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Santa Gema Galgani

Padre Germano de Santo Estanislau, C. P.


1a edição – junho de 1927 – Tipografia Poliglota
2a edição – junho de 2014 – CEDET
Impresso no Brasil

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Traduzido da 6ª edição do original italiano, L’universale, em junho de 1927.


O autor da presente tradução preferiu manter-se anônimo.

Editor:
Diogo Chiuso

Assistente editorial:
Thomaz Perroni

Preparação dos textos & notas complementares:


José Eduardo Câmara de Barros Carneiro

Capa & Diagramação:


J. Ontivero

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eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem
permissão expressa do editor.

F C

Ruoppolo, Vicenzo (Pe. Germano de Santo Estanislau)


Santa Gema Galgani / Padre Germano de Santo Estanislau, C.P.; Tradução anônima
(1940) – Campinas, SP: Ecclesiae, 2014.

Título Original: Santa Gemma Galgani


ISBN: 978-85-63160-35-5

1. Cristianismo 2. Catolicismo 3. Ascética


I. Padre Germano de Santo Estanislau II. Título
CDD – 248.2

Índice para Catálogo Sistemático

1. Ascética – 248.2
2. Catolicismo – 282
SUMÁRIO

P
PRÓLOGO

Em Gema tudo encanta: sua beleza exterior e interior. Seu olhar é


sereno, transmite-nos paz, fala-nos de Deus. Seu interior é
adornado com especiais virtudes.
Apesar de sua simplicidade – ou talvez por isto mesmo – e de sua
ingenuidade, esta jovem foi agraciada com muitos dons divinos e
teve diversas experiências místicas: desde a estigmatização, a
participação de todos os suplícios de Jesus Crucificado (suor de
sangue, flagelação, coroação de espinhos, chagas no ombro...),
como também diversos êxtases na presença de Nosso Senhor, sua
Mãe Santíssima, seu anjo da guarda, São Gabriel de Nossa
Senhora das Dores – passionista; opressões diabólicas; visão
constante do seu anjo da guarda, como também do anjo de seu
diretor espiritual – que escreveu esta sua biografia – e do anjo de
São Gabriel de Nossa Senhora das Dores.
Santa Gema, desde pequena, foi formada na Escola da Cruz, e
desta aprendizagem resultou um amor ardente a Nosso Senhor,
sobretudo presente na Santíssima Eucaristia, sentindo o seu
coração palpitar mais forte, dilatar e se abrasar – no sentido mesmo
de queimar – de amor em sua presença sacramental. Sua união
com Jesus foi contínua e durante toda a sua vida o seu único anelo
foi: “Jesus só!”.
Deste amor ardente também resultou um grande amor pelos
menos favorecidos – os pobres –, como também um grande zelo
pela salvação das almas, pela conversão dos pecadores, buscando
ela mesma tomar sobre si as faltas de seus irmãos e expiá-las em
lugar deles.
Sua relação com os Missionários Passionistas, e em consequência
com as Monjas Passionistas, deu-se em primeiro lugar de uma
forma sobrenatural, através de São Gabriel de Nossa Senhora das
Dores e, em seguida, através da participação das santas missões
pregadas pelos Missionários em sua cidade, sobretudo através do
seu diretor espiritual que foi requisitado por Monsenhor Volpi,
confessor ordinário de Santa Gema, devido às experiências místicas
que estava vivendo esta jovem. Mais ainda, este padre foi
preparado pelo próprio Jesus para acompanhá-la nas sendas do
amor e da dor, como ela já o havia visto durante uma visão
sobrenatural.
Santa Gema viveu a espiritualidade passionista não só herdada de
seu Pai Espiritual, como na própria pele, através destes fenômenos
místicos que recebeu – participando de uma forma sensível da
Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Além de tudo, desejou
ardentemente ser Monja Passionista e, embora não tenha sido
aceita no Mosteiro de Tarquínia, alimentava a esperança de ser
recebida no mosteiro que o próprio Jesus pediu-lhe para ser
fundado na sua terra natal, Lucca, e pelo qual ela muito trabalhou
para que este se tornasse realidade. Um mosteiro cujos membros
teriam dentro da missão comum deixada por São Paulo da Cruz –
fundador dos Missionários e Monjas Passionistas –, a missão
particular de oferecer-se como vítimas ao Senhor pelas
necessidades espirituais e temporais da Santa Igreja e do Sumo
Pontífice, conforme desejo expresso do então Vigário de Cristo, o
Papa São Pio X.
Este anseio, apesar de não ter sido realizado em vida, ocorreu
após a sua morte pois, como diz no próprio decreto para introdução
do processo de sua beatificação:

“Gema Galgani, se não por hábito e por profissão, sem dúvidas pelo desejo
e pelo afeto, merecidamente deve estar incluída entre as Religiosas Filhas de
São Paulo da Cruz”.

Ela, “não foi de fato passionista, mas o foi sempre com o coração
e com o desejo vivo”, constituindo um baluarte para a congregação.
E, se antes mesmo Gema já era passionista de coração, agora se
encontra, de fato, entre as Filhas da Paixão, como tanto almejava e
profetizou, pois seus restos mortais repousam no seu Mosteiro-
Santuário em Lucca. Sua ligação com as Monjas se tornou tão
estreita que muitas das fundações deram o seu nome aos
Mosteiros, sendo desta forma a Padroeira principal dos mesmos,
inclusive do primeiro Mosteiro fundado aqui no Brasil, que é também
o primeiro da América Latina.
Apesar de sua breve existência – 25 anos –, Gema tem muito a
nos ensinar: a vivência do Amor Divino; a acurada atenção às
inspirações e à presença do nosso santo anjo da guarda; a intensa
vida de oração; a constante abnegação de si mesma para uma
verdadeira ascensão ao Senhor; a intercessão fervorosa pela
salvação das almas e conversão dos pecadores. Sua sede e amor a
Deus nos contagia e nos inspira a buscar a sua divina presença na
vivência dos valores cristãos, da prática dos sacramentos,
sobretudo do amor a Jesus Eucaristia, e da Configuração com o
Senhor Crucificado. Enfim, a buscar as coisas do alto, pois aí deve
estar o nosso tesouro!

M P M S G – SP,
fevereiro de 2013.
APRESENTAÇÃO

“Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas


para os que estão sendo salvos, para nós, ela é poder de Deus” – 1Cor 1, 18.

Logo que me foi atribuída a alegre tarefa de apresentar este


clássico de Santa Gema, mais uma vez comecei a contemplar esta
figura tão cercada de uma espiritualidade pura e “pobre”, como ela
mesma se intitulava.
A santidade é um verdadeiro dom de Deus que se desvela como
sendo um pharmacon que podemos perceber na preciosa porção de
espiritualidade que cada um faz sair de seu coração, na sua relação
íntima de crença, de bondade, de mistério, de experiência mística
de Deus. Os santos nos congregam em torno dessa contagiante
pertença ao Senhor, não para si mesmos, mas para o Cristo, a
ponto de desejarmos, também nós, mergulharmos no Mistério que
os envolve, na medida de profundidade tal que, quanto mais dentro,
mais juntos da “ciranda” da Trindade desejamos estar. E por esse
gosto de sermos possuídos pelo Amor que se doa, que perdoa, que
plenifica é que percebemos a infinitude Daquele que é insondável
pelo raciocínio, mas amável pelo próprio dom.
A intercessão dos santos é mais poética do que conseguiríamos
descrever. É uma experiência de fazer com eles uma entrega a esse
amor perfeito, que é o Deus que buscamos, Senhor de todas as
horas, de todas as alegrias. Por isso o grande apóstolo São João
concluiu tão poeticamente que “Deus é Amor e todo aquele que ama
permanece em Deus e Deus nele”.1
Não há outra explicação para tantas pessoas que recorrem a
Santa Gema, pedindo e obtendo graças, senão o Mistério da Paixão
que jorra como remédio do seu coração junto ao Coração
Traspassado de Jesus no Calvário. E não somente a força da
multidão que nela encontra um acalanto, um novo ânimo, mas as
graças inúmeras, as curas, os encontros e a alegria de se sentir
como ela, alguém que foi desprezada pelo mundo, mas nunca
abandonada por Deus.
Santa Gema viveu somente 25 anos, mas já sabemos que “os
melhores perfumes estão nos menores frascos”, a ponto de
medirmos a vida não pela soma dos anos vividos, mas pela
intensidade dos momentos pelos quais somos agraciados pela
essência de Cristo. Desejou intensamente ser passionista, mas não
foi aceita por motivo de saúde. Buscou tanto ser testemunha ocular
da Paixão do Senhor que foi agraciada com os estigmas. Por fim,
deixou a nós passionistas, mais uma vez, a certeza de que quem
nos escolhe e nos chama é Cristo. Assim, brilha ao lado de São
Paulo da Cruz, nas honras dos altares, tão ditosa filha espiritual e
passionista de coração.
Em meio a tantas desilusões e tantas confusões na busca pelo
dom da fé, quando alguns se perdem seguindo falsos mestres,
somos chamados a voltar aos grandes místicos da história do
cristianismo, como Santa Gema, que confessou os mistérios da
paixão e morte de Senhor em sua própria vida; fez seu itinerário
espiritual como que numa longa e sofrida subida ao seu próprio
calvário para, depois de tudo, viver no céu a alegria da ressurreição.

P .H E O , C.P.

Roma, 2 de fevereiro de 2013.


Festa da Apresentação do Senhor – Dia da Vida Consagrada.

1 Cf. 1Jo 4, 7-8.


PREFÁCIO

Às Filhas de Maria.

Duas palavras à guisa de prefácio, num livro que não precisaria de


introdução; e essas linhas dirigem-se às Filhas de Maria que têm e
terão na Serva de Deus Gema Galgani um perfeito e acabado
modelo.
Muitas almas talvez, diante do “extraordinário”, diante dos
caminhos pouco comuns trilhados por esta menina, alvo das divinas
predileções, chamada por especial desígnio da Providência para
reproduzir,como um outro Francisco de Assis, no seu corpo e na sua
alma as dores e os tormentos da Vítima do Calvário, muitas almas
talvez não encontrarão a conexão do que asseveramos há pouco
que a serva de Deus é um perfeito e acabado modelo para as Filhas
de Maria.
Se o divino Salvador, no seu Evangelho, deu-nos como norma e
modelo de nossa perfeição o próprio Pai Eterno, o Deus de toda
santidade: “Estote ergo perfecti sicut et Pater vester coelestis,
perfectus est”;1 se o modelo das filhas de Maria tem que ser a
Virgem Pura e Imaculada, e do exemplar magnífico das excelsas
virtudes de Maria Santíssima copiarmos, ainda que de longe, os
traços, porque hesitaríamos diante daquela jovem que antes de nós,
e como a nos instigar e estimular a tanto, reproduziu de perto o
conselho do Mestre, que retraçou como verdadeira filha estas
virtudes da Mãe Imaculada?
Gema é no nosso século XX – século este atirado ao gozo, aos
prazeres, às satisfações dos sentidos – uma prova da existência do
mundo sobrenatural que a geração hodierna quer negar e esquecer,
fitando tão somente a figura do mundo que passa, fascinado pela
ilusão da bagatela.
Gema impõe-se à geração de hoje, fremente de alegrias e gozos
mundanos, como a imagem sofredora de Cristo, lembrando o
espírito de sacrifício, a mortificação e a penitência.
Gema aparece numa época em que todos se vão esquecendo das
puras e santas alegrias do lar cristão, e da vida de família, como
uma florzinha desabrochada vivida e colhida para o céu, tão
somente “na vida doméstica” no santuário da casa, da vida comum,
exemplo e modelo para as jovens destinadas a ser os anjos da
família nos tempos que correm.
Modelo da jovem cristã no meio do mundo, Gema passou “neste
mesmo mundo” segundo disse o divino Mestre “sem pertencer ao
mundo”,2 sem tributar-lhe culto ou prender-se às suas máximas e
pompas.
Consagrada a Maria, anjo ou melhor serafim nos seus ardores
para com Jesus Sacramentado, religiosa em desejo, mas sem
nunca realizar as aspirações de sua alma para o claustro – Gema
Galgani é e será a nosso ver, por estas três características
adornadas por todas e mais acrisoladas virtudes da pureza,
obediência, zelo e humildade, o modelo das Filhas de Maria.
Possamos nós ter a dita de ver a nossa Santa Madre Igreja elevar
aos altares, esta fulgurante Gema, para a maior glória de Jesus
Crucificado e para a maior honra da Dulcíssima Virgem, Nossa Mãe
Imaculada.

Rio de Janeiro, 16 de julho de 1927.

m. c.

1“Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).
2 Cf. Jo 17, 16.
CAPÍTULO PRIMEIRO

NASCIMENTO DE GEMA – SUA PRIMEIRA EDUCAÇÃO:


PREMATURAS FLORES DE VIRTUDE (1878-1886)

Camigliano, pequena aldeia da Toscana, perto da cidade de


Lucca, foi o berço da angélica virgem, de quem empreendemos
escrever a vida. Nasceu no dia 12 de março de 1878.
O pai, natural de Porcari, extenso subúrbio do território de Lucca,
na estrada Pesciatina, para ali tinha mudado com toda a família
havia alguns anos, onde, abrindo uma farmácia, exercia
honradamente a sua profissão.
Chamava-se Henrique Galgani. E consta que descendia, pelo lado
materno, da família do Bem-aventurado João Leonardi.1 A mãe, da
respeitável casa dos Landi, tinha o nome de Aurélia. Eram ambos
cristãos de fé robusta e abastados cidadãos.
Tiveram oito filhos: cinco meninos, dos quais um morreu no berço,
e três meninas; atualmente, só vivem três, todos os outros
falecerem em tenra idade. Gema era a quarta dentre eles e a
primogênita das filhas.2
Conforme o louvável costume de pais verdadeiramente católicos,
esses bons cônjuges foram sempre solícitos em dar logo aos seus
filhos recém-nascidos a graça do batismo, querendo que, no dia
seguinte ao do nascimento, fossem regenerados em Cristo nesse
sacramento.
Assim também procederam com Gema, pois verificamos que
apenas 24 horas depois de nascida, isto é, na manhã de 13 de
março, foi levada à igreja paroquial de São Miguel e batizada pelo
respectivo Vigário Padre Pedro Guilici.3
Parece ter sido por uma particular disposição da Providência a
escolha do nome que lhe deram na sagrada fonte. Pela grandeza
das suas virtudes, aquela preciosa menina deveria, de fato, tornar
um dia ilustre a sua família, e vir a resplandecer na Igreja de Deus
como fulgurante Gema.4
É certo que assim a consideravam aqueles venturosos pais, por
todo o tempo que viveram com ela. A seus olhos, Gema foi sempre
a primeira dentre todos os irmãos e irmãs, parecendo que lhe
dedicavam maior e mais terno afeto. Por vezes, ouvia-se o seu pai,
sr. Henrique, exclamar: “Eu só tenho dois filhos, Gema e Gino”. Este
era o terceiro filho. Anjo de pureza e inocência, foi o êmulo das
virtudes de Gema, pelo que mereceu o segundo lugar no coração
paterno. Não havia ainda passado um mês do nascimento da
querida menina quando o previdente pai, para melhor atender à
educação dos filhos, quis mudar-se com toda a família para Lucca, a
fim de ali se estabelecer.
Viviam na referida cidade duas irmãs boas e honestas, moças
solteiras, chamadas Hercília e Helena Vallini, que com aceitação
geral dirigiam uma escola particular de meninos e meninas de
famílias distintas, situada na Praça de São Francisco, n° 2. O Sr.
Henrique Galgani conhecia-as desde moço, quando ainda morava
com seu pai, o Dr. Carlos, médico em Porcari.
Assim, indo para Lucca, não hesitou em confiar-lhes sua cara
Gema, Gino, e mais tarde, os outros três menores, Monino, Angelina
e Júlia. Gema tinha então dois anos de idade e permaneceu como
aluna dessas boas mestras pelo espaço de cinco anos, indo todas
as manhãs à escola, retornando somente à tarde para a casa
paterna, que era numa rua próxima, a dos Borghi.
Com piedade aprendeu os primeiros rudimentos das letras e
também da costura, manifestando sempre a maior docilidade e
todas as virtudes próprias de uma menina.
Num relatório escrito anos depois por aquelas boas senhoras, vê-
se a admiração por Gema nos seguintes termos:

A querida Gema só contava dois anos quando o pai no-la confiou para ser
educada em nossa casa. Desde essa idade, revelou uma inteligência
precoce, parecendo já estar nela desenvolvido o uso da razão. Era séria,
refletida, cuidadosa em tudo o que fazia, e nada tinha de comum com as
companheiras, nem mesmo com as mais crescidas. Ninguém a viu jamais
chorar ou brigar; condescendente para com todos, conservava sempre o
semblante sereno e risonho. – Quer a acariciassem ou repreendessem,
mostrava-se invariavelmente a mesma;sua resposta era um sorriso, e sua
atitude de uma calma imperturbável.
Entretanto, era dotada de gênio vivo e ardente. Em todo o tempo que nos
foi dada a ventura de tê-la conosco, nunca foi preciso castigá-la,porque, nos
pequeninos defeitos, próprios daquela idade, bastava uma leve advertência
para logo atender ao que se lhe dizia.
Estavam também na escola dois de seus irmãos e duas irmãs, com os
quais não só nunca teve a menor questão, antes pelo contrário, cedia-lhes
com bondade as melhores frutas de sua merenda, privando-se delas para
dar-lhes prazer. No jantar em comum, contentava-se com tudo, e o sorriso
que lhe pairava constantemente nos lábios era, como dissemos, somente a
sua queixa ou aprovação. Decorou depressa, e desde o princípio, todas as
orações que se costumava recitar cotidianamente no Instituto, sendo áreas
tantas, que duravam cerca de meia hora.
Aos cinco anos de idade tomava o breviário e lia o Ofício da Santíssima
Virgem e também o dos Defuntos com a facilidade e perfeição de uma
pessoa madura, tanta era a diligência que a santa menina empregava
naquele estudo, sabendo que o breviário é um tecido de louvores ao Senhor.
Assídua ao trabalho, prontamente aprendia tudo o que lhe ensinavam,
embora fosse superior às suas forças. À vista de tão raras qualidades em
uma menina, era Gema ternamente amada na escola, especialmente pelas
companheiras, que não se fartavam de estar ao seu lado.

Tendo eu ocasião, há pouco tempo, de ver essas duas senhoras,


ouvi-as confirmar perfeitamente o conteúdo do referido relatório, que
termina com o fato seguinte:

Desta inocente e virtuosa menina, diremos ainda que, por sua causa,
recebemos de Deus uma graça extraordinária.
Estando ela conosco na escola, apareceu em Lucca a tosse
convulsa(coqueluche) e todos de nossa família foram atacados. Tratando-se
de uma doença contagiosa, em consciência, não podíamos conservar mais
no colégio aqueles cinco meninos. Não sabendo o que fazer, consultamos o
pároco da freguesia da família Galgani, que nos aconselhou que não os
abandonássemos, tanto mais que a mãe estava gravemente enferma
naquela ocasião. Aceitei seu conselho; a querida Gema rezou a pedido nosso
e a doença cessou sem que nenhum dos alunos sofresse.

Assinado: Hercília e Helena Vallini.

O Sr. Henrique, pai de Gema, acompanhava com interesse os


rápidos progressos de sua filha nos estudos e na virtude. E,
bendizendo por isso a Deus, sentia aumentar em seu coração, cada
vez mais, a ternura para com ela.
Nos feriados queria tê-la sempre junto de si, e quando não podia
gozar desse consolo, ao voltar à noite para a casa, sua primeira
frase era quase sempre esta: “Onde está Gema?”. E os criados lhe
mostravam o quartinho onde a interessante menina costumava ficar
sozinha, estudando, trabalhando ou rezando, parecendo mesmo
não estar em casa.
Quando ia à cidade ou ao campo, levava-a sempre consigo a
passeio. Procurava as lojas mais bem sortidas para comprar-lhe
roupas e enfeites e, quando não podia voltar para a casa, escolhia
os melhores restaurantes para com ela jantar.
Na verdade, não é muito louvável num pai esta excessiva
parcialidade, por mais merecida que seja, sabendo todos a que
ciúmes e invejas pode-se estimular.
À própria Gema, cuja retidão de espírito e de coração se revelou,
por assim dizer, desde que saiu do berço, não agradava essa
predileção de seu pai; e embora não se visse nem sombra de
ciúmes nos irmãozinhos, porque também a amavam com muita
ternura, ainda assim ela se afligia e frequentemente demonstrava
que não merecia aqueles particulares carinhos e atenções, pedindo-
lhe que os dispensasse, assegurando que não os apreciava; e
quando não conseguia impedi-los, sentia tal desprazer que caia em
pranto.
Acontecia também, às vezes, que o extremoso pai, tomando-a ao
colo, a quisesse acariciar e beijar, mas jamais o conseguiu. Aquele
anjo em carne pensava, desde tão tenra idade, que em relação à
modéstia não se devia fazer exceção para ninguém, e assim,
desprendendo-se dos braços paternos com quanta força tinha, dizia
chorando: “Papai, não me toque!” – “Mas eu sou teu pai”, replicava.
“Sim, papai, mas eu não quero que ninguém me toque”.
O pai, para não entristecê-la, logo a deixava; e embora ficasse
descontente, na maioria das vezes acabava misturando suas
lágrimas com as da sua filhinha, e se afastava admirado de ver tanta
virtude numa criança.
A querida Gema, atribuindo essas pequenas vitórias às suas
lágrimas, perspicaz como era, sabia bem tê-las prontas para
qualquer necessidade justa, bem entendido!; e é certo que o
resultado foi sempre satisfatório.
Diferente do amor que Gema tinha de seu pai e das outras
pessoas da família, era o que lhe consagrava e demonstrava sua
mãe, embora não fosse menor, nem menos ardente. D. Aurélia não
era somente uma boa cristã, mas também uma verdadeira santa, e
um dos mais perfeitos modelos a se propor às mães católicas.
Rezava continuamente e todas as manhãs se aproximava da
Sagrada Mesa com sentimentos da mais viva piedade, indo à igreja
até mesmo quando estava a sofrer grandes incômodos; por vezes,
com febre.
De tão sacrossanto alimento recebia as forças e vigor para cumprir
com perfeição e pontualidade todos os seus deveres. Amava muito
a seus filhos, mas tinha também predileção pela Gema, como
dissemos, na qual, melhor do que nos outros, via os dons de Deus.
Com efeito, desde muito cedo a graça celeste começou a trabalhar
naquela alma inocente, manifestando-se claramente na índole tão
boa e condescendente, no seu amor ao retiro e ao silêncio, no
aborrecimento das vaidades e distrações e numa certa majestade
no porte, que não era natural naquela idade infantil. Porém,
consciente de seu dever, em vez de se expandir em demonstrações
inúteis de afeto sensível, dedicou-se com todo o cuidado a cultivar
naquela alma os germens precoces da virtude, tornando-se a
diretora espiritual de sua filha.5
A própria Gema, cheia de reconhecimento para com o Senhor, que
lhe dera tão boa mãe, recordava-se muitas vezes das assíduas e
múltiplas indústrias com que se exercitava esse magistério materno
em sua alma, e declarava dever principalmente à sua mãe o
conhecimento de Deus e o amor à virtude.
Costumava a terna mãe tomá-la nos braços e, conservando-a uni-
da àquele seio que a tinha nutrido quando criança, frequentemente
com os olhos cheios de lágrimas dava-lhe santos conselhos.
“Pedi tanto a Jesus”, dizia ela, “que me desse uma menina; Ele me
consolou, é verdade, mas muito tarde. Estou doente e em breve
devo deixar-te; aproveita as lições de tua mãe”. Também explicava-
lhe as verdades de nossa fé, o valor das almas, o horror ao pecado,
a felicidade de pertencer toda a Deus e a fugir da vaidade dos bens
terrestres.
Outras vezes mostrava-lhe a imagem de Nosso Senhor
Crucificado, e lhe dizia: “Vês, Gema, como o nosso amantíssimo
Jesus morreu por nós na Cruz”; e adaptando-se à inteligência da
menina, esforçava-se por fazê-la compenetrar-se do mistério do
amor de Deus, e o modo por que todo o cristão deve-lhe
corresponder. Depois, ensinava-lhe a rezar; e, para habituá-la, orava
juntamente com ela, logo ao levantar da cama, à noite antes de
dormir, e muitas vezes durante o correr do dia.
Todos sabem o quanto é desagradável às crianças ouvir sermões
e recitar orações vocais, incapazes como são de prestar atenção a
qualquer assunto sério, por conta da inclinação natural às distrações
e divertimentos.
Mas não era assim a pequena Gema. Naqueles primeiros
exercícios de piedade cristã, achava toda a sua ventura, pelo que
jamais se cansava de ouvir e de rezar. Até mesmo quando a mãe
sentia-se fatigada, ou tinha que atender aos trabalhos domésticos, a
fervorosa menina lhe segurava pelo vestido, dizendo: “Mamãe, fale-
me mais um pouco de Jesus”.
Quanto mais a piedosa senhora sentia aproximar seu fim, pelo
progresso da grave enfermidade de que sofria, tanto mais ardor e
zelo empregava na educação religiosa de seus queridos filhos.
Todos os sábados, ela mesma os levava à igreja; quando não
podia ir, mandava alguém acompanhá-los, querendo que os maiores
se confessassem (embora alguns não tivessem ainda, como Gema,
atingido os sete anos), para acostumá-los bem cedo à frequência de
tão salutar sacramento. Ela própria os preparava, e quando era a
vez de Gema, ao ver a seriedade, o cuidado e a grande tristeza que
mostrava pelas suas pequenas faltas, a santa mãe sentia-se
comovida até as lágrimas.
Um dia, perguntou-lhe a mãe: “Gema, se eu pudesse levar-te para
onde Jesus me chama, quererias ir comigo?”
“Para onde?” – indagou a menina – “Para o céu com Jesus e com
os anjos!”, respodeu-lhe a mãe.
Com estas palavras encheu-se de viva alegria o coração da
menina. Daquele momento em diante, inflamou-se de tão ardente
desejo de ir para o céu que nunca mais cessou; antes aumentou
tanto com o andar dos anos, que parecia consumi-la, como veremos
adiante.
“Foi, pois, minha mãe”, assegurava ela uma vez ao seu diretor,
“que desde pequenina me fez desejar o paraíso”.
Depois, referindo-se à proibição que tinha de pedir para morrer,
acrescentava: “E agora (16 anos depois) se ainda desejo o paraíso,
e quero ir para lá, repreendem-me e respondem-me com um grande
não” [...]. À minha mãe eu disse que sim, e por ter sido ela quem me
deu essa ideia do céu, não quis mais deixá-la e nem sair do seu
quarto”.
A doença de D. Aurélia era a tuberculose, que há pelo menos
cinco anos a consumia. Logo que os médicos tiveram conhecimento
da moléstia, proibiram terminantemente aos filhos aproximarem-se
do leito da enferma. Gema se afligiu amargamente, vendo-se, de
repente, afastada daquela a quem amava duplamente: como mãe e
como mestra.
“E agora – dizia chorando –, quem me ensinará a rezar e a amar a
Jesus?”.
Pediu, suplicou, e a grande custo, obteve que, para ela ao menos,
fizessem uma exceção.
Ora, calcule o leitor como a fervorosa menina aproveitou-se de
licença obtida. Aproveitou tanto que, pensando nisso mais tarde,
sentiu grande remorso, parecendo-lhe ter desobedecido e se
deixado levar pelo capricho.
Mas que fazia junto àquele leito? A própria Gema o diz:
“Aproximava-me de minha mãe, ajoelhava-me à sua cabeceira e
rezava”. Sublime instinto de uma menina que não tinha ainda sete
anos!
Entretanto, não estava longe o dia da separação final. A enferma
piorava cada vez mais, embora a aparência não indicasse haver
perigo iminente. Ainda mesmo nesse estado, mostrava-se solícita
pelo bem espiritual de seus filhos.
Gema, embora de tão tenra idade, estava perfeitamente instruída
para receber o sacramento da Crisma.6 “Que poderei fazer de
melhor”, pensava consigo a piedosa mãe, “do que entregar esta
querida filha ao divino Espírito Santo antes de morrer? Separando-
me dela, saberei a quem a confio”.
Procurou prepará-la convenientemente, inspirando-lhe o maior
fervor para que dignamente recebesse aquele sacramento, mas,
não contente ainda, chamou uma das mestras da doutrina cristã
para que fosse todas as tardes à sua casa aperfeiçoar sua obra; e
no primeiro ensejo, mandou levá-la à Basílica de São Miguel, no
Foro, onde viria a ser crismada pelo Arcebispo D. Nicolau Ghilardi,
no dia 26 de maio de 1885.
Notícias exatas deste grande acontecimento não nos foram
conservadas.
Gema, sempre muito reservada em falar de assuntos espirituais
que se referissem a si própria, nunca tratou deste ponto nem com o
seu diretor. Todavia, por uma particularidade que lhe escapou,
podemos avaliar as singulares comunicações que, naquele
sacramento, teve com o divino Espírito Santo, e é preferível que ela
mesma nos fale com toda a ingenuidade.
Então, concluída a solene cerimônia, as pessoas que a
acompanharam quiseram demorar-se para ouvir outra missa em
ação de graças. Gema alegrou-se de poder empregar este tempo
para rezar por sua mãe doente:

Ouvi o melhor que pude a Santa Missa, rezando por mamãe; quando, de
repente, senti uma voz no coração que me disse: “Queres dar-me tua
mamãe?” Sim, respondi, mas leva-me também convosco. “Não!” –
respondeu-me a mesma voz – “dá-me de boa vontade tua mamãe; tu, por
ora, deves ficar com teu pai. Eu a levarei para o Céu, fica certa”. Fui obrigada
a responder: sim!; acabada a Missa, corri para casa. Meu Deus!
Esta foi a primeira voz do céu que sabemos ter Gema ouvido entre
as inumeráveis que se seguiram depois, e que faremos conhecer
neste livro. A circunstância da Crisma, isto é, da descida do Divino
Espírito Santo naquela alma inocente, é uma prova convincente de
que foi o verdadeiro autor desta revelação, mais tarde veridicamente
demonstrada.
Gema tinha feito a Deus o sacrifício do que de mais caro possuía
no mundo; o merecimento desse ato lhe estava garantido no céu.
Entrou em casa e achou a mãe no fim da vida. Ajoelhou-se perto da
cama, derramou algumas lágrimas pela força da dor, rezou com o
coração traspassado de angústia, e declarou não poder mais
abandonar aquela cabeceira até receber os últimos suspiros de sua
mãe.
Esperava sempre (ainda que resignada à vontade do céu que
pouco antes generosamente tinha aceito aos pés do altar) poder
acompanhá-la, e com ela ir para o paraíso.
A doença deteve-se um pouco, e a boa senhora sentiu algumas
melhoras, mas de momentânea duração. Em breve agravou-se de
novo seu estado, não dando mais lugar à mínima esperança.
Gema continuava sempre firme com toda a ternura, junto àquele
leito do qual, nem por instantes, queria se afastar.
O coração do extremoso pai, porém, não resistiu mais ao receio de
que ela sucumbisse até antes da mãe, e obrigou-a a ir para a casa
de sua cunhada, D. Helena Landi, em São Januário, estabelecendo
que lá ela ficaria até segunda ordem.
A criança obedeceu e partiu logo.
A enferma, no dia 17 de setembro de 1886, como uma santa,
cessou de viver, aos 39 anos de idade. A triste notícia foi
imediatamente dada à Gema, ainda na casa da tia, e tanto mais
admirável foi a resignação com que aquela criança de apenas 8
anos a recebeu, quanto mais cruciante foi a dor que dilacerou seu
terno coração com tão cruel separação.
É assim, meu Deus, que vos apraz fazer sofrer as almas que vos
são mais caras, desde os seus mais tenros anos.
1 Foi canonizado por Pio XII, em 1938. São João Leonardi (1541-1609), natural da
região de Lucca, farmacêutico, fundou a Ordem dos Clérigos Regulares da Mãe de Deus
na Igreja Santa Maria della Rosa. Nesta igreja, Santa Gema frequentava a Santa Missa,
próxima à casa dos Giannini, e do cômodo onde ela faleceu. Em 8 de agosto de 2006, o
Papa Bento XVI, o proclamou santo patrono de todos os farmacêuticos. O pai de Santa
Gema, assim como Sr. Mateus Gianinni que mais tarde a acolheu, eram farmacêuticos.
2 Nota do autor: Eis os nomes dos filhos do Sr. Henrique Galgani, com as datas
dosnascimentos e mortes:
Guido nasceu a 30 de maio de 1871.
Heitor nasceu a 21 de março de 1873.
Gino a 5 de junho de 1876 e morreu em Lucca, a 11 de setembro de 1894.
Gema Maria Humberta Pia nasceu a 12 de março de 1878 e morreu a 11 de abril de
1903.
Antonio nasceu a 14 de março de 1880 e morreu em Lucca, a 21 de outubro de 1902.
Ângela nasceu a 30 de setembro de 1881.
Julia nasceu a 30 de outubro de 1883 e morreu em Lucca a 19 de agosto de 1902.
Do outro filho, morto ao nascer, não se pode obter notícia certa. [Obviamente que já são
falecidos os três que ainda viviam na época em que o livro fora escrito – NE].
3 Foi este sacerdote que pagou pelas primeiras edições desta biografia em 1907. In:
Piélagos, Fernando. Santa Gema Galgani. São Paulo: Paulinas – ٢٠٠٤; pg. ١٠١ – NC.
4 Em italiano essa palavra significa ‘pedra preciosa’ – NC.
5 Grande intuição do Venerável Padre Germano acerca do ministério espiritual da mãe –
NC.
6 Os sacramentos da Iniciação Cristã são: Batismo, a Crisma e a Comunhão. A Santa
Igreja de Rito Romano, até as reformas pós-conciliares, ocorridas na segunda metade do
século XX, ministrava os sacramentos nesta ordem. Agora, optou-se por postergar o
sacramento da Crisma para depois da Primeira Comunhão, invertendo-se a ordem dos dois
últimos.
CAPÍTULO II

GEMA VOLTA À CASA PATERNA EM LUCCA:


A ESCOLA E A SUA PRIMEIRA COMUNHÃO (1886-1887)

A pequena Gema, a quem nada agradava fora das práticas de


piedade, sentiu depressa o grande vácuo causado, primeiramente,
pela ausência e, depois, pela perda de sua mãe.
Então, disse ela um dia a seu diretor: “chorava e tinha tantas
saudades do tempo em que minha mãe me fazia rezar sempre”.
Querendo ir de manhã cedo à igreja, não achava quem, naquela
hora, a quisesse acompanhar. Desejava com ardor estar por vezes
sozinha para se entreter com Deus, num lugar retirado, mas não a
deixavam tranquila um só momento. Sua grande humildade a fazia
julgar-se muito pecadora, e por isso sentia necessidade de se
confessar todos os dias; e este consolo não lhe era permitido, pois
todos a consideravam como uma flor de inocência. À exceção do
confessor, não havia quem lhe falasse em Jesus, sendo este o único
assunto que lhe agradava.
Por estas e outras privações a menina sofria cruelmente, mas
Deus se apressou em abreviar-lhe este martírio.
Sua tia Helena a amava ternamente, como a um anjo. As maneiras
graves e ingênuas, a encantadora modéstia, e esclarecida piedade,
raríssimas em uma criança de tão tenros anos, tornaram-na
sumamente cara ao seu coração, e começou a pensar em obter de
seu cunhado, Henrique, que deixasse Gema ficar sempre consigo, a
quem servi-la-ia de mãe. Gino, o irmão, quando soube deste desejo,
procurou com todos os argumentos persuadir ao pai que não
anuísse a isto, pois a separação da sua Gema, embora apenas por
alguns meses, era-lhe muito custosa. O bom pai pensava do mesmo
modo, e assim, refletindo por algum tempo sobre a resolução a
tomar após tão grande desgraça que lhe abatera, concluiu que o
melhor seria reunir em torno de si todos os filhos que estavam ainda
espalhados, e dar-lhes uma conveniente educação e instrução.
Assim pois, Gema voltou à casa paterna entre as lágrimas de
alegria de todos os seus, e principalmente do extremoso Gino.
Para a sua educação, não tendo o terno pai coragem de separar-
se dela de novo, pondo-a como pensionista em algum colégio,
resolveu matriculá-la como externa no Instituto tão afamado em
Lucca, das Irmãs de Santa Zita, também chamado ‘Guerra’, nome
da sua fundadora.1 Foi ótima esta lembrança do Sr. Henrique de
confiar sua filhinha àquelas excelentes educadoras, as quais, a par
das letras e das artes, davam uma completa instrução religiosa às
meninas, formando-as na mais sólida piedade cristã.
Que satisfação sentiu o coração de Gema com esta determinação
de seu pai, provavelmente inspirada por ela mesma, como revelam
as seguintes palavras que confiou a seu diretor: “Comecei a ir à
escola das freiras que me era um paraíso”.
E tinha razão, porque sob a direção de mestras consagradas a
Deus, no meio de diversos exercícios e práticas de piedade que
entremeavam o estudo, o trabalho e tantas instruções e
confidências, Gema, que desde a mais tenra idade se tinha
acostumado a viver mais no céu do que na terra, achou-se afinal no
seu verdadeiro lugar.
Tanto as mestras como as outras alunas reconheceram logo as
raras disposições da recém-chegada, era inevitável, portanto, que
lhe consagrassem todo amor e admiração.
Gema procurava disfarçar suas virtudes para esconder-se aos
olhos de todos, mas não o conseguia porque a candura de sua bela
alma transparecia em toda sua pessoa, principalmente nos olhos.
Tanto que uma vez disse-lhe uma das mestras: “Gema, Gema, se
eu não te lesse nos olhos, não te conheceria”.
Embora pela idade fosse uma das menores da classe, tanto
respeito inspirava que era considerada como a primeira entre todas.
No capítulo seguinte tornaremos a falar do bom comportamento de
Gema na escola e dos seus progressos nos estudos. Por enquanto,
iremos nos ocupar aqui da sua Primeira Comunhão, que desejou
fazer logo que entrou no Instituto.
Desde muito tempo que esta alma, como inocente pomba ferida no
coração pelas flechas do mais puro e ardente amor de Jesus, gemia
e consumia-se no desejo de se unir a Ele no sacramento da
Eucaristia. Sua santa mãe tinha-lhe feito, de antemão, conhecer e
saborear as delícias, e para inflamá-la cada vez mais nesse
sentimento, frequentemente a levava consigo junto do Tabernáculo
sagrado onde o Senhor costuma derramar celestes raios e chamas
sobre aqueles que O procuram, especialmente nas almas simples.
Ora, aproximando-se o segundo lustro de sua idade, parecia-lhe
não poder esperar nem resistir mais tempo, e com lágrimas nos
olhos suplicava todos os dias ao confessor, ao pai e à mestra, que
lhe dessem o seu Jesus. Opunha-se, porém, a isto o uso comum de
não admitir à Sagrada Mesa meninas de tão tenra idade;2 ainda
mais que ela, pela sua delicada compleição, parecia só ter seis
anos.
Gema, porém, voltava sempre ao assunto com novos argumentos:
“Dai-me Jesus, vereis que serei boa, que não cometerei mais
pecados; não serei mais como até aqui; dai-me-O!, que me sinto
desfalecer e não posso mais”.
Diante de tão extraordinárias instâncias, cedeu finalmente o
confessor, que era o Padre João Volpi,3 depois bispo de Arezzo,
dizendo ao pai que, se não queriam ver morrer de pesar a sua
Gema, deixassem-na receber a Sagrada Comunhão.
Quem poderia descrever a alegria da fervorosa menina com a tão
desejada permissão?
Depois de ter agradecido ardentemente a Jesus e a Maria
Santíssima, começou logo a pensar em como realizar seu santo
desejo. E, sem demora, resolveu encerrar-se no convento, junto às
suas mestras de Santa Zita, onde, depois de um curso regular de
exercícios espirituais na paz da solidão, melhor se poderia preparar
para o grande ato. Achou, é certo, grande dificuldade em obter a
licença do pai, a quem parecia impossível passar um dia sequer
sem a presença da sua querida filha; porém, ela tanto insistiu com
súplicas e lágrimas que foi necessário, ainda desta vez, ceder.
O leitor terá prazer em ouvir da própria Gema o que aconteceu:

Obtive a permissão à noite, e no dia seguinte, pela manhã, fui logo ao


convento, onde fiquei dez dias. Durante este tempo não vi ninguém de minha
família; mas, como me sentia bem! Que paraíso! Logo que cheguei ao
convento julguei-me tão feliz; corri a agradecer a Jesus na capela e rezei com
fervor para preparar-me bem para a Sagrada Comunhão. Então nasceu em
meu coração o grande desejo de conhecer toda a vida de Jesus e sua
Paixão.

Vimos, no capítulo anterior, como sua mãe a iniciara nesta


meditação desde os primeiros anos. Mas quem teria ensinado a
esta menina que o mistério da Paixão do Salvador liga-se tão
intimamente com o da Eucaristia? Que para chegar a esta, o melhor
meio é passar por aquela? Certamente foi o próprio Espírito Santo
que a fizera compreender. Ele que já tinha comunicado tantas luzes
e tanto amor a esta alma privilegiada, e com esses dons a tornaria
tão apaixonada pelo Santíssimo Sacramento.

Manifestei este desejo à minha mestra, e ela começou, a cada dia, a dar-
me algumas dessas instruções, escolhendo para este fim a hora em que as
outras meninas estavam deitadas. Uma noite em que me explicava alguns
pormenores da crucifixão, da coroação de espinhos e outros suplícios de
Jesus, descreveu-os tão vivamente que senti uma intensa dor e me sobreveio
uma febre violenta que me obrigou a ficar de cama no dia seguinte. À vista
disso, a mestra desistiu das lições. Ouvia então as práticas. Todos os dias o
bom pregador dizia: quem se alimenta de Jesus, viverá de Sua vida. Estas
palavras me enchiam de consolação, e assim raciocinava comigo mesma:
então, quando Jesus estiver comigo, eu não viverei mais em mim, porque
Jesus é quem viverá em mim! E morria de desejo de chegar a poder dizer
depressa estas palavras: Jesus, vive em mim! Outras vezes, meditando
nesse assunto, passava a noite inteira em viva ansiedade. Preparei-me para
a confissão geral, que fiz em três vezes ao Sr. Padre Volpi; terminei-a no
sábado, véspera do feliz dia, 17 de junho de 1887, para o qual se tinha
transferido a festa do Sagrado Coração de Jesus.

Naquele mesmo sábado a boa Gema quis escrever a seu pai. E


para satisfazer seu terno coração, transbordando de tão santos
afetos, dito por si mesma na carta seguinte; carta breve, porque
quando se sente muito, pouco se pode exprimir:

Querido Papai. Estamos na véspera da Primeira Comunhão, dia para mim


de inefável alegria. Escrevo estas linhas só para lhe assegurar o meu amor e
pedir suas orações a Jesus, a fim de que na primeira vez que Ele vier à
minha alma, ache-me disposta a receber todas as graças que me tem
preparado. Peço-lhe perdão de todas as desobediências de todos os
desgostos que lhe tenho dado, suplicando-lhe que se esqueça de tudo esta
noite, e me dê sua benção.
Sua filha afetuosíssima,
Gema

Recolhe-te um pouco, ó devoto leitor, para admirar a fé


ardentíssima de tão tenra menina:

Chegou a manhã de domingo. Levantei-me depressa e corri para Jesus


pela primeira vez... Foram afinal satisfeitos os meus suspiros. Compreendi
então a promessa de Jesus: “quem se alimenta de mim, viverá de minha
vida”.
Meu pai espiritual, o que se passou entre mim e Jesus naquele momento,
já não posso exprimir. Jesus se fez sentir com toda a força em minha pobre
alma. Entendi, naquele mesmo instante, que as delícias do céu não são
como as da terra. Apoderou-se de mim o desejo de tornar contínua aquela
união com meu Deus. Sentia-me cada vez mais desapegada de tudo do
mundo, e mais atraída ao recolhimento.

Certamente, palavras como estas não saberia proferir quem as


inventasse; a arte não consegue elevar-se a tanta altura para se
deixar escapar, pela pena, palavras tão ardentes de celestial amor.
Antes de sair dos santos exercícios do retiro, a piedosa menina
tomou por escrito às resoluções seguintes:

1. Confessarei e comungarei todas as vezes como se fosse a última;


2. Visitarei muitas vezes a Jesus Sacramentado, especialmente quando
estiver aflita;
3. Preparar-me-ei para todas as festas da Santíssima Virgem, com alguma
mortificação, e todas as noites pedirei a benção à minha Mãe do Céu;
4. Quero estar sempre na presença de Deus;
5. Todas as vezes que ouvir o relógio dar horas, direi três vezes: Meu
Jesus, misericórdia.

Queria acrescentar outros propósitos, mas não lhe foi permitido


pela mestra, que a surpreendendo enquanto escrevia, quis que se
comprometesse só com esses, receando sobrecarregar-se demais a
delicada menina – e com isso vir a sofrer em sua saúde; pois sabia
que, aquilo que ela prometesse a Deus, cumpriria com todas as
forças de sua alma, dotada como era de caráter firmíssimo e fervor
extraordinário.
No dia seguinte quis fazer a segunda Comunhão, na sua Matriz, a
insigne basílica de São Frediano,4 rica em possuir o precioso
tesouro dos restos mortais de Santa Zita.5
A feliz impressão da Primeira Comunhão, gravada no coração de
Gema, nunca mais se apagou.

A querida menina – atesta uma de suas mestras – recordava-se daquele


belo dia com uma alegria inexprimível, e até nas horas de recreio,
conversando, a isto se referia: às puras e doces consolações que tinha
gozado naqueles felizes instantes.
Por ocasião dos exercícios espirituais que precediam cada ano à Primeira
Comunhão das nossas alunas, a sua ventura subia ao auge, e tomava parte
em tudo como se também devesse, em cada ano, ser uma delas.
Além disso, foi sempre solícita em comemorar com especialíssima devoção
aquele grande dia de sua festa.

Quem quiser saber em que consistia esta devoção, leia a seguinte


carta que, em um desses aniversários, em junho de 1901, dirigiu a
seu pai espiritual. Nesta carta, constam duas partes; a primeira foi
escrita estando em êxtase,6 o que lhe acontecia muitas vezes à vista
das pessoas de casa; é uma espécie de introdução e diz assim:

Meu pai, não sei se já vos disse que o dia da festa do Sagrado Coração de
Jesus é também o dia da minha festa. Ontem, meu pai, passei um dia no
paraíso, estive todo o tempo com Jesus, sempre falei em Jesus, fui feliz com
Jesus e também chorei com Jesus; no recolhimento interior me fez ficar, mais
do que de costume, unida ao meu querido Jesus.
Oh! Pensamentos tão frios do mundo, afastai-vos de mim; quero estar
sempre com Jesus e somente com Jesus.

Depois, voltando-se para si mesma, como sempre fazia para


humilhar-se, à vista de tais expansões de amor continua:

Meu Jesus, ainda me suportais? Quanto mais penso na minha falta de


merecimentos tanto mais me confundo e não acho razão alguma para
tranquilizar-me, senão recorrer depressa à vossa compaixão. Ó
misericordioso Jesus!

Depois dessa efusão, Gema sai do êxtase e percebe que está


escrevendo uma carta; eis com que naturalidade volta ao assunto:

Meu pai, para aonde me leva o meu pensamento? Ao belo dia da minha
Primeira Comunhão. Ontem, festa do Sagrado Coração de Jesus, senti de
novo a alegria da Primeira Comunhão. Outra vez foi-me concedida a
felicidade do Paraíso. Mas que é gozá-la só por um momento, quando depois
a gozaremos para sempre? O dia da Primeira Comunhão, posso bem dizê-lo,
foi aquele em que meu coração mais se abrasou de amor por Jesus.
Quanto fui feliz!, quando com Jesus no coração pude exclamar: ó meu
Deus, o vosso coração é o meu, o que vos torna feliz, também faz a minha
ventura! Que mais me faltava para estar contente? Nada! Comparei a paz do
coração que senti no dia da minha Primeira Comunhão, com a paz que gozo
agora: não acho diferença alguma!

E logo, para humilhar-se, acrescenta:

Ó meu pai, meu pai... mas todos os dias não são iguais. Passo alguns dias
de modo que me envergonho de mim mesma! Oh! Quantas vezes tenho
cedido aos atrativos deste mundo! Ó Jesus, vinde depressa, tirai-me o
coração! Tomai posse dele para que eu, com meus pecados, não vo-lo torne
a roubar. Ó meu Deus – e aqui, de novo ficava fora de si, escrevendo –
quisera eu fazer um feixe de todas as minhas más inclinações e vo-las
apresentar, a fim de que, com o fogo do vosso amor, Vos dignásseis
consumi-las. Mas, ó meu Deus, se eu não posso fazer tanto de uma só vez,
tomarei, como fim especial, perseguir todas as minhas paixões; e prometo-
vos não me aproximar da Vossa Mesa se antes não tiver conseguido alguma
vitória sobre mim mesma

Não acabaria mais se o intuito fosse transcrever todos os


pensamentos diversos com que ela voltava sempre ao mesmo
assunto da Primeira Comunhão. Mas o que já tenho dito bastará
para fazer conhecer seu coração e calcular a que altura já se
elevava aquele anjo aos nove anos de idade.
Devendo falar ainda várias vezes sobre a devoção que Gema
consagrara ao Sacramento da Eucaristia, encerro o presente
capítulo chamando a atenção para a ação progressiva da graça
sobre esta venturosa menina.
Na Crisma, Deus falou-lhe ao coração, pedindo-lhe o que tinha de
mais caro: sua mãe! Desprendendo-a, assim, de todo o afeto
terreno, por mais legítimo e puro que fosse. Na Sagrada Comunhão
fê-la gozar das doçuras celestiais, e convidando-a à união perfeita
com a Divina Majestade, a dispôs às duras provas e sofrimentos
que aumentam e purificam o amor celeste. Certamente, continuando
a graça a operar assim em sua alma, ela atingirá depressa a uma
grande santidade.
Feliz Gema!, a quem fora dado, desde os mais tenros anos,
conhecer os mistérios do reino de Deus, que estão ocultos à maior
parte dos homens; a quem fora dado gozar da suavidade do Maná
Eucarístico, preparado por Aquele que disse: “Quem comer a minha
carne terá a vida eterna”.7

1 As Irmãs de Santa Zita, posteriormente chamadas Oblatas do Espírito Santo, foram


fundadas em Lucca pela Bem-aventurada Elena Guerra (1835-1914). Apóstola do Espírito
Santo, mulher de grandes talentos intelectuais e espirituais, foi inspirada por Nosso Senhor
a escrever ao Sumo Pontífice sobre a importância da devoção ao Divino Paráclito,
especialmente da Novenade Pentecostes – dando origem a dois documentos pontifícios, o
Breve Provida Matris Charitate e a Carta Encíclica Divinum Illud Munus. In: Braga,
Eduardo. Escritos de Fogo. Porto Alegre: RCC Brasil, 2009 – NC.
2 Durante o pontificado de São Pio X que será permitido e incentivado a Sagrada
Comunhão a crianças na idade da razão. Disse, com a profecia, que em consequência
desta prática “haverá santos entre as crianças” – NC.
3 O Servo de Deus Dom João Volpi (1860-1931). Foi bispo de Arezzo. Após sua
renúncia, a partir de 1919, até sua santa morte, morará em Roma. Exerceu grande
influência sobre Santa Gema, sendo seu confessor durante toda a sua vida. Foi um grande
apoiador da Beata Elena Guerra, especialmente acerca de sua missão junto a Leão XIII, e
a propagação da devoção ao Espírito Santo. Sua causa de beatificação foi introduzida; e
como era do seu desejo, no ano 2000, seus restos mortais foram transferidos para junto de
sua filha espiritual, Santa Gema – NC.
4 Igreja de São Frediano, de Lucca, nomeada em honra do santo bispo desta cidade, do
século VI.
5 Santa Zita (1218-1278), padroeira das empregadas domésticas; é com certeza uma
das grandes glórias da cidade de Lucca, onde viveu e morreu, e onde se conserva seu
corpo.
6 “Êxtase místico: é definido como fenômeno de contemplação sobrenatural,
caracterizado por uma íntima união da alma com Deus, com alienação dos sentidos”. Fr.
António Royo Marín, O. P.: Teología de la perfección cristiana. Madrid, BAC, 2001, p. 732 –
NC.
7 Jo 6, 52-59.
CAPÍTULO III

NA ESCOLA:
ONDE GEMA REVELOU SEU VERDADEIRO CARÁTER E
ESPÍRITO DE PIEDADE (1888-1894)

Logo que terminaram as solenes festas de Primeira Comunhão,


Gema aplicou-se de novo, com todo o ardor, aos estudos e
trabalhos com a costumada piedade, diligência e amabilidade,
tornando-se cada vez mais querida das mestras e das
companheiras.

Era a alma da escola – atesta uma das professoras –; nada se fazia sem a
sua coadjuvação durante todo o tempo em que ficou conosco. Todas as
colegas lhe dedicavam sempre muito afeto e queriam que tomasse parte em
suas festas e divertimentos, embora ela tivesse um gênio retraído, fosse de
poucas palavras, firme, e algumas vezes aparentemente incivil.

Assim parecia exteriormente, mas é certo que não era esse o seu
caráter. Falava pouco, com medo de que, deixando-se levar pelos
sentidos, caísse na dissipação e viesse a ofender a Deus, como por
vezes, de forma muito ingênua, confiou ao seu diretor. Ela sabia tão
bem dominar-se, que fazia parecer natural o que era fruto de
virtude.
Uma pessoa, vendo-a tão séria e reservada, chamou-a de altiva e
soberba. Porém, ela sorrindo, perguntou: “Que quer dizer soberba?
Eu nem penso nisso; não respondo, porque não sei o que dizer.
Ademais, ignoro se respondo bem ou mal, assim prefiro estar
calada; e adeus”.
Depois de crescida, recordando-se de ter sido algumas vezes
censurada como soberba, acrescentava com aquela sua candura e
humildade incomparáveis:

Sim, eu tinha por demais esse pecado, mas Jesus sabe se eu o conhecia
ou não. Frequentemente ia procurar as mestras, as outras alunas e a
superiora para pedir-lhes perdão desta falta; depois, ao recolher-me durante
muitas noites, chorava sozinha, mas sem conhecer este pecado.
Oh! Tivessem todos esta soberba, cuja raiz produz tão belos frutos
de humildade!
O traço dominante do seu caráter era exatamente a vivacidade.
Quem atentamente a observasse, reconheceria logo que o seu
temperamento era ardente, fervendo-lhe o sangue nas veias; e que
sem a violência que se fazia continuamente a si mesma, teria sido,
como diziam, uma criatura de gênio arrebatado; além disso, com o
espírito pronto e perspicaz que possuía, teria podido elevar-se
acima de qualquer outro.
Quantas vezes não a vi comprimir os primeiros acessos da cólera
até a custa de esforços musculares? E como era grande a minha
admiração,contemplando uma virtude tão generosa, constante e
espontânea numa simples menina!
O mesmo atestam outras pessoas:

Ela era dotada de gênio vivo, mas calmo, porque sempre se vencia. Nunca
se perturbava nem discutia; e quando a censuravam ou maltratavam,
respondia primeiro com um amável olhar, e depois com um sorriso tão doce
que, não raras vezes, forçava a adversária a atirar-se ao pescoço e apertá-la
amorosamente ao coração.

Acrescenta outra testemunha:

Algumas vezes acontecia que, sendo-lhe atribuída alguma desordem na


casa, repreendiam-na asperamente. Gema, depois de ouvir por algum tempo
em silêncio, que tivessem ou não razão, com a mais serena voz, dizia: “Não
se aflijam, não se encolerizem, eu serei boa, prometo! Não o farei mais”.
Tanto aquele anjo sabia dominar-se.

Quanto à aparente incivilidade de que acima fizemos menção,


procedia da índole franca e sincera, peculiar a esta bendita menina.
Para ela o sim era sim, e o não, não;1 o branco, branco, e o preto,
preto. Não havia dobras naquele coração, assim como sentia, falava
e procedia sem procurar meios-termos, quer para começar, quer
para terminar qualquer assunto.
Ignorava o que, no mundo, chama-se cerimônia ou etiquetas.
Satisfazia-se com a observância das regras essenciais da civilidade;
não queria saber de mais nada; falava claramente com todos e não
podia acreditar que levassem a mal a sua sinceridade. De fato,
ninguém se ofendeu jamais com suas palavras e maneiras. Pelo
contrário, se a interessante menina se resolvia a entreter-se por
mais tempo conversando (o que não era fácil), de bom grado se
detinha o ouvinte sem sentir o menor enfado.
Acontecia exatamente assim na escola, onde, como vimos, todas
as alunas amavam a sua Gema com verdadeiro amor de predileção;
tanto que, quando ela teve de sair e deixar o colégio por estar
doente, foi uma tristeza geral no meio daquelas meninas.
Por esta singular reserva no falar e o seu habitual recolhimento,
alguns a julgaram tímida e outros pouco menos que estúpida. A boa
Gema, porém, não se preocupava com essas apreciações e se
alguém insistia para que respondesse, modestamente dizia:

E por que teria eu de agradar ao mundo? Estúpida sou por certo; e que
fazer se me julgam como sou? Quanto ao mais, não me importo com isso.

Uma vez foi visitá-la um médico. Vendo-a tão modesta, recolhida e


reservada, sem permitir que a tocassem, tomou-a por fanática e,
concluída a visita, pôs-se a apresentar-lhe alguns dos seus
argumentos tirados da escola do mundo, para convencê-la de que
ela estava errada. Gema, que até então se tinha conservado calada,
animou-se de repente.E com raciocínios lógicos e prontos,
expressos com palavras veementes, rebateu de tal modo um por um
daqueles fracos argumentos, que o sábio doutor não soube como
replicar, retirando-se em grande confusão – e em meio a uma
singular admiração dos circunstantes.
Eu mesmo quis, mais de uma vez, experimentá-la, procurando
atrapalhá-la com sofismas de toda a espécie; e tive sempre que me
declarar vencido pelas respostas judiciosas, sutis e inteligentes que
ela me dava. Tão verdade é que “os homens julgam pela aparência,
mas só Deus conhece bem o coração”.2
Ora, voltando ao primeiro assunto, eis em que termos as mestras
manifestam a sua admiração por essa extraordinária menina, no
longo atestado do qual tirei o que até aqui tenho dito:
Todas as mestras, começando pela Madre Superiora (Guerra),3 que foi
professora de Gema no curso mais adiantado, nos anos de 1891 a 1892,
tiveram sempre muito amor e estima pela querida aluna. Eu que escrevo, em
função do meu ofício, tive ocasião de ver mais de perto a Gema do que as
outras irmãs, e pude admirar sempre a sua sólida piedade e ingenuidade
quase infantil.
Desde os primeiros dias em que a conheci, considerei-a como uma alma
muito privilegiada de Deus, mas oculta aos olhos do mundo. Notei que
ensinando às alunas a fazerem um pouco de meditação de manhã e alguns
minutos de exame de consciência à tarde, ela, que já conhecia essas práticas
de religião, as observou sempre com a melhor boa vontade; porém, nunca
pude obter que me dissesse quanto tempo se demorava nessas devoções –
e só por algumas respostas evasivas que dava, quando interrogada, pude
avaliar que dedicava muitos momentos principalmente à meditação. Ávida de
ouvir a palavra de Deus, mostrava-se muito contente nos dias em que o
sacerdote (que era o E. Padre Rafael Cianetti) vinha a explicar o Catecismo.
O mesmo acontecia com as outras práticas que havia no Instituto nas
diversas festas do ano. Queria tornar-se santa à imitação da Venerável
Bartolomea Capitaneo,4 e eu recordava-lhe muitas vezes este propósito,
repetindo-lhe: “Pensa, Gema, que deves “ser uma Gema preciosa”.

Eis o testemunho da Irmã Julia Sestini.5


Como não pode haver sólida e verdadeira santidade que não seja
formada aos pés da cruz do Senhor, Deus lhe inspirou um vivo
desejo de conhecer cada vez melhor este grande mistério. Escreveu
Gema:

A mestra que no tempo de retiro da Primeira Comunhão tinha-me falado


tanto sobre a Paixão, um dia, talvez porque visse em mim alguma mudança,
procurou de novo dar-me algumas explicações piedosas. Porém, lentamente;
e me repetia muitas vezes: “Gema, tu és de Jesus, e deves consagrar-te toda
a Ele. Sê boa, Jesus está contente contigo; mas também tens necessidade
de muito auxílio. A meditação sobre a Paixão deve ser a devoção mais cara!”
Oh! Se eu pudesse ter-te sempre comigo! Aquela boa mestra adivinhara o
meu pensamento. Outras vezes, dizia-me: “Gema, quantos dons Jesus te
fez?” Eu que nada sabia de tudo isto, me conservava calada.

Entretanto, a piedosa menina desejava ardentemente saber a


fundo o que lhe parecia ainda não entender. Chegou-se à boa
mestra e com tão grandes e continuas instâncias lhe suplicou
minuciosas explicações; esta concordou em fazê-lo todos os dias
em que, na escola, obtivesse a nota 10, tanto no estudo como no
trabalho.
“Que melhor prêmio do que este?”, dizia Gema a si mesma. E
redobrando a aplicação, conseguiu, desde aquele dia, ganhar quase
sempre aqueles pontos de merecimento, pelo que lhe foi concedida
a tão desejada recompensa.

Quantas vezes – disse-me ela um dia –, enquanto a mestra me falava,


refletindo no amor de Jesus em sofrer tanto por nós, tão ingratos para com
Ele, eu e ela chorávamos juntas!

Ensinava-lhe também, a boa diretora, a fazer alguma pequena


mortificação corporal para compensar tanta falta de correspondência
a Jesus, fazendo-lhe conhecer vários instrumentos de penitência; e
a fervorosa menina obteve uns e fez outros com suas próprias
mãos: mas, por mais que insistisse, nunca lhe foi permitido usá-los.
Procurou substituí-los a conselho da mesma mestra pela rigorosa
mortificação dos olhos, da língua e de todos os sentidos,
especialmenteda vontade, em cujo exercício se tornou
verdadeiramente admirável pelo resto de sua vida, como veremos
adiante.
Atingimos o mês de março de 1888, quando aprouve a Deus
chamar a Si a boa mestra, que era a Irmã Camilla Vagliensi,
religiosa de rara santidade; então Gema passou para a direção de
outra, não menos virtuosa, e dotada de um singular espírito de
oração, Irmã Julia Sestini.

“Com esta mestra – contava-me ela – comecei a ter muito desejo da


oração. Todas as noites, voltava da escola e, chegando em casa, fechava-me
num quarto e rezava todo o rosário de joelhos, e muitas vezes, durante a
noite, pelo espaço de quinze minutos, levantava-me para recomendar a
Jesus a minha pobre alma”.

Com tão boas disposições da graça, e grande fervor de espírito,


Gema passou todo aquele ano no Instituto, continuando a ir
regularmente a escola com sua irmã menor, Angelina, que, por
ordem do pai, começou a frequentar também aquela piedosa casa
de educação.
Podia-se dizer dela o que do Salvador atestam os evangelistas:
“que com a idade, crescia em graça e sabedoria, diante de Deus e
dos homens”.6
Mas a vida dos justos na terra não é somente semeada de flores;
pelo contrário, é cheia de espinhos! E é bem raro que o Senhor não
ponha a duras provas os seus eleitos desde a idade juvenil, para
acostumá-los, pouco a pouco, às lutas da vida espiritual. Ora, que
assim tivesse acontecido com a nossa Gema, quando tinha apenas
7 anos, já o vimos no primeiro capítulo.
Mas cem vezes mais dura foi a provação que lhe sobreveio neste
tempo, com a desolação do espírito, a que os doutores ascéticos,
chamam martírio interior.7 Até então só tinha tido consolações,
atrativos celestes e estímulos para o perfeito exercício de todas as
virtudes.
Agora, porém, invadia-a o tédio, a tristeza, a repugnância para a
oração, e não lhe era mais tão sensível o aborrecimento que dantes
tinha por tudo que era do mundo. Poucas vezes, sentia a presença
do seu Jesus, e aquelas expansões amorosas, que no princípio lhe
eram tão comuns, agora pareciam um sonho.8 Quem pode exprimir
a angústia de sua alma tão fervorosa, entregue a este estado a que
não estava habituada?
Esta prova não foi de poucos dias, mas durou quase um ano
inteiro. Contudo, este tempo não foi perdido para ela, antes lhe foi
de grande vantagem; parecendo que lhe escapava aquele Deus a
quem tanto amava, cada vez com mais ardor O procurava,
desprendendo-se de todo o afeto às coisas terrenas, frequentando
com maior fervor a Sagrada Comunhão e aperfeiçoando-se na
prática das mais sólidas e sublimes virtudes.
Aplicou-se a aumentar em sua alma o horror pelo pecado e a dor
intensíssima pelos seus pequenos defeitos, que considerava tão
grandes culpas, e pelos quais temia escandalizar ao próximo; a
todos pedia perdão e desculpa.
Para mais se purificar, quis renovar a confissão geral, mas o
prudente confessor, que bem conhecia a sua inocência, não
permitiu. Não era muito agradável aos parentes o gênero de vida da
pequena Gema, desconhecendo quais os desígnios do Céu sobre
ela, que devia ser elevada a tão grande santidade; por isso,
censuravam-na frequentemente. Queriam que se distraísse, e
impediam-na de sair de manhã cedo, e de ir muito à igreja; à tarde,
insistiam para que passeasse com as irmãs, trajando como elas, e
outras mil coisas, que muito lhe amarguravam o coração.
Mas Deus depressa veio em seu auxílio, permitindo que no dia 15
de março do ano seguinte de 1890, com a morte do seu tio Maurício
– e, tendo já falecido, dois anos antes, o seu avô Carlos –, as duas
tias Helena e Elisa viessem morar com seu irmão Henrique, pai de
Gema.
Eram essas duas senhoras muito piedosas e amáveis. Desde que
entraram em casa, a boa Gema sentiu-se consolada por ter a sua
guarda a elas confiada. Antes da escola, ia com elas todos os dias
assistir à missa, e à tarde também as acompanhava na visita ao
Santíssimo Sacramento; rezavam juntas e entretinham-se em
santas conversações; parecia-lhe quase ter voltado àqueles belos
dias em que vivia sua mãe.
Desse tempo em diante, nunca mais deixou a Sagrada Eucaristia.
A princípio, comungava três vezes por semana, não lhe concedendo
o confessor licença para fazê-lo mais frequentemente; depois,
aproximava-se da Santa Mesa infalivelmente todos os dias;9 e a
proporção que se adiantava na vida espiritual, ela mesma atesta
ingenuamente:

Jesus se fazia sentir cada vez mais em minha pobre alma, e me dizia tão
belas palavras que me faziam desfrutar de grandes consolações.

No ano de 1891, em que Gema completou 13 anos, já havia


chegado a um grau de virtude tão alto que dificilmente é concedido
a outros depois de longo tempo e de assíduas fadigas.
Entretanto, julgava bem pouco tudo o que fazia, e, à semelhança
do Apóstolo,10 não olhando para o passado, mas tendo a vista fixa
naquela perfeição, à qual se sentia chamada por Deus, com enorme
coragem trabalhava para melhorar e aperfeiçoar o seu espírito. Para
este fim, apresentou-se-lhe uma boa ocasião em meado deste ano,
como passamos a narrar.
Costumavam as religiosas do Instituto de Santa Zita oferecer, de
dois em dois anos, também às alunas externas, um curso de
exercícios espirituais. “Não me parecia verdade”, escrevia Gema
mais tarde,“que eu tivesse a sorte de vir a encontrar-me de novo
com Jesus. Desta vez, porém, eu estive só, sem auxílio algum”.
Ela queria dizer sem nenhuma assistência das mestras, as quais,
sabendo que a santa menina podia muito bem fazer todos os
exercícios por si mesma, deixaram-na sozinha. Assim, continua ela:

Compreendi bem que Jesus me mandava este ensejo: de conhecer-me


melhor a mim mesma, purificar-me mais, a fim de Lhe ser mais agradável.

Anotando este retiro no livrinho, que continha suas mais preciosas


lembranças, escreveu: “Exercícios feitos em 1891, nos quais Gema
deve-se converter e dar-se toda a Deus”. Poderá por ventura haver
para o retiro disposições melhores do que as que tinha esta tão
fervorosa menina aos treze anos?

Lembro-me que o pregador nos mandou fazer a meditação sobre o pecado.


Então, conheci bem o quanto eu merecia que todos me desprezassem; via-
me ingrata para com o meu Deus e carregada de tantos pecados! Fizemos
depois a meditação sobre o inferno; reconheci-me merecedora dele e fiz o
seguinte propósito: farei também durante o dia vários atos de contrição,
especialmente se tiver cometido qualquer falta.

Note, leitor, estas palavras: também de dia, das quais é fácil


compreender que, também e especialmente de noite, a devota
virgem passava horas nesse exercício.

Nos últimos dias no retiro – ela continua –, consideramos os exemplos de


humildade, doçura, obediência e paciência de Jesus, e, nesta meditação, fiz
dois propósitos:
1) Farei, todos os dias, a visita a Jesus Sacramentado, falando-lhe mais
com o coração do que com a língua;
2) Aplicar-me-ei, o mais que puder, em não ter conversações indiferentes,
mas falarei só em assuntos celestiais.

Oh! Se fizessem todos deste modo seus exercícios espirituais,


poderiam também tirar deles igual fruto!
Não se julgue, porém, que por causa das suas longas orações e
assídua atenção às práticas de piedade, Gema viesse a descuidar-
se dos deveres da escola. Pelo contrário, foi sempre uma das
alunas mais diligentes, e nos exames anuais obtinha os melhores
prêmios. Nos anos de 1893 e 1894, ganhou o grande prêmio de
ouro de religião, que só se conferia às alunas que durante todo
curso tivessem tirado sempre a nota dez nas lições de doutrina
cristã.
Na exposição dos trabalhos escolares no Instituto, muitas vezes as
mestras conseguiam vencer a grande repugnância que a humilde
menina sempre mostrava em fazer-se notar; obrigavam-na a
apresentar exercícios de francês e aritmética, a recitar poesias e
outras composições, o que também prova a sua inteligência e
adiantamento. Conta-se que seus parentes, vendo-a tão aplicada,
muitas vezes a censuravam, dizendo: “Mas para que mais estudos?
Já sabes tanto e ainda não te basta?”.
Entretanto outra grande dor se preparava para a boa menina.
Gino, seu irmão de quem já falamos, tendo contraído o mal a que
sucumbira a mãe, estava reduzido ao fim da vida. Gema amava-o
ternamente, e era correspondida com igual afeto. Eram duas almas
que se combinavam perfeitamente no mesmo modo de ver e sentir,
principalmente quanto à piedade.

Eu o amava mais do que a todos os outros – dizia Gema –; estávamos


sempre juntos nos dias feriados e nos divertíamos em fazer altarzinhos e
festas.

Desejoso de seguir a carreira eclesiástica, obteve do pai a licença


para entrar no seminário. Já estava iniciado na vida clerical, tendo
recebido as ordens menores,11 e se preparava para as maiores,
quando foi acometido pela doença. Ora, como podiam aquelas duas
almas separar-se nessa extremidade? O bom moço, logo que sabia
estar em casa a amada irmã, a queria sempre ao seu lado, junto à
cama.
Esta bem via o perigo do contágio, mas, não cuidando de si, ficava
presa àquela cabeceira dia e noite, servindo ao doente, confortando-
o e sugerindo-lhe piedosos pensamentos que o preparassem para
aquela grande passagem. Com invejável morte, o inocente jovem
deixou de viver em setembro de 1896.
Gema caiu então gravemente enferma, sendo obrigada a ficar
mais de três meses de cama em perigo de vida. Não se pode
descrever a consternação daquela família – e tudo o que fizeram
para salvar ao menos esta segunda filha predileta.

Não posso exprimir a bondade que todos tiveram para comigo,


especialmente meu pai, a quem, muitas vezes eu vi chorar, pedindo a Jesus
a sua morte antes que a minha.

Parece que o Céu o atendeu, pois que no fim de dois anos, o


extremoso pai morreu, como veremos no capítulo seguinte,
enquanto que Gema depressa se restabeleceu.
Mas em consequência da doença ficou tão enfraquecida e magra
que o médico ordenou que a tirassem da escola, que ela deixasse
os estudos. Resignou-se à vontade de Deus e do pai, e tranquila
voltou para a solidão do lar, levando na mão a sua dúplice coroa de
rosas e de espinhos.
Felizes rosas! Mas ainda mais felizes espinhos! Porque se aquelas
consolam e deleitam a alma, estas a purificam e retemperam. E
mais feliz ainda quem, como Gema, sabe recebê-las ambas com
igual fé e amor.

1 Cf. Mt 5, 37.
2 1Sm 16, 7.
3 Referência à Bem-aventurada Elena Guerra – NC.
4 Santa Bartolomea Capitanio (1807-1833), fundadora com Santa Vincenza Gerosa
(1784-1847), das Irmãs da Caridade, conhecidas como Irmãs de Maria Menina, ambas
canonizadas em 1950 por Pio XII, depois da própria Santa Gema – NC.
5 A Irmã Júlia Sestini, Oblata do Espírito Santo, foi uma das mestras que mais teve
influência espiritual sobre Santa Gema. Teve também a graça de estar presente na
canonização de sua aluna – NC.
6 Lc 2, 52.
7 Purificações passivas; na linguagem de São João da Cruz, noite escura. “Tal
Purificação produz passivamente na alma a negação de si mesma e de todas as coisas”.
São João da Cruz, Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2000; p. 440 – NC.
8 “Quando Deus, de fato, põe a alma nesta noite escura a fim de purificar-lhe o apetite
sensitivo, por meio da aridez, não a deixa encontrar gosto ou sabor em coisa alguma”. Ibid.
op. cit., p. 462 – NC.
9 Já no pontificado de Papa Leão XIII, se havia incentivado a prática da comunhão
frequente, mas ainda não era coisa ordinária. São Pio X será o grande incentivador da
prática da comunhão frequente como meio utilíssimo para as almas que seriamente
aspiram a santidade – NC.
10 Cf. Fl 3, 2.
11 “No Rito Romano Antigo, na formação ao sacerdócio, os seminaristas tinham uma
caminhada que incluía as Ordens Menores: Ostiarato, Leitorato, Exorcistado, Acolitado.
Nas Ordem Maiores, havia também o subdiaconado” (Dom Gaspar Lefebvre, Missal
Cotidiano; Bruges: Desclèe, 1955, p. 1895-1919). Nas reformas promovidas após o
Concílio Vaticano II, as ordens menores foram suprimidas, mantendo-se os ofícios do
Leitorato e Acolitado. Também o subdiaconado foi suprimido, assim como o rito da tonsura,
permanecendo somente o Diaconato e Presbiterado. Contudo, nos institutos ligados à
forma extraordinária do Rito Romano, ainda permanecem as ordens menores – NC.
CAPÍTULO IV

VIDA DE GEMA NA FAMÍLIA:


HEROICA PACIÊNCIA NOS GRANDES TRABALHOS QUE LHES
SOBREVIERAM (1894-1897)

Acabava Gema de completar os dezesseis anos. Livre da


ocupação dos estudos, a piedosa donzela entregou-se por completo
aos trabalhos domésticos e à educação dos seus irmãos e
irmãzinhas. Empregou todos os seus esforços em encaminhá-los
pelos conselhos e exemplos nas veredas da virtude.
Notícias pormenorizadas deste seu magistério doméstico não nos
foi dado obtê-las. Entretanto, bem pode o leitor, pelo muito que até
aqui lhe contamos do espírito desta santa virgem, conjeturar
quantoteria feito neste particular. Estava tão persuadida da
importância destaobrigação, que muito receava haver de dar por ela
apertadas contas a Deus. Por isso é que se esforçava para cumpri-
la com a maior exatidão. Ao ver-lhes alguma falta ou defeito, atribuía
a si mesma a culpa, julgando não ter feito o quanto podia para
prevenir tais desordens. Vigiava atentamente para que nada lhes
faltasse, a fim de afastar as ocasiões de brigas, frequentes entre
crianças daquela idade.
Quanto ao bom exemplo que dava na família com o seu edificante
procedimento, era um espetáculo muito singular: até aos estranhos
causava tal admiração, que dele ainda conservam uma viva
lembrança.Um criado da casa, por nome Pedro Maggi, muitas vezes
acompanhava a boa donzela quando esta saía. Para mostrar a
admiração que sentia pela virtude extraordinária da sua jovem
senhora, costumava dizer: “Que querem? Há só uma Gema: é uma
pedra preciosa que não tem igual!”.
Outra causa de admiração era o seu arraigado amor para com os
pobres. Ela mesma dava testemunho disso quando dizia, na sua
profunda humildade, que no meio de tantos defeitos e misérias de
espírito, só uma boa qualidade lhe ficava, e era a caridade para com
os pobrezinhos:
Todas as vezes que saía de casa, pedia dinheiro ao meu pai e, quando me
negava, o que fazia de vez em quando, suplicava-lhe que me permitisse levar
pão, farinha ou outros alimentos; graças a Deus, encontrava sempre no
caminho alguns pobres, até três ou quatro. Aos que vinham em casa, eu
dava roupa e tudo o que podia encontrar. Mas isto me fora proibido pelo meu
confessor. Então, fiquei numa posição bem difícil: meu pai não me dava mais
dinheiro, e eu não podia levar nada de casa; ora, todas as vezes que saía,
encontrava pobres que me corriam ao encontro; e eu sem coisa alguma que
lhes pudesse dar... Afligia-me tanto isto, que não podia deixar de chorar
continuamente, e foi por esta razão que acabei por não sair mais.

Esta sua resolução não a pôde cumprir com todo aquele rigor que
desejara porque o seu pai, que lhe conhecia o caráter vivo e
ardente, sob pretexto de dar aos seus outros filhos uma pessoa de
confiança que os acompanhasse nos passeios, obrigava a jovem a
sair de casa, ao menos, de vez em quando.
Obedecia, então, Gema; mas transposta apenas à porta de casa,
tomava certos atalhos, dela bem conhecidos, e saía logo do
povoado; dirigindo-se para o campo; procurava um lugar isolado que
unia os benefícios do ar livre às vantagens da solidão.
Mas até nesta inocente diversão, tomada só por obediência e
usada com tanta cautela, veio o demônio aborrecê-la. Certo dia, um
jovem oficial do exército, que a tinha observado, pôs-se a
acompanhá-la. Não o percebeu a boa donzela, porque andava
sempre de olhos baixos; mas quando alguém a avisou o que
sucedida, afligiu-se ao extremo, chorou muito e, depois de se ter
encomendado fervorosamente a Deus, tomou a firme resolução de
não sair mais de casa, a não ser para ir à igreja vizinha de São
Frediano. Parecia difícil manter um tal propósito por causa da
oposição de seu pais; mas tão bem ela soube dispor as coisas, que
o conseguiu quase completamente.
E assim, foi no retiro do lar doméstico que se aperfeiçoaram as
virtudes e se acendeu o fervor deste anjo. Julgando-se muito
deficiente na virtude, punha todo o seu cuidado em estimular-se no
caminho da perfeição: “Gema – repetia ela constantemente – deve
mudar e entregar-se toda a Deus”.
Para crescer no fervor, sabia aproveitar-se de tudo: das
solenidades da Igreja, da beleza da natureza, da sucessão das
estações e até dos brinquedos e divertimentos, aos quais por vezes
se entregava, como a inocente passatempos.
Estava para findar o ano de 1895 e o pensamento de um ano novo
inspirou-lhe desejos de uma vida mais perfeita. Levantando-se do
lugar da meditação, tomou um caderno, no qual costumava notar os
bons propósitos:

Neste novo ano, proponho começar uma vida nova. Que me acontecerá
neste ano? Não sei... Entrego-me a Vós, ó meu Deus; todas as minhas
esperanças e os meus afetos serão para Vós. Sinto-me fraca, ó Jesus! Mas,
com o vosso auxílio espero e resolvo viver de outro modo, isto é, mais unida
convosco.

Nas suas ocupações e devoções, não fez quase nenhuma


mudança. Levantava bem cedo pela manhã, recitava as
acostumadas orações e depois, ia à igreja assistir a missa e
comungar. Não deixava passar um dia sem visitar o Santíssimo
Sacramento; diante d’Ele demorava-se mais ou menos, conforme os
vagares que lhe deixavam as suas ocupações domésticas. À noite,
fazia a sua meditação e outras prática de piedade; depois, rezava o
rosário de joelhos – e, durante a noite, continuava a levantar-se
duas ou três vezes, por um quarto de hora, para, como ela dizia,
encomendar a Jesus a sua pobre alma.
Avalie o leitor os sentimentos de viva dor, de confiança e de amor
que se acendiam no coração desta virtuosa virgem quando se
achava só com o seu Jesus.
Sabemos pela própria Gema que, desde então, Deus se
comunicava à sua alma com suaves demonstrações de amor e
vivas inspirações; “luzes claras”, como costumava dizer. Embora
vivesse ainda no meio das ocupações domésticas e seus pés
pisassem ainda esta nossa terra, a sua alma já pairava nas
sublimes regiões do céu. Ficava tão absorta por estas
manifestações que, ainda mesmo nas ocasiões em que podia ficar
mais exposta a distrair-se, não as perdia nunca de vista.
Não se julgue, porém, que um recolhimento interior tão profundo
lhe estorvasse o cumprimento exato dos deveres de casa; eram-lhe
antes um poderoso auxílio para fazer tudo com a maior perfeição e
diligência, estando bem convencida de que, procedendo assim,
agradava muito a Deus.
Para desprender cada vez mais o coração desta sua esposa de
todas as coisas terrenas e afeiçoá-lo a Si, de tal sorte que não
achasse alegria em nenhuma outra coisa, serviu-se o Senhor do
seguinte meio extraordinário, na época em que chegamos nesta
história, isto é, no ano de 1895.
Recebera ela um presente de um familiar: um relógio numa
corrente de ouro. Para agradar à pessoa que lhe fez tamanha
gentileza, julgou conveniente pendurá-lo ao pescoço ao menos uma
vez em que saísse de casa.
Pois bem, quando voltou, ao tirar aquela joia, pareceu-lhe ver o
seu anjo da guarda,1 que lhe lançava um olhar severo e dizia: “Os
ornatos preciosos que deve usar a esposa de um rei crucificado não
podem ser senão a cruz e os espinhos”. E desapareceu. Imagine o
leitor a impressão que causou na alma da piedosa jovem aquela
aparição e aquelas palavras tão significativas. Não foi preciso mais
nada: repeliu de si com desprezo o relógio e a corrente; depois
reparando que trazia no dedo um anel, tirou-o também; prostrada
então por terra e desfeita em lágrimas fez este propósito: “Por vosso
amor, ó Jesus, e para não ser agradável senão a Vós, prometo
nunca mais usar tais coisas, nem falar em assuntos de vaidade”.
Cumpriu esta promessa em todo o resto de sua vida; e, deste dia
em diante, não quis mais saber de modas nem de enfeites.
É esta a primeira notícia que achamos nas memórias de Gema
das aparições angélicas. Depois tornaram-se elas muito frequentes
e até cotidianas, como adiante veremos.
Mas não foram só os Anjos que lhe apareceram frequentemente.
O próprio Rei dos anjos, Jesus Cristo, dignou-se, desde aquele
tempo, a fazer-lhe amorosas visitas, segundo ela mesmo o confiou
ingenuamenteao seu diretor: “Jesus, apesar de ser eu tão má, vinha
visitar-me e dizia-me tantas coisas!”.
E logo, humilhando-se como costumava: “Não sei como Jesus não
se mostrava indignado; foi só uma vez que o vi contrariado”. E desta
vez, foi certamente para experimentá-la, não por alguma culpa real,
porque pelo que é de faltas voluntárias, Gema não cometeu nem
uma só em toda a sua vida.
Assim pois, aos 17 anos, já era favorecida com o ouvir a voz de
Jesus; além disto, via-O, contemplava-O com seus próprios olhos.
Donde se deduz que já então havia começado a gozar daquela vida
espiritual, que se foi aperfeiçoando de ano em ano e a tornou tão
admirável em santidade.
Não quero dizer com isto que a santidade consiste nestes dons
extraordinários, porque há muitos santos na Igreja de Deus que
mereceram por suas exímias virtudes as honras dos altares, e que,
entretanto, não receberam nunca semelhantes favores do céu. Mas
quando uma pessoa é deles favorecida, há em seu favor grande
presunção de santidade, porque não são concedidos às almas
vulgares. Não é pois de admirar que a nossa feliz Gema, elevada a
tão sublime estado, desprezasse inteiramente os bens caducos
desta miserável vida e desejasse ansiosamente o paraíso.
Esta aspiração, aliás, nós a vimos nascer em seu coração quando
era ainda criança. Refere-a ela mesma, quando já adolescente:

Desde o momento em que minha mãe me inspirou o amor do céu, desejei-o


sempre. E se Deus me tivesse deixado a escolha, eu me teria desprendido
do corpo e voado para lá. Todas as vezes que tinha febre ou qualquer outro
incˆmodo, era para mim uma consolação; pelo contrário, sofria grande dor
quando após alguma doença sentia voltar as minhas forças. Houve dia em
que, depois da Comunhão, perguntei a Jesus porque não me levava para o
céu. “Filha – respondeu-me – é porque durante a tua vida eu te quero dar
muitas ocasiões de maior merecimento, redobrando em ti o desejo do céu e
fazendo-te suportar com paciência esta vida.

