublimes.
Para melhor explicar o que disse no princípio deste capítulo, direi
que esta contemplação é uma atração sobrenatural da graça, que
quer introduzir a alma fiel nos segredos celestes; uma luz divina
que, quando menos se espera, repentinamente invade o espírito e o
coração. Com este indício é fácil distinguir esta forma de oração de
qualquer outra, sendo de todas, sem dúvida, a mais sublime, mais
penetrante e deleitosa, porque é divina. Funda-se esta
contemplação infusa na plenitude dos dons do Espírito Santo e
principalmente nos de Inteligência e de Sabedoria. Ao primeiro
pertence tornar a alma capaz de penetrar os Mistérios da Fé com
ideias sublimes, e ao segundo, apreciar o seu valor, do que resulta
para a alma aquela alegria, doçura e suavidade que se sente na
contemplação.
Por tudo o que Gema escreveu ao diretor, quer em cartas quer na
conta de consciência, bem como pelo que dizia nos êxtases, e
acrescentarei ainda, por todos os seus atos, reconhece-se que ela
possuía num grau extraordinário estes dois dons do Espírito Santo.
Tudo nos faz ver que esta virgem, mais angélica do que humana,
era dotada de um espírito sutil e profundo, capaz de mergulhar-se
no bem infinito e atingir sem esforço às concepções mais sublimes;
enquanto que um delicado discernimento e uma rara prudência lhe
faziam preferir os bens eternos a tudo o mais, e incitavam-na a
procurá-los com avidez e amá-los com indizível afeto.
Assim, pois, elevada por estes dons eminentes acima da fraqueza
natural, e fortificada pela luz celeste, que em certos momentos o
próprio Espírito Santo lhe comunicava, ela contemplava a unidade
da natureza divina e a Trindade das Pessoas, a união inefável do
Verbo com a natureza humana, na Encarnação, os mistérios da
sabedoria, justiça e misericórdia de Deus no governo das suas
criaturas, e todos os imperscrutáveis arcanos de uma fé santa que
lhe eram admiravelmente revelados.
Ela os via como que sem véu, não como mistérios, mas como
patentes aos seus olhos. Via-os, mas não estava ainda saciada.
Aspirando por vê-los mais claramente, elevava-se por meio de
arrojados e ardentes voos; mas compreendia que se podia subir
mais e penetrar mais profundamente neles pela visão de Deus face
a face.
Uma vez entre outras, a ouviram dizer:
Oh! Quem me dera asas de pomba para voar até vós, ó meu Deus! Dai-me
vós as asas da contemplação. Como fazer para chegar até vós? Quebrai
estas cadeias que me impedem de voar. Há tantas coisas, ó Jesus, em cuja
contemplação minha alma se alimenta, mas em nenhuma pode repousar-se.7
Imaginai – escrevia ela – ver uma luz de imenso esplendor que envolve
todos os seres, os penetra e esclarece e ao mesmo tempo vivifica e reanima
tudo, de modo que, tudo o que existe, só por esta luz existe, e por ela e nela
têm a vida; assim eu vejo a meu Deus, e as criaturas n’Ele. Imaginai um
incêndio tão grande como o nevoeiro, e estendendo-se ainda além, o qual
queimando e abrasando tudo sem nada consumir, ilumina e conforta, e
aqueles que mais são envolvidos nessas chamas são os que se sentem
melhor e mais ardentemente desejam ser queimados: assim vejo nossas
almas em Deus.
Não é fácil exprimir a grande estima que Gema tinha por estas
grandes verdades, e a abundância das doçuras que na
contemplação lhe enchiam o coração; basta dizer que
frequentemente não podia suportá-las e caía desmaiada, ou ficava
em êxtase.
Como poderei explicar o que sinto nesses momentos? É todo o Céu que
desce à minha alma. Primeiramente admiro, depois fico subjugada, o espírito
se confunde, aniquila, o coração bate com toda a força e não sabe o que
fazer; goza e sofre ao mesmo tempo, e não quereria voltar à vida terrestre. E
concluindo a oração, se soubesse meu pai, em que estado fico! Não sei se o
senhor já passou por ele. Meu Deus, quanto sois bom para mim!
Estas sublimes ilustrações lhe eram muito frequentes, quer
estivesse orando, quer ocupada em trabalhos que naturalmente
absorvem a atenção. De repente, uma luz misteriosa a ofuscava,
tudo em torno lhe desaparecia, seguia-se um profundo
recolhimento, e Gema se achava no Céu a contemplar a Deus e a
sua infinita beleza.
Não sabendo com que termos definir este fenômeno sobrenatural,
dizia na sua ingenuidade:
Perco a cabeça. Estava na cozinha falando com a criada, e eis que senti a
impressão habitual, sem ter tempo de sair dali. Fiquei fora de mim e achei-me
com Jesus.
***
1 Aqui, o Venerável Germano adota a divisão comum entre vida ascética e mística.
Pode-se observar a grande influência do Padre Scaramelli – NC.
2 É interessante notar que sobressai a própria doutrina mística do Venerável Padre
Germano. Lembremos que ele foi exímio diretor espiritual de inúmeras almas místicas, e
sua direção foi bastante fecunda, vejam-se os frutos surgidos em torno de Santa Gema, no
Mosteiro Passionista de Lucca. Foi diretor da Madre Josefa, fundadora do Mosteiro, da
Madre Madalena, posteriormente filha espiritual do Servo de Deus Padre Juan Arintero,
O.P; e da Venerável Madre Gema de Jesus, posteriormente fundadora das Irmãs de Santa
Gema – NC.
3 Padre Lourenço Agrimonti, que na época morava na residência coma família Gianinni –
NC.
4 Coroa das Sete Dores de Maria Santíssima. Devoção muito difundida, ligada a tradição
espiritual da Ordem dos Servos de Maria, Servitas – NC.
5 “Verdade é que também levam a certa contemplação adquirida quando, depois de
muito considerar por partes um assunto e penetrá-lo bem, fica-se olhando-o todo de uma
vez, com paz e serenidade, apreciando-lhe assim melhor que se com trabalho se fossem
examinando os detalhes. Mas esta contemplação, além de ser pouco duradoura, é muito
inferior a notoriamente infusa, em que sem esforço nenhum, sem prévia preparação e
ainda quando menos se pensa e se procura, de repente, fica a alma cheia de luzes e de
santos afetos” – Juan Arintero, Evolución Mística, Salamanca, San Esteban, 1989, p. 275-
276 – NC.
6 “[...] é uma simples intuição da verdade divina, procedente da fé ilustrada pelos dons
do entendimento, sabedoria e ciência em estado perfeito” – Antonio Royo Marín, Teología
de la perfección cristiana, Madrid, BAC, 2001, p. 703 – NC.
7 Referência ao Sl 54, 7.
8 “[...] todos estamos chamados com um chamado remoto e geral à contemplação
infusa, pelo mero fato de estar chamados à perfeição cristã, que não se pode conseguir
plenamente sem aquela. Mas o chamado próximo e particular para entrar de fato na
contemplação se manifesta por certos sinais característicos, que o olhar de um diretor
especialista descobrirá sem esforço na alma dirigida”. Antonio Royo Marín, Teología de la
perfección cristiana, Madrid, BAC, 2001, p. 713 – NC.
9 “Porque não é digno da alta contemplação de Deus quem por Deus não sofreu alguma
tribulação”. Imitação de Cristo. Livro II, cap.9, 7 – NC.
10 Eclo 15,5 – “Espírito de sabedoria e inteligência”.
CAPÍTULO XXIV
Está escrito nos salmos que Nosso Deus é tão amável e tão
suave, que basta vê-lo e prová-lo, só uma vez, para ficar
apaixonado por Ele.4 Ora, que coisa não sentiria Gema que não
apenas uma vez, mas continuamente era esclarecida por Deus com
aquelas brilhantes e fortes luzes da contemplação, e favorecida da
doçura da presença divina? Dissera quase que era como uma
esposa ferida no coração, vivendo só para o seu celeste Esposo;
n’Ele conservava fixos o coração, a mente, enfim, todo o seu ser, e
como ela mesma exclamava:
Oh! Que há para mim no Céu, ó meu Jesus. E que vos pedirei eu neste
mundo, Deus do meu Coração, minha herança, e meu tudo eternamente?
Bastava observá-la um pouco, em qualquer ocasião, para
perceber logo que no íntimo do seu coração estes afetos se
revezavam constantemente. Se alguém conseguia entreter-se com
ela nestes assuntos espirituais, suas palavras eram breves e
concisas, mas abrasadas de amor:
Oh! Se todos soubessem como Jesus é belo! Como Ele é amável! Todos
morreriam de amor por Ele! Mas como é que Ele é tão pouco amado? Como
é perdido o tempo que se gasta com as criaturas! O nosso Coração é feito
para amar um só objeto que é o nosso grande Deus.
Estive diante de Jesus, eu nada lhe disse, Ele nada me disse; ficamos
ambos silenciosos. Eu olhava para Ele, e Ele para mim. Mas se soubesse
meu pai, como é delicioso estar assim diante de Jesus! Já o experimentou?
Não quereria eu deixá-lo nunca. De repente Jesus disse: “Pronto”, e a luz se
dissipou. Mas o meu coração continuou abrasado de amor.
Enquanto eu tinha muitos desejos, minha alma andava inquieta, agora que
tenho só um, sou feliz. Mas já que o vosso amor é inaccessível, deixai-me
proceder como entendo, ó Jesus, aqui em meu coração quero erguer-vos
uma tenda toda de amor; só vós deveis entrar nela; eu vos prenderei junto a
mim; sereis sempre meu prisioneiro, não vos restituirei mais a liberdade,
não!, até que me deis a consolação que eu tanto desejo. Que desejo eu, e
que vos peço, ó Jesus? Vede que estamos de acordo; peço-vos o que vós
mesmo quereis, e desejo o que vós mesmo desejais.
Que vos parece, ó piedoso leitor? Não são preciosos estes frutos?
Pode por ventura produzir artificialmente a arte, sentimentos e
afetos como estes?
Contento-me com este exemplo, devendo brevemente tornar a
falar no abandono, na tranquilidade de espírito venturoso, na perda
feliz da nossa contemplativa em Deus.
***
Em seguida à Quietude vem o Sono místico,8 o quarto e mais
perfeito grau da união, diferente do precedente no seguinte: a
Quietude é o efeito de uma luz celeste que faz com que a alma sinta
e goze com suave calma da presença de Deus; e o Sono provém do
amor que entorpecendo a própria alma com suas faculdades
intelectuais e sensitivas, num suave calor, a faz como que
adormecer e repousar tranquilamente no seio de Deus.
Neste estado, a alma conhece que ama verdadeiramente o Sumo
Bem, mas não se detém neste pensamento satisfeita só com o
amor, sem refletir como se acha em tão delicioso estado. Aliás,
ainda que quisesse, nada poderia compreender porque dorme, e
seu espírito está perdido em Deus.
Com este dom foi favorecida frequentemente a seráfica de Lucca,
antes de ser elevada ao grau tão eminente da união extática. Deus
lhe concedia esta graça durante algum tempo até muitas vezes cada
dia.
Como neste estado os sentidos externos se entorpecem
facilmente, ficava absorta e era fácil surpreendê-la nele, ora em pé,
ora assentada, ora de joelhos ou prostrada por terra. Parecia dormir,
e costumava servir-se do termo de sono para designar este
misterioso fenômeno. Mas o seu coração não dormia, embora o
espírito ficasse inteiramente abstrato de tudo e até de si próprio.
Ao sair deste estado não sabia exprimir-se de outro modo senão
que tinha estado no seio de Deus:
Dorme pois, angélica virgem, sobre este seio que com tanta ânsia
procuraste; já conseguiste, posso dizer, o teu fim último.
Não obstante, querendo eu certificar-me ainda com uma
experiência, e também para mortificá-la, disse-lhe uma vez que tal
sono durante o dia me parecia uma bela ociosidade, e, portanto, que
o suspendesse. Coisa singular! Ainda que este sono sobrenatural
seja independente da vontade humana, que não pode provocá-lo
nem impedi-lo, todavia Gema suplicou ao Senhor que lhe permitisse
obedecer e o Senhor a satisfez; o fenômeno místico nunca mais
reapareceu.
Porém, logo outro fenômeno de ordem superior se manifestou,
certamente como prêmio da sua boa vontade em obedecer, aquele
que acima apontamos, da União Extática, e de que falarei no
capítulo seguinte:
Os laços do vosso amor são tão fortes, ó meu Deus, que não posso
quebrá-los. Deixai-me, deixai-me a liberdade, eu vos amarei acima de tudo, e
vos procurarei sempre. Que tendes feito, ó Jesus, que tendes feito a meu
coração para que tenha esta loucura por vós? Oh! Não posso mais, tenho
necessidade de expandir-me, de cantar, de exultar. Viva o amor incriado! Viva
o coração do meu Jesus! Oh! Se todos os pecadores viessem a este
coração! Vinde, vinde, pecadores, não temais, que a espada da justiça não
chega até aqui dentro. Oh! Eu quereria, ó meu Jesus, que minha voz
chegasse aos confins do mundo, chamaria a todos os pecadores e lhes diria
que entrassem todos no vosso coração.
Tenho um desejo ardente de voar para o meu Deus – escrevia ela. Ó meu
pai, se me pudesse dizer que em poucos dias Jesus fará de mim uma vítima
do seu amor, que me fará morrer só de amor!... Que bela morte! Não tenho
sossego enquanto Jesus não me comunicar um pouco do seu amor, para me
abrasar toda por Ele. Quereria que o meu coração se reduzisse a cinzas, e
todos dissessem: o coração de Gema está reduzido a cinzas por amor de
Jesus.
Não julgue o leitor que esse grau de união, por ser sensível, seja
de menos valor. Pois o que nele se manifesta nos sentidos não é
mais do que uma superabundância, reflexo da alegria interior da
alma, produzida pela luz extraordinária que o Espírito Santo lhe
infunde, e também do amor experimental que lhe aviva o coração.
Por vezes esta superabundância é tão forte que, derramando-se
como uma torrente de fogo no órgão material do coração, o abrasa
completamente.
Este ardor, compreendido neste sentido, forma o sexto grau de
perfeição, que os místicos denominam Chama de amor.10 A seráfica
de Lucca possuiu esta chama tão intensa, que se durasse mais dois
ou três meses mais do que durou, o coração se lhe teria incendiado
no peito. Não escrevo fantasmas, mas fatos reais e bem
averiguados pela experiência. O seu coração era como uma
fornalha, não se lhe podia encostar a mão sem sentir-se queimar
ainda mesmo por cima das roupas.
Querendo melhor certificar-me, dei ordem à senhora em cuja
companhia Gema estava, que a observasse durante o êxtase. Oh!
Que maravilha! Muitas vezes toda a superfície do peito sobre o
coração aparecia queimada, como se estivesse debaixo de carvões
ardentes.
Este misterioso fenômeno durou durante os meses que referi; mas
depois que cessou, podia-se por muito tempo ainda reconhecer
sobre a pele os sinais das queimaduras e das chagas produzidas
por elas. Deixamos que ela própria nos descreva estes fenômenos:
Entretanto, ela não queria trocar esta dor tão intensa por todos os
tesouros do mundo, porque ao lado da dor física, a suavidade que
sentia no fundo de sua alma era verdadeiramente inexprimível. No
êxtase exclamava:
Vós ardeis, ó Senhor, e eu queimo. Oh! Dor! Oh! Amor! Sumamente feliz!
Oh! Fogo suave! Doces chamas! Quereria que o meu coração se
transformasse numa chama! Oh! Achei a chama que devora e reduz a cinzas.
Oh! Cessai, cessai que não consigo subtrair o meu peito a tão vivo fogo. Que
digo? Não, vinde antes, ó Jesus, abro-vos o meu peito, comunicai-lhe vosso
divino fogo. Sois uma chama, fazei que se mude em chama o meu coração.
Oh! Que é este incêndio que sinto em mim? Serão chama do vosso amor, ó
meu Jesus? Sim, são chamas do vosso amor.
Pobre Gema – me escrevia a senhora que lhe assistia –, como sofre!... Ela
se consome de amor por Jesus; não cessa de repetir que se sente queimar e
não vê o fogo, sente-se apertar com força e não percebe as cadeias que a
prendem. Ah! Se ouvisse que exclamações de amor! Que expressões saem
de seus lábios quando está no êxtase! Quereria poder transcrever todas
estas expressões que em grande número se têm perdido, quando ela as
proferia ou escrevia, porém não acabaria mais.
Que paz, que repouso, ainda quando vos ocultais! Ficai, embora longe, ó
Jesus, basta que não me falte nunca vosso amor. Abrasai-me: o vosso amor
me basta! Quereria que todos dissessem que o vosso amor me tem
consumido, ó amor... amor, quero ir convosco! Afastai-vos quanto quiserdes,
e eu vos seguirei sempre.
O meu santo Padre Paulo da Cruz, que também foi favorecido com
este grau de incêndio de amor, costumava exclamar:
Quanto a mim, preciso de Jesus – dizia ela –: oh! Dai-me, dai-me Jesus.
E dirigindo-se a Ele:
Apressai-vos Jesus, não vedes como este coração vos deseja? Não vedes
como desfalece? Não sentis vê-lo assim desfalecer de desejos? Ó Deus!
Vinde, vinde, Jesus, não tardeis, correi, aproximai-vos, fazei-me ouvir a vossa
voz. Ó meu Deus, quando me saciarei da vossa divina luz, quando? Jesus,
alimento das almas fortes, fortificai-me, purificai-me, divinizai-me. Ó meu
Deus de infinita grandeza, Jesus, ajudai-me. Deus gerado de Deus, vinde em
meu socorro! Tenho sede de vós, ó Jesus. Não vedes como eu sofro de
manhã antes de me alimentar de vós ? Fazei que ao menos quando me
alimento fique saciada!...
Meu pai, o meu coração é vítima de amor; não posso mais, em breve
morrerei de amor. Estas chamas de amor consomem o meu coração e
também todo o corpo; ficarei reduzida a cinzas. Ontem, aproximando-se de
Jesus exposto no Santíssimo Sacramento, senti que me queimava com tanta
força que tive que me afastar; parecia-me estar rodeada de chamas; até ao
rosto tinha subido o calor. Viva Jesus! Como é que tantos cristãos podem
viver perto de Jesus sem ficarem reduzidos em cinzas?...
Jesus está em mim, e eu sou toda d’Ele. Espero, porém, a graça de ser
toda transformada n’Ele, e consumo-me no desejo de abismar-me no oceano
imenso do divino amor.
Meu coração está sempre unido a Jesus, que cada vez me consome mais.
Oh! Meu dulcíssimo Jesus, quereria no meio das chamas do vosso amor,
dissolver-me inteiramente. Ah! Como corresponder-vos, ó meu Deus, que me
tendes beneficiado tanto? Quem me ajudará? Só a vossa misericórdia devo o
pequeno amor que tenho em meu pobre coração.
Jesus continua a me amar, mas não como antes; continua a me unir a Ele,
e tomar-me recolhida, mas de outro modo. Desde aquele dia começou para
mim uma vida nova.
Hoje não estou mais em mim; mas só no meu Deus: toda para Ele e Ele
todo em mim e para mim.
Como são preciosos estes momentos! Sinto uma felicidade que só se pode
comparar com a celeste bem-aventurança dos anjos e dos santos. Sim, sou
feliz, porque o meu coração palpita com o vosso; sou feliz porque vos
possuo; ó meu Jesus! Quanta consolação me inspira saber que vos possuo!
Ah! Meu Deus! Se tão felizes nos fazeis na Terra, que será no Céu?
Oh! Se vós pudésseis, meu pai, experimentar e gozar de tantos dons que
Jesus me concede! Como Jesus é bom! Peço-lhe que suspenda e ponha
termo a tantas graças porque não posso mais. Ajudai-me, ajudai-me e
abençoai-me.
Oh! Quanto quereria fazer! Se eu pudesse dar de pronto toda a minha vida
por Ele! Mas não, eu quero viver sempre, se é do seu agrado, trabalhando
para Ele, fazer penitência, sofrer muito e amá-lo infinitamente. Oh! Se eu
pudesse possuir, como ardentemente desejo, o fervor e o amor de todas as
almas santas! Mais ainda, se me fosse possível igualar na pureza os anjos e
até a vós, oh! Maria, nossa Mãe Santíssima!