Isto contava Gema aos dezoito anos de idade. Com estas


ardentes e incessantes aspirações, crescia indefinidamente no
coração da santa donzela o amor de Deus e desenvolvia-se, ao
mesmo tempo, outro desejo ainda mais forte, que nos demonstra de
que natureza era realmente o seu amor, e à que grau de perfeição já
tinha ela chegado.
Neste mesmo ano de 1896, eis como fala Gema a este respeito:

Outro sentimento nasceu em mim, isto é, uma grande ansiedade pelos


sofrimentos, a fim de acompanhar a Jesus nas suas dores. [...] À vista de
tantos pecados meus, pedia, a cada dia, para Jesus, a graça de sofrer e
sofrer muito. Ó meu Jesus, dizia eu, quero sofrer e sofrer muito por Vós.

Bem se exprimia ao dizer que era veemente este desejo, porque


bastava uma só palavra, uma lembrança, um olhar para a imagem
de Jesus Crucificado, para sentir-se toda inflamada de compaixão e
de amor.

Um dia – conta ela – fiquei penetrada de tanta dor ao olhar, isto é, ao fitar
os olhos no crucifixo, que caí no chão desmaiada. Meu pai, que estava
presente, repreendeu-me dizendo que me fazia mal ficar sempre em casa e
sair tão cedo pela manhã. Ao que eu respondi: “O que me faz mal é estar
longe de Jesus Sacramentado”. Dito isto, fui esconder-me no meu quarto e
foi aquela a primeira vez que desabafei a minha dor a sós com Jesus.

Isto quer dizer que até então a virtuosa Serva de Deus tinha
sempre concentrado em seu coração a dor que lhe causavam
semelhantes trabalhos.

Então, falei assim com Jesus: “Quero seguir-Vos, ó Jesus, à custa de


qualquer dor. Quero seguir-vos fervorosamente. Não, meu Jesus, não quero
mais desgostar-vos, não vos quero seguir tibiamente como tenho feito até
aqui; não vos quero contristar mais”. Estas palavras foram ditadas pelo meu
coração naquele momento de dor e de esperança, a sós com o meu Jesus.

Embora não o diga ela, é muito provável que, nessa hora, Jesus
lhe estivesse visivelmente presente, como em tantas outras
ocasiões.
Para manter e tornar eficazes estas suas resoluções,
acrescentava:

Proponho, pois, fazer as orações com maior devoção e comungar mais


frequentemente. Meu Jesus, quero sofrer muito por Vós, sempre com a
oração nos lábios.

Depois, como que refletindo sobre os seus propósitos e


considerando a fragilidade humana, exclamava: “Cai muitas vezes
aquele que muitas vezes propõe; que será daquele que raramente
propõe?”.
Gema não era certamente noviça na árdua escola do sofrimento;
antes tendo sido preciosa a Jesus desde a infância, sempre teve
ocasião de exercitar-se neste ponto e foi o que confessou ao seu
diretor:

Posso dizer, sem exagero, que após a morte de minha mãe, nunca passei
um só dia sem sofrer alguma coisa por Jesus.

Porém agora que tinha saído da infância e era já moça, o Senhor,


querendo satisfazer os vivos desejos e os incessantes pedidos da
sua serva, aperta a sua divina mão e dá-lhe golpes de mestre.
O primeiro sofrimento foi uma dolorosa enfermidade, que lhe
sobreveio num pé: uma necrose ou cárie do osso, acompanhada de
agudíssimas dores. A virtuosa donzela julgou, a princípio, não ser
coisa digna de atenção, e suportou as dores com muita paciência.
Mas em consequência deste descuido, inflamou-se o pé, estendeu-
lhe a cárie e foi-lhe, afinal, preciso pôr-se nas mãos de um cirurgião.
Este ao ver o estrago profundo ocasionado pela gangrena,
assustou-se e disse que provavelmente seria necessário amputar
todo o pé.
Quis porém tentar uma operação e, descobrindo o osso cariado
começou a raspá-lo. A paciente não quis ser cloroformizada2 e
suportou corajosa aquele martírio. Arrepiavam-se de horror todos os
de casa; só ela se conservava imóvel e quase que insensível.
Escaparam-lhe, é verdade, alguns gemidos, quando a operação era
mais dolorosa. Mas ao olhar para a imagem do seu Jesus
Crucificado, acalmava-se logo, pedindo-lhe perdão daquela
fraqueza. Assim, para usar das suas palavras, depois de ter sido
importunado tanto tempo para que lhe mandasse algum sofrimento,
quis Jesus consolá-la. Porém, sobrava-lhe ainda muito no amargo
cálice da sua Paixão para satisfazer a sede daquela alma justa,
depois de libertada daquele primeiro sofrimento corporal.
O Sr. Henrique, pai de Gema, era um homem de temperamento
antigo, bondoso, simples e caridoso; assim, como não sabia
enganar a ninguém, também pensava que todos tinham iguais
sentimentos de honradez. Vivia, infelizmente, em tempos muitos
tristes, embora parecesse não ter consciência de tal fato. Foi,
entretanto, conhecida esta sua bondade, e não poucos se
empenharam em aproveitar-se dela.
Houve, além disto, longas e dispendiosas enfermidades na família,
em particular as da mulher e de um filho, que delas vieram a falecer.
Acrescente-se a isto mil outros infortúnios que, pouco a pouco,
foram consumindo o grande patrimônio da família. Deste modo,
quando chegou o tempo do vencimento das hipotecas, estas não
puderam ser pagas e foi a ruína completa. Todos os bens, móveis e
imóveis foram sequestrados, e a numerosa família caiu em
lamentável pobreza.
Pouco depois, adoeceu o pobre pai de um câncer na garganta;
deste veio a falecer com 57 anos de idade, deixando os seus
amados filhos completamente órfãos. Mal chegou esta notícia aos
credores, mandaram meirinhos e soldados fechar a farmácia e
sequestrar os poucos móveis que ainda havia na casa. E então
ficaram reduzidos a mais desamparada penúria.
Não parece ao leitor ver passar diante de seus olhos uma copia
fiel da história do Santo Jó, como conta a Sagrada Escritura? Ouça
agora o que disto diz a nossa Gema:

Entramos no ano de 1897, ano tão doloroso para toda a família. Eu só, sem
coração – assim dizia para ocultar o que nela era virtude heroica –,
permanecia indiferente a tantas desgraças. O que principalmente entristecia
aos outros – note-se bem aos outros, não a ela –, era ficarem privados de
todos os meios, ao mesmo tempo que o nosso pai lutava contra tão grave
doença. Compreendi, numa manhã, a grandeza do novo sacrifício que Jesus
ia exigir de mim. Chorei muito; mas naqueles dias de dor, Jesus se fazia
sentir ainda mais perto à minha alma; depois, ao ver meu pai tão resignado a
morrer, deu-me tão grande força que suportei a acerba desgraça com
bastante tranquilidade. No dia em que ele faleceu, Jesus proibiu que me
entregasse a prantos inúteis. Passei-o, então, rezando e muito conformada
com a Santíssima Vontade de Deus, que naquele instante tomava para si o
ofício de Pai celeste e terrestre. Depois da morte de meu pai, achamo-nos
sem coisa alguma, nem tínhamos com que viver.
Isto acontecia no dia 11 de novembro de 1897, tendo Gema
dezenove anos e oito meses.
Estes são os mimos com que Deus favorece as almas que lhe são
mais caras. Feliz de quem sabe recebê-los como tais de suas
santas mãos! Quanto a Gema, tão predileta, tinha ainda mais que
sofrer como veremos no capítulo seguinte.

1 Aqui aparece o primeiro sinal do magistério espiritual que o santo anjo da guarda de
Santa Gema veio posteriormente a exercer em sua vida espiritual. O Papa Emérito Bento
XVI, no dia 29 de julho de 2009, ao relatar o evento em que fraturou sua mão direita, disse
que seu anjo da guarda, “não impediu meu infortúnio, seguindo certamente ordens
superiores. Talvez o Senhor quisesse me ensinar a ter mais paciência e humildade, dar-me
mais tempo para a oração e para a meditação” – NC.
2 Anterior ao advento das modernas técnicas de anestesia – NC.
CAPÍTULO V

GEMA NA CASA DE SUA TIA EM CAMAIORE, E DEPOIS DE


NOVO EM LUCCA:
DOENÇA MORTAL E PRODIGIOSO RESTABELECIMENTO (1897-
1899)

Se é sempre grande a desgraça que ocasiona a morte de um pai


de família, para a casa Galgani pode-se dizer com razão que foi
incalculável. O falecido Henrique deixava sete filhos e duas irmãs,
Helena e Elisa; estando todos os bens sequestrados, não tinham o
mínimo recurso para a sua subsistência e não viam outra esperança
senão na Divina Providência.
Em tão graves circunstâncias, acudiram duas tias que estavam
ausentes. Gema, a sobrinha predileta, foi para junto de sua tia
Carolina Lencioni, de Camaiore,1 que a convidou e, sendo rica,
podia tratá-la quase tão bem como na época de prosperidade da
casa paterna. Porém a piedosa jovem, que nunca se tinha queixado
da extrema penúria de Lucca, também não se alegrava agora com a
abundância de Camaiore.
O seu único prazer, como sempre, era dedicar-se aos trabalhos,
orar e viver retirada só com Jesus. A tribulação tinha purificado e
retemperado tanto seu espírito que poderia agora, entre as
comodidades e gozos terrestres, passar uma vida toda celestial,
como se estivesse num mosteiro.
Não aconteceu assim. Na casa paterna, era-lhe fácil, com a plena
liberdade que afinal lhe davam seus parentes, entregar-se às
práticas de piedade, afastando-se de tudo o que pudesse distraí-la.
Mas em Camaiore, assim como em São Januário, embora também
contasse com a bondade de sua tia, reconhecia, a cada dia mais,
que não lhe era possível ter o mesmo modo de vida.
Ao seu delicado coração desagradava não satisfazer a todas as
conveniências às quais a sua condição a obrigava e, não atendendo
a elas, sentia escrúpulo e remorso. Que fazer? O confessor estava
longe, em Lucca, e ela não lhe podia expor suas dúvidas; não sabia
abrir a sua alma a outro para pedir conselho, pois estava habituada
com aquele que conhecia toda a sua vida e o trabalho interior da
graça em seu espírito; e, quando mesmo quisesse falar a outro
padre, como poderia explicar-se e fazer-se compreender?
Sua pena era tanto mais amarga quanto no meio dessa tribulação
interior. Achava dificuldade em aproximar-se frequentemente da
Mesa Eucarística, único e verdadeiro conforto para sua alma. Em
tais angústias, voltava-se para Jesus com amorosas e sentidas
vozes; mas Jesus,para experimentar a virtude de sua serva,
aparentava não ouvi-la, deixando-a em profunda aridez. Entretanto,
a boa donzela fazia os maiores esforços para se tornar cada vez
mais agradável a seus olhos.
À semelhança de Santa Catarina de Sena,2 formou em seu
coração um altar, onde continuamente estava em adoração diante
da majestadede Deus e palpitando de amor por Ele; e quando lhe
era permitido, acompanhada por uma prima, corria à igreja vizinha,
para fazer uma visita ao seu caríssimo Jesus, no Santíssimo
Sacramento.
Hoje aqueles veneráveis cônegos ainda mostram com prazer o
lugar em que Gema devotamente costumava rezar. Nos passeios
que era obrigada a dar ordinariamente, dirigia-se ao Santuário da
Badia,3 onde se venera uma antiga e devotíssima Imagem da
Santíssima Virgem.
Indo ali sempre que lhe era permitido, desabafava a sua terna
devoção para com a “sua querida Mamãe”, como costumava
chamá-la, e com lágrimas encomendava-lhe a alma de seu falecido
pai.
Outro fato veio ainda perturbá-la sobremaneira. Era esta virgem
dotada de rara formosura. Tinha um porte nobre, gentil e gracioso e,
embora se vestisse de forma muito simples, sem nenhum enfeite,
era verdadeiramente encantadora.
Seus olhos brilhavam como dois sóis – quando alguém conseguia
vê-los, porque, como dissemos, trazia-os sempre baixos.
Sua piedade, recolhimento e modéstia, em vez de diminuir a sua
beleza, tornavam-na ainda mais atraente. Ora, aconteceu, pela
segunda vez, que um jovem daquela cidade, filho de pais honestos,
vendo-a, agradou-se dela e, sem procurar mais informações, pediu-
a em casamento à tia.
Que ocasião mais propícia do que esta, para recuperar a fortuna,
depois da desgraça de sua família, irreparável por si mesma? Mas
tudo foi em vão.
Não só não quis ouvir falar neste assunto, como para evitar toda
aquela insistência inútil, resolveu afastar-se logo daquele lugar.
Porém, como consegui-lo?
As razões que apresentou à tia não eram de importância a serem
aceitas. Então voltou-se de novo para Deus, a fim de pedir-Lhe
socorro.O Senhor ainda desta vez, valeu-lhe; para tirá-la daquele
perigo permitiu que a piedosa virgem começasse a sentir-se doente,
com fortes dores na espinha e nos rins. Neste estado, animou-se a
falar, e, dissimulando a verdadeira causa, suplicou à tia que a
deixasse voltar para Lucca. Bem sabia que lá iria sofrer até fome,
mas dificuldade alguma a deteve; e tanto insistiu com as lágrimas
nos olhos, que obteve a desejada licença para retornar à casa
paterna, achando-a do mesmo modo que a tinha deixado, na maior
penúria e desolação.
Conta-se que em vista das raras qualidades que Gema possuía,
era tão grande o afeto que todos da casa Lencioni lhe consagravam
que, vendo-a partir, sentiam arrancar-lhes o coração, e o próprio tio
Domingos, embora fosse homem de caráter duro e difícil de se
comover, ao despedir-se dela, abraçou-a entre lágrimas e saudades.
Mal Gema chegou em casa, começou a sentir-se pior. Às dores da
espinha e dos rins acrescentou-se a curvatura da coluna vertebral,
depois terríveis perturbações de meningite, completa perda da
audição, queda dos cabelos e, afinal, a paralisia.
A princípio, a piedosa jovem ocultou a sua doença tanto quanto lhe
foi possível, não sem terrível sofrimento. Temia sobretudo que,
manifestado-a, tivesse que se sujeitar ao exame dos médicos pelo
sofrimento dos rins, o que lhe seria muito penoso. Havia já muito
tempo que sentia esse incômodo da dor ocasionada por essa
doença, mas não quis nunca examinar, por si mesma, o que seria.
Como, então, daria essa permissão ao médico? Sua aflição era
imensa; teria querido suportar dez vezes mais dores do que
submeter-se àquela. Lembrava-se sempre das palavras ouvidas
ainda quando criança: “Nosso corpo é templo do Espírito Santo”4 e,
considerando-o assim, queria que fosse absolutamente respeitado.
Mas, numa noite, um médico chamado pela família sem ela saber,
entrou no quarto, e depois de ter em vão procurado persuadi-la, quis
à força examiná-la.
Foi preciso então ceder à ordem expressa das tias – e Gema
ofereceu a Deus o seu sacrifício. Descobriu o médico um grande
abscesso na região lombar que parecia chegar até os rins, por cujo
motivo assustou-se e quis que consultassem outros sábios
professores, declarando, desde logo, que a doença era de natureza
muito grave e difícil de se curada.
Quis empregar alguns remédios, aconselhados pela ciência,
porém, foi tudo inútil: o mal foi-se aumentou cada vez mais, sendo
Gema obrigada a ficar na cama sem poder fazer o menor
movimento.
Enquanto sofria aquele inocente corpo, a alma gemia. Mas
aqueles eram gemidos de amor que consolam e aliviam – e que não
se trocariam por todos os prazeres do mundo. Ela, pouco ou nada
cuidando de si, voltava continuamente o seu pensamento para
Jesus, que a tinha afinal atendido, satisfazendo seus ardentes votos
de sofrer por seu amor.
Também podia agora entender-se com seu confessor, e por esse
lado estava serena e tranquila.
Como sinal de singular complacência, Deus lhe fez então sentir
cada vez maior dor e horror ao pecado; desta forma, aumentaram-
se tanto as dores físicas como as aflições de espírito, para purificar
e santificar, em alto grau, aquela alma.
Na impossibilidade em que estava de se mover, jazia a pobrezinha
no leito, sempre na mesma posição, até que uma mão caridosa a
viesse ajudar. Assim, passavam os dias e decorriam as noites sem
outro conforto, senão a oração e a resignação aos desígnios
divinos.
Às vezes, o benigno Senhor vinha dar-lhe alguma consolação por
meio do seu bom anjo da guarda; quando ela, apresentando-lhe seu
estado, lamentava-se amorosamente com ele, de sequer poder mais
orar, este lhe dizia: “Se Jesus te aflige no corpo, é para mais te
purificar no espírito; sê boa!”.
Gema recordava-as deste fato, quando escrevia:

Oh! Quantas vezes na minha longa doença Ele me fazia sentir no coração
palavras consoladoras!

Podemos daqui conhecer que a sua familiaridade com o anjo da


guarda, da qual teremos que falar minuciosamente no capítulo
seguinte, começou cedo e foi sempre aumentando.
Gema tinha então vinte anos. As pessoas de casa, pelo seu lado,
empregavam todos os meios para socorrer aquela estimada
donzela.Apesar da pobreza em que estavam, nenhum trabalho e
sacrifício pouparam para obter, se possível fosse, a sua cura; até
que, vendo inúteis todos os esforços humanos, resolveram com a
maior confiança recorrer ao Céu.
Por essa prova de amor, comovia-se o terno coração de Gema.
Mas ao mesmo tempo afligia-se pelo incômodo que lhe parecia dar
a todos com tão longa enfermidade, não sabendo como lhes
corresponder.
Esta pena apoderou-se tanto de seu coração, que Nosso Senhor,
já para humilhá-la, já para confortá-la, queixou-se uma vez. Eis
como Gema nos conta:

Uma manhã em que me trouxeram a Sagrada Comunhão em casa, Jesus


fez-se sentir com mais força, e censurou-me dizendo que eu era uma alma
fraca. Disse-me: “É o teu defeituoso amor próprio que se ressente por não
poderes fazer o mesmo que os outros, ou é a demasiada confusão que
sentes em teres necessidade do socorro alheio. Se estivesse morta a ti
mesma, não ficarias tão inquieta”.

Aconselhada e confortada por estas palavras, mudou o pensar a


piedosa donzela, e conservou-se, todo o tempo que durou a cruel
moléstia, indiferente a tudo que acontecia quer com ela, quer em
referência às outras pessoas.
A notícia da penosa enfermidade de Gema divulgou-se em Lucca
e muitas pessoas amigas, que apreciavam as suas exímias virtudes,
iam admirar de perto o que chamavam prodígio de paciência e
coragem numa donzela tão nova; e ela, com seu angélico sorriso, a
todas acolhia e agradecia, entretendo-as com palavras de
edificação, pois em outros assuntos não sabia falar.
Dizia que se sentia igualmente satisfeita, quer voando logo para o
Céu, quer ficando nesta miserável terra para sofrer ainda mais,
conforme fosse agradável a Deus. Aquelas boas amigas, vendo
também como era humanamente impossível a cura de Gema,
diziam-lhe muitas vezes que tivesse fé em uma graça singular do
Céu, por intercessão ora deste, ora daquele santo, segundo a
particular devoção de cada uma.
Entre as visitas mais assíduas, havia uma boa senhora da cidade
que, para inspirar-lhe confiança num santo, ou ao menos para
procurar fazer-lhe passar melhor aquelas longas horas do dia,
levou-lhe a vida do Bem-aventurado Gabriel da Virgem das Dores,5
passionista, na época só Venerável.
Gema, que não conhecia ainda nada da vida deste santo, nem de
seus milagres, embora desde aquele tempo já fosse muito grande a
sua fama em todo o mundo, não se mostrou logo muito sua devota,
deixando que sua família começasse a invocá-lo com fé.
Eis de que meio Nosso Senhor se serviu para acender, no coração
de sua serva, aquela centelha de devoção, confiança, e amor a este
Bem-aventurado, que em breve, tornar-se-ia um incêndio. Permitiu
que um dia, enquanto Gema estava só, se sentisse assaltada por
pensamentos de profunda melancolia e grande tristeza. Cansada,
extenuada,nem podia pensar e, opressa de tal aborrecimento e
desânimo, tornava-se insuportável a vida. Aliás, era bem natural
essa crise numa doente tão grave.
Mas neste caso, havia ali uma tentação, habilmente dirigida pelo
astuto inimigo, para insinuar-se devagar naquela alma e perdê-la.
Com efeito, depois de o malvado ter empregado todos os meios
para a ruína da pobre jovem, levantou a máscara, apresentou-se a
ela e lhe disse: “Se me atenderes, tirar-te-ei deste sofrimento e
certamente curar-te-ei, dando-te com a saúde tudo o que te
agradar”.6 Foi esta a primeira vez que Gema entrou em franca luta
com o demônio.
Não sabemos se essa tentação se deu com uma aparição real ou,
o que é mais provável pela palavra da própria serva de Deus, por
uma simples sugestão; mas, de qualquer modo que fosse, de nada
valeram os malignos artifícios. Embora ignorante nesta matéria, a
piedosa donzela compreendeu logo o engano, sentiu uma forte
agitação e abalo interno inteiramente novo, que despertou-lhe a
presença do espírito das trevas. Lembrou-se então do Bem-
aventurado Gabriel, invocou-o com confiança, e para repelir o
inimigo, falou bem alto: “Primeiro a alma e depois o corpo!”.
O tentador voltou com segundo assalto; Gema invocou de novo ao
Bem-aventurado Gabriel, armou-se com o sinal da cruz e
igualmente o venceu; recuperou a calma e ficou ainda mais unida
com o seu Deus, que por aquela fortaleza da alma quis largamente
compensá-la.
Conhecido assim, quanto seja valiosa a proteção deste Bem-
aventurado, começou a ter-lhe devoção, e o seu primeiro
pensamento foi procurar o livro da sua vida, que havia sido deixado
sob o travesseiro.

Na mesma noite – palavras suas – comecei a ler a vida do Irmão Gabriel.


Li-a, muitas vezes, não me fartava mais de relê-la e admirar as suas virtudes
e exemplos. Desde aquele dia em que o meu novo protetor me salvou a
alma, dediquei-lhe muito especial devoção; de noite, não podia conciliar o
sono se não tivesse a sua imagem sob a almofada; comecei, então, a vê-lo a
meu lado.

A dita senhora em breve voltou para retomar o seu livro. Mas quão
diverso foi o sentimento da piedosa jovem quando lho restituiu, do
que experimentara quando o recebeu! O coração apertou-se no
peito e duas lágrimas deslizaram dos olhos, pelo que, aquela
senhora, comovida, resolveu deixar-lhe o livro por mais algum
tempo.

Aquele santo de Deus, depois de me ter afinal resignado a esta privação,


quis bem depressa recompensar o meu pequeno sacrifício, e na noite
seguinte apareceu-me em sonho vestido de branco; eu não o conheci. Ele,
percebendo que eu não sabia quem fosse, abriu o hábito branco e mostrou-
se a mim vestido de Passionista, pelo que não tardei em reconhecê-lo. Diante
dele, conservava-me silenciosa. Perguntou-me porque tinha eu chorado ao
privar-me da sua biografia; não sei o que respondi; mas ele me disse: Sê
boa, que tornarei a ver-te.

A breve visita do Bem-aventurado Gabriel deixou no coração de


Gema uma grande calma e doçura, e reacendeu vivamente o antigo
desejo do Céu, pelo que a ouviam muitas vezes exclamar: “Sim,
para Jesus, vamos com Jesus, ficar com Jesus”.
Mas Jesus não queria satisfazê-la por enquanto; e sufocando no
peito tão vivo desejo, conservava-se tranquila no seu leito de dor,
esperando, conformada, que só se cumprisse a divina vontade.
Além das pessoas da casa, assistiam-na continuamente as
beneméritas Irmãs enfermeiras de São Camilo, chamadas
Barbantinas,7 impelidas não só pela heroica caridade de que fazem
profissão, como pela veneração que sentiam pela querida enferma.
Às vezes levavam consigo algumas das suas jovens noviças
pensando que, diante da rara virtude e singular fervor e piedade de
que Gema dava exemplo em seu leito, recebessem grande
edificação.
Outras pessoas iam visitá-la pelo mesmo motivo, dentre elas, as
antigas mestras da Santa Zita, que tinham ficado sempre dedicadas
à sua boa Gema e ainda hoje recordam-nos belíssimos traços de
virtude que, durante a sua longa doença, puderam admirar.
Entretanto, passaram os meses; passou um ano inteiro e aquele
sopro de vida não se apagava.
A miséria da família aumentava com as despesas ocasionadas
pelos médicos e remédios, e não havia quem quisesse adiantar
mais um soldo que fosse.
É certo que se as caridosas pessoas que iam visitar a nossa
Gema soubessem das suas grandes necessidades, as teriam
remediado de qualquer modo; porém, eles coitados, lembrando-se
da riqueza dos anos anteriores, evitavam deixar aparecer a sua
atual penúria. E assim chegaram a tal ponto que, na maior parte das
vezes, não havia nada em casa para preparar o mais simples
alimento para a doente.
Desse modo, chegaram à véspera de Nossa Senhora da
Conceição. Nesse dia foram, como de costume, as Irmãs
Barbantinas, levando consigo uma postulante que por causa da
pouca idade não tinha podido tomar o hábito. Ver aquele anjinho e
sentir nascer em si o desejo de imitá-la, foi para Gema um só ato.
Parecendo-lhe que a inspiração vinha de Deus, resolveu
prometerà Santíssima Virgem que, se sarasse, iria ser Religiosa
Barbantina.

Este pensamento me consolou – escrevia ela –, depois o manifestei à irmã


Leonilda e ela me prometeu que se eu ficasse boa, daria-me o hábito
juntamente com aquela aspirante.

Alegre, embora no meio de tantas dores por conta da sua grave


enfermidade, a virtuosa jovem falou sobre este assunto com o seu
confessor, que fora nesse dia reconciliá-la, e obteve dele pleno
consentimento. Ouçamo-la aqui:

Tive logo a sua licença. E, além disso, deu-me outra consolação: permitiu-
me fazer voto de virgindade, o que até então não tinha deixado; e naquela
própria noite, em presença dele, eu o fiz o voto perpétuo.

Gema tinha, afinal, atingido o auge de seus desejos, e podia dizer,


com razão, ser toda de Jesus; e somente de Jesus. Uma suave e
doce calma envolvia sua alma naqueles momentos e, com
inflamado desejo,esperava ansiosa que amanhecesse para receber
a Sagrada Comunhão,pela qual se uniria a Jesus e faria à Mãe
Celeste a bela promessa de entrar no convento.
Com esses pensamentos em sua alma, um plácido sono invadiu
os seus membros doloridos, e eis que lhe apareceu seu caro
protetor Gabriel, que assim lhe falou: “Gema, faze de boa vontade o
voto de seres religiosa, mas não acrescentes mais nada”. Queria
dizer que não se comprometesse com nenhuma Ordem
determinada, devendo ela ser uma religiosa de modo diferente das
outras, isto é, misticamente transformada em Jesus.
A simples donzela, não entendendo o sentido daquelas palavras,
perguntou porquê não devia acrescentar mais nada ao voto; mas só
teve como resposta estas palavras: “Minha irmã!”.8 Acompanhadas
de um terno olhar e suave sorriso.

Não entendia nada de tudo isto, mas para lhe agradecer, beijei-lhe o hábito.
Ele então tirou o coração de madeira – que os Passionistas trazem no peito
–, deu-me a beijar, colocou-o sobre meu peito, por cima dos lençóis, e, de
novo, me repetiu: “Minha Irmã!” e desapareceu.

Na manhã seguinte, Gema recebeu a Sagrada Comunhão,


pronunciou o seu voto e sentiu celestiais consolações. Entretanto,
alternando-se, como já dissemos, as dores e as alegrias, as forças
da querida enferma diminuíram e o mal recrudesceu
consideravelmente.
Os médicos quiseram tentar uma última experiência: resolveram
operar o abscesso dos rins e aplicar-lhe a cauterização em toda a
espinha com pontas de fogo, até o numero de doze, terminando o
tratamento no dia 4 de janeiro de 1899.
Naquele tormento, a santa virgem não permite que a
cloroformizassem, importando-lhe, como sempre, mais a guarda do
seu pudor do que qualquer lenitivo à dor violenta.
Mas foi tudo inútil; o mal progredia sempre: no dia 20 do mesmo
mês, aos sobreditos tumores, acrescentou-se outro na cabeça, que
ocasionava ásperas dores à pobre enferma.
O médico foi chamado às pressas. Ele declarou ser o caso muito
grave, e em função do perigo por conta do estado de extrema
fraqueza da doente, tornava-se impossível o emprego de uma
cirurgia; então, não sabendo mais o que fazer, nem ele nem os
colegas, deram-na por desenganada e retiraram-se.

No dia 2 de fevereiro comunguei em Viático,9 confessei-me e esperava o


momento de ir para Jesus. Os médicos, pensando que eu não
compreendesse mais nada, disseram entre si que eu não chegaria até a meia
noite. Viva Jesus!
Longe de apresentar melhoras, o mal fazia o seu curso,
consumindo lentamente aquele organismo já meio desfeito, até que
chegasse o tempo de ser premiada tão grande paciência; Gema não
devia morrer ainda porque o Senhor queria glorificar-se nela com a
abundância dos seus mais extraordinários dons antes de, aí sim,
levá-la para o Céu.
Sarar de enfermidade tão aguda só seria possível por um milagre,
e Deus o fez de um modo singular, sendo preferível que ela mesma
nos faça a narração:

Na família faziam novenas e tríduos para a minha cura. Só eu estava


indiferente, sentindo-me confortada pelas belas palavras que tinha ouvido
dos lábios de Jesus. Nessa ocasião, veio-me ver, pela última vez, uma das
minhas mestras – de Santa Zita –, para dizer-me adeus até o Céu, tão mal eu
estava. Pediu-me, entretanto, que eu mesma fizesse uma novena à Beata
Margarida Maria Alacoque,10 dizendo-me que ela, sem dúvida, faria-me a
graça ou de sarar perfeitamente ou de ir logo para e Céu.
Para contentá-la comecei a novena; era o dia 23 de fevereiro. Faltavam
poucos momentos para a meia-noite; ouvi o correr das contas de um rosário,
senti alguém colocar a mão sobre minha fronte e uma voz recitar por nove
vezes seguidas o Pai-Nosso, Ave e Glória. Eu, porém, a custo respondia,
desfalecida pela doença. Aquela voz me perguntou: “Queres sarar? Invoca
com fé o Sacratíssimo Coração de Jesus cada noite; enquanto durar a
novena, eu virei aqui, ao teu lado, e rezaremos juntos”.
Era o Bem-aventurado Gabriel Passionista. De fato, ele continuou a vir
todas as noites, e punha, como de costume, a mão sobre minha fronte e
rezávamos junto as orações ao Sagrado Coração de Jesus, fazendo-me
acrescentar três Gloria em honra à Bem-aventurada Margarida. A novena
terminava exatamente na primeira sexta-feira de março; chamei o confessor,
confessei-me e de manhã, ajoelhada, recebi na cama a Sagrada Comunhão.
Oh! Que momentos felizes passei com Jesus... Ele também me repetia:
“Gema, queres sarar?”. A comoção foi tão grande que eu não pude
responder. Disse só com o coração: “Jesus, como Vós quiserdes”. Pobre
Jesus!
A graça estava feita, eu estava curada. Passadas apenas duas horas,
facilmente me levantei. As pessoas de casa choravam de alegria. Eu também
estava contente, não por ter adquirido a saúde, mas por Jesus me ter eleito
por sua Filha. De fato, antes de deixar-me esta manhã, Ele me tinha dito bem
claramente no coração: “Filha, à graça que te fiz hoje, seguir-se-ão outras
ainda muito maiores. Estarei sempre contigo e servir-te-ei de Pai, e tua Mãe
será Aquela”, e indicava-me Nossa Senhora das Dores. “Jamais poderá faltar
o auxílio paterno a quem se confia às minhas mãos; nada, pois, te faltará,
embora Eu te venha tirar toda a consolação e apoio na terra”.

Feliz perda! Feliz ganho! A continuação desta história nos fará


bem conhecer e verificar esta verdade.

1 Cidade pertencente à Província de Lucca – NC.


2 Santa Catarina de Sena (1347-1380). Virgem, Terceira Dominicana, Doutora da Igreja.
Conhecemos amplamente seu grande amor ao Santíssimo Sacramento, especialmente
graças à biografia escrita pelo Bem-aventurado Raimundo de Capua (1330-1399), religioso
dominicano e seu diretor espiritual. Ele conta que ela, “por inspiração do Espírito Santo
construiu uma cela secreta, da qual se impôs de jamais sair por coisa alguma no mundo”.
Beato Raimondo da Cápua. Santa Caterina da Siena. Siena, Cantagalli; p. 61 – NC.
3 Este nome remete à Abadia de São Pedro, existente em Camaiore desde o século VIII.
Nesta é venerado, desde 1300, um ícone mariano denominado “Nossa Senhora da
Piedade” – NC.
4 1Cor 3, 16.
5 São Gabriel da Virgem Dolorosa (1838-1862), ao tempo desta biografia ainda Beato,
foi canonizado em 1920, por Bento XV. Santo formado na escola passionista de
espiritualidade, uma alma mística mariana. Certamente foi o grande amigo espiritual de
Santa Gema, meio pelo qual também ela ingressará, por desígnio de Deus, na escola de
São Paulo da Cruz. Mantivemos o original, onde ainda consta como beato. O postulador de
sua causa de beatificação, que ocorreu em 31 de maio de 1908, foi o Venerável Padre
Germano, autor deste livro – NC.
6 “Assim sabemos que este ser obscuro e perturbador existe realmente e que está
sempre em atividade, com uma astúcia traiçoeira”. Papa Paulo VI, na audiência geral de
15/11/1972.
7 Religiosas Ministras dos Enfermos, fundadas em Lucca, pela Bem-aventurada Maria
Domingas Brun Barbantini (1789 - 1868). Daí o nome pelo qual eram conhecidas.
Religiosas que se dedicam, na seara de São Camilo de Lellis, a cuidar dos enfermos – NC.
8 Aqui aprece em gérmen a sua vocação monástica Passionista, que nesta terra jamais
foi concretizada completamente. A Congregação da Paixão foi fundada por São Paulo da
Cruz (1694-1775), grande místico e missionário. Enamorado da Paixão de Nosso Senhor e
de Sua Mãe Imaculada, fundou também em 1771 com a Venerável Madre Maria Crucifixa
Constantini (1713-1787), o ramo contemplativo feminino. Seu carisma específico é a
Memoria Passionis, que se manifesta no quarto voto. O Coração passionista que São
Gabriel coloca sobre o peito de Santa Gema, foi aquele manifestado ao Pai Fundador pela
Santíssima Virgem Maria.
9 Sagrada Comunhão levada aos enfermos – NC.
10 Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), só canonizada por Pio XI em 1928.
Religiosa da Ordem da Visitação de Santa Maria, Apóstola do Sagrado Coração de Jesus.
Desta manifestação do seu Sagrado Coração, originou-se: a) a instituição da festa do
Sagrado Coração, na oitava do Corpus Christi; b) a devoção das comunhões reparadoras
em nove primeiras sextas-feiras do mês; c) a devoção das Horas Santas, que é estar em
oração, unido em espírito à Agonia de Nosso Senhor no Horto, nas quintas-feiras.
CAPÍTULO VI

NO CONVENTO DA VISITAÇÃO:
GEMA FAZ OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS, MAS NÃO É ACEITA
(ABRIL E MAIO – 1899)

Aproximava-se o mês de maio.


A boa donzela contava os dias, contava os momentos que ainda
tinham de passar até poder encerrar-se no mosteiro, e ser toda e só
de Jesus; Ele, pelo seu lado, trabalhava com sua graça para
purificar cada vez mais aquela alma privilegiada, a fim de torná-la
capaz de receber o grande dom que lhe preparava.
Afinal, raiou o primeiro dia de maio, em que as Religiosas da
Visitação tinham prometido recebê-la para um curso de exercícios
espirituais. O coração de Gema exultou e, às 8 horas de noite, voou
para aquele sagrado retiro, onde entrando, pareceu-lhe, como dizia,
estar no paraíso. De antemão, proibiu aos parentes que a fossem
visitar para não distraí-la, porque, dizia, “aqueles dias eram todos de
Jesus”.
Não será desagradável ao leitor acompanhar um pouco a nossa
Gema nestes santos exercícios, dos quais nos deixou preciosas
lembranças; foram eles o último golpe do grande trabalho da graça
que Deus queria operar em sua alma. Conforme indicamos acima,
as Visitandinas não só desejavam vê-la e conservá-la algum tempo
em sua companhia, mas pensavam também em admiti-la na
Congregação. Bem sabiam que ela era inteiramente pobre, mas,
pela fama de suas raras virtudes, compreendiam que lhes seria de
grande proveito.
De acordo, pois, com seu confessor, resolveram que ela faria os
exercícios, não de um modo particular, como costumam fazê-lo às
externas, mas seguindo o regulamento da comunidade religiosa.
De modo que assim tomaria parte no ofício de coro, na meditação
comum, no trabalho, na mesa, e em tudo mais, como se já fosse
noviça. A piedosa donzela teria desejado antes ficar só e oculta, e
passar aqueles dias sem ser observada por ninguém. Tendo porém
aprendido que a obediência, isto é, a sujeição da vontade, é a
virtude mais agradável ao Senhor, não replicou, e alegre entregou-
se nas mãos da mestra das noviças para proceder como as outras.
As boas Religiosas assim determinaram para experimentá-la e, ao
mesmo tempo, pela grande vantagem espiritual do bom exemplo
que ela daria àquelas jovens.
Esta exceção foi feita tanto pelo bom conceito que tinham dessa
piedosa virgem, como por atenção a Monsenhor Volpi, seu
confessor e grande protetor.
Desde logo, tanto as noviças como as professas se dedicaram à
recém-chegada, dando-lhe contínuas provas de afeto e atenção. A
madre superiora, de um modo especial, a estimava. À mesa, queria-
a no lugar de honra a seu lado, e à noite, chamava-a para o seu
quarto, durante o recreio, entretendo-se em conversar com ela
sobre assuntos espirituais, todas as vezes que, pela licença obtida
do confessor, a fervorosa jovem deixava de se retirar para o coro, a
fim de estar só em íntimos colóquios com Jesus.
Quais foram pois as luzes, comunicações celestes, que o Senhor
lhe tenha dado naqueles santos dias, é fácil calcular, ao menos
aproximadamente, pelo que Gema viera a escrever: “Jesus”, dizia
ela, “não olhando para a minha miséria, consolava-me e se fazia
sentir, cada vez mais, em minha alma”.
Estas palavras significavam que o céu inteiro derramava-se
naquela alma tão bem disposta para consolá-la, animá-la, atraí-la ao
bem e enchê-la do amor de Deus.
Com tão extraordinárias graças, e habitando na casa do Senhor,
Gema vivia como no paraíso; mas aquela Regra1 lhe parecia por
demais suave para o fervor de seu coração.
Desejosa de estar só com Deus e fazer grandes penitências por
amor de seu Jesus, julgava aquele gênero de vida muito leve, e o
próprio Divino Mestre assim lhe deu a entender. “Muitas vezes
(refere ela), Jesus repetia ao meu coração: Filha, precisas de uma
Regra mais austera”.
Contudo ali permanecia de boa vontade, e tremia só com o
pensamento de ter que deixar aquele asilo para voltar à casa.
Pedia constantemente ao confessor que se empenhasse para que
não lhe sucedesse essa desventura.
Dirigiam-se ao Sr. Arcebispo para obter essa licença; mas aqui
começaram as dificuldades. Aquele santo prelado, que era
Monsenhor Ghilardi, tinha de fato ouvido falar de Gema, porém, não
a conhecia pessoalmente. Prudente como era, surgiam-lhe ao
espírito diversas dúvidas.
A donzela, embora curada por um milagre, afigurava-se-lhe estar
ainda fraca e ser de constituição doentia; tanto que ainda trazia o
corpete de ferro, que lhe tinham posto para sustentar a espinha
dorsal, no princípio da moléstia.
Quando a boa superiora soube, ansiosa para desfazer aquele
obstáculo, ordenou a Gema que tirasse o corpete, e ela, correndo
ao quarto, obedeceu, e nunca mais precisou usá-lo, não lhe
sentindo pela falta o menor incômodo.
Mas tudo foi em vão, pois o Arcebispo, inspirado por Deus,
conservou-se firme, proibido que a donzela entrasse no noviciado
no próximo mês de junho, como tinha sido marcado; e apenas
puderam conseguir que ele a deixasse ficar no convento até o dia
20 de maio, para dar-lhe a consolação de assistir à profissão de
algumas noviças que se devia realizar naquele dia. Em tão faustosa
ocasião, regozijou-se o coração da boa donzela, ignorando ainda o
que lhe aconteceria depois. “Então, Jesus consolou-me mais do que
de costume” – são suas palavras. Talvez o fizera para prepará-la à
próxima provação.
Viam-na a sós, toda absorta em suave contemplação. “Chorei e
chorei tanto” disse ela. Certamente eram lágrimas de amor e
também de dor.
Conta-se que estando toda a comunidade naquele dia ocupava em
festejar as novas professas, ninguém percebeu que Gema tinha
ficado na capela a rezar por toda a manhã; por isso, deixaram-na
sem almoço. Quanto a ela, ainda menos pensou nessa falta, tão
elevada estava em Deus; mas a fraqueza da natureza a traiu, e,
pela tarde, sentiu-se desfalecer, o que, sabendo então as freiras,
apressaram-se em oferecer-lhe algum alimento.
A este fato, porém, não deu a menor importância à vista da notícia
que, pouco depois lhe foi dada, a de ter de sair do mosteiro e voltar
para casa. Isto fê-la sentir uma extrema – e só lhe serviu de lenitivo
a sua heroica resignação aos desígnios de Deus.

Eram 5 horas da manhã do dia 21 de maio de 1899, quando tive que me


ausentar; pedi chorando a bênção da Madre Superiora, saudei as Religiosas
e saí; meu Deus, que dor!

Com o coração assim despedaçado, a pobre donzela voltou para


sua casa, que lhe parecia tão mudada daquela que tinha deixado
vinte dias antes, a ponto de não poder mais se habituar. Como eram
diferentes as ocupações, as pessoas, as conversações!
Entretanto, sabendo fazer a vontade de Deus, acomodou-se,
dedicando-se de novo aos trabalhos antigos com igual ardor. Sabia
que estes não a distraíam de atender às coisas celestes, de que só
estava cheio seu coração; e assim concentrando em sua alma seus
desejos de desgostos, empunhava-se em cumprir perfeitamente
todos os deveres para com as tias, irmãozinhos e as irmãs menores,
servindo-os em tudo, e animando-os com o seu exemplo a terem
paciência no meio das angústias, que iam aumentando a cada dia.
Entre as piedosas práticas que usava, conta-se esta: Gema, como
vimos, amava ternamente seu pai, e até o último suspiro esteve
sempre a seu lado, para servi-lo e dar-lhe provas da maior
veneração filial. Falecido este, o pensamento da filha voltou-se para
a sua alma, fazendo contínuas orações para sufragá-la.2 Quando
estava na casa de sua tia, em Camaiore, como já disse, por vezes ia
com uma prima à igreja da Badia, em devota peregrinação para
recomendar à Virgem Santíssima a alma de seu pai. Voltando a
Lucca, raro foi o dia santo em que não fosse com sua irmãzinha
Júlia ao cemitério, rezar sobre as sepulturas do pai e da querida
mãe.
Ora, depois dos vinte dias que passou no convento, continuou com
maior ardor aquela devoção. Depois de ter assistido à Santa Missa,
e de ter-se alimentado com o Pão dos Anjos, dirigia-se com a
querida companheira ao cemitério situado um tanto distante da
cidade; ali ficavam até ao meio-dia, quando eram fechados os
portões.
Não sendo ainda suficiente todo esse tempo para satisfazer a sua
piedade, esperavam de fora até que o reabrissem à tarde.
Aconteceu que uma boa mulher, moradora dum casebre vizinho,
observava aquelas duas jovens tão devotas, que, recolhidas e
silenciosas, permaneciam ali em jejum e sem temer o frio, a chuva
ou o sol. De forma cortês, convidou-as a entrar e comer alguma
coisa. Vendo-as de perto, de tal forma afeiçoou-se a elas, que fez
com que lhe prometessem que continuariam a aceitar seus
obséquios. As boas jovens, reconhecidas, assim o fizeram; todavia
acontecia, muitas vezes, que a boa mulher estava ausente, e não
ousando procurar por outra pessoa, ficavam em jejum até à tarde.
Na volta, embora fatigadas, ouvindo tocar o sino, ainda entravam
em alguma igreja para receber a benção do Santíssimo
Sacramento; e assim, acabavam de santificar o dia aqueles dois
anjos, depois de terem dado completa expansão a seus sentimentos
de piedade filial.
As freiras da Visitação, embora tivessem feito Gema sair depois
dos exercícios espirituais, não lhe tinham tirado toda a esperança de
ser recebida no noviciado, como tinham combinado antes daquelas
inesperadas dificuldades.
Gema ainda que pressentisse não ser aquele o seu ideal, aceitava
de bom grado apenas para sair do mundo. Ignorava que a
consagração de que lhe tinha falado o Senhor no dia da festa do
Sagrado Coração, não se referia à consagração monástica, mas a
outra muito diferente; e para isso, Ele a ia dispondo com aquelas
revelações, para que se achasse pronta em deixar-se transformar
toda n’Ele, pela dor e pelo amor. Por outro lado, não faltavam à
Divina Majestade meios de santificá-la, mesmo deixando-a no meio
do mundo.
Gema, porém, não entendia os altos desígnios de Deus e
prendendo-se à letra da promessa que tinha recebido,3 esperava
sempre e ardentemente, embora com resignação, que se realizasse
o seu desejo.
Todos os dias dirigia-se ao Mosteiro da Visitação, insistindo para
ser admitida. As dificuldades, porém, eram muitas. Exigiam
certificados dos médicos e diversas outras considerações que Gema
não podia obter. Além disso, a sua pobreza era absoluta, não
possuindo como dote senão as mais raras virtudes e as roupas do
corpo.
As freiras bem conheciam a sua condição, mas, a princípio,
parecia-lhes que poderiam fazer uma exceção a seu respeito; com o
tempo, refletiram mais e acharam impossível recebê-la e
começaram também a usar de meios evasivos.
A inteligente donzela compreendeu essa mudança; porém não se
perturbou. Consultou a Deus que finalmente a fez entender de forma
clara o mistério da sua consagração, ao menos pelo que se referia à
Visitação. Resignada e contente, cessando as anteriores
insistências, permaneceu em casa, esperando que o Senhor
dispusesse dela como melhor lhe aprouvesse.
Oh! Meu Deus, como são grandes e inefáveis os caminhos, pelos
quais a vossa Divina Providência conduz os seus eleitos!

1 A Ordem da Visitação foi fundada por São Francisco de Sales “para dar a Deus filhas
da oração tão interiores, que sejam achadas dignas de servir sua Majestade infinita e de
adorá-La em espírito e verdade. Deixando para as grandes Ordens já estabelecidas na
Igreja honrar NossoSenhor com obras excelentes e virtudes impressionantes, eu quero que
as minhas filhas não tenham outro ideal senão aquele de glorificá-Lo com o seu
abaixamento”. Giuseppe Gioia. Nello spirito della visitazione, Milano: San Paolo, 2006, p.
107. Bem diverso da vocação de Santa Gema, nitidamente passionista, São Paulo da Cruz
desejava “um mosteiro de almas grandes e santas, mortas a todo o criado, e que se
assemelhem a Jesus em sua Paixão e a Maria ao pé da Cruz”. Paolo Risso, E Ele a
fascinou, São Paulo: Loyola – ١٩٩٠, p. ٧٩ – NC.
2 Obra de misericórdia e dever filial: rezar pela alma de nossos pais e parentes falecidos,
para que sejam libertos do Purgatório. “Não basta chorar, precisamos orar. E nunca se
precisa tanto de orações como depois da morte. No Purgatório, as pobres almas estão
como o paralítico à beira da piscina que dizia a Jesus: ‘Senhor, eu não tenho alguém que
me lance à piscina para ser curado’. Dependem aquelas Almas santas de nossos
sufrágios, de nossas orações e sacrifícios. Deus as entregou à nossa caridade. Sempre é
eficaz a nossa oração pelas almas”, Ascânio Brandão, Tenhamos compaixão das pobres
almas do purgatório; Belo Horizonte: Divina Misericórdia, 2011, p. 113 – NC.
3 Diz-nos o Doutor São João da Cruz, no livro II, capítulo XIX, da Subida ao Monte
Carmelo: “Não havemos de reparar, portanto, em nosso sentido e linguagem quanto às
revelações divinas, sabendo que o sentido e linguagem de Deus são muito diferentes do
que pensamos, e difíceis para nosso modo de entender”. Exemplifica: “Uma alma
inflamada em grandes desejos de sofrer o martírio talvez ouça a voz de Deus responder às
suas aspirações dizendo-lhe: “Tu serás mártir”. Esta promessa enche-a interiormente de
imensa consolação, e lhe dá confiança que assim acontecerá. Contudo essa pessoa não
sofrerá o martírio, e palavra divina será verdadeira. Mas como explicá-lo, se não se
realiza? Porque se cumpre e poderá cumprir segundo a parte essencial e principal da
profecia, isto é, Deus dará à alma o amor e a recompensa do martírio, e assim é verdadeira
a sua promessa satisfazendo-lhe os desejos; pois a aspiração formal da mesma alma não
era sofrer tal ou qual gênero de morte, mas servir a Deus nos trabalhos e exercitar o seu
amor por ele como mártir”, São João da Cruz, Obras Completas; Vozes, Petrópolis, 2000,
p. 263-264 – NC.
CAPÍTULO VII

FENÔMENOS MÍSTICOS:
A SERVA DE DEUS RECEBE O INSIGNE DOM DOS ESTIGMAS
DE JESUS CRUCIFICADO (1899)

O leitor terá observado, desde as primeiras páginas da presente


história, que o mais ardente pensamento de Gema, a paixão
dominante de seu coração, era assemelhar-se a Jesus. Já que o
Filho de Deus se apresentara ao mundo sob a forma de dor, Gema
não queria saber senão de Jesus Crucificado. Jesum et hunc
crucifixum.1 Os próprios mistérios das grandezas que nos revela a fé
no Salvador, ocupavam apenas de leve o seu espírito.

Ah! com a esposa dos Cantares,2 meu dileto é para mim como um
ramalhete de mirra; nele só quero ver o que escolheu de preferência para si:
a cruz. Quem desejar, vá contemplá-lo no Tabor; escolho para mim o Calvário
em companhia da querida Mãe das Dores.

Das próprias imagens do Senhor, tomava para sua devoção


apenas as que O representavam Crucificado: “Oh! Mamãe”, ouvimo-
la dizer ainda pequenina à sua boa mãe, “fale-me da Paixão de
Jesus”. E às mestras na escola: “Irmãs, expliquem-me algum ponto
dos mistérios dolorosos de Jesus”. A esta narração vimos a santa
menina enternecer-se tanto que, receando vê-la desmaiar e cair
doente, as boas religiosas tiveram de interromper aquele piedoso
exercício. Este desejo foi sempre crescendo até operar uma perfeita
transformação da piedosa virgem em Jesus Crucificado.
Já vimos como o Divino Salvador, para excitar naquela terna alma
estes sentimentos, apareceu-lhe derramando sangue e convidando-
a, com as suas chagas abertas, a amá-lo e a sofrer por Ele; e pouco
antes no capítulo VI, apreciamos como por semelhantes visões, a
graça a dispôs para os fenômenos prodigiosos, dirigindo-a, como
que pela mão, com singular providência para tornar-se apta a
recebê-las.
Quando saiu da Visitação, uma voz misteriosa segredou-lhe aos
ouvidos as seguintes palavras:
Vamos, coragem, esquece-te de tudo, entrega-te a Ele sem reserva. Ama
muito a Jesus, não oponhas nenhum obstáculo aos seus desígnios e verás,
em pouco tempo, por qual estrada Ele te fará caminhar, sem que te percebas.
Nada temas, porque o Coração de Jesus é o trono da misericórdia, onde os
miseráveis são os mais bem acolhidos.

Confortada por estas palavras, a Serva de Deus, voltando-se para


uma imagem do Sagrado Coração exclamou: “Oh! Meu Jesus,
quereria amar-te tanto, tanto! Mas não sei”. E a voz, repetindo as
mesmas palavras:

Queres amar sempre a Jesus? Não cesses então, por momento que seja,
de sofrer por Ele. A cruz é o trono dos verdadeiros amantes; a cruz é o
patrimônio dos eleitos nesta vida.

Por este sublime apelo, indicava-lhe o Senhor as múltiplas


contrariedades e dores atrozes, aquele longo retiro de exercícios
espirituais no mosteiro, a extraordinária contrição dos pecados, a
confissão geral feita com tão abundantes lágrimas, ao que já nos
referimos, e direi ainda, aquela obstinada dúvida das freiras quanto
à sua entrada no noviciado, e tantas graças singulares concedidas
por Deus, desde o dia da sua prodigiosa cura.
Eia, pois, levanta-te, ó venturosa virgem; é o próprio Jesus quem
te convida. A graça completou a sua obra; tua alma está bem
purificada, e aproxima-se a hora em que compreenderás
perfeitamente a tua vocação. Levanta-te e deixa-te transformar em
teu Esposo Crucificado.
Era o dia 8 de junho de 1899, véspera da festa do Sagrado
Coração. Depois da Comunhão, o Senhor deu a entender à sua
serva que naquela mesma noite concederia-lhe uma assinalada
graça; correu avisar o confessor: quis de novo receber a absolvição
dos pecados, e com a alma repassada de elevados pensamentos e
o coração transbordando de extraordinária alegria e paz, voltou para
a casa.
Eis o que aconteceu – recolhe-te, leitor, e contempla.
O próprio Deus se digna a mostrar com extraordinários sinais, ao
céu e à terra, que Gema está verdadeiramente crucificada com
Jesus. Assim ela escreve:

Estávamos na noite de quinta-feira, véspera da festa do Sagrado Coração


de Jesus; de repente, e mais depressa do que de costume, senti uma dor
intensa de meus pecados; mas, tão veemente como jamais a tivera. Tanto
que me pareceu morrer ali mesmo naquele instante. Depois, recolheram-se
todas as potências da minha alma.
O entendimento não conhecia senão os meus pecados e a ofensa de Deus;
a memória me recordava todos, e me apresentava os tormentos que Jesus
padeceu para me salvar; a vontade fazia-nos detestar e prometer querer tudo
sofrer para expiá-los. Um torvelinho de sentimentos diversos de amor, de
medo, de esperança e conforto volteava em meu espírito.
Ao recolhimento interior sucedeu logo o arrebatamento dos sentidos, e me
achei diante de minha Mãe Celeste. Estava, à sua direita, o meu Anjo da
Guarda, que logo me mandou rezar o ato de contrição; e quando o terminei,
minha Mãe me disse estas palavras: Filha, em nome de Jesus sejam-te
perdoados os teus pecados. Depois acrescentou: Meu filho, Jesus, ama-te
muito, e quer conceder-te uma graça; saberás merecê-la?
Na minha miséria não sabia o que responder. Acrescentou ainda: Eu serei
tua mãe; mostrar-te-ás uma verdadeira Filha? Estendeu o seu manto e
cobriu-me com ele.
Então, apareceu Jesus com as chagas abertas; delas não corria mais
sangue, mas deitavam chamas de amor. Repentinamente aquelas chamas
tocaram minhas mãos, meus pés e meu coração. Senti-me morrer, e teria
caído ao chão, se minha Mãe não me sustentasse cobrindo-me sempre com
seu manto.
Por algumas horas conservei-me naquela posição. Depois, minha Mãe
beijou-me na fronte, e tudo desapareceu achando-me de novo ajoelhada no
chão; sentia, porém, vivamente a dor nas mãos, nos pés e no coração.
Levantei-me para me deitar, e percebi que saía sangue desses pontos
dolorosos.
Cobri-os, como pude, com panos para estancar o sangue; e depois,
somente ajudada pelo meu anjo, consegui subir para a cama.

Este prodígio se deu na casa da rua Biscione, n° 13, no primeiro


andar, Paróquia de São Frediano, onde Gema então morava com
seus parentes.
Indicamos com singular devoção esta casa, porque pensamos que
algum dia virá a ser um santuário memorável como o da Alverne,3
onde recebeu os estigmas o Patriarca São Francisco.
Agora está satisfeita, ó Gema, podendo assentar-te ao pé da cruz
de Jesus, ao lado de tua celeste Mãe das Dores, com Francisco de
Assis,4 Catarina de Sena5 e Verônica Juliani,6 ornada com estas
divinas joias?
De hoje em diante, poderás dizer como eles: “Nada mais pode
causar-me desgosto; porque trago os estigmas de Jesus em minha
carne. Stigmata Domini Jesu in corpore meo porto”.7
Conta-se na vida do seráfico Patriarca, que depois de ter sido
assinalado com tal dom, enquanto por um lado, sentia-se todo
transformado pelo amor de Deus, pelo outro, não era pequena a
angústia em que se achava ao ver que não podia ocultar aquelas
misteriosas chagas aos olhares profanos. Consultando os seus
discípulos do Monte Alverne procurara disfarçá-las do melhor modo
que podia.
Porém, muito mais difícil foi para Gema, que não vivia em uma
ermida, mas no meio do mundo, rodeada de pessoas curiosas. Além
disso, tinha que sair duas vezes por dia para ir à igreja receber a
Sagrada Comunhão e visitar o Santíssimo Sacramento; e as chagas
derramavam sangue em abundância.
Que fazer? Depois de pensar uma noite inteira no assunto, logo
pela manha procurou levantar-se; mas, ao por os pés no chão, viu
que não se podia sustentar, e que a dor era tão violenta que julgava
morrer a cada instante. Mas a custo levantou-se, calçou umas luvas
e, mais arrastando-se do que caminhando, conseguiu ir à igreja. Ao
voltar para casa, além da aflição de não poder esconder o prodígio,
sentiu-se assaz perplexa, não compreendendo o que aqueles sinais
queriam dizer.
A princípio, na sua ingenuidade, julgava que esse fato fosse
comum a todas as pessoas desposadas a Jesus pelos votos.
Então, timidamente, com candura e modéstia, chegava a
perguntar as outras moças se lhes acontecia o mesmo de receber
chagas e ferimentos: nada conseguiu saber; umas não
compreendiam o que ela queria dizer com aquelas comovedoras
palavras, outras riam-se da sua simplicidade.
Entretanto, o sangue continuava a correr debaixo das luvas. Não
sabendo mais o que fazer, resolveu abrir-se com uma das tias, e
apresentou-lhe com os braços estendidos e as mãos cobertas
debaixo da capa: “Minha tia, veja o que Jesus me fez”.
A piedosa senhora ficou assombrada a tal vista e a tais palavras,
tão longe estava de entender o portentoso mistério, que só lhe foi
revelado mais tarde, como depois veremos.
Estimará certamente o leitor que eu lhe explique de que natureza
eram estes estigmas da Serva de Deus, qual a sua forma e como
continuaram a manifestar-se.
Se esse fenômeno fosse o único do seu gênero na hagiografia
cristã, confesso que acharia não pequena a dificuldade em explicar-
me adequadamente; mas não é novo, embora raríssimo porque
deu-se apenas com alguns santos como com São Francisco de
Assis no século XIII, com a virgem belga Luísa Lateau no XIX.8
Nesta última, especialmente, pôde esse fenômeno ser visto
durante muito tempo, por milhares de pessoas, e estudada a sua
fisiologia por doutíssimos médicos católicos e também racionalistas;
pelo lado teológico, por doutores insignes na piedade e na ciência,
os quais sobre esse assunto escreveram diversos livros. Com tão
valioso auxílio, poderemos compreender o que ultimamente se
manifestou em Gema de Lucca.
Começou o fenômeno, como já dissemos, sendo então
testemunha só a própria virgem favorecida, de modo que nada
podemos acrescentar à sua genuína narração.
Daquele dia em diante, continuou a repetir-se periodicamente no
mesmo dia e hora de cada semana, isto é, na noite de quinta-feira
pelas 20 horas – e durava até às 15 horas da sexta-feira.
Nenhuma preparação o precedia; nenhuma dor ou impressão nas
mãos, pés e lado, anunciava que estivesse iminente: o único sinal
era o recolhimento anunciador do êxtase. E quando este ia começar,
de repente, via-se-lhe aparecer nas costas de ambas as mãos e no
meio das palmas, uma mancha vermelha sob a epiderme (que é
aquela membrana sutil e transparente que cobre externamente a
pele); em seguida, abria-se um corte bem na carne, no derma, ab
longo nas costas das mãos, e irregularmente redondo nas palmas.
Pouco depois, rasgava-se a própria membrana e, sobre aquelas
inocentes mãos, a ferida se manifestava com todas as
características de uma chaga viva, do diâmetro de um centímetro
nas palmas e da largura de dois milímetros nas costas, com o
comprimento nestas, de uns vinte milímetros.
Às vezes o rasgão aparecia muito superficial; outras quase
imperceptível à vista. Mas ordinariamente era muito profundo e
parecia que atravessava toda a grossura da mão, unindo-se a ferida
de um lado com a da parte oposta.
E digo parecia porque nelas regurgitava o sangue, às vezes
fluente, e outras vezes coagulado. Tão logo cessava o fenômeno,
fechavam-se as feridas, assim que não era fácil explorá-las senão
com o auxílio de um estilete.
Ora este instrumento nunca foi usado, já por causa do respeito
que inspirava a extática naquelas misteriosas condições, já porque a
força da dor a fazia ter as mãos encolhidas convulsivamente – e
também porque as feridas das palmas das mãos eram cobertas de
uma protuberância que, no princípio, parecia ser formada de grumos
de sangue, mas depois se reconheceu ser carnosa, dura, da forma
da cabeça de um prego, alta e não aderente, do tamanho de uma
moeda.
Quanto aos pés, além de serem os rasgões maiores e rodeados
de manchas lívidas, a diferença do tamanho era em sentido inverso
ao das mãos, isto é, de maior diâmetro nas costas e menor nas
plantas. Além disto, a ferida das costas do pé esquerdo era tão
grande como a da planta do direito, como devia ser no Salvador,
supondo-se que com um só prego fossem pregados na cruz ambos
os seus santos pés, o direito em cima do esquerdo.
Já disse que os rasgões se formavam pouco a pouco, isto é, em
cinco ou seis minutos, começando internamente na pele sob a
epiderme, e terminando com a laceração desta. Às vezes, porém,
não era assim; o golpe que a produzia era instantâneo e partia do
exterior como violenta ferida, e então era doloroso ver a querida
mártir, tomada de improviso, agitar-se, tremer com todos os
músculos dos braços, das pernas e todo o corpo.
Chegamos à ferida do lado. Esta raramente foi observada,
receando até as pessoas mais íntimas, pelo respeito, aproximar-se
muito daquele corpo virginal, ainda que por devota curiosidade. Pelo
mesmo motivo abstive-me de fazê-lo. É certo porém, que a julgar
pela intensa dor que Gema sentia com esta ferida, não era ela
superficial mas atingia o coração, penetrava-lhe o interior.
Por outro lado, se o fim que Deus tem em vista operando prodígios
tão singulares é o de reproduzir, em alguns de seus servos
prediletos, a realidade dos tormentos que seu Divino Filho sofreu
por nós na cruz, parece que não há razão de crer que Ele faça esta
reprodução incompleta.
Na autópsia que se fez no cadáver da Serva de Deus, Joana da
Cruz,9 leio na história de sua vida que os cirurgiões quiseram
acompanhar o curso da ferida misteriosa que tinha no lado, e
reconheceram que, atravessando o pulmão, chegava até o coração.
Também foi feita a autópsia no corpo da nossa Gema, como direi
mais tarde, treze dias depois da sua morte. Se o prodígio dos
estigmas não tivesse inteiramente desaparecido havia três anos,
quem sabe não teríamos tido um segundo exemplo palpável, e a
clara evidência do que aqui proponho como simplesmente provável?
Era a referida chaga no lado de Gema da forma de uma meia-lua,
em direção horizontal, com as duas pontas voltadas para baixo.
O comprimento em linha reta era de seis centímetros e a largura
no meio, de três milímetros, formando, com as duas faces opostas,
um ângulo que tinha o vértice na profundeza de meio centímetro.
Esta ferida se manifestava de dois modos diferentes: partida do
exterior como efeito de um golpe de lança; ou então do interior,
abrindo-se pequeninos furos vermelhos que se via transparecer
através da epiderme, e que tornando-se mais numerosos,
acabavam por dilacerar o derma e formar a horrorosa chaga que
descrevemos.
Admirei-me muito da referida forma de meia-lua, rara nos outros
estigmatizados conhecidos, quando encontrei o mesmo, lendo a
vida da Venerável Diomira Allegri,10 florentina, do século XVII, que
recebeu uma do mesmo modo, sendo notada, na relação que com
juramento fizeram no processo de beatificação da Serva de Deus,
os médicos e outras testemunhas de visu.
Ora, não sendo justo pensar que uma forma tão bem descrita em
dois diferentes exemplos, separados por três séculos de distância,
fosse por acaso: podemos crer que a lança que abriu o sagrado lado
do Salvador na cruz tivesse essa forma, pelo que, ferindo numa
direção oblíqua, devia abrir uma ferida arqueada.
Era abundante o sangue que derramava essa chaga o que se
podia ver pelas vestimentas que ficavam todas embebidas. A
humilde e modesta virgem esforçava-se o quanto podia para ocultar
aquele sangue, servindo-se de panos, dobrados muitas vezes, que
constantemente aplicava ao lado: porém, aí a pouco, achava-os
molhados e corria para escondê-los e lavá-los ocultamente. Todavia
o sangue não corria de maneira contínua, mas com intermitências,
com intervalos mais ou menos longos, pois que às vezes, na chaga,
estanhava o sangue e se coagulava; e quando lavada, permanecia
só a carne viva, como acontece naturalmente a uma ferida que está
para cicatrizar.
Mas aqui não se tratava de um fenômeno natural, e sim de um
novo ardor do fogo misterioso que existia no interior. E a chaga
tornava, de repente, a inflamar-se; e o sangue recomeçava a jorrar
com intensidade. Assim numa das vezes entre tantas que lhe
sobreveio este fenômeno, ela pôde escrever:

Esta manhã, pelas 10 horas, meu coração procurava... procurava...


Faltava-me alguma coisa... A dor do coração foi sucedida por outra fortíssima
em todos os membros; mas o que me era mais sensível ainda, era a dor dos
pecados... Como é cruel esta dor! Se fosse um pouco mais forte, não poderia
sobreviver, e mesmo agora, penso não poder resistir ao forte golpe que
recebi.

Referia-se ela à impressão da lançada que lhe tinha aberto a


ferida ao peito.
Meu coração tão pequeno não podia mais ficar fechado e começou a
derramar sangue em grande quantidade – E noutra vez, escreveu – Jesus se
fez sentir tão claramente à minha alma que o coração, não podendo mais
suportar o afeto, abriu-se nele uma ferida da qual jorrou sangue.

Nunca foi possível saber-se quantas vezes o fenômeno se


manifestou, além dos dias ordinários, nem calcular quanto sangue
aquela vítima perdia de cada vez. Só se pode afirmar que era
grande a quantidade, conforme asseguram todas as pessoas que a
acompanhavam de perto.
Uma delas atesta sob juramento que só daquela ferida do lado
saia tanto sangue que, quando ela não procurava impedi-lo,
chegava a correr pelo chão. O mesmo dizem dos outros estigmas
das mãos e dos pés. O sangue era vivo, de cor clara e inteiramente
igual ao que sai de uma ferida aberta de fresco, e assim permanecia
mesmo depois de ter secado na pele, nos panos e no chão.
Não menos maravilhoso era o modo como as feridas
desapareciam: cessado o êxtase das sextas-feiras, parava
inteiramente o derramamento do sangue do lado, dos pés e das
mãos; a carne viva secava, contraia-se pouco a pouco e uniam-se
as fibras dos tecidos dilacerados. No dia seguinte – ou ao mais
tardar no domingo – daquelas profundas chagas não restava
nenhum vestígio nem no centro nem nas margens: a pele crescia
por cima, inteiramente igual à de todo o corpo que não tinha sido
ferido!
Somente a cor era um pouco diversa, pois conservava umas
manchas brancas, indicando que naqueles pontos, no dia anterior,
tinha havido chagas vivas. E no fim de cinco dias, tornariam-se a
abrir como antes, para fechar-se outra vez do mesmo modo. Dois
anos depois de ter desaparecido inteiramente este prodígio, quando
Gema morreu, as ditas manchas se conservavam ainda, e foi então
fácil observá-las em seu cadáver, particularmente nos pés, o que
antes não se podia, por ser muito difícil a descalçarem durante o
êxtase.
Enquanto não foi proibido pelos diretores, o fenômeno dos
estigmas foi constante e invariável em todas as quintas-feiras e
sextas-feiras de cada mês; e nunca se manifestou em outros dias
por mais solenes que fossem, e por mais que se repetissem os
êxtases da seráfica virgem de uma forma extraordinária.
Houve só uma exceção, e por breve tempo, que contaremos
minuciosamente no capítulo seguinte.
É certo que estas graças não são comuns:11 mas quem quererá
negar a Deus o direito de às vezes concedê-las a almas
privilegiadas, como sabemos que era a da virgem de Lucca.
Quem, ouvindo esta narração, ficar escandalizado, dará prova de
não entender o modo de agir da Providência Divina na santificação
das almas.

1 1Cor 1,23.
2 Referência ao Cântico dos Cânticos. Refere-se ao ramalhete de mirra, como símbolo
da Paixão de Cristo, muito antigo na linguagem mística. São Bernardo de Claraval, no
Sermão 43 sobre o Cântico dos Cânticos, consagrará tal simbologia. “Entre tantos ramos
desta planta balsâmica não esqueci a mirra que bebeu na cruz, nem aquela que o ungiram
no sepulcro. Com a primeira se apropriou da amargura de meus pecados; com segunda
consagrou a futura incorrupção do meu corpo”, São Bernardo de Claraval, Obras
completas de San Bernardo V.;Madrid, BAC. 1987; pg. 583 – NC.
3 A Venerável Madre Gema Eufêmia de Jesus Giannini (1884-1971), amiga e irmã de
Santa Gema, foi monja passionista no Mosteiro tão desejado por Santa Gema em Lucca.
Alma mística de grande união com Deus, sua saúde sempre lhe trouxera grande
tribulações. Em meio a elas, em 1937, diante do Santíssimo Sacramento, teve a intuição de
que Deus queria que os locais onde nasceu, viveu e morreu Santa Gema fossem
custodiados por almas consagradas, sob a proteção de Santa Gema, e dedicadas à obras
de caridade. Por isso, fundou as Irmãs de Santa Gema – NC.
4 São Francisco de Assis (1182-1226), fundador da Ordem dos Frades Menores e, com
Santa Clara, fundador da Ordem das Damas Pobres, e também da Ordem Terceira
Franciscana. Foi o primeiro estigmatizado, recebendo os estigmas no dia 17 de setembro
de 1224 – NC.
5 Santa Catarina, terceira dominicana, recebeu os estigmas em 1 de abril de 1370,
porém pediu a Nosso Senhor e ele concedeu-lhe que estes ficassem invisíveis durante
toda a sua vida, sendo visíveis somente na hora de sua morte – NC.
6 Santa Verônica Giuliani (1660-1727), monja capuchinha, abadessa do Mosteiro de
Cittá di Castello, na Itália. Estigmatizada e grande escritora mística. Deixou inúmeros
escritos, incluindo diários descrevendo sua vida espiritual. Pela sua grandeza, muitos
desejam sua proclamação como Doutora da Igreja – NC.
7 Referência a Gl 6, 14
8 A Serva de Deus Louise Lateau (1850-1883) foi uma famosa estigmatizada belga, cuja
notícia dos estigmas se espalhou por toda Europa, sendo pesquisada por inúmeros
médicos. O seu diretor espiritual foi o Passionista Padre Serafim do Sagrado Coração
Gianmaria (1804-1879), companheiro do Beato Domingos da Mãe de Deus Barbieri, na
fundação da Bélgica, grande estudioso e autor de um famoso Tratado de Mística. Além
disso, foi professor do Padre Germano em Ere, na Bélgica – NC.
9 Trata-se da italiana Madre Joana Maria da Cruz de Rovereto, religiosa da Ordem de
Santa Clara (1603-1673). Abadessa, fundadora e grande escritora mística – NC.
10 A Serva de Deus Maria Margarida Diomira do Verbo Encarnado Allegri (1651-1677),
das religiosas Estabelecidas na Caridade. Seu processo de beatificação foi reaberto
recentemente, em 23 de maio de 2008. Estas religiosas, desde 1989, estão presentes no
Brasil. Não confundir com outra mística de nome semelhante, a Venerável Madre Maria
Diomira do Verbo Encarnado (1708-1768), monja capuchinha, abadessa do mosteiro de
Fanano. Ambas italianas – NC.
11 Chamadas graças gratis datae. “O fim é sempre superior aos meios. Agora então, a
graça santificante dispõe-nos imediatamente a união com Deus, nosso último fim; enquanto
que os carismas ou graças gratis datae, como a profecia ou o dom de milagres, somente
nos inclinam, como meios de certo modo externos, a receber a graça que une a Deus”.
Sum. Theol. I-II, q 111, a.5; apud: Fr. R. Garrigou-Lagrange, O. P., Las tres edades de la
vida interior, t. II, Madrid, Palabra, 1999, p. 931 – NC.
CAPÍTULO VIII

AINDA OS FENÔMENOS MÍSTICOS:


A SERVA DE DEUS PARTICIPA DE TODAS AS DORES DA
PAIXÃO DO SALVADOR (1900)

Poucos foram os Santos que tiveram ao mesmo tempo todos os


cinco sagrados estigmas.
O espírito, diz o Senhor,1 sopra onde quer e como quer; e ora de
um modo, ora de outro, atinge os seus altíssimos fins.
Gema devia ser do número dos mais privilegiados, participando
não só das cinco chagas juntamente da crucifixão do Salvador, mas
de todos os tormentos da sua Paixão.
Depois do suor de sangue em Getsêmani, o primeiro suplício que
Jesus sofreu em sua carne foi o da flagelação.
A nossa virgem costumava contemplar com singular afeto e
devoção este doloroso mistério e, uma por uma, contava aquelas
profundas feridas de que via coberto o Sacratíssimo Corpo do seu
divino Senhor, e então dizia: “Todas são efeitos do seu amor!” E
consumia-se no desejo de vê-las impressas na sua própria carne.
O próprio divino Salvador se comprazia em excitar-lhe este desejo,
aparecendo frequentemente, como vimos, todo chagado. E
convidando-a a tocar e beijar aquelas adoráveis feridas – e ela, não
resistindo à força da dor e do amor que lhe inflamavam o coração a
esse espetáculo, caia desmaiada aos seus pés.
Um dia finalmente, na primeira sexta-feira de março de 1901, em
que chorando suplicava ao seu divino Esposo que lhe concedesse
alguma participação naquele martírio da flagelação, sentiu que fora
ouvida durante o êxtase ordinário. O sofrimento foi terrível. Assim
ela comunicou a seu diretor:

Na sexta-feira, pelas 2 horas, Jesus me fez sentir algumas ligeiras


pancadas. Meu pai, estou coberta de chagas, que me fazem sofrer um
pouco. Viva Jesus!

Procuremos conhecer estas chagas, que nada tem de imaginárias,


ouvindo sua mãe adotiva,2 que atentamente as observou por vezes:

Percebi – diz ela – que naquela noite Gema sofria mais do que de costume
e estava em êxtases. Tomei-lhe um braço e vi grandes vestígios de sangue
vermelho. Enxuguei com um lenço que ficou todo manchado. Sofria tanto que
no êxtase eu a ouvia dizer: “Mas serão os teus açoites, ó Jesus?”; calculei
então que fosse a flagelação. Repetiu-se este fato durante todas as quatro
sextas-feiras de março de 1901.
Na primeira, aconteceu como já referi; na segunda, Gema ficou com a
carne dilacerada; na terceira, mais despedaçada ainda, a ponto de se lhe
verem os ossos; e na quarta, não se pode exprimir: eram chagas por todo o
corpo, que teriam tido a profundidade de um centímetro.
Depois de dois ou três dias tudo desaparecia. Uma vez, que eu quis atar
um pano em duas delas, ficaram sem cicatrizar, inflamaram-se, e, quando fui
cuidá-las, muito a fiz sofrer; mais tarde sararam por si, lentamente.
As chagas tinham a seguinte disposição: duas em um braço, do
comprimento de quatro a cinco centímetros e muito profundas; duas em uma
perna, redondas e maiores do que uma moeda de dois francos de prata; uma
no peito, bem no meio, na direção da garganta; duas acima dos joelhos e
muito maiores, mais compridas do que redondas; duas nos joelhos e nos
cotovelos, que descobriam quase os ossos; uma quase redonda e profunda,
sobre a planta dos pés; e duas nas pernas. Além dessas, havia outras que eu
não vi muito bem. A princípio, eram como disse: talhos; depois rasgões
profundos. E perguntando-lhe a razão, respondeu: “primeiramente, eram
açoites que eu recebia, e agora são flagelos”. E concluindo: se quiser fazer
delas uma ideia, lembre-se do grande crucifixo que temos em casa, diante do
qual Gema costumava rezar. As mesmas manchas roxas, os mesmos
rasgões da pele e da carne, igualmente longos e profundos que causavam
igual pena ao contemplá-los. O sangue corria em grande abundância e,
estando ela de pé, era tanto que corria até o chão; e se deitada, molhava não
só o lençol, mas passava a ponto de embeber todo o colchão. Medi alguns
rios de sangue e eram de quarenta e cinquenta centímetros de comprimento
e cinco de largura.

Na mesma maneira depõem todos os outros que viram aquelas


chagas. Por isso é fácil compreender que não é admissível a
possibilidade de que fosse a própria Gema que assim se
dilacerasse, com disciplinas ou outros instrumentos de penitência.
Além disso, como seria possível dar-se esse fato se nunca a
deixavam só, nem de dia nem de noite, principalmente durante os
êxtases, quando o referido fenômeno costumava sempre se
manifestar? Em todo o caso, ficaria sempre sem explicação como
chagas tão fundas da epiderme e da derme, produzidas por
qualquer motivo natural, pudessem sarar em tão breve tempo.
Quanto à dor de tão atrozes feridas, que a estimada vítima sofria
com esses cruéis açoites, rasgando-lhe cruelmente a carne, pode-
se justamente avaliar pelos movimentos que fazia.

No tempo da flagelação – disse uma das testemunhas –, vê-se Gema


sofrer muito; mas não se move. Às vezes, fica um tanto convulsa, os braços
tremem. E quanto ao sofrimento que em todo o corpo sente, fica um pouco
rouca, mas depois volta a si; findo o êxtase, recorda-se de tudo
perfeitamente. Verifiquei-o por mim mesma. Pobrezinha! Como despedaça o
coração vê-la padecer assim! Nessas ocasiões, sabe o que me diz?
“Recomende-me muito a Jesus’. Depois ouço-a dizer: ‘Minha Mãe! Divino
Padre Eterno!” Na sexta-feira de noite, pelas 11 horas, disse: “Adeus! Até
amanhã”; e, com efeito, pararam, à minha vista, os golpes e ficou como
morta. O pulso, porém, batia naturalmente, e o coração conservava-se calmo.

Não se sabe quantas vezes o misterioso fenômeno se repetiu,


além do mês de março daquele ano.
Entretanto, pelas suas cartas se deduz que deu-se outras vezes,
mas sem ser observado, devido às muitas precauções de que usava
a humilde virgem para conservar ocultos os dons de Deus.
De fato, eu soube que uma vez ela se dirigiu à sua benfeitora,
pedindo que lhe permitisse tomar um banho porque, dizia: “sinto as
roupas pegadas à carne e me afligem muito”. Foi, e descobriram
que aquele inocente corpo estava coberto de grandes chagas, com
o sangue seco, de modo que a camisa tinha ficado pegada e não se
podia tirar senão reabrindo as feridas com imensa dor. Contudo, ao
ouvi-la, dizia que todos estes tormentos eram apenas uns ligeiros
sofrimentos que Jesus lhe dava para experimentá-la um pouco.
O Salvador do mundo, depois de ter sido flagelado, narram os
evangelistas, foi levado para o meio dos soldados do Pretório, os
quais tecendo uma coroa de espinhos, cravaram-na na cabeça.
Oh! Adorável coroa: haverá um cristão que não a deseje, e não
considere como grande honra cingir contigo a sua fronte, depois de
vê-la adornar a do Homem-Deus? Certamente que a virgem de
Lucca, que compreendera a fundo os mistérios da grandeza de
Cristo, assim pensava e, por esta joia, estava há muito tempo
enamorada. Direi mais adiante a tocante visão do anjo que numa
visão lhe apresentou duas coroas, uma de cândidos lírios e outra de
espinhos, para escolher a que preferisse. Gema, sem hesitar um
momento, exclamou: “Quero a de Jesus, dai-me a de Jesus”, e
tomando-a, apertou-a com todo o amor ao coração.
Outras vezes o próprio Jesus aparecia-lhe coroado de espinhos e
perguntava se ela queria para si aquela coroa.
Agora, pois, que a santa donzela alcançara, pelos seus desejos e
místicas purificações, a necessária perfeição para estes dons
extraordinários, as palavras se converterem em fatos, as visões em
realidade, e eis de que modo ela própria nos faz esta narração:

Nesta tarde (19 de julho de 1900), finalmente, depois de seis dias de


sofrimento pelo afastamento de Jesus, recolhi-me um pouco. Pus-me a rezar
como costumo todas as sextas-feiras. Comecei a pensar na crucifixão de
Jesus.
A princípio nada senti; depois de alguns momentos, fiquei meio
concentrada. Jesus estava perto. Ao recolhimento, sucedeu como das outras
vezes, que fiquei fora de mim e me achei com Jesus, que sofria penas
horríveis. Como podia ver Jesus sofrer e não ajudá-lo? Então, senti apoderar-
se de mim um grande desejo de sofrer; e pedi a Jesus que me fizesse esta
graça. Ele me satisfez logo, procedendo como das outras vezes: aproximou-
se de mim, tirou de sua cabeça a coroa de espinhos e, com suas mãos,
colocou-a sobre a minha; acalcou-a sobre as minhas frontes. Foram
momentos dolorosos, mas felizes. Assim, permaneci uma hora com Jesus.

E de outra vez:

Ontem, pelas 3 horas da tarde, para dizer a verdade, sentia-me cansada e


sem forças. Achei-me de novo diante de Jesus, mas Ele não estava tão triste
como naquela noite: fez-me alguns carinhos, depois, contente, tirou-me a
coroa da cabeça (com o que sofri ainda, porém, menos) e tornou a colocá-la
sobre a sua. Desapareceu-me toda a dor, recuperei logo as forças, e senti-
me melhor do que antes de passar por esse sofrimento.

Este prodígio deu-se no mês de julho de 1900. Porém, parece que


aconteceu algumas vezes antes, embora não nos tenha ficado
nenhuma lembrança exata, e é só por algumas expressões nos
escritos de Gema que podemos, com algum fundamento, supor.
Os efeitos palpáveis destas aparições demonstravam claramente
que não eram fruto da imaginação. Via-se a cabeça da piedosa
donzela, no mesmo momento, traspassada de furos donde gotejava
sangue vivo, não só ao redor, mas em toda a superfície e por entre
os cabelos; isto confirma o que deixaram escrito alguns santos
contemplativos: ter sido feita de tal forma a coroa de espinhos do
Salvador que lhe cobria toda a cabeça. A própria Gema, falando
daquela que pela primeira vez foi-lhe mostrada pelo anjo, diz
claramente: “Não tinha a forma de uma coroa, mas de um barrete”.
Às vezes os furos eram quase imperceptíveis a olhos nus, como
os da estigmatizada de Bois d'Háine, Luisa Lateau,3 que só se
percebiam pelo sangue que derramavam; outras vezes, distinguiam-
se perfeitamente sobre a fronte e sobre o couro cabeludo, os
buracos feitos pelos espinhos em forma triangular, de cada um dos
quais destilavam grossas gotas de sangue; assim atesta um
digníssimo sacerdote, testemunha ocular com vários outros que,
com muito vagar, tinham podido observar o maravilhoso fenômeno.
Isso se repetiu regularmente por algum tempo da quinta-feira à
sexta-feira de cada semana, mesmo depois que o das chagas das
mãos pés e lado cessaram de ocorrer. Muitas vezes começava
antes do êxtase habitual da dita noite de quinta-feira.
Achando-se Gema sentada com as pessoas da família para a ceia,
viam-se aparecer na testa gotas de sangue que pouco a pouco,
multiplicando-se, corriam-lhe pelas faces, sobre o pescoço e sobre
as roupas. “De cada fio de cabelo caía uma gota de sangue que
chegava até ao chão”, repete outra testemunha.
Em verdade, um espetáculo tocante, de enternecer até um
coração de pedra! Oh! Se tivesse ocorrido a lembrança de chamar
um fotógrafo para retratar aquele rosto, ter-se-ia o mais belo modelo
do Ecce-Homo!4

Se tivesses visto – disse-me outra pessoa – o sangue que corria pelos


olhos, pelas orelhas, pela testa e pelas fontes, pareciam rios; embebi dois
lenços. Se tivesses contemplado como seu peito arfava...
Queria referir-se ao coração que durante aqueles momentos batia
com força, como direi adiante. Uma vez, estando eu mesmo
presente, ordenei que lhe lavassem e enxugassem todas aquelas
feridas, e pus-me em observação. Após alguns minutos, o sangue
começou a borbulhar dos mesmos pontos, e aquele rosto angélico
ficou de novo todo manchado. Notei que a efusão era muito rápida,
como se por uma forte pressão o sangue brotasse de dentro e se
derramasse por fora; deslizando depois pelas faces, ia secando
sobre a pele.
Ainda que o Evangelho não a refira, costumam todavia os
contemplativos, como Santa Teresa, prestar uma particular atenção
à chaga do ombro esquerdo no Homem-Deus, ocasionada pelo
peso da cruz na subida angustiosa do Calvário. Gema também
sofreu esta chaga, embora algumas pessoas a confundissem com
as inúmeras da flagelação. Era tão larga e profunda, e causava à
paciente tão grande dor, que a obrigava a andar curvada daquele
lado.
Essa também se fechava como todas as outras na sexta-feira de
tarde ou no sábado de manhã, e derramava muito sangue; era,
porém, diferente das outras neste ponto, que a dor por ela
ocasionada continuava a se fazer sentir ainda por tempo mais ou
menos longo.
Esse estado durou até fevereiro de 1901, em que eu lhe escrevi
que suplicasse a Jesus que se dignasse a libertá-la dessas
manifestações patentes a todos; assim o fez, e pelo mérito da santa
obediência, foi atendida.
Como escreveu, Jesus assegurou-lhe que tiraria os sinais (isto é
os estigmas), mas que lhe aumentaria os sofrimentos; e de fato
assim aconteceu. Foi exatamente nesses dias – 7 e 8 de fevereiro
de 1901 – que começaram os golpes da flagelação. Deste modo,
fica melhor confirmado o que já asseguramos: que o fato da
flagelação dera-se na quarta sexta-feira de março, verificando-se
também que ocorrera em fevereiro. A 6 de abril, porém, Gema
escrevia que também esses açoites cessaram por obediência ao
confessor; e ela sofria ainda mais por não poder sofrer.
Mais tarde, Deus permitiu que cessassem as manifestações
exteriores, mas que ela continuasse a sentir as mesmas dores – e
ainda mais fortes do que dantes, porque quando o sangue saía,
dava algum alívio à pobre paciente, conforme ela mesma por vezes
assegurou. Era isto fácil de compreender porque era evidente a
todos o sofrimento interno pelo estremecimento de todo o seu corpo
e pelas lágrimas que lhe rebentavam dos olhos.
Contudo, quis Deus dar-lhe algum alívio ao coração, que à força
de bater-lhe no peito, comprimia os vasos sanguíneos, fazendo
jorrar sangue vivo.
Sentia-se tão alegre a santa donzela, que estando em êxtases
ouviram-na dizer:

Jesus, eu Vos daria também as minhas mãos e os meus pés, mas não
posso, o confessor me proibiu. Tomai meu coração, este eu Vo-lo posso dar.
Eu Vos cederia minhas mãos, ó Jesus, mas não posso!

Parece que aqui o Senhor lhe mostrava suas próprias mãos


traspassadas, para pedir-lhe como que tentando-a, sangue por
sangue; “mas não posso”, continuava ela a responder: “sofro por
isto, mas a obediência vale mais do que o sacrifício”.

Oh! Se o Senhor a tivesse visto nesta sexta-feira santa – escrevia-me sua


mãe adotiva – às 3 horas; julgava que morresse. Quantas golfadas de
sangue deitou! E exclamava: Meu Jesus, não Vos posso dar de outro modo o
meu sangue, mas eu Vo-lo dou do coração.

Então começaram aquelas inefáveis angústias que forçaram seu


coração a alargar-se no peito, dobrando com força três costelas do
lado esquerdo; e foram tais as chamas internas, que lhe queimaram
a carne e a pele, como direi em outro lugar.5
Para terminar este quadro, poderia apresentar o deslocamento dos
ossos, que o Divino Salvador sofreu no suplício da crucifixão, a
desconjunção dos membros, quando pendurado na cruz, o tormento
do esmagamento de todos os órgãos do seu Sacratíssimo Corpo,
naquelas três horas dolorosíssimas e, afinal, a sede ardente que do
alto da cruz fez-lhe gritar: Sitio! (Tenho sede!).
Para mostrar como Gema, depois de lhe desapareceram os
estigmas cruentos, participou realmente de todas estas outras
dores, ela mesma o confessou – e diversas pessoas que, por vezes,
a observaram nestas dolorosas cenas, atestam que nada faltou a
esta santa criatura para que pudesse ser chamada a imagem viva
de Jesus na sua Paixão.
Entretanto, tendo eu já excedido os limites deste capítulo,
abstenho-me de referir o que disseram essas testemunhas, e descer
às particularidades que referem.
Devo contudo fazer menção do martírio interior do coração que foi
a parte mais inefável do mistério da cruz.
Com efeito, Gema, depois de ter sofrido as dores corporais de
Jesus Crucificado, agonizou espiritualmente com Jesus na cruz.
Mas como faria para fazer-me entender pelo leitor, se quisesse-lhe
descrever em que consistiam estas místicas agonias? Somente direi
que a julgar pelo que aparecia exteriormente, pela cor cadavérica,
pelo peito ofegante, pelos olhos encovados e pelos lábios
descorados, podemos e devemos crer que aquele estado era a
agonia da morte.
Assim foi atendida, em toda a sua extensão, a fervorosa prece que
à vista de Jesus Crucificado tinha saído do coração e dos lábios
desta virgem predileta do céu:

Jesus, tornai-me semelhante a Vós; sofrendo convosco, não me poupeis;


sofrestes tanto; fazei com que eu também sofra; sois o Homem das dores, eu
quero ser também a filha das dores.

Agora, pois, o que falta para que possamos assegurar que Gema
atingiu o cume da santidade?; já que escreveu o apóstolo São Paulo
“Aqueles que manifestam em si a verdadeira imagem do Filho de
Deus, são os predestinados e eleitos”.6

1 Jo 3, 8.
2 Refere-se à tia Cecília Gianinni, irmã do senhor Mateus Gianinni, da família que a
acolheu. Ela acompanhou maternalmente a nossa Santa Gema com amor e cuidado. Foi
uma das mais importantes testemunhas no seu processo de beatificação e canonização.
Morreu em 1931 aos 84 anos – NC.
3 A já citada mística belga – ver nota na página 71 – NC.
4 Expressão latina significando: “eis o Homem!” (Jo 19, 5). Na iconografia cristã, faz
referência a imagem de Cristo no momento em que Pilatos mostra-o à turba, após a sua
flagelação, coberto com manto, coroado de espinhos e com a cana que, por burla,
puseram-lhe os soldados.
5 Manifestação do fenômeno chamado de hipertermia, ou incendium amoris. Também as
costelas de São Felipe Néri sofreram esse alargar, após a experiência mística da festa de
Pentecostes de 1544. Tal fenômeno ela partilha com muitos outros místicos passionistas,
como o Pai São Paulo da Cruz, a Venerável Lucia Magano, e a Serva de Deus Edvige
Carboni.
Sobre esse fenômeno, o dominicano Royo Marín aponta três graus: simples calor,
adores intensíssimos, queimadura material. Santa Gema apresentou todos os três. Cf.
Antonio Royo Marín, Teologia de la Perfección Cristiana. Madrid: BAC, 2011, pg. 926 – NC.
6 Cf. Rm 8, 29.
CAPÍTULO IX

GEMA CONHECE OS PADRES PASSIONISTAS:


E AINDA OS ESTIGMAS E OUTROS SINAIS DA PAIXÃO
(JUNHO-SETEMBRO DE 1899)

O leitor poderá avaliar o fervor com que Gema recebeu a sagrada


Comunhão no dia 9 de junho, depois dos misteriosos fenômenos da
véspera, isto é, quando teve os pés e as mãos traspassadas de um
lado ao outro, e o coração aberto por uma grande chaga.
A linguagem humana não pode exprimir esses sentimentos. Que
ações de graças! Que atos de amor! Que doçura unida com tão
cruciantes dores!
Com que ternura não repetiria ela neste estado beatífico: “Dilectus
meus mihi et ego illi!”.1 Ah! Sim, pode agora exclamar com São
Paulo: “Estou verdadeiramente crucificada com Jesus. Eu vivo, mas
não sou eu mas quem vive, é Jesus que vive em mim”.2
Voltando para casa, não lhe foi difícil apresentar-se à sua tia
conforme já contamos. Todavia era preciso proceder com prudência,
o que lhe causava alguma inquietação. Ao confessor, a quem já
tinha comunicado a promessa que recebera de uma graça
extraordinária, convinha agora informá-lo minuciosamente de tudo.
Mas como? Gema fora sempre muito reservada em falar de si e
daquilo que lhe dizia respeito; sentia tão grande repugnância e até
mesmo vergonha nestas ocasiões, que teria preferido mais ocultar-
se do que revelar o que trazia guardado no coração. Quanto mais
agora, tratando-se de um fenômeno tão raro e misterioso.

Que pensará o confessor – dizia ela a si mesma – quando souber deste


fato, ele que conhece bem o quanto sou indigna de favores celestiais? E
vindo a divulgar-se estes prodígios, como todos se escandalizarão sabendo
quão grande pecadora sou eu.

Se a tais sentimentos de profunda humildade se unia um pouco da


fraqueza que aumentava essa repugnância de Gema – ou se não
era mais do que uma tentação do demônio –, não saberia dizer.
O certo é que, muitas vezes, o seu anjo da guarda teve que avisá-
la e repreendê-la fortemente para que se vencesse.
Passou-se todo o mês de junho em grande perplexidade, e Gema
não podia ainda resolver-se a cumprir com esse dever. Mas Deus,
compadecendo-se da sua serva, tirou-a dessa dificuldade, dirigindo-
a com admirável providência sobre a nova estrada pela qual, nos
seus decretos eternos, queria que caminhasse.
Eis aqui como aconteceu: no princípio do novo século, o Papa
Leão XIII ordenou que se dessem missões em todas as cidades da
Itália. Para Lucca foram mandados os Padres Passionistas, que
pregaram na Igreja Catedral de São Martinho,3 do fim de junho em
diante, colhendo extraordinário fruto de tão árduo trabalho. Nessa
ocasião, Gema estava atenta em ouvir as práticas sobre o Sagrado
Coração de Jesus que se faziam nesse mesmo mês noutra igreja; e
por isso, só em princípios de julho é que, levada por um celeste
impulso, foi a São Martinho para acompanhar a missão. Qual não foi
a sua alegria ao reconhecer no traje daqueles missionários o hábito
com que lhe tinha aparecido o Bem-aventurado Gabriel, seu amado
protetor?

A impressão foi tal – ela escreveu – que não posso descrevê-la. A primeira
vez que os vi, senti uma especial estima e afeição por eles; e desde aquele
dia não perdi mais nenhum sermão.

É de admirar que Gema, vivendo sempre em Lucca, onde


frequentemente estes missionários estavam no exercício do seu
santo ministério, até então não os tivesse visto; ainda mais quando
se sabe que a poucos quilômetros da cidade tinham eles uma casa
de retiro ou convento, muito procurado pelos moradores de Lucca.
Compreende-se, porém, atendendo à vida retirada que levava esta
serva de Deus, e à sua rara modéstia, isenta de toda a curiosidade,
até mesmo das mais inocentes.
Eis em que termos a própria Gema continua a narração do seu
primeiro encontro com os Passionistas:

Era o último dia das Santas Missões. Todo o povo estava reunido na igreja
para a comunhão geral. Eu também comunguei com muitas pessoas, e Jesus
que, como é natural, ficou satisfeito com este ato de piedade, fez-se sentir à
minha alma e me perguntou: “Gema, agrada-te o hábito com que está
revestido aquele Sacerdote?” (e mostrou-me um Padre Passionista, que
estava a pouca distância de mim).4 Não me lembro de ter falado a Jesus com
palavras, o coração, porém, mais ainda se expressava, palpitando mais
fortemente. “Agradar-te-ia”, acrescentou Jesus, “seres revestida também com
um hábito igual?” – Meu Deus!, exclamei... E sem me deixar bem
compreender a que queria aludir, Jesus disse: ‘Serás uma filha da minha
Paixão e uma filha predileta. Um destes será teu pai; vai e revela-lhe tudo’.5

Gema tomando as referidas palavras no sentido literal, isto é, que


ela seria um dia Passionista, ficou transportada de alegria. Gozava
também, a piedosa virgem, por sentir desfeita em seu coração a
grande repugnância anterior em manifestar os prodígios de que
tinha sido favorecida. E querendo logo obedecer à voz de Deus,
correu a se apresentar a um daqueles padres; ajoelhada a seus pés,
com a mesma franqueza que usava quando confessava seus
pecados, revelou tudo, terminando pelos estigmas e pela dificuldade
que tinha tido em se abrir com o confessor ordinário.
Maravilhado por essas revelações e pela ingenuidade da donzela,
aquele sacerdote a animou e exortou a conservar-se humilde e
reconhecida aos divinos benefícios. E a respeito daqueles fatos
extraordinários, querendo primeiramente pensar mais, antes de lhe
dar sua opinião, prometeu que quando voltasse a Lucca, a ouviria
de novo; e nesse ínterim, depois de tê-la deixado contente sobre
outros pontos em que o consultou, impôs-lhe, como preceito formal,
que manifestasse tudo ao seu primeiro confessor: o principal dos
assuntos em que Gema lhe falara, fora o de poder fazer os três
votos religiosos de pobreza, obediência e castidade.
Certa de que Jesus a tinha convidado a ser Passionista, parecia-
lhe ser este o momento propício para obter tal graça por meio de um
confessor deste instituto; e este, não querendo contristá-la, permitiu-
lhe que fizesse aqueles votos como devoção particular, mas só por
breves prazos e com o conhecimento do confessor.
Não se mostrou, porém, tão fácil em dar licença para as
penitências, que a piedosa jovem queria fazer, chegando a tirar-lhe
das mãos os instrumentos que ela própria tinha fabricado, para
macerar a carne, o que aliás, o seu confessor também já lhe havia
proibido.
Quão grande pois foi a alegria da fervorosa donzela fazendo, pela
primeira vez, aqueles três votos, ela mesma o disse; parecia-lhe ter
atingido ao ápice dos seus ardentes desejos e já ser religiosa.

Eu que tinha sempre um grande desejo de fazê-los, aproveitei aquela


ocasião, e os fiz desde o dia 5 de julho até a festa solene, de 8 de setembro.6

Para defender a nossa Gema de qualquer sentimento de capricho,


por ter-se mostrado um pouco indecisa até então em se manifestar
ao confessor ordinário, devemos notar em que difíceis condições
este se achava no seu árduo ministério.
Além dos múltiplos cuidados do seu cargo e das obras de zelo a
que se aplicava desde a manhã até à noite, tinha sob sua direção
tão grande número de almas que lhe era quase impossível atender
a todas. Seu confessionário estava sempre rodeado, e embora aí
passasse muitas horas do dia e não se apressasse, quando via
maior necessidade em certas almas, algumas pessoas sentiam não
poder obter que ele lhes dedicasse mais tempo pelas mesmas
razões apontadas.
Quanto maior não seria então a dificuldade quando, entre as
almas que pela graça divina eram guiadas pelos caminhos
extraordinários, havia uma como a nossa Gema!
A boa donzela bem compreendia tudo, e sofria por este motivo.
Muitas vezes por não lhe poder falar no confessionário, escrevia-lhe
para lhe confiar ora uma, ora outra graça que Deus lhe ia
concedendo; porém, não era suficiente para uma direção: pois que
devia sempre ir obter a resposta no confessionário, onde o pouco
tempo de que o padre podia dispor não correspondia às suas
necessidades.
Refletindo bem sobre este assunto e querendo ajudar a Gema,
aquele sacerdote Passionista, quando voltou a Lucca, depois de ter-
lhe novamente falado, encarregou-se de entender-se diretamente
sobre ela com o seu confessor. Todavia os acontecimentos
mostraram que os temores e a repugnância de Gema não eram
infundados.
Falou-lhe o missionário Passionista e em seguida veio ela mais
uma vez revelar-lhe com toda a candura os mais íntimos segredos
de sua alma. Acolheu a ambos aquele prelado com muito afeto e
atenção, aprovou as decisões do confessor extraordinário, mas,
quando se tratou dos estigmas quis tomar tempo para decidir.
Compreendeu a sua grande responsabilidade diante de Deus e dos
homens, quer como confessor, quer como bispo.
“Que dirão”, pensava ele, “tratando-se de um assunto tão
extraordinário num século descrente como o nosso?”.
Por um lado temia – e com razão – que não se dessem com a sua
penitente os inconvenientes acontecidos com outras pessoas por
semelhantes fatos que depois foram verificados como naturais ou
diabólicos. Por outro lado, bem conhecia Gema; bem conhecia a
candura e a santidade de sua alma, o grande amor que tinha a
Deus, e o seu modo de proceder sempre tão virtuoso.
Não ousava supor que uma alma tão perfeita fosse enganadora,
histérica, endemoninhada, mas não queria ser também por demais
fácil em reconhecer nela a ação divina, em quanto não se
demonstrasse suficientemente.
Que fazer? Lembrando-se daquela palavras do Espírito Santo:
Nolite omni spiritui credere,7 quis primeiramente experimentar e ter
certeza se verdadeiramente era de Deus o que se passava com ela
– ou se seria um fenômeno que pudesse ser explicado de outro
modo.
Entretanto, a se reproduzirem aqueles fatos maravilhosos da
quinta para a sexta-feira, como de costume, ordenou ele à piedosa
jovem que empregasse todo o esforço, tanto quanto dependesse
dela, e rezasse, para que não se repetissem aquelas singulares
impressões em seu corpo.
Gema obteve do Senhor, por algum tempo, o que pedia. Mas
depois voltaram os prodígios. Escreveu:

Então não tive mais medo de contar tudo ao confessor, e ele me disse que,
se Jesus não lhe manifestasse bem claramente esses fatos, não acreditaria
em tais fantasias.

Nessa ocasião aquele missionário Passionista que tinha


confessado a Gema e comunicado ao seu confessor ordinário esses
prodígios, não se contentou em ouvir o que Gema lhe referiu. Quis,
com seus próprios olhos, com suas próprias mãos, certificar-se da
verdade dos estigmas, e fez a seguinte declaração:

I. X. P.8
Eu, abaixo assinado, atesto ter visto no mês de julho do ano de 1899, sobre
as mãos da jovem Gema Galgani, certas chagas que nada tinham de natural.
Nas palmas, via-se como um pedaço de carne sobreposto, semelhante à
cabeça de um prego do tamanho de um vintém; nas costas de ambas as
mãos um rasgão bem profundo.
A falta de carne nessas feridas parecia ocasionada por um prego
pontiagudo que tivesse sido encravado no lado oposto.
Eu e a pessoa que comigo observou, não hesitamos em dizer que eram
estigmas produzidos por uma causa toda sobrenatural.
De fato, reparando nas mãos da jovem, na quinta-feira de noite, nada
víamos; observando-as na manhã de sexta, achamo-las do modo que
descrevemos; e de novo examinando no sábado, só restava uma pequena
cicatriz avermelhada.
Na fé.

PADRE CAETANO DO MENINO JESUS, Passionista.9

Mas não foi só ele que verificou a realidade do portentoso fato. No


dia 29 de agosto de 1899, chegou a Lucca o provincial dos
Passionistas, Padre Pedro Paulo da Imaculada, atual M. Moreschini,
arcebispo de Camerino.10
Havia pouco tempo que Gema tinha entrado em casa dos
Giannini, como contarei em breve. Da sua visita àquela família, e
pelo que se refere a Gema, escreveu um longo relatório – que será
bom acrescentar aqui, para que o leitor fique bem informado destes
acontecimentos. Escreveu ele:
Tendo ouvido falar desta jovem com quem se davam fatos extraordinários,
desconfiei de que se tratasse de simples ilusões femininas e quis assegurar-
me com meus próprios olhos. Dirigi-me àquela casa, numa terça-feira e
vendo-a, tive a inspiração de suplicar ao Senhor que se dignasse dar-me um
sinal palpável se era, com efeito, Ele o autor daqueles fatos maravilhosos; e
interiormente, sem comunicá-lo a ninguém, pensei em dois – o suor de
sangue e a aparição dos estigmas.
Chegada a tarde, a piedosa donzela se retirou para fazer suas costumadas
orações diante da Imagem de Jesus Crucificado. Depois de alguns minutos,
estava arrebatada em êxtase. Entrei e vi com meus próprios olhos que estava
toda transfigurada, à semelhança de um anjo, se bem que imersa em
profunda dor.
Da cabeça, do rosto e das mãos, corria sangue vivo – e julgo que se dava o
mesmo em todo o resto do corpo. Continuou assim, a derramar sangue,
durante meia hora, embora não escorresse até o chão porque tão logo
brotava, tão logo secava.
Retirei-me comovido e Gema, quando voltou a si do êxtase, achando-se só
com a tia, disse-lhe: “O padre pediu dois sinais a Jesus. Jesus me disse que
um já lhe deu; e o outro dar-lhe-á igualmente”.
À noite a dita senhora me interrogou com empenho: “Senhor Padre, outro
sinal que Vossa Reverendíssima pediu, seriam as chagas?” Eu fiquei atônito,
e ela continuou: ‘Digo isto porque, se foi assim, Gema já as têm abertas; caso
raro até agora, ela só os têm tido nas quintas e sextas-feiras. Venha e veja!’
Fui e encontrei aquela bendita criatura em êxtase, como da primeira vez,
com as mãos transpassadas (digo transpassadas!) de um lado a outro, com
grandes chagas dentro da carne, donde corria sangue em abundância. Durou
o tocante espetáculo uns cinco minutos... [do qual ele faz uma minuciosa e
perfeita descrição, coincidindo exatamente com a que eu tinha feito]; e
cessando o êxtase, desapareceram o sangue e as feridas, e a pele antes
dilacerada, voltou repentinamente ao estado natural tão facilmente que foi
suficiente mandar-lhe lavar as mãos para que tudo desaparecesse.
Jesus me tinha atendido, e eu agradecendo-Lhe, depus toda a dúvida
desfavorável, ficando firme em crer que: digitus Dei est hic.11

Diante de tais atentados, Monsenhor Volpi compreendia cada vez


mais a sua delicada posição; julgou então que deveria proceder com
a maior prudência e reserva. Depois de maduro exame, resolveu
fazer uma experiência, que lhe parecia decisiva: quis que um
distinto médico de sua confiança, tão piedoso e crente quanto sábio,
o informasse acerca dos estigmas de Gema. Nada disseram à
Serva de Deus, mas Jesus quis preveni-la do que pretendiam fazer.
Gema diz na sua autobiografia:

Monsenhor julgou acertado mandar-me examinar por um médico sem me


avisar, mas Jesus me preveniu com estas palavras: “Diga a teu confessor
que em presença do médico nada farei do que ele deseja”. Por ordem de
Jesus assim fiz: avisei ao confessor.

De fato, Gema escreveu-lhe:

Ontem à noite Jesus me disse que transmitisse a V. Rev. o seguinte:


“Deves dizer ao teu confessor que qualquer sinal que ele quiser de mim eu
lhe darei, contanto que esteja só; tenha certeza de que não se trata de uma
doença como supõe”.

À vista destas palavras, que decisão tomaria o Bispo? Iria


sozinho?
Pela sua inspeção somente, não se animaria a tomar a
responsabilidade, porque, se tratasse de uma doença, ou digamos
antes, de efeitos de autossugestão, ele por si não poderia desfazer
a dúvida.
Sustentou assim a deliberação tomada, e disse à Senhora Cecília
Giannini, mãe adotiva de Gema, que costumava dar-lhe conta de
tudo o que acontecia a piedosa donzela: “Desejo mostrar Gema a
um médico e pretendo que ele observe os estigmas”.
E combinaram que na sexta-feira seguinte iriam Monsenhor e o
Médico.
Então, no dia 8 de setembro de 1899, festa da Natividade da
Santíssima Virgem, que nesse ano caia numa sexta-feira, pelas 10
horas da manhã, Gema retirou-se para o seu quarto, e ficou logo em
êxtase. Voltando a si, às 11 horas, escreveu algumas linhas ao
Bispo dizendo-lhe que, se quisesse vir, viesse só, não trazendo
ninguém consigo porque Jesus não estava contente, e não lhe
permitiria ver coisa alguma.
Entregou a carta aberta à sua mãe adotiva, que a leu e apressou-
se em fazê-la chegar ao seu destino.
À ١ hora da tarde, Gema tendo voltado para seu quarto, caiu de
novo em êxtase; e D. Cecília entrando pouco depois, encontrou-a
com a fronte derramando sangue, as mãos abertas com os estigmas
dos quais também saía sangue. Viram-na com o devido e religioso
respeito neste estado, além dela, o Sr. Mateus Giannini, sua
consorte D. Justina, e creio que também outras pessoas da família.
Às ٢ horas mais ou menos chegou monsenhor com o médico. D.
Cecília correu ao seu encontro muito contente, dizendo-lhe: “Venha,
venha, que o senhor está agora na melhor ocasião”. E levou-os ao
quarto juntamente com as pessoas acima nomeadas. O médico
tomou um pano, embebeu-o na água, lavou-lhe as mãos e a
cabeça; o sangue de repente desapareceu, e a pele se apresentou
sem uma só cicatriz, arranhão ou ferida, como se nunca tivesse sido
ferida.
Imagine o leitor como ficaram todos!
O médico só com a D. Cecília, quis examinar também os pés e o
coração, mas teve o mesmo resultado.
Assim, Deus, que é admirável nos seus desígnios, quis que
falhasse este exame da ciência humana, e não permitiu que se
pudessem sindicar fenômenos tão elevados, que ele se digna
operar na ordem sobrenatural, para despertar a fé nos homens.
Gema na sua autobiografia conta o ocorrido com a sua ingênua
simplicidade:

Ele (o confessor) fez como entendeu, mas tudo se realizou como Jesus
tinha predito...

À noite escreveu ao Prelado:

Se Vossa Reverendíssima tivesse vindo só, Jesus o teria satisfeito ontem à


tarde. Jesus me avisou que hoje Vossa Reverendíssima devia vir...

Em todo o tempo da visita, Gema esteve sempre em êxtases e


nada percebeu; voltando a si, notou tal ou qual mudança nas
pessoas da família que pareciam desapontadas, mortificadas e
confundidas por não ter ocorrido os prodígios.
Sua mãe adotiva, para distrair-se um pouco, e também para
entreter Gema, convidou-a a dar um passeio. No caminho, a
piedosa virgem lhe pediu: “Leve-me um pouco para junto de Jesus?
Tenho necessidade de Jesus”.
Ela concordou e a acompanhou até uma igreja distante, a de São
Simão. Depois de mais ou menos uma hora de fervorosa visita ao
Santíssimo Sacramento, tendo saído já da igreja, Gema lhe
segredou: “Tenho uma coisa a dizer-lhe, mas custa-me tanto!”.
Animada a falar, mostrou-lhe as mãos abertas, e derramando
sangue como nas outras sextas-feiras.
A piedosa Senhora pensou logo em mostrá-la ao Bispo Dom Volpi,
naquele estado, e mandou que uma pessoa de sua confiança a
levasse. Então, viu ele com seus próprios olhos, não só o sangue,
como também as pequenas feridas nas mãos, donde corria.
O prudente Prelado disfarçou a sua admiração para não dar a
devota jovem o menor motivo de vaidade, contentando-se com
observar-lhe as mãos, e despediu-a logo.
Desse modo o Senhor, na sua misericórdia, quis atenuar a
humilhação da sua serva, e levantar o espírito do confessor e das
outras pessoas que tinham assistido a infrutuosa visita do médico.

1 Cf. Ct 2, 16: “Meu amado é para mim e eu para ele”.


2 Cf. Gal 2, 20.
3 A Catedral de Lucca é famosa por seu milagroso crucifixo de madeira, conhecido como
Il Volto Santo di Lucca, a Santa Face, que conforme piedosa legenda foi esculpido por
Nicodemos – NC.
4 Este sacerdote passionista foi o Padre Inácio de Santa Teresa Vacchi (1849-1927).
Falecido em odor de santidade, verdadeiro filho de São Paulo da Cruz, foi confessor do
grande Beato Bernardo Maria Silvestrelli. Após o falecimento do Venerável Padre
Germano, autor desta obra, foi diretor espiritual da Madre Josefa, fundadora do Mosteiro de
Lucca e da Venerável Madre Madalena de Jesus Sacramentado, grande escritora mística
passionista – NC.
5 Aqui, revela-se a Santa Gema, sua pertença espiritual aos Passionistas. E que será um
passionista seu pai espiritual: o autor deste livro, o Venerável Padre Germano. O Pai
Fundador São Paulo da Cruz foi grande diretor espiritual que, com sua ajuda, grandes
almas foram conduzidas à santidade, seja no claustro, seja no estado secular, como a
Venerável Lucia Burlini. Na história podemos citar vários santos e doutos diretores
espirituais passionistas: São Vicente Maria Strambi e a Beata Ana Maria Taigi, que foi mãe
de família; e a Venerável Maria Luísa Maruizi, monja servita. Assim como o Padre Serafim
e a Serva de Deus Louise Lateau, leiga; o servo de Deus, Padre Generoso, e a Venerável
Lúcia Mangano, ursulina; o Padre Inácio e a Serva de Deus Edvige Carboni, leiga.
6 O dia 8 de setembro é a Festa da Natividade de Maria Santíssima
7 “Não deis fé a qualquer espírito” – 1Jo 4, 1.
8 Iniciais com que os passionistas costumavam iniciar suas cartas, as mesmas que
constam naquele símbolo que carregam no peito. Em Português: “A Paixão de Jesus
Cristo” – NC.
9 Padre Caetano Guidi do Menino Jesus (1869-1925): foi o primeiro sacerdote
passionista a quem Santa Gema abriu o seu coração. Posteriormente, entretanto, foi
opositor da mesma, e ao que parece foi por sua influência que as Monjas Passionistas de
Tarquinia não a receberam nem mesmo para os exercícios espirituais. Saiu da
congregação para ingressar nos Beneditinos Silvestrinos, porém, acabou retornando
depois para os passionistas – NC.
10 Padre Pedro Paulo Moreschini (1858-1928), visitador apostólico de doze dioceses
italianas a mandato de São Pio X. Vigário Geral da congregação, após a renúncia do Bem-
aventurado Bernardo Maria Silvestrelli, foi elevado a sede arquidiocesana de Camerino em
1909, local onde faleceu – NC.
11 “O dedo de Deus está aqui”.
CAPÍTULO X

CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO:


OS ESTIGMAS E OUTROS SINAIS DA PAIXÃO(JUNHO-
SETEMBRO DE 1899)

Deus aflige de vez em quando os seus servos, mas é certo que


nunca os abandona; pelo contrário, são sempre admiráveis os
caminhos da sua Providência para livrá-los e consolá-los nos casos
mais desesperados.
Como vimos, na opinião de alguns, Gema tinha caído num estado
bem desfavorável, pelo que se dera na visita do médico – estado do
qual, humanamente falando, se previa que não se levantaria
mais.Porém, não penseis assim, ó leitor, porque está escrito: se o
homem sofre a tribulação, facile est in oculis Dei subito honestare
pauperem;1 assim aconteceu com Gema.
De fato, na sua autobiografia, ela própria escreve:

Desde aquele dia em que tive a visita do médico, começou para mim uma
nova vida [...]

Isto é, vida de longo e seguido martírio. Não somente as pessoas


da casa da família Giannini, mas também o bom confessor ficaram
muito abalados, não servindo de compensação nem o que tinha
visto depois com os próprios olhos.
O confessor julgou razoável renovar a ordem que havia dado a
Gema de procurar evitar todas as manifestações externas de
fenômenos singulares.

Tive de novo – diz ela – a proibição de manifestar os fatos extraordinários


da quinta e da sexta feira, e Jesus por algum tempo obedeceu, mas depois
tornou a fazer a sua vontade, e com ainda mais força do que antes.

A Serva de Deus que, por Jesus, sabia das dúvidas e incertezas


do seu pai espiritual, afligia-se muito, embora no seu coração
gozasse do que chamava: “a mais bela humilhação que o meu
querido Jesus me dá”.
Contudo, não podia deixar de condoer-se, vendo o estado daquele
a quem ela desde criança amava e venerava mais do que a um pai,
e sentia que lhe ia faltando o único conforto que possuía nos
contínuos sofrimentos. Ora, a quem recorreria se o perdesse de
todo?
Mas o compassivo Senhor dignou-se a consolar a sua serva e
sustentá-la em tão grande estado de abatimento de espírito:

“Filha, nas tuas dúvidas, aflições e adversidades tu te lembras de todos,


menos de mim; a todos procuras para ter alívio a assistência, em vez de
recorrer a mim”.

Com essas palavras o divino Mestre dava a entender que por mais
justa e reta que fosse aquela dedicação e confiança em seu
ministro, não se deveria abater se tivesse que perdê-lo sem ser por
sua culpa, devendo ficar satisfeita com ter sempre a Jesus.
Foram suficientes essas palavras, que Gema bem compreendeu,
para restituir-lhe a paz ao seu coração aflito, desapegá-la de todo
sentimento humano e induzi-la a entregar-se inteiramente a Deus.
E como em tudo regulava-se pelos princípios da virtude, embora
receasse que aquele bom prelado formasse uma opinião menos
favorável a seu respeito, não cessou de ter por ele a maior
solicitude, suplicando sempre a Jesus que o iluminasse e
consolasse como se deduz das cartas por ela escritas a ele e a
outras pessoas de sua íntima confiança. Até quando estava em
êxtase nos colóquios que fazia, como mostrarei depois, enquanto
desafogava com Deus o coração extenuado e traspassado de dor,
via-se muitas vezes, que a preocupava o pensamento do confessor.

Ó Jesus, ide consolar monsenhor que está tão triste! Uns julgam de um
modo e alguns de outro. Mas Vós estais mais satisfeito assim? Quando me
preferis? Agora que todos me chamam de louca ou antes, quando me
chamavam de santa? Agora, não é verdade?

Sabendo agora pelo seu divino Esposo que, depois da experiência


feita pelo médico, tentavam ainda uma segunda, que era a de dar a
outrem para ler o que ela tinha escrito pela obediência, eis com que
cândida simplicidade, estando em êxtase, volta o assunto:

Ó Jesus, querem mostrar os meus escritor também ao Dr. Boda? Não


aconteça isto! Ó Jesus, querem ridicularizar-vos! Se quiseram ler esses
escritos, fazei com que vejam o papel todo branco. Ide Jesus, a monsenhor e
tranquilizai-o, consolai-o!

A virtuosa jovem não se contentava somente com interceder por


ele; com os fatos também provou sempre o quanto lhe era dedicada.
Julgava-se algumas vezes abandonada, porque devido a sua
ausência ou inúmeras ocupações, ou para que fosse também
examinada por outros, mandava que se confessasse a diversos
sacerdotes desconhecidos, e entretanto ela não deixou nunca de se
confessar com ele até a morte, considerando-o sempre o seu
verdadeiro pai espiritual.
Quanto não temos de aprender à vista deste virtuoso proceder de
Gema, no meio de tantas provações!
Ah! É bem verdade o que disse Jesus a esta sua serva: “sofrendo,
aprende-se a amar”.
Entretanto, Deus dispôs que nesse mesmo mês de setembro de
1899, o Padre Caetano voltasse a Lucca e, por estar doente,
acabou ficando ali dois meses. Ouvindo o que tinha acontecido com
a visita do médico e as desanimadoras impressões do confessor,
ficou muito abalado e começou também a ter dúvidas e suspeitas.
Mas o benigníssimo Jesus quis fazer com ele como outrora com
São Tomé: “Põe aqui teu dedo, observa as minhas mãos, e
aproxima tua mão e não sejas incrédulo, mas fiel”.2 Ele viu mais uma
vez, observou, apalpou e reafirmou: “Aqui, na verdade, está o dedo
de Deus”.
Em seguida, escrevendo ao confessor, acrescentou que ele
também quis que o médico examinasse, ordenando que lavassem
por três ou quatro vezes as feridas, mas desta vez, não
desapareceram; detendo-se por momentos o fluxo do sangue, logo
recomeçou.
Desta forma, também o Padre Pedro Paulo, voltando quase
sempre a Lucca para atender aos deveres de seu cargo, pôde, nos
últimos meses de 1899 e nos anos de 1900 e 1901, observar
detalhadamente não só os estigmas, mas todos os fenômenos
maravilhosos operados por Deus em sua serva. E cada vez mais
convencido, quis deixar-nos um testemunho tão autorizado dos
prodígios da graça.
Depois de se ter referido aos estigmas, continua a falar deste
modo na coroação de espinhos:

Ao redor da cabeça, vi que apareciam diversas gotas de sangue,


principalmente sobre as frontes. Depois de uns vinte minutos, voltando a si a
jovem, levantando-se, desaparecera a palidez cadavérica com toda a
impressão de dor que a tornava semelhante ao Salvador na cruz, voltara-lhe
a cor natural; e mais ainda, como aconteceu quando cessou o suor
sanguíneo, apresentou-se o rosto de uma beleza angélica.
Em outra circunstância – escreveu em 1901 –, tendo ouvido dizer que
Gema sofria horrivelmente, e que frequentemente se renovavam nela a
flagelação de Nosso Senhor, a coroação de espinhos e as três horas de
agonia na cruz, eu quis assistir a estas cenas de dor, se Deus se dignasse a
conceder-me este favor, como da primeira vez.
Como de costume, Gema levanta-se da mesa, depois de ter comido pouco
ou quase nada, e retira-se para o seu quarto. Pensando que o Senhor me
quisesse atender, segui-a poucos momentos depois, com outro sacerdote, o
Padre Lourenço Agrimonti, e encontrei-a fora dos sentidos e traspassada por
atrocíssimas dores.
Mais de duas horas e meia, conservei-me naquele quarto, resolvido a não
me retirar, senão depois de ter visto com meus próprios olhos ao menos o
sangue que devia correr da cabeça na suposta coroação de espinhos.
A jovem sofria com um palpitar de coração tão terrível e violento que
levantava a coberta da cama, enquanto os braços estavam estendidos e
inertes.
O movimento era tão forte que fazia estremecer a cama, e confesso que à
tal vista, senti impressões ao mesmo tempo de terror e de devoção. Penso
que aquele sofrimento era mesmo o da flagelação.
Depois de uma hora mais ou menos, cessou a palpitação e então começou
a derramar sangue vivo da cabeça em tão grande abundância que ficaram
molhados os travesseiros e até os lençóis.
Era tanto o sangue na parte superior da fronte que, esfriando-se, formava
coalhos no rosto. Quando finalmente o sangue acabou de correr, a donzela
que antes fazia alguns movimentos com o corpo, desde aquele momento até
as três horas da manhã, ficou imóvel.
Seu semblante tomou o aspecto de verdadeiro cadáver, e ao vê-la naquele
estado de palidez, com o rosto coberto de sangue seco que saíra pelos
olhos, nariz, orelhas e até pela boca, parecia de fato morta, tanto mais que
nem se ouvia o coração palpitar, nem se sentia o pulso bater, e apenas se
podia perceber a respiração.
Depois de três longas horas passadas nesse estado, começou a recuperar
os sentidos. Tornei a vê-la pouco tempo depois, ágil e viva, com a cor natural
no rosto, e já pronta para ir à igreja receber a Sagrada Comunhão, como se
nada tivesse sofrido.
Referi ao confessor de Gema o que vi com meus olhos e toquei com
minhas mãos; falamos muito sobre estes fenômeno, assegurando-lhe que me
tinham causado a melhor impressão, e ele rogou-me então que continuasse a
examinar com atenção a sua penitente, dando-me todas as faculdades, até
para confessá-la.

Igualmente o Sr. Mateus Giannini, sua esposa D. Justina, seu filho


primogênito, e especialmente sua irmã, d. Cecília, da qual teremos
que falar de um modo especial oportunamente, todas pessoas
honradíssimas e de completa confiança, tiveram a facilidade de
examinar, tanto antes como depois da visita do médico, não uma só,
mas inúmeras vezes no correr de um ano, os estigmas e os outros
sinais da Paixão do Redentor a quem aprouve manifestar em sua
serva.
A essas vozes autorizadas, seja-me permitido unir a segurança
quem escreve este livro, e que também teve todo o ensejo de
verificar e comprovar essas maravilhas operadas em Gema pelo
Senhor.
O leitor me desculpará de ter reunido tudo o que se refere aos
estigmas e aos outros sinais da Paixão do Redentor reproduzidos
no corpo virginal da serva de Deus, a alguns fatos posteriores na
cronologia de Gema.
O complexo destas testemunhas exclui toda a contestação
possível quanto à realidade do prodigioso fenômeno. Temos, é
verdade, a infrutuosa visita do médico. Mas exatamente, naquele
dia, antes da visita, temos também a declaração de vários membros
da família Giannini; a predição milagrosa da futura visita e o
desaparecimento repentino de todas as cicatrizes, o que prova
evidentemente o caráter sobrenatural do fenômeno. Além disso,
Gema tendo conhecimento de tudo por aviso de Jesus, tinha dito
por sua ordem que seria inútil aquela visita; que admiração pois que
tivesse sido infrutuosa como Jesus a prevenira?
Além disso, admiremos neste ponto as disposições da divina
Providência. Gema não estava encerrada em convento de clausura,
vivia no mundo; várias vezes no dia tinha que sair de casa, quer
para ver a família Giannini, quer para ir a igreja assistir à missa,
receber a Sagrada Comunhão e fazer a visita ao Santíssimo
Sacramento; o resto do dia passava nessa casa e poucas pessoas,
da maior confiança da família Giannini, é que conheciam os fatos
extraordinários que se operavam nela, e guardavam tal segredo que
não era de todo conhecidos.
Em vez disso, o que sucederia se o médico ou outros estranhos
tivessem verificado os estigmas e as outras manifestações
extraordinárias? Quantos exames e investigações daí resultariam,
quantos curiosos a iriam observar na igreja, prestar-lhe atenção ao
entrar e sair de casa? Não se tornaria logo a humilde virgem o
assunto da conversação geral em Lucca, e também das zombarias
de muitos?
Deus, ocultando aos olhos do médico e de outros estranhos o
prodigioso fenômeno, humilhou a sua serva e conservou no segredo
o seu tesouro.3 Ademais, a prudência, a sabedoria, a doutrina, e a
consideração das pessoas que o tinham atestado, incluindo até
mesmo o Bispo, podiam bem suprir a falta do infrutífero exame do
médico.
A ciência não pode ter a pretensão de nos dar a explicação do
sobrenatural, mas somente afirmar-lhe os fatos. Ora, para que um
fato seja admitido, não é indispensável que seja observado pelos
sábios. Todos têm olhos para ver, mãos para tocar, e podem atestar
a sua existência. Como no nosso caso o fenômeno não era
constante, mas se apresentava em ocasiões determinadas, o
homem da ciência só se poderia limitar a dizer-nos que no momento
da sua inspeção nada se manifestou. Para admiti-lo deve bastar que
testemunhas digníssimas de ser acreditadas, atentem com toda a
segurança tê-lo visto, e por muitas vezes.
Quanto pois a suposição de que esse estado não passasse de
uma fantasia, produzida por uma pessoa histérica ou sugestionada
hipnoticamente, compreende-se que não era possível, ao menos
apresentar feridas e cortes profundos como os que verificaram em
Gema, e mais ainda vê-las de repente fechadas e cicatrizadas,
como falaremos minuciosamente mais à frente.
Devemos, pois, concluir com firmeza que todos estes fatos vêm de
Deus. O demônio poderia talvez chegar a operar o mesmo, mas
como conciliar a ilusão e o engano em uma alma tão rica de virtudes
e transbordando de amor celeste?
Para terminar este capítulo, apraz-nos copiar o seguinte, tirado do
relatório dado em 1901 pelo Padre Pedro Paulo; embora trate de
assuntos dos quais deveremos expressamente ocupar-nos nos
próximos capítulos. Referindo-se à Serva de Deus, escreve:

Aproveitando as ocasiões oportunas, conferenciei muitas vezes com Gema,


ouvi sua confissão geral em três vezes, tanto era o cuidado com que a quis
fazer, e pude convencer-me bem de que esta criatura conservava a inocência
batismal. Por vezes, contemplei-a fora de si, em estado de êxtase. Bastava
que se pusesse a rezar, ou lhe falassem em coisas espirituais, principalmente
sobre a Paixão de Nosso Senhor, para logo ficar extática. Então,
transfigurava-se com os olhos fixos e abertos para um determinado ponto e
com o corpo imóvel, embora se conservasse flexível.
Tornava-se insensível a qualquer ruído, e até as picadas de alfinetes e à luz
viva de uma vela que se lhe aproximasse dos olhos. Mas se tudo se
paralisava nela durante aquele tempo, era em extremo sensível às coisas
celestiais, e percebia-se exteriormente que ela expandia seu amor com Deus
em ardentes expressões: “Sim amo-Vos, meu Jesus; serei toda vossa,
sofrerei muito por Vós!”
Sua presença e atitude nesses momentos era verdadeiramente angélica. O
rosto resplandecia com tal beleza e majestade que extasiava.

Finalmente, depois de ter dito que o que mais o tinha


impressionado em Gema eram as suas grandes virtudes, sobre as
quais se baseava para asseverar com força que os fatos
extraordinários que se davam com ela não podiam vir senão de
Deus, termina seu relatório dando um testemunho brilhante:

Pude apreciar nela uma pureza angélica. Não só conserva intacta a


inocência batismal, como, tanto quanto pude avaliar, jamais cometeu uma
pequena falta com plena advertência em toda sua vida; sua humildade era
profundíssima.
Não tinha nenhuma estima de si mesma: desejava ser humilhada e
repreendida; e tendo recebido desprezos e mortificações sem conta, nunca
mostrou sentir por eles o menor desprazer; pelo contrário, parecia então mais
contente, conservando o sorriso nos lábios.
A obediência que praticava era singular, direi mesmo admirável. Jamais se
opôs, não direi a uma ordem, mas até a um sinal ou desejo que eu ou alguma
outra pessoa lhe manifestasse. Obedecia sempre com prontidão,
simplicidade e alegria em toda a extensão da palavra, qualquer que fosse a
imposição. E onde mais especialmente revelou a sua heroica obediência, foi
no exercício da oração.
O senhor a tinha elevado a um grau tão alto de contemplação que bastava
começar a rezar para logo ficar abstrata dos sentidos. Pois bem, seu
confessor ordinário julgou conveniente impor-lhe que, na oração, seguisse o
método comum dos principiantes; e a donzela não fez a menor resistência, e
empregou contínuos esforços para conseguir observar exatamente a ordem
recebida, embora se sentisse continuamente atraída a contemplar Deus e
aos seus divinos atributos. Este gênero de martírio durou quase dois anos.
A mortificação dos sentidos era contínua e severíssima. Alimentava-se tão
parcamente que parecia um milagre poder viver com tão pouco. E até se não
fora obrigada, pela obediência, daquela pequena porção se teria privado,
sentindo-se, como dizia, bem saciada com o Pão dos Anjos, com o qual
todas as manhãs se sustentava. Quanto ao mais, para ela tudo era igual,
tudo era bom.
No vestuário nunca teve a menor vaidade: viam-na sempre pouca atenta e
solícita nesse ponto. Jamais procurou uma roupa, um divertimento, um
prazer, como jamais ninguém a ouviu queixar-se do frio e do calor, parecendo
até insensível a tudo. O amor ao sofrimento era a sua nota característica.
De seus abençoados lábios jamais saiu um lamento, nem na doença
gravíssima que teve, nem nas mortificações e humilhações por que passou,
nem nos assaltos cruéis que lhe deram os demônios.
A lembrança contínua que tinha de Jesus Crucificado a estimulava a sofrer
sempre, nem queria outra coisa senão sofrer – e o que sofria lhe parecia
sempre pouco.
Esta criatura tinha-se oferecido ao Sagrado Coração de Jesus como vítima
pela conversão dos pobres pecadores, e para alcançar que voltassem para
Deus, aceitava de bom grado as mais cruéis dores.
Por este motivo, e mais ainda pelo seu ardente amor, desejava
continuamente sofrer com Jesus na cruz, viver sempre sobre a cruz e morrer
com Jesus na cruz, nas mais acerbas penas.
O Esposo divino satisfez-lhe plenamente tão sublime desejo durante toda a
vida, e até a hora da morte suportou sempre os mais cruéis martírios, tanto
na alma como no corpo.
Que direi também de sua união com Deus? Posso assegurar que era
contínua essa união. Até mesmo nas ocupações de maior distração, todos a
viam sempre recolhida e com o espírito e o coração absorto em Deus.
Devido a este habitual e profundo recolhimento, nunca se lhe ouvia a voz;
respondia laconicamente às perguntas que lhe faziam, e encerrava-se de
novo no seu silêncio. Vivia tão identificada com o Sumo Bem que parecia
antes uma criatura do Céu do que da Terra.
Eis em resumo, e assim termina o longo relatório, as virtudes em que se
exercitou sempre esta criatura – virtudes certamente raras, que revelam
claramente uma alma transbordando de amor de Deus.
Por esta razão estou firme em crer que era de Deus, tão amado e servido
por ela, que provinham aqueles extraordinários fenômenos que tanto temos
admirado.

P. PEDRO PAULO DA IMACULADA, P .

Que diremos pois, caro leitor, deste sublime panegírico feito por
uma pessoa tão autorizada?
Era Mons. Camillo Moreschini, antes Padre Pedro Paulo,
Passionista, conhecido e estimado na Itália pela sua doutrina, zelo e
prudência no governo, na direção das almas e no ministério
apostólico.
Por essas raras qualidades, depois de ter sido o Superior Geral de
toda a congregação dos Passionistas, o Sumo Pontífice Pio X lhe
confiou a visita apostólica de doze importantes dioceses, e acabou
elevando-o a sede arquiepiscopal de Camerino.
Ora, de um tal personagem quem não aceitará como
importantíssimo o testemunho acerca dos prodígios que se deram
com Gema?
Deus quis reerguer esta sua Serva do desprezo em que tinha
caído na opinião de diversas pessoas por causa dos estigmas. Para
esse fim, depois do Padre Caetano, que foi o primeiro a reconhecer
a ação divina, mandou o Padre Pedro Paulo que completou tão bela
obra.
Tão bom é o Senhor com os que O temem, e tão exatas as
palavras do salmo:

Lança-te nos braços de teu Senhor, e Ele tomará cuidado de ti, nutrindo-te
como faz a mãe com seu filhinho: “Jacta super Dominum curam tuam, et ipse
te enutriet”.4

1 “É, com efeito, coisa fácil aos olhos de Deus enriquecer repentinamente o pobre” –
Eclo ٢٣ ,١١.
2 Jo 20, 27.
3 Aqui, o Venerável Padre Germano apresenta o seu maior temor, que saído do mundo
privado de Gema, ela se tornasse um nova Louise Lateau, prejudicando a sua vida
espiritual. A discrição em torno de Santa Gema, e em especial dos estigmas, foi sempre
uma preocupação para ele – NC.
4 “Depõe no Senhor os teus cuidados, porque Ele será o teu sustentáculo” – Sl 55.
CAPÍTULO XI

NA CASA DO SR. GIANNINI:


POR DESÍGNIO DE DEUS, GEMA É RECEBIDA COMO FILHA
ADOTIVA
(JULHO-SETEMBRO DE 1899)

Vivia nessa ocasião, na cidade de Lucca, onde ainda reside, uma


dessas antigas famílias patriarcais, das quais as virtudes cristãs e o
temor de Deus formam o principal tesouro.
Era composta do chefe, da mãe, de uma irmã e de onze filhos.
Seu nome é tão caro a todos os seus concidadãos, quanto é grande
a estima que lhes consagram. É a família do Sr. Matheus Giannini.
Levados pela sua singular piedade e caridade, consideravam uma
honra hospedar em sua casa, na qualidade de benfeitores, os
pobres filhos de São Paulo da Cruz, que no exercício de seu
ministério apostólico frequentemente passavam naquela cidade. A
irmã acima mencionada, D. Cecília Giannini, é uma senhora
inteiramente dedicada à prática das boas obras. Não conhecia a
nossa Gema, a não ser de vista.
Falou-lhe a seu respeito, quando voltou a Lucca depois da missão
pregada em S. Martinho, o Padre Caetano do Menino Jesus, a
quem já mencionamos, e desejoso de revê-la conforme a promessa
que lhe tinha feito, pediu a essa senhora que a procurasse.
D. Cecília não deixou passar tão oportuna ocasião de conhecer
intimamente essa donzela; procurou-a e levou-a para a sua casa, e
logo compreendeu ter encontrado um tesouro, para cuja aquisição
faria o quanto pudesse. Gema, por seu lado, admirava-se, cheia de
reconhecimento, do amor que a excelente senhora lhe demonstrava;
apreciava sobremodo suas raras virtudes e sentia ter encontrado
nela uma nova e verdadeira mãe.
A ausência dos parentes, que viajavam naquele mês de agosto,
proporcionou o ensejo a D. Cecília de convidar a piedosa donzela
para que fosse passar algumas horas cada dia com ela. Todos, na
casa de Gema, acederam prontamente, pois bem sabiam a que
distinta pessoa a confiavam.
Em seguida, além do dia, instou para que ela ficasse também
durante a noite, com pretexto de precisar de sua companhia, o que
conseguiu ao menos de quando em quando. Gema sentia-se bem
ali, e de bom grado concordava, parecendo-lhe estar no seu próprio
lugar. Respirava um ar mais puro e a sua alma se desabafava,
gozando de tão piedosa companhia.
Este convite era-lhe tanto mais agradável porque em casa se
achava cada dia mais tolhida e incomodada. Via-se obrigada a tratar
de negócios que não se harmonizavam com o seu espírito, e falar
com diversas pessoas na ausência de seus irmãos, Heitor,1 que
tinha partido para a América, e o primogênito Guido, que estava no
serviço militar.
Ora, isto a afligia seriamente.
Por todos os meios procurava eximir-se dessas distrações,
conservando-se retirada no seu quarto e consagrando-se à oração e
ao trabalho, mas nem sempre o conseguia.
Aconteceu uma vez entre outras que, durante uma discussão na
sua presença, alguém proferia palavras irreverentes contra a Divina
Majestade. Gema sentiu tamanha dor que se cobriu de um suor de
sangue tão abundante, chegando a molhar o pavimento.
Meu Deus, como ocultar aquele sangue?
Já há algum tempo que as pessoas da casa tinham notado alguma
coisa singular nos modos de Gema; começaram a ficar
impressionados e extremamente curiosos, e perguntavam uns aos
outros: “Que quer dizer isto?”.
Vinham de fora também alguns ditos, que faziam aumentar as
desconfianças de todos, e principalmente da tia Carolina, a quem
pouco antes a menina tinha mostrado as mãos ensanguentadas em
consequência dos estigmas.
Ouçamos a propósito, o que lhe aconteceu, narrado por ela própria
ao seu confessor, depois do fenômeno do suor de sangue:

Monsenhor, o que uma de minhas tias me fez ontem à noite? Quando fui ter
com ela, veio toda encolerizada e me disse: “Esta noite não tens a tua irmã
para defender-te (era a Julia). Mostra-me donde é que saiu todo aquele
sangue, senão acabo com a tua vida à força de pancadas’. Eu me
conservava calada e ela com uma das mãos me segurava pelo pescoço, e
com a outra queria despir-me; mas não o conseguiu. Naquele momento
tocaram a campainha e ela me deixou. Mas não acabou aqui; quando fui me
deitar, voltou e disse que era hora de deixar aqueles fingimentos e que eu
tinha enganado a todos. “Olha, disse, se não me dizes de donde saiu aquele
sangue, não te deixarei mais sair de casa sozinha e não te mandarei mais em
nenhum lugar”. Imagine, ao ouvir aquelas palavras, pus-me a chorar e não
sabia que fazer. Finalmente, resolvi falar, e respondi-lhe assim: “São as
blasfêmias; ao ouvir blasfemar, vejo que Jesus sofre tanto e eu sofro com
Ele; meu coração comprime-se e sai aquele sangue”.

Não foi a única vez que Gema teve que sofrer em casa por não
poderem seus parentes compreender a ação maravilhosa do
Senhor. A outra tia, a boa D. Helena, adoentada como andava, não
podia sempre acompanhá-la à igreja, e D. Carolina não queria que
ela fosse só.
Para afligi-la ainda mais, sentia a curiosidade de algumas pessoas
da casa, que a espiavam continuamente quando estava no quarto:
pelas fechaduras procuravam ver alguma coisa. Outras vezes,
surpreendendo-a pelas mesmas gretas em êxtase, raciocinavam
entre si de diversos modos, e convidavam as amigas a virem ver a
Gema naquele estado.
À vista disso, a pobre donzela se queixava com o seu confessor e
com Nosso Senhor, que lhe tinha também ordenado que
conservasse aqueles fatos ocultos aos olhos dos profanos.
Nestas condições podemos avaliar o contentamento de Gema,
quando se apresentou uma ocasião favorável de se afastar dos
seus, e ir para uma habitação de santos, onde podia livremente
ocupar-se só com Deus, sem ser perturbada por ninguém.
Entretanto, a boa senhora D. Cecília, tendo assim ensejo de
admirar mais a ingênua simplicidade e a singularíssima modéstia da
nossa jovem, foi-se afeiçoando cada vez mais a ela. No princípio,
ficou também um pouco perplexa a respeito dos fenômenos
extraordinários que frequentemente se davam. E para compreendê-
los, observava-a continuamente, vigiando seus menores
movimentos. Gema, pelo seu lado naturalmente reservada e
modesta, esforçava-se o quanto podia para que não fossem
percebidos. Tão indigna como se considerava, receava dar
escândalo à sua benfeitora quando esta viesse a saber dos
inúmeros favores que Deus lhe concedia.
Mas de nada serviu a sua delicada solicitude: querendo o Senhor
que os dons da sua graça fossem conhecidos, assim, muitas vezes,
os segredos da piedosa donzela eram revelados. Eis com que
termos ela refere em uma carta ao confessor uma destas suas
desventuras, como costumava clamá-las:

Ontem, Jesus fez-me sofrer muito: todo o dia tive o suor de sangue; não
estava porém em casa e sim com D. Cecília Giannini. Jesus me recomenda
continuamente que não deixe perceber nada, senão Ele me castigará. Diz-me
sempre que me devo envergonhar de mostrar-me a qualquer pessoa, porque
minha alma está cheia de defeitos.

A piedosa senhora, sem parecer ficar muito impressionada, para


não amargurar mais ainda a sua hóspede, bendizia em seu coração
ao Senhor, e cada vez lhe consagrava mais amor e estima: “Viva
Jesus! – dizia – Temos um anjo em casa. Que farei? Como
corresponderei ao Senhor por tão grande graça?”.
Nesse ínterim, os dois padres Passionistas, Caetano e Pedro
Paulo, tendo que passar pela cidade de Lucca, aproveitaram a
ocasião para visitarem Gema e serem espectadores do maravilhoso
fenômeno dos estigmas, que todas as quintas e sextas-feiras,
repetiam-se do modo que já referi.
D. Cecília pediu-lhes explicações e conselhos, e eles, aprovando a
sua prudente reserva, exortaram-na a observar Gema com atenção
e informá-los oportunamente de tudo.
Então, voltaram do campo para a cidade os parentes de Gema e a
boa D. Cecília afligiu-se sumamente com o pensamento de ter que
separar-se da sua cara Gema, que deveria voltar para casa: “Oh!
Meu Deus, não o permitais!”.
Revestindo-se de coragem, apresentou-se ao irmão e à cunhada,
e lhes disse: “Deus entregou em minhas mãos este anjo que vedes
aqui. Ora, não poderia ela ficar sempre conosco? Temos onze filhos
em casa, que quer dizer mais um?”.
Obtendo o consentimento, correu a casa das tias de Gema, e
pediu-lhes que concordassem em ceder-lhe a querida sobrinha,
para adotá-la inteiramente como sua filha. Frente a tal proposta,
entristeceram-se muito àquelas boas senhoras, parecendo-lhes,
muito penoso privarem-se daquele único conforto que ainda lhes
restava no meio de tantas amarguras. Não obstante, refletindo sobre
a grande penúria da casa, no estado tão singular da jovem à vista
da sua excessiva piedade, recolhimento e vocação religiosa, para a
qual havia muito tempo percebiam que estava toda inclinada,
permitiram primeiramente que Gema, por alguns meses, dividisse
seu tempo conforme lhe agradasse, ora, em casa, ora com a família
Giannini.
Gema aproveitou-se bem desta licença para satisfazer os seus
santos fins, principalmente nas quintas e sextas-feiras, ocultando à
família os fatos extraordinários que se manifestavam.
Ao final no mês de setembro de 1900, depois de usarem de vários
subterfúgios, deram o desejado consentimento, e Gema mudou-se
definitivamente para casa do Sr. Giannini.
Não vos parece, leitor, um verdadeiro milagre da Divina
Providência? Porque caso se tratasse de uma senhora viúva, que
vivesse só, não são raros nas famílias cristãs esses exemplos de
boas almas que por espírito de caridade adotam órfãs
abandonadas. Mas numa família numerosa, com onze filhos, todos
ainda menores, numa casa relativamente pequena, o bom
pensamento daquela senhora devia parecer não só inconsiderado e
imprudente, mas até mesmo irrealizável. Ainda mais sabendo que
aquela jovem que iam tomar como filha, tinha perdido a mãe
tuberculosa?
Por qual inexplicável facilidade permitiriam em sua casa esse
grande perigo, pondo uma estranha nessas condições para conviver
com seus filhos de saúde tão florescente?
Mas Deus assim o queria, e “quando Deus quer não há prudência
nem conselho, que lhe possa pôr obstáculo”, diz o Apóstolo.2
De fato, a primeira proposta que lhe fora feita, o pai da família
mostrou-se satisfeitíssimo, e assim como ele a mãe, todos os filhos,
o piedoso sacerdote, D. Lourenço Agrimonti, que era considerado
como segundo pai naquela casa; e até os criados: todos
concordaram com prazer.
“Gema, sejas bem-vinda, serás a décima-primeira filha que o
Senhor nos dá”, disseram aqueles extremosos pais, “todos honrem
a esta nova filha; os criados a respeitem e nada lhe falte”.
“Serás a sétima de nossas irmãs”, diziam as meninas, “nós a
amaremos como tal”. O mesmo diziam os irmãos mais crescidos, de
modo que aquele dia parecia ser de festa para toda a bendita
família.
E era suficiente ver aquela jovem, com pouco mais de 20 anos,
para sentir-se encantado. O leitor já a conhece um pouco: humilde,
dócil, obsequiosa, isenta de toda a leviandade ou capricho, e e
também tão piedosa, tão perfeita em tudo! Durante quase quatro
anos que a tiveram em casa, nunca houve um problema, uma briga,
uma discussão, nem com os criados nem com os filhos.
Entretanto, quem não sabe quanto é difícil a meninos de diversas
idades, sexo e índoles, não terem uma queixa sequer a fazer contra
uma pessoa estranha que entra em sua casa, não para servi-los
como criada, mas para assentar-se com eles na mesma mesa, e
ser-lhes igual em tudo?
Apresento, porém fatos e bem verídicos, pois sendo tão recentes
podem ser examinados e verificados por qualquer pessoa. “Posso
jurar”, atesta aquela mãe de família, “que durante os três anos e oito
meses que Gema esteve conosco, nunca houve o menor incidente
na família por sua causa, assim como jamais descobri nela o menor
defeito; repito: nenhum incidente, nenhum defeito por mais leve que
fosse”. Do mesmo modo, dão testemunho todos os outros, como
citaremos pouco a pouco.
Todavia, a pessoa que mais se afeiçoou à recém-chegada, desde
os primeiros dias que esta começou a frequentar a casa como
visitante, isto é, em julho de 1889, foi a primogênita das filhas,
chamada Aninha.3
Aquelas duas almas mal se viram, logo se compreenderam e
estreitaram uma sincera e constante amizade que jamais diminuiu.
O leitor pode julgar isso por esta carta que Gema escreveu quando
Aninha saiu de casa para ir com a família às águas de Viareggio.4

Minha caríssima Aninha,


Tomando a pena para escrever-lhe, vem-me à lembrança as nossas últimas
despedidas, as promessas recíprocas que fizemos, justamente no momento
da separação. Como as poderemos esquecer, ao menos, como poderei eu
esquecê-las? Não, ser-me-ia impossível.
Somente tive o prazer de falar-lhe por poucos dias, mas aquelas breves
palavras, e todos os colóquios sobre Jesus, marcaram em meu coração tão
viva impressão, e inspirou-me (permita que lho diga) tão grande afeto para
com a sua pessoa, que não sei como externá-lo.
Muito tarde nos conhecemos ou muito tarde começamos a ser amigas Mas
por ser mesmo tarde, dediquemo-nos a amar mais a Jesus, a expandir
nossos mais ternos afetos no seu coração.
Quisera que meu coração não palpitasse, não vivesse, não suspirasse,
senão por Jesus, quisera que minha língua não soubesse proferir senão o
nome de Jesus, que meus olhos não vissem nada mais senão a Jesus, que
minha pena não soubesse escrever senão a respeito de Jesus, e que meus
pensamentos não se dirigissem senão para Jesus.
Muitas vezes procuro refletir se há na Terra um objeto ao menos para o
qual eu pudesse inclinar o meu amor; mas não acho nenhum nem na Terra,
nem no Céu, senão o meu amado Jesus.
Entretanto, quantas vezes me tenho desviado entre as enfadonhas
dissipações da Terra; e quantos são os que se perdem nas vaidades do
mundo!
Como são loucos! Parece impossível! Se pensassem em Jesus, Jesus lhes
mudaria o coração, os afetos, os sentimentos e os suspiros; e se gozassem
por um só instante da consolação que se sente em estar com Jesus, digo que
não se separariam jamais dele.
Chegaremos nós a amar a Jesus verdadeiramente? Sobretudo eu que
continuamente O ofendo, e tenho ainda a coragem de acrescentar novos
espinhos naquela coroa cruel que lhe circunda o coração?
Pobre Jesus! Mas sabe de que modo Ele se vinga de minhas infidelidades?
Faz-me ver muitas vezes as suas chagas, suas mãos jorrando o sangue num
incêndio de amor, com os braços abertos para nos estreitar e diz-me que é
vítima perfeita do seu grande amor por nós.
Peço sempre a Jesus que faça chegar depressa aquele momento que tanto
desejo de ir para o convento, porque sinto que no mundo não estou bem e
ele não me pode fazer feliz de nenhum modo.
Peço que não se esqueça de mim em suas orações aos pés de Jesus
Crucificado; o mesmo farei eu, o quanto puder; mas não espere nada de
minhas orações que são muito fracas.
Desejo que esta carta a encontre de perfeita saúde, como espero: e se não
achar dificuldade, estimarei que cumprimente sua boa mãe por mim, e lhe
peça que se lembre algumas vezes de mim junto a Jesus.
Perdoe-me a letra tão feia, e a má redação desta carta, porque não sei
fazer nada.
Rezemos, invoquemos juntas a Jesus que nos dê a força de viver só para
amá-Lo, que não se viva senão para amá-Lo, e que nos dê a graça de morrer
expirando em seu Coração num transporte de ardente amor.
Com muito particular estima a cumprimento; e peça muito, muito a Jesus
pela pobre

1 Seu irmão, Heitor Galgani, veio para o Brasil. Residiu em Araraquara, no estado de
São Paulo. Sem fé, nem mesmo casou-se na Igreja. Recebeu através de um amigo uma
estampa de sua irmã, que como recordação manteve como amor fraternal. Em 1923, um
sacerdote redendorista, Padre Zartman, devoto de Santa Gema, foi chamado para vê-lo na
sua enfermidade, e espantou-se com um descrente irmão de uma santa. Contou-lhe as
maravilhas da vida da sua irmã, que ele desconhecia, e retornou para Deus. Falecendo na
Paz do Senhor em 1927. Fernando Piélagos, Santa Gema Galgani, São Paulo: Paulinas,
٢٠٠٤; p.١٠٦-١٠٥ – NC.
2 Não parece ser oriunda do Apóstolo, mas de Prov. 21, 30: “non est sapientia non est
prudentia non est consilium contra Dominum” – NC.
3 “Anneta” em italiano: era a primogênita da família Giannini. Casada com Adolfo Perna,
teve a honra participar da canonização de sua amiga na Basílica de São Pedro, a 2 de
maio de 1940 – NC.
4 Era uma famosa cidade de veraneio; ainda hoje pertencente à Província de Lucca –
NC.
CAPÍTULO XII

AINDA NA CASA DA FAMÍLIA GIANNINI:


COISAS EXTRAORDINÁRIAS E EDIFICANTES (1899-1903)

Apreciemos agora a Serva de Deus no seu novo gênero de vida,


se é que novo se possa chamar.
Devido à casa ser pequena, fizeram-na dormir ora no quarto de
uma das meninas, ora com sua mãe adotiva – que para evitar
confusão chamaremos de tia.
Gema com inefável ternura a chamava: “minha mamãe”. Todo o
enxoval que levara consistia em poucas peças de roupa branca,
dois vestidos e um chapéu; mais nada queria possuir, como melhor
diremos quando falarmos do seu desapego. Para ela, Jesus era
suficiente, e Jesus ocupava a maior parte do seu dia.
Pela manhã, não se fazia esperar na cama; percebia que a tia
estava acordada e, ela que pouco dormia, levantava-se
imediatamente e em menos de cinco minutos estava vestida,
lavada, penteada e com o chapéu na cabeça, pronta para sair e ir à
igreja.
Naquelas horas não se ocupava de nenhum trabalho, por mais
urgentes que pudessem haver na casa, e evitava até mesmo falar.
Queria que o começo do dia fosse para Jesus; assim, de
combinação com a tia que pensava do mesmo modo, levantava-se
antes do amanhecer, quando ainda todos dormiam, e por isso
mesmo não podiam ter necessidade de algum auxílio particular.
Dirigiam-se a uma das igrejas mais próximas, quase sempre a
chamada da Rosa,1 defronte de sua residência, e aí ouviam sempre
duas missas; uma imprescindível como preparação para a
Comunhão, e outra em ação de graças.
Certamente, apenas uma hora de oração era pouco para a
fervorosa virgem, que segundo o impulso de seu coração, teria
ficado entretendo-se com seu Deus o dia inteiro, mas nunca se
mostrou contrariada em ser chamada tão depressa, e ao primeiro
sinal que lhe davam para se retirar, e embora estivesse em êxtase
(o que acontecia quase sempre), voltava a si e tranquilamente
acompanhava a tia.
Chegando em casa, ocupava-se logo no cuidado das crianças
juntamente com as filhas mais velhas e as criadas. Vestia-as e
ensinava-lhes a rezar. Depois, para aproveitar o tempo, entretia-se
com qualquer trabalho de agulha que pudesse fazer andando, indo
de um lado para outro, onde fosse necessária a sua presença.
Gema tinha aprendido a bordar muito bem no colégio, e outros
trabalhos delicados que são considerados como de luxo. Todavia,
nunca a eles se aplicou, parecendo-lhe que era mais uma vaidade e
perda de tempo. Preferia antes remendar, fazer meias e outros
serviços de pouca aparência, mas de maior paciência – e bem
necessários em uma família numerosa como era aquela.
Prestava-se também a fazer os serviços mais baixos da casa,
embora estivesse acostumada desde menina a ser servida. Tirava
água do poço, ajudava a criada a arrumar os quartos, a lavar a
louça e também a cozinheira no preparo da comida.
Quando havia algum doente, queria e tomava a si todo o
tratamento, cuidando sozinha de tudo o que fosse preciso, em todo
o tempo da enfermidade. Certa vez, uma das criadas adoeceu com
repugnantes abscessos nas pernas. Gema dedicou-se toda a ela, e
não fazendo nesse ponto distinção, pôs-se a tratá-la como se ela
mesma fosse a serva de todos.
Limpava-lhe o quarto, fazia-lhe a cama, lavava e cuidava daquelas
chagas asquerosas, ajoelhada diante da doente. No entanto, a
enferma era de gênio áspero e colérico; em vez de lhe agradecer, a
desprezava e a enchia de afrontas e injúrias, chegando a lhe dizer
que Gema a aborrecia e ainda que não queria que se aproximasse
mais da sua cama. Não obstante, a piedosa donzela não se
ressentia, e redobrava de solicitude, procurando novos meios para
contentar a doente. E se tivessem permitido, ela teria empregado
até o dia inteiro nesses trabalhos sem descansar. Porém, sua mãe
adotiva não estava de acordo. Gema não tinha vindo morar na sua
casa para trabalhar, e sim para dar consolação e bom exemplo a
todos com a sua santa companhia. Então, depois de a deixar
atender aos serviços por algum tempo, queria que os suspendesse
e dizia: “Agora vou gozar da presença da minha querida Gema”:
levava-a para a sala de costura, ou para a varanda, onde se
entretinham com algum trabalho de agulha. Estando a sós, falavam
de Jesus e em assuntos espirituais. Faziam reflexões sobre a
Sagrada Comunhão que tinham recebido pela manhã, sobre o
mistério ou festa do dia, o desejo do Céu.
Era nessas ocasiões que a inteligente senhora armava inocentes
ciladas à simplicidade da piedosa menina; pretendia lhe apanhar os
segredos da alma. Depois de a ter animado bem na conversação,
fazia-lhe perguntas com tanta habilidade que Gema lhe comunicava
as luzes que tinha recebido na Sagrada Eucaristia, as resoluções
então tomadas, tudo o que acontecia durante o êxtase e assim por
diante. Eu mesmo havia aconselhado aquela senhora a fazer isso. E
foi assim, por esse meio, que aprouve ao Senhor nos fazer
conhecer inúmeras coisas extraordinárias e edificantes, que sem
estes santos estratagemas, provavelmente teriam ficado ignoradas.
A conversação parecia sempre nova, embora começasse pela
manhã bem cedo e se estendia até tarde da noite, ocupando todo o
tempo livre de seus trabalhos, sem causar o menor tédio ou
cansaço.
Quando, porém, depois desses colóquios tão agradáveis, a boa
senhora tinha que deixá-la para atender a qualquer dever, Gema
aproveitava o momento oportuno para tranquilamente afastar-se,
retirando-se para o seu quarto ou para o oratório doméstico, a fim
de continuar ali o seu trabalho de mão e, ao mesmo tempo, entreter-
se com Deus.
Assim estas duas belas almas passavam os dias. Parece-me ver,
neste fato, como que um milagre, quando penso no árduo trabalho
que, pelos cuidados domésticos, pesava sobre a piedosa senhora.
Vivia atarefada desde a manhã até à noite, sem poder descansar;
contudo, sem faltar a nenhuma de suas obrigações, achava meios
de passar longas horas com sua querida filha adotiva.
“Descanso na companhia de Gema”, costumava dizer. “Basta vê-la
a meu lado, para sentir-me aliviada, não me afligindo mais o peso
dos trabalhos, nem a amargura dos desprazeres”. Em seguida
acrescentava: “Que contas terei que dar a Deus se não souber
apreciar o dom que Ele me concedeu na posse desta angélica
criatura, e não tirar proveito para minha alma”.
Assim pensavam todas as pessoas de casa desde o dia em que
Gema entrou, até o último, em que Deus a levou. A mãe, Dona
Justina,2 de quem já falamos, assim se exprime numa carta:

Quanto à nossa Gema, digo-lhe somente que cada vez acho nela coisas
mais extraordinárias, e quando a contemplo, parece que vejo em seu
semblante uma pessoa que não é deste mundo. Que felicidade a de conviver
com este anjo! Um mundo de palavras não seria suficiente para descrever o
seu estado. É um verdadeiro anjo encarnado, isto exprime tudo!

Aquele venerando sacerdote,3 hóspede dessa casa, do qual há


pouco fiz menção, assim depõe por sua vez:

Conhecer e admirar a esta interessante jovem ornada de todas as virtudes


e enriquecida de dons de Deus, foi para mim um só ato.
Senti-me arrebatado contemplando nela tão rara ingenuidade, que parecia
em desacordo com a sua penetração e inteligência acima do comum.
Possuído de admiração, eu a observava continuamente e em todo o tempo
em que esteve em nossa casa, não lhe descobri o menor defeito, pelo
contrário, tive inúmeras ocasiões de apreciar não só a escrupulosa exatidão
no cumprimento de seus deveres, como a abnegação da vontade e a prática
de todas as virtudes que exercia com tanta assiduidade e igualdade de
espírito, que pareciam ser-lhe inteiramente naturais.
Edificava-me sobremodo o seu recolhimento e união com Deus. Ainda
mesmo durante os trabalhos domésticos que exigiam mais atenção, estava
sempre como absorta em Deus, em contínua meditação, e esta concentração
não lhe impedia cumprir com perfeição os seus deveres. Tão grande fervor
transparecia no semblante e especialmente nos olhos, que conservava
sempre modestamente baixos, e eu confesso que, quando acaso encontrava,
o seu olhar ficava tão impressionado que não podia fitá-la.

Conclui o seu depoimento com os seguintes termos:

Que beneficio espiritual recebi em ter convivido com esta donzela


privilegiada, só Deus o sabe! Posso assegurar que o conforto que daí proveio
a meu coração é inexprimível, pois sinto ainda, e sentirei sempre, o doce
influxo das suas maneiras angélicas e edificantes, que se tornaram mais
patentes para mim por ocasião de uma enfermidade que sofri. Ficava
maravilhado de sua vigilância e solicitude, dos seus cuidados que pareciam
maternais.

Do mesmo modo se exprime também outro digníssimo sacerdote,


igualmente amigo e frequentador daquela família. Não desagradara
o leitor que do seu testemunho eu copie algumas frases:

A modéstia e ingênua simplicidade que se liam em seu semblante fizeram-


me ótima impressão. Tendo tido ocasiões de vê-la de perto, nunca notei nela
a menor imperfeição. Quando tinha que falar com alguém, não se mostrava
acanhada, retraída e incivil, mas apresentava-se com a natural afabilidade e
gentileza em que se revelam a beleza da alma inocente. Não fixava o olhar
no rosto de quem lhe falava, mas dirigia-o sempre para outro lugar, de modo
que tinha em si qualquer coisa de singular. Eram poucas as suas palavras,
respondendo somente às perguntas que lhe faziam. Nunca a ouvi falar de si
e dos assuntos que a interessavam pessoalmente, e quando lhe pediam
notícias de sua tão delicada saúde, eram tão medidas as palavras, que
pareciam custosas de proferir. Que ela possuísse uma bela alma, consciência
delicadíssima e cheia de amor de Deus, não era novidade para mim, mas
não imaginava que estivesse tão adiantada na santidade.

Gema tomava parte na mesa comum, porém, mais por


condescendência, devemos dizer, do que por outro motivo.
Alimentava-se muito pouco. E depois de ter tomado algumas poucas
colheres de sopa, levantava-se sob qualquer pretexto e ia à cozinha;
voltava pouco depois para fazer o mesmo com os outros pratos, de
modo que terminava a refeição quase que em jejum, e retirava-se
para o seu quarto, deixando a família entretida, como é de costume,
conversando na mesa do jantar.
Durante o dia nunca procurava nem aceitava alimento algum, de
qualquer gênero que fosse, por mais que lho oferecessem.
Quanto aos passeios, todos já sabiam como lhe desagradavam, e
assim não a constrangiam com convites. Em vez dessa distração, à
tarde ia sempre à igreja assistir à benção do Santíssimo
Sacramento, muito frequente na devota cidade de Lucca. Ali, sim,
demorava-se o quanto podia.
Sua modéstia era tal que não parecia estar em casa. Ninguém a
ouvia falar nem rir. Quando andava, não fazia qualquer movimento
que causasse o menor dos barulhos, apesar do seu gênio vivo e
animado, ativo e decidido.
Quando via entrar alguma visita, afastava-se imediatamente, quer
para deixar os outros a seu gosto, quer para não se distrair em
conversações que não a interessavam.
Neste ponto foi sempre tão atenta e escrupulosa, que depois de
quase quatro anos, não conhecia quase ninguém dentre tantas
pessoas que frequentavam aquela casa – e nada sabia do que ia
acontecendo, porque ainda quando ouvia alguma conversa, não
prestava a menor atenção. A tanto pode chegar um espírito bem
preparado que só tem a virtude como regra, e a Deus por fim.
Também é preciso dizer que Gema encontrou naquela família
verdadeiramente cristã um bom lugar para exercitar a sua caridade
para com os pobres – que já a vimos tão solícita no tempo em que a
sua própria casa era abastada.
Estava sempre a pedir à tia que lhe deixasse separar tudo que
restava na cozinha para socorrer os pobres e os necessitados.
Todas as vezes que ouvia tocar a campainha da porta, ela sempre
pensava que seria um pobre, e se não iam logo abrir, ela pedia
licença para ir ela própria; e para isso voava! O interessante é que,
de fato, a maioria das vezes era mesmo um pobre.
Então, a boa Gema o mandava entrar, contente como se tivesse
achado um tesouro; acomodava-o no pátio e ia buscar os melhores
bocados, que com a maior amabilidade lhe levava. Enquanto ele
comia, ela se sentava a seu lado e se punha a catequizá-lo:

Ouviu a santa missa esta manhã? Há quanto tempo não recebe os


Sacramentos? Faz sempre alguma oração de manhã e à noite? Pensa
algumas vezes no que Jesus sofreu por nós?

Por meio destas e outras perguntas semelhantes, procurava lhe


inspirar sentimentos de fé, piedade e resignação, e assim
confortado, física e moralmente, despedia-se contente.
A tia, tendo conhecimento desses atos piedosos de Gema,
gostava de espreitá-la por uma veneziana, e sentia verdadeiramente
grande satisfação – e dava graças ao Senhor – em ver aquela pura
menina com o semblante animado, cheia de zelo e caridade.
Uma vez surpreendida numa dessas ocasiões, exclamou:

Não sou eu também pobre? Jesus me tirou tudo, e entretanto não me deixa
faltar coisa alguma; pelo contrário, sou muito bem tratada! Mas e os outros
pobres? Devem sofrer todas as necessidades?

Em outra ocasião, falando do mesmo assunto. Possuída da mais


profunda humildade, disse:

Penso que o que me fazem, devo retribuir do mesmo modo a qualquer


pobre encontrado no meio da estrada, pois de outro modo não ganharia
nada.

A propósito, devemos aqui recordar quão grande era a gratidão da


nossa Gema por aqueles amáveis benfeitores. Simples e alheia a
cumprimentos, ela não sabia-se expressar por meio de palavras,
mas lia-se no seu rosto o que tinha no coração.

Meu Deus – dizia a si mesma – que farei para corresponder a tantos


favores? Eu não lhes sei dizer um obrigado; sou tão tímida e ignorante!
Encarregai-vos disto, ó meu Deus, fazei que prosperem, recompensai
centuplicadamente os seus benefícios. Se tiverem que sofrer algum mal,
fazei que venha antes sobre mim.

Depois, dirigindo-se a uma ou outra pessoa, com a voz repassada


de afeto, dizia:

Não vos canseis de ter que exercitar a paciência comigo. Ocupar-me-ei de


vós com Jesus. Quando eu estiver com Ele, pedirei sempre por vós.

Por esta última frase é fácil compreender como a santa virgem, por
mais estimada que se visse, e tratada com o maior carinho e
atenções, sentia claramente a humilhação da sua posição, e de
certo modo se envergonhava de si mesma. Porém, resignada como
era à vontade de Deus, conservava-se calma, esperando que Ele
dispusesse dela e de tudo o que lhe dizia respeito, conforme o seu
beneplácito. E soube sempre dissimular tão bem, que jamais
alguém percebeu a pena que, por esse motivo, pesava sobre o seu
coração.

Concentro-me em mim mesma – escrevia a seu diretor – meu coração


possui a Deus, e possuindo-O, tenho forças para sorrir no meio de tantas
lágrimas. Sim, posso ser feliz, até mesmo entre tantos pesares.

As contínuas orações da inocente donzela por seus benfeitores


tocavam o coração de Deus e faziam com que derramasse sobre
eles copiosas bênçãos. Ela própria me escreveu:

Ó Jesus, ó meu Bom Jesus: se soubesse quanto os têm protegido! Ele os


abençoa a cada momento e os livra de tantas desgraças!

Tendo adoecido gravemente a mãe da família com terríveis dores


que levaram os médicos a fazer o mais desanimador prognóstico,
Gema se penalizou tanto que pediu a Deus que lhe desse aquelas
dores em seu lugar; e Deus a atendeu. Eis em que termos ela me
comunicou este fato:

As dores que o Senhor dera a mãe dos meninos, eu as tomei sobre mim, e
posso dizer-lhe que são dores atrozes. Padre, nem sei mesmo o que será de
mim.