Não é a primeira vez; produz-me sempre esse efeito, se não consigo fugir
ou ao menos distrair-me.
Ela poderia ter acrescentado que outras vezes tinham sido piores,
pois a violência da dor lhe tinha arrancado lágrimas de sangue. Este
último fenômeno, único também na história,9 penso eu, se
reproduziu frequentemente e foi observado por muitas pessoas
depois de Gema ser elevada por Deus à perfeição do amor. Sob a
pressão da dor intensa causada pelas ofensas feitas ao Amante, o
sangue corria em rios de seus olhos inocentes, e se coagulava
sobre as faces, de que era preciso tirá-lo aos pedaços.
Outro fruto da perfeita união de Gema com seu Deus era uma
espécie de impassibilidade diante dos mais penosos
acontecimentos da vida. Ou não sentia sua agudeza ou não lhes
prestava atenção, e enquanto ao redor dela reinava a tristeza e o
desânimo, ela se conservava calma e serena.
Não vos perturbeis – dizia ela –, não é nada. Jesus não permitirá que vos
aconteça algum mal; não existe Jesus? Por que ter tanto medo?
Creia, meu pai, não tenho mais medo do demônio. Ele bate e torna a bater;
mas estou convencida de que Jesus, se lhe permitir molestar-me, não lhe
permitirá fazer mal a minha alma.
Meu pai, que satisfeita que estou, agora que eu me entreguei toda nas
mãos de Deus, e estou unida inteiramente à sua divina vontade! Eu procuro
Jesus, mas somente para que Ele me ajude aceitar as suas ordens
santíssimas. Agora aprendi também outra coisa: minha alma não vai mais
indagando, nem cogitando, vivo no silêncio e na paz do coração. Oh! Quanto
se goza em estar completamente unida à vontade de Deus! Este gozo me é
suficiente.
Mas que é que eu sinto? Não posso, Deus meu verdadeiro, entregar-me a
esta doçura e felicidade. Que é meu Deus, o que sinto? Ah! Eu vos sinto em
meu coração, sinto-vos verdadeiramente vivo! Que mistério! Sinto-me no
Céu! Numa destas vezes, Jesus, Vós me fareis morrer, quando vos sentir
assim palpitar em meu coração. Oh! Jesus! Que seria se um dia se pudesse
dizer que o vosso amor me consumiu? Não, não, Jesus, não me ordeneis
que vos ame. Não, não vos pedirei mais amor, porque não posso suportar
mais. Não me inflameis mais que já não tenho mais forças.
E assim era.
O próprio órgão material do coração deu uma prova disto; porque
elevando-se esta virgem singular ao último grau da perfeição no
amor, o coração sendo insuficiente para sustentar as chamas desta
alma seráfica, começou a agitar-se com movimentos insólitos.
Bate-me o coração com tanta força – dizia-me ela –, que parece querer sair
do peito. É fraco demais e não pode ficar quieto. Incomoda-me muito,
constrangendo-me a estar sentada na cama; e a cama treme toda. Em certos
momentos, parece-me que o coração me quer furar o peito, e sou obrigada a
comprimi-lo com a mão. Oh! Quanto estimaria ter alguém que me ajudasse a
temperar os ardores e as chamas de que meu coração está perpetuamente
agitado!
Não vedes? Jesus é tão grande e o meu coração é tão pequeno! Jesus não
cabe num coração pequeno, mas querendo aí tomar lugar, agita-o desse
modo; assim será difícil de remediar, meu pai, se Jesus não lhe der remédio.
Oh! Que se dilate, que dilate este coração para Jesus estar a seu gosto!
Ó Jesus, lhe disse eu, logo que ele acabou de falar, quando ouço
pronunciar o vosso nome a minha alma se reanima. Vosso nome só, ó Jesus,
sim, só vosso nome me tranquiliza a vida. Meu bom Jesus, meu coração está
desapegado da Terra, e repousa em Vós, mas minha alma acabrunhada por
vossos contínuos favores, suspira e se exala, e não podendo repagar-vos
com trabalhos heroicos, expande-se em atos de amor. Jesus, às minhas
palavras, cada vez mais se fazia sentir na minha alma, e suas palavras me
produziam tal efeito que, de bom grado, teria morrido para ir para o Céu, e
exclamei: “Oh! Jesus, essa pobre alma ligada a este vil e miserável corpo,
não podendo voar para Vós, bate as asas e se levanta com todas as suas
forças para chegar mais perto de Vós; ergue-se pelo espírito (quero dizer
com os pensamentos e afetos) porque este não está ligado ao corpo”. Assim,
fora de mim, pela consolação e cheia de temor, dirigi-me aos meus anjos do
Céu, que são testemunhas de todas estas maravilhas de Deus, e disse:
“pedi-lhe”; não são traços de um poder ilimitado, inspirado por um amor
infinito? Depois, voltando-me para Jesus, perguntei-lhe o que ele fez ao meu
coração que não posso mais governá-lo. Quer ir sempre para Jesus e eu não
posso impedi-lo. Não quer mais ser meu, deu-se todo a Jesus. E Jesus com
sua voz tão doce e penetrante me respondeu: “Eu venci!”Ah! Sim, sou feliz
em ter sido vencida por tanta bondade, por tanto amor. Viva Jesus!
Quem vos matou, Jesus? O amor. Ah! Estes pregos, esta cruz, este sangue
são obras do amor!
E enquanto o divino amante das almas derramava em seu espírito
torrentes de luz, para lhe desvendar os mistérios da redenção, e o
fogo no coração para infamá-la no amor, ela assim se expandia:
Oh! Jesus, que seria, se um dia?... Ah! Vítima de amor por Vós?... Sim,
meu Senhor Jesus, fazei que quando os meus lábios se aproximarem dos
vossos para beijar-vos, eu sinta o vosso fel. Quando meus ombros se
apoiarem sobre os vossos, fazei que eu sinta os vossos flagelos. Quando a
vossa carne se comunicar à minha na Eucaristia, fazei-me sentir a vossa
Paixão. Quando minha cabeça se encostar na vossa, fazei-me sentir os
vossos espinhos, e quando o lado se aproximar do vosso, abrasai-me em
vossas chamas... Que vos darei por todos os vossos dons, em me terdes
amado e levantado? Que podereis esperar de uma vil criatura? Dar-vos-ei
tudo o que de Vós tenho recebido.
Minha alma bendize a Jesus, e não te esqueças jamais dos benefícios que
te tem feito, ama a este Deus que tanto te ama e eleva-te para Ele, que se
abaixou até a ti; mostra-te a ele, como se mostrou a ti; sê pura; sê perfeita;
ama a teu Jesus que te ergueu de tanta miséria, ama a teu Deus, bendize ao
teu Senhor.
Então, Jesus, para aprender a amar é preciso aprender a sofrer? Ah! Bem
vejo agora que o derramar do vosso sangue é efeito do amor. Pois bem,
Jesus, se me quiserdes, eu me ofereço como vítima; no mesmo cálice em
que molhastes os vossos lábios, quero eu beber também. Agradeço-vos, ó
Jesus, por me terdes assim sobre a cruz.
Estais sorrindo, ó Jesus, mas eu não estou sorrindo. Meu bom Jesus,
concedeis-me a graça? Se não, isto vai acabar mal. Dizei-me depressa que
sim. Não olheis para os meus merecimentos, olhai para os merecimentos de
quem vos pede por mim.
Jesus replicou:
Não, eu te mando a teu pai. Ele por certo dará a meu coração à satisfação
que desejo. Dize-lhe que se não se fizer como eu ordeno, acontecerá isto; e
depois não haverá mais remédio.
Como eu amo a minha Mamãe! – dizia. Ela bem o sabe, foi Jesus quem me
deu, e Ele me ordena que a ame muito: como esta Mãe celeste se tem
mostrado sempre boa para mim! Que seria de mim sem ela? Seu auxílio
sempre me valeu em todas as minhas necessidades espirituais, preservou-
me de tantos perigos; livrou-me das mãos do demônio, que vinha sempre
afligir-me; desculpava-me com Jesus quando eu O ofendia; acalmava-O
quando eu O irritava com minha má vida, ensinava-me a conhecê-Lo e a
amá-Lo, a ser boa e a agradar-Lhe. Ah! Minha querida Mamãe, eu vos
amarei sempre, sempre.
Que direis, leitor, desta cena? Quanto a mim, há seis anos que a
ouvi pela primeira vez da boca de Gema, e que a leio e releio em
seus escritos e, entretanto, parece-me sempre tão nova e tão
tocante!
Eis aqui outra do mesmo gênero:
Ontem à noite, retirei-me para o meu quarto, e ali estava só, quando o
Menino Jesus veio procurar-me. Oh! Quanto Jesus é belo! Se todos o
conhecessem, quanto O amariam! Assentou-se sobre os meus joelhos,
beijou-me, acariciou-me, e perguntou-me se eu O amava. Eu O abracei e
beijei ternamente, expandindo todo meu amor, pois é tanto o amor que lhe
tenho! Perguntou-me se queria ser toda sua. Eu estava tão comovida pela
alegria que não sabia responder, e me conservava abraçada com Ele.
Então eu comecei a falar com toda confiança. Pedi a Jesus para vos dar a
vós, meu pai, e também ao meu confessor, o conhecimento do que se passa
em minha alma, e não me deixar mais na inquietação sobre este ponto.
Jesus sorria e me dizia: “Eu o farei”. Mas falou em voz baixa e devagar. Pedi-
lhe que não se demorasse tanto, porque eu não tinha vontade de esperar
mais. Jesus replicou: “Mas se eu te tenho amado mais do que a muitas
outras criaturas, apesar de seres pior do que elas! Quanto a verdade do que
se opera em tua alma, já está reconhecida por quem a devia conhecer; para
outrem, não é ainda tempo, mas virá o tempo em que eles a reconhecerão.
Sou eu, Jesus, que te falo”.
O amor fez perder felizmente o juízo a esta seráfica jovem. Ela sabe que
está unida com o seu Deus por um vinculo indissolúvel, e continua a desejá-
lo ainda ansiosamente. Somente quem ama muito, é que pode pensar e falar
deste modo.