Na mesma hora aquela senhora sarou, ficando a querida Gema


sofrendo por longos meses um cruciante martírio, que a reduziu
quase ao extremo.
Deus, na sua impenetrável sabedoria, ia realizar seus santos
intuitos sobre esta alma privilegiada. Queria fazê-la passar por
caminhos extraordinários e glorificar-se nela de um modo singular,
não só interiormente, mas também exteriormente, com sinais e
demonstrações bem sensíveis.
No correr dos quatro anos que ela morou com aquela piedosa
família, desenvolveram-se todos aqueles fenômenos maravilhosos,
que já notamos nela. Ora, se Gema não tivesse mudado para a
cada dos Gianini, e essas manifestações se dessem na casa de
seus parentes, quanto mais não teriam sido incômodas, não
havendo ali quem se pudesse ocupar com ela, dirigi-la, ocultá-la aos
olhos dos profanos?
A própria jovem compreendia isso tão bem que estremecia só com
o pensamento de ter de voltar para casa por um dia que fosse,
enquanto que naquele meio em que Deus a havia colocado, achava-
se ainda melhor do que num convento. Lá não havia visitas
mundanas, nem folguedos e dissipações; todos, desde o primeiro
até o último, eram pessoas piedosíssimas; a senhora, que lhe fazia
às vezes de mãe, muito prática da vida espiritual, podia
compreender um pouco os segredos do seu espírito e ser-lhe do
mais poderoso auxílio. Prudente como era, sabia bem como
proceder para evitar qualquer inconveniente e reflexões no povo,
sempre curioso quando se trata de fenômenos sobrenaturais. E ela
conseguiu o que desejava. No meio de uma família numerosa que
se dedicava ao comércio, Gema pôde passar desapercebida, e os
dons com que o Céu a enriqueceu, só foram confiados aos
confessores e diretores.
Tão misericordioso é o Senhor no exercício da sua Providência!
Terminando o presente capítulo, a vós me dirijo, ó benemérita
família que recebestes em vosso seio a nossa querida Gema; com o
coração comovido eu vos agradeço em nome de Deus, a quem
honrastes, beneficiando a sua fiel serva.

1 Igreja de Santa Maria da Rosa, da Rua da Rosa, em Lucca – NC.


2 Justina Giannini, esposa do senhor Mateus, mãe da numerosa família onde foi acolhida
Santa Gema. O Padre Inácio de Santa Teresa, já citado, assim dizia: “Esta família é um
santuário, a mãe o altar diante do qual me ajoelharei com devoção”. Maria Madalena
Marcucci, Un´Amica di Santa Gema, Lucca: Sorelle di Santa Gema, 2001, p. 34 – NC.
3 Trata-se do supracitado D. Lourenço Agrimonti – NC.
CAPÍTULO XIII

PADRES PASISONISTAS:
GEMA E O SEU NOVO DIRETOR ESPIRITUAL (1900-1903)

Querendo Deus consolar a sua serva, e dar-lhe um auxílio na


grande necessidade em que se achava depois da aparição dos
estigmas, fez-lhe conhecer os Religiosos Passionistas;
primeiramente o Padre Caetano e em seguida o Padre Pedro Paulo,
depois o Padre Inácio de Santa Teresa, o Padre Francisco do
Coração de Jesus, o Padre Lucas de S. José e alguns outros.
Desde a primeira vez que Gema os viu, Jesus, com palavras bem
claras, fez-lhe compreender que um dia um padre daquele Instituto
seria o seu diretor.
Mas, se até aqui todos eles lhe tinham sido de grande conforto em
sua vida espiritual, nenhum deles devia ser o que Deus lhe
destinara; assim, apenas cumprida a sua missão, retiravam-se
satisfeitos e consolados em ter admirado, naquela criatura
extraordinária, as maravilhas de Deus.
O apóstolo São Paulo diz que os juízos de Deus são diferente dos
juízos dos homens, e, às vezes, são inteiramente opostos.
Para realizar seus mais sublimes fins, compraz-se em escolher o
que no mundo há de mais vil e abjeto, para que toda a honra e
glória do bem operado seja só d’Ele: “Ignobilia mundi et
contemptibilia elegit Deus, et ea quae non sunt, ut non glorietur
omnis caro in conspectu ejus”.1
Ora, de tal gênero devia ser o diretor de quem Gema nunca tinha
ouvido pronunciar o nome, nem ouvido dizer que existisse; mas
conhecia-o pelo seu caráter, pela idade e até pelo semblante.
Sua residência era em Roma, e ela, tendo uma inspiração de
Deus, o escolhera para seu diretor; e impelida pela grande
confiança, que já seu coração lhe consagrava, escreveu-lhe a
seguinte carta no dia 21 de janeiro de 1900:

Reverendíssimo Senhor Padre,


Há muito tempo que desejo ardentemente ver a Vossa Reverendíssima e
escrever-vos.
Por vezes, perguntei ao meu confessor se me dava esta licença, mas
respondia-me sempre que não.
No entanto, no último sábado, renovei o pedido e ele permitiu, com que
muito me alegrei: mas, no momento de escrever, apodera-se de mim um
certo temor: sabeis por quê?
Devo escrever-vos a respeito de assuntos tão extraordinários que Vossa
Reverendíssima se admirará.
Digo-vos com franqueza, minha cabeça é um pouco louca, e julga ver e
sentir coisas impossíveis, porque Jesus jamais falou ou apareceu a outras
almas tão más quanto a minha.

E depois de contar de que modo o Senhor lhe indicou, numa visão,


qual seria o seu novo diretor, passou a dar-lhe minuciosas contas de
tudo o que lhe tinha acontecido naqueles dois anos, isto é, da grave
doença que sofrera, da cura maravilhosa do bem-aventurado
Gabriel, da sua vocação ao estado religioso, do conhecimento que
fizera com os primeiros Padres Passionistas. Também lhe falou a
respeito da fundação do convento das freiras daquela congregação,
que mais tarde se faria em Lucca, descrevendo as mais minuciosas
circunstâncias, como se as tivesse presentes aos olhos. Sobre este
ponto, em ocasião oportuna, mostrarei como foram exatas às suas
previdências.
A sua carta tem cerca de dez páginas e termina com suas
costumadas palavras: “Peço-vos que me deis vossa benção, me
ajudeis e rezeis pela pobre Gema”.
Pouco tempo depois, escreveu outra de seis; eis um trecho:

Ontem à noite, achando-me rezando diante de Jesus Sacramentado, ouvi-


me chamar; parece-me que foi Jesus. (Rev. Padre, antes de continuar a ler,
peço-lhe por sua caridade que não creia em nada disto, escrevo só para
obedecer; só por mim, eu não lhe diria nem uma palavra). Ele me disse:
“Filha, escreve também ao padre, que teu confessor de bom grado se
entenderá com ele. Faze assim que este é o meu desejo”. Mas Jesus, eu
compreendo, Vós quereis que o padre saiba de tudo a meu respeito? Queria
continuar, mas parece-me que Jesus (ou a minha imaginação) não me deixou
acabar de falar e me disse: “Esta é a minha vontade: daqui em diante que o
confessor comunique tudo ao diretor”.
Era essa exatamente a verdade.
Aquele prudente prelado, sentindo a mesma inspiração, procurava
esse auxílio, embora não o conhecesse de todo.
A direção de tão amada filha o interessava muito, pois ninguém
melhor do que ele podia apreciar os merecimentos daquela alma.
Por esse motivo, mandava que Gema se dirigisse ora a um ora a
outro confessor, como já dissemos e consultava com todos os que o
pudessem aconselhar.
O fenômeno dos estigmas, do suor de sangue e dos êxtases que
tinham se tornado tão frequentes, acabaram por lhe causar muita
apreensão; e ainda que os Padres Caetano e Pedro Paulo o
tranquilizassem, sentia de vez em quando pesar-lhe no espírito
muitas dúvidas, afligindo-se com sérios receios e preocupações.
Aproveitando uma ocasião em que fora a Roma, procurou ter
comigo uma conferência a esse respeito, mas não nos pudemos
encontrar.
Esforçamo-nos então por nos entendermos bem, por meio de
cartas e, no mês de agosto desse ano por intermédio do Padre
Provincial, ele me mandou convidar para ir a Lucca, a fim de
observar pessoalmente a sua penitente.
A mim que, por princípio, sempre fui muito difícil crer em
semelhantes manifestações, principalmente nas mulheres, respondi-
lhe, dissuadindo-o de tão solícito pensamento, e aconselhando-lhe
que fizesse com que a sua penitente entrasse no caminho comum
que seguem todos os fiéis. Respondeu-me, dando-me alguns
esclarecimentos daqueles fatos maravilhosos. Eu, persistindo no
meu modo de pensar, fui tão incivil que sugeri aquele venerando
Bispo que experimentasse mandá-la exorcizar.
Ora, diante da minha desconfiança, aumentou-se a sua
perplexidade, e, querendo que eu julgasse pelo lado da ciência,
obteve do meu Provincial que me mandasse ir a Lucca. Recebi a
ordem nos primeiros dias de setembro e, imediatamente, dirigi-me à
casa da família Giannini, onde Gema morava.
Vendo-me, a boa donzela logo me reconheceu, exultou de alegria
e bendisse o Senhor. Confesso que na sua presença, senti tão
profunda devoção e respeito para com ela, como se estivesse diante
de um ente celestial. Então, fomos juntos ajoelhar-nos em frente ao
crucifixo do oratório doméstico; Gema chorou de comoção e eu
chorei com ela.
“Meu Deus”, disse comigo mesmo, “se a vista de um justo excita
tais sentimentos em nossa alma, que não será ver-Vos na Pátria dos
eleitos?”.
Por meio dessa singular impressão, o Senhor me preparava para
admirar grandes prodígios, e desde então toda a sombra de dúvida
se dissipou do meu espírito.
Era uma quinta-feira. Durante a ceia, Gema, sentindo-se
arrebatada em êxtase, saiu da mesa e retirou-se tranquila para o
seu quarto; e pouco tempo depois sua mãe adotiva veio me chamar.
Vou e encontro aquela jovem extática, em luta contra a justiça divina
para obter a conversão de um pecador. Confesso que, em toda
minha vida, nunca assisti a tão comovente espetáculo! Gema estava
assentada sobre o seu modesto leito, com os olhos, o rosto e todo o
corpo voltados para um ponto do quarto onde lhe aparecia o Senhor.
Não se mostrava agitada, mas comovida e resoluta, como quem,
achando-se num combate, quer vencê-lo a todo custo. Começou a
dizer: “Já que viestes, ó Jesus, torno a suplicar- Vos pelo meu
pecador. É vosso filho e meu irmão; salvai-o Jesus!”, e nomeou-o.
Era um estrangeiro que ela tinha conhecido em Lucca e a quem,
impelida por inspiração interior, tinha muitas vezes aconselhado de
viva voz e por escrito para que pusesse em ordem a sua
consciência e não se contentasse com a estima em que era tido de
bom cristão.
Mas Jesus, fazendo-lhe ver que queria proceder com ele como
Justo Juiz, opunha-se às súplicas da sua serva: porém, sem
desanimar, ela continuava:

Por que hoje não me atendeis, ó meu bom Jesus? Fizestes tanto só por
uma alma e não quereis agora salvar aquela? Salvai-a Jesus, salvai-a... Sede
bom, Jesus, não me faleis assim... Na boca de quem é a própria misericórdia,
esta palavra – abandono – soa tão mal.
Não a deveis dizer. Não medistes o sangue que derramastes pelos
pecadores, e agora quereis pesar a quantidade dos nosso pecados?... Não
me atendeis? A quem então devo recorrer?
Vosso sangue foi derramado tanto por ele como por mim. A mim me salvais
e a ele não?
Não me levantarei mais daqui: dizei-me que o salvais. Ofereço-me como
vítima por todos, mas particularmente por ele prometo-Vos não recusar coisa
alguma: dai-me! É uma alma... Pensai, Jesus, que é uma alma que Vos
custou tanto!
Tornar-se-á bom, não pecará mais.

Como única resposta, Jesus opunha sempre a justiça divina. Ela,


animando-se cada vez mais respondia:

Eu não apelo de nenhum modo para a Vossa Justiça, mas para a Vossa
Misericórdia. Vamos, Jesus, ide buscar esse pobre pecador, dai-lhe um
aperto de coração, e vereis como se converterá... experimentai ao menos...
Ouvi Jesus; dizeis que já lhe destes muitas inspirações para convencê-lo,
mas nunca o chamastes de filho; Ensaiai, pois, dizei-lhe que sois seu pai e
ele vosso filho.
Vereis, vereis como a este doce nome de pai, aquele coração endurecido
se abrandará...

O Senhor, para mostrar à sua serva quanta razão ele tinha de ficar
firme, começou a manifestar-lhe uma a uma, com as mais
minuciosas circunstâncias de tempo e de lugar, as culpas daquele
pecador, concluindo já ter ele enchido a medida.
A pobre donzela pareceu ficar perturbada; deixou cair os braços e
deu um profundo suspiro, como quem perde a última esperança de
vencer. Porém, ergueu-se logo daquele desânimo e voltou à luta.

Eu sei... eu sei, ó Jesus, que ele vos tem ofendido muito, mas eu vos tenho
ofendido ainda mais, e entretanto tendes usado de misericórdia para comigo.
Bem o sei, meu bom Jesus, que ele vos fez chorar muito, mas não penseis
em seus pecados, mas só no sangue que derramastes por eles. Quanta
caridade tendes tido comigo, ó Jesus!
Peço-Vos que todas as provas de amor que me tendes dado, Vós as
dispenseis agora ao meu pecador. Recordai-Vos, ó meu bom Jesus, que eu
quero vê-lo salvo.
Triunfai, triunfai peço-Vos, por caridade!

Mas o Senhor continuava a mostrar-se inflexível; Gema de novo


caia na tristeza e no desânimo, e, em silêncio, parecia que ia
abandonar o combate. Mas, de repente, lhe brilhou no espírito uma
ideia que pareceu-lhe invencível e sem resposta.

Bem – exclamou – eu sou uma pecadora! Vós mesmo dizeis que pior do
que eu não se pode achar. Sim, eu o confesso não mereço que me atendais.
Mas apresento-Vos outra intercessora em favor do meu pecador; é a vossa
própria Mãe, que intercede por ele.
Oh! Sereis capaz de dizer não à vossa Mãe?2 Certamente que a ela não
direis não.
Respondei-me, pois, Jesus, que perdoais ao meu pecador.

A vitória estava ganha. A cena mudou de aspecto.


O piedoso Senhor concedeu a graça, e Gema, tomando um ar de
indescritível alegria, exclamou: “Está salvo! Está salvo! Vencestes, ó
Jesus; assim triunfais sempre!”.
E sai do êxtase.
Esta tão enternecedora cena durou cerca de meia hora. As
palavras, com que a descrevi, foram em parte escritas e em parte
conservadas na minha memória, donde as transmito ao leitor.
Terminada a cena, retirei-me com a alma ocupada de mil
pensamentos, quando ouvi bater à porta. É um estrangeiro que
procura um padre. Eu o mandei entrar: atirou-se aos meus pés e,
chorando, disse: “Padre, confessai-me”.
Meu Deus, senti despedaçar-se meu coração. Era o pecador de
Gema, convertido naquela mesma hora. Acusou-se de todos
aqueles pecados que eu mesmo tinha ouvido no êxtase da Serva de
Deus. Só se esqueceu de um que eu mesmo lhe recordei.
Consolei-o, contei-lhe o que tinha acontecido pouco antes, pedi-
lhe que me permitisse publicar estas maravilhas do Senhor, e,
depois de nos termos reciprocamente abraçado, despedi-me dele!
Já muitos anos se passaram desde que se deu este
acontecimento, e parece-me que me esteja ainda presente.
Foi tão evidente! Com a fantasia e histerismo não se chega a este
ponto; e o demônio pode arrastar ao inferno os pecadores, mas
nunca fará com que se convertam, especialmente deste modo.
Fiquei seriamente abalado pelo que vi, mas não me limitei a isso, e
pus-me a observar e estudar cuidadosamente o espírito da humilde
serva de Deus.
Este meu trabalho me ocupou durante três anos, sem descanso.
Dirigindo-me pela Teologia Ascética e Mística e pelas Ciências
Fisiológicas modernas, submeti a donzela a longas provas, até
poder dizer a última palavra; não a poupei de nenhuma experiência
e nenhuma delas falhou.
O piedoso Bispo, pelo seu lado, ficou satisfeito e aprovou tudo o
que fiz. Declarou-me que estava tranquilo desde que tomei a
direção daquela alma. Gema, que mais que qualquer outra pessoa,
temia que eu fosse incrédulo, mas pareceu ressuscitar quando afinal
lhe dei a certeza de provir de Deus tudo o que lhe acontecia, e de
que se podia deixar conduzir pelo Espírito Santo por aquele
caminho.
Para humilhá-la, eu a tratava secamente e a mortificava muitas
vezes; não obstante, ela me foi sempre muito dedicada e atenciosa;
com uma ingenuidade infantil, chamava-me papai; às vezes, com a
mesma singeleza, modificando o diminutivo acrescentava o de mau.
“Oh! Que mau papai Jesus me deu!”.
Seu reconhecimento para com Deus, de quem acreditava ter
obtido o meu auxílio, e para com o pobre ministro, cujos serviços e
incômodos em seu benefício ela exagerava, era inexcedível.

Quanta paciência – dizia – o senhor precisa ter comigo! Ó meu papai, eu


lhe agradeço infinitamente tantos cuidados que tem e espero terá sempre
com a minha pobre alma. Se conseguir salvar-me, o que farei em seu
benefício quando eu estiver no céu; levá-lo-ei comigo a todo o custo.

Noutra ocasião dizia:

Se soubesse como me fazem bem as suas cartas e os seus conselhos!


Espero que a esta hora já me conhecerá bem. Peça a Jesus por mim que o
ilumine a meu respeito e me converta. Achas, meu pai, que conseguirá
converter-me? Custo tanto a chorar; e quando a sua última carta me levou a
fazer esta reflexão, chorei e choro sempre ao lembrar-me dela. Viva Jesus!

Vê-se por estas palavras que a maior parte desta direção era feita
por meio de cartas. O Senhor, porém, querendo que uma alma, que
lhe era tão cara, fosse melhor atendida, dispunha os sucessos de
modo que frequentemente se me apresentassem ocasiões de viajar
e passar pela cidade de Lucca. Então, hospedando-me, com
permissão dos meus superiores, na casa da família Giannini, tinha
toda a facilidade de ajudar a esta santa donzela e continuar meus
estudos e minhas experiências a respeito de sua alma.
Certamente era uma consolação dirigir uma alma tão virtuosa,
desapegada de coração e de espírito de todas as coisas da terra, e
mais ainda de si mesma; humilde, dócil, afetuosa, tão pronta para o
sacrifício, cheia de fé e de amor celeste, e ao mesmo tempo tão
natural em tudo, que ninguém a distinguiria de qualquer outra jovem.
Não me demorarei aqui em descrever todas as raras virtudes da
minha filha espiritual, tendo que falar sobre esse ponto com toda a
minuciosidade nos capítulos seguintes.
Direi somente que ter que tratar com ela, ocupar-me com seu
espírito, auxiliá-la para que se aperfeiçoasse cada vez mais e
correspondesse fielmente aos impulsos da graça divina, não me
ocasionava o menor enfado; pelo contrário, proporcionava-me
dulcíssima satisfação e podia estar longas horas conferenciando
com ela a respeito de assuntos espirituais, sem perceber o passar
do tempo.
Gema falava pouco, até mesmo com o seu diretor, custando a
responder às perguntas; porém, suas palavras eram tão justas,
acertadas e repassadas de celestial unção, que encantava ouvi-la.
Muito mais expansiva era quando escrevia. Parecia que a
ausência do interlocutor lhe tirava a dificuldade que sempre sentia
em manifestar a sua alma; assim, escrevia longas cartas, sem arte e
conforme lhe ditava o coração e o espírito de Deus; mas eram tão
corretas que nada deixava a desejar. Primeiramente eram dirigidas
ao confessor, depois ao diretor com mais frequência e inteira
confiança.
Eu guardava as suas cartas; sempre as relia e meditava sobre
elas, confrontando umas com as outras e, cada vez mais me
confirmava o bom espírito daquela donzela, então a fazia correr a
passos de gigante no caminho da santidade.
Quantas vezes não chorei enternecido e maravilhado e, erguendo
as mãos ao céu, apresentava a Deus aquelas página admiráveis,
frutos da sua divina graça! Em 1909, publiquei grande parte delas
em um grande volume, juntamente com outros escritos. Queira o
leitor lê-los se ainda não os conhece e ele me dará razão.
Não sei como, no presente capítulo, tomei para mim o título de
novo diretor de Gema, pois que por mais que esta Serva de Deus
assim o entendesse, não posso concordar com ela. Pois o confessor
e diretor de Gema, desde seus primeiros anos até à morte, foi
sempre o Bispo Dom João Volpi.3 Não fiz mais do que auxiliá-lo, por
dispor de mais tempo para ocupar-me com ela, não estando preso
pelas conveniências de prudência e cautela que lhe impunha o seu
cargo, obrigando-o a ceder de um modo reservado e mostrar até
oposição e desprezo. Mas o verdadeiro diretor de Gema era mesmo
o Espírito Santo,4 que se compraz em tomar especialmente para si o
cuidado de certas almas; era seu divino Esposo Jesus, sua celeste
Mãe e o anjo da guarda, como já vimos e veremos ainda mais.
O que está fora de dúvida é que, por ter eu conhecido e ajudado a
esta Serva de Deus, meu pobre espírito recebeu dons
extraordinários. Senti reanimar-se em meu coração a fé, o desejo do
céu, o amor à virtude.
A vós rendo infinitas graças, ó Jesus, que, por caminhos tão
admiráveis, provedes ao bem das almas que a Vós só desejam
agradar!

1 “[...] e o que é vil e desprezível no mundo, Deus o escolheu, como também aquelas
coisas que nada são, para destruir as que são” (1Cor 1, 28).
2 Por isso, a Tradição da Igreja, cristalizada na Ladainha Lauretana, acostumou-se a
chamar Maria Santíssima de Mãe de Misericórdia e Refúgio dos Pecadores – NC.
3 Ainda que hoje seja clara a origem dos fenômenos extraordinários de Santa Gema, a
prudência de Mons. Volpi era justificada. Ele amava esta sua filha espiritual, e pôde
aprender muito na direção de Santa Gema. Mas não resta dúvida que a Providência de
Deus, deu Santa Gema à Congregação Passionista, e que sentia que o seu pai espiritual
era o Venerável Padre Germano – NC.
4 O Venerável Padre Germano apresenta aqui uma realidade maravilhosa: é o Espírito
Santo quem gera os santos. Mas que responsabilidade a do diretor espiritual! Para auxiliar
os sacerdotes, a Congregação para o Clero preparou um subsídio para confessores e
diretores espirituais: o Sacerdote ministro da Misericórdia Divina – Subsídio para
Confessores e Diretores Espirituais. Importante ressaltar o que diz o seu parágrafo 78: “O
objetivo da direção espiritual consiste principalmente em ajudar a discernir os sinais da
vontade de Deus. Normalmente, fala-se de discernir a luz e as moções do Espírito Santo.
Existem momentos nos quais tais consultas são mais necessárias. É necessário levar em
conta o “carisma” peculiar da vocação pessoal ou da comunidade na qual vive quem pede
ou dá o conselho” – NC.
CAPÍTULO XIV

AS VIRTUDES:
O ESPÍRITO DE SANTIDADE PECULIAR À SERVA DE DEUS

Além do espírito essencial de santidade, igualmente comum a


todos os justos, há outro inteiramente peculiar a cada um. O
primeiro consiste na posse de todas as virtudes ensinadas por
Nosso Senhor Jesus Cristo, chefe e modelo de todos os
predestinados; o segundo, na prática de uma virtude especial, que é
a alma e a vida de todas as outras, e constitui o caráter e fisionomia
que distingue e forma cada santo.
Ora, não há dúvida que Gema se tenha consagrado, com
inexcedível cuidado, desde os mais tenros anos, à aquisição das
mais belas virtudes. Praticou-as todas, e as possuiu em grau
eminente de tal modo que seria preciso grande esforço para
discernir qual a principal.
Entretanto, para ela também havia uma virtude característica em
que se exercitou naturalmente, uma virtude que transparecia em
todo o seu ser, que ornava todos os seus atos e a tornava tão
amável e querida.
Pelo que já leu até aqui, o leitor já terá compreendido e apreciado
qual é esta virtude: a simplicidade evangélica.1
Será justo, portanto, que antes de ir adiante na descrição das
virtudes desta Serva de Deus, façamos bem conhecer e admirar por
todos os meios a sua rara simplicidade.
Que nos importa que, aos olhos do mundo, esta virtude tenha
pouco valor? O verdadeiro apreciador de tudo, Deus, a estima tanto
que chega a dizer que todo o seu coração se volta para aqueles que
andam na simplicidade e que para eles tem reservado os mais
íntimos segredos: “Se não vos tornardes simples como crianças,
não entrareis no reino dos céus”.2
Por esta bela comparação é fácil compreender quanto vale no
Evangelho a simplicidade, isto é, o cristão que por virtude procede
como a criança conservando a alma isenta de maldade e enganos,
e todas as faculdades inclinadas à retidão; sendo esta virtude,
conforme ensina o Doutor Santo Tomás,3 fruto da verdade e da
modéstia.
O fato é que Gema possuiu esta virtude de um modo raro e em
grau sublime. Era simples em seus pensamentos e, assim, incapaz
de conceber um mau juízo sobre qualquer coisa que visse ou
ouvisse.
Naquela alma reinava perpétua calma e inalterável paz; sempre
fixa em Deus, e n’Ele seu espírito encarava todos os
acontecimentos, fossem eles bons ou maus, agradáveis ou
incômodos. Era como um espelho limpidíssimo, do qual todos se
podiam aproximar sem deixar nele a menor impressão.
Esta bela qualidade da alma, transparecendo no corpo, fazia com
que seu aspecto não só não inspirasse temor ou retraimento, mas
antes atraísse e arrebatasse os corações, induzindo-os a
sentimentos de veneração e suave confiança.
Um venerável prelado, conversando uma vez com ela, disse: “Com
esta jovem eu não teria dificuldade de fazer minha confissão geral e
confiar-lhe os mais íntimos segredos de minha consciência, tal é a
confiança que a candura de sua alma me inspira”.
Na verdade, diversas pessoas, encantadas pelo seu angélico e
ingênuo aspecto, iam procurá-la para tratar de assuntos da maior
reserva. E a boa donzela os ouvia modestamente, mas com poucas
palavras respondia, aconselhando conforme a necessidade, e
depois recolhia- se em si mesma, não pensando mais no que tinha
ouvido. Pois ela temia que ideias estranhas viessem mesclar com as
celestes – e com somente com essas queria se entreter –, e desta
forma se pudesse alterar a simplicidade do seu espírito.
Eu mesmo a experimentei mais de uma vez neste ponto,
procurando lhe falar sobre assuntos estranhos. Sempre me
interrompia: “Sabe Rmo. Padre, já rezei a Jesus por aquele infeliz, já
lhe agradeci pelo bom êxito daquele negócio; agora permita-me não
pensar mais nisso”.
Em virtude desta retidão de espírito e candura d’alma,
compreende-se que não poderia ter pensamentos de vanglória – e
de fato nunca os teve. Por mais que o demônio se esforçasse em
lhe apresentar insidiosamente seus merecimentos e virtudes, jamais
conseguiu surpreendê-la.
Aquele “sim, sim; não, não” do Evangelho,4 sobre os quais ela
tinha estabelecido a regra da sua vida, era como um prumo que a
conservava em perfeito equilíbrio.
Os louvores, sem dúvida, lhe desagradavam, porque era muito
humilde; mas não a impressionavam, assim como não a alteravam
os desprezos e as injúrias; tudo era igual para ela, como acontece
com as crianças que, pela sua simplicidade não sabem dar peso a
essas manifestações que tanta comoção trazem aos mortais em
geral.
Assim como o espírito era o coração desta inocente pomba,
reinava nele a mais perfeita ordem, serenidade, franqueza e
inocência. Seu puríssimo coração era todo de todos, e todo para
todos, mas sempre em Deus.
Era agradecida para com as pessoas amigas, e não sabia querer
mal aos que não a estimavam. Nada desejava nem procurava; nada
a afligia porque não nenhum afeto terreno a absorvia.
Os horríveis sofrimentos com que a atormentavam os demônios,
sentia-os só pelo temor de ofender a Deus, caso contrário, não lhes
teria dado atenção nem falado deles com seu diretor.
O mesmo se pode dizer de qualquer outro tormento à semelhança
do Divino Cordeiro que, como dizem os profetas, levado ao calvário
se conservava silencioso, não abria a boca, e oferecia as faces a
quem o queria ofender.
Quantas vezes, indo à igreja procurar o confessor, não foi
publicamente injuriada pelos insolentes meninos vestidos de batina,
e quase que expulsa dali; ela se calava sempre evitando referir
esses fatos às pessoas de casa.
Mas para não adiantar o que sobre este assunto devo dizer mais
adiante, limito-me só a este fato e continuo.
Se foi tão grande como se vê a simplicidade de espírito e de
coração de Gema, e se da abundância do coração, fala a boca, que
se poderá dizer da simplicidade do seu modo de falar?
Como não pensava mal de ninguém, não sabia dizer nada em
desvantagem do próximo. E diz uma testemunha que era necessário
muita obstinação para lhe arrancar da boca, nas ocasiões
necessárias ou úteis, qualquer coisa leve que fosse ofensivo a
alguém.
Observava esta reserva não só quando falava com uma pessoa
qualquer, mas até com o próprio diretor espiritual. Sempre que este
a interrogava, contentava-se em mencionar o fato tão vagamente
que apenas conseguia fazer compreender o que queria. Já
respondendo por escrito, acrescentava umas reticências, como que
dizendo: “Entenda o Senhor o resto...”, e passava com toda a
naturalidade para outro assunto. Usava também de uma
interessante discrição quando, a seu pai espiritual, tinha de confiar
qualquer coisa contra alguém: “Senhor Padre peço-lhe que reze;
aquele ou aquela não anda como Jesus quer. Escreva-lhe e
aconselhe-a que se emende”. Depois, pontinhos e pronto.
Para começar a falar ou a escrever, não usava de preâmbulos,
conforme se faz geralmente, e em muitos casos é até prescrito
pelas conveniências. Parecendo-lhe que era mais uma perda de
tempo e uma espécie de artifício para, de certo modo, obter as boas
graças de quem ouve ou lê, entrava logo no assunto, qualquer que
fosse a dignidade da pessoa a quem se dirigia: a não ser que se
queira chamar de introdução certas formas de inefável simplicidade
com que frequentemente começava suas cartas: “Senhor Bispo,
queira ouvir-me: hoje aconteceu-me isto isto e isto”. Ou ainda: “Meu
pai, viva Jesus! Escute como é interessante o que lhe vou dizer” – e
outras formas semelhantes que, para quem tem bom senso, devem
agradar infinitamente mais do que todas as afetadas cerimônias do
estilo atual.
Escrevendo ao seu pai espiritual, e sabendo bem a quem se
dirigia, não se inquietava em pensar se o que dizia era bem ou mal,
se redundaria em seu louvor ou vitupério, se poderia ser
interpretado em bom ou mau sentido; terminada a carta, fechava-a
sem reler, não pensando mais no que tinha escrito.
Quando não tinha à sua disposição uma folha inteira de papel,
tomava metade; na falta ainda desta, servia-se do primeiro pedaço
que lhe viesse às mãos.
Uma vez só, lembro-me que ela pediu desculpas por, tendo
necessidade de me escrever, e não achando quem lhe desse um
selo, pôs a carta no correio sem ele. “Que dirá o senhor padre,
quando tiver que pagar a multa? Mas perdoe-me. Sou muito pobre
não tenho sequer uma moeda”.
Por acaso poderiam desagradar tais negligências, atenuadas por
tão amável e delicada ingenuidade?
Entretanto, algumas vezes acontecia que, deixando-se levar pelo
impulso do seu bom coração, a cara donzela se expunha a alguns
leves inconvenientes. Mas era inútil querer persuadi-la de que não
convinha confiar em todos, ou que daria motivos para a censurarem
fortemente. Pois ela julgava que todos procedessem com a mesma
singeleza e, assim, que podia ter franqueza com todos. E não
querendo pensar que quem a repreendia era impelido pela ira ou
outra paixão desordenada, procurava persuadir-se que era uma
sugestão do demônio, permitida por Deus para a humilhar – assim,
tranquilizava-se.
Mas é conveniente recordar que Gema estava longe de ser pouco
inteligente e espirituosa. Porém, assim procedia porque se tinha, por
amor de Deus, conservando-se criança.
Sendo sua rara simplicidade o fruto de contínuos atos de virtude,
não é de admirar que esta bela qualidade a acompanhasse sempre
e em todo o lugar. Simplicidade no porte e no trato, no vestuário e
nos objetos de seu uso (caso se possa dizer que tivesse algum);
simplicidade em tudo, enfim!
Nada tinha de supérfluo, nem o queria. Neste ponto ela punha em
prática a palavra simplicidade em toda sua extensão. Porque
simples quer dizer desprovido de toda a forma estranha – e ela se
contentava com o estrito necessário.
Bastava contemplá-la para ficar possuído da mais alta admiração.
Nada tinham de singular suas maneiras. À exceção de uma
gravidade repassada de dignidade, que era efeito de sua contínua
união com Deus, bem pudera ser tomada por uma donzela comum.
Na igreja, onde passava longas horas cada dia rezando ao pé do
Tabernáculo, conservava-se imóvel como uma estátua, mas nada
transparecia do que interiormente se operava em sua alma: nem um
suspiro, um gemido ou uma atitude diferente da que se percebe nas
pessoas piedosas.
Quando o ardor do seu amor a fazia derramar lágrimas, logo que
as percebia, com ambas as mãos, encobria o rosto levemente
inclinado para o peito.
Em suma, esta tão agradável simplicidade brilhava em todas as
virtudes de Gema, das quais era a forma e, por assim dizer, o
delicado ornamento, não havendo uma só em que não estivesse
impressa esta bela qualidade.
Com razão, foi esta virtude a que formou verdadeiramente o
espírito e a nota característica desta virgem, esposa de Cristo.
Mas ainda: tão raro dom não acompanhou somente a nossa Gema
na prática das virtudes – que podem ser vistas e admiradas pelos
homens –, mas tendo-se, como dissemos, enraizado em sua
inteligência e coração, não podia deixar de segui-la nos caminhos
sublimes da contemplação mística a que Deus a quis elevar. Ela
entrou neste caminho sendo ainda criança no espírito, como era na
idade, e tratando com a majestade do Senhor, recebendo seus
segredos e gozando das suas doçuras. Assim se conservou por
toda a vida.
Confesso que foi sempre este o maior prodígio que admirei nela;
esta candura e singeleza a par do que há de mais sublime na ordem
sobrenatural foi a prova mais convincente que me fez considerar
como verdadeiro o seu espírito de santidade.
De fato, quem ignora que os elevados pontos da religião, são por
sua natureza tão sublimes, que diante deles o homem mortal fica
sobrepujado – e aqueles mesmos que mais se têm familiarizado
com eles nunca chegam a habituar-se completamente. E sempre
temendo e tremendo, esperando e amando, é que recebem as
comunicações que o Senhor se digna fazer-lhes! Não era, porém,
assim com Gema.
Para ela, a fé não parecia ser mais fé, mas evidência quase como
no seu elemento. Não precisava fazer o menor esforço para
compenetrar-se de tão grandes verdades. Deus, a sacrossanta
humanidade do Verbo Divino, a Eucaristia, os anjos e os santos do
Céu, elas os contempla e lhes fala familiarmente, humilha-se a seus
pés, adora, reza, chora, como se os tivesse presentes à vista, sem
véu, não só durante os êxtases e os raptos e nos mais íntimos
segredos da contemplação, mas de um modo ordinário e habitual,
ainda durante a profunda aridez espiritual.
Devo confessar que uma vez tive alguma dúvida, parecendo-me
demais aquela certeza da evidência, mas foi apenas um momento,
porque Gema, como que adivinhando a minha perplexidade
começou a confiar-me as altíssimas comunicações que tinha tido
com a Divindade, e acrescentou as seguintes palavras que, para
mim valem uma teologia:

Certamente é este o paraíso na Terra, porém eu quero ir para o verdadeiro


Paraíso porque, meu pai, daqui eu vejo a meu Deus, vejo a Jesus, mas não
todo inteiro. Ele não me aparece inteiramente, bem que seja já muito o que
Ele me permite ver, e exceda a todo o entendimento humano. Mas lá eu O
verei perfeitamente.

Eis, pois, o mérito da fé que se conserva em toda sua força no


desejo dos bens futuros, embora na posse de tanta evidência e tão
íntima familiaridade.
Assim, tanto quanto é permitido a uma criatura mortal, Gema vivia
diante de Deus e tão infinita majestade não a ofuscava. Ela lhe
falava com a mesma confiança e naturalidade com que uma menina
se dirige a seu pai, assentada sobre seus joelhos. Sem faltar em
nada ao devido respeito, Gema fala com Deus com a mesma
singeleza de palavras e ingenuidade, de maneiras isentas de toda
cerimônia que se usa entre as criaturas.
Seria necessário, para dar uma ideia completa, que eu pudesse
reunir aqui todos os longos colóquios dos seus êxtases e
contemplações que possuímos. Contentemo-nos, porém, com
algumas linhas de um escrito seu, dirigido ao diretor; outros
veremos pelo livro adiante:

Na sexta-feira, Jesus me apareceu. Desta vez estava muito sério, parecia


chorar. Então eu Lhe disse: “Que tendes, Jesus, que chorais assim? Não
seria melhor que me deixásseis antes chorar a mim que tanto o desejo?”
Mas, Jesus não respondia. Então, afastando-me devagar, aproximei-me da
Mãe Celeste e lhe perguntei: “Dizei-me minha Mãe, que tem Jesus e por que
chora tanto? Que poderia eu fazer para consolá-Lo?”

Desse modo, enquanto essa menina brinca familiarmente com o


seu Deus, Ele lhe exalta o entendimento com altíssimas ideias sobre
os mistérios da sua justiça e misericórdia no governo do mundo e do
seu infinito amor.
A presença visível do seu anjo da guarda, de quem com raro
exemplo, foi tão favorecida por Deus, era para esta virgem um dos
fatos mais naturais.
Ela lhe falava como se fala com outra pessoa amiga, dava-lhe
recados contínuos e de toda a espécie para os habitantes do Céu e
da Terra, com a mais humilde reverência, mas repassada de
afetuosa familiaridade. Se, enquanto conversava com ele, alguém a
chamava, ou tinha algum dever a cumprir, levantava-se logo e, sem
nenhuma cerimônia, corria a atender ao que era preciso, deixando o
anjo à sua espera.
À noite deitando-se, pedia ao anjo que lhe fizesse uma cruz sobre
a testa e velasse à cabeceira; obtida esta certeza, sem mais,
voltava-se para o outro lado e dormia.
Oh! como são ditosas as virgens a quem os anjos acompanham
visivelmente!
Logo ao acordar pela manhã, era-lhe permitido rever o seu fiel
companheiro sempre no seu posto. Mostrava-lhe, porém, pouca
atenção ansiosa como se sentia por voar à igreja e receber a
Sagrada Comunhão, na qual dormindo muito pouco, tinha pensado
durante toda a noite: “Tenho coisa melhor”, dizia- lhe; “vou a Jesus”,
e logo se afastava. Quando o anjo despedia-se dela, com inefável
graça costumava dizer-lhe: “Adeus querido anjo, saúda por mim a
Jesus”.
***
Todas as semanas, durante um tempo considerável, renovavam-se
as misteriosas feridas dos estigmas. Da quinta à sexta-feira,
participava da Paixão do Salvador. Sofria dores tão atrozes que se
receava que pudessem lhe causar a morte.
Mas, cessado o êxtase, levantava-se e, como se nada lhe tivesse
acontecido, lavava as mãos para tirar as manchas de sangue que
tinha corrido em abundância; puxava as mangas do hábito para
cobrir as grandes cicatrizes e, julgando não ter sido vista por
ninguém, muito calma e serena, voltava a conversar com as
pessoas de casa.
Não vos parece uma maravilha singular, ó leitor, que uma senhora
ou donzela, a quem sucediam fatos tão importantes e raros, não se
detivesse em pensar e perguntar a si mesma: “Mas que quer dizer
isto? É bom ou mau sinal? É obra de Deus ou engano do
demônio?”.
É verdade que a sua profunda humildade lhe inspirava algum
temor, particularmente quando via que os demais se
impressionavam com aqueles fenômenos extraordinários.
Entregava-se, porém, a Deus e à opinião de seus diretores
espirituais. Assim ficava tranquila: não procurava nem indagava
mais nada.
Como se não fosse nada de extraordinário achar-se
frequentemente em pleno Calvário, sofrendo agonias atrozes como
o seu Deus crucificado, tão logo voltava a si, achava-se
perfeitamente disposta a ir entreter-se com as crianças de casa.
Finalmente, para não me estender muito neste capítulo, direi que,
durante os êxtases, recebia também luzes divinas a respeito do que
convinha fazer ou evitar, quer em relação a si, quer aos outros, e se
apressava logo em comunicá-lo ao seu diretor, falando-lhe ou
escrevendo-lhe: “Jesus disse isto e me recomendou que lhe
transmitisse tudo. Se eu compreendi mal, faça com que Ele próprio
lhe explique melhor”. E pronto, não pensava mais nisso.
Se acontecia que o mesmo recado fosse repetido três, cinco, dez
e mais vezes, outras tantas tornava a manifestar ao diretor com
igual calma e ingenuidade. Assim como se lê na Sagrada Escritura
do menino Samuel com o sacerdote Eli: “Jesus falou assim e assim.
Peço-lhe que O ouça meu Pai, e o satisfaça”.5
Para demonstrar perfeitamente o que asseguro, seria preciso
transcrever todas as cartas escritas pela querida Gema – e também
os colóquios nos êxtases, que são realmente uma combinação de
ideias sublimes e de palavras ingênuas, próprias de uma verdadeira
criança.
Lendo-as o leitor com certeza exclamará comigo: Cara
simplicidade, quanto te tornaste rara no mundo! Tua candura me
comove e confunde!

1 Santa Gema foi agraciada com as mais extraordinárias graças: como estigmas, o suor
de sangue, o incendium amoris, etc. Mas não repousava em nada disso a santidade de
Santa Gema. É a sua simplicidade que a distingue. A espiritualidade de Santa Gema é
aquela da simplicidade evangélica. E é esse frescor que emana de todos os seus escritos.
(...) O estigmatino Padre Cornélio Fabro fala que a experiência mística de Santa Gema é
“diretíssima”; não será sua simplicidade que abriu o caminho reto até a união? Divo Barsotti
dirá: “É necessário tornar-se simples como Gema. À simplicidade toda as coisas falam uma
linguagem que transcende a poesia”. Tito Paolo Zecca, Gema Galgani, Milano: Pauline,
1996; p.7 e 158 – NC.
2 Mt 18, 3.
3 Sum. Theo. II-II, q.109 – a.3.
4 Cf. Mt 5, 37.
5 Cf. 1Sm 3.
CAPÍTULO XV

DESAPEGO:
OS MEIOS DE QUE GEMA SE SERVIUPARA SE ELEVAR À
GRANDE PERFEIÇÃO

Quem quiser seguir-me, disse Nosso Senhor Jesus Cristo, deixe


tudo o que possui, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-
me.1 Quer dizer que para revestir o homem celeste e perfeito, que é
o próprio Jesus, o grande Deus humanado, deve o cristão despojar-
se do homem velho, que é terreno e vicioso, renunciando e
resistindo, com uma continua violência, a todas as suas inclinações
desordenadas – caso contrário não pode ser o discípulo do Filho de
Deus nem segui-lo no caminho da santidade.
A necessidade da mortificação assídua, da humildade profunda,
do absoluto desprendimento de todas as criaturas, e mais ainda de
si mesmo, da generosidade da alma e de suma coragem em
suportar as fadigas e os trabalhos: são estes, de fato, os meios de
que todos os eleitos se têm servido para alcançar a santidade. E os
que se assinalaram em os praticar, melhor êxito tiveram em tão
árdua empresa. Ora, tendo a nossa Gema, desde os seus mais
tenros anos, concebido o desejo de acompanhar os passos de
Jesus e, como já observamos, santificar-se, não podia deixar de
servir-se desses meios indispensáveis.
Adotou-os e praticou-os de tal sorte que, desde as primeiras
ocasiões, revelou-se uma das servas de Deus mais humildes,
mortificadas, pacientes, generosas, fortes, que tem sido honradas
na Igreja.
Neste capítulo falaremos do seu desapego e dos outros meios que
empregou – de suas virtudes trataremos separadamente nos
seguintes.
Ninguém ignora quanto é difícil a uma menina de posição na
sociedade renunciar à vaidade dos trajos, não só de coração, mas
também realmente vivendo no meio do mundo. A própria natureza,
com tal força, inclina o sexo frágil ao desejo de aparecer e agradar
que, sem um auxílio particular de Deus, não é possível reprimi-lo de
todo.2
Deus concedeu esta graça a Gema desde os seus primeiros anos
de vida, mas, principalmente, depois da severa admoestação que
lhe dera o anjo da guarda, referida no capítulo IV. Desde esse
momento, não quis absolutamente saber mais de vaidade e
adornos, por mais simples que fossem.
Era extremamente singelo o seu traje. Ia vestida de lã preta com
uma pequena capa da mesma fazenda, e chapéu de palha
igualmente preto. Não usava punhos ou colarinhos, brincos ou
broches, flores ou fitas na cabeça. Em vão sempre protestavam as
pessoas de casa. Foi sempre este o único vestuário de Gema, em
toda vida, tanto no verão como no inverno, nos dias ordinários e nas
festas mais solenes. Não queria outro, absolutamente.
O que digo do vestuário deve-se entender de tudo o mais, como
livros, cofres, bolsas, quadros e outros objetos semelhantes, de que
até os mais pobres não são desprovidos. Uma caixa bem rústica de
madeira com pouca roupa branca, um crucifixo, um rosário, dois
outros livrinhos de oração, e a piedosa estátua de Maria Dolorosa,
que lhe tinha deixado sua santa mãe: era tudo o que possuía a
nossa Gema. “Não tenho nada”, dizia graciosamente, “sou
inteiramente pobre por amor de Jesus”.
Quando lhe ofereciam devotas imagens, dava-as logo parecendo-
lhe sentir-se tanto mais leve, quanto mais se desfazia de tudo o que
não era de absoluta necessidade.

Jesus me disse – repetia sempre: “Lembra-te que eu te criei para o Céu.


Não tens nada que ver com a Terra”. Que quereis, pois, que eu faça com tudo
aquilo de que não tenho necessidade?

Mesmo estando doente, nunca mostrou desejo de qualquer coisa.


Antes, para que as pessoas com quem vivia não se incomodassem
por sua causa, dizia estar sempre bem e de nada precisar,
esforçando-se por lhes apresentar boa fisionomia para que não
percebessem seus grandes sofrimentos e cuidassem em fazer-lhe
tomar remédios e confortos. Estava completamente morta a si
mesma.
Gema amava ternamente a seus pais, e de um modo especial a
sua mãe. Entretanto, vimos com quanta calma ela recebeu a
comunicação do falecimento desta, e assistiu à agonia do Sr.
Henrique, assim como pouco antes a do predileto irmão, Gino.
Mais tarde, num só ano, morreram uma tia, outro irmão por nome
Antonio, e a irmãzinha Júlia, a cara confidente dos segredos de sua
alma, de dezoito anos de idade. Ouçamos com que tranquilidade ela
transmite ao diretor tão grande perda:

Meu pai, minha tia que, como sabe, estava doente, morreu. Ela era boa,
mas recomende-a a Jesus, se ainda precisa de sufrágios.3 Tonino também
faleceu, pobre irmão! Sofreu tanto! Diga a Jesus que use de misericórdia
para com ele.

Ainda que muito mais expressiva é a carta em que anuncia a


morte de Júlia, na qual se divisava a dor que a traspassava, sempre
se conservou resignada e serena:

Vós a conheceis, Sr. Padre, quanto era boa esta minha irmã, mas Jesus a
quis para Si: anteontem, Júlia morreu; porém, não fiz exclamações, não
chorei, porque sabia que Jesus não queria. Viva Jesus!

Sua benfeitora e mãe adotiva, assegura-nos que eram estes os


sentimentos íntimos do seu coração, escrevendo-me deste modo:

O Senhor sabe, sr. Padre, quanto se amavam essas duas irmãs. A nossa
pobre Gema, porém, não se deixou abater, e fez logo o oferecimento do
sacrifício a Deus pela alma da irmã e depois agradeceu a Jesus. Veja que
virtude heroica! Quanto a mim, eu chorava muito, e Gema me consolava
dizendo: “Não chore”.

Esta bendita donzela por mais que fosse toda do Céu e não da
Terra, e no seu exterior aparentasse indiferença e retraimento para
com todos, possuía um coração terno e afetuoso. Não sabendo,
pela sua ilibada pureza, o que fosse amor sensual ou simplesmente
humano, não estava por esse lado sujeita a dúvidas ou escrúpulos.
Amava com toda a liberdade do espírito a todos aqueles com quem
vivia.
Não era fácil de perceber, mas quem a observasse atentamente,
de perto, veria que este anjo sabia amar e, em certos casos,
demonstrava-o com muitos obséquios e finezas.
Contudo, seu perfeito coração não se prendia a ninguém, e
receber ou não correspondência em suas afeições, era para ela o
mesmo. Quando sentia a dor da perda ou da ausência de uma
pessoa querida, este sentimento era momentâneo. E logo corria na
presença de Jesus, e Lhe dizia: “De bom grado Vos ofereço mais
este sacrifício, ó meu bom Jesus! Só com Jesus, só!” – e
imediatamente se acalmava.
Até mesmo para com o seu diretor espiritual, era completo o
desapego. Nunca se queixou com ele, quer da falta de visitas, quer
da demora das suas respostas epistolares.

Não se zangue comigo – escrevia-lhe –, se lhe digo que preciso muito vê-
lo, mas, se não vier, fico contente igualmente. Em todo o caso, pergunte a
Jesus; se Ele lhe disser que venha, venha depressa! Escrevi três cartas e o
senhor não me respondeu nunca: parece-me que Jesus quer que o senhor
me aconselhe como devo regular-me neste ponto. Prometo-lhe ser boa e
obedecer-lhe, mas, se não tem tempo nem vontade de escrever, faça como
quiser; entreguei-me toda à vontade de Deus!

Quando estava para morrer, perguntando-a se queria que


mandassem um telegrama a Roma para chamar o seu diretor,
depois de ter dito que sim, acrescentou logo: “Também dele eu fiz o
sacrifício a Deus”, e não quis mais. Como veremos mais tarde,
morreu só com Jesus, num mar de angústias.
O próprio Salvador Divino era seu bom mestre para aperfeiçoá-la
cada vez mais em tão importante virtude do desapego. Para contar
um fato entre cem, dei-lhe uma vez uma preciosa relíquia: um dente
do Bem-aventurado Gabriel.
Ela o guardava com o maior apreço, como se fosse um tesouro,
trazia-o sempre consigo. Ora, aconteceu, que falando intimamente
com Nosso Senhor, uma vez, como costumava, disse-lhe com toda
a ingenuidade:
Jesus, o diretor sempre me fala em desapego, mas pouco ou nada entendo
disso, porque não sei mais de que me possa desprender. E Jesus respondeu-
lhe: E aquele dente não estás muito apegada? Fiquei atônita (assim me
referiu ela este fato e quase dei um suspiro). Mas, meu Jesus, é uma relíquia
tão preciosa; e fiquei comovida. Mas Jesus, um pouco sério, continuou:
“Filha, já te falei, e basta. Ah! Jesus – respondi –, de que fostes lembrar?”

Não acabaria, se quisesse narrar aqui todos o fatos


edificantíssimos que tenho presentes sobre este assunto, e relatar
as sublimes expansões que nas suas conversações, cartas e
êxtases, constantemente tinha esta santa donzela, para que todos
do Céu e da Terra soubessem que ela não queria amar senão a
Deus.

Eu quero ser toda de Jesus – dizia –, e que preciso eu amar mais nesta
Terra, desde que possuo a Jesus? Oh! Mundo, e todas as criaturas, nada
sois para mim, nem eu sou para vós. Assim, não posso nem quero amar-vos
mais.

Dando-me conta de sua consciência, escrevia-me deste modo:

Ontem de manhã, em um colóquio amoroso que tive com o meu


amantíssimo Senhor, pedi-lhe que me desprendesse de tudo, me libertasse
do corpo, e me tirasse toda a afeição para ir diretamente para Ele, para Ele
só e eternamente. Jesus me perguntou: “Para aonde quererias voar?” Para
Vós, meu caro e dulcíssimo Senhor. E Jesus: “Espera que eu venha ainda
por algum tempo visitar-te; depois, quando eu te libertar, virás para mim”.

Assim, pois, para esta puríssima santa, a vida terrena se tinha


tornado fastidiosa.
Para qualquer lado que dirigisse o seu coração, parecia-lhe estar
no mundo como uma pessoa estranha, que a ninguém conhece e de
ninguém é conhecida – e com quem ninguém se comunica.
Deixemo-la falar:

Vivo neste mundo, mas aqui me considero como uma alma desterrada –
veja a figura expressiva: “como uma alma desterrada”–, porque nunca, nunca
o meu pensamento se afasta de Jesus; fora de Dele tudo é desprezo!

Assim, enfadada, ela contava os dias como faz o peregrino que


está prestes a chegar à pátria, e de tempo em tempo para e olha
para trás, para ver quanto caminho já percorreu, e calcular o quanto
ainda lhe falta.
Esta comparação é da própria Gema, que a aplica a si mesma,
com inefável graça:

Estou bem contente vendo que o tempo passa depressa e menor é a minha
permanência no mundo, onde nada me atrai. Meu coração aspira sempre por
um bem tão grande, que não acho entre os objetos criados; por um bem que
me satisfaça, me console e me dê repouso.

Voltaremos noutro lugar a falar sobre este desejo veemente de


Gema de ir para o céu com o seu Jesus.
Dando esta virgem tão pouca importância à vida terrestre, não é
de admirar que estivesse sempre pronta a cedê-la a quem a
quisesse como se costuma fazer com um objeto desprezível.
Sabia Gema, por ventura, que alguma pessoa amiga tinha
adoecido? Corria logo ao seu diretor, pedindo-lhe licença para
oferecer por ela um, dois, três anos de sua vida, e exclamava:
“Jesus aceitará a troca, contanto que vós, meu pai, concordeis”. E,
para me fazer consentir, apresentava certos argumentos, os
desenvolvia com tanta habilidade que, se eu não estivera bem
prevenido, arriscava-me a ceder.

Olhe, meu pai – dizia-me –, trata-se de uma mãe de família com tantos
filhos. Que seria destes meninos se perdessem a mãe? Permita-me que faça
ver isto a Jesus. Que falta me fariam dois anos de menos?

Usava dos mesmos argumentos quando tinha algum pecador que


converter, o que não lhe faltava: “Jesus, se eu Vos dou três anos de
minha vida: convertê-lo-eis?”.
Afinal, eu me deixava levar e seduzir por tão amável e insistente
eloquência, e acabava por permitir. Deus aceitou a troca e Gema
morreu exatamente no fim do tempo marcado, na flor de idade, e
contra toda a previsão humana.
É bem sabido como as mulheres são obstinadas em questões de
piedade, e que é difícil guiá-las, principalmente quando um prudente
diretor não as aprova no que querem. Ainda que os objetos
materiais e exteriores apartam talvez o coração, no que diz respeito
ao espírito não é assim: não querem crer senão em si mesmas.
Com mais força ainda quando se trata de fatos extraordinários,
como pretendidas visões, colóquios e outras semelhantes
manifestações. É preciso que o diretor concorde com estas ilusões
pensando como elas, louvando o seu estado feliz, não apenas
lamentações, queixas e, com muita frequência, hostilidades
declaradas. Tanto pode o maldito orgulho nas pobres filhas de Eva!
Com a nossa Gema, porém, dava-se o contrário. Ninguém podia
ter mais fortes razões para crer nos fenômenos maravilhosos que se
operavam nela, não havendo duvida que viessem de Deus.
O próprio Deus com evidentes e palpáveis demonstrações lhe
dava a certeza, dizendo-lhe: “Não temas, sou eu que opero em ti”.
Entretanto, não era suficiente. Esperava que o seu diretor
resolvesse, submetendo-se a seu juízo.

Diga-me, meu pai, devo crer que é Jesus? Ou o demônio; ou a minha


fantasia? Sou ignorante e posso errar. Que seria de mim, se estivesse
enganada? O senhor sabe que não sou eu quem quer estas coisas, basta-me
só que Jesus esteja contente comigo; que devo fazer para contentá-lo? Diga-
me, pois quero satisfazer a Jesus a todo custo.

Já contei como algum dos seus confessores, para prová-la, porque


realmente duvidassem, a contradiziam e chegaram até a mortificá-la
de forma muito amarga. Um chegou a dize que ela era iludida; outro
lhe ordenou que pedisse ao Senhor que lhe tirasse esses
fenômenos extraordinários, fazendo-lhe seguir o caminho ordinário e
comum.
Gema agradeceu ao primeiro com suma humildade e ao segundo
respondeu nestes termos:

Ontem o senhor me disse que rogasse a Jesus que me tirasse todos estes
fatos extraordinários ou que lhe desse um conhecimento perfeito de tudo – ou
à pessoa que o Senhor mandasse. Rezei muito, pedindo esta graça com toda
a força de minha alma. Pareceu-me que minha cabeça me prometeu fazer
em tudo a vontade do confessor. Disse a Jesus que, se é Ele que
verdadeiramente me aparece, está tudo bem; mas se é o demônio, que se vá
embora, que não o quero; e se é a minha cabeça, não a suportarei mais e a
despedaçarei. Se julga que estas minhas palavras não são sinceras, diga-
me, pois não quero proferir mentiras nem fazer nenhum pecado.

Um dia o Senhor a repreendeu suavemente, por se mostrar ainda


em dúvida depois de tantas provas que lhe dera; ela Lhe respondeu
modestamente:

Duvido porque os outros duvidam, mas se sois Vós Jesus, fazei-Vos


conhecer como desejam. Crede-nos, assim não podemos continuar, nem eu,
nem o confessor!

Quando o Senhor a atraía a si de tal modo que não podia resistir,


deixava-se arrastar, mas logo que passavam aquelas dulcíssimas
comoções, ia ter com o Confessor e lhe perguntava com a mais
humilde simplicidade: “Diga-me, meu pai, que hei de fazer?”.
Quão terna e tocante era essa luta que se via obrigada a sustentar
com o próprio Jesus, que tanto se fazia sentir!
“Mas o confessor me disse que Vós não sois Jesus, pode o
confessor enganar-se?”
A vida dos justos sobre a terra é um entrelaçamento de
consolações e penas. Já falamos alguma coisa sobre esta verdade,
porém, demonstrá-la-ei mais em seguida, quando tratar das provas
místicas a que Nosso Senhor submeteu a nossa Gema.
Agora, para não mudar de assunto, direi somente que das
consolações (com que foi muito favorecida) ela não era ávida sendo
inteiramente desapegada neste ponto também. Quando Deus lhas
dava, recebia-as com muita gratidão e sabia muito bem aproveitar-
se de tão grande graça como estímulo para a perfeição. Quando
lhes tirava, deixando-a desfalecer nas trevas e no abandono, por
maior que fosse esta dor ao seu coração apaixonado por seu Deus,
exclamava contente:

Que Jesus faça como quiser. Que Ele esteja contente e todos também
contentes. E por ventura mereço eu consolações? Basta que eu O possa ver
na outra vida; não me importa sofrer nesta!

Ora, como é possível ainda o receio de poder haver ilusões em


uma alma tão bem preparada?
Somente os ignorantes em matéria espiritual e os desocupados
podem assim pensar. No entanto, sabemos bem que quem se
desprende de si mesmo por amor de Cristo, reveste-se de Cristo e
das suas virtudes. E quem vive revestido de Cristo, não pode estar
sujeito ao engano.

1 Cf. Lc 9, 23.
2 O Venerável Padre Germano parece querer salientar aqui o trabalho da graça de Deus,
e o esforço pessoal de Santa Gema, no caminho de santificação. E para tal, acaba por
pintar com cores muito fortes certas características femininas, bem ao gosto do início do
século XX – NT
3 Orações e sacrifícios para a libertação do Purgatório.
CAPÍTULO XVI

A BOA GEMA:
DA SUA PERFEITA OBEDIÊNCIA

Falemos agora a respeito da rara obediência em que tanto se


exercitou esta bendita criatura, renegando a sua própria vontade e
entregando-a toda nas mãos de quem a dirigia. O assunto é
importantíssimo porque nesta virtude da obediência consiste
principalmente essa renúncia que, como afirmamos, é tão
necessária à vida do perfeito cristão, conforme diz Nosso Senhor:
“Quem quer acompanhar-me, negue-se a si mesmo”.1
Gema, órfã e vivendo numa casa estranha, obedecia à sua amável
benfeitora, deixando-se conduzir totalmente por ela. Esta lhe dizia
sem preâmbulos:
“Gema, levanta-te; saiamos; vai para teu quarto; deita-te”, e ela,
sempre pronta, obedecia logo a ordem sem nunca apresentar
objeção, embora doente e com febre, quando alguns atos de
obediência lhe eram bem incômodos.
Estando na igreja, entregue aos deliciosos colóquios com o seu
Jesus depois da Comunhão, se a sua companheira lhe fazia sinal
para voltar para casa, Gema se levantava imediatamente, como se
estivera ali ociosa, só à espera daquela ordem, e a seguia.
A influência desta virtude, como já vimos, aparecia até nos
êxtases!
Ouçamos a essa mesma senhora, que assim o refere:

Um dia, tendo Gema recebido a Sagrada Comunhão e a benção do padre,


chamei-a para voltarmos para casa, porém, já estava em êxtase. Temendo
que alguém pudesse perceber, disse a mim mesma: “Ó Jesus, se é de vossa
vontade, fazei com que ela, por obediência, volte já a si”. Crê Vossa
Reverendíssima? No mesmo instante levantou a cabeça. Eu lhe disse que
voltávamos e obedeceu. Vendo eu como fui tão bem sucedida nessa prova,
assim procedi daí em diante, e Nosso Senhor que tanto amava a sua fiel
serva, sempre intervinha para fazer-lhe praticar a obediência.

Quando estava deitada, por doente, embora rodeada de muitas


pessoas que falavam entre si, se a referida senhora lhe dizia:
“Gema, tens necessidade de repouso, dorme logo”, ela fechava os
olhos e punha-se a dormir profundamente.
Eu mesmo quis fazer essa experiência uma vez, achando-me
naquela casa, numa dessas ocasiões, junto do seu leito em
companhia de outras pessoas, disse-lhe: “Recebe minha benção e,
agora, dorme, que nós nos retiramos”.
Não tinha acabado de dar a ordem e Gema, voltando-se para o
outro lado, já estava imersa em profundo sono. Então eu me
ajoelhei, e erguendo os olhos ao céu, comovido, pensei em dar-lhe
um preceito mental para que acordasse. Fato admirável! Como se
tivesse sido chamada por uma voz forte e sonora, despertou logo e
sorriu.
Eu a censurei: “Mas é assim que obedeces? Disse-te que
dormisses”. Ela, muito humilde: “Não se aflija Sr. Padre: senti-me
bater no ombro, e uma voz forte me gritou: acorda, que o Sr. Padre
te chama”.
Era o seu Anjo da Guarda, sem dúvida, que velava a seu lado.
Ninguém pense que a grande docilidade desta virtuosa donzela
fosse efeito de gênio tímido, irresoluto e incapaz de discernir a
verdadeira importância de cada coisa. Qual fosse o seu
temperamento já observamos várias vezes: era mais inclinado a
mandar e dominar do que a obedecer e sujeitar-se; de modo que os
atos desta virtude que com tão rara simplicidade praticava,
submetendo-se a seus superiores, eram somente fruto de sólida
virtude, e não devidos à natureza; pois, pelo contrário, precisava de
reprimir-se, fazendo-se continua violência a fim de se deixar
conduzir até aquele ponto.
Se tão perfeita era a docilidade com que se dobrava à vontade
alheia, nos atos materiais é fácil compreender quanto maior ainda
devia ser a sua obediência no tocante ao espiritual, ao qual
dedicava todos os seus cuidados.
Era tão humilde que se sentia inteiramente incapaz de dar por si
mesma um só passo por este árduo caminho, e querendo não só
andar, mas correr a voar por ele, estava intimamente convencida de
não poder proceder melhor do que entregando-se completamente
nas mãos do guia indicado por Deus.
Assim pensou, e assim o fez:

Daqui em diante resolvi fazer só a vontade do confessor, e não mais a


minha. O próprio Jesus assim me ordenou e muitas vezes me repete que eu
não devo ter mais vontade nem opinião, mas seguir só as do confessor.

Por esse motivo recorria constantemente a ele, ora para perguntar


se tinha andado bem em tal circunstância, ora para saber que devia
fazer em outra.
Leiam-se as suas cartas e ver-se-á que só tinham esse fim, e é
certo que se ela não sentisse tão grande necessidade de direção,
que a induzia a falar ou escrever, não saberíamos quase nada do
admirável trabalho interior da graça nesta alma privilegiada. Oh! A
que minuciosidades descia esta donzela, aliás tão favorecida do
dom da ciência infusa dos bens celestiais!

Se o Senhor achasse bom, eu pediria a Jesus que me acalmasse um


pouco a cabeça – referia-se às dores atrozes que a martirizavam. Devo dizer-
lhe? Quer que eu faça a confissão geral ao padre provincial? Se o Senhor
aprova, eu farei; se não quiser, do mesmo modo ficarei contente. Permite que
eu peça a Jesus a graça de fazer a hora de agonia todas as noites?

Escrevendo ao confessor ordinário, dizia:

Queria pedir-lhe que me fizesse entrar num convento, mas o diretor,


parece-me, não quer que eu repita estas palavras; então nada direi. Faço
bem em ir passar o dia de amanhã com as freiras? Prometo me comportar
bem.

Espero não ser molesto ao leitor com estas citações, antes, creio
que lhe será agradável, embora a custo de alguma repetição,
conhecer melhor pelas suas próprias palavras, a bela alma da boa
Gema:

Sábado tive licença de me levantar cedo, levantei-me e rezei, mas queria


imitar as freiras no convento. Permite o Senhor que eu peça a um padre
passionista que me ensine o que eles fazem para que eu o faça também?
Gostaria, meu Pai, que eu pedisse a Jesus o favor de morrer tísica (quando
for tempo, bem entendido, não agora)? Eu tenho este desejo, mas fico
satisfeita de qualquer modo, desde que faça a vontade de Jesus.

E, animando-se cada vez mais, pela sua filial confiança, em outra


carta escreveu:

Dá-me licença, meu pai, que eu renove a Jesus o meu pedido de me tirar
depressa desta vida para O possuir na glória? Vivo sempre tremendo pelo
receio do perigo de ofendê-Lo.

A todas estas e outras consultas, o diretor e o confessor2


respondiam, conforme se sentiam inspirados por Deus, e Gema,
mostrando de fato a sinceridade do que asseverava com as
palavras, ficava satisfeita, quer com a permissão, quer com a
recusa, e não pensava mais nisso. Quando a resposta negativa
revestia a forma de uma ordem ou até mesmo a sombra de uma
proibição, a santa donzela não a perdia de vista, para se submeter a
ela inteiramente.
A este respeito, tenho que referir fatos tão singulares que
pareceriam incríveis se não fossem verdadeiros.
Disse há pouco que Gema, para obedecer ao seu diretor, era
constrangida a lutar com o próprio Jesus: pois lhe tinha feito crer
que não devia ser Jesus quem lhe aparecia, e sim o demônio.
Acrescento ainda que ela chegou a resistir ao seu divino Esposo,
embora fosse reconhecido, afinal, pelo próprio diretor, porque
apenas a obediência lhe proibia entreter-se com Ele e ouvi-Lo.
Esta luta era certamente superior a toda a força humana, mas
Gema a sustentou com todo valor e venceu.
“Oh! Quanto o meu doce Jesus me tenta! Mas estou firme na
obediência, embora me exija muito esforço”.
Oh! Precioso sacrifício! Bela e querida obediência!
Uma vez entre outras, parecia-lhe ver o Salvador todo coberto de
chagas, que a convidava a se aproximar d’Ele e beijá-las. A tal
espetáculo, lembrando-se da proibição que tinha, a piedosa virgem
caiu num pranto, mas não se aproximou. Comovendo-se cada vez
mais e, abrasando-se o coração, começou a sentir nas mãos, nos
pés e no lado, os indícios usuais da impressão das chagas.

Meu Deus, que hei de fazer? Assim que percebi – conta ela mesma –,
levantei-me, fugi depressa para longe, deixei Jesus, e assim obedeci e fiquei
satisfeita.
Pobre Jesus! – dizia mais tarde – quantas vezes tenho sido incivil para com
Ele, tenho-O repelido resolutamente, para obedecer ao confessor; e Ele tão
bom, não se mostrava triste comigo!

Numa ocasião, teve licença de se entreter, só por um tempo


determinado, com o Senhor, quando Ele a fosse visitar, a fim de não
prejudicar o seu sono (pensava o prudente confessor).
Eis o que aconteceu: Jesus lhe apareceu numa dessas noites de
quinta para sexta-feira. Gema tomou parte, como de costume, nas
dores da Paixão, e seu coração se desfazia em amor na presença
do amantíssimo Redentor; quando ouviu tocar a hora marcada para
terminar tão celestial visita,

Que fazer? Jesus se demorava ainda, mas via bem o embaraço em que eu
estava. Para obedecer, devia despedir a Jesus, porque a hora fixada se tinha
esgotado. Jesus, ainda me disse: ‘Dá-me um sinal de que daqui em diante
sempre me obedecerás’. Porém, eu exclamei: Jesus, ide-Vos embora, que
não Vos quero mais.3

O mesmo lhe aconteceu por vezes com o Anjo da Guarda, no que


falamos em outro capítulo.
Eu soube um dia que aos pés de Jesus ela tinha recebido aviso de
quando deviam chegar minhas cartas a Lucca, e ela com a sua
encantadora ingenuidade o anunciava em casa: “Hoje ou amanhã
de manhã, com este ou aquele trem deve chegar uma carta do Sr.
Padre; ele a pôs no correio ontem à tarde ou hoje a tal hora”. E
assim como ela dizia, se realizava exatamente, sem nunca falhar.
Quis mortificá-la também neste ponto, censurando esse seu
procedimento como devido à leviandade e soberba.
Eis de que modo ela recebeu a correção:

Meu pai, de joelhos lhe peço perdão de tudo. Não, não, nunca mais
pensarei em fazer o que fiz, nem em dizer o que disse contra sua ordem.
Creia que todo o dia do Domingo me esteve presente a sua repreensão. Terei
todo o cuidado em nunca mais fazer profecias sobre a chegada das suas
cartas. Do que eu fiz e disse, me arrependo muito, detesto-o, e não o
repetirei. Escreva para o futuro quando quiser, que eu não ousarei infringir a
sua ordem.

Depois, sabendo bem que aqueles avisos lhe tenham sido


comunicados pelo seu Deus, com humilde sentimento acrescentava:
“Deveria talvez me explicar, mas não, prefiro obedecer, ficando
calada. Viva Jesus!”.
Como o tempo não fazia jamais com que se esquecesse das
recomendações do seu diretor, depois de alguns meses, ainda me
escreveu o seguinte:

Meu pai, venci! Hoje cedo, antes da Sagrada Comunhão, soube, com
certeza, que esta manhã devia vir uma carta sua. Sofri um pouco pelo grande
desejo que sentia de dar essa notícia: mas abafei-o e conservei-me calada,
conforme a obediência me mandava. Assim, tudo vai bem, não é mesmo?

Já falei oportunamente do raro fenômeno do derramamento de


sangue, que tão frequentemente Gema apresentava, quando no
êxtase o coração ficava tão abrasado que chegava até a dobrar-lhe
com força as costelas.4
Ora, o seu confessor ordinário lhe proibiu esse ardor, embora
soubesse que não dependia dela tal sentimento.
Não obstante, a santa donzela fez esforços extraordinários para
satisfazer ao seu pai espiritual, ainda mesmo estando abstrata, sem
o uso dos sentidos; e quando via que o seu esforço era inútil, sentia
logo remorsos e se acusava de desobediência.

Desobedeci ao confessor – escreveu-me – que me proibiu deitar mais


sangue pela boca. Até agora tinha obedecido, mas esta manhã, em uma
expansão mais forte do coração, veio-me um pouco. Com que coragem me
apresentarei ao confessor?

Não se sabe o que mais admirar nessas palavras, se a rara


simplicidade ou a ilimitada extensão da obediência da virtuosa
jovem.
Referi-me também como aquele prudente confessor, temendo que
os tormentos a que cada semana Gema se submetia da quinta para
a sexta-feira não lhe fizessem perder a saúde, acabou por proibi-los
todos, sem exceção, dando-lhe um formal preceito de obediência.
Vejamos que maravilha: o próprio Divino Autor do prodigioso
fenômeno quis que fosse respeitada a ordem do seu ministro,
enquanto este a quis conservar; e ordinariamente o fenômeno não
se reproduziu mais, pelo menos quanto à manifestação exterior.
A boa Gema se sentia contente, por mais pesada que lhe fosse tal
proibição. Escrevendo-me dizia:

O confessor me ordenou, por obediência, não ter mais nenhum fenômeno


extraordinário, e tudo vai bem. Mas, oh! De que violência preciso usar para
me conservar boa!

No êxtase, ouviram-na exclamar:

Oh! Querida obediência, que me privas de todas as doçuras do meu amor,


quanto aspiro pela hora de te abraçar.

Numa indisposição de estômago, que sofreu pouco antes da


última doença, ficou em tal estado que não podia ingerir mais
alimento algum, nem sólido nem líquido. Quiseram provar a sua
obediência ainda nesta ocasião, e deu excelente resultado.

Estou pronta – respondeu-me logo a boa Gema – a fazer tudo que o senhor
me mandar. Espero que Jesus me dê forças para obedecer, e estou certa de
que na primeira sexta-feira próxima (do mês), não rejeitarei mais nenhum
alimento.

De fato, no principio do mês seguinte, pôde, sem a menor


dificuldade, ingerir e conservar a comida no estômago.
Depois de tão eficaz experiência, multiplicam-se sem conta as
ordens; para qualquer necessidade, recorriam ao confessor ou ao
diretor, e bastava que mandassem dizer a Gema que, por
obediência se conservasse sã, por obediência deixasse a cama, por
obediência voltasse a si, que prontamente desaparecia a febre,
cessava o êxtase, a síncope, e Gema se levantava ágil e robusta.
Reconhece-se quanto era verdadeiramente agradável ao Senhor
esta santa obediência pela solicitude com que Ele próprio se
dignava inculcá-la à sua serva, quer diretamente, quer por
intermédio do anjo custódio: “Obediência! Obediência!” pode-se
dizer que era a conclusão de todas as celestes locuções, de que era
tantas vezes favorecida.
“Obediência cega, obediência perfeita; que sejas como um corpo
morto; tudo o que quiserem de ti, executa-o prontamente”.
Não lhe poupava também o Senhor amargas repreensões, se por
acaso negligenciava de leve, o que fosse, na perfeição desta
virtude.
“Se não obedeces até ao sacrifício”, dizia-lhe Jesus, “entregar-te-ei
nas mãos de teu inimigo”. “Se não te vences”, dizia-lhe o anjo da
guarda, “para cumprir prontamente o que te é ordenado, não
aparecerei mais à tua vista”.
A fervorosa jovem tudo aproveitava: tanto as severas ameaças,
como as suaves exortações – quer as do Senhor quer as do anjo; e
o seu adiantamento nesta virtude, como em todas as outras, era
visível.
Ela já estava tão habituada à obediência, que somente no seu
exercício achara paz e tranquilidade. Dizia ela:

Que consolação sente o meu coração em obedecer; esta virtude produz em


mim tão grande calma que não me sei explicar! Viva a obediência, da qual
procede a paz! Graças lhe dou, meu pai, porque me fez o preço de tão bela
virtude, e me deu tantos conselhos e instruções graças aos quais me acho
livre de tantos e graves perigos. Praticarei sempre tudo o que me for
ordenado, com o auxílio divino, para satisfazer a Jesus.

Noutra carta escrevia:

Não receie, Sr. Padre, recomende-me a Jesus, que praticarei sempre e em


todo o lugar a obediência; até de certo modo, com o seu último exercício já
não sinto mais o peso. Foi Jesus que me concedeu esta graça, e eu lhe serei
sempre agradecida!

Em seguida:
Jesus me prometeu mostrar-lhe sua vontade a meu respeito, contanto que
eu lhe peça com humildade, como já tenho feito. Assim, estou em paz,
esperando que a santíssima vontade de Deus se cumpra em mim em tudo.

Ora, este é o último grau de obediência, a alegria na própria


abnegação! Gema o alcançou. Tem pois direito às promessas: “O
verdadeiro obediente cantará vitória” – Vir obediens loquetur
victorias.5

1 Lc 9, 23.
2 Designa-se aqui por confessor o Servo de Deus Mons. João Volpi; e diretor, o
Venerável Padre Germano, autor do livro – NC.
3 Aqui aparece a obediência heroica de Santa Gema. Ainda que interiormente chamada
por Deus, atendia o critério objetivo da obediência ao diretor – NC.
4 Como vimos na nota da página 82: Manifestação do fenômeno chamado de
hipertermia, ou incendium amoris. Também as costelas de São Felipe Néri sofreram esse
alargar, após a experiência mística da festa de Pentecostes de 1544. Tal fenômeno ela
partilha com muitos outros místicos passionistas, como o Pai São Paulo da Cruz, a
Venerável Lucia Magano, e a Serva de Deus Edvige Carboni.
Sobre esse fenômeno, o dominicano Royo-Marín aponta três graus: simples calor,
adores intensíssimos, queimadura material. Santa Gema apresentou todos os três. Cf.
Antonio Royo Marín, Teologia de la Perfección Cristiana. Madrid: BAC, 2011, pg. 926 – NC.
5 Pr 21, 28. Texto da Vulgata de São Jerônimo.
CAPÍTULO XVII

A BOA GEMA:
DA SUA PROFUNDA HUMILDADE

O orgulho afastou o homem de Deus. Já a humildade o reconduz a


Deus. O orgulho é o principio funesto de todos os vícios; a
humildade é a mãe fecunda de todas as virtudes e o fundamento
principal da perfeição evangélica.
Quereis saber, dizia Santo Agostinho, qual é o primeiro grau da
santidade? É a humildade; e o segundo? A humildade; e o terceiro?
A humildade! E quantas vezes me repetirdes a pergunta, tantas
vezes responderei: a humildade.1
Ora, esta profunda doutrina era a da nossa Gema que, estando no
leito de dor, pouco antes de morrer, interrogada por uma das
enfermeiras que lhe assistiam, qual era a mais importante virtude, a
mais cara a Deus, respondeu logo com muita vivacidade: “A
humildade, a humildade, que é o fundamento de todas as outras”.
Apreciando eu do mesmo modo o valor desta virtude, servi-me
desta pedra de toque para conhecer o espírito da Serva de Deus,
desde a primeira vez que tive de examiná-la.
Muitas pessoas, e o seu próprio confessor ordinário, mostravam-
se resistentes à vista de fatos tão extraordinários que contemplavam
em tão singela menina ao dar os primeiros passos no caminho da
perfeição, e diziam entre si: “Poderá vir de Deus um tal estado, que
só se tem encontrado nos grandes santos que floresceram na
Igreja? “Eu respondia: “Será certamente de Deus, se ela for
humilde!”.
Comecei a examiná-la e, desde as primeiras provas, pude verificar
que a piedosa jovem tinha compreendido a grande importância
desta virtude, e se dedicava com todo o ardor a praticá-la antes de
qualquer outra. Numa palavra, achei-a humilde em extremo até à
medula, por isso não duvidei mais e pude exclamar: “Ditosa menina,
que iluminada tão cedo por Deus, soubeste servir-te deste grande
meio! Tua santidade é bem verdadeira a meus olhos!”.
Quando, aos treze anos de idade, ela fez os exercícios espirituais
na casa das Irmãs de Santa Zita, entre as máximas que
aconselhava o pregador, a que mais impressão fez no coração de
Gema foi esta: “Nós não somos nada; Deus é tudo”.
A fervorosa donzela não a esqueceu durante toda a sua vida. Não
há quase uma carta escrita por ela, especialmente ao seu diretor,
em que este sentimento da sua baixeza não apareça com
expressões cada vez mais enérgicas e viva eloquência, à proporção
que crescia no conhecimento de Deus, e acabou por ficar tão
intimamente compenetrada desta verdade, expressa por Santo
Agostinho nestas breves palavras: Noverim te, noverim me
conhecendo a Vós meu Deus, me conheceria a mim mesma; que
lhe parecia impossível poder um homem ensoberbecer-se.2
Na realidade, durante toda a sua vida, ela nunca teve um
pensamento de amor próprio. “Como é possível”, costumava dizer,
“que eu me orgulhe? Poderia haver maior loucura do que esta?”.
Uma vez, para mortificá-la, repreendi-a, aconselhando-lhe ao
mesmo tempo, que estivesse de sobreaviso para premunir-se contra
o orgulho, do qual aparentava ter visto algum oculto verme em seu
coração. Eis com que termos ela me respondeu:

Li a sua carta. Ó meu Deus, tende piedade de mim! É verdade, sim é


verdade que tenho orgulho. Ouça, meu pai, logo que li aquela palavra
orgulho, o demônio serviu-se dela para me fazer cair quase que no
desespero, e passei cerca de uma hora bem mal. No auge da aflição, corri
para junto de um crucifixo, com a fronte por terra, pedi-Lhe que ali a seus pés
me fizesse morrer, mas Ele não quis. Depois, de repente, recuperei a calma.
Pobre de meu Jesus, quantas vezes o desgosto! Onde chegarei se continuo
deste modo? Mas não, não quero reincidir. Peço-lhe também perdão: não
fique mais tão contrariado, verá que eu não procederei mais assim. Esta sua
carta dizia a verdade, agradeço-lhe de joelhos. Entretanto, por que se admira
e inquieta? Não sabe como tenho a cabeça dura e compreendo pouco?
Então vamos, perdoe-me! Não lhe causarei mais pesar. Que tristeza terei
dado a Jesus com esses pensamentos de soberba!

Quais eram aqueles pensamentos, ela própria nem sabia. Mas


acreditava porque seu diretor lho dizia, e assim continuava na carta:
Meu pai, peça a Jesus que tenha piedade de mim, da minha pobre alma
que, em vez de ser boa, só cuida em se encher de malícia, iniquidade e
soberba. Mas Jesus, que me fez a graça de conhecer este feio pecado, me
dará agora a força para me corrigir.

Em seguida repete:

Tremo, tenho medo que Jesus me castigue porque O ofendi e contrariei.


Sabe que castigo temo? E bem o mereceria: o de ser condenada a não amar
mais a Ele, ao meu Jesus. Não, não, Jesus, escolha para mim outros
castigos, mas este não! Meu pai, se vir que eu ainda tenho orgulho, mate-me,
faça tudo, mas tire-me depressa o orgulho.

Às palavras correspondiam os fatos: ninguém a viu jamais altiva


nem a ouviu louvar-se ou ostentar os seus dotes; pelo contrário, não
havia quem a igualasse na modéstia e no cuidado de esconder-se
aos olhos de todos.

Por caridade, meu pai – escreveu-me –, não fale de mim com ninguém,
senão para dizer o que sou na realidade. Humilhar-me-ei, converter-me-ei,
pedirei perdão pelo engano que uso para iludir a boa fé de todos, e Jesus,
infinitamente bom, me perdoará.

Ora, falando dos seus dons naturais, ela possuía muitos e raros;
viveza e perspicácia de espírito, fortaleza de alma, caráter resoluto;
contudo, vendo-a e conversando com ela, nada se acha de singular.
Pedia sempre conselho, auxílio e direção – parecendo não ter
capacidade de, por si mesma, tomar qualquer decisão.
Tinha aprendido bem no colégio o francês, o desenho e a pintura,
mas ninguém, depois que ela deixou os estudos, lhe ouviu uma
palavra nessa língua, ou percebeu que pegasse num pincel ou tintas
para desenhar. Soube-se o quanto era versada nessas artes
somente pelas professoras, depois da sua morte.
Gema também tinha uma grande aptidão para a poesia, mas não
se serviu deste talento, por mais instâncias que lhe fizessem,
dizendo ser uma vaidade, ou ao menos uma perda de tempo.
Possuía também uma belíssima voz e gosto para o canto. Quem
conhecia a sua grande paixão para louvar a Jesus e à sua celeste
Mãe, podia esperar que, ao menos estando só no trabalho,
prorrompessem de seus inocentes lábios piedosos cânticos. Mas
não, jamais alguém a ouviu cantar, nem à meia voz.
É claro que estas mortificações praticadas constantemente por
uma donzela de tão pouca idade, de gênio tão animado ativo, são
sinais evidentes de acrisolada virtude.
Que direi dos dotes da sua alma? Gema possuía-os em grau
extremo; era rica de um cortejo de virtudes que a punham ao lado
das almas mais privilegiadas, cuja vida é tão admirada. Tinha dons
tão extraordinários que causa espanto as suas simples descrições.
Todos os percebiam e se edificavam; só ela mostrava não conhecê-
los, ou não lhes prestava atenção, a não ser para humilhar-se ainda
mais diante de Deus e dos homens.
Quantas vezes não se deteve em importunar ao Senhor para que
lhe tirasse aquelas graças assinaladas, que ela pensava não lhe ser
digna de tê-las, e as desse antes a outros que melhor soubessem
cor-responder!

Não me mandeis fazer – ela dizia a Jesus – o que não está a meu alcance,
porque não sirvo para nada. Vede como tantas graças que me concedeis, e
não sei como hei de corresponder! Procurai, procurai outra pessoa que as
mereça mais do que eu.

Certa vez, quando Gema se afligia por este motivo, o Senhor, que
para ela era um bom Mestre no exercício da humildade, para melhor
confirmá-la nesta virtude, fez-lhe sentir no coração as seguintes
palavras: “Faze o que podes; quero servir-me de ti exatamente
porque és a mais pobre e pecadora de todas as minhas criaturas”.
Ela, com ingênua familiaridade, respondeu: “Jesus, farei o que Vos
parecer melhor, e estarei contente”.
Noutra ocasião, Deus lhe fez contemplar a própria alma ao clarão
da sua infinita luz, para que se humilhasse àquela vista, e dizia-lhe
ao coração que devia envergonhar-se de aparecer diante das outras
pessoas. Gema não só se humilhava e corava de si mesma, como
ficava aturdida. “Se meu pai visse”, confiou-me um dia, “como minha
alma é feia! Jesus me a tem mostrado”.
Também para se fazer amar ainda com mais generosidade, o
bondoso Senhor mostrava não lhe dar importância, apresentando-
lhe com um ar muito severo.

Jesus – dizia ela – mal me lança um olhar e, se olha para mim, está tão
sério que às vezes não tenho coragem de encará-Lo; parece-me até que me
repele! Grande tormento é este! Veja pois, meu pai, estou quase abandonada
de Jesus pelos meus pecados. Que farei agora? A quem recorrerei?
Pergunte a Jesus, e ouça o que Ele lhe disser.3

Não só no tempo da provação, mas até mesmo quando Jesus a


tratava com doçura, não se animava a olhar para Ele nas frequentes
aparições com que era favorecida, tão grande era a confusão de
que se revestia na presença da Majestade Divina.
Com tão belas disposições, a graça podia descer em torrentes
sobre esta alma, sem receio de fazê-la sair da sua humildade, pois
quanto mais recebia, tanto mais se compenetrava do seu nada.
Posso atentar que a piedosa virgem nunca me comunicou, quer
falando quer escrevendo, as graças que Deus lhe fazia, sem acabar
por algum ato de profunda humildade. O seguinte exemplo, além de
outros que tenho referido, vale para confirmar ainda mais o que
digo. O Senhor encheu-a uma vez de tão suaves e vivas
consolações, que lhe parecia ter renascido para uma vida nova.
Eis como, depois de fazer uma breve narração sem dela tirar
vanglória, ela mesma diz:

Quanto não me devo admirar da infinita misericórdia de Deus? Sim, Jesus


é deveras o meu Jesus, todo cheio de misericórdia para comigo, miserável e
ingratíssima pecadora que sou. Novamente Ele operou o milagre de minha
conversão, pois que pelas luzes que Ele se dignou conceder-me, vim a
adquirir o conhecimento de minha baixeza.

Por estas e outras palavras que, a cada passo, voltam a seus


lábios e à sua pena, é fácil compreender que a boa Gema não era
tão humilde só em consequência do seu nada, posto na presença
de Deus, que é tudo, mas principalmente porque se considerava
infiel aos grandes favores que d’Ele recebia. Tinha formado a mais
alta ideia da virtude, e da obrigação que a criatura tem de honrar a
majestade do seu Senhor com uma vida imaculada e santa.
Conhecia também a fundo o valor e o preço daquelas graças que,
deste terno Pai, a sua alma recebia. E costumava dizer que valiam
tanto quanto o sangue de Jesus.
Compenetrada destes pensamentos, não podia estar contente
consigo, e confundia-se, estremecendo dos pés a cabeça.
Eis algumas de suas expressões sobre este assunto:

Deveria pensar, meu caro pai, em tudo o que me falta para ser digna filha
de Jesus, e em vez disso... – Estes pontos, que muitas vezes Gema usava,
significam o muito que ela via, sentia e não podia exprimir – deveria combater
valorosamente, vencendo-me; e em vez disso... Não me resta senão
humilhar-me sob a mão poderosa de Deus, e rezar sem procurar a minha
satisfação.

Era esta uma chaga que a piedosa virgem tinha aberta no meio do
coração, a qual ao mais leve toque se avivava e derramava sangue.

Eis que estamos no mês de maio – escrevia ainda –, penso nos grandes
benefícios que me fez a minha Mãe nos primeiros anos de minha vida, e
envergonho-me porque não tenho correspondido àquele coração e àquela
mão que, com tanto amor me os tem proporcionado. Pelo contrário, e o que é
pior é que só com ingratidões tenho compensado os grandes benefícios que
Ela me faz.

Sabendo bem quão grande era a sua virtude, disse-lhe um dia,


entretendo-me em a humilhar: “Não compreendo como Jesus pode
manchar sua mão nesta lixeira”. Sorriu-se a angélica menina, e
alegrou-se, parecendo-lhe ter encontrado nas ditas palavras o
resumo que ela há muito procurava para se qualificar.
Guardou-as de memória e a cada passo as repetia, falando e
escrevendo, até mesmo estando absorta no êxtase: “Jesus como
podeis sujar vossas mãos com esta lixeira de Gema?”.
Aparecendo-lhe o seu anjo da guarda, a Ele também dizia: “Peço-
vos, não mancheis vossas mãos nesta lixeira”. A este costumava
ajuntar outro, inventado por si mesma: este “ser aviltado”. “Que
faremos, meu pai, deste ser aviltado?”. Queria dizer desta criatura
indigna, profanada, abjeta e horrorosa aos alhos de Deus e dos
homens.
Quando rezava, chorava: “Minha querida Mãe, meu Deus tão
querido, como se poderá levantar este ser aviltado? E quando?”.
Com a alma compenetrada do mesmo sentimento, tendo sabido
um dia que eu de Roma ia a Isola, onde está o túmulo do Bem-
aventurado Gabriel, escreveu-me logo uma grande carta
encarregando-me de várias recomendações para ele, sendo a
principal a seguinte: “Diga ao Venerável (agora Santo!) estas
palavras urgentes: ‘Que faremos de Gema?’. Diga-lhe isto, meu pai,
e transmita-me a sua resposta”.
Assim como se confundia a humilde jovem quando se via tão
beneficiada por Deus, apesar da sua indignidade e
desmerecimentos, assim também se humilhava quando era tratada
com bondade e atenções pelas criaturas. Não sabia fazer
cumprimentos, e por esse motivo sentia tanto pesar que quem o
tivesse podido perceber teria evitado qualquer ocasião de tais
demonstrações para não a fazer sofrer tanto.

Peço a Jesus – escrevia-me –, paciência, não para mim, mas para esta tia
que tanto se preocupa comigo. Eu não queria nada do que ela me faz. Se
visse, meu pai, em certas ocasiões ela me prefere aos outros, chega a trazer
o fogo para me aquecer o leito. Ora, isto é coisa que se faça comigo? Diga-
me, a mim que mereceria ser tratada como uma galinha (como me diz o
confessor); em vez disso enche-me de carinhos e minha boca não se abre e
eu não lhe sei dizer nem um obrigado. Oh! Se eu pudesse ao menos com
minhas fracas orações proporcionar algum bem a quem tanto me ajuda!
Gostaria que todos me considerassem como uma escrava.

Todos sabem quanto são inclinadas as almas devotas, e em


especial as que fizeram votos de virgindade a chamarem a Jesus de
seu esposo, e a si mesmas, esposas de Jesus. Com Gema não era
assim.
Embora ela amasse com todo o ardor de sua alma, ao Divino
Verbo, que por amor, verdadeiramente se desposou com a nossa
pobre natureza, e se visse tratada por Ele com tão particular ternura,
não se atrevia a chamá-lo de Esposo.
Filha, serva inútil, virgem louca, mesquinha criatura, eram os
títulos que tomava; o de esposa, nunca, ao menos fora do êxtase.
Duas ou três vezes somente estando arrebatada em altíssima
contemplação, ouviu-se que ela chamava o seu caro Senhor,
Esposo de Sangue.4
Nas cartas que escrevia terminava sempre com esta forma
invariável: “Reze por mim. Sou a pobre Gema”.
Um dia eu lhe disse que devia acrescentar um sobrenome, que se
não quisesse outros, tomasse o de Gema de Jesus. A estas
palavras ficou muito mortificada a humilde donzela, aparecendo-lhe
uma excessiva pretensão, e duvidou em concordar; eu insisti,
dizendo-lhe que aquele nome não queria dizer que ela era digna de
Jesus, mas sim que se queria gloriar apenas em Jesus.
Mostrou ficar convencida, e desse dia em diante começou a
assinar, como eu lhe propus: “pobre Gema de Jesus”.
Durou, porém, pouco tempo, porque, prevalecendo o sentimento
de sua própria baixeza, foi-se esquecendo daquele conselho e
acabou por deixá-lo de todo, de modo que, voltando ao seu antigo
hábito, não se chamou mais em toda a sua vida senão: “a pobre
Gema”.
Este profundo e vivo sentimento da sua indignidade a levava a
recomendar-se a todos os que conhecia, para que rezassem por
ela.
Sua eloquência aqui também encontrava sempre novas formas.

Recomende-me a Jesus e peça também a outros, pois faz uma grande


caridade quem reza por mim. Peço-lhe a benção; e depois diga ao confrade
[São] Gabriel que pense também na pobre Gema.

Noutra carta:

Se soubesse, meu pai, de que meios Jesus usou para confundir a minha
soberba! Oh! Se conhecesse quanto sou má! Quem me dera a virtude
necessária para atrair a Jesus? Reze, e faça rezar a fim de que Ele me dê
brevemente as graças necessárias para reparar minha tão grande miséria,
esclarecer minha mente a fazer-me conhecer as horríveis trevas em que
estou.5

Continua:
Mande rezar por mim todas as almas santas, a fim de que, por mais baixa e
indigna que seja, Jesus se glorifique na minha pobre alma.

Quando, porém, outros se dirigiam a ela, pedindo que os


recomendasse a Deus em suas necessidades, o que acontecia
frequentemente pelo grande conceito em que era tida por algumas
pessoas, à vista de sua rara virtude, afligia-se sumamente.
À sua mãe adotiva respondia assim:

Ouvi. Fiquei deveras admirada quando na vossa carta, me obrigais a pedir


por aquela senhora; se não me conhecereis, teríeis razão; mas agora que me
conheceis bem!... Não digo mais nada. Uma alma tão má, cheia de defeitos,
que pouco ou nada procura fazer por Jesus, que pode obter d’Ele? Obedeço-
vos contudo; mas não vos fieis em mim, porque não sei fazer nada.

A um venerando sacerdote respondeu:

Eu rezei, sim; mas o Senhor sabe muito bem que as minhas pobres
orações são fracas e sem valor, e Jesus escondido, não as atenderá.

Assim costumava chamar a seu Senhor, quando, subtraindo-lhe a


sua doce presença a deixava desolada.
Noutro lugar, falarei minuciosamente deste martírio interior do
espírito, com que de tempos em tempos o Senhor se comprazia em
experimentar a fidelidade de sua serva. Direi somente aqui que por
mais sensível que lhe fosse este sacrifício, jamais ousou queixar-se,
persuadida como estava de não ser digna das consolações
celestes, e só merecer aquele aparente abandono de Deus em
consequência de seus pecados. A este respeito escrevia com mão
tremula ao seu diretor:

Sabe, meu pai, Jesus afinal se cansou de mim pela minha grande frieza;
mas tem tanta razão! Por isso agradeço-Lhe sempre e adoro-O.

As próprias aflições com que a atormentava bastante


frequentemente o inimigo infernal, e de que falarei minuciosamente
mais adiante, faziam com que ela se humilhasse, pensando que
com alguma falta oculta talvez provocasse a justiça divina a
mortificá-la daquele modo.
Assim não se lamentava, mas suportava essa tribulação como
justo castigo dizendo:

Eu sei, eu sei porque Jesus permite que eu sofra assim do demônio. Eu lhe
direi na confissão, meu pai, mas tenho-me arrependido tanto! Parece-me que
o meu próprio anjo da guarda se envergonha de estar perto de mim.

Parecia-lhe que as pessoas que a rodeavam, deviam ver também


o seu anjo tão encolerizado, pois que um dia me disse com inefável
simplicidade:

Se o Senhor achar bom, meu pai, diga ao anjo que fique escondido para
não se deixar ver pelos outros.

Em poucas palavras, tudo servia a esta bendita filha para


humilhar-se. Se as dores atrozes dos estigmas a abatiam, o seu
coração ficava cheio de confusão e dizia:

Veja, meu pai, como estou sempre tão atrasada, como me repugna o
sofrer! Que fortaleza de espírito! Quase que me atrevo a escolher das mãos
de Jesus, quais os sofrimentos que quero e quais os que não quero. Reze
pela minha alma.

Quando sobrevinha em casa alguma desordem, atribuía logo a si a


culpa e até das desgraças comuns julgara ser a causa, qual outro
Jonas, teria pedido ser tirada deste mundo para que outros não
sofressem por sua culpa.
Já vimos quanto a piedosa jovem era solícita em revelar segredos
de sua consciência ao seu pai espiritual. Quem não a conhecesse
bem a tomaria por uma dessas almas levianas, que só tem
satisfação em falar de si e no que lhes interessa.
Pelo contrário, para a humilde Gema (e já nos referimos a este
ponto) esta abertura de coração lhe custava angústias mortais: teria
preferido entrar no fundo do inferno a dizer ou escrever uma só
palavra dos fatos extraordinários que a divina graça ia operando em
sua alma. Deixemos que ela mesma o declare:

Já há muito tempo que lhe digo certas coisas, e assim não devia ter mais
acanhamento; mas, em vez disso, sinto que sempre que devo escrever ou
confessar-me, este se aumenta. Mas não é vergonha nem sei como exprimi-
lo; é quase medo.

Na realidade eram ambos estes sentimentos. Acanhamento


porque não queria transmitir a ninguém fato que pudessem de
qualquer modo redundar em seu louvor; e medo porque receava
não se saber exprimir bem e assim poder induzir aos outros em erro
a seu respeito.

Tenho medo que em todos os fenômenos extraordinários que cada dia me


sucedem possa enganar-me e enganar aos outros. É verdade que não o
desejo de modo algum. Peça a Jesus que me ajude, para que não engane
aos outros. É tal o meu temor que às vezes quereria que ninguém me visse.

Mas de que enganos podia ser capaz esta alma tão cândida, que
nem sabia como era possível enganar a alguém?
Que ela mesma o certifique, como me disse uma vez, fazendo-me
a seguinte angélica pergunta:

Quisera que o senhor, meu pai, me explicasse o que quer dizer engano,
porque eu não queria enganar a ninguém.

E se tanta dificuldade sentia Gema em manifestar ao seu


confessor os negócios de Jesus, como costumava dizer, imagine o
leitor qual não seria quando tinha que revelá-los a outros.
Instruída na escola dos santos, tinha tomado como regra a grande
máxima do profeta Isaías: Secretum meum mihi;6 ninguém deve
conhecer os segredos do meu coração.
De fato, ninguém os conhecia, a não ser seu pai espiritual, e por
sua ordem formal, só a piedosa senhora que lhe servia de mãe e
ainda assim, ela vivia em continua angústia, receando que, contra a
sua vontade, alguma coisa transpirasse fora.

Eu me esforço por ocultar tudo; mas temo que num movimento imprevisto
outros possam saber o que Jesus quer que eu guarde em segredo. Pelo
caminho, na Igreja, procuro disfarçar, mas não o consigo sempre; e assim
podem dedicar-me uma estima que não mereço.
Era também este seu grande receio, que lhe fazia desejar com
ardor encerrar-se num convento. Além de outros motivos, pensava:
na clausura estarei oculta aos olhos dos mundanos.
Como já disse, em todo o tempo em que dirigi esta bendita
donzela, eu a vi sempre indiferente a tudo, sem desejos,
inclinações, nem vontade própria, como se estivesse inteiramente
morta a si mesma. Somente neste ponto de encerrar-se no convento
é que a achei tão firme, que tive muitas vezes de repreendê-la e
mortificá-la. Em quase todas as suas cartas com muita vivacidade
volta a este assunto:

Meu pai, não me deixe no mundo. O mundo não é feito para mim; tenho
medo. Venha depressa a Lucca e feche- me no convento. Oh! Porque me
deixa assim exposta aos olhos de todos? E que seria de mim, se viessem a
saber certas coisas?

E assim continuou por muito tempo até que Deus lhe fez conhecer
que tinha outros desígnios para ela. Este temor excessivo, unido a
uma reserva ilimitada em conservar-se oculta até aos olhos dos
seus diretores, quando não era grande a necessidade de se
manifestar a eles, nos fez perder muitas notícias importantes da vida
desta virgem. Mas o Senhor assim permitiu para deixar à nossa
imitação um perfeito exemplo de humildade.
Cheguei quase a dizer que o coração de Gema sentia como uma
ferida mortal, quando vinha a saber que alguém mostrava ter dela
boa opinião.
Muitas vezes recebia cartas de pessoas importantes. Para
poderem aproximar-se dela, combinavam com as pessoas da
família para que não desconfiasse do motivo da visita. A boa
donzela procurava, porém, logo afastar-se como costumava, e
esconder-se.
Quando, porém, a obediência a obrigava a atendê-las, via-se a
violência que sofria, como quem está andando sobre espinhos; e
logo que podia, saia, com algum pretexto ou de alguma forma
premeditada, embora se expusesse a passar por extravagante.
Assim, recordo-me que, entre outras, uma vez achando-me
naquela casa, apresentou-se um respeitável prelado que desejava
vê-la. Gema, não podendo eximir-se, logo quando a chamaram,
correu a apanhar um grande gato da casa e, parecendo divertir-se
com ele, fazendo-lhes carícias e festas infantis (o que nunca tinha
feito antes em toda a sua vida) apresentou-se àquele prelado. O
artifício deu o resultado que ela desejava, pois ele sacudiu os
ombros e deu-lhe pouca importância. Ela, então, alegre por ter
obtido o seu intento sem mais comprimentos ao importuno visitante,
saltando com o gato nos braços, se retirou.
Ditosa loucura que aos olhos de Deus é sabedoria e virtude, Bem-
aventurada humildade, que conservando o homem no seu lugar,
inclina o Senhor a descer para ela e cumulá-lo de graças: Humilibus
dat gratiam!7
Mas continuemos e consideremos detidamente o segundo motivo
que induzia a esta Serva de Deus a humilhar-se tanto, isto é, os
inúmeros pecados que ela pensava cometer a cada passo, e os
defeitos de que se julgava possuída.

1 Santo Agostinho de Hipona (354-430), Doutor da Igreja. Trata-se de uma citação do


seu epistolário. Uma carta a Discoro, originalmente referindo-se à piedade. Epist. 118.3.22
– NC.
2 Solilóquios II: I, 1.
3 Estes sofrimentos têm duplo significado. Primeiro fazem parte daquelas graças que
acrisolam o espírito, que São João da Cruz chamava noite escura do espírito. Mas, como
seguidor da espiritualidade passionista, tem uma dimensão de participação na Paixão
Redentora de Cristo, e portanto tem o caráter reparador. Cf. R. Garrigou-Lagrange, Las tres
edades de la vida interior (t.II), Madrid: Palabra, 1999, p. 1088 – NC.
4 Ex 4, 25.
5 Referindo-se à noite do espírito: “no tempo próprio, acrescenta São João da Cruz, o
abismo da majestade divina e da grandeza divina faz descobrir outro abismo, que é o da
sua pobreza e misérias, e este é um dos maiores tormentos desta purgação, pois mesmo
os sentidos que o espírito ficam oprimidos e abaixados sob um peso imenso e invisível,
sofrem tão cruel agonia que, se coubesse eleição, se preferiria a morte, e ainda a morte
mais dolorosa se aceitaria como alívio”. J. G. Arintero, Evolución Mística, Salamanca: San
Esteban, 1989, p. 314 – NC.
6 Is 24, 16 – na Vulgata: “Os meus segredos são meus”.
7 Tg 4, 6 – “[Deus] dá graça aos humildes”.
CAPÍTULO XVIII

CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO:


AS VIRTUDES DE GEMA

Há pessoas que pensam que os santos, por serem santos, deixam


de algum modo de serem homens e se tornam criaturas celestiais.
Os próprios escritores de suas vidas caem por vezes nesse erro,
comprazendo-se em apresentá-los como uma espécie de ideal que
não tem nada de comum com a nossa miséria humana. Mas de fato,
não é assim. Os santos são verdadeiros homens, são como nós,
filhos de Adão, de quem receberam uma natureza viciada. A graça
aperfeiçoa e realça esta natureza, mas não a destrói; e, além do
lado, por assim dizer, celeste, enobrecido pelos dons sobrenaturais,
há neles o lado humano com todas as suas misérias.
Para que ocultar, pois, este segundo lado, quando do seu
contraste com o primeiro, aparece ainda mais admirável nos santos
a força da graça divina, como São Paulo diz:1 Virtus in infirmitate
perficitur! Assim, os santos continuam sujeitos às fraquezas e
repugnâncias, ao constrangimento no exercido da virtude; como
nós, também eles sentem o peso da carne e os estímulos das
paixões; eles também têm razão de temer por sua alma e
reconhecem a grande necessidade de se fazer violência para se
conservarem fiéis. Como amam sumamente a Deus, e contemplam
sua soberana beleza, parece-lhes que a menor sombra de pecado é
uma monstruosidade; a mais leve falta, um crime.
Eis a chave que nos revela os segredos de suas lágrimas e
penitências, dos títulos injuriosos que continuamente se dão de
grandes pecadores, miseráveis, e indignos de viver sobre a face da
terra.
Assim acontecia com a nossa Gema.
Seus defeitos, que ela chamava grandes pecados, não eram
certamente voluntários, pois antes passaria pelo fogo e pela água
do que cometer deliberadamente a sombra de um pecado venial.

Não quero pecar – dizia –, mas sou tão má! Procuro não fazer nenhum
pecado, mas por mais que me esforce, sempre receio. O mal está em que
não percebo quando peco. Só o percebo depois que está feito, só Jesus sabe
que eu não o faria.

Mas no tribunal da penitência, ela não sabia fazer diferença entre


falta voluntária e involuntária, e com tanta eloquência se acusava
que teria iludido os mais penetrantes confessores, declarando-se
culpada de tudo.
Sem timidez e, ao mesmo tempo, sem afetação, gemidos ou
suspiros, aliás tão frequentes nas almas fracas, revelava tudo o que
tinha no espírito com ordem, franqueza e exatidão de termos
distinguindo o número, a espécie e a gravidade.
Eu a deixava expandir-se. Mas examinando as suas acusações,
acabava por me persuadir que, em vez de pecados, eram só atos
virtuosos, ou meras fragilidades. Posso atentar, com efeito, (tendo
ouvido sua confissão geral várias vezes, e estudado a sua alma
durante muitos anos), que a santa donzela jamais cometeu um
pecado formal, isto é, com plena deliberação, durante toda a sua
vida, neste mundo corrompido e corruptor, levando ao Céu, na idade
de vinte e cinco anos, sem mancha, a estola da inocência batismal.
O mesmo atestam os outros confessores, cujas deposições
autênticas tenho à minha vista enquanto escrevo.
Gema, porém, como vimos, não o entendia deste modo, e era
preciso muito esforço para persuadi-la e impedir que, aterrorizada
pelo seu estado, não caísse quase no desespero.

Mas será mesmo verdade – dizia-me com ansiedade –, que Jesus, está
contente com minha alma? Oh! Como muitas vezes me envergonho e tremo
ao ver-me tão impura na presença de Jesus, que é a própria pureza! Tenho
desconhecido muitas vezes a Jesus, tenho-me revoltado quando me
chamava. Meu pai, peça repetidamente a Jesus o perdão de meus pecados;
diga-Lhe que, para reparar as minhas culpas, não me parecerão suficientes
mil dores no corpo e na alma. Oh! Meu Deus, o castigo nunca será tanto
quanto mereço! Castigai-me embora, mas tirai-me o peso de tantos pecados
meus, que me oprimem e me esmagam. Ai de mim, se por um momento que
fosse, eu perdesse de vista minhas culpas e iniquidades! Oh! Que desgosto
sinto de mim mesma; Jesus é por mim desrespeitado! Só me conforta um
pouco entre tantas misérias a boa vontade que me parece sentir.
Estas e outras palavras, repetidas sob mil formas, cada qual mais
expressiva e tocante, aparecem quase em todas as cartas da
humilde Serva de Deus, especialmente quando escrevia estando em
êxtase.
A respeito deste sentimento tão forte e constante, não me lembro
de ter lido coisa igual na vida de outras santas. Uma vez Jesus lhe
apareceu chorando; e ela, como já referi, falando na sua ilimitada
simplicidade, perguntou-Lhe porque chorava. Depois, lembrando-se
desta aparição, me disse um dia:

Reconheço-me culpada de mil iniquidades, e tive a coragem de perguntar:


que terá Jesus para chorar?

Outra vez, tendo-se dado uma leve contrariedade em casa, como


costumava atribuir a si toda a culpa, ela chegou a sentir tal horror
que foi preciso esforço para levantar-lhe o ânimo. Exclamava:

Mas em que caí, meu pai! Acabei abandonada de todos. O desespero


ameaça apoderar-se de mim. Mas não... minha Mãe, ,
eu não tenho vontade de desagradar a Deus, nem ao senhor, que é meu pai,
nem a ninguém; creia-me, não tenho. Mas não me compreendo; em mim há
algum mistério.2

Queria dizer que não podia explicar como se podiam aliar a


vontade tão pronta e resoluta em proceder bem, com a fragilidade
humana que ela tanto exagerava em si.
Deus, que queria conservá-la em tão humilde sentimento, permitia
ao inimigo infernal3 perturbar-lhe de tal modo o espírito, que a fazia
algumas vezes julgar-se quase condenada. Nessas ocasiões é que
a pobre donzela não podia mais conservar a paz, e com a mão
tremula escrevia logo ao seu diretor:

Se algum dia, meu pai, visse que está minha alma em perigo, si visse que
estou nas mãos do demônio, pense nisto e ajude-me, pois quero salvar
minha alma a todo custo. Que devo fazer para isso?

Ora, sendo do agrado de Deus, que de todos se serve, em bem


das suas almas prediletas, dar algum valor aos meus conselhos, a
boa Gema me procurava sempre para ampará-la, e assim encontrar
algum conforto em seus temores.

Oh! Meu pai, ainda não pode avaliar a grande necessidade que tenho dos
seus conselhos! Se soubesse o alívio que sinto quando recebo umas linhas
suas! As suas palavras me animam a sofrer e a chorar. Ajude-me, ajude-me,
se não ver-me-á em breve reduzida a cinzas de pecados.

Não era tanto pelo perigo de perder sua alma e condenar-se que
Gema tinha esse horror ao pecado, como, e muito mais, pelo amor
que tinha a Deus a quem o pecado ofende.
Como este amor tinha atingido um grau tão eminente, pode-se
compreender que a sua contrição pelas grandes afrontas que
julgava ter cometido, e continuava a cometer, contra o Sumo Bem,
fosse incomensurável.

Como! – ouvia-se de seus lábios quando pensava não ter ninguém


presente –, um Deus tão grande e tão digno de ser amado, pode ser ultrajado
por mim? E quem sou eu para ter tanta ousadia? Pobre do meu Jesus!

Este pensamento a fazia empalidecer, e lhe arrancava dos olhos


amargas lágrimas, que eram vistas correr em abundância pela face
como duas fontes, assegura uma testemunha. Nos êxtases em que
o Senhor a fazia participar das doçuras do Paraíso, confundia-se
chorava e com expressões vibrantes, exclamava:

Perdoai-me, Jesus! Oh! Meu Pai, meu Pai, perdoai-me todos os meus
pecados!

Embora este sentimento de viva compunção fosse habitual em


Gema, havia ainda dias em que o Senhor fazia com que se
compenetrasse dele de um modo realmente extraordinário.
Ela mesma dirigia fervorosas orações ao divino Esposo, para que
apressasse estes dias, como uma grande graça, mais cara do que
qualquer outra consolação espiritual, a de poder chorar com
particular dor pelos seus pecados.
Guardava-as de memória e contava as horas que decorriam de
uma destas inexprimíveis agonias à outra, e quando lhe voltava,
apressava-se em dar a grata notícia a seu pai espiritual.

Havia tantos dias que eu não sentia mais a dor dos meus pecados, mas
Jesus quis de novo conceder-me esta graça. Ontem à noite, chorei muito aos
pés de Jesus. Quanto eram ao mesmo tempo amargas e doces essas
lágrimas, meu pai, e que aperto fortíssimo sentia no coração, que parecia
querer estalar de dor.

Este fato se dava do seguinte modo: enquanto a piedosa virgem


estava absorta na oração, de repente uma luz bem viva lhe vinha ao
espírito, e esclarecia os mais íntimos recônditos de sua alma; ela
via-se então coberta das mais negras manchas de culpa, e parecia-
lhe que Deus estava muito indignado contra ela, triste e aflito pelas
afrontas que havia recebido. A este espetáculo a terna donzela
começava a tremer, e pela imensa dor perdia os sentidos e caía por
terra desmaiada. Esta angústia interior durava, às vezes longas
horas, e até um dia inteiro. Nós mesmos a ouvimos apelidar de
amargo e suave este tormento.
Quereis saber, bom leitor, donde provinha tanta doçura, no meio
de tão grande amargura? Porque sabia que com a dor podia
oferecer a seu Deus uma reparação pelas ofensas cometidas.
Eis as suas palavras:

Esta noite, meu pai, como é de costume, vieram-me à memória todos os


meus pecados tão enormes, que foi preciso constranger-me para não chorar
alto; senti tão viva dor deles, como jamais me aconteceu. O número deles
excede mil vezes a minha idade e capacidade. Porém, o que me consola é
que senti tão grande dor que quisera que nunca mais ela se apagasse nem
diminuísse na minha memória. Meu Deus, até onde chega a minha malícia!

A palavra “como de costume”, de que nesta ocasião ela se serve,


indica bem claramente que a graça de contrição perfeita tinha-se
tornado comum para esta alma, sempre que entrava no mais
profundo recolhimento e união com Deus, especialmente na quinta-
feira de cada semana, quando participava dos mistérios da Paixão
do Senhor, como me declarou francamente:
Durante a quinta-feira, de noite principalmente, apodera-se de mim tanta
tristeza ao pensar que cometi tantos pecados, que se me apresentam à
memória, que me envergonho de mim mesma, e me aflijo em extremo. Só
acho conforto em sofrer um pouco, oferecendo tudo primeiramente pelos
pecadores,4 e em particular por mim e pelas almas do Purgatório.

Purificando, desse modo, a sua alma com a dor e com as


lágrimas, a santa virgem preparava-se para as comunicações
divinas que, naqueles êxtases maravilhosos, recebia do Senhor
todas as semanas.
Na primeira edição desta biografia, contei um fato muito singular;
depois, parecendo-me que a algum leitor, por demais habituado ao
racionalismo moderno, poderia causar má impressão, omiti-o nas
quatro seguintes. Porém, soube que muitas pessoas sentiram esta
omissão e se empenharam para repará-la.
Na verdade, não vejo razão para ter tido essa reserva, tratando-se
de verdades históricas que passaram por muitas mãos, ficando aliás
cada um livre de crer ou não.
Assim transcrevo o fato como o referi na primeira vez, sem fazer
nenhum comentário.
Quando fui pela primeira vez, em setembro de 1900, convidado a
ir à Lucca para examinar o espírito de Gema, achei-a ocupada em
fazer, por ordem do seu confessor, um diário, sobre o que lhe ia
acontecendo quotidianamente no exercício da perfeição.
Eu que, por princípio, fui sempre inimigo desse hábito, parecendo-
me uma inutilidade perigosa, ter assim os penitentes sempre tão
ocupados consigo, aconselhei-lhe que deixasse este trabalho. Seu
santo confessor, aceitando o meu conselho, proibiu-lhe também que
continuasse a fazer o seu diário. Porém, logo depois convenci-me
de que tinha sido muito exigente e que a minha máxima, embora
boa em si, não devia aplicar-se ao caso presente. Tendo, com efeito,
tomado e lido todos os seus escritos, achei-os repassados de
celestial sabedoria e fatos importantíssimos que podiam fazer, se
fosse preciso, uma edificantíssima biografia.
Zanguei-me um pouco comigo mesmo, e refleti em como poderia
remediar o meu erro; quando me luziu uma ideia na mente, que
julguei vir de Deus.
Acolhi-a logo, e conhecedor como era da simplicidade infantil de
Gema, disse-lhe sem preâmbulos: “Pelo que assegura, cometeu
uma infinidade de pecados, desde a mais tenra infância. Conheço
os que comete agora, mas seria muito conveniente que escrevesse
a confissão geral dos pecados de toda a vida, com as menores e
mais particulares circunstâncias. Sabendo, assim, com que
pecadora tenho que me entender, poderei melhor dirigi-la no
caminho da virtude”.
A santa donzela, que tinha ardentíssimo desejo de uma direção
segura, caiu no laço, embora no primeiro momento mostrasse
alguma repugnância ao que eu exigia dela.

Mas de que aplicações, meu pai, pode precisar, e que pecados quer que eu
lhe faça conhecer? Pense que quantos se podem cometer dos piores todos
eu tenho cometido. Receio que quando tiver lido todo este escrito, e
conhecido todos os meus pecados, ficará horrorizado e não quererá mais
servir-me de pai; e então sim!

Mas eu insisti; e a dócil donzela, depois de ter rezado muito e


pedido ao seu anjo da guarda que lhe assistisse, fazendo-lhe
lembrar tantos pecados horríveis, por obediência começou o
trabalho.5
Na introdução assim diz:

Meu pai, prepare-se para ouvir pecados de todo o gênero, de toda a


espécie... Escrevendo tudo, bem ou mal, poderá compreender melhor quanto
tenha eu sido má, e os outros bons para mim e, quanto me tenho mostrado
ingrata para com Jesus, e como tenho sido desatenta em seguir os bons
conselhos dos pais e das mestras. Assim mesmo ponho mãos à obra, meu
pai. Viva Jesus!

Escrevendo, não lutou pouco com o acanhamento de ter de falar


de si. Estava já terminando o trabalho, e essa dificuldade cada vez
aumentava mais, pois que para contar os pecados, via-se obrigada
a contar toda a sua vida, e para fazer sobressair a sua ingratidão e
infidelidade para com o Senhor, devia pôr em evidência as grandes
graças d’Ele recebidas. Era exatamente para este fim que eu a
obrigara a escrever.
Ouçamo-la de novo repetir quanto era intensa esta angústia de
seu coração:

Meu Jesus, seja sempre feita a vossa santíssima vontade! Quanto sofro em
ter que escrever certas coisas! A repugnância que senti no princípio em vez
de diminuir vai sempre aumentando e sinto uma pena mortal. Talvez queirais,
ó meu Deus, que eu escreva também aqueles íntimos segredos que me
revelastes por vossa bondade, a fim de que eu me conserve mais baixa e
humilde. Se quereis, ó Jesus, estou pronta a obedecer também neste ponto.
Fazei-me conhecer a vossa Vontade.

Ao temor de confiar o que tanto repugnava a seu humilde coração,


vinha juntar-se a dúvida, que a fazia exclamar:

Mas de que servirão estes escritos? Para vossa maior glória, ó Jesus? Ou
para me fazer continuar a cair sempre nos pecados? — Vós que quisestes
que eu escrevesse, e a quem obedeci, pensai nisto; na chaga do vosso lado
escondo todas as minhas palavras, querido e amável Jesus!

É certo que, nessa aflição, o inimigo infernal tinha parte; pois


desagradava-lhe deveras o grande bem que redundaria daquele
escrito. Apareceu-lhe uma vez visivelmente, e com amargo riso lhe
disse: “Muito bem, escreve tudo. Não sabes que todos esses fatos
são obra minha e, se fores descoberta, figura-te que vergonha?
Onde irás então acabar?”.
A obediência, entretanto, triunfou de tudo, e em um breve tempo
Gema compôs um belo volume de umas cem páginas. Mas nessas
páginas com que delicadeza e arte não procurou a humilde donzela
ocultar-se, disfarçando os mais sublimes dons de Deus sob a
sombra dos pecados com que declara tê-los profanado!
Seria preciso ler este escrito para fazer uma ideia. Porém, foi em
vão; a simplicidade do seu coração a traiu, e onde ela julgava ter-se
desacreditado, referindo maldades e desordens, sem querer,
compôs uma das mais apreciáveis autobiografias.
Eu tinha conseguido o meu intento; mas o demônio exasperou-se,
e empregou toda a sua astúcia para vencer-me.
Talvez não creiam o que vou contar; porém é um fato histórico e
real, no qual de nenhum modo podia entrar a fantasia. Mas julgue
cada um como lhe aprouver; só direi o que a mim mesmo
aconteceu, sem fazer nenhum comentário.
Concluído o dito livrinho, por minha ordem foi entregue a Dona
Cecília, que o guardava bem oculto numa gaveta, esperando a
ocasião de dar-me. Passados alguns dias, pareceu à boa donzela
ver o demônio, zombando, sair pela janela do quarto onde estava
aquela gaveta, com o livro na mão, e desaparecer no ar.
Acostumada como era a semelhantes aparições, não deu
nenhuma importância; mas voltando pouco tempo depois o inimigo a
molestá-la com horríveis tentações, e não conseguindo vencê-la,
afastou-se rangendo os dentes e gritando: “Guerra, guerra, está nas
minhas mãos”. Assim a própria Gema me referiu em uma de suas
cartas.
Então, pela obediência que tinha de manifestar à vigilante senhora
tudo o que lhe acontecia de extraordinário, julgou de seu dever
contar-lhe aquela visão. Esta foi logo abrir a gaveta e de fato o livro
não estava mais ali. Avisaram-me logo e todos puderam
compreender o pesar que senti em ter perdido tão valioso tesouro.
Que fazer? Depois de pensar muito, achando-me então na Ilha da
Pedra Grande,6 perto do túmulo do meu Venerável (agora Santo)
Gabriel, tive a lembrança de exorcizar7 o demônio para obrigá-lo a
restituir-me o escrito, caso o tivesse realmente tirado. Tomei a
estola, o ritual e a água benta, e da própria sepultura do Venerável
fiz as orações próprias, bem que da distância de seiscentos
quilômetros. Deus interveio com a sua força e na mesma hora em
Lucca foi aquele escrito reposto no lugar donde tinha sido tirado
tantos dias antes. Oh! Mas em que estado!
As páginas de cima abaixo se achavam todas enfumaçadas, e em
parte queimadas pelo fogo, como se cada uma tivesse estado
exposta separadamente sobre um fogareiro, mas não de modo que
as letras estivessem apagadas. Este livro passado assim pelo
inferno, está agora em minhas mãos. É um verdadeiro tesouro,
torno a dizê-lo de notícias importantíssimas que, se se tivesse
perdido, nunca se viriam a saber.
Agora, alegra-te, ó Gema, que tanto te salientaste na humildade;
alegra-te, porque sobre um fundamento tão sólido, poderei ver
levantar-se uma montanha de santidade, cujo cume irá tocar no
Céu.

1 2Cor 12, 9 – na Vulgata: “A virtude se aperfeiçoa na fraqueza”.


2 Aqui, Santa Gema clama por Maria Santíssima como Mãe dos órfãos.
3 São obsessões diabólicas. Nestas, “o demônio atormenta o homem desde fora e de
uma maneira tão forte, sensível e inequívoca que não deixa lugar para dúvida sobre sua
presença e ação”. Estas podem ser internas ou externa – Royo-Marín, Teologia de la
Perfección Cristiana, Madrid: BAC, 2011. p. 308-312. Elas se inserem na via de purificação
e de reparação, na qual a alma de Santa Gema se configurava com seu Esposo
Crucificado.
4 Como bem apontou o Padre Cornelio Fabro, esta é a mensagem eclesial de Santa
Gema: a conversão dos pecadores. Cf. http://www.corneliofabro.org/documento.asp?
ID=377 – NC.
5 Trata-se da sua autobiografia. Santa Gema escreveu esta confissão geral entre 17 de
fevereiro de 1901 e 15 de maio do mesmo ano. No início escreveu: Ao meu pai; que a
queime logo – NC
6 Trata-se de Isola de Gran Sasso, onde se encontra o Santuário de São Gabriel da
Virgem Dolorosa, onde repousam os seus restos mortais. É meta de peregrinações. O
manuscrito da “Autobiografia” de Santa Gema, chamuscado pelo maligno, é guardado até
hoje na Igreja dos Santos João e Paulo, Casa Geral dos Passionistas – NC.
7 “O Maligno, muitas vezes, importunou Santa Gema. Foram muitas as obsessões que
ela teve que suportar. Aqui nos deparamos com o poder de exorcizar dado por Nosso
Senhor à Santa Igreja, aos seus sacerdotes. Mesmo à distância, foi eficaz o poder e
autoridade sacerdotal. Mesmo os santos, e talvez especialmente por sua vocação
reparadora, sentem a fúria demoníaca”. Cf. Padre Gabrielle Amorth, O último Exorcista,
Campinas, Ecclesiae, p.19 – NC.
CAPÍTULO XIX

DA SUA HEROICA MORTIFICAÇÃO:


E DOS PRECIOSOS FRUTOS QUE DELA ALCANÇOU

Após o desapego e a abnegação vem a cruz: Tollit crucem suam;1


e por dois motivos: primeiramente, porque sem a cruz não se pode
ser semelhante ao divino chefe dos predestinados, a Jesus Cristo,
que é um Deus Crucificado; em segundo lugar, porque sendo o
homem inclinado ao mal, para chegar à semelhança d’Aquele que é
três vezes santo, convém subjugar todas as inclinações defeituosas
do coração e dos sentidos, o que não se obtém sem fazer grande
violência a si mesmo, com a mortificação constante. Por este motivo
o divino Mestre disse: O Reino do Céu (que é a santificação da
alma) se adquire pela força: Regnum caelorum vim patitur.2
Foi esta verdade a grande máxima que dirigiu toda a vida espiritual
de nossa Gema, desde os mais tenros anos; e as duas razões
acima indicadas foram os dois poderosos estímulos que a induziram
a atingir o heroísmo da mortificação, isto é o pensamento de Jesus
Crucificado, e o desejo de vencer todo o obstáculo para dominar-se
e chegar-se a Ele. Já nos referimos ao primeiro, tratando dos
estigmas e dos outros sinais da Paixão do Redentor; falemos agora
do segundo.
Gema queria a todo custo tornar-se santa. Depois de ter sugado
este ardente desejo, digamos assim, com o leite materno, foi
aumentando a tal ponto que excedeu a todos os demais.
De fato, de mais nada queria saber, e bastava ver a expressão da
sua fisionomia, observar os seus movimentos, ouvi-la falar, para se
conhecer que só vivia deste pensamento de assemelhar-se a seu
Jesus, com uma vida imaculada e santa.
Portanto, era natural que com igual ardor, abraçasse o meio que
conduz a esse fim, que é a mortificação.
O primeiro passo que deu neste exercício, digno de admiração, foi
o grande e incessante estudo, ao qual se aplicou de frear os
sentidos.
Nunca, em toda a vida, tinha nem de leve abusado deles, mas
parecia querer vingar-se como faria o mais desgraçado pecador
convertido. Desde criança guardava os olhos, conservando-os
sempre baixos, mas sem afetação.
Crescendo nos anos e na virtude, confirmou-se ainda mais neste
santo hábito devido a um propósito firme que tomou um dia que,
achando-se na igreja, aconteceu fixar a vista por um momento num
gracioso toilette3 de uma menina que se assentara a seu lado.
Gema se afligiu tanto por este simples fato, que lhe parecia quase
um crime, que fez uma promessa de nunca mais encarar
voluntariamente uma criatura humana.
Desse dia em diante, seus inocentes olhos se conservaram
fechados e sujeitos à sua vontade. Para que se abrissem era
preciso uma ordem formal; obedecia, então, mas por instantes,
somente e na sua modéstia tornava logo a abaixá-los.
Quem quisesse ver transluzir no seu olhar a interior beleza de sua
alma, deveria surpreendê-la no êxtase, porque então ordinariamente
ela os tinha levantados para o céu.
Quanto ao sentido do gosto (paladar), nunca teve nem uma leve
intenção de satisfazê-lo; ninguém jamais soube que comida ou
bebida ela preferisse a para fazer-lhe aceitar os alimentos da mesa,
era preciso instar, como vimos; aliás privava-se até do indispensável
para viver.
A fim de ocultar as suas privações, empregava mil maneiras,
aparentando comer quando eram apenas as mãos que se moviam
diante do prato, sem nada levar à boca. Chegou a ter a ideia de
fazer um pequeno furo no meio da colher, por onde caísse a sopa
antes que chegasse aos lábios.
Nem lhe faltavam pretextos, como depois veremos, de se levantar
muitas vezes da mesa, ora por um motivo, ora por outro, e quando
não achava algum pretexto, ficava constrangida e devagarzinho
afastava-se e não voltava mais. Quando ajudava a cozinheira,
jamais provava os manjares, e durante o dia era de todo inútil
oferecer-lhe qualquer alimento.
Na hora do lanche, para não parecer incivil, jeitosamente
desaparecia. Entretanto, sendo feita de carne como nós, e tendo
bom estômago e o paladar delicado, Gema, naturalmente sentia o
sabor agradável das iguarias. Por seu gosto, de bom grado ter-se-ia
privado dessa satisfação, deixando de alimentar-se, mas não lhe foi
permitido. Pensou por algum tempo, e depois muito contente por lhe
parecer ter encontrado o modo de remediar a esta necessidade,
veio fazer-me a seguinte proposta (veja o leitor com que habilidade):

Meu pai, parece-me que há muito tempo que Jesus me inspira que vos
peça uma graça; mas não se contrarie, porque só farei o que me disser. Não
há nada de mau por certo em conceder-me, mas o senhor apresentará mil
razões para se opor. Dirá que eu estou magra, que não há necessidade, etc.,
porém, estas considerações – não se admire o leitor destas palavras, é
Gema quem escreve – nada valem. Ouça: concorda que eu peça a Jesus o
privilégio de, enquanto viver, não sentir mais o gosto dos alimentos. Este
favor é necessário, e espero que Jesus lhe inspirará que me conceda. Mas
de qualquer maneira eu ficarei satisfeita.

Não tendo eu respondido a esta carta, Gema voltou três vezes ao


assunto, até que, mais pelo desejo de ver o que aconteceria, acabei
por dar licença.
A simples e piedosa donzela foi logo toda radiante falar a Jesus, e
no mesmo instante foi atendida. Desde aquele dia perdeu todo o
paladar e, daí por diante, nenhum gosto mais tinha para ela as
comidas e bebidas; eram como se mastigasse palha ou bebesse
água da fonte.
Assim a virgem se esforçava por mortificar um dos sentidos mais
difíceis de dominar.
O mesmo se pode dizer quanto aos outros. Ninguém a viu pegar
numa flor para cheirar, nem usar de substâncias odorosas.
Mortificou o sentido do tato a ponto de nem levemente tocar ou
acariciar a ninguém.
Gema refreava tanto a língua que parecia não tê-la, entretanto,
julgava sempre falar demais, confundindo-se e renovando mais
vivamente o seu propósito de não lhe dar liberdade. Uma vez
chorou durante o dia inteiro aos pés de Deus, por conversar com
umas amigas que a vieram procurar, embora sobre assuntos
inocentes, mas que a seus olhos eram mundanos.

Oh ! Meu Deus – exclamava –, e eu tomei parte naquela conversação! Ah!


Língua, língua, eu saberei daqui em diante refrear-te!

Noutra ocasião, humilhando-se como costumava, também nos


trunfos que obtinha nos combates pela virtude, escrevia-me assim:

Ontem ganhei uma boa vitória sobre a minha língua tão comprida, mas
custou-me tanto reprimi-la! Então, renovei a minha resolução de nunca mais
falar sem ser interrogada. Se soubesse que tempestade houve ontem entre
mim e minha tia! Mas o silêncio tudo venceu. Comecei a observar o meu
propósito, porém, com que dificuldade!

A verdade é que Gema começou a pô-lo em prática desde criança;


a diferença consistia que na primeira idade, para evitar qualquer
discussão, ela se retirava; agora, adiantando-se nos anos e na
virtude, conservava-se num modesto silêncio, esperando que a
adversária por si mesma calasse. Quanto à curiosidade, nem
falemos, porque morta a si mesma como vivia, coisa nenhuma lhe
interessava neste mundo, tudo a enfadava, tudo considerava como
uma carga. Nem em criança se entretinha com quaisquer
brinquedos, jogos, recreios, ou outros divertimentos.
Um ano, durante o carnaval, quiseram que fosse com as outras
jovens da casa a um teatrinho familiar. Ficou muito constrangida e
suplicou com tanta instância ao seu pai espiritual, apresentando-lhe
motivos tão razoáveis, que por compaixão, ele ordenou que a
deixassem em paz.
O que, sobretudo, foi digno de admiração nesta abençoada
donzela, foi a guerra contínua que fez às paixões interiores. Já fiz
notar, por vezes, quão viva e singular era a sua sensibilidade, que
naturalmente a inclinava à cólera e à independência. Mas sabia tão
bem dominar-se que nem uma vez sequer se deixou surpreender
por ela; pelo contrário, quanto mais veementes sentia em si essas
revoltas, com tanto maior solicitude se esforçava em reprimi-las até
que se habituassem a lhe estar sujeitas. Dizia:
Não vos deixo em paz, enquanto não vos vir mortas em mim.

Este trabalho era todo interior, pois ela, inteligente que era,
procedia de modo que ninguém percebesse. Somente os íntimos
que conviviam com ela conheciam perfeitamente que a virtuosa
jovem lutava sem cessar, e que o seu coração era como um altar,
onde se imolavam constantemente as vítimas da mortificação.
Para conseguir melhor o seu intento, começou logo a macerar a
carne com duras penitências.4 Quantas vezes importunou ao
confessor para que lhe permitisse usar a disciplina e os cilícios,
cadeias e outros instrumentos desse gênero! E sabia com tanto jeito
insinuar-se em seu espírito que frequentemente obtinha a desejada
licença, o que considerava como uma graça singular. A maior parte
das vezes, porém, depois de se ter afadigado em fabricar esses
instrumentos, eram-lhe tirados das mãos, ficando-lhe só a boa
vontade para oferecer ao Senhor.
Fui eu que lhe tirei o último dos que lhe restavam, e consistiam
num cinto armado de sessenta pontas bem agudas, uma disciplina
de cinco cordas igualmente de ferro, e uma longa corda de nós aos
quais se prendiam pontas e pregos, com os quais apertava com
força a carne.
Não desanimava, porém, a virtuosa donzela; e procurava se
indenizar de mil outros modos. Dizia-me ela:

Minha natureza procurava sempre o seu bem-estar interior e exterior,


reclama sem cessar algum alívio. Permite-me, meu pai, que, com toda a
minha força eu lhe faça violência? A carne quereria dominar, mas eu quero
que ela sirva como deve, agora e sempre.

E em seguida:

Meu pai, eu desejo pedir-lhe uma licença, e estou certa que, se Jesus lhe
mandar uma pequena inspiração, o senhor me dará logo. Desejaria fazer
uma promessa a Jesus de não procurar mais comodidade em coisa alguma,
e não duvide que, se eu obtiver este favor, saberei regular-me bem, sem cair
em excessos.

Falando uma vez com o seu Deus, com filial simplicidade,


ouviram-na dizer:

Vede Jesus, é o meu corpo que sente, mas eu farei com que se aquiete.
Muitas vezes chora, não me quer dar razão, mas estou alerta. Ontem,
parecia querer revoltar-se, mas eu o obriguei a sossegar, dando-lhe alguns
castigos.

Ai de mim, se lhe tivesse prestado auxílio em tão generoso fervor!


Teria certamente prejudicado a sua saúde. Mas sabendo bem até
que ponto ela era capaz de chegar, fui inflexível em não ceder às
suas repetidas instâncias.
Além disso, via as grandes tribulações interiores e exteriores a que
Deus a tinha constantemente sujeita, que por si só a tornavam uma
verdadeira mártir. Sobre este ponto falaremos mais no capítulo
seguinte, onde procurarei especialmente expor o segundo motivo
que, conforme disse, levava a nossa Gema a mortificar-se e deixar-
se mortificar, refiro-me ao pensamento de Jesus Crucificado.
Por enquanto, admiremos os singulares efeitos que a assídua
mortificação produziu em sua alma. Primeiramente, foi um completo
domínio que adquiriu sobre as paixões do coração e dos sentidos.
Ela governava como senhora e todos, por bem ou por mal, tinham
que obedecer. Dizendo por bem ou por mal, não tenho intenção de
dizer que lhe fossem recalcitrantes. Ela é que assim julgava e por
isso, as tinha sempre com o freio apertado, mas a verdade é que
ficavam logo inteiramente domadas desde os primeiros esforços.
Daí aquela paz tão suave que gozava, e que é o fruto da vitória,
como diz o Espírito Santo: “In victoria pax”.5
Daí a flexibilidade com que o seu inocente corpo se dobrava a
todos os movimentos da alma, e a seus mais sublimes voos. Dir-se-
ia que o seu corpo não vivia senão para servir à alma, tanto a
deixava livre para rezar e absorver-se nos êxtases, quer estivesse
na igreja ou assentada à mesa, ou andando pela rua.
Em todo o lugar e ocasião podia dispor de cada um de seus
sentidos. Querendo ocupar-se com a meditação das coisas
celestes, logo a imaginação se calava, a memória esquecia os
objetos estranhos, detinham-se todos os movimentos importunos do
coração, e as próprias dores físicas que a atormentavam não lhe
causavam a mais leve sombra de enfado ou distração. Voltava a si
depois daqueles celestiais colóquios, e todos os sentidos, como se
estivessem de fora, esperando atentamente, voltavam cada um à
sua função, vivos e prontos como antes.
Assim acontecia todos os dias, pelo menos na vida ordinária, fora
dos tempos da provação e aridez de espírito, quando Deus permitia,
para mais acrisolar a virtude da sua serva, que ficasse suspenso, ao
menos em parte, o grande domínio da sua alma sobre as potências
inferiores, para dar lugar à luta. Salvo esta exceção, em toda a sua
vida, nunca os sentidos opuseram a Gema, aperfeiçoada na virtude,
qualquer resistência, repugnância ou cansaço.
Venturosa liberdade e paz, que só a justiça pode dar ao homem
neste mundo, sendo o seu fruto natural. Opus justitiae pax!6 Não é
por ventura certo que a prática da virtude é origem também de
felicidade, ainda mesmo na vida presente? Quem não estimaria,
com efeito, gozar já na Terra a paz de Gema Galgani, e por que
preço não a compraria, se tal benefício se achasse à venda?
Desta invejável paz, nascia no coração da bem-aventurada serva
de Deus uma alegria de paraíso, que só por momentos podia
interromper o temor de ofender a Deus e a lembrança dos seus
juízos impenetráveis. Nada mais podia inquietá-la, nem que
desaparecessem todas as criaturas em redor de si, e se
aprofundasse o mundo sob os seus pés, contanto que Jesus lhe
restasse, de quem recebia toda a consolação.
Seu semblante sempre alegre e jovial, e o sorriso que pairava em
seus lábios, bem denotavam a paz em que vivia, ao lado da
gravidade do seu porte e majestade do rosto.
O segundo fruto, não menos precioso do que o precedente, que
adquiriu Gema com a contínua mortificação, foi a pureza de
coração, que atingiu uma altura incrível. É fácil de compreender
porque o pecado, que mancha a alma, é efeito das três grandes
concupiscências que reinam no homem: o orgulho, a sensualidade e
o amor dos bens terrestres. Ora, a piedosa donzela tinha não só
conseguido enfraquecer, mas até apagar em seu coração estas três
fontes capitais. Conclui-se, pois, que não podendo o pecado
aproximar-se dela, a sua alma estava isenta de toda a nódoa de
culpa.
Não repetirei o que já disse em outro lugar sobre assunto
presente. Somente observarei que Gema, atingindo o cume de
perfeição, não permaneceu ociosa. Esta cândida pomba bem sabia
quanto é contagioso o ar que respiramos aqui na Terra, e
corrompido o mundo em que somos obrigados a viver; ela temia
sempre e, não contente com o que já tinha feito, refreando as
inclinações desordenadas da natureza, continuava sempre na
mesma luta como se fossem ainda rebeldes.
Neste louvável intuito, em primeiro lugar fugia das ocasiões.
Perspicaz e inteligente como era, com uma simplicidade infantil
podia discernir o perigo digamos assim, a um quilômetro de
distância. “Aqui Jesus não deve estar”, dizia Gema, “fujamos”.
Sem pensar mal de ninguém, desconfiava de todos, e não tendo
deveres a cumprir para com ninguém, procurava viver afastada. Por
esta razão, suspirava pela solidão, e se não fosse a necessidade de
ir à igreja, e acompanhar às vezes a tia até a cidade para serviços
domésticos, nunca transporia a soleira da casa. Daí a sua reserva
no falar, em não se intrometer nos assuntos que lhe não diziam
respeito, em não contrair amizades, escrever cartas e outras
ocupações semelhantes.
Costumava dizer:

Gema, não te fies em ti mesma; repara que toda a ocasião pode ser para ti
um perigo; fora de Jesus tudo é engano; vive só com Ele, e purifica o teu
caminho sem cuidar de mais nada.

Porém, o mais belo fruto que dá a árvore da cruz e da


mortificação, colheu a nossa virgem: a castidade!
Adorável virtude quanto és rara no meio deste mundo tão
depravado! Tu, que deverias ser o apanágio de toda a alma cristã
cuja vocação, diz o Apóstolo, é ser santa e imaculada!7
Virtude sublime, que foste tão cara ao coração de Gema, e tanto
embelezaste a sua alma até lhe dares o aspecto de um anjo
humanado, quem poderá tecer-te dignos louvores? Ninguém melhor
do que ela própria fez o seu elogio em uma carta, ditada por pedido
de sua mãe adotiva para um dos sobrinhos que, pela primeira vez,
se aproximava da Mesa da Eucaristia.

Oh! Mariano, Mariano, já esses bons sacerdotes te instruíram


perfeitamente, mas eu também sinto como um dever, de dizer-te algumas
palavras. Sabes o que tenho no coração para te dizer? É falar na virtude tão
querida e tão bela aos olhos de Deus, e para aqueles que bem a guardaram,
tem Jesus reservado um lugar especial no Céu; eu me refiro à santa pureza.
Espero que Jesus achará puro o teu coração, e quererá sempre residir nele.
Deves saber que Jesus se apascenta entre os Lírios,8 e quero esperar que
assim conservarás o teu coração. Jesus, no seu reino não admite nada de
imundo; assim, se quiseres um dia possuí-lo é preciso que guardes tão bela
virtude. Pede a Jesus que te conceda tão grande graça.

A nossa Gema ouviu ainda criança, de sua piedosa mãe, essas


verdades, e começando desde então a amar a Jesus, logo se
enamorou desta bela flor, e se aplicou em cultivá-la com esmero.
Entre outras práticas, que para esse fim lhe inculcara a piedosa
mãe, uma era a de rezar todas as noites, sem falta, em honra da
Imaculada Conceição da Santíssima Virgem, três Ave Marias, com
as mãos de baixo dos joelhos.
A inocente menina, ainda que em tão tenra idade não
compreendesse, começou a praticar esta devoção, que nunca mais
deixou. Levantando-se depois e ajuntando as mãozinhas dizia:

Mamãe, não permitais que eu perca jamais a santa pureza; eu me refugio


sob o vosso manto; guardai-me, e assim agradarei mais a Jesus.

Poucos dias antes de morrer, achando-se só no quarto, embora


sem forças, sem poder mais ficar em pé, não quis dispensar esta
devoção, e foi surpreendida com as mãos debaixo dos joelhos, com
tanto incômodo, cumprindo ainda a sua piedosa prática.
Crescendo na idade, aumentava sempre em seu coração o amor à
angélica virtude, e o esforço em conservar-se ilibada. Para este fim,
eram principalmente feitas todas as mortificações, penitências,
macerações da carne, e sobretudo a guarda dos sentidos. Julgando
que a mais leve e inocente liberdade pudesse manchar esta bela
flor, aborrecia-as todas, sem distinção alguma, e para evitá-las não
temia cair em verdadeiras exagerações. Nunca se mirou num
espelho, nem para pentear-se, nem para lavar o rosto do sangue
que frequentemente lhe corria da fronte, cingida de místicos
espinhos, e dos olhos nas suas dolorosas contemplações.
Quando, nos arroubos do seu amor celeste, o coração se
inflamava, queimava todo o lado exterior, que corresponde àquela
víscera, fazendo-lhe sentir dores inexprimíveis; e quando um dardo
de chama partido do sagrado lado de Jesus Crucificado, abriu no
seu uma grande ferida e, quando o próprio coração, com seus
misteriosos impulsos, dobrou com força três costelas, embora
ignorasse a significação desses fenômeno extraordinários,9 nunca
ela quis observar ou tocar em seu corpo, nem no princípio, nem pelo
tempo adiante com a repetição do prodígio.
Vimos no capítulo primeiro como, desde criança de poucos anos
de idade, esta cândida virgem evitava que lhe fizessem as mais
inocentes carícias.
Não permitia que o seu próprio pai a beijasse, e sua mãe devia
empregar a maior reserva nos serviços de que necessitam as
crianças; e se alguém se oferecia para penteá-la, vestir ou calçar,
impedia resolutamente dizendo: “Deixai, eu mesma posso fazer tudo
isso”.
Uma vez um primo-irmão quis fazer-lhe uma carícia, mas custou-
lhe caro. Estando ele montado a cavalo diante da porta da casa,
tendo-se esquecido de um objeto necessário para a viagem,
chamou pela Gema, e lhe pediu que lhe trouxesse. Correu a boa
menina, que tinha então sete anos e imediatamente lhe entregou o
que desejava. O jovem, agradecido pela delicadeza com que ela lhe
prestou aquele pequeno serviço, quis corresponder, estendendo a
mão para a acariciar. Mas a menina, apenas percebendo aquele
movimento que a seus olhos parecia quase um crime, fora de si lhe
repeliu tão vivamente a mão e o braço que o cavaleiro perdeu o
equilíbrio, caiu e ficou muito machucado.
Jazendo no leito moribunda, pediu por si mesma a Extrema-
Unção; mas afligia-a o pensamento de ter que permitir que lhe
lavassem os pés, segundo o piedoso costume por respeito aquele
Sacramento. Que fazer? O amor da santa modéstia lhe deu forças e
aproveitando do primeiro momento em que se viu só, tomou uma
toalha e conseguiu por si mesma fazer aquele serviço; e contente
pode dizer à pessoa que se aproximava para isso: “Obrigado, não é
mais necessário, eu mesma já o fiz”.
Que vos parece, ó leitor, de tão extraordinário pudor? Igual reserva
e delicadeza usava no modo de falar. Não só não se ouviram nunca
de seus lábios palavras geralmente empregadas em referência a
assuntos direta ou indiretamente desonestos; mas nem mesmo
aquelas expressões indiferentes, de que os cristãos, até mesmo os
mais piedosos não têm escrúpulo. Quando tinha que fazer-se
compreender neste ponto, servia-se de perífrases, mas tão bem
adequadas que a ninguém parecia afetação, mas uma naturalidade
inteiramente própria, sendo tudo isto mais admirável, quando
sabemos que Gema nunca viveu na sociedade, nunca tinha
presenciado nem ouvido falar de nenhuma ação ruim, e ignorava o
que fosse pecar contra a santa pureza; contudo temia tanto que se
conservava muito recatada. Ela me dizia:

Há certas coisas que eu deveras não compreendo. Mas se por acaso eu as


cometi? Parece-me entretanto que não.

Depois concluía:

Não, não, eu não quero pecar, de hoje para sempre prefiro morrer do que
cometer um pecado. Quereria antes ficar cega toda a vida, do que ofender
por de leve que seja a Jesus contra a santa modéstia; e assim preferia ficar
privada de todos os sentidos do meu pobre corpo, do que pecar com algum.

Não sei a fé que possa merecer uma revelação, que teve uma
alma piedosa, conhecida por mim, na qual o Senhor claramente
faltou, fazendo o mais belo elogio de Gema; para que não se perca,
apraz-me referi-la aqui, tanto mais que nada contém que não seja
conforme a verdade reconhecida.
Esta donzela a quem tanto amo e de quem tanto sou amado – disse Jesus
–, me pede sem cessar amor e pureza, e eu que sou o verdadeiro amor e a
própria pureza, lhe tenho concedido tanto quanto uma criatura humana pode
receber. A esta filha eu sempre guardei uma pureza de coração, como a que
deve ter a esposa eleita do celeste e divino Esposo, conservando-a naquela
inocência, como um lírio celeste no meu puro amor.

O candor angélico desta virgem parecia refletir-se da alma no


corpo, que apresentava qualidades muito fora do comum. Dir-se-ia
que era feito de puro cristal. Ainda que ela não prestasse a menor
atenção em se enfeitar, resplandecia como se fosse objeto de
muitos cuidados. Nunca exalou o mais leve cheiro desagradável
durante as fastidiosas doenças, que a obrigavam a estar tanto
tempo de cama, pelo que admirando-se algumas pessoas quiseram
verificar, conservando-se ao seu lado muitas vezes, dia e noite.
Além disso, notavam que, da sua pessoa e dos objetos que
tocava, se derramava a mais suave fragrância, que por certo não
era desta terra, pois Gema, como dissemos, nunca usou de
perfumarias, e nem ao menos de sabonete, fora dos casos de
grande necessidade. Compreendia-se que aquele perfume era
sobrenatural, tão desconhecido, e que inspirava devoção: “Não
sentem tão agradável odor?”, diziam entre si as pessoas que eram
testemunhas: “Oh! A nossa querida Gema! Certamente, Jesus, a
Mãe celeste, ou o anjo da guarda devem estar com ela neste
momento”.
Este fato não é raro na hagiografia cristã; verificou-se em muitos
santos e em particular no meu fundador Paulo da Cruz10 e na virgem
Madalena de Pazzi,11 cujos corpos, ainda hoje, depois de três
séculos, exalam de vez em quando dulcíssima fragrância.
Um dom tão extraordinário de pureza não podia passar sem rudes
provas. De fato, o demônio, estremecendo de raiva contra a
angélica virgem, tão favorecida por Deus, foi o cruel instrumento
como tentador. O ataque não era fácil, pois, como assaltar a
inocente pomba, que do vício nem conhecia o nome? Como
insinuava-se com grosseiras iniquidades em um coração tão
delicado e puro?
O inimigo compreendeu desde logo que debalde se cansaria ou
que Deus não lhe permitiria. Assim voltou suas tentativas afligindo-a
exteriormente, com representações de fantasmas impuros,
aparecendo-lhe mesmo em formas lúbricas, fazendo-lhe ouvir
palavras escandalosas e chegando ate a usar de violências.
Bem que Gema não entendesse o sentido daquelas
inconveniências, pelo instinto natural do pudor encarnado até nos
ossos, percebia que eram más, e, desde o primeiro ataque, armou-
se contra o inimigo e lhe opôs forte resistência.
O inimigo viu bem a inutilidade de seus esforços, porém,
redobrava-os, ao menos para assustar e afligir a inocente virgem.
Não é possível exprimir a sua desolação ao ver e ouvir coisas tão
abomináveis. Ouçamo-la, chorando aos pés de seu pai espiritual:

Que terríveis tentações são estas, meu pai! Todas as tentações me


desagradam, mas, contra a santa pureza, afligem-me tanto! Jesus sabe o
que sofro, Ele que, escondido me vê, e – considera, devoto leitor, o sentido
desta palavra – se compraz com minhas lutas.

Para não ver tão criminosas representações, a pobre donzela


fechava os olhos, e assim se conservava até que o espírito do mal
tivesse desaparecido.
Em seguida tomava o seu Crucifixo e chamava em seu auxílio o
Anjo da Guarda, seus santos advogados e sobretudo sua Mãe
celeste. Quando, com tão poderosos auxílios, depois de longas
horas de combate, ficava livre, recuperando a paz e a alegria
exclamava:

Agradeçamos a Jesus, que hoje o dia se passou do melhor modo, como lhe
foi agradável.

Mas a boa Gema não se sentia ainda satisfeita. Tendo ouvido dizer
que os santos, para reprimir tais tentações, tomavam disciplinas,
usavam cilícios, e que um deles chegou a se mergulhar num tanque
de água gelada, ela, não sabendo distinguir, entre as tentações
internas que vem da concupiscência e as puramente externas, que,
como lhe acontecia, batem à porta, sem que o mau instinto seja a
causa; e, julgando ter necessidade como eles dos mesmos
remédios, pensou ser de seu dever imitá-los.
Lançou mão desses meios com tanto ardor que teria despedaçado
o seu corpo inocente se a obediência não o tivesse impedido. Mas
tal era o medo que tinha de ofender, naqueles angustiosos
momentos, à angélica virtude, que se esquecia de tudo, até de pedir
licença ao confessor para qualquer penitência, e recorria sem
moderação às correias, à disciplina, à corda nodosa cheia de pregos
que, com força, amarrava em torno da cintura.
Quantas vezes aquelas pontas agudas não lhe penetravam na
carne viva, fazendo-lhe derramar muito sangue, e causando-lhe tão
acerbas dores, que a faziam desmaiar a cair por terra!
Quem não ficaria comovido até às lágrimas, se uma só vez tivesse
podido observar nesse estado, como me foi dado, essa generosa
vítima da santa pureza?
Fez mais ainda. Um dia, ao sair da mesa, o demônio lhe apareceu,
como em outras vezes, sob aquelas formas horríveis, e, bufando de
raiva, declarou que havia de vencê-la a todo o custo. A modesta
virgem empalideceu, ergueu as mãos aos céus, e sem mais refletir,
correu ao jardim da casa, onde havia um grande tanque de água
gelada, fez o sinal da cruz, e apesar de ser inverno, atirou-se dentro,
ficando enregelada.
Ter-se-ia certamente afogado se uma mão invisível não a tivesse
ajudado a sair daquele banho perigoso. Deste modo, a nossa Gema
se tornou êmula dos generosos e veneráveis da hagiografia cristã,
conquistando o nome glorioso de heroína.
Diante destes exemplos, como não se deveriam envergonhar
tantos cristãos, que dizendo que querem seguir a Jesus Cristo no
caminho de santidade, mostram-se tão delicados com o seu corpo,
e lentos em refrear as suas inclinações desordenadas?
Por ventura, não disse o Salvador a todos os seus seguidores que
sem violência não se obtém o reino do Céu?12

1 Lc 9, 23 – “Tome a sua cruz”.


2 Mt 11, 12 – “o Reino dos Céu sofre violência”.
3 Um traje feminino bastante requintado, usado em cerimônias – NC.
4 Assim apontava São João Paulo II: “A penitência tem como finalidade superar o mal
que, sob diversas formas, se encontra latente no homem, e consolidar o bem, tanto no
mesmo homem, como nas relações com os outros e, sobretudo, com Deus”. Salvifici
Doloris, 12 – NC.
5 “Na vitória, a Paz”.
6 Is 32, 17 – “O fruto da justiça é a paz”.
7 Cf. Ef 1, 4.
8 Ct 6,3.
9 Faz-se necessário repetir o que vimos na nota da página 82: Manifestação do
fenômeno chamado de hipertermia, ou Incendium amoris. Também as costelas de São
Felipe Neri, sofreram esse alargar, após a experiência mística da Festa de Pentecostes de
1544. Tal ela partilha com muitos outros místicos passionistas, como o Pai São Paulo da
Cruz, a Venerável Lúcia Magano, e a Serva de Deus Edvige Carboni. O dominicano Royo-
Marín aponta três graus: simples calor, adores intensíssimos, queimadura material. Santa
Gema apresentou todos os três. Cf.: Royo Marín, Teologia de la Perfección Cristiana,
Madrid: BAC, 2011, p. 926 – NC.
10 São Paulo da Cruz (١٧٧٥-١٦٩٤), fundador da Família Passionista. Seu corpo se
encontra na Basílica dos Santos João e Paulo, em Roma, Itália – NC.
11 Santa Maria Madalena de Pazzi (1566-1607), carmelita da antiga observância.
Grande escritora mística. Seu corpo se encontra no Carmelo de Santa Maria Madalena de
Pazzi, em Florença, Itália – NC.
12 Mt 11, 12.
CAPÍTULO XX

DA SUA FORTALEZA:
AS GRANDES PROVAÇÕES A QUE DEUS SUBMETEU A SUA
SERVA, E DE QUÃO HEROICA FOI EM SUPORTÁ-LAS

Além da cruz que todos os que seguem a Cristo devem, por assim
dizer, fabricar com suas mãos e carregar durante toda a vida com
mortificação, abnegação e penitência, há outra que o Senhor
prepara por si mesmo para as almas privilegiadas: é o sofrimento.
Desta é que de um modo especial falou quando disse: “Quem
quiser seguir-me, deve tomar e carregar a sua cruz”.1
Todos os santos têm carregado esta cruz, assim como todos têm
abraçado a primeira. Com a mortificação, abnegação e penitência
voluntárias fazem o que podem para cooperar na obra da própria
santificação. Com o sofrimento, recebido com paciência, Deus
completa a obra; e quanto mais perfeita quer torná-la, tanto maior
soma de dores lhes envia.
Tal é a filosofia do Evangelho: Per multas tribulationes oportet nos
intrare in regnum Dei,2 isto é, quem quiser ver estabelecido o reino
de Deus no seu coração, deve passar pelo fogo e pela água de
grandes tribulações, não podendo haver verdadeira santidade sem
sofrimento.
A cada novo grau de perfeição a que a alma se eleva, deve
corresponder nova provação, a que os doutores místicos chamam
“purgação passiva3 “até que, concluído o trabalho, e chegando a
alma ao último grau, que é a perfeita semelhança com Jesus Cristo,
possa exclamar: “Agora sim, que estou crucificada com Jesus”.4 “Eu
não vivo mais, é Jesus que vive em mim”.5
Ora, sendo a nossa Gema destinada por Deus a tão alta
santidade, e a passar por todos os graus da teologia mística, era de
esperar que a amargura da dor não lhe fosse dada a gotas, mas sim
em torrentes.
Assim foi – e tanto tenho que dizer sobre este assunto, que o leitor
ficará assombrado.
Por tudo o que já temos referido nas páginas anteriores da
presente biografia, é fácil compreender como esta Serva de Deus foi
provada com aflições extraordinárias e constantes desde a infância.
Não repetirei o que já é sabido, mas tratarei de descrever o martírio
do último tempo da sua vida, quando a sua virtude atingia o cume
da perfeição.
Aquelas primeiras penas não eram senão um ensaio, pelo qual o
Senhor a ia preparando gradualmente a maiores imolações, que se
deviam consumar no Calvário de Jesus, isto é, no leito da morte.
Como o sofrimento não pode ser meritório nem preencher o fim
ordenado pela divina Providência se não é voluntário, o Senhor
começou por inspirar a Gema um vivo desejo de sofrer servindo-se
na ocasião oportuna, dos meios mais ternos e eficazes ao mesmo
tempo.
Aparecia-lhe às vezes com a cruz às costas e lhe dizia: “Gema,
queres minha cruz? Vê o presente que te preparei”. Ela respondia:
“Dai-me-a, sim, meu Jesus, mas dai-me também a força porque
meus ombros são débeis e posso cair sob o seu peso”. Continuava
Jesus: “Desagradar-te-ia se eu te desse a beber o meu cálice até a
última gota?” E Gema: “Jesus, faça-se a vossa santíssima vontade”.
Outras vezes ela o via pregado na Cruz, coberto de chagas,
derramando sangue.

Diante desta visão – contava-me ela –, senti imensa dor e, pensando no


amor infinito de Jesus por nós e nos seus sofrimentos pela nossa salvação,
desmaiei, caí por terra; só voltei a mim depois de algumas horas. Então senti
vivo desejo de sofrer alguma coisa por Ele, que tanto tinha sofrido por mim.

Com o andar do tempo este desejo converteu-se numa verdadeira


paixão, e não podendo contê-la no peito, exclamava:

Quero sofrer com Jesus, não me falem noutra coisa. Quero ser semelhante
a Jesus, sofrer enquanto viver, e sempre viver para sempre sofrer!

No êxtase, estes sentimentos voltavam aos seus lábios com


expressões ardentes. Eu não terminaria tão cedo, se quisesse
reproduzir tudo. Da mesma maneira sentiram todos os santos,
contemplando o Divino Homem das dores, e como São Bernardo,6
diziam: “Não, não é justo que sob essa cabeça coroada de
espinhos, o corpo se entregue às comodidades. Se um sofre, o
outro também deve sofrer, senão seria ingratidão e
monstruosidade”.
Outra vez, para avivar no coração daquela santa donzela aquelas
brasas ardentes, que desde a primeira impressão a inflamaram,
apareceu-lhe o anjo da guarda, tendo na mão duas coroas; uma de
espinhos e outra de alvíssimos lírios, e lhe disse que escolhesse a
que mais lhe agradasse.
“Quero a de Jesus”, respondeu logo Gema, “dá-me a de Jesus,
que é a única que eu quero”.
O anjo lhe deu a coroa de espinhos e conservou a outra. Ela a
tomou com ansiedade e depois de tê-la coberto de beijos, apertou-a
amorosamente ao peito e exclamou:

Graças infinitas a meu Deus; Viva Jesus! Vivam os presentes de Jesus!


Viva a Cruz de Jesus!

Era este o fruto que a nossa Gema tinha recolhido dos


ensinamentos divinos. Mas ainda era preciso aprofundar mais; o
Senhor devia com um último golpe de mestre, aperfeiçoar a sua
obra, revelando à sua serva o verdadeiro segredo do mistério do
sofrimento.
Consiste este segredo na missão do Salvador no mundo, tendo
começado com a expiação, e a quem o segue, deve continuar esta
expiação e até mesmo completá-la, conforme a expressão do
apóstolo São Paulo: “Adimpleo ea quae desunt passioni Christi”.7
A maior parte dos homens, em vez de aplacar a cólera de Deus
com obras de penitência, ainda a provocam mais com novas
ofensas, tornando para eles inútil a redenção; pertence pois aos
justos fazer por eles reparação,8 e consolar o coração de Deus,
conforme está escrito: “O Senhor se consolará em seus servos”.
Querendo o Senhor imprimir esta grande verdade no coração de
Gema, disse-lhe um dia com toda a intimidade e clareza:
Filha, eu tenho necessidade de vítimas e vítimas fortes. Para acalmar a
justa ira de meu Pai Celeste, preciso de almas que com seus sofrimentos,
tribulações e misérias, satisfaçam pelos pecadores e pelos ingratos. Oh! Se
eu pudesse fazer compreender a todos, quanto meu Pai Celeste está
indignado contra o mundo ingrato e ímpio! Nada mais pode detê-lo; e está
preparando um grande castigo para toda a terra.9

Auxiliada pela divina luz que acompanhava estas palavras, a


piedosa virgem compreendeu toda a sua significação, e bastaram
para produzir em sua alma um incêndio de amor, e fora de si, de
alegria, repetia em voz alta: “eu sou a vítima e Jesus é o
sacrificador. Depressa, ó Jesus. Tudo o que Jesus quer eu quero
também, tudo o que Jesus me der será um presente”.10
Depois, prostrada com o rosto no chão, fez a seguinte oração, que
escreveu em seguida para submetê-la à minha aprovação:

Eis-me a vossos santíssimos pés, ó Jesus, para manifestar-vos o meu


reconhecimento e gratidão por tão contínuos favores que ainda me quereis
fazer. Agradeço-vos; mas ainda outra graça desejo, ó meu Deus, se vos for
agradável, esperai Jesus, esperai; sou vossa vítima, mas esperai, minha vida
está em vossas mãos, mas esperai, podeis descarregar sobre mim, mas
esperai, por favor. Seja feita em tudo a vossa santíssima vontade.11

Que intenção tinha ela nesta demora que com tanta insistência
pedia ao Senhor, já o dei a entender antes, quando falei do temor
que a humilde donzela tinha de atrair a atenção geral, pelos
fenômenos extraordinários que se davam com ela.
As palavras ditas pelo Senhor lhe pareciam indicar tormentos,
dores misteriosas e difíceis de suportar. Por isso suplicava
tremendo, ao menos pelo que se referia ao lado visível da expiação
anunciada, que esperasse um pouco até que aprouvesse a Deus
abrigá-la num convento. Desde aquele dia Gema não parecia a
mesma; o pensamento da missão recebida de Deus a transformara
em uma nova criatura; a sede de toda sorte de sofrimentos
queimava e lhe dilacerava o coração, e para apagá-la eram precisas
torrentes de fogo. Ouvi-a ainda:

Sofrer, sofrer, mas sem nenhuma consolação nem o menor alívio; sofrer só
por amor.
De fato, para ela, amar e sofrer eram a mesma coisa, como o era
ser amada e ser atribulada, pelo que acrescentava:

Estou muito contente: Jesus não cessa de amar-me, quero dizer, não cessa
de me afligir cada vez mais.

O próprio Senhor lhe tinha ensinado esta doutrina. Pedindo ela a


graça de podê-lo amar mais intensamente, lhe disse: “Se queres
verdadeiramente amar-me, eis o meu cálice. Podes beber até a
última gota deste cálice, no qual molhei meus lábios?” Gema
respondeu: “Meu caro Jesus, meus lábios estão prontos, assim
como meu coração; saciai-me com este cálice, inebriai-me com este
absinto”.
Mais ainda: as inefáveis doçuras de que frequentemente era
fornecida na oração, tornaram-se-lhe de algum modo insípidas, ao
lado das amadas amarguras do cálice de Jesus.
Disse-me ela um dia:

Crede, meu pai, que eu renuncio a todas as consolações de Jesus. Jesus


foi o homem das dores, e eu quero ser a filha das dores.

Não pense o leitor que estas e outras expressões semelhantes


eram efeito de um fervor momentâneo, como sentem algumas
almas piedosas no ardor da meditação, e vindo este depois a
acalmar-se, logo às primeiras provas,12 acabando por achar
insuportável o que antes julgavam atraente. Tão certo é que a dor
não é natural ao homem, criado por Deus para a felicidade.
Porém, não acontecia assim com Gema. Quanto mais se
multiplicavam as suas tribulações, mais se lhe aumentava o desejo
de sofrer. Quer rezasse ou meditasse, fossem bons ou maus os
acontecimentos, de tudo e sempre, tirava motivos de aspirar ao
sofrimento. E não contente com o que já lhe era dado, suplicava ao
Senhor que lhe dobrasse a dose, multiplicasse as formas e, como já
vimos, numa palavra a saciasse.

Sábado à noite – escrevia- me –, fui fazer uma visita ao santo crucifixo.


Veio-me tão grande desejo de sofrer, que de todo o meu coração pedi a
Jesus. Jesus desde aquela noite deu-me uma dor de cabeça tão violenta que
choro quase constantemente e receio não poder resistir.

Vede, ó leitor: a piedosa donzela receia sucumbir, mas não


desanima e continua a orar até que fique satisfeito o seu grande
desejo de sofrer cada vez mais, e assegura que na dor acha as
suas delícias.

Sim, estou contente de todos os modos, como Jesus quer, e se Jesus


exigisse o sacrifício da vida, eu lhe faria prontamente; se quisesse outros do
mesmo modo, estou pronta. Satisfaz-me ser sua vítima para descontar os
meus inúmeros pecados, e os de todo o mundo, se assim me for dado.

Pareceu-lhe uma vez ver o Bem-aventurado Gabriel, que se


aproximou a confortá-la nas dores agudíssimas que sofria havia
muito tempo e se ofereceu para aliviá-las, mas ela disse: “Não vos
peço que me as tireis, ou ao menos deixai-me alguma, porque
senão nada terei que dar a Jesus quando ele vier à noite”.
De fato, ela considerava como um dia perdido o que se passasse
sem algum sofrimento particular.

Passaram-se alguns dias – dizia-me se queixando – em que à noite, eu


nada tinha que oferecer a Jesus. Oh! Como me sentia triste!