1 Para Santa Teresa “[...] arroubo, ou enlevo, ou voo que chamam de espírito, ou
arrebatamento são uma só coisa”. E “[...] o arrebatamento vem com um único indício que
Sua Majestade dá no mais profundo da alma, com uma velocidade tal que ela tem a
impressão de ser arrebatada para sua própria parte superior e sair do corpo”. In: Santa
Teresa de Jesus. Obras completas, São Paulo: Loyola, 1995, p. 125 e 801 – NC.
2 Sl 83, 3 – “Meu coração e minha carne exultam pelo Deus vivo”.
3 “Assim ocorre com a alma, que parece produzir de si uma coisa tão rápida e tão
delicada que se eleva à sua parte superior e vai aonde o Senhor quer que vá”. In: Santa
Tresa de Jesus. Obras Completas, São Paulo: Loyola, 1995, p. 801 – NC.
4 Hora Canônica do Breviário Romano, na forma extraordinária do Rito Romano. Nas
reformas promovidas após o Concílio Vaticano II, a Liturgia das Horas, é chamado de
Ofício das Leituras – NC.
5 Devoção eucarística surgida durante o período da Contra-Reforma, especialmente
divulgada por Santo Antonio Maria Zaccaria, fundador dos Clérigos Regulares de São
Paulo, conhecidos como Barnabitas e das Irmãs Angélicas de São Paulo. Consiste em
expor o Santíssimo Sacramento, durante quarenta hora ininterruptas, em honra das horas
que permaneceu Nosso Senhor no sepulcro, em espírito de reparação – NC.
6 Os êxtases de Santa Gema, atualmente publicados também com o nome de Colloqui
com Gesù.
7 Sl 8, 3. “Da boca das crianças e dos pequeninos sai um perfeito louvor [...]”.
8 Levitação: “Como indica o nome, consiste este fenômeno na elevação espontânea,
momentaneamente o deslocamento no ar do corpo humano sem apoio humano e sem
causa natural visível. Regularmente, a levitação mística se verifica sempre estando o
paciente em êxtase. Se a levitação é pouca, se costuma chamar êxtase ascensional. Se o
corpo se eleva a grandes alturas, recebe nome de voo extático. E se começa a correr
velozmente sobre o chão, mas se tocá-lo, constituí a chamada marcha estática”. In: Royo
Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana, Madrid: BAC, 2001, p. 948-949 – NC.
9 O Pai São Paulo da Cruz, conforme ele mesmo contou, em uma sexta-feira Santa,
diante do Altar do Santíssimo Sacramento, na transposição: “Então, o Santíssimo Crucifixo
diante do qual orava desprendeu o braço da cruz e me abraçou forte, me colocando no seu
Santíssimo Lado, onde me teve por três horas, e me parecia estar positivamente no
Paraíso”. In: Calabrese, Antonio. La vita mística di San Paolo della Croce, Vaticano: LEV,
2001, p. 105 – NC.
10 A versão brasileira não apresenta estes apêndices – NC.
11 2Cor 12, 4 – “Que não é permitido ao homem repetir [...]”.
12 Trata-se da visão dos castigos divinos – NC.
CAPÍTULO XXVII
A SAGRADA EUCARISTIA:
GEMA E SUA EXTRAORDINÁRIA DEVOÇÃO
Meu Pai – escreveu-me ela –, esta carta vos parecerá sem sentido; não
importa; deixe-me falar da Sagrada Comunhão, não posso mais deixar de
expandir-me. É possível que haja almas que não compreendam o que é a
Sagrada Eucaristia? Que sejam insensíveis aos apelos divinos, das
misteriosas e ardentes efusões do Sagrado Coração do meu Jesus?
Vou ver Jesus! Vamos a Jesus porque ele está só, ninguém pensa n’Ele...
pobre Jesus!
Jesus, alma de minha alma, meu paraíso, Hóstia santa, eis-me aqui. Senti
que me procuráveis e corri.
Se neste mundo o bem se faz amar por si mesmo, que amor não inspirareis
Vós, que sois o Rei dos bens? O prazer que dão às criaturas na Terra é tão
diferente do que se goza em Vós, que sois o Criador! Vede, ó Jesus, quando
uma criatura pretende ter um objeto, ela morre de desejos de possuí-lo; mas
quando o obtém não se sente satisfeita, não se sacia. Só Vós nos satisfazeis,
Vós só tornais puros e imaculados os que vivem em Vós e nos quais
estabeleceis a vossa morada.
Ah! Eu achei vossa habitação. Ó meu Jesus, Vós viveis nas almas que
criastes à vossa imagem, nas almas que vos procuram, Vos amam e Vos
desejam. Oh! A minha alma, tão pobre, compreendeu as riquezas do vosso
amor.
Sou vossa, sou vossa, ó meu Jesus, mas tereis razão de vos queixar de
mim porque vos ofendi. Indigna, como sou, deveria restituir ao altar tantas
hóstias e tanto sangue que tenho roubado. Mas vos prometo emendar-me,
basta que continueis a corrente das vossas graças. Antes morrer do que
faltar a fidelidade e ao amor. Que quereis, que quereis de mim, ó Jesus? Que
meu amor seja constante? Alimentar-me-ei todos os dias da vossa carne e do
vosso sangue.
Quereis amor, ó Jesus, mas não tenho mais no coração. Ah! Eu quisera
inflamá-lo em todas as criaturas do universo.
Demos o caso, Senhor, que Vós fosseis Gema e que eu fosse Jesus;
sabeis o que eu faria? Eu deixava de ser Jesus para que Vós o fôsseis. Oh!
Deus! Oh! Jesus, eu vos vejo maior que todos os tesouros da Terra! Como de
bom grado eu me uniria aos vossos anjos! Como satisfeita eu me desfaria em
vossos louvores! Como contente ficaria, sem cessar, diante de Vós! Mas que
digo, quando falo de Vós? Digo o que posso, mas não o que devo. E já que
não sei falar, devo calar-me? Não, porque o meu Jesus deve ser amado e
honrado por todos. Não olheis para o que vos digo, mas para o meu interior.
Todos os meus segredos vos são manifestos, meu bom Jesus; tendes agora
certeza de que eu vos amo mais do que tudo no Céu e na Terra?
Estes e outros semelhantes sentimentos se sucediam no coração
da jovem virgem na presença do seu Deus sacramentado. Tenho
ainda centenas deles, fielmente conservados e recolhidos de seus
lábios, que eu poderia continuar a transcrever, mas como fazê-los
caber em um só capítulo?
Avalie-os o leitor, por estes extratos que lhe tenho dado.
Ah! Não posso mais sustar-me, não posso, pensando que Jesus se fez
sentir a última de suas criaturas, e se manifesta com todos os esplendores de
seu magnífico coração na prodigiosa expansão de seu amor paterno.
Meu amado Jesus, mas se procedeis deste modo com todos, isto é, deste
modo a se sentirem assim inflamados na vossa presença, como me
acontece, ninguém mais poderá opor-se a Vós, nem resistir a este extremo.
Posso eu fazer isso, meu pai? E se vos acontecesse como a mim? Quem
vos poria a mão sobre o coração, – queria dizer, para reprimir os ímpetos de
amor, como se dava com ela –, e se estivésseis só e caísseis no chão? Não,
isso não devo fazer.
Ah! – dizia – não sei como tantas pessoas que estão perto de Jesus não se
incendeiam. Quanto a mim, se eu me demorasse um quarto de hora apenas,
parece-me que ficaria reduzida a um monte de cinzas.
Num êxtase, ela dizia familiarmente ao Senhor:
Dizia:
1 “Mistério da Fé”.
CAPÍTULO XXVIII
A COMUNHÃO DE GEMA:
ATO DE EXTREMA PIEDADE
Depois exclamava:
Eis, ó meu Senhor, o meu coração e a minha alma, vinde, meu Senhor, que
eu vos abro o meu peito. Introduzi-vos, ó Fogo divino, queimai e consumi-me;
vinde, não tardeis mais. Quereria ser a esfera das vossas chamas.
Esta frase lhe deve ter sido referida pelo próprio Jesus, como é
fácil de supor. Assim, a confiança, alternando com o temor, e o
temor com a confiança, estabeleciam no coração desta virgem o
equilíbrio necessário para comungar diariamente.
No dia em que se celebrava a festa do mártir São Lourenço,1 ela
que de tudo sabia tirar vantagem para o seu espírito, disse ao
Senhor:
Mas meu querido Jesus, que confusão para mim esta manhã! Quisestes
que eu voltasse meu pensamento para São Lourenço. Confundo-me,
considerando-o no meio de tantas dores, e eu com a hóstia, gozando as
doçuras do Paraíso. Oh! Coração do meu Jesus, coração excessivamente
bom, se me quereis dar uma boa parte deles – refere-se aos sofrimentos de
São Lourenço –, dai-me a: basta só que eu me aproxime sempre de Vós com
receio de ofender-vos. Confrontei duas almas, a de um santo, e a de uma
pecadora. Posso deixar de ficar confundida? Quereria, por intermédio do
mesmo santo, oferecer-vos esta minha alma tão pecadora. Mas tenho medo,
tenho medo, porque reconheço que ela é culpada diante de Vós. Quem me
dera a mostrar-vos bela, como a recebi das vossas mãos!
Que direi mais? Lê-se na vida de muitos santos, que não podendo
ir à Igreja comungar, Deus se servia às vezes de um anjo, que para
saciar a fome que tinham da Eucaristia, substituía o sacerdote e
lhes levava em casa a Sagrada Hóstia. Parece que por três vezes o
Divino Salvador quis dar a Gema esse preciosíssimo presente.
Eis o que nos refere uma testemunha ocular:
A um amante apaixonado, como Vós sois? Oh! Senhor, não são precisas
tantas súplicas, ao primeiro pedido atende logo. Assim dizei-me sim, e eu
vou.
Oh! Meu pai, meu pai!... hoje, às cinco horas, fui confessar-me e o
confessor me disse que quer tirar-me Jesus. Ah! Meu pai, a pena não quer
mais escrever, a mão me treme muito, e choro.