Na quinta para a sexta feira de cada semana, já notamos e


minuciosamente referimos em outro lugar, como a pobre donzela se
achava num verdadeiro Calvário da alma e do corpo, sofrendo dores
inefáveis, em companhia de Jesus Crucificado.
Qualquer pessoa que tivesse uma só vez passado por tão terríveis
angústias, tremeria a esta lembrança. Gema, entretanto, que tantas
vezes as tinha suportado, anelava por aquele dia, contando as
horas para vê-lo chegar conforme diziam os que a rodeavam,
preparava-se para ele como para uma festa.
Tão grande generosidade e heroica virtude agradava infinitamente
ao Senhor, que lhe dava claras demonstrações de ternura e
satisfação por tê-la escolhido como esposa segundo o seu coração.
Uma vez entre outras, apresentando-se sensivelmente à sua vista,
perguntou-lhe se tinha sofrido muito em uma tribulação que ainda
não tinha cessado. Gema exclamou: “Convosco, ó Jesus, é tão
agradável sofrer! Que custa sofrer durante tantos dias, se depois
vindes e logo me consolais?”.
Jesus lhe disse: “Sabe que enquanto sofrias, eu estava a teu lado,
contemplava tuas penas e me regozijava?”.13 Depois, para
recompensá-la da coragem que mostrara no combate, disse que lhe
permitia aproximar-se e beijar suas sagradas chagas. Ela humilde
exclamou: “Como Jesus? Por tão pouco um prêmio tão grande?”.
Mas animada pela sua filial confiança, chegou-se a seu Salvador
e, ajoelhando-se com o coração abrasado de amor, beijou cada uma
das suas chagas. Quando beijou o Sagrado lado não pode resistir
mais à comoção, e caiu desmaiada, palpitando aos pés de Jesus. “É
bastante, Gema. Se verdadeiramente é vítima, ergue-te, e prepara-
te, que já está pronto o teu sacrificador”.
Com tão longas e heroicas provas, estava perfeitamente disposta
esta vítima. Jesus a tinha encaminhado para ser capaz de receber
em seu peito um mar de amarguras.
Começou pelo martírio interno do coração, com a aridez. Esta
prova é uma das mais frequentes na estrada da vida mística. Depois
de ter, por mais ou menos tempo, atraído a alma por meio de
celestiais doçuras, Deus começa pouco a pouco a afastá-la de si,
esconde-lhe o seu rosto, suspende toda a comunicação sensível e a
deixa só, abandonada como num abismo de trevas, dúvidas,
incertezas, temores e angústias, ao ponto de lhe parecer estar no
inferno.
Para avaliar bem quanto é terrível este estado nos santos, seria
preciso compreender como eles o quanto é amável o Deus que lhes
parece ter perdido, quão grande é o amor que tem para com ele.
Mas quem nos dará a compreensão destas duas grandes
verdades? Quem nos dirá quão terno era para a nossa Gema
aquele por quem ela só vivia? E quão suaves as delícias de que, por
viver unida a Ele, gozava desde os primeiros anos? E quão grata a
esperança de se inebriar um dia no Céu nos seus eternos
amplexos?
As almas vulgares são insensíveis a estas privações; vivendo
distraídas e não achando consolação nos bens celestes, procuram
os terrestres, que, como agradam aos sentidos, mais pronto gozo
dão do que os primeiros.
Mas Gema estava morta para toda a criatura; fora de nada queria,
e tudo lhe era insípido... como poderia, pois, viver sem Jesus? Ouvi
seus gemidos:

Procuro a Jesus e não o acho. Parece que se afastou e não quer mais
saber de mim, e aonde irei eu? Que será mim? Pobre Jesus! Tenho-vos
desgostado demais! Mas permitireis que vos torne a achar, não é? Aplacai-
vos, aplacai-vos e voltai para mim. Eu, longe de Vós, não posso viver!

Para consolá-la em tão cruel desolação, aparecia-lhe o anjo da


guarda, e também às vezes a Mãe de Deus, mas Gema parecia
nem sequer atender. Porque lhe faltava Jesus, nada mais a
satisfazia.
Como Madalena no Calvário, sem querer o conforto de nenhuma
criatura, dizia ao anjo: “Onde está Jesus?”. E à Santíssima Virgem:
“Dizei-me, ó Mãe, aonde foi Jesus?”.
Escrevia ao seu diretor:

Não poderíeis vós também dizer-me o que devo fazer para achar a Jesus?
Dizei-lhe que não posso mais...

Ela procurava disfarçar, para que ninguém o percebesse, o seu


profundo martírio. Mas não o conseguia, e as pessoas mais íntimas
notavam a sua palidez e o seu abatimento. Surpreendiam-na só no
quarto, prostrada de joelhos com os braços abertos, os olhos cheios
de lágrimas, e o peito ofegante, exalando de quando em quando
profundos suspiros.

Meu Deus, não vedes que assim sucumbo? Sem Vós eu morro. Lembrai-
vos que sou uma pobre órfã. Só tenho a Vós, e Vós me fugis?

É certo que se estes tormentos não fossem interrompidos por


alguns momentos de tréguas, a nossa pomba teria sucumbido. Mas
o Senhor, cheio de solicitude, na maior força da provação, acudia-
lhe; como Pai, consolava-a, animava-a a viver ao pé da cruz, dando-
lhe santas instruções.
O leitor, de certo, me agradecerá se lhe der um exemplo, como o
que me transmitiu por escrito a própria Gema.
São documentos de uma sabedoria celeste que podem fazer muito
bem a todos:

Minha filha – dizia-lhe o Senhor –, queixas-te porque te deixo nessas


trevas; mas lembra-te que depois das trevas vem a luz e então gozarás de
uma grande claridade.
Faço-te sofrer esta provação para minha maior glória, para alegria dos
anjos, para teu próprio proveito, e também para exemplo dos outros.

Se me amas verdadeiramente, deves amar-me até nas trevas. Apraz-me


brincar assim com as almas que me são mais caras.

Não te aflijas se pareço abandonar-te; não julgues que é um castigo, mas


uma arte para desprender-te de todas as criaturas e unir-te a mim.
Quando pensares que eu te repilo, será quando te estreitarei mais
intensamente a mim; e quando me julgares mais longe, será quando estarei
mais perto de ti. Coragem! Pois que ao combate sucede a paz. Conserva-te
fiel e amante; tem paciência, se te deixo ainda só; sofre resignada e contente.
Conduzo-te por caminhos ásperos e dolorosos; mas deves considerar-te
honrada se eu assim te trato, permitindo que, com um martírio interior
quotidiano, tua alma seja provada e purificada. Pensa só neste tempo em te
exercitares em grandes virtudes, corre pela estrada da vontade Divina,
humilha-te, e fica certa de que, se te conservo unida à Cruz, é porque te amo.
Não faças como certas almas que se apegam às consolações e gostos
espirituais, mas não estimam a cruz; quando se acham na aridez do espírito,
diminuem pouco a pouco as orações, porque não acham mais as doçuras
que antes tinham sentido.
Gema certamente não era do número destas, pois que por tantas
e tão belas lições que tinha recebido do divino Mestre, bem sabia
como proceder. Em vez da aridez diminuir o seu progresso
espiritual, encontrava nela novo alento; e quando mais se via
aparentemente rejeitada por seu Deus, mais se aplicava em lhe ser
agradável.
Corria ainda com mais ardor ao Tabernáculo, à Sagrada Mesa, às
orações, ao menos as vocais quando lhe era impossível a
meditação, e bem que não visse onde andava, em consequência
das espessas trevas em que estava envolta, caminhava sempre
adiante, esperando achar a Jesus do fundo do abismo, de
profundis,14 como ela dizia. Sofria, mas não se lamentava, e atendia
aos deveres do seu estado com a mesma animação, como no
tempo das consolações.
Venham os sábios do mundo e vejam se com suas pobres
máximas podem inspirar a uma fraca mulher tão extraordinária
magnanimidade.

1 Lc 9, 23.
2 At 14, 22 – “Confirmavam as almas dos discípulos e exortavam-nos a perseverar na fé,
dizendo que é necessário entrarmos no Reino de Deus por meio de muitas tribulações”.
3 O que na doutrina do Doutor Místico, São João da Cruz, é denominado “noite escura”.
“Esta noite escura é um influxo de Deus na alma, que a purifica de suas ignorâncias, tanto
naturais como espirituais. Chamam-na os contemplativos de contemplação infusa, ou
teologia mística. Nela vai Deus, em segredo, ensinando a alma e instruindo-a na perfeição
do amor, sem que a alma nada faça, nem entenda como é esta contemplação infusa”. São
João da Cruz, Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 494 – NC.
4 Faz referência a Gl 6, 14.
5 Gl 2, 20.
6 São Bernardo de Claraval (1090-1153). Abade cisterciense, Doutor da Igreja. Faz
menção ao V Sermão, dos Sermões para Festa de Todos os Santos – NC.
7 Col 1, 24 – “O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu
corpo que é a Igreja”.
8 O Papa Bento XVI disse no Encontro com os Párocos e o Clero da Diocese de Roma,
em 22 de fevereiro de 2007: “Parece-me que devemos ir até ao fundo, chegar ao próprio
Senhor, que ofereceu a reparação pelo pecado do mundo, e procurar reparar: digamos,
estabelecer o equilíbrio entre o plus do mal e o plus do bem”. – NC.
9 O Venerável Padre Germano abordará essa mesma visão aqui em três lugares
diferentes. À luz da história do século XX, podemos inseri-la na linha espiritual da Aparição
em la Sallete, e na que ocorreu em 1917, em Fátima. Nosso Senhor revelou-lhe “um plano
universal eclesial para reparação dos pecados gravíssimos que mancham a consciência
dos homens, especialmente batizados e consagrados, para mobilizações de muitas almas
vítimas e vítimas fortes”. Carmelo A. Naselli, Uma missione speciale affidata da Gesú a
Santa Gema Galgani. Ricerche di storia e spiritualità passionista, Roma, Curia Generale
Passionisti, 1979, p. 11. – NC.
10 O Concílio Vaticano II pede aos fiéis: “que aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao
oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada;
que, dia após dia, por Cristo mediador, progridam na unidade com Deus e entre si, para
que finalmente Deus seja tudo em todos”, SC, 48 – NC.
11 “Devemos ser conscientes da nossa missão: com Cristo, nele, devemos redimir o
mundo na medida em que sofremos”. Divo Barsotti, La mistica della riparazione. Melara,
Edizione Parva, 2010, p.22 – NC.
12 “Eis aí porque são tão raros os verdadeiros contemplativos e, sobretudo, os que
alcançam a mais íntima união e familiar comunicação com Deus, por ser tão raro – mesmo
entre os que se passam por bons, recolhidos e fervorosos – os que de verdade se decidem
a dar este passo decisivo de não negar a Deus em absolutamente nada daquilo que veem
claro que ele lhes pede, e corresponder assim, com toda sinceridade e fidelidade, o quanto
para a nossa santificação exija de cada um.” Fr. Juan G. Arintero, O.P., Cuestones
Místicas, Madrid, BAC, 1956, p. 363 – NC.
13 Eis aqui mais expressão, que só se compreende à luz da espiritualidade reparadora.
Consolar a Cristo Crucificado ao partilhar de sua cruz, para sermos cooperadores na obra
de Redenção – NC.
14 De profundis, “Das profundezas”. Faz menção ao salmo 129. Na tradição da Igreja é
recitado em favor das santas almas do purgatório. De certa maneira, Santa Gema passou
por um “purgatório de amor”, onde, entre as noites, sua alma foi se purificando e
configurando a Cristo Crucificado – NC.
CAPÍTULO XXI

SOBRE O MESMO ASSUNTO:


DA SUA HEROICA FORTALEZA

Para purificar os seus eleitos e torná-los vítimas de expiação,


Deus se serve muitas vezes dos próprios demônios, que pela raiva
que têm dos homens, são, mais do que qualquer outra criatura,
instrumentos aptos para este fim.
A Sagrada Escritura e as biografias dos santos, a cada página,
nos demonstram estas verdades, renovando-se até nos nossos dias
estes fatos na Igreja de Deus. Assim aconteceu com meu Santo Pai
Paulo da Cruz. Quando o Senhor lhe fez conhecer que o queria
elevar a um alto grau de santidade, disse-lhe: “Farei com que sejas
pisado pelos pés dos demônios”.1
Da mesma maneira disse a sua serva Gema: “Prepara-te, minha
filha, o demônio, sob minhas ordens, com a guerra que vai declarar-
te, dará a última de mão à obra que quero realizar em ti”.
Começarei a mostrar como esta guerra foi geral, isto é, dirigida
contra cada uma das virtudes e santas práticas pelas qual a Santa
Virgem se esforçava para unir-se a Deus.
Todas desagradavam ao inimigo das almas, e por isso ele as
atacou com toda a fúria. Dir-se-ia que no seu tenebroso reino, nada
mais tinha que fazer senão perseguir a esta pobre donzela,
procurando sempre e por todos modos assaltá-la com tentações.
Gema tinha aprendido bem cedo que o meio mais seguro de
atingir o desejado fim é a oração, e a tinha praticado cor todo o
ardor de sua alma, haurindo dela vantagens inapreciáveis. Ora,
quanto não fez o demônio para desviá-la?...
Excitava-lhe o mau humor, a fim de lhe causar ao menos
aborrecimento e enfado; pois era-lhe impossível fazê-la com que
perdesse de vista o seu Deus; procurava-lhe violentas dores de
cabeça que a levavam antes a deitar-se do que a aplicar-se à
oração, e por diversos outros meios, esforçava-se por afastá-la
deste piedoso exercício.
Oh! – dizia-me ela –, que tormento é este para mim de não poder rezar, que
cansaço sinto! Quantos esforços não emprega este velhaco para impedir a
oração! Ontem à noite queria ele me matar, e o teria conseguido sem a
pronta intervenção de Jesus. Eu estava aniquilada. Eu tinha bem a imagem
de Jesus em meu pensamento, mas não podia proferir seu nome.

Mas que oração melhor do que esta, que partia de um coração tão
generoso e atraía o próprio Deus para ser o espectador de tão
terrível luta!
Outras vezes atacando-a por outro lado bem diferente, o maligno
procurava repentinamente sugerir-lhe maus pensamentos: “Que
fazes, dizia-lhe blasfemando; és tão estúpida que rezas a um
malfeitor? Não vês como te tortura, pregando-te na cruz com ele?
Como podes amar a quem nem sequer conheces e que faz sofrer a
quem o ama?”.
Estas e outras iníquas sugestões eram como poeira atirada ao
vento, mas afligiam profundamente aquela alma tão terna e amante,
obrigada a ouvir ultrajar com tais blasfêmias a seu Jesus. No meio
de tantas penas, a serva de Deus, achava algum conforto
recorrendo a seu pai espiritual, comunicando-lhe o que ocorria e
como procedia a fim de que a dirigisse e aconselhasse. Este auxílio
não podia agradar ao malvado inimigo e, para estorvá-lo, ou antes
para afastá-la do seu guia espiritual, e fazê-la ficar só, começou a
apresentar-lhe mil razões.
Descrevia-o na sua imaginação com as cores mais desfavoráveis,
como um homem ignorante, fanático e iludido, e esforçava-se por
todos os meios de convencê-la e assustá-la, de modo que quase a
pobrezinha se via perdida.
Uma vez entre outras, escreveu-me:

Nestes dias Chiappino – queria dizer demônio – me afligiu de quantos


modos pode, e quanto lhe foi possível. Este monstro redobra esforços para
minha perda, querendo privar-me do meu Guia e Conselheiro. Mas, nem que
ele o conseguisse – veja o leitor a virtude do desapego –, eu nada temo.

Parece que bastaria esta fé em Deus para desarmá-lo; mas não foi
assim. Vendo que era inútil todo o seu artifício para tirar a confiança
no diretor, empregou a violência física, atirando-se a ela quando
perseverava em escrever; arrancava-lhe a pena da mão, rasgava o
papel, e levantava-a da mesa puxando-a pelos cabelos com tanta
força que suas mãos brutais ficavam cheias deles.
Retirando-se, gritava furibundo: “Guerra, guerra a teu pai,
enquanto ele viver neste mundo!”.2
Direi de passagem que o malvado soube sustentar a palavra:
“Creia-me meu pai”, dizia-me a própria Gema, “pelo que ele me diz,
sei que o demônio ainda lhe tem mais raiva do que a mim”.
Levou a sua audácia até a tomar o semblante do sacerdote com
quem a piedosa donzela costumava confessar-se. Indo ela um dia à
igreja, enquanto se preparava junto ao confessionário, viu que o
confessor já estava no seu lugar esperando-a, sem poder saber por
onde ele tinha passado para entrar. Admirada, sentiu grande
perturbação interior, conforme sempre lhe acontecia, quando se
apresentava o espírito do mal. Entretanto, aproximou-se e começou
a sua confissão como de costume.
A voz e a presença eram do confessor, mas começou logo a dizer-
lhe, palavras desonestas, acompanhadas de atos escandalosos.
“Meu Deus”, exclamou Gema, “que é isto, onde estou?”.
Ao ouvir esses ditos e a tal vista, a inocente donzela pôs-se a
tremer dos pés à cabeça, e por instantes ficou acabrunhada, mas
tomou ânimo, levantou-se, e viu que o pretendido confessor
desaparecera sem que ninguém o tivesse visto sair. Era o demônio
que com tão grosseiro artifício e maldade procurava enganá-la e
fazer-lhe perder toda a confiança no servo de Deus.
Em outra ocasião, porém, ele soube tão bem fingir, que com a
permissão de Deus conseguiu fazer-lhe crer, que era de fato o seu
confessor. Por felicidade eu me achava então em Lucca, e sendo
informado do ocorrido foi-me preciso muito esforço para desenganá-
la e obrigá-la por obediência a que readquirisse a paz e a estima
que tinha perdido daquele santo sacerdote.
Falhando-lhe afinal este artifício, o inimigo tentou outro,
aparecendo à serva de Deus sob a forma de um anjo
resplandecente de luz, e insinuando-se ao seu espírito com a feia
astúcia para perturbá-la. Como a Eva no paraíso terrestre, falou-lhe
usando dos meios mais sutis para iludi-la: “Contempla-me, eu te
posso fazer feliz, jura somente obedecer-me”.
Gema, que desta vez não tinha tido a perturbação que lhe
revelava a presença do mau espírito, o ouviu com sua costumada
ingenuidade, mas Deus veio em seu auxílio.
Às primeiras propostas criminosas daquele rebelde, seus olhos se
abriram e gritou: “Meu Deus, Maria Imaculada, valei-me!”.
Em seguida, adiantou-se para o fingido anjo, e cuspiu-lhe no rosto;
no mesmo momento, desapareceu sob a forma de uma chama,
deixando no assoalho do quarto um monte de cinzas. Gema
continuando a dar conta ao diretor escreveu o seguinte:

Um novo assalto. Ouça meu pai: ontem, depois de me ter confessado,


voltando para casa, logo que tive um momento disponível, pus-me de joelhos,
e recitei a coroa das cinco chagas de Jesus.3 Estava na quarta chaga,
quando vi diante de mim alguém muito parecido com Jesus, parecendo ter
sido flagelado naquela mesma hora, com o coração aberto derramando
sangue, e deste modo me disse: ‘É assim, minha filha que me retribuis?
Contempla meu estado, vê como sofro por ti? E não podes em troca me dar
algum alívio com aquelas penitências? – eram as que eu lhe tinha, há pouco,
proibido –. Ah! Não são coisas importantes; podes muito bem continuar a
usá-las como antes’. Não, não, respondi, quero obedecer; eu desobedeceria,
se o atendesse. E ele: “Mas, afinal, não foi o confessor quem te proibiu; foi
aquele... – queria referir-se a mim, que na realidade tinha reprovado tais
macerações – e não és obrigada a obedecer a ele. Atende-me”. E disse
outras coisas ainda. Afinal, no momento em que eu ia tomar a disciplina,
como costumava fazer nessas ocorrências, Jesus veio em meu auxílio;
levantei-me, tomei água benta, e fiquei sossegada, mas não sem ter recebido
algumas pancadas da feia besta com que me presenteia por vezes. Era o
próprio demônio, meu pai.

Vede, leitor, que maldade! Não podendo conseguir doutro modo o


seu intento, procurou fazer com que estragasse a saúde com
macerações corporais contra a proibição de seu Pai espiritual.
Para protegê-la contra essas aparências enganadoras ordenei-lhe,
que sempre que visse qualquer ente sobrenatural, sem mais pensar
gritasse logo: “Viva Jesus!”. Ignorava que o Senhor lhe tinha dado
um conselho bem semelhante, o de dizer :“Sejam benditos Jesus e
Maria”.
A dócil donzela, para nos obedecer a ambos, unia as duas
exclamações: ela ouvia os bons espíritos repetirem sempre: Viva
Jesus! Benditos sejam Jesus e Maria!
Os maus porém não respondiam, ou pronunciavam só as
primeiras palavras: “Viva, bendito...”, e por este sinal, Gema os
reconhecia, e ria-se deles.
Para lhe inspirar vaidade, o demônio lhe fazia ver em sonho ou
ainda mesmo acordada, uma procissão de pessoas vestidas de
branco que se aproximavam de sua cama para venerá-la.
Assegurava-lhe também, que as cartas que ela escrevia a seu
diretor, eram religiosamente conservadas para servirem depois para
sua glória, e lhe declarava outros pontos iguais com exagerada
afetação.
Tudo porém em vão! Gema, possuindo tão profunda humildade,
como temos mostrado, não se deixava levar como Eva pela paixão
da vanglória.
Experimentou também abalar a sua grande confiança em Deus,
aproveitando-se do estado de aridez e abandono em que muitas
vezes a estimável donzela se achava, para redobrar em seu
coração o temor horrível da condenação.
“Não vês – lhe dizia – que esse Jesus não te ouve, não quer mais
saber de ti? Para que te cansas em acompanhá-lo? Deixa-o, e
resigna-te à tua infeliz sorte”.
Esta foi a tentação mais terrível e ambiciosa, que têm sofrido os
mais ilustres santos da Igreja; não é pois de admirar que a nossa
Gema sentisse toda a sua força. Porém, habituada a voltar-se em
toda a circunstância com viva fé para Deus, qualquer que fosse o
estado de espírito que Deus lhe permitisse, não vacilava.
Assim me disse um dia:

Esse desgraçado se esforça por demais; quisera... Mas Jesus, por suas
palavras, me fez recuperar tão grande calma que ele, com todos os seus
esforços, não pôde nem por um momento tirar-me a confiança.
Assim vendo derrotadas todas as suas astúcias, furioso, tirou a
máscara e resolveu declarar-lhe uma guerra aberta. Aparecia-lhe
muitas vezes sob horríveis formas, ora de um monstro ameaçador,
de um cão danado, ou de um homem furioso.4
Depois de ter experimentado aterrorizá-la, precipitava-se sobre
ela, batia-a, mordia-a, atirava-a de um lado para outro, sobre a
cama e no chão. Arrastava-a pelos cabelos e martirizava por todos
os modos o seu corpo inocente.
Ninguém pense poder atribuir estes sofrimentos a impressões
puramente imaginárias, porque os sinais eram visíveis e reais, quer
pelos cabelos arrancados, o corpo lívido, os ossos quebrados, sinais
que permaneciam por muitos dias, e pelas dores atrozes que
padecia a pobre jovem. Às vezes ouvia-se barulho das pancadas,
via-se balançar a cama, subir, elevar-se da terra e tornar a cair.
Estas vexações duravam horas inteiras sem tréguas, e até uma
noite toda. Mas deixemos que a própria Gema nos conte alguma
coisa. A simplicidade de seu estilo e a ingênua sinceridade com que
se exprime, dando conta do seu espírito ao diretor, dispensam todo
o comentário.

Hoje eu julgava estar livre desta feia besta, mas pelo contrário, fui bem
perseguida. Fui deitar-me pensando dormir, mas não me foi possível. Recebi
logo uma pancada tão forte que pensei morrer. O malvado tomou a forma de
um grande cão preto; pôs-me as patas sobre os ombros e maltratou-me tanto
que pensei ter os ossos todos quebrados. Tomando eu a água benta, ele me
torceu o braço com tanta violência que cai no chão com a força da dor. Os
ossos estavam completamente deslocados, mas logo endireitaram porque
Jesus veio, tocou neles e sararam.

Em outra carta:

Ontem ainda, o demônio bateu-me. A tia mandou-me encher as bacias dos


quartos. Quando passei carregando-as diante de uma imagem do Sagrado
Coração de Jesus, dirigi-lhe com amor uma fervorosa oração; no mesmo
instante senti uma pancada tão forte no ombro esquerdo que cai no chão,
porém sem quebrar as vasilhas. Ainda hoje me sinto mal e ao menor
movimento que faço renovam-se as dores.

A santa donzela me escreveu de novo:


Passei, como de costume, uma noite má. O demônio apresentou-me como
um gigante imenso e bateu-me durante toda a noite, dizendo-me: ‘para ti não
há mais esperança de salvação, estás em meu poder’. Respondi-lhe que
nada temia porque Deus é misericordioso. Então, espumando de raiva, deu-
me uma terrível pancada na cabeça e desapareceu gritando: “Seja maldita!”.
Fui para o quarto para repousar um pouco, mas lá tornei encontrá-lo.
Começou de novo a ferir-me com uma corda cheia de nós; batia-me porque
queria que eu fizesse o mal que me sugeria. Não!, lhe dizia eu, e ele
redobrava as pancadas, batendo-me com força a cabeça no chão. De
repente, lembrei-me de invocar o Santo Pai de Jesus – assim Gema
costumava chamar o Pai Eterno –, e chamei: Pai Eterno, pelo Sangue
Preciosíssimo de Jesus, livrai-me. Não sei o que aconteceu; aquele malvado
deu-me uma pancada terrível, atirou-me cama abaixo, feriu-me com tal fúria a
cabeça contra o assoalho que a dor me fez perder os sentidos e fiquei
prostrada por terra, até que voltei a mim, o que só se deu muito tempo
depois. Jesus seja louvado e aplaudido!

Não acabaria tão cedo se quisesse referir todas as cenas


dolorosas que se repetiam frequentemente e, em certos períodos,
quase todos os dias, de modo que a pobre paciente já estava de
alguma sorte habituada, e a não ser pelos padecimentos corporais,
já à vista do monstro, quase que não a assustava mais. Ela o via
com a mesma serenidade com que uma pomba percebe um animal
imundo.
Enquanto eu não lhe proibi, costumava responder-lhe e humilhá-lo
e quando o vencia com a invocação do Santíssimo Nome de Jesus,
e a horrível besta era obrigada a partir rolando pelo chão e fugindo,
a valorosa donzela o acompanhava com risadas gostosas.

Se o tivésseis visto, meu pai – dizia-me –, como fugia, e como tropeçava


desesperado, teríeis também rido comigo. Meus Deus! Quanto é feio,
horrível!... Mas Jesus me disse que não tivesse medo dele.

Uma vez, estando ela gravemente doente, em perigo de morte, eu


a assistia; assentado num canto do quarto dizia o meu breviário,
quando vi passar, com grande fúria por entre minhas pernas, um
grande gato todo preto e de um aspecto horrível que, depois de ter
dado uma volta pelo quarto, foi colocar-se sobre a grade de ferro da
cama, bem defronte da doente, e a contemplava com olhar feroz.
Eu senti gelar-me o sangue àquela vista, enquanto que Gema
estava serena. Disse-lhe, disfarçando a minha perturbação: “Que há
de novo?” Ela respondeu: “Não tenha medo, meu pai, é aquela
bagatela do demônio que quer incomodar-me, mas não tenha medo
que não lhe fará nenhum mal”.
Aproximei-me tremendo, com a água benta, aspergi a cama e a
visão desapareceu, deixando a enferma inteiramente calma, como
se nada tivesse acontecido.
O que verdadeiramente assustava a Gema, repitamos, era o medo
de ofender a Deus, cedendo às malvadas sugestões do inimigo.
Bem que ela estivesse convencida de ter sempre vencido no
passado, o perigo lhe parecia, contudo iminente e aterrorizava-a
continuamente. Ela não se descuidava de nenhuma arma de defesa
nos assaltos: cruzes, relíquias de santos,5 escapulários,6
conjurações,7 e sobretudo a filial confiança recorrendo à Deus, à
Mãe celeste, ao anjo da guarda e também ao diretor espiritual.

Vinde depressa meu pai – escrevia-me –, ou ao menos de longe fazei as


conjurações; o demônio me persegue de todos os modos. Ajudai-me a salvar
a minha alma, que tenho medo de já estar nas mãos do demônio. Ah! Se
soubésseis o quanto sofro! Esta noite como ele estava contente! Tomou-me
pelos cabelos, puxava-me e dizia: “desobediência, desobediência! Agora não
é mais tempo de perdão, vem, vem comigo...”, e queria levar-me para o
inferno. Ficou cerca de quatro horas a me atormentar, e foi assim que se
passou a noite. Tenho tanto medo que venha um dia a atendê-lo, e assim
desagrade a Jesus.

Em algumas circunstâncias raríssimas, o inimigo apoderava-se de


todo o seu ser, prendendo as potências de sua alma e perturbando
a imaginação a ponto de parecer possessa.
Ela própria tinha tal horror deste estado miserável, que só em
pensar nele empalidecia e tremia:

Oh! Meu Deus – dizia-me –, estive no inferno, sem Deus, sem minha Mãe,
sem meu Anjo. Se saí dele sem pecado, a vós só o devo, ó Jesus. Estou
porém contente porque sofrendo assim, e sofrendo sempre, faço a vossa
Santa Vontade.

Certamente que se tais assaltos se dessem mais vezes ou


durassem mais tempo, a pobre paciente, apesar de toda a sua
resignação, teria morrido extenuada.
A estas tribulações se ajuntavam as dores de cruéis doenças
provocadas, conforme temos boas razões de crer, pelo próprio
espírito do mal. E ao mesmo tempo, se considerarmos os
sofrimentos de que já falei na participação da Paixão do Salvador,
nas chagas dos pés, mãos e do lado, nos espinhos da cabeça, nos
flagelos e todos os outros tormentos, teremos em Gema o mais vivo
retrato de mártir, que como vítima se oferecera ao Senhor, em odor
de suavidade.
Ela tinha pois razão de sentir-se contente, tendo com tanto
sofrimento atingido o seu fim e cumprido a sua missão; o seu fim era
de tornar-se semelhante ao Homem Divino das dores e elevar-se a
grande santidade na perfeição do amor de Deus: e a missão, a de
servir ao Senhor em expiação pelos pecados do mundo.
Ergue-te pois, ó esposa predileta de Cristo, purificada,
retemperada, enobrecida pelo caráter dos verdadeiros
companheiros do crucifixo, e recebe a coroa que Deus preparou
para os teus merecimentos.

1 No diário de São Paulo da Cruz, escrito durante seu Retiro em Castelanazzo, em 1720,
consta no dia 30 de novembro: “[...] disse ao meu Jesus que me ensinasse qual grau de
humildade que mais lhe agrada, e senti dizer-me ao coração: Quando tu te ponhas em
espírito aos pés de todas as criaturas até sob os demônios, isto é aquilo que mais me
agrada, já entendi (quando nos abaixamos) até sob o inferno sob os pés dos demônios,
então Deus eleva ao Paraíso, porque como o demônio quis elevar-se mais alto que o
paraíso e por sua soberba foi lançado ao mais profundo do inferno, assim, vice-versa, a
alma que se humilha até sob o inferno faz tremer o demônio, o confunde, e o Sumo Bem a
exalta ao Paraíso [...]”. Antonio Calabrese, La vita mística di San Paolo della Croce,
Vaticano, LEV, 2001, p. 40 – NC.
2 Satanás tem horror dos santos, mas especialmente de um sacerdote santo. Quantas
almas não serão santificadas através dele! O Venerável Padre Germano sem querer, atesta
seu próprio caminho espiritual, como religioso passionista, como sacerdote e como diretor
espiritual – NC.
3 Os Passionistas possuem no patrimônio espiritual do Instituto uma coroa própria
dedicada a veneração das cinco Chagas de Nosso Senhor. Em honra de cada Sagrada
Chaga, recita-se 5 Glórias, e seguida de uma Ave-Maria em honra de Nossa Senhora das
Dores – NC.
4 “O demônio teme a alma unida a Deus como o Próprio Deus”, São João da Cruz,
Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2000, p.105 – NC.
5 “A experiência dos exorcistas nos demonstra o valor das Relíquias de Santos na luta
contra o Maligno”, diz-nos o Padre Gabriele Amorth, O último exorcista, Campinas,
Ecclesiae, p. 23 – NC.
6 Sobre o uso dos sacramentais: “Os objetos consagrados pelas orações da Igreja tem
uma virtude especial contra satanás”, Fr. Antonio Royo Marín, Teología de la perfección
cristiana, Madrid, BAC, 2001, p. 321 – NC.
7 Diferente do exorcismo, a conjuração “pode ser exercitada em privado inclusive por
leigos com as devidas condições, e tem por finalidade rechaçar como inimigo o demônio, e
reprimir-lhe, em virtude do Divino Nome, para que não prejudique espiritual e
corporalmente”. Idem, p. 323 – NC.
CAPÍTULO XXII

A ASSISTÊNCIA EXTRAORDINÁRIA DO SEU ANJO CUSTÓDIO:


OUTRO PODEROSO MEIO DE SANTIFICAÇÃO QUE DEUS DEU
À SUA SERVA

Um dos dogmas mais consoladores da nossa fé é o da proteção


singular dos santos anjos da guarda.
Depois do pecado original o homem fraco e miserável teve
necessidade de ser auxiliado, guiado e aconselhado para praticar o
bem e atingir o fim para que fora criado.
Deus que nos ama como um terno Pai, querendo nos dar este
amparo e assistência, não julgou ser demais confiá-lo aos próprios
anjos, ministros de sua corte celeste; assim, a cada um de nós
designou um, que com razão chamamos: “O nosso bom anjo!”.
Ele nos toma pela mão desde a nossa entrada na vida, e para que
fosse bem conhecido por todos quanto Deus verdadeiramente nos
ama.“Eis, disse o Senhor, que eu mandarei meu anjo, para caminhar
diante de ti, proteger-te durante a viagem, até o lugar que te
preparei”.1
Porém, se Deus ama a todos os homens, e para cada um provê o
que lhe é necessário, toma um cuidado particular dos eleitos que a
Ele são tão caros, como a pupilas dos seus olhos;2 e entre estes,
conforme seus merecimentos, quer que ainda haja preferências.
Donde resultam os diversos graus de importância da missa
misericordiosa dos anjos.
Ora, sendo a nossa Gema, nos conselhos da Divina Providência,
escolhida para ocupar um lugar muito elevado, superior ao comum
dos eleitos, é natural que o anjo destinado pelo Céu à sua guarda
tivesse para com ela uma solicitude muito particular.
Assim aconteceu. Sendo, por todos os modos, extraordinária a
graça que se manifestou nesta alma venturosa, Deus quis que a
ação dessa graça aparecesse também extraordinária para que
ficasse a todos bem conhecido quanto Ele verdadeiramente a
amava.
É certo que se não tivéssemos na Sagrada Escritura a tocante
história de Tobias, e a sua reprodução em muitos santos e santas
canonizados pela Igreja,3 seriamos tentados a ter por exagero o que
temos para dizer a respeito de Gema.
Mas o Senhor prodigaliza inúmeros bens às suas pobres criaturas,
sem que ninguém lhe possa perguntar: “Por que vos mostrais tão
bom?”. Quanto a esta sua serva, não podia aliás estar melhor
preparada, pois possuía uma pureza, uma candura, uma
simplicidade infantil, e ao mesmo tempo uma fé tão viva que lhe
fazia ver, como sem véu, os sublimes mistérios do Céu.
De fato, o anjo da guarda acharia na sua venturosa protegida
qualidades que a aproximavam da natureza angélica, de modo que,
sem muito abaixar a sua dignidade, podia entreter-se familiarmente
com ela. O que havia de admirável nesta intimidade era a presença
sensível do anjo. Gema o via com seus próprios olhos, tocava-o
com suas próprias mãos como se fosse um ente humano,
conversava com ele como com um amigo.

Jesus não me deixou só; faz com que o meu anjo custódio esteja sempre
comigo.

Por tão grande benefício, agradecia a Deus com toda a efusão de


sua alma, e testemunhava também ao anjo o maior reconhecimento.

Se algumas vezes eu for má, ó meu querido anjo, não te zangues, quero te
ser grata.

E o anjo lhe respondia:

Sim, eu serei teu guia e companheiro inseparável. Não sabes quem te


confiou à minha guarda? Foi o misericordioso Jesus.

A estas palavras, a santa virgem, não contendo mais os afetos da


sua alma, perdia os sentidos e ficava em êxtase com o seu anjo. O
que se passava então, ela mesmo o exprimia numa carta, com estas
palavras:
Ficávamos ambos com Jesus. Oh! Se estivésseis também ali, meu pai.

Com estas palavras, ‘ficar com Jesus’, queria significar, mergulhar-


se com o coração e com o espírito naquele oceano imenso da
Divindade, para aí ver e sentir inefáveis mistérios. De ordinário,
naqueles íntimos colóquios, estavam rezando juntos e louvando ao
Altíssimo.
Os espíritos celestes, diz um santo doutor, se comprazem em
assistir as almas quando oram; e o Arcanjo São Rafael assegurou
ao velho Tobias que, enquanto ele rezava, oferecia secretamente
suas orações ao Senhor.4
Ora, se a nossa Gema orava sem interrupção desde a manhã até
à tarde e grande parte da noite com a mais viva fé e extraordinário
fervor, com que complacência não a consideraria o anjo do Senhor?
Aparecia-lhe ora suspenso no ar com as asas abertas e as mãos
estendidas sobre ela, ou unidas em ato de oração, ou ajoelhado ao
seu lado. Se eram orações vocais que fazia, recitava-as
alternadamente com ela, se aspirações ou jaculatórias, apostavam
(são palavras de Gema!) quem exclamaria mais alto: “Viva Jesus!
Bendito seja Jesus!”. E outras afetuosas aspirações... e Jesus
mostrava-se tão contente!
Nas horas de meditação, o bom Anjo lhe sugeria luzes altíssimas,
e lhe dava fervorosos sentimentos para que a fizesse com perfeição.
Como o assunto da meditação era quase sempre a Paixão do
Salvador, o bom anjo lhe ia descobrindo os seus profundos
mistérios.

Olha – dizia-lhe – quanto Jesus sofreu pelos homens; considera uma por
uma suas chagas; foi o amor que as abriu. Vê quanto é terrível o pecado,
cuja expiação custa tanta dor e tanto amor.

E outros belíssimo pensamentos que como raios de luz e fogo


atravessavam o coração da jovem.
Tendo eu mesmo assistido muitas vezes a estas meditações de
Gema com o seu anjo custódio, pude convencer-me pelo que
observei da realidade do que assevero, ainda que ela não me o
tivesse comunicado. Notei também que cada vez que ela levantava
os olhos para contemplar o anjo, para ouvi-lo ou falar-lhe, ainda
mesmo fora da meditação ou oração perdia os sentidos; e nesses
momentos podiam sacudi-la, picá-la e queimá-la sem que voltasse a
si.
Depois, retirando dele o olhar, ou cessando o colóquio,
imediatamente recuperava os sentidos e se cem vezes ela o
contemplasse, embora rapidamente, outras tantas se repetia
fenômeno do êxtase.
Noto só de passagem este fato, reservando-me de falar
minuciosamente dos êxtases da Serva de Deus em outro lugar, para
que ninguém pense que a sua intimidade com o anjo custódio era
produto da imaginação.
O mesmo acontecia em todo o lugar e sempre à mesa,
trabalhando, ou na cozinha; o Anjo estava sempre à disposição de
Gema, e esta pronta a recebê-lo. Nenhum sinal exterior revelava
seus santos colóquios, além da imobilidade absoluta da vidente e o
brilho sobrenatural dos olhos, e convinha tocá-la para compreender
que estava conversando com os espíritos celestes, fora deste
mundo.
Muitas vezes estes colóquios dos quais já demos um modelo eram
dos mais simples e familiares, e tão grande era a intimidade do anjo
da guarda que só a igualou a do Arcanjo Rafael com o moço Tobias.

Diga-me, meu anjo – interrogava a jovem –, que tinha esta manhã o meu
confessor que estava tão sério, e que não me quis ouvir?

Em outra ocasião:

Quando o Padre responderá de Roma a carta urgente em que eu lhe pedia


conselhos para proceder naquele ponto?;
Diga-me, meu querido anjo, quando converterá Jesus aquele pecador pelo
qual tanto me interesso?;
Que devo eu responder àquela pessoa que me pede um conselho?;
E de mim que vos parece?;
Jesus está contente comigo? Que devo fazer para lhe agradecer?
E outras perguntas semelhantes, todas em pontos espirituais, pois
que em outros assuntos não falavam.
O anjo, com inefável condescendência, correspondendo a tão
ilimitada confiança e ingenuidade, respondia a tudo; e os
acontecimentos demonstravam que as respostas eram dadas por
um espírito celeste.
Possuo cópia de inúmeras notas sobre esta matéria, que seria
preciso um volume inteiro apenas para referir tudo, e em seguida,
outro de polêmica para fazer crer coisas tão extraordinárias que hoje
o racionalismo moderno dificilmente aceitará.
Direi somente, falando de um modo geral, que o anjo da guarda
era para Gema como outro Jesus. Ela lhe expunha as suas
necessidades e as dos outros; em suas tribulações, queria-o sempre
a seu lado e em particular nas lutas contra o inimigo.
Encarregava-o de diversos negócios para com Deus, sua divina
Mãe e os santos advogados; confiava-lhe também cartas fechadas e
reservadas para Jesus e Maria pedindo-lhe que lhe trouxesse a
resposta em breve; e as cartas eram de fato levadas.
Quantas experiências não fiz para me certificar de que este fato
singular se dava por virtude sobrenatural! Nenhuma me falhou,
ficando sempre convencido de que, neste caso como em muitos
outros, o Céu se dignava a brincar com esta virgem tão simples, e
que lhe era tão cara.
Quando ela encarregava seu obsequioso anjo de alguma
embaixada particular para alguém no mundo, o que fazia
frequentemente, grande era a sua admiração quando não recebia
nenhuma resposta:

Entretanto – escrevia-me ela –, há tantos dias já que lhe mandei dizer pelo
anjo. Como não fez ainda nada? Ao menos podia mandar dizer mesmo por
ele, que não lhe era possível ocupar-se com este negócio. Em todo caso não
vos zangueis, se insisto de novo nesta carta, porque se trata de assunto
muito importante.

Assim, este celeste mensageiro andava sempre em embaixadas e


de bom grado a satisfazia. Ainda sem ser invocado, acudia a todas
as suas necessidades e perigos, refreava a audácia do demônio,
que com refinada malícia queria sempre fazer-lhe mal, e lutava com
ele para tirá-la das suas mãos.
Para referir a algum fato particular, ocorre-me este: estando Gema
uma vez à mesa da casa de seus pais, uma das pessoas presentes,
deixando-se levar pelo mau hábito do tempo atual, proferiu uma
blasfêmia contra o santo nome de Deus. Apenas Gema o ouviu,
sentiu tal dor que desmaiou e ia batendo com a cabeça no chão;
mas o anjo da guarda a acudiu prontamente, tomando-a pelo braço
e sustentando-a, dizendo-lhe uma palavra consoladora ao coração
que lhe fez recuperar os sentidos.
Outra vez, tendo ficado na igreja até tarde sem perceber, entretida
com Jesus, o anjo a advertiu e a acompanhou visivelmente até a
casa.
Noutra ocasião, tendo o demônio lhe dado fortes pancadas na
hora da oração da noite, deixando a pobre donzela sentindo-se
incapaz de fazer qualquer movimento, veio o anjo ajudá-la para que
pudesse deitar, e depois ficou à sua cabeceira, guardando-a.
Em outras circunstâncias em que sua vida corria perigo, ele a
prevenia e aconselhava para que empregasse as devidas cautelas
para evitá-lo.
Sem esta celestial intervenção, ela, que não cuidava em si, teria
certamente sido vítima de alguma desgraça, chegando ele a lhe
dizer um dia com ternura: “Pobre menina! És tão inexperiente! Tens
necessidade de que alguém continuamente te proteja; quanta
paciência preciso ter contigo!”.
Contudo, a missão mais importante do anjo para com Gema era
sobre os interesses de sua alma. Ele devia ser, nas mãos de Deus,
o instrumento da sua santificação pelos árduos caminhos da virtude.
Assim, enquanto por um lado a defendia, por outro servia-lhe de
excelente mestre de perfeição cristã.5 Aproveitava-se de todos os
ensejos para a ela dar conselhos, instruí-la e guiá-la com celestial
sabedoria, o que a própria Gema nos transmitiu pelas comunicações
que regularmente fazia a seu pai espiritual.
Uma vez, para que ela não perdesse nem uma sílaba, quis o santo
Anjo que escrevesse alguns pontos ditado por ele, e lhe ordenou
que tomasse papel e pena e se assentasse à escrivaninha,
enquanto ele,em pé diante dela, como a um menino na escola junto
à sua mestra, ia ditando:

Recorda-te minha filha, que quem ama verdadeiramente a Jesus fala pouco
e suporta tudo. Ordeno-te em nome de Jesus que nunca dês a tua opinião se
não te perguntarem, e não sustentes o teu modo de pensar, mas cedas logo.
Quando cometeres alguma falta, acusa-te sem esperar que outros te
precedam. Obediência pontual ao confessor e a quem fizer suas vezes, sem
nada replicares, e sinceridade com ambos. Lembra-te de guardar a tua vista,
pensando que os olhos mortificados verão a beleza do Céu.

O santo anjo sabia usar de rigor com a sua discípula, corrigindo-a


nos seus menores defeitos, sem desculpa. Sobre este ponto,
escrevendo-me ela um dia, disse-me:

O meu anjo é um pouco severo, mas eu estimo que seja assim.


Ultimamente ele me tem repreendido três a quatro vezes por dia.

Na verdade, às vezes parecia até deixar de ser justo. Gema


continua:

Ontem, durante a refeição, levantei os olhos e vi meu anjo, que me


observava com um olhar tão severo que me assustou! Disse-me: ‘Não tens
vergonha de cometer essas faltas em minha presença?’ Lançava-me olhares
tão ameaçadores... Caí num pranto e suplicava a meu Deus e à minha Mãe
celeste que o tirasse dali, porque eu não podia resistir mais tempo a este
suplício. De quando em quando ele me repetia: ‘Tenho vergonha de ti’. Eu
rezava para que ninguém o visse com aquele aspecto, porque se o tivessem
visto, ninguém mais se aproximaria de mim. Sofri um dia inteiro, foi-me
impossível recolher-me um só instante, não tinha coragem de lhe dizer uma
palavra, vendo que sempre que levantava os olhos ele continuava tão severo.
Tinha vontade de lhe pedir perdão, mas quando ele está assim, irado, não há
esperanças de que me perdoe. Ontem à noite não pude conciliar o sono.
Enfim, pelas duas horas da manhã, vi-o aproximar-se e colocar a mão sobre
minha fronte, dizendo-me: ‘Dorme, má!’, e desapareceu.

Não se podia exprimir o fruto que Gema tirava deste angélico


magistério, sempre sequiosa pela perfeição. Estava sempre atenta
as menores palavras que o anjo lhe dizia, e cumpria com a melhor
vontade as penitências que ele lhe impunha para conseguir agradar-
lhe.
Escreveu-me ela um dia:

Repugnava-me tanto a penitência que ele me impôs de comunicar certos


segredos ao confessor, mas obedeci, meu pai, fiz-me violência e fui muito
cedo dizer-lhe tudo, e assim me venci; e o anjo ficou tão satisfeito que se
tornou amável comigo.

Por esta grande caridade que via no seu Anjo para com ela, Gema
o amava muito, e tinha constantemente o seu nome nos lábios como
no coração:

Caro anjo – lhe dizia –, como vos quero bem!


Por que? – perguntava ele.
Porque me ensinais a ser boa, a conservar-me humilde, e a agradar a
Jesus.

Não é de admirar, pois, que um amor tão forte, numa alma tão
simples e ingênua, produzisse uma familiaridade que poderá
parecer às vezes até excessiva.
Ao ouvi-la falar com seu querido anjo, julgar-se-ia que tratava
como uma pessoa igual a si, discutindo vivamente para que ele
cedesse à sua opinião. Eu mesmo asseguro que estranhei muito e a
adverti de que não procedia bem, chamado-a de soberba, que em
vez de tremer diante dum espírito celeste, lhe falava com tanta
familiaridade até tratando-o por tu; e para experimentar a sua
virtude, acabei proibido que excedesse de certos limites que lhe
marquei.
Gema abaixou a cabeça e humildemente respondeu:

Tem toda a razão, meu pai, eu me corrigirei. De hoje diante tratarei sempre
por vós ao Anjo e lhe darei todas as demonstrações de reverência e me
conservarei a cem passos de distância quando o tornar a ver.

E cumpriu a promessa! Enquanto mantive a proibição, embora


quanto ao tratamento de tu em vez de vós, ela por vezes trocava,
mas se corrigia logo, até mesmo estando em êxtase. Na primeira
visita do santo Anjo, ela com toda a franqueza o advertiu dessa
mudança:

Tenhamos paciência, querido anjo, o diretor não quer... e é preciso mudar


de procedimento.

Uma vez, sobrevindo-lhe algum escrúpulo, assim me escreveu:

Aquele bendito anjo me fez ficar inquieta porque eu não queria falar-lhe,
mas ele insistia muito. Afinal, me disse: Deus te abençoe, ó alma confiada a
minha guarda. Imagina, meu pai, eu lhe respondi assim: ó santo Anjo, ouvi,
não mancheis vossa mão comigo, retirai-vos, ide procurar outras almas que
saibam corresponder ao dom de Deus. Eu nada sei fazer. Enfim, fiz com que
me compreendesse. Ele me perguntou: “Mas que temes?” Desobedecer,
respondi. “Não receies”, retorquiu ele, “que é teu diretor que me manda”. Ela
disse apenas: “Perdoe-me, meu anjo, não o posso ouvir”.

Algumas vezes o anjo não lhe aparecia só, mas levava outros
espíritos celestes para fazerem alegre companhia à sua angélica
irmã. Quando eu soube, pelo mesmo motivo dado, mostrei-lhe a
minha reprovação, dizendo que era tempo de acabar com isso.
Eis a sua resposta:

Verdadeiramente, meu pai, eu não compreendo. Os outros, quando rezam,


veem seu anjo. Porém, se eu vejo o meu, o senhor me censura e se
contraria. Assim, ontem, dia de sua festa, eu os despedi a todos. Mas o meu
não quis retirar-se, nem aquele outro de que já lhe falei. Ora, que hei de
fazer? Mas não se zangue mais, serei boa e obedecerei não se aflija.

Acrescento ainda duas aparições escolhidas entre outras muitas, e


termino este capítulo.

Eu estava de cama, sofrendo muito, quando senti subitamente apoderar-se


de mim um grande recolhimento: com as mãos postas e com todo o fervor de
meu pobre coração, fiz um ato de contrição, com viva dor de meus
inumeráveis pecados. Meu espírito estava absorto nas ofensas feitas a Deus,
quando vi o anjo perto de mim. Envergonhei-me de estar na sua presença.
Ele, pelo contrário, me falou com muito agrado e disse: ‘Jesus te quer muito
bem, ama-o deveras’. Depois continuou: ‘Ama a Mãe de Jesus. Saúda-a
muitas vezes; ela aprecia muito as saudações e não cessa de retribuí-las a
nós todos; se não as percebes é para experimentar tua fidelidade’.
Abençoou-me e desapareceu.

Por estas aparições, pode o leitor apreciar a familiaridade de


Gema com o anjo, simples, natural, mas repassada de profunda
humildade.
Uma outra visão é muito semelhante às referidas, mas não a
quero omitir.

Enquanto eu fazia as minhas orações da noite, o anjo da guarda


aproximou-se de mim, e batendo-me no ombro, disse-me: “Gema, como
sentes tanto desgosto pelas orações?” Não, respondi, não é desgosto; há
dois dias que não me sinto bem. Ele acrescentou: “Cumpre com teus deveres
com aplicação e verás como Jesus te amará ainda mais”. Pedi-lhe então que
fosse perguntar a Jesus se lhe dava a licença de passar essa noite comigo.
Desapareceu logo, e tão logo recebeu a permissão de Jesus, voltou no
mesmo instante. Oh! Como se mostrou bom! Chegando a hora de partir, eu
lhe pedi que se demorasse ainda mais, mas respondeu: “Convém que eu vá”.
Pois bem, lhe disse, saúde então a Jesus por mim. Lançou-me um último
olhar e me disse: “Não quero que tenhas mais conversações com as
criaturas, quando quiseres falar, fala só com Jesus e com o teu Anjo”.6

Do mesmo feitio são quase todas as outras aparições de que


Gema nos deixou a descrição ou foram colhidas de sua boca
estando em êxtase. Donde se depreende quanto era agradável aos
olhos de Deus esta virgem, para ser visitada, assistida e dirigida no
caminho de santidade pelos espíritos angélicos.
Contudo nada temos que invejar nela, porque nós também
recebemos do Pai celeste um anjo para nos guardar.
Se fossemos como Gema, inocentes, puros, simples e humildes
de coração, cheios de fé e santos desejos de perfeição, certamente
eles nos teriam tanto amor, como o anjo de Gema dedicava a ela.

1 Ex 23, 20.
2 Sl 16, 8.
3 A lista aqui não teria fim. Podemos citar, sobretudo, São Pio de Pietrelcina (1887-
1968), o famoso capuchinho, um dos maiores místicos da história da Igreja e grande diretor
espiritual, que tinha muita intimidade com seu santo anjo da guarda – NC.
4 Tb. 12, 12.
5 Outra grande intuição do Venerável Padre Germano. O nosso santo anjo da guarda é
sempre e fielmente nosso mestre na perfeição cristã. Que saudável costume nos foi
transmitido de rezar cotidianamente, e Deus queira mais vezes, a oração ao santo anjo do
Senhor – NC.
6 “Já não quero que fales com homens, mas com anjos”, Santa Teresa de Jesus, Obras
Completas, São Paulo, Loyola, 1995, p. 125 e 801 – NC.
CAPÍTULO XXIII

AS GRAÇAS:
DOM DE ALTÍSSIMA ORAÇÃO DE QUE GEMA FOI FAVORECIDA

Por meio da oração, a alma se torna apta a elevar-se até Deus e a


ter uma vida toda espiritual, e nisto consiste a perfeição cristã. A
oração tem diversos graus, assim como a perfeição; e a alma que
conseguir percorrê-los todos, chegará certamente à união íntima
com o Sumo Bem.
Os primeiros graus são os da meditação comum, onde
consideramos as verdades eternas, aplicando-as a nós mesmos, a
fim de excitar na vontade sentimentos e afetos correspondentes.
Muitas almas param nestes primeiros graus, que são os
propriamente ditos da vida ascética,1 e não passam daí; outras,
porém, mais favorecidas pelo Céu, sobem da meditação à
contemplação, que é parte da vida mística.
É pois a contemplação, uma ascensão sublime da alma para
Deus, acompanhada de um ato da inteligência, simples, afetuoso e
repassado de admiração, da qual deriva para o contemplativo,
inefável consolação e doçura.
Na meditação para gozar a suavidade das verdades eternas, a
alma deve agir por si mesma, fazendo uso, às vezes, até com
grande esforço, das suas três potências: memória, entendimento e
vontade. Na contemplação, pelo contrário, a alma só tem que
admirar a beleza, que com luzes extraordinárias Deus lhe revela, e
gozar desta ventura, num quase êxtase. Então, ela não se exercita
mais, propriamente falando, em reflexões, aplicações ou raciocínio,
porque fica absorta diante de tais maravilhas que a arrebatam.
Em poucas palavras, dadas as devidas proporções, o
contemplativo faz com a luz da graça aqui na Terra o que com a luz
da glória fazem os bem-aventurados no Céu.
Era preciso dar estas noções para ser compreendido nesta
matéria tão pouco conhecida;2 e sem mais demora, voltemos à
nossa Gema.
Falaremos em primeiro lugar do seu espírito de oração em geral, e
em seguida dos progressos de sua alma pelos caminhos da
meditação e da contemplação.
Vimos como desde seus mais tenros anos esta virgem se aplicou
com assiduidade à oração, empregando todos os esforços para se
dispor a receber sempre novos favores da graça neste caminho.
Levada por irresistível instinto, quando menina instava com sua
santa mãe e com as mestras para que lhe ensinassem a rezar; e
assim pôde compreender o valor da oração. Fugia da companhia da
família para ficar só durante longas horas do dia, recolhida em seu
quarto, rezando e trabalhando.
O horror que desde então sempre sentiu por tudo o que lhe
pudesse ocupar o espírito e o coração fora de Deus, ou mesmo
distraí-la por pouco que fosse, o absoluto desapego de todas as
criaturas, a severa guarda dos sentidos, a delicadeza de
consciência levada ao escrúpulo, a mortificação contínua das
paixões e todas as raras virtudes em que se exercitava
constantemente, tudo isto não tinha outro fim senão o de concorrer
para a sua união mais íntima com Deus.
Foram bem coroados seus primeiros esforços, conseguindo em
breve a graça de ter seu olhar sempre fixo no Senhor, como a águia
fita o sol sem ficar ofuscada.
Ora, se o fim da oração consiste em estar sempre na presença de
Deus e a Ele unido pela fé, convêm reconhecer que, desde o
princípio, a nossa Gema possuía o dom da oração em alto grau.
Para se absorver em Deus ela não tinha necessidade de pôr-se em
oração e esforçar-se em concentrar as potências de sua alma como
nos acontece. O Senhor lhe estava sempre presente em todo tempo
e lugar, sem que coisa alguma pudesse distraí-la.
É por certo extraordinário este fato, considerando-se que a
piedosa jovem, por mais que quisesse se afastar de assuntos
estranhos, era, entretanto, exatíssima no cumprimento de todas as
ocupações que lhe confiavam, executando-as com a máxima
perfeição.
Uma vez só, e por um momento apenas, sei que ela se distraiu da
atenção contínua na presença de Deus, e eis o fato raríssimo para
ela, e aliás considerado como una grande desgraça. Escreveu-me
assim:

Num destes dias passados, cometi uma grande falta, que não sei como
Deus não me fulminou. Oh! Jesus misericordioso. O Padre Lourenço3 me
mandou fazer uma conta; empreguei nela talvez mais atenção do que era
preciso, e saí da presença de Deus. Mas foi apenas por um minuto,
concentrando-me de novo, prontamente pedi perdão a Deus, e Ele me
perdoou.

Era suficiente observar esta admirável virgem, mesmo de relance,


para perceber logo a sua profunda união com Deus. A majestade do
seu semblante (repito-me, mas não importa!), a gravidade no seu
porte, a moderação nas palavras, a sua angélica modéstia dos olhos
e de toda a pessoa, realçada por um sorriso espontâneo que lhe
pairava nos lábios, assegurava a todos que Gema vivia na presença
de Deus e só com o corpo estava no mundo.
Esta atenção constante aos pensamentos celestes já se lhe tinha
tornado tão natural, que nenhum cansaço lhe produzia; pelo
contrário, era preciso grande violência para distraí-la... Não exagero,
refiro fatos de que fui testemunha, como por exemplo:
Achando-me um dia à mesa na casa daqueles senhores,
bemfeitores de meu Instituto, reparei em Gema, que estava sentada
diante de mim, toda recolhida. Com minha autoridade de pai
espiritual, lhe disse que se distraísse, não sendo aquele, nem o
tempo, nem o lugar de fazer oração. Observei-a de novo e vi que
empalidecia, e todo o seu corpo tremia, mas continuava a comer
procurando disfarçar o que internamente sofria. Terminando o jantar,
chamei-a de parte e percebi que estava coberta de tão abundante
suor que lhe molhava todas as vestes, parecia que havia saído de
um banho. Mas que é isto?, perguntei muito admirado.
“O Senhor sabe, meu pai”, respondeu-me com incomparável
candura. “Não me tirou Jesus durante a mesa?... E posso eu ficar
sem pensar n’Ele?”.
Mudei de assunto, e com ar de aparente desprezo, mandei que
fosse mudar de roupa. Algumas horas depois, repeti a ordem, e o
extraordinário fenômeno se reproduziu. Fiz terceira experiência, com
o mesmo resultado. Até que, por compaixão e temor de que seu
coração se partisse, tive que ceder, causando-me também
verdadeiro pesar contemplá-la nesta tortura.
Como podia este anjo ainda viver na Terra? Esta constante união
com Deus não consistia somente num recolhimento de espírito mais
ou menos sensível, que pode ter qualquer pessoa, quando se
lembra de que está na presença do Senhor, mas era um exercício
de elevada oração, suave e espontânea.
Ela via o seu Deus, falava-Lhe, ouvia-O, gozava de suas doçuras,
e passando com admirável facilidade dos pensamentos mais
abstratos aos sentimentos mais simples e comuns, propunha-Lhe
suas dúvidas, pedia favores por esta ou aquela alma e lhe agradecia
os já recebidos.
Tal era o recolhimento desta piedosa virgem, o seu espírito de
oração e a ocupação das 24 horas do seu dia.
Digo 24 horas porque dormindo muito pouco, e sempre com
intervalos, pouco ou nada interrompia a sua oração.
Cada vez que acordava, retomava o fio e assim chegava a
manhã.Levantava-se da cama, como tinha estado toda noite, com o
pensamento na igreja, sem cansaço nem atordoamento, e quem
tivesse assistido ao seu despertar ficaria edificado vendo-a benzer-
se devotamente com o crucifixo que tinha sempre na mão enquanto
dormia, beijá-lo, e sorrir com celestial graça.
Aludindo a estes colóquios da noite com o Senhor, ouviram-na
uma vez exclamar em êxtase:

Vede, ó Jesus, mesmo durante a noite, que horas, que horas!... Durmo,
mas, ó meu bom Jesus, o meu coração não dorme, vela sem cessar, sempre
unido a Vós.

Pode-se compreender que pouco uso este anjo devia fazer das
fórmulas de orações vocais nos seus colóquios com o Senhor.
Rezava o rosário juntamente com a família, de vez em quando a
Coroa da Paixão e das Dores,4 para servirem de pontos na
meditação dos mistérios dolorosos, e mais nada. Podendo fazê-los
mais perfeitos com as luzes que do Céu recebia, compunha-os para
si, conforme a necessidade.

Não me satisfaço – dizia-me – com ler as orações dos livros, nem com
recitar só Padre-Nossos e Ave Marias; não acho neles alimento e canso-me.
Assim, rezo por mim mesma como posso.

O leitor certamente apreciará que lhe transcreva algumas destas


orações improvisadas de Gema, que foram fielmente colhidas de
seus lábios nos momentos de êxtase em que rezava em alta voz.
Talvez não sejam inferiores aos solilóquios de Santo Agostinho:

Louvor ao amor apaixonado de Jesus que, tocado de piedade pela minha


miséria, me oferece todos os meios de chegar ao seu Amor! Vós, sois, ó
Jesus, um tesouro que antes eu não conhecia; mas agora, ó Jesus, conheço-
vos, sois todo meu, principalmente o vosso coração. Sim! É meu o vosso
coração, porque muitas vezes me tendes dado. Mas o vosso coração é cheio
de luzes, e o meu cheio de trevas à luz tão clara do meu Jesus!
Mas como vos poderei louvar, Deus meu? Quando me criastes, foi sem
meu concurso, assim também sem mim tendes o louvor que mereceis.
Que vos louvem pois todas as obras que fizestes conforme a grandeza da
vossa majestade. Meu espírito tem princípio e fim, mas o louvor a que o
Senhor tem direito é ilimitado; e quando vos louvamos, ó Senhor, não somos
nós, mas sois vós, que vos louvais em vós mesmo.

E rezando por si mesma dizia:

Jesus, venho a vossos Pés para pedir-vos uma graça. Se não fosseis
onipotente não vos faria este pedido. Como podeis desprezar minha alma tão
ardente de desejos? Desprezareis os desejos que vós mesmo me
inspirastes? Esta graça eu a quero e vós me dareis, não é verdade? Ó Jesus,
tende piedade de mim que tantas vezes vos tenho pedido pelos outros; tende
piedade de uma pecadora que vos custou a vida. Perdoai-me, meu Deus, sou
órfã, não tenho pai nem mãe, tende piedade dos órfãos; sou fruto da vossa
Paixão.

Poderia encher um volume inteiro com mil outros colóquios deste


gênero. Às vezes a fervorosa jovem desabafava seu coração com
livres aspirações, também iluminados de amor:
Oh Jesus! Deus do meu coração! Ó Pai! Só convosco! Quando virá o
momento de vos ver face a face? Ó Terra quão desprezível me és! Ó cruz do
meu Jesus, quanto me és cara!

E outras jaculatórias semelhantes que do espírito que as produzia


passavam ao coração, e quando julgava estar só, do coração
subiam aos lábios em alta voz.
Às vezes recitava também versos dos salmos, escolhidos, entre os
mais apropriados à disposição do seu espírito, servindo-se deles
especialmente no tempo da mais profunda aridez, e quando o
excesso das angústias interiores paralisava o seu espírito e o seu
coração.
Na aridez ordinária, ambas as faculdades ficavam livres de se
exercitarem, e talvez melhor ainda do que no tempo da consolação,
só com a diferença de que a oração era mais dolorosa e excitava
mais a compaixão, despedaçando o coração de quem estivesse
presente.
Entre seus escritos há um livrinho em que tinha copiado algumas
dessas aspirações, tiradas dos salmos com o seguinte título:
“Orações, aspirações, jaculatórias, breve coleção de alguns salmos
para repetir durante o dia e principalmente no tempo em que Jesus
se esconde”. Assim já a ouvimos denominar este estado de cruel
martírio: “Jesus escondido”.
Falando da contemplação, os doutores místicos a distinguem em
infusa e adquirida: a primeira é um dom gratuito de Deus,
independente de qualquer indústria humana; a segunda, menos
elevada, menos suave e luminosa, pode-se obter pelos nossos
esforços, auxiliados pela divina graça e principalmente com o
exercício mais ou menos assíduo da meditação.
De fato, por este meio a alma se habitua com o pensamento dos
bens celestiais, o espírito e o coração se purificam e se
espiritualizam progressivamente, a ponto de não ser mais preciso
recorrer à reflexão e ao raciocínio, para entrar num profundo
recolhimento.
Então, basta um pensamento ou a visão de uma imagem para
abstraí-la e fixá-la em Deus com um olhar tranquilo, quase extático.
Gema exercitava-se nestas duas formas de oração, donde se
deduz o que já assegurei, que na vida espiritual ela não foi somente
passiva, mas teve que empregar todos os esforços para se tornar
santa, fazendo-se digna dos dons da divina graça. Sob a direção do
Espírito Santo, aplicava-se inteiramente à meditação comum em
diversas horas do dia, isto é, de manhã na igreja e à noite antes de
dormir.
Além destas duas horas, aproveitava todos os fazeres para este
santo exercício. Seguia na meditação as regras gerais indicadas
pelos mestres espirituais, como a preparação remota, que consiste
no recolhimento e escolha antecipada do assunto da meditação; a
preparação próxima, que são os atos de fé, contrição, oração e
outros que precedem este exercício; em seguida a composição de
lugar, ou representação do mistério por meio da memória e a
consideração dele pelo entendimento, a aplicação da verdade
meditada a si mesma e, finalmente, o impulso dos afetos com a
vontade.
Os temas preferidos de suas meditações eram os atributos de
Deus, e a Paixão do Salvador, e ainda que se propusesse outros,
sempre acabava nestes dois: Deus e o Calvário.
Concentrava-se tanto, que poderia demorar-se neles horas
seguidas sem sentir o menor cansaço ou distração. Aliás, distrações
ela não as teve nunca na oração, nem quando criança, por mais que
prolongasse o tempo destinado.
Logo que se recolhia, o mundo desaparecia do seu espírito e
ficava livre para entreter-se a sós com Deus, como se não vivesse
mais na terra. Insigne privilégio, por certo que só a poucos santos
sabemos ter sido concedido.
Compreende-se assim quanto devia ser fácil a Gema passar de
tão profunda meditação à contemplação que chamamos adquirida.5
Na verdade, bem cedo recebeu do Senhor este dom do Espírito
Santo. Sem que se esforçasse por obtê-la, e sem que a desejasse,
depois das primeiras considerações a oração se convertia em
altíssima contemplação. Se o mistério proposto à meditação era o
da beleza, santidade, misericórdia, justiça de Deus, ela via estas
divinas perfeições como num quadro – ou melhor ainda, num
espelho.
Considerava a sua grandeza e a sua profundeza e descobria,
tanto quanto é permitido ao espírito humano, inefáveis segredos. E
impondo silêncio a todas as faculdades de sua alma, gozava em
repouso desta contemplação.
Na meditação da Paixão do Senhor, depois de se ter representado
o mistério no Getsêmani, no Pretório, no Calvário ou na descida da
cruz, a sua mente se perdia como num mar sem praias e o seu
coração se consumia de dor e de amor.
Para me fazer melhor compreender, transcrevo aqui as próprias
palavras com que, a meu pedido, a nossa contemplativa me dava
conta por escrito das suas orações.

Fazendo a meditação, não me sobrevém o menor cansaço. Minha alma se


sente abismada na imensidade da grandeza divina, e se absorve, ora num
ponto, ora noutro. Reflito, antes de tudo, que à minha alma, sendo criada à
imagem e semelhança de Deus, só Ele deve ser o seu fim. Nesses
momentos parece-me que minha alma voa para Deus e perde o peso do
corpo, e, achando-me na presença de Jesus, perco-me toda n’Ele. Sinto que
amo este celeste amante de suas criaturas e quanto mais penso n’Ele, tanto
mais o conheço terno e amável. Outras vezes, parece-me ver em Jesus uma
luz divina e um sol de perpétua claridade, um Deus imenso ao qual tudo no
Céu e na Terra está sujeito, um Deus em cuja vontade está todo o poder. Eu
O vejo entre os bens, o Sumo Bem que existe por si mesmo; e sendo Jesus
perfeito, n’Ele encontro tudo. Perco-me ainda na sua bondade e, então,
quase sempre o meu espírito voa para o Paraíso. Jesus é infinitamente bom,
e um dia espero desfrutar n’Ele todos os bens. Termino pedindo a Jesus que
aumente em mim o seu amor até que seja perfeito no Céu.

Outra vez ela escreveu:

Na oração estou como fora de mim, não percebo onde me acho e, se estou
fora dos sentidos, fico numa paz e tranquilidade que não posso explicar.
Sinto-me atraída por uma força, mas não é uma força violenta, senão
suavíssima. Quando em seguida gozo da plenitude da doçura que dá a posse
de Jesus, esqueço-me de que estou no mundo; sinto que minha alma está
cheia e nada mais tem que desejar; o coração está satisfeito porque tem
consigo um bem imenso, um bem infinito, incomparável, ilimitado e completo.
Depois da oração não posso voluntariamente procurar nem desejar mais
nada, porque é perfeita a doçura que Jesus, na sua infinita bondade e
caridade, me concede. Nem sempre, porém, sinto esta ventura; às vezes, na
oração, apodera-se de mim uma dor tão forte de meus pecados que parece
que vou morrer.

Respondendo a uma pergunta, que para me esclarecer lhe


propusera, assim escreveu:

Pondo-me em oração, não vejo a Jesus com os olhos do corpo, mas


conheço-O distintamente, porque Ele me faz cair num suave abandono, e
neste sentimento O reconheço. Sua voz se faz ouvir tão alto que muitas
vezes tenho dito que a voz de Jesus penetra mais em minha alma do que
uma espada de dois gumes. As palavras de Jesus são palavras de vida
eterna. Quando desse modo vejo a Jesus e O sinto, não me parece ver nem
uma beleza corporal nem uma forma; não me parece ouvir um canto
suavíssimo ou uma harmonia; mas quando vejo e sinto a Jesus, vejo uma luz
infinita, um bem imenso, a sua voz não é articulada, porém, é mais forte e se
faz melhor ouvir a meu espírito do que se fossem palavras pronunciadas.

Vedes, ó leitor, que tão elevada oração está bem próxima da que
se chama contemplação infusa.6 Não é que esta contemplação seja
quase um grau mais perfeito do que a primeira, à qual a alma pode
chegar como quem sobe uma escada. Não obstante tendo a alma
disposições tão belas como vimos em Gema, pode-se bem supor
que Deus não a deixe parar, mas a chame a maior elevação e a
comunicações mais sublimes.
Para melhor explicar o que disse no princípio deste capítulo, direi
que esta contemplação é uma atração sobrenatural da graça, que
quer introduzir a alma fiel nos segredos celestes; uma luz divina
que, quando menos se espera, repentinamente invade o espírito e o
coração. Com este indício é fácil distinguir esta forma de oração de
qualquer outra, sendo de todas, sem dúvida, a mais sublime, mais
penetrante e deleitosa, porque é divina. Funda-se esta
contemplação infusa na plenitude dos dons do Espírito Santo e
principalmente nos de Inteligência e de Sabedoria. Ao primeiro
pertence tornar a alma capaz de penetrar os Mistérios da Fé com
ideias sublimes, e ao segundo, apreciar o seu valor, do que resulta
para a alma aquela alegria, doçura e suavidade que se sente na
contemplação.
Por tudo o que Gema escreveu ao diretor, quer em cartas quer na
conta de consciência, bem como pelo que dizia nos êxtases, e
acrescentarei ainda, por todos os seus atos, reconhece-se que ela
possuía num grau extraordinário estes dois dons do Espírito Santo.
Tudo nos faz ver que esta virgem, mais angélica do que humana,
era dotada de um espírito sutil e profundo, capaz de mergulhar-se
no bem infinito e atingir sem esforço às concepções mais sublimes;
enquanto que um delicado discernimento e uma rara prudência lhe
faziam preferir os bens eternos a tudo o mais, e incitavam-na a
procurá-los com avidez e amá-los com indizível afeto.
Assim, pois, elevada por estes dons eminentes acima da fraqueza
natural, e fortificada pela luz celeste, que em certos momentos o
próprio Espírito Santo lhe comunicava, ela contemplava a unidade
da natureza divina e a Trindade das Pessoas, a união inefável do
Verbo com a natureza humana, na Encarnação, os mistérios da
sabedoria, justiça e misericórdia de Deus no governo das suas
criaturas, e todos os imperscrutáveis arcanos de uma fé santa que
lhe eram admiravelmente revelados.
Ela os via como que sem véu, não como mistérios, mas como
patentes aos seus olhos. Via-os, mas não estava ainda saciada.
Aspirando por vê-los mais claramente, elevava-se por meio de
arrojados e ardentes voos; mas compreendia que se podia subir
mais e penetrar mais profundamente neles pela visão de Deus face
a face.
Uma vez entre outras, a ouviram dizer:

Oh! Quem me dera asas de pomba para voar até vós, ó meu Deus! Dai-me
vós as asas da contemplação. Como fazer para chegar até vós? Quebrai
estas cadeias que me impedem de voar. Há tantas coisas, ó Jesus, em cuja
contemplação minha alma se alimenta, mas em nenhuma pode repousar-se.7

Ela dizia que, se a palavra humana exprimisse o que Deus lhe


dava a conhecer nestas contemplações, poderia escrever vários
volumes sobre cada um dos mistérios da nossa santa fé. Entretanto,
para se fazer compreender pelo seu pai espiritual, a quem não
queria que coisa alguma ficasse oculta, servia-se, como vimos há
pouco, de figuras e comparações materiais.

Imaginai – escrevia ela – ver uma luz de imenso esplendor que envolve
todos os seres, os penetra e esclarece e ao mesmo tempo vivifica e reanima
tudo, de modo que, tudo o que existe, só por esta luz existe, e por ela e nela
têm a vida; assim eu vejo a meu Deus, e as criaturas n’Ele. Imaginai um
incêndio tão grande como o nevoeiro, e estendendo-se ainda além, o qual
queimando e abrasando tudo sem nada consumir, ilumina e conforta, e
aqueles que mais são envolvidos nessas chamas são os que se sentem
melhor e mais ardentemente desejam ser queimados: assim vejo nossas
almas em Deus.

A respeito da Santíssima Trindade dizia:

Parece-me ver três Pessoas em uma luz imensa, unidas, em uma só


essência; Trindade na unidade, e unidade na Trindade, e como uma é a
essência desta Trindade, uma também é a bondade e uma a sua beatitude.

O confessor ordinário lhe pediu uma vez no confessionário que lhe


explicasse claramente o que entendia deste augusto mistério da
Santíssima Trindade.
Gema orou e iluminado-lhe Deus o espírito, penetrou tanto nestes
divinos arcanos, que depois me escreveu:

No ponto mais sublime, ficamos ambos sem poder ir mais adiante.

Não é fácil exprimir a grande estima que Gema tinha por estas
grandes verdades, e a abundância das doçuras que na
contemplação lhe enchiam o coração; basta dizer que
frequentemente não podia suportá-las e caía desmaiada, ou ficava
em êxtase.

Como poderei explicar o que sinto nesses momentos? É todo o Céu que
desce à minha alma. Primeiramente admiro, depois fico subjugada, o espírito
se confunde, aniquila, o coração bate com toda a força e não sabe o que
fazer; goza e sofre ao mesmo tempo, e não quereria voltar à vida terrestre. E
concluindo a oração, se soubesse meu pai, em que estado fico! Não sei se o
senhor já passou por ele. Meu Deus, quanto sois bom para mim!
Estas sublimes ilustrações lhe eram muito frequentes, quer
estivesse orando, quer ocupada em trabalhos que naturalmente
absorvem a atenção. De repente, uma luz misteriosa a ofuscava,
tudo em torno lhe desaparecia, seguia-se um profundo
recolhimento, e Gema se achava no Céu a contemplar a Deus e a
sua infinita beleza.
Não sabendo com que termos definir este fenômeno sobrenatural,
dizia na sua ingenuidade:

Perco a cabeça. Estava na cozinha falando com a criada, e eis que senti a
impressão habitual, sem ter tempo de sair dali. Fiquei fora de mim e achei-me
com Jesus.

Sim, bem-aventurada criatura, conserva-te com Ele, ninguém te


invejará uma sorte tão bem merecida.

***

A contemplação infusa é de três espécies: intelectual, imaginária e


mista. A primeira procede por meio de espécies abstratas ou
puramente intelectuais; a segunda por imagens sensíveis
preexistentes ou divinamente impressas na imaginação; a terceira,
enfim, que participa de uma e de outra, quer por disposição divina,
quer em virtude do laço natural que existe entre a inteligência e os
sentidos.
Quando o Mistério que se contempla é por si mesmo sensível,
como a Paixão do Salvador, é claro que a contemplação imaginaria
não é objetivamente menos digna da intelectual, e compete tanto
aos principiantes como aos perfeitos nessa ciência divina.
A intelectual, rigorosamente falando, é raríssima, dizem
unanimemente os teólogos; porque a graça corrige e refreia a
natureza, quando pode ser obstáculo à sua ação, mas não a
violenta.
Assim, a forma mais comum da contemplação é a mista,
compreendida como a explicamos; intervindo as imagens sensíveis
não mais como instrumento da própria contemplação, mas por
natural concomitância.
Desta forma era na maior parte das vezes a oração de Gema, o
que se conclui, do fato de se lembrar ela muito bem do que tinha
visto, e ainda que em termos necessariamente muito imperfeitos,
podia dar uma ideia com o auxílio de comparações, o que teria sido
impossível se a imaginação tivesse estado excluída da visão ou
contemplação.
Esta faculdade em que Gema foi sempre tão sóbria, tão
moderada, que até mesmo nas orações ordinárias pouco se fazia
sentir, não podia servir de obstáculo quando, sob a ação direta do
Espírito Santo, ela se entretinha em assuntos tão elevados.
Entrava formalmente em exercícios apenas na contemplação dos
mistérios objetivamente sensíveis, como da Sagrada Humanidade
do Senhor, mas ainda então com que delicadeza! Descobria-lhe a
beleza divina de Jesus, pintava-lhe as chamas do seu coração, as
chagas profundas, o corpo ensanguentado, a cabeça trespassada
de espinhos; depois, por assim dizer, punha-se de parte, deixando
que o espírito e mais ainda o coração, com o auxílio das mais vivas
luzes, e suaves impulsos, fizessem o resto.
E devia ser assim; porque na contemplação a fantasia é regulada
por Deus. Fica assim provado que a contemplação de Gema vinha
toda de Deus.
Quando esta piedosa virgem era principalmente no caminho
místico, o divino Espírito Santo, para acomodar-se às sua infantil
simplicidade, a instruiu com impressões puramente sensíveis e
imagináveis acerca dos mistérios da sua natureza intelectual.
Mostrava-lhe, por exemplo, o divino Pai Eterno sob a forma de um
venerável ancião revestido de toda a honra da paternidade e da
majestade de um justo juiz; a sua bondade infinita como um oceano
sem margens e sem fundo: a graça celeste como uma chuva
benéfica, que infiltrando-se suavemente na terra, reanima e vivifica
as plantas e as faz florescer e frutificar. Antes, embora ela tivesse
rapidamente atingido os últimos graus do misticismo, acontecia às
vezes que as contemplações sensíveis alternavam com as mais
abstratas e mais elevadas.
Esta conduta da Providência é conforme a doutrina dos teólogos
místicos, que ensinam que por ser a contemplação um dom da pura
liberalidade de Deus, ele pode dá-la como e quando quer; não é
raro que as almas ainda mais adiantadas sejam obrigadas a descer
de vez em quando até os primeiros graus dos principiantes e sejam
tratadas como eles, passando das delícias da vida unitiva aos
trabalhos da purgativa.
A rara simplicidade de Gema que, em vez de diminuir, ia
aumentando com a idade e à medida da perfeição de sua alma,
parece que inclinava o coração daquele que se deleita em brincar
com as almas simples, a tratá-la como criança.
Assim se explica como ao lado das reflexões mais sublimes da
divindade, sob a pena e nos lábios da jovem já crescida no espírito,
se deparem de quando em quando os termos simples de: “Santo
Papai de Jesus”, do anjo “que faz de espião”, da Mãe celeste que a
acaricia e a aperta ao seu seio.
Leia-se a vida dos santos que passaram por estes caminhos
celestes e ver-se-á como são conformes à teologia as
contemplações da virgem de Lucca.
Concluo o presente capítulo.
Não há dúvida de que todos os cristãos são chamados por Deus à
contemplação;8 é porém verdade que se são tão raros hoje os que
Ele escolhe para este grau sublime de oração. A razão, devemos
repetir, é porque poucos são os que dele se tornam dignos,
conforme nota o autor da Imitação de Cristo.9
Oh! Aprendamos com Gema como se faz para corresponder à
graça divina e alcançar a santidade, à qual todos sem exceção
somos chamados.
O Espírito Santo nos dará, também a nós, ao menos aquela parte
dos seus dons que nos é necessária para conhecê-Lo e amá-Lo!
Spiritum sapientiae et intellectus.10

1 Aqui, o Venerável Germano adota a divisão comum entre vida ascética e mística.
Pode-se observar a grande influência do Padre Scaramelli – NC.
2 É interessante notar que sobressai a própria doutrina mística do Venerável Padre
Germano. Lembremos que ele foi exímio diretor espiritual de inúmeras almas místicas, e
sua direção foi bastante fecunda, vejam-se os frutos surgidos em torno de Santa Gema, no
Mosteiro Passionista de Lucca. Foi diretor da Madre Josefa, fundadora do Mosteiro, da
Madre Madalena, posteriormente filha espiritual do Servo de Deus Padre Juan Arintero,
O.P; e da Venerável Madre Gema de Jesus, posteriormente fundadora das Irmãs de Santa
Gema – NC.
3 Padre Lourenço Agrimonti, que na época morava na residência coma família Gianinni –
NC.
4 Coroa das Sete Dores de Maria Santíssima. Devoção muito difundida, ligada a tradição
espiritual da Ordem dos Servos de Maria, Servitas – NC.
5 “Verdade é que também levam a certa contemplação adquirida quando, depois de
muito considerar por partes um assunto e penetrá-lo bem, fica-se olhando-o todo de uma
vez, com paz e serenidade, apreciando-lhe assim melhor que se com trabalho se fossem
examinando os detalhes. Mas esta contemplação, além de ser pouco duradoura, é muito
inferior a notoriamente infusa, em que sem esforço nenhum, sem prévia preparação e
ainda quando menos se pensa e se procura, de repente, fica a alma cheia de luzes e de
santos afetos” – Juan Arintero, Evolución Mística, Salamanca, San Esteban, 1989, p. 275-
276 – NC.
6 “[...] é uma simples intuição da verdade divina, procedente da fé ilustrada pelos dons
do entendimento, sabedoria e ciência em estado perfeito” – Antonio Royo Marín, Teología
de la perfección cristiana, Madrid, BAC, 2001, p. 703 – NC.
7 Referência ao Sl 54, 7.
8 “[...] todos estamos chamados com um chamado remoto e geral à contemplação
infusa, pelo mero fato de estar chamados à perfeição cristã, que não se pode conseguir
plenamente sem aquela. Mas o chamado próximo e particular para entrar de fato na
contemplação se manifesta por certos sinais característicos, que o olhar de um diretor
especialista descobrirá sem esforço na alma dirigida”. Antonio Royo Marín, Teología de la
perfección cristiana, Madrid, BAC, 2001, p. 713 – NC.
9 “Porque não é digno da alta contemplação de Deus quem por Deus não sofreu alguma
tribulação”. Imitação de Cristo. Livro II, cap.9, 7 – NC.
10 Eclo 15,5 – “Espírito de sabedoria e inteligência”.
CAPÍTULO XXIV

SOBRE AS ASAS DA CONTEMPLAÇÃO:


DE COMO GEMA SE ELEVOU AO MAIS ALTO GRAU DO AMOR
DE DEUS, E À PERFEITA UNIÃO COM O SUMO BEM

No capítulo anterior, tratamos da contemplação de um modo geral,


sem distinguir os diversos graus pelos quais a alma se eleva à sua
perfeição. Estes graus, de acordo com a doutrina dos teólogos,
podem-se reduzir a nove,1 que segundo o que exprimem, tomam
diversos nomes.
Sendo a contemplação a alma da vida mística, que consiste no
Amor Divino e na união com o Sumo Bem, a cada grau de
contemplação corresponde um grau distinto de amor e de união,
desde o mínimo até o supremo, que é o da caridade perfeita, e se
chama místico desposório da alma com Deus.2
No presente capítulo tratarei de cada um destes graus, para
demonstrar como a bem-aventurada Gema os percorreu todos,
merecendo o glorioso título de Virgem Seráfica.
O assunto não é muito fácil, e confesso que me sinto perplexo.
Pode por ventura a linguagem humana tentar exprimir fatos tão
sublimes? Além disso, como conseguir ser compreendido por quem
lê, sendo a teologia quase que um enigma para a maior parte dos
cristãos do nosso tempo? Contudo, não desanimo, confortado pelo
pensamento de que não devo ser eu quem fala sobre o assunto,
mas sim a própria Gema, que o fará com suma beleza e ordem.
Com suas palavras tão simples e expressivas, colhidas pelos
meios que já indiquei, ela nos fará compreender os extraordinários
mistérios que a graça divina operou em sua alma.
Ó meu bom Jesus, fazei que ao expô-los não se me perturbe o
espírito, e que meu coração não fique frio.
***
O primeiro grau da contemplação é o Recolhimento místico, luz
extraordinária com que Deus se comunica, de súbito, à inteligência;
a absorve e, refletindo-se sobre os sentidos internos e externos, os
concentra, acalma e prende suavemente em torno da alma. Não é o
êxtase, que este nos tira o seu uso, mas é uma suave atração que
nos faz esquecer de tudo o mais e nos inclina para o soberano Bem,
como faz o ímã (diz São Francisco de Sales) com as agulhas que se
lhe aproximam.3 Os membros do corpo tomam uma atitude
recolhida, e ficam imóveis, seja qual for o tempo e o lugar, em que a
alma é surpreendida por esta luz inesperada.
Vimos claramente no capítulo precedente que a nossa Gema
recebeu realmente de Deus esta graça, assim não repetirei,
querendo falar agora somente do amor e união, que
corresponderam a este primeiro grau. É certo ser impossível ver a
Deus com uma luz infusa sobrenaturalmente, sentir-se em sua
presença com todas as faculdades de sua alma, e não gozar da
maior ventura, não amá-lo, e não se unir intimamente a Ele; ao
menos para Gema era assim.
Ora sendo ela desde os mais tenros anos favorecida pelo Céu
com este primeiro grau, começou logo a sentir-se unida a Deus com
o mais suave atrativo, e a amar só a Ele com o mais terno afeto.
Quantas vezes ouvimo-na dizer:

Não, não me falem de mais nada; só Deus me basta, só a Ele quero.