Subentende-se:
Não, não te quero! Onde está o meu Jesus? Onde estais, ó meu Jesus? É
verdade que Jesus não entrou esta manhã em meu coração, mas nem tu
entrarás, a ti não te quero. Jesus, afastai-o de mim. Mas Jesus como permitis
que o demônio venha em vosso lugar, com o vosso semblante? Vencei vós,
oh! No meu coração, que por vós suspira; depressa, ó Jesus, que o meu
coração vos quer. Oh! Não vedes como sofro! Afastai aquele mentiroso, não
vedes que ele me quer fazer cair no pecado? Por que me deixais assim? É
verdade que fui eu a primeira a deixar-vos; mas eu vos quero, não me deixeis
mais.
Aqui, parece que o Senhor a repreendia por não ter cedido ao
convite que Ele tinha feito nessa manhã de ir comungar sem temor,
e ela, desculpando-se com a sua natural candura, respondia:
Sim, eu resisti, ó Jesus, mas sofri também muito. Ouvi o convite esta
manhã; mas ó Jesus, como devia fazer para vos receber? Vede, Jesus, se o
confessor me tivesse dito que podia receber a Sagrada Comunhão, eu a teria
recebido, mas ele mesmo me tem dito que eu não posso me fiar em mim
mesma. Por isso eu vos deixei, julgando estar em pecado. Agora, Jesus,
perdoai-me e vinde, vinde agora ao meu coração. Depressa, Jesus! É vosso
o meu coração, é todo vosso. Vinde, e fazei-me sentir a vossa presença. Não
vedes como meu coração desfaleceu!
quereria sepultar para sempre com o seu amado Jesus, que recebera no
altar, dentro do seu coração, e que quereria que Ele lhe fizesse conhecer até
que ponto devia chegar, e com que medida devia retribuir o amor dela para
pagar-lhe tanta honra.
Meu Jesus! Meu Jesus! Meu Pai, minha doçura, consolação de todas as
criaturas, amor que me sustentais, fogo que sempre ardeis, sem nunca se
apagar!
Oh! Meu pai – escrevia para que eu participasse das suas angústias –,
todas as consolações que eu sentia na Sagrada Comunhão, e duravam todo
o dia, se converteram em desolações. Não sei o que aconteceu.
Mas há dias que não é assim. Às três manhãs, que depois de ter eu
recebido a Jesus, Ele fez como se eu não o tivesse recebido, cala-se, e me
faz morrer de angústia. Assim passamos todo o tempo e não consigo fazer
mais nada.
1 Celebrado a 10 de agosto. São Lourenço foi martirizado neste dia de 258, e condenado
a morrer na grelha, em meio às chamas – NC.
2 Faça-se.
3 Mt 12, 34 – “[...] a boca fala do que lhe transborda do coração”.
CAPÍTULO XXIX
Então duvidais, Senhor, que eu queira sacrificar-me toda por Vós. Por Vós
suportarei o maior suplício, todas as gotas de meu sangue darei para
contentar o coração de meu Jesus, e impedir que tantos ingratos pecadores
O ofendam.
Vejamos agora o que ela fez. Não falarei mais em tormentos, pois
experimentou-os todos, sem medida; não falarei também do sangue
que, em torrentes, derramou das mãos, dos pés, do lado, dos olhos,
de todo o corpo, a ponto de não lhe ficar quase mais nas veias.
Mas que obras então poderia praticar esta virgem para ser
apóstolo de Jesus Cristo! Não receies, ó leitor. Guiada pelo Espírito
Santo, ela cumprirá perfeitamente a sua missão, e onde não chegar
a sua ação, atingirão as suas orações e lágrimas. Quanto a mim
posso atentar que desde o primeiro dia em que conheci esta virgem,
até o da sua morte, sempre a vi exercitando o seu zelo pela
conversão dos pecadores. Digo desde o primeiro instante pelo fato
já narrado no capítulo XIV. Tenho registrados outros fatos notáveis
de conversões, igualmente autênticos no meu grande repertório,
que se assemelham ao precedente. Omito-os para não ser tão
difuso e para evitar repetições.
Gema tinha conhecido o meio de comover o coração de Seu
Jesus, e as suas lágrimas inocentes, os seus suspiros inflamados, a
força dos argumentos que sabia tão bem empregar, obtinham
sempre o seu efeito. Só no último dia é que saberemos quantas
almas esta humilde donzela arrancou das garras de Satanás.
O que é certo é que ela não passava um dia sem rezar pelos
pecadores, e disto fazem fé as relações dos seus êxtases, em que,
sem pensar revelava toda a sua alma.
Vejamos: “Senhor, se me désseis um por dia”, repetia muitas
vezes. E continuava: “Oh! Jesus, não abandoneis os pecadores,
pensai nos meus pecadores; eu os quero todos salvos”. Depois,
como tinha sempre algum particularmente em vista, dizia: “Recordai-
Vos daquele de um modo especial, Jesus, que o quero salvo
juntamente comigo”.
Notai comigo a arte da eloquência, caríssimo leitor.
Muitas vezes, a querida jovem se voltava para a celeste Mãe, de
quem tinha experimentado tão bem o poder junto do Senhor nos
negócios que tanto lhe interessavam. Um dia, num êxtase, viu-a
muito aflita, e ao mesmo tempo, resolvida a não se importar mais
com uma alma em prol da qual ela se interpunha. Eis com que ardor
ela se esforça por demovê-la dessa determinação.
Mas que dizeis hoje, minha Mãe; abandonar aquela alma? Mas não é uma
alma de Jesus?... Por ela Jesus não derramou todo o seu sangue?... É
verdade que eu também me esqueci dela nestes dias; é por isso que a
quereis abandonar? Não, não, conservai-Vos firme, ide aplacar a Jesus.
Jesus obedece sempre à sua Mãe. Dizeis que não conseguiríeis? Mas se
sois onipotente? 2
E Gema respondia:
Sei, mas não a quero ver. Quando for salva então, sim, a verei. Ó minha
Mãe, como falais hoje assim? Vós que intercedeis sempre pelos pecadores?
Talvez deixásseis de ser sua Mãe? É impossível, minha Mãe, mas hoje
querereis deixar-me assim aflita? Obtende-me de Jesus o que me obtivestes
no sábado – referia-se a conversão de outro pecador pelo qual também rezou
muito – e ficarei contente!
Oh! Não, meu pai, por que desanimar? E por que em vez de proferir a
palavra tão triste, abandoná-la, não a chamai a vós para lhe dizer toda a
verdade? Não lhe fazeis ver a caridade que tendes usado comigo, que era
mil vezes pior do que ela? Atendei, se vos for possível vê-la, muito bem; se
não, escrevei-lhe depressa que se não entrar no caminho que Jesus exige, e
não abandonar o caminho do pecado, Jesus a fulminará. Não lhe falarei mais
nada sobre este assunto. Eu sei tudo, sei tudo.
Mas não pôde guardar por muito tempo a sua resolução. Pouco
depois, escreveu-me de novo:
É certo, meu pai, que Jesus não está contente com aquela alma, não, não!
Oh! Ele nos ama muito, mas mostrou-se tão severo! Dizei-lhe que, se não se
emendar, Jesus a abandonará. Fazei assim, ó meu pai, e quando a virdes
falai-lhe a meu respeito e aconselhai-lhe que me venha procurar. Se ela
tivesse vindo já, tudo isto não lhe aconteceria.
Como? Foi por ventura Madalena repelida por Jesus, por ser pecadora?
Deixai-a vir. Quem sabe se não lhe poderei fazer algum bem? Não a afasteis
de mim, eu vo-lo peço.
Mais ainda:
Creia, meu pai, posso me enganar; mas a pessoa de quem me fala não tem
boas intenções.
Custa-me dizer-lhe, mas não tirareis dela nenhuma vantagem, assim fareis
bem em não vos ocupardes mais com ela.
Ah! Que feia eu vi esta alma diante de Deus!
Meu caro pai, digo a somente a vós; às vezes, sem pensar em nada, vem
uma luz ao meu espírito. Não me detenho nessa ideia, mas um dia depois,
reconheço que a inspiração vinha de meu Deus. Acontece-me isto muitas
vezes, mas tudo em silêncio.
O anjo me disse – escrevia ela – que nesta noite Jesus me fará sofrer mais
um pouco, isto é, durante duas horas, começando às nove, em favor de uma
alma do Purgatório.
E ela confessa:
Foi muito forte este sofrimento, e durou exatamente o tempo anunciado.
Doía-me tão excessivamente a cabeça que cada movimento que fazia me
ocasionava tormentos terríveis.
Pela uma hora e meia da noite, pareceu-me ver a Nossa Senhora que me
vinha avisar de que a hora da libertação daquela alma se aproximava. Algum
tempo depois julguei ver chegar para mim Maria Teresa, vestida de
Passionista, acompanhada de seu anjo da guarda e de Jesus. Oh! Como
estava diferente do dia em que a vi pela primeira vez! Aproximou-se de mim,
sorrindo-se e disse: “Sou verdadeiramente feliz e vou gozar do meu Jesus
para sempre!”. Depois agradeceu-me de novo. Fez-me com a mão por muitas
vezes um sinal de adeus, e com Jesus e o seu anjo, voou para o Céu às
duas horas e meia da madrugada.
1 Pe. Germano já se referiu a tal visão, na qual Nosso Senhor fala dos castigos
iminentes – NC.
2 Aqui, é claro, não se refere a onipotência, atributo da Divindade. Mas, como invoca a
piedade cristã ao chamar a Mãe de Deus: onipotência suplicante – NC.
3 Consiste no “conhecimento sobrenatural do segredos do coração comunicados por
Deus a seus servos.” In: Royo Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana, Madrid:
BAC – 2001, p. 918 – NC.
4 Colégio de Jesus, fundado pelo Venerável Padre Germano, era um movimento
eucarístico de oração e reparação. Os inscritos deveriam buscar “a glória de Deus, o
advento de seu Reino no mundo, o triunfo da Igreja, a conversão dos pecadores e a
salvação de todas as almas”. Pode-se ver como a Divina Providência uniu estas duas
almas no espírito de reparação. Cf. Naselli, Carmelo A. Uma missione speciale affidata da
Gesú a Santa Gema Galgani. Ricerche di storia e spiritualità passionista 11. Roma: Curia
Generale Passionisti, 1979 – NC.
5 Mosteiro de Corteno-Tarquinia. Primeira fundação das Monjas Passionistas – NC.
CAPÍTULO XXX
Uma alma tão apaixonada pelos bens celestiais como era Gema
devia de achar-se fora do seu elemento vivendo no mundo, e assim
era.
Oh! Como farei – exclamava – para viver neste mundo, onde tudo me
desagrada? Tirem-me daqui, tirem-me daqui, onde não posso ficar.
Farei, se quiserem, mas o meu coração me diz que Jesus não me quer em
nenhum desses lugares. Por mais que façam nunca conseguirão, porque
Jesus me parece que é de outra opinião.
De fato, ora por uma razão, ora por outra, nada conseguiam e
viam os seus passos perdidos.
Só um convento satisfazia completamente o ardente atrativo da
piedosa virgem, o das Passionistas. Ela sentira esse desejo pela
leitura da vida do Bem-aventurado Gabriel, e parece que por este
mesmo servo de Deus, numa visão, recebeu animadoras
esperanças de um dia ser do seu número.
Daí em diante, não pensou em mais nada, e só por este Instituto
gemia aos pés de seu Deus.
Havia então uma só Comunidade de Religiosas Passionistas na
Itália, na cidade de Corneto6 a cem quilômetros de Roma e duzentos
e setenta e cinco de Lucca. Que fazer?
Depois de refletir po muito tempo e pedir conselhos, resolveu ir até
lá fazer um retiro. Fez esse pedido em regra juntamente com outras
três amigas de Lucca.
Mas quem o poderia pensar? Deus permitiu que a superiora que
possuía, aliás, muita elevação de espírito e bondade de coração,
respondesse de um modo decisivo: “As três venham, porém Gema
não, e vejam que se teimarem em trazê-la não as deixaremos
entrar”.
Aquela boa superiora, tendo ouvido falar de Gema em todos os
sentidos, a tomava sem dúvida por uma dessas jovens histéricas ou
alucinadas, que tanto prejudicam a uma comunidade.
A inesperada recusa foi comunicada a Gema, que sentiu uma
pena cruel, mas sem se alterar; e ouvindo que em casa se
queixavam muito daquela religiosa disse:
Conheci em sonho a madre presidente que olhava para mim com um olhar
tão severo. Eu lhe quero tanto bem e ela não gosta de mim.
Outra vez:
Eu sei que o padre – seu diretor – está em Corneto. Dize-lhe muitas coisas
em meu nome; pedi-lhe que me faça entrar no convento convosco. Serei
sempre obediente e não farei nada por mim mesma, eu lhe direi tudo e só
procederei conforme for de sua vontade. Sinto-me tão mal no mundo, minha
mãe. Diga ao padre que reze muito e se decida porque em breve não será
mais tempo.
Depressa, meu pai, ouvi a Jesus senão não será mais tempo. Tornarei a
falar em breve sobre esta frase cem vezes repetida: “não haverá mais
tempo”.
Prestai bem atenção, meu pai, Jesus está descontente com a vossa
desconfiança, como se Ele não pudesse, num instante, prover a tudo.
Comecem e verão o que Jesus o fará.
Senti tanta consolação em saber de sua opinião que Jesus quer o novo
convento! Sim, é verdade, Jesus o quer; e em breve Ele lhe dará esta
consolação.
E ainda:
Monsenhor disse que é preciso que alguém venha falar com o senhor
Arcebispo para se chegar a uma resolução definitiva. Já temos aqui 8.000
liras e há muitas casas grandes para vender ou alugar, conforme a vontade
dos superiores. Mas se estes dormem! Enfim, esperemos com confiança.
Que Jesus se digne também a ocultar-me num cantinho do convento.
Se nosso bom pai se decidisse a fazer a vontade de Jesus – que lhe era
bem conhecida –, tudo se arranjaria. Rezemos para que Jesus lhe dê a graça
de vencer as suas hesitações. Queira levantar-lhe o ânimo, dar-lhe coragem
de que muito precisa, e tirar-lhe o medo. Pobre pai! Não tenha receio de
nada!
E concluiu:
Depois, fez uma última predição, que devia ser muito dolorosa ao
seu coração. Já fiz menção dela, ei-la aqui:
Decidam – dizia ela –, porque em breve não será mais tempo. Jesus não
espera mais, e me disse que me levará consigo se, dentro de seis meses,
não se der principio à obra.
Esta manhã – escreveu ela – o que eu senti não poderei exprimir: somente
direi que senti muita vontade de chorar. Retirei-me logo para o meu quarto,
para ficar mais livre e chorei muito. Finalmente exclamei: Fiat voluntas tua.11
Mas minhas lágrimas não eram de dor, e sim de completa resignação.
O Fiat estava dito, Gema não pensou mais em ser religiosa, e não
deu mais um só passo; ocupou-se unicamente, daí em diante, em
preparar-se bem para a morte, que teve lugar, como ela profetizou,
no fim de seis meses.
Deus se contentou com o seu desejo, e com o merecimento do
sacrifício que com tanta generosidade lhe tinha feito a sua fiel serva.
Por outro lado, os votos da profissão religiosa ela já os tinha feito
particularmente; freira e Passionista, ela o era de coração e de
espírito, pois trazia o crucifixo gravado no meio do coração, e os
estigmas da Paixão na própria carne.
Podia, pois, sem pesar, sair deste mundo satisfeita e com a íntima
alegria de ter cumprido admiravelmente o fim para que Deus a
criara.
Logo que a santa jovem exalou o seu último suspiro, começaram
em mim os remorsos, e com razão! Os remorsos provocaram a
execução da ideia e, sem mais tardar, deu-se princípio a esta
fundação.
Lembrando-me da ordem que um ano antes ela me transmitira:
“Vá a Roma e fale com o Papa”, assim fiz agora e falei com o Santo
Padre Pio X,12 recentemente elevado ao Sumo Pontificado. Ouviu-
me com amor, agradou-se do projeto da obra, tomou a pena e, com
sua augusta mão, deu a sua alta aprovação.
O precioso documento assim é concebido:
VÍTIMA EXPIATÓRIA:
A ÚLTIMA ENFERMIDADE DE GEMA (MAIO DE 1902 – ABRIL DE
1903)
E acrescentou:
Se não fosse em atenção aos anjos que rodeiam o Meu Altar, a quantos
não fulminaria imediatamente.
Pelo meu lado, estando ciente do que se passava, não quis que a
santa donzela recorresse aos médicos e lhe escrevi dizendo que,
por obediência, pedisse ao Senhor o seu restabelecimento.
Com a maior docilidade, ela, fazendo-se violência, rogou a Deus e
Jesus lhe respondeu que em atenção à virtude da obediência, e
para mostrar que Ele era o autor da misteriosa enfermidade, a faria
sarar logo, mas por pouco tempo.
De fato, Gema ficou boa de repente, aceitou de novo a
alimentação ordinária, e no fim de uma semana voltaram-lhe as
forças, as cores do rosto, e desapareceu a magreza que a tinha
tornado como um esqueleto, em consequência dos sessenta dias de
absoluto jejum.
Mas os desígnios de Deus deviam cumprir-se. No dia 9 de
setembro, depois de umas tréguas de 20 dias, o mal reapareceu; e
no dia 21 do mesmo mês, voltaram a febre e os vômitos de sangue,
não mais aquele sangue provocado pelas impetuosas expansões de
amor, mas sangue vivo saindo dos pulmões.
Ao mesmo tempo, para tornar mais doloroso este martírio, o
Senhor tirou, de repente, da sua caríssima vítima expiatória, todas
as doçuras da contemplação, as suaves palpitações do coração, e,
salvo raras exceções, todas as manifestações extraordinárias e
misteriosas, como os êxtases de amor, as visões, raptos e outras
coisas semelhantes. Assim, ficou só, sem conforto algum,
consumindo-se na dor, em holocausto ao Senhor.
As cartas que me escreviam a seu respeito inspiravam compaixão:
Gema está muito doente, está feita um esqueleto coberto de pele. Sofre
dores terríveis e penas interiores que fazem arrepiar. Gema não pode mais.
Receio que morra de um momento para outro. Estou aflitíssima por não saber
o que fazer para aliviá-la. Ela sente grande necessidade da vossa presença.
Vinde dizer-nos como devemos proceder.
Aqui, não sei como, começamos a falar mais por miúdo das
particularidades da sua morte: como se lhe mistrariam os
Sacramentos, como a vestiriam, depois a colocariam no caixão e a
levariam ao cemitério para ser sepultada.
Ela falava de tudo isto com uma naturalidade admirável, como se
se tratasse simplesmente de uma mudança de cama ou de casa.
Ouvia-me e me respondia com graça e jovialidade. Mas quando a
conversação caiu sobre o lugar da sepultura, ela se tornou séria. E
com a voz um pouco comovida, me disse:
Atendei bem, meu pai, onde me colocam. Não saia de Lucca, antes de se
ter bem certificado de que o meu cadáver seja posto em lugar seguro.
Refiro-me ao meu corpo; não quero que seja visto nem tocado por
ninguém, porque é de Jesus!
É a segunda vez que perco minha mãe. Mas viva Jesus! Só com Jesus...”.
Eis com que termos ela escreveu ao seu pai espiritual, no dia 6 de
fevereiro:
Meu bom pai, viva sempre Jesus! É a minha palavra de cada instante, o
meu dia inteiro! Viva Jesus, que me deu tanta força e coragem, que eu lhe
deveria agradecer sem cessar. Aceitei de bom grado o sacrifício quase sem
senti-lo. Compreendi, meu caro pai, que não é mais tempo de ser criança.
Força e coragem! Mas vinde algumas vezes em meu auxílio, por meio de
algumas exortações que me fazem tanto bem. Conservai-vos contente como
eu, meu pai, no meio das aflições. Abençoai-me sempre e muito. Todas as
manhãs, a todos os momentos, peço por vós, para que tenhais ainda um
pouco de paciência para comigo. Sou a pobre Gema.
Minha Mãe, minha débil existência continua neste mundo na luta, mas
estou contente, entre o temor e a esperança entrego-me nas mãos de Deus.