Sabeis, ó Jesus, que não amo nada fora de vós. Despedacem-me, se
quiserem; contanto que me deixem Jesus, assim estarei contente.

Está escrito nos salmos que Nosso Deus é tão amável e tão
suave, que basta vê-lo e prová-lo, só uma vez, para ficar
apaixonado por Ele.4 Ora, que coisa não sentiria Gema que não
apenas uma vez, mas continuamente era esclarecida por Deus com
aquelas brilhantes e fortes luzes da contemplação, e favorecida da
doçura da presença divina? Dissera quase que era como uma
esposa ferida no coração, vivendo só para o seu celeste Esposo;
n’Ele conservava fixos o coração, a mente, enfim, todo o seu ser, e
como ela mesma exclamava:

Oh! Que há para mim no Céu, ó meu Jesus. E que vos pedirei eu neste
mundo, Deus do meu Coração, minha herança, e meu tudo eternamente?
Bastava observá-la um pouco, em qualquer ocasião, para
perceber logo que no íntimo do seu coração estes afetos se
revezavam constantemente. Se alguém conseguia entreter-se com
ela nestes assuntos espirituais, suas palavras eram breves e
concisas, mas abrasadas de amor:

Oh! Se todos soubessem como Jesus é belo! Como Ele é amável! Todos
morreriam de amor por Ele! Mas como é que Ele é tão pouco amado? Como
é perdido o tempo que se gasta com as criaturas! O nosso Coração é feito
para amar um só objeto que é o nosso grande Deus.

Depois de semelhantes efusões, Gema concentrava-se logo,


voltando ao seu habitual recolhimento.
O segundo grau da contemplação e do amor é Silêncio espiritual,5
assim chamado porque nele a alma, invadida por uma luz mais
brilhante que a precedente, e por atrativos ao mesmo tempo mais
suaves e mais fortes, fica como aturdida e ofuscada diante da
majestade do Senhor, sem ousar falar e só feliz em amá-lo, e
amando-o por ser feliz.
A imaginação maravilhada pelo que lhe é dado entrever, abstém-
se de todo o movimento que possa perturbar a paz celeste da
faculdade intelectual; e assim, estando tudo em silêncio, Deus faz
sentir na alma as delícias do Paraíso.
Este grau mais perfeito de contemplação e de amorosa união se
alternava muitas vezes em Gema com o primeiro. E enquanto nesse
recolhimento místico se entretinha com o seu Deus, falando-lhe,
ouvindo-o e dando expansão aos sentimentos de amor, gratidão,
humildade e confiança, de repente, a força das divinas ilustrações
tornando-se mais intensa, e o amor, que a atraía, mais ardente,
ficava suspensa e imóvel, voltando daí a pouco ao primeiro estado.
Esta alternação se notava quando ela estava orando – pois
enquanto no primeiro estado a fisionomia demonstrava os diversos
sentimentos da alma, no segundo, conservava-se inalterável.
Uma vez, dando-me conta deste grau de oração, disse-me:

Estive diante de Jesus, eu nada lhe disse, Ele nada me disse; ficamos
ambos silenciosos. Eu olhava para Ele, e Ele para mim. Mas se soubesse
meu pai, como é delicioso estar assim diante de Jesus! Já o experimentou?
Não quereria eu deixá-lo nunca. De repente Jesus disse: “Pronto”, e a luz se
dissipou. Mas o meu coração continuou abrasado de amor.

De fato, o coração da Serva de Deus não se resfriava; ainda que


cessasse a contemplação, que é sempre de menor duração, neste
grau menos perfeito o coração continuava transbordando de fervor
por muito tempo.
Não estaria longe da verdade quem assegurasse, como eu penso
poder assegurar, que o hábito adquirido desta santa donzela, de
permanecer calada durante todo o dia num constante recolhimento,
proviesse do silêncio sobrenatural, em que Deus a conservava com
a contemplação.
Com tal ardor na alma, e a lembrança do belo infinito a cuja
consideração era tantas vezes convidada, como seria possível
distrair-se falando com as criaturas?
A alma habituada a estar em silêncio espiritual, na presença de
Deus a gozar das suas doçuras, se acha facilmente disposta a
passar ao terceiro grau da teologia mística, que é a contemplação
de Quietude. É uma união mais íntima e quase constante com Deus,
fundada sobre o sentimento vivíssimo da sua divina Presença que
proporciona grande paz interior e repouso cheio de encantos.
As faculdades não ficam suspensas nesse estado. Pelo contrário,
quando se familiarizaram, depois de frequente exercício, é possível
ocupar-se em trabalhos exteriores para a glória de Deus sem ficar
distraído da presença divina. Então se vêm na alma admiravelmente
reunidas e representadas Madalena e Marta; a primeira, que
contempla venturosa aos pés do Senhor, e a segunda que trabalha
para Ele.
Assim acontecia com a nossa Gema, que chegou a esse grau de
perfeição mística cerca de três anos antes de morrer.
O recolhimento exterior constante que nela admiramos, nos indica
a primeira das ditas prerrogativas em grau eminente; a prontidão, o
entusiasmo com que se aplicava à pratica das virtudes para agradar
a Deus a quem tanto amava, o zelo da salvação das almas, as
orações assíduas que fazia para a conversão dos pecadores, e o
ardor com que, à medida de suas forças se ocupava em boas obras,
revelam a segunda.
Deste modo, esta virgem demonstra como se enganam certas
almas que logo que começam a gozar de alguma doçura na oração
de quietude, quereriam viver sempre retiradas e demorar-se na
igreja, procurando sem cessar os confessores e diretores, e
descuidando-se entretanto dos deveres do seu estado e posição na
sociedade. É impossível, diz com razão o místico doutor Scaramelli,6
que deste modo estas almas façam sério progresso na vida interior
e espiritual.
Consagrarei um capítulo especial a este assunto da singular
atividade da nossa nova Marta, e recomendo ao leitor, para falar
aqui somente do repouso de Maria, mostrando os seus admiráveis
frutos.7 Ouçamo-la:

Enquanto eu tinha muitos desejos, minha alma andava inquieta, agora que
tenho só um, sou feliz. Mas já que o vosso amor é inaccessível, deixai-me
proceder como entendo, ó Jesus, aqui em meu coração quero erguer-vos
uma tenda toda de amor; só vós deveis entrar nela; eu vos prenderei junto a
mim; sereis sempre meu prisioneiro, não vos restituirei mais a liberdade,
não!, até que me deis a consolação que eu tanto desejo. Que desejo eu, e
que vos peço, ó Jesus? Vede que estamos de acordo; peço-vos o que vós
mesmo quereis, e desejo o que vós mesmo desejais.

Que vos parece, ó piedoso leitor? Não são preciosos estes frutos?
Pode por ventura produzir artificialmente a arte, sentimentos e
afetos como estes?
Contento-me com este exemplo, devendo brevemente tornar a
falar no abandono, na tranquilidade de espírito venturoso, na perda
feliz da nossa contemplativa em Deus.
***
Em seguida à Quietude vem o Sono místico,8 o quarto e mais
perfeito grau da união, diferente do precedente no seguinte: a
Quietude é o efeito de uma luz celeste que faz com que a alma sinta
e goze com suave calma da presença de Deus; e o Sono provém do
amor que entorpecendo a própria alma com suas faculdades
intelectuais e sensitivas, num suave calor, a faz como que
adormecer e repousar tranquilamente no seio de Deus.
Neste estado, a alma conhece que ama verdadeiramente o Sumo
Bem, mas não se detém neste pensamento satisfeita só com o
amor, sem refletir como se acha em tão delicioso estado. Aliás,
ainda que quisesse, nada poderia compreender porque dorme, e
seu espírito está perdido em Deus.
Com este dom foi favorecida frequentemente a seráfica de Lucca,
antes de ser elevada ao grau tão eminente da união extática. Deus
lhe concedia esta graça durante algum tempo até muitas vezes cada
dia.
Como neste estado os sentidos externos se entorpecem
facilmente, ficava absorta e era fácil surpreendê-la nele, ora em pé,
ora assentada, ora de joelhos ou prostrada por terra. Parecia dormir,
e costumava servir-se do termo de sono para designar este
misterioso fenômeno. Mas o seu coração não dormia, embora o
espírito ficasse inteiramente abstrato de tudo e até de si próprio.
Ao sair deste estado não sabia exprimir-se de outro modo senão
que tinha estado no seio de Deus:

Figurai-vos – dizia-me ela – uma menina adormecida no colo de sua mãe;


ali se esquece de tudo, em nada pensa: repousa e dorme sem saber nem
porque nem como; assim é minha alma nessas ocasiões, e crede, meu pai,
que é tão suave este sono!...

Dorme pois, angélica virgem, sobre este seio que com tanta ânsia
procuraste; já conseguiste, posso dizer, o teu fim último.
Não obstante, querendo eu certificar-me ainda com uma
experiência, e também para mortificá-la, disse-lhe uma vez que tal
sono durante o dia me parecia uma bela ociosidade, e, portanto, que
o suspendesse. Coisa singular! Ainda que este sono sobrenatural
seja independente da vontade humana, que não pode provocá-lo
nem impedi-lo, todavia Gema suplicou ao Senhor que lhe permitisse
obedecer e o Senhor a satisfez; o fenômeno místico nunca mais
reapareceu.
Porém, logo outro fenômeno de ordem superior se manifestou,
certamente como prêmio da sua boa vontade em obedecer, aquele
que acima apontamos, da União Extática, e de que falarei no
capítulo seguinte:

Veja, meu pai – dizia-me a ingênua donzela –, Jesus me deu ocasião de


obedecer: não durmo mais; agora o senhor ficará contente e não se
inquietará mais comigo, a não ser que lhe venha a dar outro desgosto. Farei
por ser boa!

Nestes fatos, é bem patente que o artifício não tem entrada.


Colocada assim a alma bem-aventurada no meio de tantas chamas,
e tão próxima à fornalha ardente que é o seio de Deus, é fácil
compreender que ela não pode sempre dormir nem repousar
tranquilamente, pois o próprio sono e repouso devem abrasá-la
cada vez mais, e fazê-la ficar, ao menos de quando em quando, fora
de si excitando no coração sentimentos como de um delírio de amor.
Os teólogos chamam estas aspirações de amor, Embriaguez
Espiritual,9 que bem reconhecida como sobrenatural, constitui um
dos graus da mística, quer o seja, quer não, nos casos particulares,
e é mais perfeito do que os precedentes.
Neste estado a alma quereria consumir-se em louvores ao Senhor,
e fazer ouvir a sua voz até a extremidade da Terra, para induzir
todos os homens a glorificá-Lo e amá-Lo, e quisera empreender
grandes trabalhos para agradar a Deus, e sofrer muito no seu santo
serviço.
Quem leu os salmos do santo Rei David e a vida de São Francisco
de Assis, Santa Maria Madalena de Pazzi e de outros santos
particularmente favorecidos por Deus, poderá compreender o valor
desta divina embriaguez. Gema a sentiu muitas vezes, o que era
fácil de conhecer pelas palavras que nesse estado proferia ou
escrevia.
Entretanto, só em duas ou três ocasiões foi vista exalar, em gestos
animados, os transportes de sua alma.
Dir-se-ia que a divina graça queria respeitar a severa reserva que
com tanto cuidado guardava sempre esta humilde virgem.
Ainda mesmo nas expansões mais veementes de seu coração,
sabia conter-se a sua comoção exterior nas raras vezes que se
manifestou; reduzia-se a algumas demonstrações superabundantes
de alegria, fervor e amor, aliás, muito moderadas e repassadas de
dignidade.
Sentindo todo o Céu no coração, chamava as pessoas presentes
que se aproximassem e colocassem a mão sobre ele, para
apreciarem o que sentia e exclamava:

Ó Deus! Ó Amor! Ó Paraíso!

Além destas raras exceções de comoção exterior, a embriaguez


celestial da nossa seráfica, ainda que sensível, era toda interna e só
se avaliava pelo gozo inefável que sentia na fisionomia e pelas
expressões que saíam de seu coração como outras tantas chamas
ardentes. Ouçamo-la ainda:

Os laços do vosso amor são tão fortes, ó meu Deus, que não posso
quebrá-los. Deixai-me, deixai-me a liberdade, eu vos amarei acima de tudo, e
vos procurarei sempre. Que tendes feito, ó Jesus, que tendes feito a meu
coração para que tenha esta loucura por vós? Oh! Não posso mais, tenho
necessidade de expandir-me, de cantar, de exultar. Viva o amor incriado! Viva
o coração do meu Jesus! Oh! Se todos os pecadores viessem a este
coração! Vinde, vinde, pecadores, não temais, que a espada da justiça não
chega até aqui dentro. Oh! Eu quereria, ó meu Jesus, que minha voz
chegasse aos confins do mundo, chamaria a todos os pecadores e lhes diria
que entrassem todos no vosso coração.

Estes e outros transportes de exuberante amor eram quase


sempre o assunto de Gema nos seus êxtases, e frequentemente
aparecem debaixo da sua pena:

Tenho um desejo ardente de voar para o meu Deus – escrevia ela. Ó meu
pai, se me pudesse dizer que em poucos dias Jesus fará de mim uma vítima
do seu amor, que me fará morrer só de amor!... Que bela morte! Não tenho
sossego enquanto Jesus não me comunicar um pouco do seu amor, para me
abrasar toda por Ele. Quereria que o meu coração se reduzisse a cinzas, e
todos dissessem: o coração de Gema está reduzido a cinzas por amor de
Jesus.

Não julgue o leitor que esse grau de união, por ser sensível, seja
de menos valor. Pois o que nele se manifesta nos sentidos não é
mais do que uma superabundância, reflexo da alegria interior da
alma, produzida pela luz extraordinária que o Espírito Santo lhe
infunde, e também do amor experimental que lhe aviva o coração.
Por vezes esta superabundância é tão forte que, derramando-se
como uma torrente de fogo no órgão material do coração, o abrasa
completamente.
Este ardor, compreendido neste sentido, forma o sexto grau de
perfeição, que os místicos denominam Chama de amor.10 A seráfica
de Lucca possuiu esta chama tão intensa, que se durasse mais dois
ou três meses mais do que durou, o coração se lhe teria incendiado
no peito. Não escrevo fantasmas, mas fatos reais e bem
averiguados pela experiência. O seu coração era como uma
fornalha, não se lhe podia encostar a mão sem sentir-se queimar
ainda mesmo por cima das roupas.
Querendo melhor certificar-me, dei ordem à senhora em cuja
companhia Gema estava, que a observasse durante o êxtase. Oh!
Que maravilha! Muitas vezes toda a superfície do peito sobre o
coração aparecia queimada, como se estivesse debaixo de carvões
ardentes.
Este misterioso fenômeno durou durante os meses que referi; mas
depois que cessou, podia-se por muito tempo ainda reconhecer
sobre a pele os sinais das queimaduras e das chagas produzidas
por elas. Deixamos que ela própria nos descreva estes fenômenos:

Há cerca de 8 dias que eu sinto na região do coração um fogo misterioso


que não sei compreender. Nos primeiros dias não prestava atenção porque
pouco ou nada me incomodava, mas hoje já é o terceiro dia que este fogo
tem aumentado tanto, que quase não posso suportá-lo... seria preciso gelo
para apagá-lo. Impede-me até de dormir e de comer. É um fogo misterioso
que se comunica também ao exterior... É um fogo que não me atormenta...
mas me extenua e me consome... Grande Deus! Quanto vos amo!...

Bem que repassada de gozo, a dor que a piedosa donzela sentia


por esta espécie de combustão vivíssima, ela própria, interrogada
por mim, declarou nos seguintes termos:
Para lhe dar uma ideia, figurai-vos que no mais íntimo do meu pobre
coração, foi introduzido um ferro em brasa, e aí conservado constantemente
por uma forja; é por um tal ardor que me sinto queimar.

Entretanto, ela não queria trocar esta dor tão intensa por todos os
tesouros do mundo, porque ao lado da dor física, a suavidade que
sentia no fundo de sua alma era verdadeiramente inexprimível. No
êxtase exclamava:

Vós ardeis, ó Senhor, e eu queimo. Oh! Dor! Oh! Amor! Sumamente feliz!
Oh! Fogo suave! Doces chamas! Quereria que o meu coração se
transformasse numa chama! Oh! Achei a chama que devora e reduz a cinzas.
Oh! Cessai, cessai que não consigo subtrair o meu peito a tão vivo fogo. Que
digo? Não, vinde antes, ó Jesus, abro-vos o meu peito, comunicai-lhe vosso
divino fogo. Sois uma chama, fazei que se mude em chama o meu coração.

Outras vezes, como se não tivesse ainda sentido esses ardores,


com encantador afeto dizia:

Oh! Que é este incêndio que sinto em mim? Serão chama do vosso amor, ó
meu Jesus? Sim, são chamas do vosso amor.

Com estas expansões, procurava algum alívio ao fogo interno que


a consumia.

Pobre Gema – me escrevia a senhora que lhe assistia –, como sofre!... Ela
se consome de amor por Jesus; não cessa de repetir que se sente queimar e
não vê o fogo, sente-se apertar com força e não percebe as cadeias que a
prendem. Ah! Se ouvisse que exclamações de amor! Que expressões saem
de seus lábios quando está no êxtase! Quereria poder transcrever todas
estas expressões que em grande número se têm perdido, quando ela as
proferia ou escrevia, porém não acabaria mais.

Até durante o tempo da aridez, o fervor de seu espírito


conservava, e até aumentava esta atividade. Num êxtase, assim se
exprimia:

Que paz, que repouso, ainda quando vos ocultais! Ficai, embora longe, ó
Jesus, basta que não me falte nunca vosso amor. Abrasai-me: o vosso amor
me basta! Quereria que todos dissessem que o vosso amor me tem
consumido, ó amor... amor, quero ir convosco! Afastai-vos quanto quiserdes,
e eu vos seguirei sempre.

Inflamando-se cada vez mais, animada pelo próprio amor,


continuava:

Porque me demonstráveis antes tanto amor, para deixar-me agora assim


abandonada? É o amor que vos tenho, oh Jesus, que me faz falar assim.
Mas, se vós não voltardes, oh meu Deus, eu morrerei. Oh! Jesus, sustentai-
me falte-me tudo mas não o vosso amor, e depois fugi quanto quiserdes.

O meu santo Padre Paulo da Cruz, que também foi favorecido com
este grau de incêndio de amor, costumava exclamar:

Sinto as entranhas ressequidas, tenho sede e quisera beber, mas para


apagar esta sede, quisera beber torrentes de fogo.

Aquele que provou as doçuras do amor divino é obrigado a sentir e


falar desse modo porque, chegando o ardor da caridade a este
ponto, não se pode mais dominar.
O divino Esposo das nossas almas, Jesus Cristo, foi o primeiro
que nos deu o exemplo, quando inebriado de dor e de amor sobre a
cruz deu um grito de inaudita angústia: “Sitio” (Tenho sede).11
Por este motivo, os santos doutores designam com o nome de
sede e de angústia de amor a este sétimo grau da teologia mística.
O Padre Sacaramelli o define assim: “As angústias do amor são
um vivo e ardente desejo de Deus, amado e gozado, mas ainda não
possuído pela alma”.12
A persistência, a duração destas angústias que formam e se fixam,
por assim dizer, nas entranhas da alma, chama-se Sede de amor.
Voltemos porém à Gema. O desejo de possuir a Deus foi, desde
os mais tenros anos, o único intento desta santa criatura, a
verdadeira paixão do seu coração, como podemos reconhecer por
tudo o que dissemos até aqui.
À proporção que sua alma se ia purificando, cresceu com a
perfeição interior este desejo, e ardeu como uma chama que,
ressecando-lhe as entranhas, produzia uma sede ardentíssima que
só com ter e possuir a Deus se podia e se devia apagar.
Em tais angústias, esta pomba não achava outro alívio senão em
gemer, e gemia noite e dia:

Quanto a mim, preciso de Jesus – dizia ela –: oh! Dai-me, dai-me Jesus.

E dirigindo-se a Ele:

Apressai-vos Jesus, não vedes como este coração vos deseja? Não vedes
como desfalece? Não sentis vê-lo assim desfalecer de desejos? Ó Deus!
Vinde, vinde, Jesus, não tardeis, correi, aproximai-vos, fazei-me ouvir a vossa
voz. Ó meu Deus, quando me saciarei da vossa divina luz, quando? Jesus,
alimento das almas fortes, fortificai-me, purificai-me, divinizai-me. Ó meu
Deus de infinita grandeza, Jesus, ajudai-me. Deus gerado de Deus, vinde em
meu socorro! Tenho sede de vós, ó Jesus. Não vedes como eu sofro de
manhã antes de me alimentar de vós ? Fazei que ao menos quando me
alimento fique saciada!...

Ora, sendo receptáculo de tais chamas, podia o órgão material do


coração desta seráfica virgem não arder? Por isso, ardeu tão
fortemente que queimou a carne e a pele até a superfície.
Continuando depois o incêndio espiritual, o misterioso fenômeno
sensível aumentou e, gradualmente, o fogo que antes estava
circunscrito só na região do coração, invadiu todo o corpo, que se
tornou uma só chama, do que, dando-me conta, ela me disse um
dia:

Meu pai, o meu coração é vítima de amor; não posso mais, em breve
morrerei de amor. Estas chamas de amor consomem o meu coração e
também todo o corpo; ficarei reduzida a cinzas. Ontem, aproximando-se de
Jesus exposto no Santíssimo Sacramento, senti que me queimava com tanta
força que tive que me afastar; parecia-me estar rodeada de chamas; até ao
rosto tinha subido o calor. Viva Jesus! Como é que tantos cristãos podem
viver perto de Jesus sem ficarem reduzidos em cinzas?...

Eu mesmo verifiquei este prodigioso fenômeno com o auxílio do


termômetro; apenas aplicado ao seu corpo, via-se a coluna de
mercúrio subir até a extremidade do tubo, como ao contato do fogo
ardente.
Para deixar o leitor repousar um pouco, termino este capítulo,
ficando para o seguinte o que ainda me resta a dizer para concluir
este assunto.

1 “Os graus de contemplação são na realidade muitos e muito difíceis de distinguir,


porque de uns a outros se vai passando insensivelmente, e que não se apresentam com a
mesma ordem em todas as almas [...]”.“Todas os outros tipos de oração que os místicos
apontam – como o silêncio, sono espiritual, embriaguez, jubilação, feridas de amor, etc, diz
o P. Poulain (Gracês d´orasion 3º ed., p. 45-46), não são senão maneiras de ser das
principais, e não constituem graus sucessivos. Mas estas, segundo Santa Teresa, são
verdadeiras etapas, que constituem como idades espirituais... Não se pode passar a uma
delas sem haver permanecido algum tempo na precedente, e o trânsito é difícil. É assim
como muitas almas ficam no caminho”. Juan Arintero, Evolución Mística, Salamanca, San
Esteban, 1989, p. 333-334. Acompanhando o pensamento místico do Padre Germano, vê-
se a enorme influência de Scaramelli, apesar da diferença de gradação – NC.
2 Parece mais apropriado o termo: matrimônio místico, já que aponta o último grau de
união. Em geral, desposório místico indica aquela promessa de união que antecede a
união mesma, conforme designa o Doutor Místico. Ambas são graus superiores, mas o
desposório precede o matrimônio. Cf. Garrigou-Lagrange, Las tres edades de la vida
interior II, Madrid, Palabra, 1999, p. 1388 – NC.
3 “E, assim como quem pusesse um pedaço de ímã entre várias agulhas veria logo as
pontas se voltariam para o lado do seu ímã dileto e viriam prender-se a ele, assim também,
quando Nosso Senhor faz sentir no meio de nossa alma a sua deliciocíssima presença,
todas as nossas faculdades volvem as suas pontas para esse lado para virem juntar-se a
essa incomparável doçura” – São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, Vozes,
1996, p. 308 – NC.
4Cf. Sl 33, 9.
5O Silêncio espiritual é “uma suspensão em que as potências da alma não se perdem,
mas permanecem atônitas diante de Deus” – Pe. G. Battista Scaramelli, G. Battista, Il
Direttorio Mistico, Veneza, 1770, p. 153 – NC.
6 Scaramelli; Il Direttorio Mistico, Veneza, 1770, p. 166 – NC.
7Cf. Lc 10, 38-42.
8 O Padre Scaramelli apresenta 11 graus de contemplação: 1. Recolhimento; 2. Silêncio
Espiritual; 3.Quietude; 4. Embriaguez de Amor; 5. Sono Espiritual; 6. Ânsias e sede de
amor; 7. Toques; 8. União mística; 9.União simples de amor; 10. União Estática; 11. Rapto.
Pode-se observar a grande influência deste autor que o Venerável Padre Germano refere-
se como o doutor místico – NC.
9 “Quando a vontade mesma é tocada e presa, e começa a oração de quietude, então a
alegria e o gozo da admiração se traduzem pelas duas formas da embriaguez de amor,
uma mais sensível e outra mais espiritual, que a alma, transportada de entusiasmo,
sentindo o inefável gosto da doçura de Deus, ora se derrete, ora salta de gozo e faz o que
costuma-se chamar loucuras de amor, prorrompendo, com São Francisco e Santa Maria
Madalena de Pazzi, em cânticos de louvor, convidando a todas as criaturas a que louvem
tanta bondade.” Juan G. Arintero, Evolución Mística, Salamanca, San Esteban, 1989, p.
338 – NC.
10 A expressão relembra da obra Chama Viva de Amor de São João da Cruz, mas é
diversa; aqui é um grau de contemplação. Na expressão “sanjuanista”, ela se refere à alma
“estando já de tal modo transformada e aprimorada interiormente no fogo do amor, que não
apenas está unida a ele, lança dentro dela uma viva chama”. São João da Cruz, Obras
Completas, Vozes, 2000, p. 826 – NC.
11Jo 19, 18.
12 Sede e ânsia de amor, sétimo grau de oração sobrenatural, conforme a classificação
do Padre Scaramelli. “As ânsias de amor são um vivo desejo de Deus, gozado e amado,
não ainda possuído pela alma, que já ou parcialmente, foi quase toda purificada”. Pe.
Scaramelli, Il Direttorio Mistico, Veneza, 1770, p. 178 – NC.
CAPÍTULO XXV

SOBRE O MESMO ASSUNTO:


AMOR DE DEUS, E A PERFEITA UNIÃO COM O SUMO BEM

Os sete graus de contemplação e de união de que temos tratado


não são mais do que uma preparação ao último, que consiste na
união perfeita com o Sumo Bem, e é designado pelo nome de
Desposório místico.1
Pelo recolhimento infuso, Deus faz com que a alma fique atenta;
pelo silêncio espiritual, torna-a apta a ouvir a sua voz divina; pela
quietude mística, dispõe-na à magnanimidade e generosidade na
ação; renova as suas forças com o sono, estimula-a na embriaguez,
aquece-a pela chama, e pela sede de ser com Ele unida e n’Ele
transformada, atrai-a e consome-a.
Quando a alma chega a este altíssimo grau de perfeição, embora
se sinta e se veja perto de Deus e goze de inexprimíveis delícias,
sabe contudo que não o possui intimamente.
É como uma borboleta que atraída pelo brilho da chama: gira em
torno dela e se atira delirantemente para ela, sem porém ainda
penetrar nela, identificar-se com ela e nela consumir-se.
Esta pobre alma geme e suspira com tanta maior ansiedade
quanto mais vivas e intensas foram as luzes que nos diversos graus
da sua oração teve da beleza e da amabilidade de Deus.
Tudo isto, com breves mas sapientíssimas palavras, nos declara
proficientemente a própria seráfica de Lucca, dando conta a seu
diretor desse seu estado:

Jesus está em mim, e eu sou toda d’Ele. Espero, porém, a graça de ser
toda transformada n’Ele, e consumo-me no desejo de abismar-me no oceano
imenso do divino amor.

Conforme à lei ordinária, este insigne favor não é concedido de


repente a uma alma, pois não seria capaz de suportá-lo.
O Pai celeste, porém, a vai dispondo e habituando gradualmente,
fazendo-a passar primeiramente por um grau menor, que é o oitavo
da teologia mística.
Neste, de vez em quando, Ele se comunica à alma tocando-a
levemente, deixando-se tocar por ela substancialmente.
Oh! Grande Deus de amor! Como quereria eu compreender
melhor estes assuntos e mais perfeitamente exprimi-los! Mas não
me é possível. Os doutores místicos chamam a essas finezas do
amor incriado, toques divinos,2 justamente porque são instantâneos
e superficiais e definem-nos: “uma impressão espiritual análoga a do
tato corporal, pela qual a alma sente a ação divina e o próprio Deus
no mais íntimo do seu ser, e goza de sua presença de um modo
inefável”.
Ora, tendo os gemidos desta santa virgem atingido o termo que já
descrevemos, crescendo ilimitadamente os ardores das suas
chamas, com tal intensidade que seu coração apaixonado parecia
estalar, Deus teve compaixão dela, e para tornar-lhe a vida
suportável, começou a dar-se mais a ela e deixá-la aproximar de
quando em quando ao seu Divino Coração.
Não poderei dizer exatamente a época em que ela entrou em tão
venturoso estado, tendo-a já encontrado assim quando tomei a
direção da sua alma, embora fossem então esses toques divinos
menos perfeitos e mais rápidos.
Ordinariamente ela os recebia durante a contemplação. À medida
que a luz sobrenatural descobria ao seu espírito as belezas divinas,
o seu coração se inflamava com mais fervor, palpitava e se
consumia no desejo de unir-se ao Sumo Bem. Aumentando estes
transportes de amor pouco a pouco, por assim dizer, se foi abatendo
a barreira da separação entre Deus e a criatura, até que, caindo
inteiramente, essa alma afortunada se achou em contato com a
divindade.
Nesses momentos, pouco ela podia falar:

Ó anjos, ó anjos, eu estou aniquilada; bendizei o amor do meu Deus. Eis-


me, ó Jesus, entregue ao vosso santo amor.
E abandonando-a às forças naturais, caía desmaiada. Uma vez,
estando na Igreja depois da Sagrada Comunhão, recebeu uma
destas impressões divinas. Voltando a si, a sua humildade sofreu
tanto que suplicou ardentemente a Divina Majestade de nunca mais
ser assim favorecida publicamente, e foi atendida.
Na sua simplicidade a piedosa donzela, atribuía este benefício aos
esforços que continuamente fazia para resistir-lhes, alegrando-se
por este motivo. Escrevia assim ao seu diretor:

Jesus continua a se fazer sentir em minha alma a toda hora e em todos os


lugares; bendito seja sempre! Mas quantos esforços eu devo empregar para
ocultar as suas graças, principalmente quando estou na igreja ou fora de
casa! Faço-me tal violência que às vezes passo o dia inteiro sufocando o
desejo de mergulhar-me no oceano imenso do divino Amor, salvo nos
instantes que se seguem à Sagrada Comunhão, mas apressadamente,
porque temo. À noite sobrevêm-me a febre pelo constrangimento em que vivo
para disfarçar. Mas tenho coragem porque Jesus me diz que lhe agrada
muito este meu procedimento. Conseguirei reprimir-me sempre? Receio que
não, porque estes impulsos se tornam cada vez mais impetuosos e
frequentes, a ponto de não me poder mais dominar; quando chegar a este
ponto, curvarei a cabeça. Viva sempre Jesus!

Nestes misteriosos fenômenos, às vezes os sentidos tomavam


parte. O Verbo Encarnado, sob uma forma visível, lhe aparecia
conforme já dissemos, e depois de ter com a sua divina presença
inflamado o coração de Gema, a convidava a aproximar-se do seu
Sagrado Lado. Ela O beijava, transportada de amor, e caía sem
sentidos a seus pés. Eis como descreve uma dessas celestes
comunicações:

Depois de ter comungado, percebi que Jesus se aproximava e sabe como?


Logo que o recebi o meu coração bateu tão fortemente que parecia querer
sair do peito. Em seguida Jesus me perguntou se O amava verdadeiramente;
respondi que sim. Perguntei-lhe por minha vez: E Vós me amais também?
Como resposta Jesus me encheu de carícias e me beijou; eu fiquei reduzida
a cinzas diante d’Ele.

Pelo tempo em diante, estes assaltos do amor divino, se os


podemos assim chamar, se tornavam muito frequentes, sobretudo
nos êxtases, e os assistentes os percebiam logo pelos efeitos
sensíveis. Ela me escreveu:

Estes leves desmaios que tenho na presença de Jesus se tornam


frequentes. Se Jesus continuar assim, em pouco tempo ficará ele só. Ah! O
seu amor é irresistível. Como é possível não amar a Jesus de todo o
coração? Como não desejar ficar toda absorta n’Ele e ser consumida nas
chamas de seu santo amor!

Voltando aos seus pensamentos tão ingênuos e dirigindo-se ao


Senhor exclamava:

Meu amado Jesus, se a todos fazeis sentir este ardor e se todos se


consumirem na vossa presença, ninguém poderá subsistir e tereis que ficar
inteiramente só.

Esta seráfica virgem julgava que todos os cristãos deviam estar


como ela inflamados no celeste amor, ignorando este seu privilégio,
raríssimo e quase que único nos nossos dias.
Com todos estes dons, ela se considerava como a única
desprovida de amor, e continuava a gemer e a pedi-lo a seu Deus
com incessantes clamores. Os toques divinos que tantas vezes
sentia aumentavam as suas ânsias, estimulavam seus ardentes
votos e a faziam exclamar:

Meu coração está sempre unido a Jesus, que cada vez me consome mais.
Oh! Meu dulcíssimo Jesus, quereria no meio das chamas do vosso amor,
dissolver-me inteiramente. Ah! Como corresponder-vos, ó meu Deus, que me
tendes beneficiado tanto? Quem me ajudará? Só a vossa misericórdia devo o
pequeno amor que tenho em meu pobre coração.

Outra vez perguntava a seu Deus de onde provinha esse desejo


tão forte que sentia de lhe agradar, de se unir a Ele com laços de
indissolúvel amor. O Senhor lhe respondeu: “Porque te venci”; e ela:
“Oh! Sim, sou feliz em ter sido vencida por tanta bondade e tanto
amor”.
Era exatamente assim: Jesus a tinha vencido, e para se glorificar
nesta predileta serva, depois de a ter experimentado bem e por
muitos anos, depois de a ter preparado com tanta abundância de
graças, fazendo-a passar por todos os graus da vida mística, quis
coroar a sua obra com o insigne dom da união perfeita.
Como já foi falado da sua profunda humildade, esta modesta
virgem não ousava chamar a Jesus seu Esposo, bastando-lhe ser
sua serva e filha. Ainda mesmo quando em êxtase, abstinha-se, no
princípio, de lhe dar tão doce título: o de esposa.
Entretanto, aumentando o ardor das celestes chamas, e como o
amor, a confiança e o mimo começou afinal a aspirar a esse título, e
exprimir timidamente seu desejo!

Se eu sinto, ó Jesus, de manhã, tanta consolação, quando me mandais que


vos chame de Pai, que será quando eu vos puder dizer: Meu bem amado!
Sim, Jesus, consolai a esta pobre filha e prometida esposa.

Outra vez, em êxtase, dizia a seu Deus com insistência:

Ó Jesus, mas sempre só vossa filha? Nada mais? Eu quereria entretanto...


Ó meu Jesus! Eu compreendo que seria demais para mim! Eu Vos direi qual
é meu desejo! Quereria, ó Jesus, quereria ser vossa... vossa esposa. Sim,
meu Jesus, vossa esposa!

Depois destas palavras, caiu desmaiada e ficou por muitas horas


estendida no chão como morta. Correi pois, ó divino Esposo das
almas, já é tempo e dizei a esta inocente virgem: “Veni sponsa
Christi, accipe coronam quam tibi Dominus preparavit in aeternum”.3
Os votos desta santa alma estavam satisfeitos; o Divino Verbo a
uniu a si, por um laço indissolúvel de amor. Não faltaram as aras a
este místico desposório.4
Jesus lhe apareceu como à Santa Catarina e ao meu pai, Paulo da
Cruz,5 na forma de um menino encantador, ao colo de sua divina
Mãe, que lhe tirou do dedo um anel e o colocou no da sua venturosa
serva. A partir desse dia Gema não parecia mais uma criatura
humana. A majestade do seu rosto, o esplendor de seus olhos, o
suave sorriso dos lábios e todo o raro conjunto de suas qualidades
físicas, que tanta impressão já causavam, se revestiam agora de um
aspecto tão celestial, que incutia respeito como se fora um anjo do
Céu.
Creia, Padre – escreviam-me as pessoas de sua convivência –, não se
pode mais fitar o seu rosto, parece um serafim. Depois de contemplá-la um
instante, um respeito profundo obriga a baixar os olhos. Vive cada vez mais
retirada, silenciosa e grave, entretanto, presta-se como antes a todos os
trabalhos domésticos. Quando reza sozinha, quase sempre fica em êxtase.
Se o senhor a visse, ficaria comovido até as lágrimas. E se ouvisse as
palavras ardentes que lhe saem da boca! Oh! A nossa querida Gema!

A própria virgem descreveu este seu feliz estado com as seguintes


palavras, breves, mas eloquentíssimas:

Jesus continua a me amar, mas não como antes; continua a me unir a Ele,
e tomar-me recolhida, mas de outro modo. Desde aquele dia começou para
mim uma vida nova.

Pela imperfeita semelhança do casamento, pode o leitor fazer uma


ideia do que os doutores místicos entendem por este altíssimo grau
de união e de amor a que foi elevada a seráfica de Lucca. No
casamento humano, duas pessoas se dão uma a outra com tudo o
que são e possuem, a ponto de se tornarem uma só entidade; assim
é no casamento espiritual e divino. A alma se dá inteiramente a
Deus e Deus à alma; e esta união, como àquela, embora
infinitamente mais perfeita, é íntima, contínua e indissolúvel. Íntima
porque se opera no centro da própria substância da alma
privilegiada; contínua porque está ao abrigo de toda a interrupção
da parte de Deus, que é o seu verdadeiro autor; e indissolúvel
porque, conforme a lei ordinária, jamais acontece que tal alma perca
a graça santificante6 com o pecado mortal e, consequentemente, se
separe de Deus.
Esta união perfeitíssima se distingue, pois, claramente dos graus
precedentes, nos quais o Senhor comunica os seus dons celestes
sem se dar a Si mesmo; comunica-se às potencias da alma, mas
não à própria alma, e por intervalos mais ou menos frequentes, e
não permanentemente.
Deixemos que Gema nos descreva esta sublime união, pois fez
dela a feliz experiência:

Hoje não estou mais em mim; mas só no meu Deus: toda para Ele e Ele
todo em mim e para mim.

Que é o que diz a esposa dos sagrados Cânticos: Ego dilecto


meo, et ad me conversio ejus.7

Jesus está comigo; é todo meu. Ele está sozinho, sozinho, e eu só a


bendizê-lo e honrá-lo. Ele se encerra na miserável cela do meu coração;
desaparece a sua divina Majestade. Estamos inteiramente sós, e meu
coração palpita continuamente em união com o de Jesus. Viva Jesus! O
Coração de Jesus e o meu formam uma só coisa. Não se passa um minuto
sem que eu sinta a sua tão querida presença, que se manifesta sempre do
modo mais afetuoso.

Por estas e outras palavras, frequentemente repetidas pela nova


esposa, podemos avaliar quanto é grande a felicidade de uma alma
que atinge essa altura ainda vivendo na Terra, e quão copiosos são
os frutos celestes que colhe e saboreia da sua íntima união com o
Sumo Bem. E não podia ser de outro modo porque, se é verdade
que todos os bens do esposo pertencem à esposa, e os bens de
Deus são infinitos, com muita razão, Gema podia exclamar:

Como são preciosos estes momentos! Sinto uma felicidade que só se pode
comparar com a celeste bem-aventurança dos anjos e dos santos. Sim, sou
feliz, porque o meu coração palpita com o vosso; sou feliz porque vos
possuo; ó meu Jesus! Quanta consolação me inspira saber que vos possuo!
Ah! Meu Deus! Se tão felizes nos fazeis na Terra, que será no Céu?

E escrevendo ao seu diretor, dizia:

Oh! Se vós pudésseis, meu pai, experimentar e gozar de tantos dons que
Jesus me concede! Como Jesus é bom! Peço-lhe que suspenda e ponha
termo a tantas graças porque não posso mais. Ajudai-me, ajudai-me e
abençoai-me.

Quais fossem estes dons que recebia, a própria Gema não o


poderia explicar. Eram graças sublimes que cada dia mais a
enobreciam e aformoseavam, tornando-a cada vez mais agradável
aos olhos de sua Divina Majestade. Ela se sentia como que
transportada em Deus com todas as potências e atos de sua alma, e
como que submergida num abismo de luz, serenidade e paz.
Neste venturoso estado, seus êxtases se tornaram, pode-se dizer,
contínuos e, se cessavam, ficava ainda toda absorta em Deus em
uma profunda admiração. Nestes êxtases e também fora deles,
quão íntimos os segredos que o Verbo Divino lhe comunicava! Quão
sublimes as visões intelectuais e também sensíveis com que se
alternavam! Com que claras luzes lhe descobria a glória do Céu que
lhe estava preparada; a grandeza dos mistérios da fé e a perfeição
dos seus divinos atributos. Agora se compreende bem porque a
santa donzela, mais do que nunca, desgostosa dos bens terrenos,
exclamava muitas vezes:

Neste mundo tudo me aborrece e me pesa; nada desejo se não amar,


amar. Desabafo o meu coração o mais que posso, com aspirações e
jaculatórias, e assim passo os meus dias.

Já não admira vê-la tão enamorada do Céu, parecendo sempre


pouco tudo o que seu coração possuía.

Oh ! Vamos para o Céu, onde se vê a Deus, perfeitamente, onde possuído


inteiramente e até à saciedade. Quando me levareis, ó meu Deus, para o
Céu?

Explica-se também agora aquele terror que só o nome do pecado


lhe ocasionava, o zelo ardente que lhe teria feito aceitar todas as
torturas para impedir a menor ofensa de Deus e os desejos
inflamáveis de satisfazer a sua justiça por todos os sofrimentos, e
realizar grandes obras para sua glória.
Dizia com vivacidade:

Oh! Quanto quereria fazer! Se eu pudesse dar de pronto toda a minha vida
por Ele! Mas não, eu quero viver sempre, se é do seu agrado, trabalhando
para Ele, fazer penitência, sofrer muito e amá-lo infinitamente. Oh! Se eu
pudesse possuir, como ardentemente desejo, o fervor e o amor de todas as
almas santas! Mais ainda, se me fosse possível igualar na pureza os anjos e
até a vós, oh! Maria, nossa Mãe Santíssima!

É natural que ela assim pensasse e sentisse. A esposa vive


unicamente para agradar ao esposo. Não pensa em si, e não há
incômodo que não aceite de bom grado para contentá-lo. As
desonras, os ultrajes que lhe fazem e ferem no mais íntimo do
coração.
Confirmando o que digo em relação à Gema, apresento o seguinte
exemplo: ela voltava da igreja quando se encontrou com uma
pessoa conhecida que, cega de raiva, não sei por qual motivo, se
pôs a vomitar terríveis blasfêmias. A santa jovem estremeceu de
horror ao ouvi-la; quis repreendê-la, mas faltaram-lhe as forças e
caiu desmaiada. O coração lhe batia no peito como às marteladas, e
não podendo resistir à dor, distenderam-se as veias e o sangue
jorrou pelos poros do corpo, como abundante suor e embebeu as
suas vestes, correndo até o chão.
Tocante espetáculo! Único talvez na hagiografia cristã8 desde a
agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, que para nos mostrar quanto
é horrível a ofensa feita a Deus, com o maldito pecado, caiu no
Horto das Oliveiras e suou sangue!
Veja o leitor se é possível imaginar um amor mais terno, ardente e
sincero para com Deus, do que este demonstrado por esta virgem
esposa. Recuperando os sentidos e acalmando-se, Gema se
levantou e, não prestando atenção ao que lhe tinha sucedido,
distraída pela profunda dor, dirigiu-se normalmente para a casa.
A tia foi a primeira a ir ao seu encontro, mas não sabendo a que
atribuir a palidez de seu rosto, perguntou-lhe com interesse o que
havia ocorrido; depois, observando-a toda manchada de sangue,
julgou que se teria flagelado ou martirizado com algum outro
instrumento de penitência e a repreendeu severamente. A
humildade virgem vendo que estava conhecido o ocorrido, corou e
fez o que pôde para disfarçar; não o conseguindo, chorando e
soluçando, confessou ingenuamente que aquele fenômeno tinha
sido motivado pelas blasfêmias que tinha ouvido pouco antes.
Dissimulando uma viva comoção, perguntou a senhora: “Então é a
primeira vez que ouves blasfemar nesta infeliz cidade? Como é que
só hoje te produziu este efeito?”.
Gema, continuando a chorar, respondeu:

Não é a primeira vez; produz-me sempre esse efeito, se não consigo fugir
ou ao menos distrair-me.

Ela poderia ter acrescentado que outras vezes tinham sido piores,
pois a violência da dor lhe tinha arrancado lágrimas de sangue. Este
último fenômeno, único também na história,9 penso eu, se
reproduziu frequentemente e foi observado por muitas pessoas
depois de Gema ser elevada por Deus à perfeição do amor. Sob a
pressão da dor intensa causada pelas ofensas feitas ao Amante, o
sangue corria em rios de seus olhos inocentes, e se coagulava
sobre as faces, de que era preciso tirá-lo aos pedaços.
Outro fruto da perfeita união de Gema com seu Deus era uma
espécie de impassibilidade diante dos mais penosos
acontecimentos da vida. Ou não sentia sua agudeza ou não lhes
prestava atenção, e enquanto ao redor dela reinava a tristeza e o
desânimo, ela se conservava calma e serena.

Não vos perturbeis – dizia ela –, não é nada. Jesus não permitirá que vos
aconteça algum mal; não existe Jesus? Por que ter tanto medo?

Nos sofrimentos físicos, que tanto pesavam sobre ela, mostrava-


se sempre jovial. A aridez do espírito, como vimos, tinha sido o
grande martírio do seu coração.
Quando se ocultava o seu amantíssimo Senhor ela empalidecia e
tremia, receando não poder mais encontrá-lo, e o seu coração se
despedaçava em tão cruel angústia. Agora, porém, considerando-se
sua esposa, não se perturba mais. Sabe que o laço que a une a Ele
é indissolúvel. Deus podia bem experimentá-la subtraindo-lhe sua
divina presença, mas não se podia separar do seu coração.
Assim, ouvi, ó leitor, quão diferente é agora a sua linguagem da
que tinha antes:

Quem sabe se Jesus me permitirá revê-Lo? Mas se Jesus não me aparece


mais, que importa? Eu o contemplo sempre, e ainda que não me queira mais
com Ele, eu o rodearei sempre; quero pensar sempre n’Ele que, afinal,
voltará como antes. Fugi, fugi pois, ó Senhor, eu vos acompanharei sempre,
a de que nem o Céu, nem a Terra, nem o Inferno, me separarão mais de Vós.
Se vos é agradável martirizar-me pela privação da vossa querida presença,
será também para mim agradável por saber que Vós estais contente.
Estando Vós contente, todos devem está-lo. Viva Jesus escondido!

Que mais? As várias vexações do inimigo, das quais já referimos a


cruel atrocidade, não conseguiram fazer-lhe perder a paz do
coração.
Na sua última carta, pouco antes de morrer, ela me dizia:

Creia, meu pai, não tenho mais medo do demônio. Ele bate e torna a bater;
mas estou convencida de que Jesus, se lhe permitir molestar-me, não lhe
permitirá fazer mal a minha alma.

Assim, chegamos a dizer que, unida intimamente a Deus, a sua


vontade se transformou toda n’Ele, e n’Ele repousava. É este um
dos mais preciosos frutos que a alma recebe neste grau de união
mística: o abandono em Deus.
Seria preciso escrever inúmeras páginas se quisesse transcrever
tudo aquilo de que tenho tomado de apontamentos sobre este
assunto. Mas o leitor poderá formar alguma ideia da perfeição deste
estado da serva de Deus pelas coisas que viu até agora.
A verdade é que, se esta santa donzela, desde criança, não quis
mais nada, senão a pura vontade de Deus, em cuja aceitação
achava toda a paz e felicidade, elevada agora à dignidade de
esposa, a vontade de seu divino Esposo absorveu inteiramente a
sua e se tornou a única preocupação do seu coração. Ela me disse
um dia:

Meu pai, que satisfeita que estou, agora que eu me entreguei toda nas
mãos de Deus, e estou unida inteiramente à sua divina vontade! Eu procuro
Jesus, mas somente para que Ele me ajude aceitar as suas ordens
santíssimas. Agora aprendi também outra coisa: minha alma não vai mais
indagando, nem cogitando, vivo no silêncio e na paz do coração. Oh! Quanto
se goza em estar completamente unida à vontade de Deus! Este gozo me é
suficiente.

Daí a coragem inaudita em afrontar as dificuldades e obstáculos,


de que já por vezes fiz menção, que força heroica em face dos
sofrimentos de todo o gênero, e que alegria inalterável que da parte
superior do espírito descia até os sentidos, fazendo-lhe passar os
dias tão serenos e tornando-a querida e invejada de todos!
Contudo, o que mais me impressionava neste feliz estado da
nossa piedosa virgem, e o que mais quero aqui fazer sobressair, era
o crescimento dos ardores de seu coração para com o Sumo Bem.
Pelo conhecimento certo que tenho desta ciência, posso assegurar
que poucas são as almas comumente conhecidas que tenham
revelado ter para com Deus chamas tão ardentes no coração. Ela
mesma que estava acostumada a palpitar de amor desde tantos
anos exclamava:

Mas que é que eu sinto? Não posso, Deus meu verdadeiro, entregar-me a
esta doçura e felicidade. Que é meu Deus, o que sinto? Ah! Eu vos sinto em
meu coração, sinto-vos verdadeiramente vivo! Que mistério! Sinto-me no
Céu! Numa destas vezes, Jesus, Vós me fareis morrer, quando vos sentir
assim palpitar em meu coração. Oh! Jesus! Que seria se um dia se pudesse
dizer que o vosso amor me consumiu? Não, não, Jesus, não me ordeneis
que vos ame. Não, não vos pedirei mais amor, porque não posso suportar
mais. Não me inflameis mais que já não tenho mais forças.

E assim era.
O próprio órgão material do coração deu uma prova disto; porque
elevando-se esta virgem singular ao último grau da perfeição no
amor, o coração sendo insuficiente para sustentar as chamas desta
alma seráfica, começou a agitar-se com movimentos insólitos.

Bate-me o coração com tanta força – dizia-me ela –, que parece querer sair
do peito. É fraco demais e não pode ficar quieto. Incomoda-me muito,
constrangendo-me a estar sentada na cama; e a cama treme toda. Em certos
momentos, parece-me que o coração me quer furar o peito, e sou obrigada a
comprimi-lo com a mão. Oh! Quanto estimaria ter alguém que me ajudasse a
temperar os ardores e as chamas de que meu coração está perpetuamente
agitado!

Não penseis, ó leitor, que há exagerações nestas palavras, porque


o que se assegura aqui foi verificado muitas vezes pela experiência.
Algumas pessoas tentaram reprimir com as mãos as palpitações
violentas deste coração, tão inflamado de amor, e se sentiram
vivamente repelidos.
Eu mesmo vi balançar a cadeira em que Gema estava assentada
e também a cama em que repousava tremia durante aquelas fortes
comoções, enquanto ela se conservava tranquila, e o que e mais de
admirar, sem sombra de cansaço angústia ou temor.
Falava com liberdade e movia-se facilmente como se nada tivesse
de extraordinário, mostrando não sofrer coisa alguma; era só o
coração que se agitava desse modo.
Uma vez perguntei-lhe que coisa lhe parecia desse fenômeno, e
ela com a sua costumada ingenuidade respondeu:

Não vedes? Jesus é tão grande e o meu coração é tão pequeno! Jesus não
cabe num coração pequeno, mas querendo aí tomar lugar, agita-o desse
modo; assim será difícil de remediar, meu pai, se Jesus não lhe der remédio.
Oh! Que se dilate, que dilate este coração para Jesus estar a seu gosto!

Dilatou-se de fato o coração, a tal ponto que chegou dobrar três


costelas, daquele lado do mesmo modo que aconteceu a São Filipe
Néri e ao meu Pai, Paulo da Cruz, em um forte ímpeto de amor
divino.10
Tendo o misterioso fenômeno permanecido em Gema por longo
tempo, pôde ser observado e estudado. Estas três costelas estavam
violentamente dobradas quase em um ângulo reto, formando
exteriormente uma grande elevação, e deixando interiormente um
espaço suficiente, onde o coração podia palpitar de forma mais livre.
Aqui paro, sentindo-me faltar a força para continuar; dobro os
joelhos, e adoro-vos, ó Jesus, divino autor de tão grandes
maravilhas.

1 O Venerável Padre Germano aponta no início uma escada de contemplação de 9


graus, porém termina no oitavo: o desposório espiritual. Talvez seja o matrimônio espiritual
o nono degrau não nomeado, sendo ele a plenitude da união transformante – NC.
2 Toques divinos “[...] com o qual Deus inflama a alma em seu amor” e “costuma ser o
toque em maior ou menor intensidade, de um modo ou de outro, conforme o quilate
espiritual da mesma alma”. São João da Cruz, Obras Completas, Petrópolis, Vozes, 2000,
p. 729 – NC.
3 Antífona do Cântico Evangélico das Vésperas do Comum das Virgens, no Breviário
Romano, conforme a forma extraordinária do Rito Romano [Vem, esposa de Cristo, e
receba a coroa que o Senhor preparou para ti na eternidade] – NC.
4 Pela descrição do Padre Germano, pode-se ver que se trata do matrimônio espiritual.
Já que ele mesmo descreve uma união “perfeita, é intima, contínua e indissolúvel” – NC.
5 São Paulo da Cruz, grande místico, também teve uma visão do seu Matrimônio
Espiritual. Além da Santíssima Virgem com o Menino Jesus, estavam presentes São Paulo,
Santa Isabel, São João Evangelista, Santa Teresa, São João da Cruz e Santa Maria
Madalena de Pazzi. Recebeu um anel de ouro, incrustado com os instrumentos da Paixão.
In: Calabrese, Antonio. La vita mística di San Paolo della Croce, Vaticano: LEV, 2001, p. 98
– NC.
6 “Aqui a alma se volta inteiramente para Deus para chegar à união transformante e à
esta confirmação da graça que foi concedida aos apóstolos no dia de Pentecostes”. R.
Garrigou-Lagrange, Las tres edades de la vida interior (t. II). Madrid: Palabra, 1999, p. 987
– NC.
7 Ct 7,10 – “Eu sou para o meu amado, e ele se volta para mim”.
8 Também apresentaram suor de sangue: Santa Lutgarda (1182-1246), Bem-aventurada
Cristina de Stumbeln (1242-1312) e a Serva de Deus Domenica Lazzari (1815-1848) In:
Royo Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana, Madrid: BAC, 2001, p. 934. Neste
século destacamos, este fenômeno na vida da Bem-aventurada Elena Aiello (1895-1961),
fundadora das Irmãs Mínimas da Paixão, da região da Calábria, na Itália – NC.
9 As lágrimas de sangue apresentaram-se também na vida da Serva de Deus Teresa
Neumann (1898-1962) – NC.
10 São Filipe Néri (1515-1595), fundador da Congregação do Oratório. Sobre o
incendium amoris, veja nota na página 82 – NC.
CAPÍTULO XXVI

ÊXTASES DA SERVA DE DEUS:


AS APARIÇÕES DE QUE O CÉU A FAVORECEU

Os teólogos consideram que, entre os graus da união mística, o


êxtase e o rapto, e é justo porque o êxtase é somente uma atração
mais violenta e mais suave da alma pelos bens celestes; esta
atração, tornando-a incapaz de atender ao governo dos sentidos,
faz com que estes fiquem como que abandonados e extintos.
Quando, pois, a dita atração – e consequente perda dos sentidos –
acontece rapidamente e com um certo arrebatamento, então o
êxtase ganha o nome de rapto.1
Tendo eu muito o que dizer sobre estes graus de união da nossa
Gema, julguei acertado tratar separadamente de cada um no
presente capítulo, embora já tenha falado sobre o último e mais
sublime de todos que é o grau da união estável e perfeita. Repito
que, embora em geral a alma adiante regularmente nas vias
místicas passando dos graus inferiores aos superiores, não
obstante, o Espírito Santo, que não está sujeito a nenhuma
prescrição, costuma por vezes inverter a ordem, comunicando suas
graças mais sublimes a certas almas que não estão ainda
preparadas com graças de menor preço.
Assim se deu com a virgem de Lucca, que começou a ter êxtases
e raptos antes que as suas contemplações atingissem os graus de
perfeição acima descritos.
Quando eu tomei a direção desta alma privilegiada, achei-a já na
posse deste dom, que foi sempre aumentando assim como os
outros, e se tornaram tão frequentes que pareciam ser-lhe quase
naturais.
Não distinguirei o êxtase do rapto, porque estes dois maravilhosos
fenômenos se alternavam continuamente em Gema; e os próprios
ímpetos do segundo, guardavam a moderação e majestade do
primeiro. Servir-me-ei por isso do mesmo nome para designar a
ambos.
Começarei a dizer que o estado extático se manifestava nesta
bendita donzela, como já dissemos das suas contemplações em
geral, em qualquer tempo e lugar, e no momento em que ela menos
o esperava: assentada à mesa ou trabalhando na cozinha. Ela o
pressentia, mas só alguns minutos antes, por um súbito
recolhimento que a surpreendia, seguido de ardentíssimo desejo de
unir-se mais intimamente a Deus, e de violentas palpitações da
oração.
Estes sinais a humilde virgem procurava disfarçá-los, e tentava
distrair-se, mas não o conseguindo, retirava-se para impedir que
outros o percebessem, o que na maior parte das vezes conseguia.
Quando a comunicação divina a invadia de improviso, ficava
extática no lugar em que se achava, isto é, absorta em Deus com a
mente, o coração e todas as potências da alma, enquanto os
sentidos externos perdiam logo o seu uso e exercício. Digo os
sentidos e não o corpo porque este conservava sempre flexibilidade
e a faculdade de se mover, e a força de se pôr em pé ou de joelhos.
Neste século desgraçado em que o racionalismo se diverte em
espalhar dúvidas sobre tudo o que é sobrenatural, pelo desejo que
tem de não crer, enquanto se deixa confundir cegamente pelos
charlatões do hipnotismo e do espiritismo, parece que Deus, de
propósito, lançou seus olhares particulares sobre esta sua serva,
moderando a forma de certos fenômenos extáticos, que em outros
santos podiam dar ocasião de critica aos sofistas.
De fato, Gema, no êxtase, apresentava todas as qualidades de
uma pessoa em perfeita saúde e com os sinais de um estado
fisiologicamente normal; não tinha a palidez cadavérica nem
contrações musculares; não tomava atitudes singulares nem fazia
movimentos exaltados. Somente os sentidos externos ficavam
inertes, como já vimos.
Podiam, com um alfinete, pungir-lhe as mãos, a cabeça, os
braços, queimá-la com a chama de uma vela, fazer um ruído
estrondoso, tudo era inútil; enquanto a santa jovem estava com o
seu Deus, nada sentia nem percebia o que em torno dela se fizesse
ou dissesse. Nos frequentes êxtases dolorosos, conservando a
mesma aparência de saúde, mostrava porém um profundo cansaço;
era preciso sustentá-la para não cair, e se estava na cama, jazia
como uma pessoa que se extingue.
Nos outros, pelo contrário, parecia que o corpo gozava da alegria
da alma, conforme está escrito nos salmos: “cor meum et caro mea
exultaverunt in Deum vivum”.2
Uma chama misteriosa iluminava seus olhos, que brilhavam quase
como dois sóis, tingia de viva cor as suas faces, e dava ao seu
semblante a aparência de um anjo descido do Céu.

Se vós a tivésseis visto ontem – me escreviam –, ó meu Deus! Ninguém


podia contemplá-la; não parecia mais uma criatura humana; tinha o rosto de
um serafim, inspirava doçura e arrancava lágrimas. Como achamos breve
essa hora em que a nossa Gema esteve assim, em êxtase!

Este fenômeno era frequentemente visto e admirado por aquela


família, mas parecia-lhe sempre novo, tanto o homem é insaciável
do sobrenatural.
Nos últimos dias da sua vida, a enfermidade lhe tinha emagrecido
o rosto e tirado a beleza, mas o êxtase lhe restituía logo, e num grau
ainda superior, imprimindo-lhe uma certa majestade, que incutia
respeito e veneração.
Para tratar com mais ordem deste assunto, distinguirei três formas
de êxtase na serva de Deus: os pequenos e imperfeitos, os grandes
e os extraordinários.
Os êxtases pequenos, muito mais frequentes e a ponto de se
renovarem muitas vezes no dia, eram também os mais espontâneos
e simples. Para provocá-los, bastava que à sua mente descesse
uma luz infusa das mais comuns, ou que ela tivesse uma visão das
mais simples, assim, logo o mundo sensível desaparecia de seus
olhos e um profundo recolhimento invadia todo o seu ser; em um
momento achava-se toda no Céu, sem que nenhum abalo
precedesse ou acompanhasse aquele voo do espírito.3
Percebia-se pelos olhos cintilantes presos no Céu, ou no ponto da
visão. Muitas vezes senti correr lágrimas nos meus olhos, quando,
rezando junto dela ou ainda quando recitávamos o ofício divino,
podia contemplá-la nesse estado! Eu me sentava numa extremidade
da mesa e Gema na outra, com o breviário na mão. Salmodiávamos
alternadamente, ela lia as lições dos noturnos das Matinas4 e
respondia com admirável exatidão aos responsórios e versículos,
voltando às páginas do livro. Mas como podia ela fazer isto, nunca
pude compreender. Estava abstraída dos sentidos, não percebia
nenhuma impressão do tato, e seus olhos, bem que aplicados à
leitura, eram insensíveis a tudo o mais.
Se por qualquer causa, porém, ela tivesse que interromper aquele
piedoso exercício, recuperava logo o uso dos sentidos; para perdê-
los novamnete, apenas retomava o fio da oração. Quantas vezes,
falando com ela, também não lhe perguntei se o seu anjo da guarda
não estava a seu lado, guardando-a?
Gema, com encantadora naturalidade, voltava seus olhos para o
lugar em que ele devia estar e ficava logo em êxtase por todo o
tempo, demorando-se a contemplá-lo! O mesmo digo de outras
ocasiões semelhantes em que, durante o dia, o divino Espírito, que
mostrava achar suas delícias em estar com esta sua fiel serva, a
favorecia. Estes são os êxtases de Gema que chamo menores;
eram de fato menos perfeitos, de curta duração, e quase sempre
puramente sensíveis. Eram também pouco profundos, pois que, à
exceção do tato, a perda dos outros sentidos não era total –
acontecendo muitas vezes nesse estado poder ler e até escrever e
conferenciar com seu padre espiritual.
E que cartas, ó meu Deus! Que conversações eram aquelas!
Os êxtases grandes ou perfeitos, além de menos frequentes, mais
profundos e elevados, ainda que igualmente simples e naturais,
eram também de maior duração, variando de meia a uma hora, às
vezes um pouco mais. Nestes, a alienação dos sentidos era total e
persistente. Para fazê-la cessar era preciso uma ordem articulada
formal; mas nem sempre era suficiente porque o Espírito Santo não
é obrigado a conformar-se com a vontade do homem, ainda que
seja seu ministro.
Algumas vezes, entretanto, a um simples preceito mental, via-se a
piedosa virgem sair dos mais sublimes êxtases. Voltava então a si,
sem dar nenhum indicio de pesar, e quando este despertar se
operava espontaneamente pela suspensão do influxo divino, era
uma cena terna e agradável aos assistentes. Não bocejava e nem
fazia nenhum movimento que indicasse cansaço, aborrecimento,
perturbação da imaginação ou confusão de espírito, mas era um
doce sorriso, como quem acaba de conversar com uma pessoa e se
volta para outra que a está esperando; esta era a transição
costumada de Gema à vida comum.
Algumas vezes cobria os olhos com as mãos, como envergonhada
de ser vista naquele estado, e talvez porque lhe custava olhar para
a Terra, depois de ter estado a contemplar o Céu.
Estes grandes êxtases ocorriam ordinariamente pela manhã, na
igreja, depois da Sagrada Comunhão, quando a piedosa virgem ia
visitar Jesus exposto no sacramento da Eucaristia, nas Quarenta
Horas,5 e em outras ocasiões igualmente próprias a inflamar o fervor
de sua alma.
Os êxtases extraordinários finalmente sobrevinham, mais ou
menos frequentes, no decurso do ano, sem nenhuma regra
determinada, e periodicamente duas vezes na semana: na quinta-
feira, pelas 8 horas, e na sexta-feira, às 3 horas da tarde. Estes
últimos a invadiam quase sempre, enquanto estava a conversar com
a família. As pessoas que já estavam habituadas o reconheciam
logo pelo recolhimento mais profundo em que se concentrava, por
certos olhares com um não sei quê de celestial que de quando em
quando dirigia para o Céu, por uma certa imobilidade que se ia
apoderando de sua pessoa, e pela violência que parecia fazer-se
para resistir.
Quando ela pressentia o que ia acontecer, pensando não ter sido
notada por ninguém, levantava-se e ia encerrar-se em seu quarto.
Poucos minutos depois, a seguia uma ou outra pessoa da casa e a
achava de joelhos perto da cama, com as mãos postas, os olhos
levantados para o Céu, toda absorta em Deus, de uma total
abstração dos sentidos.
Mas quando o atrativo divino se anunciava mais veemente, a
prudente donzela, com receio de cair desmaiada, corria para o
quarto, assentava-se na cama e aí a encontravam em pleno êxtase
numa atitude angélica. A duração deste êxtase era de cerca de uma
hora.
Apesar de tão frequentes, eu chamo a este êxtases extraordinários
em razão da intensidade da luz divina que os ocasionava, pela
importância das revelações que neles recebia e por causa dos
efeitos maravilhosos que produziam em sua alma.
Um destes foi a participação, corporalmente, às dores da paixão
do Salvador, com os estigmas, como veremos minuciosamente no
capítulo seguinte. Quão maravilhosos fossem também os outros que
se produziam no espírito da nossa extática e quão sublimes e
abundantes as comunicações, podemos avaliá-lo pelo que ela
mesma manifestava exteriormente durante aqueles preciosos
momentos, em que se entretinha falando em alta voz com o seu
Deus.
As boas senhoras da sua família adotiva se encarregavam de
recolher facilmente por escrito todas as suas palavras, o que foi uma
felicidade, porque de outro modo se teriam perdido, ou menos
fielmente reproduzido só a força de memória. Assim, contando só os
êxtases em que Gema falava e era compreendida, temos uns 150
cuidadosamente escritos.6
Os assuntos são variados, os pensamentos de uma grande
elevação, a doutrina da mais rigorosa exatidão, teológica e mística,
e a forma de uma majestade e suavidade celestiais, que penetram
no coração de quem lê. Que coisa não experimentariam aqueles
que os ouviam da sua própria boca! Quanto a mim, confesso, que
cada vez que ouvi aquelas expressões tão ardentes, chorava por
longo tempo.
O assunto de cada êxtase, quase sempre único, consistia, ora em
um hino de louvor a algum dos atributos divinos, ora em adoração
ao celeste Esposo, ora em uma luta amorosa com a misericórdia do
Senhor para obter a conversão de um pecador.
A maior parte das vezes, porém, referia-se a Paixão de Jesus
Cristo a ao desejo de se transformar em Jesus Crucificado.
Será agradável ao leitor que lhe apresente uma parte desses
colóquios, escritos pela própria virgem numa carta, depois do
êxtase. Este se deu no dia 19 de março de 1901, às dez horas da
manhã, e foi como sempre um colóquio entre Jesus e a piedosa
virgem. Para ser breve transcreverei só a conclusão:

Ó Jesus, lhe disse eu, logo que ele acabou de falar, quando ouço
pronunciar o vosso nome a minha alma se reanima. Vosso nome só, ó Jesus,
sim, só vosso nome me tranquiliza a vida. Meu bom Jesus, meu coração está
desapegado da Terra, e repousa em Vós, mas minha alma acabrunhada por
vossos contínuos favores, suspira e se exala, e não podendo repagar-vos
com trabalhos heroicos, expande-se em atos de amor. Jesus, às minhas
palavras, cada vez mais se fazia sentir na minha alma, e suas palavras me
produziam tal efeito que, de bom grado, teria morrido para ir para o Céu, e
exclamei: “Oh! Jesus, essa pobre alma ligada a este vil e miserável corpo,
não podendo voar para Vós, bate as asas e se levanta com todas as suas
forças para chegar mais perto de Vós; ergue-se pelo espírito (quero dizer
com os pensamentos e afetos) porque este não está ligado ao corpo”. Assim,
fora de mim, pela consolação e cheia de temor, dirigi-me aos meus anjos do
Céu, que são testemunhas de todas estas maravilhas de Deus, e disse:
“pedi-lhe”; não são traços de um poder ilimitado, inspirado por um amor
infinito? Depois, voltando-me para Jesus, perguntei-lhe o que ele fez ao meu
coração que não posso mais governá-lo. Quer ir sempre para Jesus e eu não
posso impedi-lo. Não quer mais ser meu, deu-se todo a Jesus. E Jesus com
sua voz tão doce e penetrante me respondeu: “Eu venci!”Ah! Sim, sou feliz
em ter sido vencida por tanta bondade, por tanto amor. Viva Jesus!

Não foi em vão o meu pensamento de fazer com que Gema


escrevesse os assuntos de alguns de seus êxtases, porque assim
pude verificar que a serva de Deus se recordava perfeitamente de
tudo o que se tinha passado no êxtase, confrontando-o, com os
manuscritos em que as pessoas da casa tinham tomado nota de
todas as suas palavras, e eram exatamente as mesmas. Tive então
uma prova bem clara sobre a vitória que Jesus se gloriava de ter
ganho sobre a sua Gema. O leitor pode confrontar suas palavras
textuais com as das testemunhas transcritas já no capítulo XVII.
Todavia, as efusões mais ternas desta alma seráfica eram as que
tinham por objeto a Paixão do Salvador. Eis um exemplo:

Quem vos matou, Jesus? O amor. Ah! Estes pregos, esta cruz, este sangue
são obras do amor!
E enquanto o divino amante das almas derramava em seu espírito
torrentes de luz, para lhe desvendar os mistérios da redenção, e o
fogo no coração para infamá-la no amor, ela assim se expandia:

Oh! Jesus, que seria, se um dia?... Ah! Vítima de amor por Vós?... Sim,
meu Senhor Jesus, fazei que quando os meus lábios se aproximarem dos
vossos para beijar-vos, eu sinta o vosso fel. Quando meus ombros se
apoiarem sobre os vossos, fazei que eu sinta os vossos flagelos. Quando a
vossa carne se comunicar à minha na Eucaristia, fazei-me sentir a vossa
Paixão. Quando minha cabeça se encostar na vossa, fazei-me sentir os
vossos espinhos, e quando o lado se aproximar do vosso, abrasai-me em
vossas chamas... Que vos darei por todos os vossos dons, em me terdes
amado e levantado? Que podereis esperar de uma vil criatura? Dar-vos-ei
tudo o que de Vós tenho recebido.

Depois voltando a si exclama:

Minha alma bendize a Jesus, e não te esqueças jamais dos benefícios que
te tem feito, ama a este Deus que tanto te ama e eleva-te para Ele, que se
abaixou até a ti; mostra-te a ele, como se mostrou a ti; sê pura; sê perfeita;
ama a teu Jesus que te ergueu de tanta miséria, ama a teu Deus, bendize ao
teu Senhor.

E Jesus, mostrando comprazer-se, insistia para que ela o amasse


cada vez mais, e compreendesse bem que o amor se prova pelo
sacrifício. Gema continua:

Então, Jesus, para aprender a amar é preciso aprender a sofrer? Ah! Bem
vejo agora que o derramar do vosso sangue é efeito do amor. Pois bem,
Jesus, se me quiserdes, eu me ofereço como vítima; no mesmo cálice em
que molhastes os vossos lábios, quero eu beber também. Agradeço-vos, ó
Jesus, por me terdes assim sobre a cruz.

Que direi da inefável simplicidade que quase sempre


acompanhava estes sublimes afetos? Não leveis a mal, leitor, que
embora a custo de alguma repetição eu vos faça ouvir esta seráfica
jovem, pedindo a seu Deus que lhe tire aqueles sinais exteriores dos
estigmas, que não podia ocular aos olhos dos estranhos, e que lhe
faziam sofrer tantas angústias:

Que me direis, Jesus, dar-me-eis esta consolação? Tendes-me dado tantas


graças, e a mais necessária – note-se, a mais necessária – Vós me
recusareis? Se for assim, quando me perguntardes: Gema tu me amas? Eu
vos direi que não. Ao menos quando vos tiver instado tanto que ficareis
cansado da minha importunidade, então me direis: Sim, eu te concedo a
graça.

A estas ingênuas palavras, o amoroso Senhor parecia sorrir e ela


cada vez mais animada pelo amor, continuava:

Estais sorrindo, ó Jesus, mas eu não estou sorrindo. Meu bom Jesus,
concedeis-me a graça? Se não, isto vai acabar mal. Dizei-me depressa que
sim. Não olheis para os meus merecimentos, olhai para os merecimentos de
quem vos pede por mim.

O Senhor lhe assegurava que ao menos a satisfaria em parte, o


que de fato aconteceu, e ela lhe agradeceu assim:

Parecia-me impossível que Vós não me atendêsseis. Bravo Jesus!

Dito isto, alegre e risonha, saiu do êxtase.


Deixo de fazer outras citações, podendo o leitor vê-las por si
detidamente no volume que publiquei com o titulo de Cartas e
êxtases de Gema Galgani. Lendo-as, verás que, se pela elevação e
vivacidade de suas expressões são dignas de poder estar ao lado
de S. Maria Madalena de Pazzi e outros ilustres santos, têm porém
um caráter que os distingue e os torna únicos na hagiografia
mística, que é a simplicidade característica do espírito de Gema.
Eles mostram a que altura a graça pode elevar uma donzela tão
jovem, e como a majestade do Deus da inocência se compraz nas
almas simples cuja homenagem lhe é tão agradável. Ex ore
infantium perfecisti laudem.7
Acontece, às vezes, que as almas extáticas são atraídas para
Deus com tal impetuosidade que o corpo as acompanha, e tomando
quase a agilidade e ligeireza dos corpos gloriosos, deixa-se
transportar, ficando suspenso no ar. É o voo místico, o ponto mais
culminante daquilo que os teólogos denominam rapto, embora este
se dê sem que o corpo se eleve da terra. Nos raptos tão frequentes
da nossa Gema, sempre, calmos, espontâneos e majestosos, como
já disse, não faltou também esta forma, embora fosse raramente
observada pelas testemunhas.
Havia na sala de jantar da casa, suspenso na parede, um grande
crucifixo particularmente venerado pela piedosa donzela. Ela
entrava muitas vezes durante o dia nesta sala, sob pretexto de
arrumar aí qualquer coisa, e achando-se só, colocava-se diante da
santa imagem, de pé ou de joelhos, com os olhos fixos sobre ela.
Sentia então que o seu coração se inflamava e os mais profundos
pensamentos invadiam seu espírito; receando ficar extática,
imprimia um beijo repassado de amor nos pés do crucifixo e
apressadamente se afastava. Algumas vezes, porém, deixando-se
arrastar pela devoção, demorava-se mais; desejando melhor provar
o seu amor, beijando o sagrado lado de Jesus, cedia a esse desejo
e, enquanto pensava como alcançar aquela altura, ficava arrebatada
e sem nenhum auxílio humano, se levantava da terra8 e se achava
abraçada com seu Senhor Crucificado.
Quantas vezes este fato teve lugar não o poderia dizer porque
nunca tive a coragem de lhe perguntar. Assim se verifica que, de
quantos dons se encerram na teologia mística, nenhum deixou de
ser concedido pelo Céu a esta cara virgem, nos breves anos da sua
vida mortal.
Mas temos ainda muito que ver.
Numa dessas visitas repassadas de amor àquele devoto crucifixo,
no mês de setembro de 1901, ela contou, por obediência, que
estando a preparar a mesa para o almoço, e tendo para isso muito
tempo, não fazia outra coisa senão girar em torno da imagem do
seu Jesus, como uma borboleta ao redor da chama.
Quanto mais o contemplava mais o seu coração se abrasava e
palpitava. Queria atirar-se a Ele para beijá-lo, e experimentou por
vezes sem o conseguir. Então exclamou:

Jesus, permiti que vos alcance, tenho sede do vosso sangue.

Como aconteceu a São Francisco de Assis e ao meu Santo Padre


Paulo da Cruz,9 a imagem se transformou na divina Pessoa que
representa; Jesus desprendeu da cruz seu braço direito e com
amoroso olhar convidou a sua fiel serva a se chegar a Ele. Gema se
atirou e o alcançou; Jesus a abraçou, aplicou-lhe os lábios à chaga
do seu Sagrado Lado, e Gema apertando-o com seus braços bebeu
a largos tragos até saciar-se naquela fonte divina, enquanto se
conservava em pé, como se pousasse sobre uma nuvem.
Quanto não quisera eu ter estado presente a esta cena, com uma
tela e pincéis para retratá-la! Meu Deus, que quadro não teria obtido
para deixar à posteridade e em prova do amor do meu Jesus para
com sua criatura, e da felicidade desta predileta virgem, tão
intimamente unida Jesus!
O êxtase que, afinal de contas, não é mais do que um grau mais
perfeito da contemplação, implica, pela sua mesma natureza, as
visões; porque a alma se acha nele levada fora dos sentidos,
enquanto o objeto que ela vê ou percebe, a atrai, satisfaz e
beatifica. Depois de tudo o que vimos até aqui, em três capítulos
distintos, sobre a contemplação de Gema, deve parecer quase inútil
que eu me demore em explicar ao leitor de que natureza eram nela
estas visões durante os êxtases. Repetirei somente que nelas não
se encontra nada de extravagante, de exagerado, de incoerente,
que possa fazer nascer alguma suspeita de que elas vinham da
imaginação. Não há nada que desdiga da santidade, da majestade
das crenças da nossa santa religião; antes, encontramos em toda
parte e sempre, dignidade, ordem, decoro e exatidão na verdade
dogmática.
Mais belo argumento do que este não se poderia desejar para
demonstrar que tais visões eram sobrenaturais e divinas: não é,
com efeito, possível que uma jovem, apenas com a instrução
recebida nas classes elementares, e que não lia livros quase nunca,
nem de ordinário ouvia práticas e sermões, conseguisse, só com a
imaginação, coordenar tão bem as coisas a ponto de nunca cair em
algum erro.
E basta por ora este breve aceno, pois tratarei mais difusamente
este assunto numa comprida dissertação, que darei como apêndice
desta biografia.10 Acrescentarei somente o que aliás não seria
necessário, depois de tudo o que dissemos quanto à humildade da
serva de Deus, que sobre tudo o que ela via e ouvia nos êxtases
sabia guardar rigoroso silêncio, diferenciando-se assim de tantas
almas levianas e facilmente iludidas, que quereriam espalhar por
todo o mundo o que lhes acontece de extraordinário. Gema, pelo
contrário, se não fosse por uma verdadeira necessidade de direção,
nem aos próprios diretores o teria manifestado. É este outro sinal
bem evidente da origem dos seus êxtases e visões.
Diremos o mesmo dos celestes colóquios, certas palavras que, no
êxtase, Deus faz ouvir a alma com tanta clareza que, penetrando-
lhe até o mais intimo da alma, nela operam o que significam.
O apóstolo São Paulo chama-as: “palavras misteriosas”, Audivi
arcana verba e diz que são tão altas e sublimes que é impossível à
linguagem humana exprimi-las, quae non licet homini loqui:11 Gema
foi largamente favorecida com estes colóquios, não havendo quase
nenhum êxtases em que o Salvador não lhe fizesse ouvir a sua
divina voz. Nestes íntimos colóquios, ela tomava a menor parte; a
principal era dirigida pela divina Majestade.
Alguns destes discursos tinham por fim, como vimos, fazer
conhecer a santa virgem as grandezas de Deus; noutros os
desígnios de sua Providência, o estado de alguma alma em
particular, alguma obra que queria instituir na Igreja, ou algum abuso
a extirpar.
Ela, dócil à voz do divino Esposo, apenas saía do êxtase,
empregava todos os esforços, para cumprir a sua adorável vontade,
dirigindo-se às pessoas competentes.
Daí as suas cartas tão animadas: “Senhor Bispo, Jesus disse que
é de sua vontade que V. R. trate deste negócio ou que impeça outro,
e sem demora, se lhe quiser agradar.”
Um dia, em êxtase depois da Comunhão, viu a Nosso Senhor, que
lhe disse como outras vezes: “Ouvi-me, minha filha: deves
comunicar, em meu nome, grandes coisas ao teu diretor”.
A ingênua donzela pensando que o Salvador designasse seu
confessor ordinário, respondeu:
Meu Jesus, fazei-me uma caridade: não me mandes a ele; bem sabeis,
bom Jesus, que ele não crê em minhas imaginações.

Jesus replicou:

Não, eu te mando a teu pai. Ele por certo dará a meu coração à satisfação
que desejo. Dize-lhe que se não se fizer como eu ordeno, acontecerá isto; e
depois não haverá mais remédio.

No capítulo XXX, direi qual o objeto da mensagem divina.12


Rara é a carta escrita por Gema à seus diretores em que não faça
menção de algumas dessas locuções celestes; e os
acontecimentos, que ela certamente não teria podido conhecer, e
menos ainda prever por caminhos naturais, vinham inevitavelmente
provar-lhes a verdade. Muitas vezes, estes colóquios eram também
úteis instruções que o divino Mestre dava à sua predileta discípula
para instruí-la nos assuntos celestes, dirigi-la, a estimular no
caminho da virtude.
Já tenho dado vários exemplos, mas tenho tanto material sobre
este assunto que não acabaria tão cedo, se quisesse expor tudo.
Feliz Gema, que à semelhança dos apóstolos, mereceu ser
instruída pela própria Sabedoria Encarnada! É assim que se explica
como em poucos anos ela conseguiu elevar-se a tão alta perfeição.
Vamos agora falar das aparições. Objetivamente falando, não
diferem das visões; distinguem-se, porém, em se darem quase
sempre durante os êxtases, enquanto que as aparições acontecem
no estado natural, embora depois a alma maravilhada possa perder
o uso dos sentidos, como de fato acontecia sempre a Gema.
Quanto à presença de seu anjo da guarda, suave, familiar e
proveitosa, podia-se dizer que era contínua dia e noite. Já falamos
das aparições de outros anjos e santos do Céu, em particular do
São Gabriel das Dores, e das almas do Purgatório. Nelas tornarei a
falar ainda oportunamente. Mais ainda das aparições do Santo dos
Santos, Nosso Senhor Jesus Cristo, principalmente sob a forma de
Redentor, sofrendo. Ah! Não perca o leitor de vista estas ternas
aparições de Jesus, que já temos referido, e prepare-se para ver
outras ainda mais tocantes.
Agora quero falar mais particularmente sobre as de Maria
Santíssima. Gema amou sempre com a maior ternura a esta
celestial Rainha dos anjos, à qual com a mais intima confiança
chamava “minha querida Mamãe”. Tendo ficado órfã desde os mais
tenros anos, habituou-se, desde então, a não ter outra mãe senão
Maria, e mostrou-se sempre para com ela a mais dedicada e
afetuosa filha. Depois de Jesus, o seu coração pertencia todo a ela.

Como eu amo a minha Mamãe! – dizia. Ela bem o sabe, foi Jesus quem me
deu, e Ele me ordena que a ame muito: como esta Mãe celeste se tem
mostrado sempre boa para mim! Que seria de mim sem ela? Seu auxílio
sempre me valeu em todas as minhas necessidades espirituais, preservou-
me de tantos perigos; livrou-me das mãos do demônio, que vinha sempre
afligir-me; desculpava-me com Jesus quando eu O ofendia; acalmava-O
quando eu O irritava com minha má vida, ensinava-me a conhecê-Lo e a
amá-Lo, a ser boa e a agradar-Lhe. Ah! Minha querida Mamãe, eu vos
amarei sempre, sempre.