Grito, grito bem alto no meio de minhas aflições; volto- me para Jesus,
prometendo-lhe muito amor, mas Jesus está escondido. Ele não me ama
mais, ou me ama muito pouco. Ó minha Mãe, viva Jesus! Jesus, depressa e
santamente, se vingará com o seu santo amor, da mais ingrata de suas
criaturas. Ó minha Mãe, pedi por mim! Dizei a Jesus que serei boa e
obediente. Mas eu quero ir depressa para o Céu se é do seu gosto.
Abençoai-me, sou a pobre Gema.
ÚLTIMAS DORES:
AS HEROICAS VIRTUDES PRATICADAS PELA SERVA DE DEUS
(MARÇO – ABRIL DE 1903)
Uma vida toda crucificada com Jesus. Era de esperar que com
Jesus Crucificado também terminasse. Gema tinha participado
sucessivamente de todos os tormentos do Homem-Deus; das
angústias interiores, dos sofrimentos externos por obra dos
demônios, do suor de sangue, dos açoites, das feridas em todo o
corpo, dos penetrantes espinhos da coroa, do deslocamento dos
ossos, e das dores causadas pelos pregos.
Para que fosse uma viva e perfeita imagem de Jesus, faltavam
somente a agonia e a morte num mar de dores – e Jesus não quis
privá-la desta graça. Como aquele corpo tão débil não podia
certamente suportar tantos sofrimentos, achou Ele um meio de
substituir a intensidade pela duração, conservando durante longos
meses a vítima pregada na cruz.
Deste martírio já assistimos ao princípio, contemplemos agora a
sua consumação.
Apesar da gravidade do seu estado, a piedosa doente tinha, até
aqui, conseguido levantar-se todas as manhãs bem cedo, e arrastar-
se,embora com muito custo, até à igreja mais próxima para receber
a Sagrada Comunhão. Sua incansável mãe adotiva vinha a cada
vez tomá-la, reconduzi-la para casa; ajudava-a a deitar-se
novamente na cama, onde a deixava para que aí fizesse a ação de
graças.
Mas a ventura que Gema achava neste alimento celestial era
grande demais, e suave demais era o conforto que sentia, por isso
Jesus lhe o tirou.
Em menos de dois meses a febre aumentou de tal modo que lhe
impediu todo e qualquer movimento; ela então inclinou a cabeça e
disse: “Jesus, assim seja”.
O seu alimento tinha consistido até então em alguns goles de
líquidos substanciais e fortificantes. Em breve, porém, o estômago
não admitia mais nem sequer esse sustento, e teve que renunciar a
ele, aceitando mais esta provação sem proferir a menor queixa. O
seu organismo se foi desfazendo pouco a pouco, e ela se achou
reduzida a tal modo que não havia um só lugar em que não sofresse
uma dor particular.
Meu pai, meu pai – escrevia-me do seu leito de dores –, esta aflição é forte
demais para mim. Dizei a Jesus que a troque por qualquer outra... Mandai de
longe orações e exorcismos para afastar este maldito demônio, ou ordenai ao
vosso anjo da guarda que o venha expulsar daqui.
Esta hedionda besta vai acabar com a querida Gema; saio de junto dela,
chorando; este horrível demônio dá conta dela e ninguém o pode afugentar.
São barulhos atroadores, figuras terríveis de animais ferozes; certamente ele
a matará. Procuramos socorrê-la, aspergindo água benta no quarto; o rumor
cessa por algum tempo, para recomeçar logo depois com mais força.
Espíritos malignos, eu vos ordeno que volteis para o lugar que vos é
destinado; senão, ai de vós, eu vos acuso diante do meu Deus!
Minha Mãe, eu me acho nas mãos do demônio, que luta, que me bate e
flagela para arrancar-me das mãos de Jesus. Não, não Jesus, não me
abandoneis, eu serei boa, fiel. Oh! Minha Mãe, pedi a Jesus por mim. Estou
sozinha, de noite, cheia de terror, oprimida, e como que atada em todas as
potências da minha alma, e em todos os sentidos do meu corpo, sem poder-
me mover. Viva Jesus!
Minha Mãe, assegurai a Jesus que eu lhe guardarei a minha palavra, e lhe
serei fiel.
Oh! Jesus, se é do vosso gosto, dai-me uma pequena trégua, oh! Jesus!
Certa vez, uma Irmã assistente que lhe ouviu tais expressões, lhe
perguntou:
Antes sofrer do que ir para o Céu, desde que o sofrimento seja por amor de
Jesus e para glorificá-lo.
Vamos, irmã, vamos rezemos! Não nos ocupemos de mais nada, mas de
Jesus somente!
Oh! Jesus – ela exclamava –, quantos pecados! Não os vedes Jesus? Mas
a vossa misericórdia é infinita. Vós me os tendes perdoado muitas vezes; Vós
me perdoareis ainda agora.
– Lês, Gema?
Não chores, Angelina – lhe disse a paciente enferma –, acalma-te, isto não
é nada; peço-te perdão dos maus exemplos que te tenho dado.
E se despediram.
Enfim, mostrava-se sempre cheia de gratidão e deferência para
com as Irmãs que lhe prodigalizavam seus cuidados, e ainda que a
sua natureza franca e simples fosse avesso aos cumprimentos,
todavia, a expressão dos seus olhos revelava como tinha o coração
compenetrado de profundo reconhecimento.
Um dia ela ouviu sua mãe adotiva dizer à superiora destas Irmãs:
Sede bom, e não duvideis que eu me lembrarei de vós aos pés de Jesus.
Quando eu estiver com Jesus, não me esquecerei do que me fazeis agora.
No último período da doença, Gema, pela extrema fraqueza, caía
muita vezes em síncopes ou em delírios.
O demônio aproveitava-se destes momentos, em que era
impossível a reação, para atormentá-la ainda mais com terríveis
fantasmas; mas mesmo neste estado de prostração, Gema sabia
entoar o seu habitual grito de guerra para repelir as malignas
sugestões:
1 Refere-se a uma passagem do livro do Apocalipse 12, 12: “Por isso, alegrai-vos, ó
céus, e todos que aí habitais. Mas, ó terra e mar, cuidado, porque o demônio desceu para
vós, cheio de grande ira, sabendo que pouco tempo lhe resta”.
2 Como explicar o abandono de Nosso Senhor depois da união mística permanente,
depois do seus matrimônio com Nosso Senhor? Só se explica à luz da vocação reparadora
de Santa Gema, assim como também ocorreu com Seu Pai, São Paulo da Cruz, que sofreu
longamente uma “noite reparadora”. Também a sofreu Madre Francisca de Jesus, que
consentiu, em espírito de reparação, permanecer na escuridão, como podemos ver no
primeiro livro desta coleção, escrito pelo Fr. Garrigou-Lagrange: Madre Francisca de Jesus,
Campinas, Ecclesiae, 2013 – NC.
3 Angelina Galgani teve a graça de estar presente na canonização de sua irmã – NC.
4 Trata-se da já citada Eufêmia Giannini, Venerável Madre Gema de Jesus, monja
passionista, e depois fundadora das Irmãs de Santa Gema.
CAPÍTULO XXXIII
PESAR PROFUNDO:
A PRECIOSA MORTE E SEPULTURA DA SERVA DE DEUS (8-12
DE ABRIL DE 1903)
Antes que estejas terminada, por quanto ainda tenho que passar?
Não me deixeis enquanto eu não estiver pregada na cruz. Tenho que ser
cru-cificada com Jesus. Jesus disse-me que seus filhos devem morrer
crucificados.
Eu não peço mais nada. Fiz a Deus o sacrifício de tudo e de todos. Agora
preparo-me para morrer.
Deus também retirou-se por sua vez, não fazendo mais descer
nem um raio de luz sobre o seu espírito, nem uma centelha de
consolação sobre o coração daquela mártir.
Assim, aniquilada pela veemência do mal, esmagada sob o peso
de imensas dores, atormentada em todas as faculdades da alma e
do corpo pelos inimigos infernais, sem conforto nem do lado do Céu
nem do lado da Terra, esta inocente mártir, erguendo a voz
desfalecida, exclamou:
Agora, é certo que de todo não posso mais, Jesus. Recomendo-vos minha
pobre alma... Jesus!
Pedi a Jesus que me fizesse morrer numa grande solenidade! Quão belo
deve ser morrer numa grande solenidade!
***
A dor, que se apoderou de toda a família benfeitora de Gema, e a
perturbação em que ficaram, fez com que esquecessem, por
momentos, do pensamento que tinham concebido: de mandar abrir,
depois de sua morte, o seu peito, na esperança de achar em seu
coração algum sinal extraordinário.
Recordaram-se, porém, desse projeto logo depois do enterro e
tomaram a resolução de realizá-lo sem demora.
Mas foi necessário esperar algum tempo para as formalidades
exigidas pela autoridade civil, e no dia 24 de abril, décimo terceiro
depois da morte da serva de Deus, procedeu-se à exumação.
Achou-se o cadáver ainda intacto, tal qual tinha sido aí depositado,
mas já com indícios de decomposição.
Descoberto e tirado o coração, apresentou-se fresco, vigoroso,
flexível, vermelho e cheio de sangue, como o coração de uma
pessoa viva, pelo que ficaram sumamente maravilhados os práticos
encarregados da autópsia.
Mais ainda: a forma do coração era verdadeiramente singular,
diferente do tipo natural, chato nas duas faces, e muito dilatado de
ambos os lados, parecendo mais largo do que alto. Mas a
admiração ainda foi maior quando, sob o golpe do escalpelo, brotou
dos ventrículos e aurículas, um sangue vivo e vermelho, e tão
liquefato que correu sobre o mármore em que se fazia a operação.
É sabido que, logo depois da morte e resfriado o cadáver, todo o
sangue contido no coração sai, ou no caso de resfriamento muito
rápido, coagula-se, perdendo a cor viva. Quanto mais treze dias
depois da morte, e de uma morte causada por doença
contagiosa?!...
Ah! Aquele coração que foi uma fornalha de tantas chamas
celestes, e palpitou de puro amor de Deus, e que não se podendo
mais conter na sua cavidade natural, levantou e encurvou
fortemente três costelas do peito, que abriu uma saída para fora na
misteriosa chaga do lado como para expandir o excesso dos seus
ardores, que queimou toda a região torácica a ponto de não se
poder aproximar dele a mão sem sentir a sensação de queimadura;
aquele coração não podia morrer!...
E foi um erro, foi uma pena que o entregassem ao ferro da mão
profana para cortá-lo. Mas Deus permitiu que assim acontecesse,
para nos manifestar um prodígio que, sem isso teria sido ignorado.
A forma anormal, observada nesta preciosa víscera, parece-me
que não pode admitir outra explicação senão a dos tormentos
extraordinários provocados pelo amor celeste que o abrasava.
Releia o leitor o que já dissemos a este respeito, e verá que era
até de esperar vê-lo despedaçado.
É certo que Gema nunca teve nenhum sintoma de moléstia
cardíaca que pudesse produzir tão extraordinário efeito. Seu
coração foi sempre são e robusto, e fora das ocasiões dos êxtases e
do martírio místico de sua alma, nunca apresentou a mínima
irregularidade ou perturbação, pois, apenas cessadas estas
comoções divinas, ela recuperava logo seu estado normal.
A donzela esteve um pouco anêmica nos últimos anos de sua
vida, mas ninguém sustentará que esta enfermidade produzisse, em
tão breve tempo, tão grande transformação do órgão vital.
Menos ainda se poderia atribui esse fenômeno à decomposição
dos tecidos do coração encerrado por treze dias na terra; porque é
uma contradição manifesta a decomposição de uma víscera, e a
frescura do sangue nela contido; e a destruição dos tecidos é
incompatível com a viva cor vermelha.
A despeito, portanto, dos incrédulos, reconhecemos o prodígio e
bendizemos ao Divino Autor, dele sempre admirável em seus
santos.
E agora, chegando ao termo da vida de Gema, e quase de minha
obra, prostro-me aos vossos pés, ó Jesus, que por um traço
admirável da vossa Providência, me escolhestes para dirigir esta
alma eleita na vida espiritual, prodigalizando-me luzes que
impediam a minha incapacidade de pôr obstáculos às suas sublimes
aspirações à santidade.
Vós me ordenastes, como tenho perfeita convicção, de revelar ao
mundo, pela publicação destas memórias, a grandeza do vosso
amor e das vossas misericórdias para com a vossa serva.
Obedeci; não me resta, pois senão dizer-Vos: “Senhor, sou um
servo inútil”.6
Peço-Vos que desvies vosso olhar de minhas misérias, e que
pelos grandes merecimentos de Gema, leveis estas pobres páginas
às mãos de inúmeras pessoas, para que conheçam quanto sois
bom, e a felicidade que se sente em amar-Vos e servir-Vos
exclusivamente a exemplo da seráfica Virgem de Lucca.
PADRE GERMANO
HORA SANTA
UMA HORA DE ORAÇÃO COM JESUS AGONIZANTE NO HORTO
DAS OLIVEIRAS
INTRODUÇÃO
A TRISTEZA DE JESUS
OFERECIMENTO
OFERECIMENTO
O generoso Fiat
Contempla, ó alma remida o teu Salvador, que, com o coração
ferido pela ingratidão humana, cai agonizante sobre a terra fria de
Getsêmani. Aí está sozinho, abandonado, sem ter quem O console,
a Ele, que nunca recusou conforto aos atribulados aos fracos, aos
infelizes!
Alma fiel, é chegado o momento de pagares ao aflito Jesus amor
com amor. Que terias feito, à noite da Paixão, se estiveras ao lado
de Jesus agonizante?
Meu aflito Senhor, quero levantar-vos do solo! Quero oferecer-vos
meu coração para manter as cores da vossa face! Quero dizer-vos
uma palavra que vos conforte!
Meu meigo Salvador, eu vos amo, eu vos amo! Quero procurar-vos
amor, quero proporcionar-vos amor, quero que todos vos amem,
quero empregar toda a minha vida para que sejais amado, sim, para
que sejais muito amado, sempre amado, eternamente amado por
todos os vossos filhos.
Meu amável Jesus, disse-vos que estaria disposto a dar até a
minha própria vida, isto é, que estaria pronto a suportar qualquer
sacrifício para vos tornar amado; mas, quando encontrar alguma
leve contrariedade, humilhação, recusa, repreensão, indelicadeza,
sofrerei tudo isso por amor de vós? Amo eu realmente o sacrifício?
Folgo de vos apresentar a mortificação de alguma paixão? Meu bom
Jesus, envergonho-me e não sei o que vos hei de responder. Mas,
aqui, perto de vós, aqui, na escola da dor e do amor, quero
aprender, ó meu doce Mestre, a mortificar-me, a sacrificar-me por
amor de vós.
Passam, entretanto, lentamente as horas da mortal agonia de
Jesus. Ele, o Deus do Céu e da Terra, geme, prostrado no chão,
sem ter quem o conforte. E os discípulos? Que fazem eles?
Dormem! Oh! Jesus, na noite de sua Paixão, havia de satisfazer
também pelo pecado do abandono dos seus queridos discípulos, e
sentia em seu coração toda a amargura desse abandono.
Jesus, então, aceitou e mesmo desejou esse sofrimento; mais
agora, já não o quer: ao contrário, deseja que os seus filhos,
remidos com o seu sangue divino, velem, meditando na sua Paixão.
A maior parte dos homens, porém, dorme o sono dos ingratos, que
consiste no esquecimento daquele que tanto nos ama e nos quer.
Oh! Excesso de ingratidão e crueldade!
Ó bom Jesus, não vos conhecemos! Se vos conhecêssemos,
pensaríamos sempre em vós, e o nosso coração não palpitaria
senão por vós.
Enquanto Jesus, sozinho, geme e agoniza, prostrado por terra, eis
que um anjo do Céu vem confortá-Lo. Jesus, com a humildade de
um Filho obediente, acolhe o mensageiro do Pai celestial, pronto a
submeter-se às suas ordens. O anjo, porém, vem para O alentar, e
não para lhe abrandar os sofrimentos nem para O livrar de sorver o
amaríssimo cálice. Com efeito, o mensageiro celeste anima Jesus a
afrontar a grande luta e a receber todos os golpes que contra ele
arremessará o Céu, o mundo e o Inferno: o Céu, porque a eterna
justiça de seu Pai está para punir nele todas as iniquidades
humanas; o mundo, porque não podendo suportar a santidade do
Filho de Deus, lhe prepara o patíbulo; o Inferno, porque incitado pelo
ódio contra o Santo dos Santos, provoca com maior violência a
crueldade dos inimigos de Jesus, para mais barbaramente o
atormentarem. Depois o anjo exorta Jesus a beber, até a última
gota, o cálice abominável das perversidades humanas e a suportar
o peso da Divina Justiça.
Entretanto, justiça e misericórdia esperam o Fiat de Jesus, com
que se hão de conciliar para sempre. Espera-o o Céu, para se poder
povoar de santos: espera-o a Terra, que anela por ver cancelado
pelo sangue do divino Redentor a maldição merecida pelo pecado;
esperam-no os justos, prisioneiros no seio de Abraão, para poderem
voar ao amplexo do Criador; esperam-nos míseros mortais, para
tornarem a ser filhos de Deus e verem reabertas as portas do
Paraíso.
Mas quanto não vai custar esse Fiat ao meu Jesus! Ele
inocentíssimo, Santo e Imaculado, tem de se revestir dos trajes de
pecador, de criminoso! Tem de se fazer réu, tornando próprias as
nossas iniquidades! Isto imensamente o aflige e o faz repetir: “Pai
meu, se é possível, afasta este cálice!”. (Mt 26, 39)
Pronuncia o Fiat, e consente tomar sobre si todos os nossos
crimes, como se fora culpado dos mesmos; aceita e atrai sobre si os
terríveis castigos a nós destinados.
Fiat: Faça-se, diz aos espinhos, para expiar os nossos maus
pensamentos. Fiat, aos flagelos, para castigar em seu corpo
inocente os nossos pecados sensuais. Fiat, aos insultos, aos
escarros, às bofetadas, para expiar o nosso orgulho. Fiat, ao vinagre
e ao fel, em satisfação dos nossos inúmeros pecados da língua e da
gula. Fiat, à cruz e aos cravos, em reparação das nossas
desobediências.
Fiat àquelas três horas de horrível agonia sobre o patíbulo, para
cancelar todas as nossas culpas e reparar todos os nossos males.
Fiat, finalmente, à morte, para nos dar a vida eterna.
Oh! Precioso Fiat, que alegra o Céu, salva o mundo e esmaga o
Inferno! Fiat, que parte cadeias e enxuga lágrimas! Graças vos dou,
ó bom Jesus, graças vos dou por tão generoso Fiat. Bendigo-vos e
agradeço-vos em nome de toda a humanidade.
Pausa de Silêncio
OFERECIMENTO
Pai Santo, que, em reparação de nossas rebeldias e
desobediências, quisestes ser honrado com o generoso Fiat de
Jesus no Jardim das Oliveiras: eu vo-lo ofereço em expiação de
todas as ofensas que a vossa adorável Majestade recebeu de minha
rebelde vontade, suplicando-vos que me concedais, pelos
merecimentos desse mesmo Fiat, perfeita docilidade e obediência.
Pai Nosso Ave-Maria e Glória.
Pai Santo, pela glória que vos resultou do generoso Fiat de Jesus
no Horto, suplico-vos me perdoeis todas as minhas rebeliões e
desobediências, e me concedais a graça de sempre viver
plenamente submisso à vontade dos meus superiores por amor de
vós.
Pai Nosso, Ave-Maria e Glória.
Pai Santo, pela magnanimidade e dolorosas consequências que a
Jesus custou o Fiat do Getsêmani, suplico-vos me concedais a mim,
a todas as almas que vos são consagradas e a todos os cristãos,
aquele espírito de santa fortaleza, constância e generosidade que
afronta alegremente, para vossa glória, qualquer sacrifício.
Pai Nosso, Ave-Maria e Glória.
A palavra suspirada
De infinito, ardente amor
Por Jesus é pronunciada
Com profunda e imensa dor!
OFERECIMENTO
CONCLUSÃO
(Indulgência parcial)