Estas e outras expressões da mais viva ternura estavam


continuamente nos lábios da piedosa jovem, e eram sempre
repetidas nas cartas que escrevia. Por ventura podia a terna Mãe
deixar de corresponder centuplicadamente a tão filial afeto?
Gema se consagrou a Maria, e Maria se deu inteiramente a Gema.
Para lhe mostrar quanto a amava, além dos inúmeros favores que
lhe obteve do seu Divino Filho, dignou-se aparecer-lhe
sensivelmente muitas vezes, permitindo-lhe vê-la a seu lado,
acariciando-a e apertando-a a seu peito materno. Deixemos que a
própria Gema nos descreva estas finezas do amor de Maria,
ninguém o poderia fazer melhor do que ela, que as recebeu:

Quem poderia imaginar – escreve ela dando conta de sua consciência –,


que minha querida Mamãe viesse esta noite visitar-me? Eu não poderia ter
este pensamento porque julgava que o meu mau procedimento não o
permitiria. Porém, ela teve compaixão de mim. Senti um grande recolhimento
interior, depois, como me acontece muitas vezes, perdi os sentidos e achei-
me com Nossa Senhora das Dores. Que felicidade nestes momentos! Que
doçura envolveu o meu coração em tão belos instantes! Explique-o quem
puder. Parece-me que depois da minha primeira comoção, ela me tomou ao
colo, me fez repousar a cabeça sobre seus ombros, e assim me conservou
por algum tempo. Meu coração, naquele momento, se sentia contente e feliz;
nada mais tinha a desejar. “Não amas senão a mim?”, perguntava-me ela de
vez em quando! Oh! Não, lhe respondi, mais do que a vós amo a outra
pessoa. ‘Quem?’, fingindo não saber. É a uma pessoa que é tão querida,
mais querida que todas as outras; e eu a amo tanto que daria já minha vida
por Ele; por Ele não me importa mais meu corpo. “Mas, dize-me quem é?”,
tornava a perguntar-me impaciente. Se vós, minha Mãe, tivésseis vindo
ontem à noite, tê-lo-ia achado junto de mim. Eu vou procurá-lo todos os dias
– referia-se à Sagrada Comunhão – e iria mais vezes se pudesse. Mas
sabeis, minha Mamãe, por que faço assim? Porque Ele quer ver se,
conservando-se longe de mim, sou capaz de me esquecer d’Ele. “Mas quem
é?”, insistia Maria. “Dize-me quem é?”. Não, não vos direi, acrescentava.
Vede, querida Mamãe. Ele se parece convosco na beleza; seus cabelos tem
a cor dos vossos. “Mas, minha filha, dize-me de quem entendes falar?”Eu
exclamei em voz alta: Não me compreendeis? Entendo falar de Jesus, de
Jesus. “Repita ainda mais alto”, me disse a celeste Mãe; depois, olhando
para mim com um terno sorriso, apertou-me com amor ao seu coração e
acrescentou: “Ama-o, ama-o muito; mas ama somente a Ele”. Não duvideis,
respondi, ninguém no mundo poderá receber meu amor, só Jesus. De novo
me abraçou e me pareceu beijar minha fronte. Depois acordei – quer dizer,
saiu do êxtase –, e me achei estendida no chão, com o crucifixo perto.

Que direis, leitor, desta cena? Quanto a mim, há seis anos que a
ouvi pela primeira vez da boca de Gema, e que a leio e releio em
seus escritos e, entretanto, parece-me sempre tão nova e tão
tocante!
Eis aqui outra do mesmo gênero:

Estava deitada na cama, porém ainda acordada, quando me pareceu ver


uma bela Senhora, que se aproximava e se inclinava para mim e me
abraçava. Fiquei arrebatada e fora deste mundo. Fiz logo mil protestos
(conforme vossas ordens!). Mas minha celeste Mãe – porque era ela, embora
Gema mostrasse dúvida no começo –, olhou para mim, sorriu-me e me disse:
“Querida Filha!” Meu pai, perdoe-me se cedi tão depressa e me entreguei à
minha Mamãe, que me tomou nos seus braços. Pensei morrer, morrer pelo
excesso de felicidade! Que carícias! Ela me quer tanto!... Disse- me que tinha
vindo buscar o meu ramalhete. O Senhor entende? Achou-me bem pobre e
animou-me à prática das virtudes, principalmente da humildade e da
obediência. Proferiu mais algumas palavras que eu não compreendi, e depois
acrescentou: “Minha filha, purifica e aperfeiçoa a tua alma, e depressa!”. Não
sei o que aconteceu então; mas essa palavra, depressa, produziu um abalo
tão violento em meu coração, sobre o qual minha Mãe pôs a sua bela mão,
que eu não podia falar. Pedi-lhe interiormente uma explicação, abri os olhos,
interrogando-a assim, e ela respondeu: “Dize ao teu pai – que era o diretor –
que se não pensa em ti – para encerrá-la em um convento – eu te levarei
depressa para o Céu”. Beijou-me dizendo: “...depressa, mais depressa ainda
do que ele julga, estaremos juntas”.

Assim aconteceu, e disto sinto ainda o remorso; em menos de um


ano, Gema, contra toda a expectativa, adoeceu e passou para a
melhor vida.

Ó meu pai, meu pai... depois dessas aparições, como se despreza o


mundo! Não sei se já tem experimentado. Oh! Como é bela minha celeste
Mamãe! O Senhor já a viu? Apesar de tê-la visto muitas vezes, sempre
desejo vê-la de novo.

Em uma ocasião (e volto a Jesus para terminar com Ele o


presente capítulo) a Santa Mãe lhe apareceu com o divino Filho nos
braços, sob a forma de um encantador menino, e o colocou no colo
de Gema, que o apertava ao coração, tremendo e cobrindo-o de
beijos ardentes; o divino Infante lhe retribuía as carícias do mesmo
modo e, dando-lhe instruções de suma sabedoria, acabou por dar-
lhe a sua benção. Então, voltou para os braços de sua Mãe, e a
visão desapareceu. Não poderei dizer quantas vezes se deu este
prodígio, mas ao menos de três tenho certeza e bem clara memória.
Noutras quatro vezes, o Senhor lhe apareceu sozinho, sob a forma
de um terno menino. Ela mesma nos narrou esse fato prodigioso.

Ontem à noite, retirei-me para o meu quarto, e ali estava só, quando o
Menino Jesus veio procurar-me. Oh! Quanto Jesus é belo! Se todos o
conhecessem, quanto O amariam! Assentou-se sobre os meus joelhos,
beijou-me, acariciou-me, e perguntou-me se eu O amava. Eu O abracei e
beijei ternamente, expandindo todo meu amor, pois é tanto o amor que lhe
tenho! Perguntou-me se queria ser toda sua. Eu estava tão comovida pela
alegria que não sabia responder, e me conservava abraçada com Ele.

Detenhamo-nos para contemplar esta cena inefável. Esta virgem é


uma pobre filha de Adão. Este personagem que pouco antes vistes
na forma de um crucifixo, e agora com a humilde aparência de um
menino, é o Deus de Majestade, o Verbo Encarnado que se digna
abaixar-se tanto e deixar-se apertar ao peito de uma criatura,
pedindo de ser amado por ela!
Oh! Mistério da Encarnação e do amor de um Deus, quanto sois
sublime! A extática de Lucca mediu, ouso ainda dizer, esta
grandeza; porém, não se mostrou acabrunhada, muito pelo
contrário, como continuaremos a ver.
Gema continua:

Então eu comecei a falar com toda confiança. Pedi a Jesus para vos dar a
vós, meu pai, e também ao meu confessor, o conhecimento do que se passa
em minha alma, e não me deixar mais na inquietação sobre este ponto.
Jesus sorria e me dizia: “Eu o farei”. Mas falou em voz baixa e devagar. Pedi-
lhe que não se demorasse tanto, porque eu não tinha vontade de esperar
mais. Jesus replicou: “Mas se eu te tenho amado mais do que a muitas
outras criaturas, apesar de seres pior do que elas! Quanto a verdade do que
se opera em tua alma, já está reconhecida por quem a devia conhecer; para
outrem, não é ainda tempo, mas virá o tempo em que eles a reconhecerão.
Sou eu, Jesus, que te falo”.

Este inefável colóquio durou uma hora inteira. Gema termina


assim a sua narração:

Jesus se retirou, e eis-me de novo inteiramente só. Diga-me, meu pai,


estimais que Jesus volte para mim? Se o senhor ficar satisfeito, Ele voltará
com certeza. Abençoe-me muito. Mande Jesus de novo, porque sem Ele não
posso viver.

A esta comovedora carta, eu não respondi; mas com o coração


profundamente enternecido, exclamei comigo mesmo:

O amor fez perder felizmente o juízo a esta seráfica jovem. Ela sabe que
está unida com o seu Deus por um vinculo indissolúvel, e continua a desejá-
lo ainda ansiosamente. Somente quem ama muito, é que pode pensar e falar
deste modo.

1 Para Santa Teresa “[...] arroubo, ou enlevo, ou voo que chamam de espírito, ou
arrebatamento são uma só coisa”. E “[...] o arrebatamento vem com um único indício que
Sua Majestade dá no mais profundo da alma, com uma velocidade tal que ela tem a
impressão de ser arrebatada para sua própria parte superior e sair do corpo”. In: Santa
Teresa de Jesus. Obras completas, São Paulo: Loyola, 1995, p. 125 e 801 – NC.
2 Sl 83, 3 – “Meu coração e minha carne exultam pelo Deus vivo”.
3 “Assim ocorre com a alma, que parece produzir de si uma coisa tão rápida e tão
delicada que se eleva à sua parte superior e vai aonde o Senhor quer que vá”. In: Santa
Tresa de Jesus. Obras Completas, São Paulo: Loyola, 1995, p. 801 – NC.
4 Hora Canônica do Breviário Romano, na forma extraordinária do Rito Romano. Nas
reformas promovidas após o Concílio Vaticano II, a Liturgia das Horas, é chamado de
Ofício das Leituras – NC.
5 Devoção eucarística surgida durante o período da Contra-Reforma, especialmente
divulgada por Santo Antonio Maria Zaccaria, fundador dos Clérigos Regulares de São
Paulo, conhecidos como Barnabitas e das Irmãs Angélicas de São Paulo. Consiste em
expor o Santíssimo Sacramento, durante quarenta hora ininterruptas, em honra das horas
que permaneceu Nosso Senhor no sepulcro, em espírito de reparação – NC.
6 Os êxtases de Santa Gema, atualmente publicados também com o nome de Colloqui
com Gesù.
7 Sl 8, 3. “Da boca das crianças e dos pequeninos sai um perfeito louvor [...]”.
8 Levitação: “Como indica o nome, consiste este fenômeno na elevação espontânea,
momentaneamente o deslocamento no ar do corpo humano sem apoio humano e sem
causa natural visível. Regularmente, a levitação mística se verifica sempre estando o
paciente em êxtase. Se a levitação é pouca, se costuma chamar êxtase ascensional. Se o
corpo se eleva a grandes alturas, recebe nome de voo extático. E se começa a correr
velozmente sobre o chão, mas se tocá-lo, constituí a chamada marcha estática”. In: Royo
Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana, Madrid: BAC, 2001, p. 948-949 – NC.
9 O Pai São Paulo da Cruz, conforme ele mesmo contou, em uma sexta-feira Santa,
diante do Altar do Santíssimo Sacramento, na transposição: “Então, o Santíssimo Crucifixo
diante do qual orava desprendeu o braço da cruz e me abraçou forte, me colocando no seu
Santíssimo Lado, onde me teve por três horas, e me parecia estar positivamente no
Paraíso”. In: Calabrese, Antonio. La vita mística di San Paolo della Croce, Vaticano: LEV,
2001, p. 105 – NC.
10 A versão brasileira não apresenta estes apêndices – NC.
11 2Cor 12, 4 – “Que não é permitido ao homem repetir [...]”.
12 Trata-se da visão dos castigos divinos – NC.
CAPÍTULO XXVII

A SAGRADA EUCARISTIA:
GEMA E SUA EXTRAORDINÁRIA DEVOÇÃO

Guiada pelo Espírito Santo no caminho da santidade, a nossa


Gema soube abraçar o que nele se encontra de mais sólido e
perfeito. Sem dúvida, todas as práticas de devoção usadas na Igreja
lhe agradavam, e ela se regozijava em vê-las usadas por grande
número de fiéis. Mas para si não queria senão algumas que
estavam mais em relação com as disposições de seu espírito. Estas
eram a Santíssima Humanidade do Verbo Encarnado e a sua
Paixão, a Mãe de Deus e suas Dores, e o mistério da Sagrada
Eucaristia.
A primeira enternecia-lhe o coração e a estimulava ao sacrifício; a
segunda a confortava, inspirando-lhe uma confiança filial; já a
terceira, alimentando e saciando a sua alma, a tornava capaz de
levar neste mundo uma vida celestial.
Nos capítulos precedentes já falamos do culto verdadeiramente
extraordinário que ela tributava àquelas duas primeiras devoções,
resta-nos agora falar da última.
Tenho sobre este assunto tão grandes maravilhas a referir, que
basta para fazer crer que o Senhor suscitou essa piedosíssima
donzela, nos tempos presentes de tanta indiferença com especial
Providência, para servir aos cristãos de modelo e animação no
respeito e amor para com o Santíssimo Sacramento.
A Eucaristia é o mistério da fé por excelência, “mysterium
fidei”.1Nos outros mistérios, a razão humana pode achar mais ou
menos onde se apoiar, porém neste, é só a fé que lhe pode
descobrir o tesouro que encerra.
Gema não só possuía a mais viva fé como parecia chegar até a
evidência. Ademais, tinha o coração puro – e o Senhor disse que
aqueles que têm o coração casto e puro o verão. Ela era simples e
humilde como uma criança, e o Senhor prometeu que a essas almas
Ele descobrirá os segredos de sua sabedoria e bondade. Assim,
com o olhar claro e penetrante da virgindade, simplicidade e pureza
imaculada, era tão viva a luz que, nas suas altas contemplações, o
Senhor lhe infundia o que ela via atrás do véu deste Sacramento, e
media a extensão e profundidade dos mistérios nele encerrados.
Nós, para entrarmos em comunicação com Deus oculto na
Eucaristia, precisamos nos recolher e fazer atos interiores de várias
virtudes. Para Gema, era suficiente lembrar-se dele (e nem de se
lembrar carecia, porque o tinha sempre presente no espírito), para
vê-lo claramente no altar, para onde o seu pensamento
continuamente se dirigia; e sentindo-o, ali, com todo o seu ser, com
a mente, o coração e até com os próprios sentidos corporais,
alegrava-se em extremo diante de tão excelsa e amável majestade.
Para se poder formar uma justa ideia do ardor de sua devoção,
seria necessário ouvir o que a bem-aventurada donzela nos dizia,
ler suas cartas e tudo o que as testemunhas de seus êxtases
guardaram de seus colóquios nesses momentos. Por certo, ninguém
melhor do que ela mesma nos poderá fazer conhecer os sublimes
pensamentos que Deus lhe dava sobre este mistério, e os celestiais
afetos em que, sem cessar, se exercitava a sua alma.
Ouve, pois, ó devoto leitor, e longe de sentir tédio, ser-me-ás muito
agradecido, se da abundante matéria que debaixo dos três capítulos
referidos pude recolher, e conseguir apresentar-lhe uma sucinta
escolha de documentos edificantíssimos.
Começo pelas considerações, ou pela opinião que a devota virgem
tinha da Sagrada Eucaristia:

Meu Pai – escreveu-me ela –, esta carta vos parecerá sem sentido; não
importa; deixe-me falar da Sagrada Comunhão, não posso mais deixar de
expandir-me. É possível que haja almas que não compreendam o que é a
Sagrada Eucaristia? Que sejam insensíveis aos apelos divinos, das
misteriosas e ardentes efusões do Sagrado Coração do meu Jesus?

Escrevendo a uma senhora de Roma, sua amiga íntima, assim se


exprimia:

Quanto é suave o espírito de Jesus! Que poderá ter impelido Jesus a


comunicar-se a nós de um modo tão tocante e admirável? Meditemos: Jesus
nosso alimento, Jesus nosso alimento! Quanto eu quereria falar a respeito
dele! Mas não posso; só consigo chorar e repetir: Jesus, meu alimento!, e
pensar que Jesus fez assim pelo grande amor que nos tinha!

As lágrimas da santa donzela, tão suaves e espontâneas, corriam


continuamente, e para se servir de sua própria frase, era “um pranto
silencioso de reconhecimento e felicidade celeste”.
Num êxtase, ela exprimiu deste modo a Deus, sua ventura e a sua
gratidão:

Reconheço que vós não me destes riquezas temporais e perecedoras, mas


sim, a verdadeira riqueza que é o alimento eucarístico do Verbo. Que seria de
mim se não dedicasse à Sagrada Hóstia todo o meu amor? Oh! Sim,
compreendo, Senhor, que para me fazer merecer o paraíso dos Céus, Vós
vos dais a mim na aqui na Terra.

Gema parecia até não distinguir as delicias do Céu, das do


“paraíso de Jesus”, que na Terra se gozam no banquete divino.
Outras vezes, também em êxtases, chamava a Eucaristia de
“Academia do paraíso, onde se aprende a amar”, e explicando o seu
pensamento continuava: “A escola é o Cenáculo, e as doutrinas são
a sua carne e o seu sangue”.
Por estas palavras e outras semelhantes, pode-se avaliar quais os
tesouros de sabedoria celeste que ela via no mistério do alimento
Eucarístico. Mas continuemos, devendo consagrar todas as páginas
do presente capítulo a este assunto do elevadíssimo conceito que a
nossa Gema fazia do Santíssimo Sacramento.
Embora esta virgem pensasse continuamente, e a todo momento
estivesse em espírito diante do Sagrado Tabernáculo, não ficava
contudo satisfeita, a não ser quando lhe era possível ir
pessoalmente à Igreja adorar o seu Deus desconhecido.
Para evitar a singularidade que sempre detestou, contentava-se
com ir à Igreja duas vezes no dia: de manhã, para a santa missa e a
Comunhão, e à tarde para a adoração pública:

Vou ver Jesus! Vamos a Jesus porque ele está só, ninguém pensa n’Ele...
pobre Jesus!

Chegando à Igreja com toda naturalidade e modéstia, voltava-se


para o Sagrado Tabernáculo, e sem pensar em coisa alguma
estranha, nem se estava só ou não, e, como se nada mais houvesse
ali, senão o altar do Santíssimo Sacramento, nele fixava os olhos e
ficava rezando imóvel, de joelhos.
Além desta atitude, da animação do semblante, e das lágrimas
que suavemente lhe deslizavam pela face, não fora possível
distingui-la de qualquer pessoa que devotamente estivesse entregue
à oração. Mas quem pudesse ver a sua alma, a tomaria por um
serafim celeste.

Oh! Quanto é grande a alegria e felicidade do meu coração diante de


Jesus-Hóstia. Se Jesus me permitisse entrar no Santo Tabernáculo onde Ele
reside em alma, corpo, sangue e divindade, não estaria eu no Paraíso?

Voltando depois para o próprio Deus Sacramentado, dizia-lhe:

Jesus, alma de minha alma, meu paraíso, Hóstia santa, eis-me aqui. Senti
que me procuráveis e corri.

Depois, com filial confiança, acrescentava que vinha fazer-lhe


companhia, oferecer-se toda ao seu amor, fazer-lhe presente de
algumas pobres virtudes, praticadas por seu amor, receber as novas
ordens que lhe aprouvesse dar, ou ao menos ouvir de sua boca
algumas ternas palavras, e sobretudo pedir-lhe amor e mais amor.
Com que fervor não se expandia assim a sua alma! As palavras
seguintes, proferidas por ela no êxtase, no-lo fazem compreender:

Eis-me diante de Vós, ó Jesus. Apresento-vos a minha alma, esta alma, ó


Jesus, que criastes imortal, que santificastes, purificastes pelo santo
batismo...

Aqui, Gema se cala, continuando a desenvolver o seu


pensamento; depois continua:

Se neste mundo o bem se faz amar por si mesmo, que amor não inspirareis
Vós, que sois o Rei dos bens? O prazer que dão às criaturas na Terra é tão
diferente do que se goza em Vós, que sois o Criador! Vede, ó Jesus, quando
uma criatura pretende ter um objeto, ela morre de desejos de possuí-lo; mas
quando o obtém não se sente satisfeita, não se sacia. Só Vós nos satisfazeis,
Vós só tornais puros e imaculados os que vivem em Vós e nos quais
estabeleceis a vossa morada.

Estas reflexões a comovem:

Ah! Eu achei vossa habitação. Ó meu Jesus, Vós viveis nas almas que
criastes à vossa imagem, nas almas que vos procuram, Vos amam e Vos
desejam. Oh! A minha alma, tão pobre, compreendeu as riquezas do vosso
amor.

Depois, humilhando-se, como fazia sempre no meio das mais


suaves comunicações celestes, dizia:

Sou vossa, sou vossa, ó meu Jesus, mas tereis razão de vos queixar de
mim porque vos ofendi. Indigna, como sou, deveria restituir ao altar tantas
hóstias e tanto sangue que tenho roubado. Mas vos prometo emendar-me,
basta que continueis a corrente das vossas graças. Antes morrer do que
faltar a fidelidade e ao amor. Que quereis, que quereis de mim, ó Jesus? Que
meu amor seja constante? Alimentar-me-ei todos os dias da vossa carne e do
vosso sangue.

Uma vez a ouviram dar graças das vitórias ganhas contra o


inimigo, nos termos seguintes:

Esta manhã vencestes, ó Jesus. Depois de Vos ter hospedado em minha


alma, pus-me a considerar as grandes batalhas que, com o vosso auxílio,
tenho vencido contra o demônio. Contei tantas! Quem sabe sem a vossa
proteção como teria vacilado minha fé, minha esperança e caridade? Minha
inteligência ter-se-ia escurecido se Vós, sol eterno, não a iluminásseis.
Quantas vezes o meu amor se teria entibiado, sem o conforto de vossas
carícias? E minha vontade, quantas vezes não se entregaria à preguiça? Mas
o vosso amor a inflamava. Bem reconheço que foi tudo obra do vosso amor,
vitórias do vosso infinito amor. E à vista de tudo isto, ó meu Senhor, não
deverei ser-vos agradecida?

E insistindo com expressões mais vibrantes sobre este terno


pensamento, exclamava:

Meu Deus, abri-me o vosso coração. Ó Jesus, abri-me o vosso peito


sacramentado que quero nele depositar todo o meu amor! Quanto vos amo,
meu bom Jesus! Mas por que me tratais com tanto amor, quando vos tenho
ofendido com tanta ingratidão? Só este pensamento me deveria transformar
numa chama de fogo, se eu o compreendesse bem! Na verdade é belo e
consolador amar-se a quem não se irrita contra quem o ofende! Ó Jesus, se
eu fizesse sérias reflexões sobre os extremos da vossa bondade para
comigo, como deveria distinguir-me na prática de todas as virtudes? Perdoai-
me, ó Jesus, minha grande negligência, perdoai minha ignorância! Meu Deus,
Jesus, meu amor, meu bem incriado, o que seria de mim se vossa solicitude
não me tivesse conduzido para Vós? Abri-me vosso coração, Jesus, abri- me
vosso peito sacramentado, que eu vos abro o meu!

Depois destas efusões, onde repete sempre o mesmo pensamento


sob formas sempre novas, Gema, parecendo cansada, fica
silenciosa; uma luz celeste desce ao seu espírito e a eleva para uma
altíssima contemplação. Neste estado sublime, Jesus lhe fala e lhe
faz sentir no coração; quanto lhe é agradável aquela visita, em que
Ele acha uma compensação ao desconhecimento da maior parte
dos homens, e aos ultrajes que recebe dos pecadores, louva a sua
fidelidade e declara-se contente com ela, sempre pronto a favorecê-
la com novas graças e a enriquecê-la com novos dons, e a anima a
ser constante, pagando-lhe amor com amor.
A estas palavras, o coração da santa donzela se abrasa cada vez
mais e, continuando a falar, depois de uma humilde confissão de
sua indignidade, exclama:

Quereis amor, ó Jesus, mas não tenho mais no coração. Ah! Eu quisera
inflamá-lo em todas as criaturas do universo.

Querendo dar-lhe uma prova dos seus sentimentos, com infantil


confiança, lhe propõe o seguinte:

Demos o caso, Senhor, que Vós fosseis Gema e que eu fosse Jesus;
sabeis o que eu faria? Eu deixava de ser Jesus para que Vós o fôsseis. Oh!
Deus! Oh! Jesus, eu vos vejo maior que todos os tesouros da Terra! Como de
bom grado eu me uniria aos vossos anjos! Como satisfeita eu me desfaria em
vossos louvores! Como contente ficaria, sem cessar, diante de Vós! Mas que
digo, quando falo de Vós? Digo o que posso, mas não o que devo. E já que
não sei falar, devo calar-me? Não, porque o meu Jesus deve ser amado e
honrado por todos. Não olheis para o que vos digo, mas para o meu interior.
Todos os meus segredos vos são manifestos, meu bom Jesus; tendes agora
certeza de que eu vos amo mais do que tudo no Céu e na Terra?
Estes e outros semelhantes sentimentos se sucediam no coração
da jovem virgem na presença do seu Deus sacramentado. Tenho
ainda centenas deles, fielmente conservados e recolhidos de seus
lábios, que eu poderia continuar a transcrever, mas como fazê-los
caber em um só capítulo?
Avalie-os o leitor, por estes extratos que lhe tenho dado.

Ah! Não posso mais sustar-me, não posso, pensando que Jesus se fez
sentir a última de suas criaturas, e se manifesta com todos os esplendores de
seu magnífico coração na prodigiosa expansão de seu amor paterno.

E dizendo isto, caía desmaiada nos braços de sua companheira,


que prevendo estes casos, sabia tão bem arranjar as coisas que
ninguém na Igreja jamais percebeu o que acontecia.
Uma vez entre outras, voltando a si depois do desmaio, com
ingênua candura disse:

Meu amado Jesus, mas se procedeis deste modo com todos, isto é, deste
modo a se sentirem assim inflamados na vossa presença, como me
acontece, ninguém mais poderá opor-se a Vós, nem resistir a este extremo.

Recomendei-lhe uma vez, escrevendo-lhe, que quando estivesse


diante de Jesus me recomendasse também a Ele e lhe assegurasse
que eu também queria amá-Lo.
Eis a resposta desta pomba:

Posso eu fazer isso, meu pai? E se vos acontecesse como a mim? Quem
vos poria a mão sobre o coração, – queria dizer, para reprimir os ímpetos de
amor, como se dava com ela –, e se estivésseis só e caísseis no chão? Não,
isso não devo fazer.

Quando ela sentia as primeiras impressões daqueles ímpetos


misteriosos, saía a toda a pressa da Igreja, como já disse,
principalmente se estava só.

Ah! – dizia – não sei como tantas pessoas que estão perto de Jesus não se
incendeiam. Quanto a mim, se eu me demorasse um quarto de hora apenas,
parece-me que ficaria reduzida a um monte de cinzas.
Num êxtase, ela dizia familiarmente ao Senhor:

Ouvistes, Jesus, que pergunta me fez o confessor: “Que fazes, Gema,


quando estás diante de Jesus?’ Que faço? Se estou com Jesus crucificado,
eu sofro, se com Jesus no Sacramento, eu amo”.

Escrevendo às pessoas amigas, convidava-as a ir para junto do


Tabernáculo, para encontrar-se com ela:

Corramos a Jesus, ao seu coração cheio de ternura, cheio de amor.


Amanhã, pela manhã, eu vos espero perto de Jesus. Fiquemos juntas diante
de Jesus Sacramentado e que Jesus nos abençoe a ambas.

A mim também, enviando-me o horário de cada dia, que com


empenho me comunicava, marcava em primeiro lugar a hora das
suas visitas ao Santíssimo Sacramento, de manhã e à tarde,
conforme as estações:

De manhã, com Jesus às 7 horas e à tarde, na presença de Jesus às 6


horas, por todo este inverno.

Dizia:

Vinde fazer-me companhia, e ajudar-me a amar ao nosso grande Deus.

Tinha também estabelecido o ajuste de trocar a Comunhão


quotidiana com as pessoas mais íntimas, e pela sua humildade,
julgava sempre que era em sua vantagem. Lembrava-se com
exatidão, e escrevendo a uma ou outra pessoa, lembrava-lhes o que
haviam combinado:

Adeus, até sábado. Recorde-se da Comunhão de sexta-feira!

Felizes, certamente, as amizades que se correspondem desse


modo aos pés do Pai comum, Deus. E feliz, Gema, a quem foram
revelados, com tanta clareza, estes adoráveis mistérios do Reino de
Deus.

1 “Mistério da Fé”.
CAPÍTULO XXVIII

A COMUNHÃO DE GEMA:
ATO DE EXTREMA PIEDADE

Apressemo-nos em chegar ao ponto culminante da devoção de


Gema à Sagrada Comunhão, onde, sobretudo, se revela o amor de
Jesus.
A ti, porém, ó Santa Virgem, que tantas vezes me abriste a tua
alma para mostrar-me as chamas que na mesa dos anjos o Esposo
divino te comunicava, recorro para que me alcances palavras
ardentes que exprimam os teus sentimentos.
Esta bendita donzela inflamada de amor girava em torno do
Tabernáculo, qual mariposa, pela fome e sede de que se sentia
consumir pelo corpo e sangue de seu Deus sacramentado. O seu
coração suspirava por esse alimento celestial. Já tivemos ocasião
de ver e admirar como, ainda criança, correu perigo de morrer de
ansiedade se não apressassem o dia da sua Primeira Comunhão e
com que fé ardente e amor esclarecido, ela, aos nove anos, recebeu
a Jesus sacramentado.
Posso acrescentar que tão grande fome e sede que já então a
abrasavam, longe de apagar-se com a Comunhão frequente, foram
sempre aumentando a acabaram por martirizar-lhe as entranhas.
Ela dizia:

Todas as manhãs recebo a Sagrada Comunhão, que é o maior e, até


mesmo, o único conforto que tenho, embora nada tenha com que possa
apresentar-me a Jesus. Esta prova de amor que Jesus me dá na Sagrada
Comunhão todas as manhãs, me comove de tal modo que atrai inteiramente
para si todos os afetos de meu coração miserável.

Depois exclamava:

Eis, ó meu Senhor, o meu coração e a minha alma, vinde, meu Senhor, que
eu vos abro o meu peito. Introduzi-vos, ó Fogo divino, queimai e consumi-me;
vinde, não tardeis mais. Quereria ser a esfera das vossas chamas.

Esta ansiedade começava a invadi-la desde a tarde e,


aumentando de hora em hora, a atormentava, embora suavemente,
durante toda a noite, até fazê-la desmaiar. Ouçamos as suas
próprias palavras:

A noite passada, e esta, pensando na Sagrada Comunhão, meu coração se


comoveu tanto que perdi os sentidos. Ontem, também antes de ir à ceia, fiz
algumas orações, entre as quais esta jaculatória: “Fazei, ó Senhor, que desta
modesta ceia eu passe a gozar de vossa própria Ceia (eucarística)”.
Demorei-me alguns minutos nesta consideração e logo me senti atraída para
Jesus (isto é, arrebatada!). Isto me acontece todas as vezes que penso em
Jesus, e em particular quando Jesus me convida a recebê-lo, e quando ele
me diz que vem para repousar em meu coração.

Esse fervor chegou a tal ponto que o confessor, para fazê-la


dormir algumas horas, julgou ser seu dever proibir-lhe, de propósito,
que pensasse durante a noite na comunhão do dia seguinte, pois de
outro modo, teria sofrido muito sua saúde.
De manhã, porém, ainda de madrugada, já ela não podia mais,
levantava-se logo, vestia-se em poucos minutos e estava pronta
para voar à igreja. Quantas vezes, estando eu hospedado nessa
casa de benfeitores do meu Instituto, fiquei comovido até às
lágrimas vendo Gema, muito cedo, já de pé, com o chapéu na
cabeça, muito recolhida, esperando na porta por sua companheira,
que saísse, para irem juntas à igreja!
“Então, para aonde vais, minha filha?” perguntava-lhe. “Para
Jesus, meu pai”.”Que vais fazer lá?”. Com um modesto sorriso
dava-me a entender a resposta: “O Senhor o sabe”. A sua
companheira me dizia: “Ao vê-la, parecia que cada manhã se
aprontava para ir celebrar suas núpcias, ou para me servir da
própria frase de Gema: ‘para ir à festa do amor de Jesus’”.
Não demonstrava exteriormente nada do que se passava em sua
alma, o que eu fiz notar várias vezes. Porém, quem tinha prática,
percebia perfeitamente que a mente e o coração dessa fervorosa
donzela estavam então numa atividade extraordinária. Era
impossível fazê-la falar, a não ser que a necessidade ou
conveniência a obrigassem. Já referi até como com o seu anjo da
guarda, quando lhe aparecia de manhã, ela não se queria entreter,
dizendo-lhe, com toda a confiança, que a deixasse livre, pois “tinha
outra coisa muito superior a que atender”.
Compenetrava-se de tal modo, concentrando toda a atenção na
grandeza do ato que se realiza no altar, que diante deste
pensamento todos os outros desapareciam de sua mente. Para este
fim usava de tão grande preparação.

Trata-se – dizia-me ela – de unir dois extremos: Deus, que é tudo, e a


criatura, que não é nada; Deus, que é a luz, e a criatura, que é trevas; Deus,
que é santidade, e a criatura, que é pecado. Trata-se de participar da mesa
do Senhor. Poderá haver preparação que baste?

A esta consideração, assustava-se a boa Gema, que só por si


nunca se teria aproximando da Sagrada Comunhão, por mais que
desejasse, se a sua viva fé não lhe inspirasse confiança. No tempo
da aridez, assim como no das consolações, e até mesmo no meio
das mais afetuosas comunicações com o divino amante, este
contraste agitava sem cessar seu coração, fazendo-a sofrer muito,
pelo que assim se queixava com o Senhor:

Sim, eu sei, ó Jesus, é melhor receber-vos que contemplar-vos, mas eu me


aflijo, porque penso, que ainda que eu levasse muitos anos em preparar-me,
como os anjos, nunca seria digna de vos receber. Oh! Jesus, mas gosto de
confessar a minha miséria na vossa presença. Ajudai-me Senhor! Ah! Eu
posso ainda lançar-me a vossos pés! Amo a fé, e mil vezes repito e repetirei:
É melhor receber-vos do que abster-me.

Esta frase lhe deve ter sido referida pelo próprio Jesus, como é
fácil de supor. Assim, a confiança, alternando com o temor, e o
temor com a confiança, estabeleciam no coração desta virgem o
equilíbrio necessário para comungar diariamente.
No dia em que se celebrava a festa do mártir São Lourenço,1 ela
que de tudo sabia tirar vantagem para o seu espírito, disse ao
Senhor:

Mas meu querido Jesus, que confusão para mim esta manhã! Quisestes
que eu voltasse meu pensamento para São Lourenço. Confundo-me,
considerando-o no meio de tantas dores, e eu com a hóstia, gozando as
doçuras do Paraíso. Oh! Coração do meu Jesus, coração excessivamente
bom, se me quereis dar uma boa parte deles – refere-se aos sofrimentos de
São Lourenço –, dai-me a: basta só que eu me aproxime sempre de Vós com
receio de ofender-vos. Confrontei duas almas, a de um santo, e a de uma
pecadora. Posso deixar de ficar confundida? Quereria, por intermédio do
mesmo santo, oferecer-vos esta minha alma tão pecadora. Mas tenho medo,
tenho medo, porque reconheço que ela é culpada diante de Vós. Quem me
dera a mostrar-vos bela, como a recebi das vossas mãos!

Escrevendo a seu diretor, dizia:

O que me dá algum cuidado é que a Comunhão frequente, este Pão


angélico, não tem comunicado à minha alma aqueles dons que a outras
almas concede abundantemente. Reconheço que o mal está em serem as
minhas virtudes tão fracas e em chegar-me a Jesus sem nenhum
merecimento. Eu já podia ter chegado hoje a um grau adiantado, mas em vez
disto, tenho voltado para trás, com prejuízo de minha pobre alma. Às vezes,
meu pai, creia no que lhe digo, tremo, tremo e fico vermelha, vermelha
quando penso que sendo impura, vou receber a Jesus, que é a pureza por
essência. Mas Jesus, meu caro Jesus, ama-me mesmo assim, e
continuamente se faz sentir na minha alma.

Eis de que modo a nossa Gema se dispunha a receber a


Comunhão, e com que sentimento de fé, abandono, desejo, amor e
sobretudo de humildade, ela se aproximava.
Como admirar, pois, se os frutos que ela colhia, longe de serem
mesquinhos, como ela dizia, eram abundantes e preciosos? Como
nos maravilhar de que o Senhor mostrasse comprazer-se tanto com
as comunhões de sua serva? Ele se fazia sentir tão claramente em
seu coração, como ela costumava dizer, naqueles dulcíssimos
instantes, enchendo-a de tanta consolação, suavidade e paz, que da
alma passando também para os sentidos corporais, a beatificava em
todo seu ser. As próprias Sagradas Espécies, produziam em seu
paladar uma sensação deliciosa. Ela as sentia descer em seu peito
como um bálsamo. Algumas vezes o divino amante lhe fez também
sofrer a impressão e o gosto do sangue na Comunhão. Suas
palavras:

Ontem, dia da Purificação, depois da Sagrada Comunhão, senti a boca


toda cheia de sangue; como era bom! Que bem me fazia! Apertei com força o
estômago para que descesse todo no coração. Se soubésseis meu pai, como
Jesus sabe consumir-nos! Tive esta graça (pela primeira vez) no mês de
outubro, de sexta-feira ao meio dia, até a seguinte – isto é, por oito dias
contínuos –, depois passou-me. Esta manhã foi-me de novo concedida, mas
extenua-me, sinto-me morrer continuamente. Jesus me desfaz; mas qual não
é a consolação que sinto? Meu pai já gozou desta sensação de consumido?
Como é suave! Esta manhã o fogo do coração me subiu até a garganta. Viva
Jesus! Ouvi, meu pai, se Jesus quiser que eu continue neste estado, não
poderei resistir senão alguns meses, e quem sabe se tanto.

Se Jesus se satisfazia tanto com as comunhões de Gema, Maria,


a doce Mãe, não podia também deixar de se comprazer, pois amava
ternamente a esta angélica filha.
Depois de fatos tão extraordinários como os que temos visto,
penso que ninguém será tentado de pôr em dúvida o que vamos
referir. Maria Santíssima, por vezes, unia-se aos anjos da Eucaristia
para acompanhar Gema à Sagrada mesa. A essa inesperada visão,
a boa donzela ficava fora de si, palpitando de alegria aos pés de sua
Mãe Santíssima:

Como é bela – me dizia – a Sagrada Comunhão feita com a Mãe do Céu!


Eu a fiz ontem, no dia 8 de maio; ainda não a tinha feito com ela. Todos os
sentimentos e afetos de meu coração, naqueles momentos, sabe em que
consistiam, meu pai? Nestas únicas palavras: minha Mãe!

Que direi mais? Lê-se na vida de muitos santos, que não podendo
ir à Igreja comungar, Deus se servia às vezes de um anjo, que para
saciar a fome que tinham da Eucaristia, substituía o sacerdote e
lhes levava em casa a Sagrada Hóstia. Parece que por três vezes o
Divino Salvador quis dar a Gema esse preciosíssimo presente.
Eis o que nos refere uma testemunha ocular:

Na manhã da sexta-feira, em que pela primeira vez a nossa cara Gema


sofreu o martírio da flagelação, eu, vendo-a horrivelmente chagada, não quis
que se levantasse. A pobrezinha obedeceu e, recolhendo-se, pôs-se a fazer
a preparação para a Comunhão espiritual, que costumava fazer do mesmo
modo que estando na Igreja para comungar sacramentalmente. Entrou em
êxtase; de repente eu a vi pôr as mãos e voltar a si. Brilhavam-lhe os olhos e
o rosto ficou todo inflamado, como lhe acontecia diante de alguma visão
extraordinária. Em seguida, estendeu a língua, e a retirou, caindo de novo no
êxtase para fazer a ação de graças. O mesmo se deu na sexta-feira seguinte,
e bem se pode supor que se repetisse outras vezes, mas eu não fui
testemunha. Depois eu soube pela própria Gema que me confiou
ingenuamente, que foi realmente Jesus, e não um anjo, que lhe veio trazer a
Santa Comunhão.

Por tudo o que temos dito, da fome e sede desta fervorosa


donzela, pode-se avaliar que pena era para ela quando não podia ir
à Igreja comungar, o que acontecia, se bem que raramente, em
consequência de algumas enfermidades graves.
Rezava e suplicava a Deus que lhe desse melhoras para poder
levantar-se, e pedia-lhe que se quisesse mortificá-la com dores, lhe
as mandasse depois centuplicadamente, que as aceitaria da melhor
vontade, antes (são suas palavras) do que ficar privada do “Pão da
vida”, e para mais obrigá-lo acrescentava:

A um amante apaixonado, como Vós sois? Oh! Senhor, não são precisas
tantas súplicas, ao primeiro pedido atende logo. Assim dizei-me sim, e eu
vou.

A maior parte das vezes aquele apaixonado Amante divino dizia


realmente sim, e Gema, auxiliada pela sua grande fé, conseguia
levantar-se, ainda que o termômetro pouco antes tivesse indicado
40 graus de febre. Quando porém o Senhor dispunha de outro
modo, a boa jovem inclinava a cabeça dizendo: “Fiat” 2 e
contentava-se só com a Comunhão espiritual. Nesta, aliás, eram
tantas e também tão consoladoras as comunicações interiores que
recebia, que a compensavam amplamente da privação do alimento
divino.
Uma vez o seu confessor ordinário, para mortificá-la, fez mostras
de tirar-lhe a Comunhão. Eis os termos com que ela me comunica
tão grande desgraça:

Oh! Meu pai, meu pai!... hoje, às cinco horas, fui confessar-me e o
confessor me disse que quer tirar-me Jesus. Ah! Meu pai, a pena não quer
mais escrever, a mão me treme muito, e choro.

De fato, essas palavras da carta, que tenho diante de mim ao


transcrevê-las, mostram que foram traçadas com mão convulsa.
Todavia, recolhendo-se logo, como costumava fazer em tais casos
para ceder o lugar à virtude, assim continua:

Seja Jesus louvado! Afinal, achei quem me conhece e me auxiliará a ir para


o Céu. Não, meu pai, com certeza eu não sou digna de receber Jesus. Neste
meu coração, tão feio, pior que uma estrumeira, quantas vezes não quis
Jesus entrar? Neste momento, reconheço tão bem a minha miséria, que
quereria... quereria... Oh! Meu pai, meu pai!

Subentende-se:

O Senhor me entende, sem que eu me explique mais.

Quanto estava longe, porém, aquele iluminando confessor de tirar


a Sagrada Comunhão da fervorosa Gema, se depreende bem das
suas palavras um dia à família com quem ela morava: “Faça todo o
possível para acompanhá-la à Igreja à Sagrada mesa, apesar de
doente, porque como poderia viver sem Comunhão, aquela
pobrezinha?”.
Narro outro fato. Uma vez, parecendo-lhe não poder comungar
sem confessar-se, não sei por causa de que grande falta, que o
demônio lhe fez supor que teria cometido, pensou dever abster-se.
Sofreu muito e chorou toda a noite, não vendo facilidade de
confessar. De manhã foi à Igreja e sem comungar voltou para casa
chorando. Apenas tinha entrado, caiu em êxtase e com o semblante
de Jesus lhe apareceu o inimigo com o intento de a fazer cair no
desespero. A cena foi em extremo tocante, e fez chorar todos os
que assistiram. Com a luz penetrante do êxtase, Gema percebeu o
engano, e com voz aflita, pôs-se a exclama:

Não, não te quero! Onde está o meu Jesus? Onde estais, ó meu Jesus? É
verdade que Jesus não entrou esta manhã em meu coração, mas nem tu
entrarás, a ti não te quero. Jesus, afastai-o de mim. Mas Jesus como permitis
que o demônio venha em vosso lugar, com o vosso semblante? Vencei vós,
oh! No meu coração, que por vós suspira; depressa, ó Jesus, que o meu
coração vos quer. Oh! Não vedes como sofro! Afastai aquele mentiroso, não
vedes que ele me quer fazer cair no pecado? Por que me deixais assim? É
verdade que fui eu a primeira a deixar-vos; mas eu vos quero, não me deixeis
mais.
Aqui, parece que o Senhor a repreendia por não ter cedido ao
convite que Ele tinha feito nessa manhã de ir comungar sem temor,
e ela, desculpando-se com a sua natural candura, respondia:

Sim, eu resisti, ó Jesus, mas sofri também muito. Ouvi o convite esta
manhã; mas ó Jesus, como devia fazer para vos receber? Vede, Jesus, se o
confessor me tivesse dito que podia receber a Sagrada Comunhão, eu a teria
recebido, mas ele mesmo me tem dito que eu não posso me fiar em mim
mesma. Por isso eu vos deixei, julgando estar em pecado. Agora, Jesus,
perdoai-me e vinde, vinde agora ao meu coração. Depressa, Jesus! É vosso
o meu coração, é todo vosso. Vinde, e fazei-me sentir a vossa presença. Não
vedes como meu coração desfaleceu!

Esta luta e colóquio, que por brevidade encurto, durou cerca de


uma hora, e acabou com a vitória que a piedosa jovem ganhou
completamente sobre o coração tão terno de seu Salvador. A julgar
pela veemência do combate, pela agitação de todo o seu ser,
pensaríamos que ela ficasse exausta de forças, mas não; apenas
cessado o êxtase, ela apareceu calma, fresca e risonha e pôde logo
aplicar-se aos trabalhos domésticos. Por este fato, avalie o leitor o
que era para Gema a Sagrada Comunhão.
Mas continuemos. Depois de ter referido em parte o modo pelo
qual a Serva de Deus se preparava para o Banquete Eucarístico,
diremos também alguma coisa sobre a sua ação de graças, embora
seja uma continuada repetição, porque os mesmos multiplicados
atos de fé, amor, confiança, humildade e abandono de que todo este
capítulo dá uma amostra, assim como precediam acompanhavam a
sua Comunhão, assim também a seguiam na ação de graças.
Começava a fazê-la na Igreja e durava todo o tempo que a sua
companheira permitia que ela se demorasse, e continuava depois
durante todo o dia, mesmo no meio das suas ocupações
domésticas. O coração de Gema, pela Sagrada Comunhão, ficava
tão cheio que transbordava e tinha necessidade de desabafar,
enquanto que o corpo fraco e incapaz de resistir tantos choques,
perdia, de quando em quando, o uso dos sentidos. Deste modo se
compreende o motivo de tantos êxtases, desde a sua volta da Igreja
até à tarde, nos quais as impressões recebidas de manhã na
Sagrada Mesa, continuavam incessantemente a se fazer sentir. Ela
dizia que

quereria sepultar para sempre com o seu amado Jesus, que recebera no
altar, dentro do seu coração, e que quereria que Ele lhe fizesse conhecer até
que ponto devia chegar, e com que medida devia retribuir o amor dela para
pagar-lhe tanta honra.

Não sabendo mais o que fazer, punha-se a exclamar:

Meu Jesus! Meu Jesus! Meu Pai, minha doçura, consolação de todas as
criaturas, amor que me sustentais, fogo que sempre ardeis, sem nunca se
apagar!

Punha-se depois a perguntar-lhe se lhe agradaria que ela ardesse


em todas aquelas chamas! Dirigia-se aos anjos, à sua Mãe celeste,
aos seus santos advogados, para que ajudassem a bendizer, a
louvar, e agradecer o amor de Jesus Eucaristia.
Compreende-se, também assim, o motivo daquelas cartas
abrasadas de amor celestial que frequentemente escrevia a seus
diretores e a outras pessoas. Qualquer que fosse o assunto delas, o
pensamento da Sagrada Eucaristia aí devia entrar sempre, quando
não as dominava por completo.
Entretendo-se nesta matéria tão cara e sensível ao seu coração,
quase sempre perdia os sentidos e em êxtase continuava a
escrever. Ela vivia cheia de Jesus, e a boca fala, e a não escreve da
abundância do coração: ex abundantia cordis.3
Quando falei nas provas a que o Senhor quis submeter a sua fiel
serva, mencionei a da aridez e assegurei que foi a mais cruel de
todas. Na verdade, correr a procura de Jesus e não lhe merecer
nem um olhar, chamá-Lo, e não receber uma resposta, é para a
alma que só aspira ao Paraíso, e só se deleita no que é do Céu, um
tormento que só sabe quem já o experimentou.
Como vimos, o Céu para Gema era a Eucaristia, Jesus no
Sacramento era tudo para ela, vivia neste dulcíssimo mistério, e
nele achava toda a felicidade.
Deus, porém, que sabe bem como proceder na santificação das
almas, quis também que ela passasse por esta prova, e de tempos
a tempos, tirava-lhe toda a alegria de que ela costumava gozar
diante do Tabernáculo, e na mesa eucarística, ocultado-se sob um
espesso véu ao seu olhar e à sua devoção.

Oh! Meu pai – escrevia para que eu participasse das suas angústias –,
todas as consolações que eu sentia na Sagrada Comunhão, e duravam todo
o dia, se converteram em desolações. Não sei o que aconteceu.

Noutra ocasião, depois de me ter falado de algumas


comunicações extraordinárias, acrescentava:

Mas há dias que não é assim. Às três manhãs, que depois de ter eu
recebido a Jesus, Ele fez como se eu não o tivesse recebido, cala-se, e me
faz morrer de angústia. Assim passamos todo o tempo e não consigo fazer
mais nada.

A terna enamorada assim se exprimia, pela sua profunda


humildade, porque é certo que nunca era tão fervorosa e ativa como
nessas horas de aridez espiritual.
Corria à Igreja, e visse ou não o seu Deus, conseguisse ela senti-
Lo, ou se conservasse Ele retraído, procurava sempre por Ele com o
mais vivo amor, como ela própria confessava, nessa ansiedade que
interiormente a consumia.
Basta. Releio o que escrevi, sinto-me profundamente comovido e
exclamo: “Meu Deus, fazei-me conhecer também a mim, e a todos
os cristãos, o imenso tesouro que nos deixastes na divina
Eucaristia”.

1 Celebrado a 10 de agosto. São Lourenço foi martirizado neste dia de 258, e condenado
a morrer na grelha, em meio às chamas – NC.
2 Faça-se.
3 Mt 12, 34 – “[...] a boca fala do que lhe transborda do coração”.
CAPÍTULO XXIX

MISSÃO E APOSTOLADO DE GEMA:


AS ALMAS POR ELA FAVORECIDAS

Quando me apresentei a meu superior para lhe pedir licença de


escrever e publicar esta biografia de Gema, ele, que já ouvira falar
muito a respeito desta criatura extraordinária, imediatamente
aprovou com grande satisfação o meu desejo, e me aconselhou que
fizesse bem sobressair como certas almas, maravilhosamente
favorecidas pela graça, recebem de Deus uma dupla missão: a da
própria santificação pelo exercício de todas as virtudes, e a de
auxiliar a Igreja e as almas, não só com o exemplo, mas também
com diversas obras de zelo. Com estas palavras o meu santo e
inspirado superior me traçou o plano desta biografia.
Tenho eu já tratado em muitos capítulos da primeira parte, faltaria
ao meu dever, se não consagrasse agora ao menos um capítulo à
segunda, completando assim o quadro que tento desenhar.
Gema recebeu de fato a missão de se dedicar em favor das almas,
cooperando com todas as suas forças na obra da redenção, e em
especial na conversão dos pecadores, e não só de um modo geral
como o Senhor dá a todos, mas, direi mesmo, particular e
explicitamente, como uma solene investidura a própria Gema que
nos refere o fato seguinte:

Há alguns dias, quando recebi a Jesus na Sagrada Comunhão, ele me fez


esta pergunta: “Dize minha filha, tu me amas?. Que havia de responder? Mas
o coração respondeu em meu lugar, palpitando muito. “Se me amas”,
continuou o Salvador, “farás o que quero de ti”. E, dizendo isto, suspirou e
exclamou: “Quanta ingratidão e malícia há no mundo! Os pecadores
persistem em viver na pertinaz obstinação dos seus pecados, as almas vis e
fracas não empregam o menor esforço em vencer os instintos da carne; os
aflitos caem no abatimento e no desespero; a indiferença geral vai
aumentando de dia em dia, sem que haja alguém que desperte. Eu, do alto
do Céu, dispenso sem cessar dons e favores a todas as minhas criaturas; luz
e vida à Igreja; virtudes e forças aos que a dirigem; sabedoria aos diretores
das almas, que estão nas trevas; constância e energia aos que me devem
seguir; graças de todo gênero aos justos, e também aos pecadores que
vivem nos seus antros tenebrosos; até ali procuro por todos os meios
comovê-los e convertê-los. Contudo, isto que consigo? Que correspondência
recebo de muitas criaturas, a quem tanto amo? Ninguém atende ao meu
coração e ao meu amor. Esquecem-me como se nunca os tivesse amado
nem sofrido por seu amor; como se fosse para todos um desconhecido. O
meu coração está continuamente repassado de tristeza; permaneço quase
sempre isolado nas Igrejas e, quando se reúnem em grande número, têm em
vista outros motivos, e não o de me honrarem, chegando a ponto de
converterem a minha casa em um teatro para seu divertimento. Vejo muitos,
sob aparências hipócritas, atraiçoam-me em comunhões sacrílegas”. Jesus ia
continuar, mas eu O interrompi, exclamando cheia de dor: Jesus, Jesus, não
posso mais!1

Em outra ocasião, o amável Salvador fez semelhantes queixas à


sua serva para induzi-la a oferecer-se como vítima de expiação
pelos pecados dos homens, e já vimos a generosidade com que a
boa Gema aceitou esta missão. Mais tarde, Ele as renovará para lhe
inspirar que sacrifique a sua própria vida a tão nobre fim, e Gema
aceitará com o mesmo entusiasmo, como veremos em breve.
O Senhor queria que ela consagrasse todos os seus trabalhos à
conversão dos pecadores: “Se me amas, farás quanto quero de ti”, e
com vivas luzes lhe fez conhecer com toda a minuciosidade a forma
do seu apostolado. Gema exclamou:

Então duvidais, Senhor, que eu queira sacrificar-me toda por Vós. Por Vós
suportarei o maior suplício, todas as gotas de meu sangue darei para
contentar o coração de meu Jesus, e impedir que tantos ingratos pecadores
O ofendam.

Vejamos agora o que ela fez. Não falarei mais em tormentos, pois
experimentou-os todos, sem medida; não falarei também do sangue
que, em torrentes, derramou das mãos, dos pés, do lado, dos olhos,
de todo o corpo, a ponto de não lhe ficar quase mais nas veias.
Mas que obras então poderia praticar esta virgem para ser
apóstolo de Jesus Cristo! Não receies, ó leitor. Guiada pelo Espírito
Santo, ela cumprirá perfeitamente a sua missão, e onde não chegar
a sua ação, atingirão as suas orações e lágrimas. Quanto a mim
posso atentar que desde o primeiro dia em que conheci esta virgem,
até o da sua morte, sempre a vi exercitando o seu zelo pela
conversão dos pecadores. Digo desde o primeiro instante pelo fato
já narrado no capítulo XIV. Tenho registrados outros fatos notáveis
de conversões, igualmente autênticos no meu grande repertório,
que se assemelham ao precedente. Omito-os para não ser tão
difuso e para evitar repetições.
Gema tinha conhecido o meio de comover o coração de Seu
Jesus, e as suas lágrimas inocentes, os seus suspiros inflamados, a
força dos argumentos que sabia tão bem empregar, obtinham
sempre o seu efeito. Só no último dia é que saberemos quantas
almas esta humilde donzela arrancou das garras de Satanás.
O que é certo é que ela não passava um dia sem rezar pelos
pecadores, e disto fazem fé as relações dos seus êxtases, em que,
sem pensar revelava toda a sua alma.
Vejamos: “Senhor, se me désseis um por dia”, repetia muitas
vezes. E continuava: “Oh! Jesus, não abandoneis os pecadores,
pensai nos meus pecadores; eu os quero todos salvos”. Depois,
como tinha sempre algum particularmente em vista, dizia: “Recordai-
Vos daquele de um modo especial, Jesus, que o quero salvo
juntamente comigo”.
Notai comigo a arte da eloquência, caríssimo leitor.
Muitas vezes, a querida jovem se voltava para a celeste Mãe, de
quem tinha experimentado tão bem o poder junto do Senhor nos
negócios que tanto lhe interessavam. Um dia, num êxtase, viu-a
muito aflita, e ao mesmo tempo, resolvida a não se importar mais
com uma alma em prol da qual ela se interpunha. Eis com que ardor
ela se esforça por demovê-la dessa determinação.

Mas que dizeis hoje, minha Mãe; abandonar aquela alma? Mas não é uma
alma de Jesus?... Por ela Jesus não derramou todo o seu sangue?... É
verdade que eu também me esqueci dela nestes dias; é por isso que a
quereis abandonar? Não, não, conservai-Vos firme, ide aplacar a Jesus.

A Santa Mãe parecia achar a empresa difícil. Gema continua:

Jesus obedece sempre à sua Mãe. Dizeis que não conseguiríeis? Mas se
sois onipotente? 2

Após um momento de silêncio continua:


Oh! Antes tudo do que abandonar uma alma!... ó minha Mãe, é possível
que Deus queira abandonar uma alma? Mas vamos, se Jesus teve
compaixão até daquele ladrão!
“Mas sabes quem é – perguntava Maria Santíssima –, quem é aquele
pecador? Eu te poderia mostrar quão desgraçada é a sua alma”.

E Gema respondia:

Sei, mas não a quero ver. Quando for salva então, sim, a verei. Ó minha
Mãe, como falais hoje assim? Vós que intercedeis sempre pelos pecadores?
Talvez deixásseis de ser sua Mãe? É impossível, minha Mãe, mas hoje
querereis deixar-me assim aflita? Obtende-me de Jesus o que me obtivestes
no sábado – referia-se a conversão de outro pecador pelo qual também rezou
muito – e ficarei contente!

Abandonar uma alma! Esta palavra trespassava o coração de


Gema e a desolava. Quis eu mesmo experimentá-la a respeito de
uma das minhas penitentes, a qual eu pretendia abandonar pela sua
indocilidade. A boa Gema me respondeu:

Oh! Não, meu pai, por que desanimar? E por que em vez de proferir a
palavra tão triste, abandoná-la, não a chamai a vós para lhe dizer toda a
verdade? Não lhe fazeis ver a caridade que tendes usado comigo, que era
mil vezes pior do que ela? Atendei, se vos for possível vê-la, muito bem; se
não, escrevei-lhe depressa que se não entrar no caminho que Jesus exige, e
não abandonar o caminho do pecado, Jesus a fulminará. Não lhe falarei mais
nada sobre este assunto. Eu sei tudo, sei tudo.

Mas não pôde guardar por muito tempo a sua resolução. Pouco
depois, escreveu-me de novo:

É certo, meu pai, que Jesus não está contente com aquela alma, não, não!
Oh! Ele nos ama muito, mas mostrou-se tão severo! Dizei-lhe que, se não se
emendar, Jesus a abandonará. Fazei assim, ó meu pai, e quando a virdes
falai-lhe a meu respeito e aconselhai-lhe que me venha procurar. Se ela
tivesse vindo já, tudo isto não lhe aconteceria.

Uma pessoa digna de toda a minha confiança foi testemunha e me


referiu também o fato seguinte:

Pediu-me uma senhora do meu conhecimento que recomendasse às


orações de Gema a um seu irmão, que era um grande pecador. Assim fiz e
ela começou logo a rezar por ele a Jesus, estando em êxtase. Mas Jesus
respondeu-lhe – naturalmente para experimentar a sua fé – que ele não
conhecia aquele pecador. “Como não o conheceis, disse Gema, se ele é
vosso filho?”. Depois dirigiu-se à Maria, mas vendo-a silenciosa e chorando,
voltou-se para o Bem-aventurado Gabriel Passionista; este, porém, também
se conservava calado. Gema contudo não perdeu a coragem, e redobrou a
sua oração. Entretanto, ela me dizia: “Este homem deve ser verdadeiramente
um grande pecador, porque Jesus diz que não o conhece, a Mamãe chora e
o irmão Gabriel não me responde”. Depois de quase um ano de incessantes
súplicas, um dia em que eu ia à Igreja com Gema, encontrei a serva da dita
senhora, toda alvoroçada, que nos disse que o referido irmão estava
moribundo. Ficamos muito consternados, mas apenas tínhamos dado uns
vinte passos, Gema exclamou em alta voz: “Está salvo! Está salvo!”.
Perguntei-lhe quem? Respondeu: “O irmão da senhora”. Soube depois que
este homem morreu apertando a mão do sacerdote, quando a criada voltou
para a casa, o que coincidia exatamente com o momento em que Gema
disse: “Está salvo! Está salvo!”.

A vista deste fato, pessoas amigas, levadas pelo zelo de Gema e


pela elevada estima que tinham de sua santidade, apresentavam-
lhe constantemente pecadores, pedindo que lhes alcançasse a
conversão. Não era raro também que Deus lhe fizesse conhecer
diretamente, quer na casa de seus benfeitores, quer fora do meio de
encontros providenciais. A boa donzela estava sempre pronta a
recebê-los com alegria, como se em cada um tivesse achado um
tesouro e quanto mais o seu número aumentava, tanto mais ela
desejava vê-lo crescer.

Quereria banhar com meu sangue todos os lugares em que Jesus é


ofendido. Quereria que se salvassem todos os pecadores, porque foram
remidos com o sangue de Jesus.

O último pelo qual particularmente se empenhou, ou como ela


dizia, a quem carregava sobre os ombros, foi um habitante de
Lucca, pecador famoso e obstinado, que ela não conhecia
pessoalmente. Durante muito tempo, a caridosa virgem se esforçou
para obter a sua conversão e continuamente lutava sem desanimar.
Na sua última doença disse:
Carregá-lo-ei aos ombros durante toda esta Quaresma, depois o deixarei.

Na quinta-feira santa, o piedoso sacerdote que lhe tinha


recomendado esta alma, veio dizer-me muito alegre que um grande
pecador se tinha convertido na sua presença; era o pecador de
Gema. Dois dias depois, aliviada deste peso, e com mais esta
palma na mão, a santa virgem voava para o Céu. Esta foi a última
conversão operada pela serva de Deus. A primeira, que será talvez
agradável ao leitor conhecê-la, deu-se antes que Gema recebesse a
solene investidura do seu apostolado, quando, residindo ainda na
casa paterna, foi acometida da grave enfermidade que a reduziu ao
fim da vida.
Entre as mulheres que lhe prestavam então seus serviços, havia
uma que não procedia bem. As pessoas da casa queixavam-se
dela. Gema, porém, exclamou com o rosto inflamado:

Como? Foi por ventura Madalena repelida por Jesus, por ser pecadora?
Deixai-a vir. Quem sabe se não lhe poderei fazer algum bem? Não a afasteis
de mim, eu vo-lo peço.

Então, ainda que extenuada e quase moribunda, começou a


interessar-se por ela. O caso era difícil porque a pobre mulher vivia
do seu infame ofício; mas que coisa não pode a caridade de Jesus
Cristo exercida por uma alma tão ardente como a de Gema?
Sua tia de Camaiore lhe mandava, de vez em quando, algum
dinheiro para atender às suas urgentes necessidades, a doente,
porém, em vez de gastá-lo consigo, dava-o a pecadora com inefável
bondade, pagando até o aluguel da casa em que habitava para que
não tivesse que procurá-lo, ofendendo a Deus.
Quando alguém lhe perguntava: “Que fez do dinheiro que recebeu
de sua tia?”. Respondia: “Tranquilizai-vos, que não desperdiço nem
uma moeda, vereis e sabereis o uso que eu faço dele”.
De fato, com essas repetidas indústrias e com suas ardentes e
infatigáveis exortações, em pouco tempo adquiriu tanto império
sobre aquela alma que a arrancou dar garras do inimigo.
Aconselhou-a a fazer uma confissão geral, e daí por diante essa
mulher viveu como boa cristã.
Naturalmente o inimigo devia fremir de raiva diante do zelo da
piedosa virgem, que lhe tirava das mãos as melhores presas;
aparecia-lhe por vezes com olhos chamejantes e gritava com voz
ameaçadora: “Quanto ao que te diz respeito, procede como
quiseres, mas tem cuidado em nada fazeres em favor dos
pecadores, porque senão tu me pagarás bem caro”.
Outras vezes o demônio se disfarçava em prudente conselheiro:
“Como, dizia ele, donde te vem tanta presunção? Estás carregada
de pecados; todos os anos de tua vida não são suficientes para
chorá-los e expiá-los, e perdes o tempo em te ocupares com os
pecados alheios. Não vês que tua alma está em perigo? Belo lucro!
Ocupar-se dos outros e descuidar-se de ti!”.
Vãos esforços. Uma vez, estando em êxtase, ela disse a Deus:

Queres saber, Jesus, quem me proibiu de me ocupar com os pecadores? O


demônio! Mas, pelo contrário, Jesus, pensai nos pobres pecadores, que eu
vos recomendo. Ensinai-me a fazer muito para salvá-los.

Se algum deles se mostrava hostil, as orações então se tornavam


cem vezes mais fervorosas. Eis uma prova dentre outras:

Jesus, por ordem do confessor eu Vos recomendo o meu maior inimigo, o


meu pior adversário. Guiai-o, acompanhai-o, e se vossa mão deve pesar
sobre ele, que se descarregue antes sobre mim; enchei-o de benefícios, ó
meu bom Jesus, não o abandoneis e consolai-o. Deixai-me sofrer, não
importa; mas a ele não, eu vo-lo recomendo agora e sempre. Fazei-lhe
muitos benefícios, o dobro de todo o mal... Meu Jesus, que ele me quereria
fazer; e para mostrar-vos que eu o amo, amanhã comungarei por sua
intenção. Ele pensará talvez em nos prejudicar, e que nós lhe desejamos
tanto bem!

Esta serva de Deus não tinha só o mais ardente desejo de salvar


os pecadores extraviados, mas também o de ajudar a todas as
almas a progredir no amor de Deus, a servi-Lo com fidelidade, e
aperfeiçoar-se em todas as virtudes.
Não podia ter paz à vista de tanta tibieza dos cristãos dos nossos
dias, principalmente dos sacerdotes seculares e regulares, e dos
religiosos dos conventos.
Não contente de rezar sem cessar por todos, aproveitava de todas
as ocasiões para aconselhar, advertir, corrigir e, quando preciso, até
ameaçar em nome de Jesus para que cumprissem com seus
deveres. “Isto certamente não agrada a Jesus”, dizia ela à uma
pessoa, “deveis deixá-lo”. E a outra: “Para agradar a Jesus, deveis
proceder deste ou daquele modo”.
Um venerável superior foi uma vez consultá-la e lhe perguntou, na
minha presença, se agradava ao Senhor o seu modo de governar.
Gema, que sabia ser ele um pouco precipitado nas suas decisões, e
áspero para seus súbditos respondeu: “Senhor Padre, seria melhor
proceder com mais reflexão e usar sempre de doçura; de outro
modo não contentareis a ninguém”.
A donzela, cheia de simplicidade, manifestava a todos o seu modo
de pensar com modéstia e humildade, mas sem nenhuma
reticência.
Entretanto, não desagradava a ninguém a sua franqueza, por
conhecerem todos a sua candura angélica.
Ela escrevia cartas de empenho aos diretores das almas suas
conhecidas e a seu próprio confessor, para lhes pedir que
corrigissem algumas de suas penitentes. “Aquela alma ama-se mais
a si do que a Jesus: diga-lhe que não pode ser assim, e corrija-a”.
Nem mesmo o seu diretor foi poupado: muitas vezes, advertia-o
francamente de seus defeitos de viva voz ou por escrito, e sempre
com razão. Embora lhe desagradasse muito ocupar-se com
negócios alheios, e vivesse tão recolhida em si mesma, que parecia
que o mundo não existisse para ela, contudo, impelida pelo seu zelo
da glória de Deus, achava-se frequentemente neste exercício do
apostolado.
Algumas vezes o Senhor a mandava, como sua embaixadora,
advertir a algumas pessoas importantes; ao que ela obedecia
prontamente, depois de receber a aprovação do confessor ou
diretor, não se fiando nas próprias luzes.
Já há alguns dias – escrevia-me para pedir uma destas aprovações – que
Jesus me diz estas palavras: “Vá procurar a superiora – de um certo mosteiro
de virgens consagradas à Deus – e diga-lhe que se ela persiste em
desprezar as minhas inspirações, se ainda está firme no seu propósito,
resistindo às ordens de seus superiores, em breve se arrependerá, porque
seu castigo já está preparado. Ai dela, se não atender a este último aviso.
Diga-lhe ainda que se tenho adiado o castigo até aqui, é só em consideração
de algumas almas que me são bem caras: mas agora não espero mais. Diga-
lhe que tudo depende dela”.

Mais ainda:

Na quinta-feira santa, Jesus me perguntou se eu tinha sofrido de boa


vontade nessa noite – os tormentos periódicos de quinta para sexta-feira –
em expiação das faltas de algumas religiosas. Respondi-lhe que da melhor
vontade! Ai delas, e de quem as dirige, se recusam fazer a vontade de Jesus!
Se ficam surdas à sua voz, arrepender-se-ão muito. Mas já é tarde demais,
porque Jesus não fará mais reinar entre elas a paz de que gozavam há muito
tempo; a discórdia irá sempre aumentando até forçá-las em breve a separar-
se.

Felizmente aquelas freiras ouviram a voz do Senhor, atenderam a


seus deveres e a paz se restabeleceu no convento, graças às
orações, à expiação dolorosa e ao zelo daquela que queria ser
chamada “a pobre Gema”. Para tornar mais accessível à sua serva
esse ministério em prol das almas, o Senhor a favoreceu com dons
extraordinários, tais corno o discernimento dos espíritos,3 o
conhecimento dos segredos e do futuro. Gema comunicava-se
espiritualmente e por meio de cartas com algumas grandes almas
que nunca tinha visto, mas conhecia-as tão intimamente que
causava admiração aos próprios confessores, que há muito tempo
as dirigiam. Qualquer pessoa que se apresentasse a Gema pela
primeira vez, apenas por certas impressões interiores, ela conhecia
se eram almas caras a Deus ou vulgares, distinguindo
principalmente as que estavam em pecado mortal.
Na presença destas últimas, a sua fisionomia denotava a viva
repugnância que sentia, e se as conveniências o permitiam, não
deixava de as advertir. Utilizava-se, assim, do melhor modo possível
das luzes particulares que Deus lhe dava em bem do próximo.
Eu próprio, que por princípio e caráter fui sempre pouco inclinado
em depositar minha confiança no tocante a assuntos espirituais, em
qualquer pessoa e especialmente nas mulheres, sem provas certas
de suas disposições extraordinárias, recorri, muitas vezes, em
minhas dúvidas às luzes sobrenaturais de Gema.
Depois de alguns dias, recebia sua resposta:

Creia, meu pai, posso me enganar; mas a pessoa de quem me fala não tem
boas intenções.
Custa-me dizer-lhe, mas não tirareis dela nenhuma vantagem, assim fareis
bem em não vos ocupardes mais com ela.
Ah! Que feia eu vi esta alma diante de Deus!

O futuro não tardou a me demonstrar a verdade desta apreciação


e dei graças a esta santa virgem de me ter esclarecido em tempo.
Em outras ocasiões, pelo contrário, ela me tranquilizava sobre
certas almas que a julgar pelas aparências me inspiravam
desconfiança, e que eu estava prestes a abandonar, e ela sempre
tinha razão. Ela anunciava com igual segurança as consequências
funestas que resultariam se não fosse observado o que o Senhor
lhe tinha transmitido.
Sobre este ponto teria muitas provas a dar, mas abstenho-me por
brevidade, contentando-me com indicar o fato.
Gema quase sempre silenciosa e concentrada se mostrava muito
sóbria destas predições. Era preciso nada menos do que um motivo
certo da glória de Deus ou do bem de uma alma para fazer com que
saísse de sua reserva.
Fora destes casos, nunca se deu ares de profetisa, digo, nunca;
em geral quando a consultavam, fosse embora o próprio diretor,
respondia modestamente: “...não sei, pergunte a Jesus”.
Eis conforme as suas próprias palavras, como lhe vinham de Deus
essas luzes sobre o futuro e os segredos:

Meu caro pai, digo a somente a vós; às vezes, sem pensar em nada, vem
uma luz ao meu espírito. Não me detenho nessa ideia, mas um dia depois,
reconheço que a inspiração vinha de meu Deus. Acontece-me isto muitas
vezes, mas tudo em silêncio.

Tal é de fato, conforme a opinião dos teólogos, o modo mais


comum com que o Senhor costuma falar aos seus servos, o que já
fiz ver quando tratei das divinas locuções. Gema, na sua humildade,
custava a crer nessas revelações, mas no fundo de sua alma não
existia uma sombra de dúvida, e só o seu pai espiritual teria podido
persuadi-la de que estava iluda. Outras vezes, sentindo a
necessidade de esclarecer algum ponto, pedia, com humilde
confiança, a Jesus que lhe fizesse conhecer e o misericordioso
Senhor não deixava de atender o seu pedido.
Escrevia assim ao confessor:

Perguntei a Jesus se o que vós pretendeis fazer é bom, e Ele me


respondeu: “Diga-lhe que o faça”. Mais tarde, quando Jesus voltou,
encomendou-me que vos dissesse que procedais de modo tal que ninguém
perceba coisa alguma, que todos o ignorem. Se é do vosso gosto mandar vir
o padre (em quem pensa), também é do gosto de Jesus, assim vós ficareis
persuadido de certas coisas, porque Jesus também me disse que vós estais
agora muito angustiado.

Era exato, aquele santo e douto confessor, vendo fenômenos tão


extraordinários nesta sua penitente, se sentia perplexo e andava
pensando em chamar de Roma um religioso para examinar seu
espírito.
Vamos adiante. Eu tinha instituído em Roma e em outros lugares
uma associação piedosa intitulada Colégio de Jesus,4 consistindo
numa seleção de almas generosas que, sem nenhum aparato de
cargos e ofícios, sem secretários e caixas, se aplicassem em
cultivar em si mesmas a vida interior, e sob a direção de um bom
sacerdote se dedicassem, cada uma conforme a sua capacidade, a
trabalhar nas igrejas pelo decoro do culto divino, especialmente da
Sagrada Eucaristia, e também nos hospitais, nas prisões, nas
famílias, enfim, em toda parte onde se encontrassem almas para
auxiliar e desordens para corrigir.
A regra da piedosa sociedade geralmente agradou; em pouco
tempo, inúmeras pessoas se inscreveram e, graças a Deus, fez-se
bastante bem.
Indo a Lucca, falei a respeito com Gema, que se alegrou muito e
quis ser a primeira a tomar parte, dedicando-se logo à propagação
desta obra.
Quantos passos não deu ela, de casa em casa, para procurar
associados, animar os diretores e concorrer para a sua organização.
Em seus êxtases, falava frequentemente a Jesus sobre esta
associação e Jesus lhe dizia que lhe era muito agradável, e que Ele
abençoava com particular amor a todos os que nela entravam. Quis
falar sobre este assunto para que melhor se conheça o espírito da
serva de Deus, e também para animar a quem ler a auxiliar a
humilde instituição nascente, e afervorar os que já estão inscritos,
com o pensamento de que tiveram na cidade de Lucca, como
associada uma Gema.
Que direi também do zelo com que a piedosa jovem auxiliava as
almas padecentes do Purgatório? Se o amor, quando é verdadeiro,
não tem limites, certamente o de Gema, que tinha atingido o
máximo grau de perfeição, não os podia ter.
De fato, o interesse que tinha por aquelas pobres almas era
extraordinário. Em seu sufrágio, oferecia a Deus as suas contínuas
orações e penitências, seus grandes sofrimentos físicos e morais.
Mas entre estas, como com os pecadores, sempre havia algumas
que eram privilegiadas. “Sim, dizia ela, sofrer, sofrer, pelos
pecadores, e em particular pelas almas do Purgatório, sobretudo por
esta...”, e nomeava uma.
E o Deus da misericórdia, que tanto deseja receber depressa, no
Céu, estas almas justas, estimulava cada vez mais o zelo da sua
serva e lhe fornecia novos meios de expiação.

O anjo me disse – escrevia ela – que nesta noite Jesus me fará sofrer mais
um pouco, isto é, durante duas horas, começando às nove, em favor de uma
alma do Purgatório.

E ela confessa:
Foi muito forte este sofrimento, e durou exatamente o tempo anunciado.
Doía-me tão excessivamente a cabeça que cada movimento que fazia me
ocasionava tormentos terríveis.

O Céu aceitava a generosa expiação de uma criatura tão digna, e


as pobres almas se sentiam aliviadas de seus sofrimentos, e viam
diminuir o tempo do seu cativeiro.
Falemos de uma em particular: Gema conheceu, por luz
sobrenatural, que no mosteiro das Religiosas Passionistas de
Corneto,5 havia uma freira muito agradável a Deus, que estava
gravemente doente, e me perguntou se era verdade.
À minha resposta afirmativa, suplicou a Jesus que fizesse pagar
aquela freira aqui no mundo no leito de dor, as suas dívidas à justiça
divina, para que, morrendo, pudesse voar logo para o Céu.
O Senhor a atendeu, ao menos em parte, porque a boa religiosa
só morreu depois de alguns meses de cruéis sofrimentos. Gema
comunicou a notícia da morte a todas as pessoas de casa, para lhes
pedir sufrágio por essa alma, dizendo o nome completo da falecida,
que ninguém em Lucca conhecia: Maria Teresa do Menino Jesus.
Ela lhe tinha aparecido com o semblante repassado de dor,
implorando o seu auxílio nas penas terríveis que sofria no Purgatório
por causa de certos defeitos. Não foi preciso mais para comover
todas as fibras do coração da boa jovem. Desde aquele dia, não
teve mais sossego; rezava e chorava sem cessar, e lutava
amorosamente com o seu Senhor. Como não tivesse mais nada em
que se ocupar, tudo empregava, nesta intenção.

Oh! Jesus, salvai-a! – exclamava –; Jesus, mandai depressa Maria Teresa


para o Céu. Ela é uma alma que Vos é tão cara, fazei-me sofrer muito por
ela, pois eu quero salvá-la.

A generosa donzela, como vítima voluntária, sofreu por dezesseis


dias inteiros, no fim dos quais a justiça de Deus estando satisfeita,
aquela alma ficou livre. Eis como Gema me deu conta:

Pela uma hora e meia da noite, pareceu-me ver a Nossa Senhora que me
vinha avisar de que a hora da libertação daquela alma se aproximava. Algum
tempo depois julguei ver chegar para mim Maria Teresa, vestida de
Passionista, acompanhada de seu anjo da guarda e de Jesus. Oh! Como
estava diferente do dia em que a vi pela primeira vez! Aproximou-se de mim,
sorrindo-se e disse: “Sou verdadeiramente feliz e vou gozar do meu Jesus
para sempre!”. Depois agradeceu-me de novo. Fez-me com a mão por muitas
vezes um sinal de adeus, e com Jesus e o seu anjo, voou para o Céu às
duas horas e meia da madrugada.

Oh! Se houvesse no mundo muitas almas tão generosas como


esta, que vantagens não se obteriam!
Deus converteu o universo por meio de doze pescadores e hoje
pode salvá-lo pelas lágrimas ocultas, penitências, dores de humildes
virgens desprezíveis aos olhos do mundo, porém, grandes aos seus,
como temos visto que foi uma Gema de Lucca.

1 Pe. Germano já se referiu a tal visão, na qual Nosso Senhor fala dos castigos
iminentes – NC.
2 Aqui, é claro, não se refere a onipotência, atributo da Divindade. Mas, como invoca a
piedade cristã ao chamar a Mãe de Deus: onipotência suplicante – NC.
3 Consiste no “conhecimento sobrenatural do segredos do coração comunicados por
Deus a seus servos.” In: Royo Marín, Antonio. Teología de la perfección cristiana, Madrid:
BAC – 2001, p. 918 – NC.
4 Colégio de Jesus, fundado pelo Venerável Padre Germano, era um movimento
eucarístico de oração e reparação. Os inscritos deveriam buscar “a glória de Deus, o
advento de seu Reino no mundo, o triunfo da Igreja, a conversão dos pecadores e a
salvação de todas as almas”. Pode-se ver como a Divina Providência uniu estas duas
almas no espírito de reparação. Cf. Naselli, Carmelo A. Uma missione speciale affidata da
Gesú a Santa Gema Galgani. Ricerche di storia e spiritualità passionista 11. Roma: Curia
Generale Passionisti, 1979 – NC.
5 Mosteiro de Corteno-Tarquinia. Primeira fundação das Monjas Passionistas – NC.
CAPÍTULO XXX

NOVO CONVENTO EM LUCCA:


GEMA E AS RELIGIOSAS PASSIONISTAS

Uma alma tão apaixonada pelos bens celestiais como era Gema
devia de achar-se fora do seu elemento vivendo no mundo, e assim
era.

Oh! Como farei – exclamava – para viver neste mundo, onde tudo me
desagrada? Tirem-me daqui, tirem-me daqui, onde não posso ficar.

Ao seu diretor, escrevia:

Conjuro-vos, em nome de Jesus, vinde e encerrai-me num claustro, o


mundo não foi feito para mim.

Em todas as cartas aludia a este veemente desejo. Deus,


certamente para experimentar a virtude de sua serva, declarava-lhe
que essa era também a sua vontade, e assegurava-lhe que ela
certamente seria religiosa, quando as pessoas de quem dependia a
execução deste seu beneplácito, fizessem o que Ele tinha disposto.
Vendo porém a piedosa virgem que esta promessa não se
realizava, insistiu por muitos anos sem cessar, e passou a última
parte de sua vida numa verdadeira agonia, até que o Senhor lhe
disse que se tranquilizasse, abandonando esse pensamento.
Sentiu o primeiro impulso sobrenatural para a vida claustral no ano
de 1899, por ocasião da doença mortal que teve, estando ainda na
casa da sua família.
Este fato é referido por uma criada da casa Galgani, chamada
Letícia Bertucelli, depois da morte de Gema:

Entrando uma noite no quarto da enferma, eu a vi toda iluminada, e uma


pessoa estava perto dela. Cheia de medo, porque julguei ser uma aparição
de seu pai, morto pouco antes, e nesse mesmo quarto e cama, fui acordar
sua tia. Porém, ela não se quis levantar, julgando que fosse ilusão minha.
Voltei, trêmula, ao quarto de Gema, mas achei-a do mesmo modo e tornei a
ver a mesma pessoa, que era uma senhora; mas não tive coragem de olhar
para ela e, assustada, retirei-me. Percebendo que falavam, fiquei atrás da
porta para ouvir, embora cheia de medo. A senhora dizia: “Gema, tinhas
dantes a intenção de ser religiosa, e agora quererás realizá-la?”. Gema
respondeu: “Sim, se vós, ó Senhora, me ajudardes, serei com certeza: mas
sou tão pobre e estou doente”. A senhora continuou: “Se não achares
facilidade de entrar num convento, não faltarão pessoas que te socorram e
que te auxiliem a viver”. E Gema: “Sim, sim, e então se fará a vontade de
Deus”. A visão desapareceu e eu entrei no quarto. Gema me disse que
Nossa Senhora a tinha ido visitar e me proibiu de falar no que eu tinha visto e
ouvido enquanto ela vivesse.

Dois dias depois, Gema estava curada. Logo que ela se


restabeleceu de tão grande enfermidade, da qual nos ocupamos no
capítulo V desta biografia, umas freiras de certo mosteiro de Lucca,1
encantadas pelas virtudes desta bela alma, e na esperança de a
receberem como noviça, convidaram-na a passar algum tempo em
sua casa.
A boa jovem aceitou, demorando-se ali três semanas. Todas as
religiosas a rodeavam, admirando a piedade, candura e simplicidade
deste anjo. A madre superiora, em particular, não se podia separar
dela e até na mesa a fazia sentar a seu lado.
A resolução estava tomada e já se falava em admiti-la no
noviciado na próxima festa do Sagrado Coração de Jesus.
Entretanto, Gema, por mais feliz que se achasse no convento,
sentia que não era naquele lugar que ela devia viver.
Assim ela se expressava:

Sentia que o meu coração não estava completamente satisfeito. Aquela


vida era muito confortável e Jesus me dizia muitas vezes ao coração: “Minha
filha, quero para ti uma regra mais austera”.

Os acontecimentos não tardaram a manifestar a vontade divina.


Os médicos que poucos meses antes tinha visto esta donzela
moribunda em consequência de uma doença incurável, se
opuseram e aconselharam que ela voltasse para casa.
Gema ficou aflita, pois, em suma, ela preferia ficar no convento a
voltar para o mundo, pediu, insistiu com aquelas religiosas que a
deixassem ficar, mas foi em vão: teve que sair.
Pouco tempo depois, o seu confessor pensou nas Capuchinhas,2
nas Carmelitas,3 nas Mantelladas4 e em outras congregações.5
Gema não cessava de repetir:

Farei, se quiserem, mas o meu coração me diz que Jesus não me quer em
nenhum desses lugares. Por mais que façam nunca conseguirão, porque
Jesus me parece que é de outra opinião.

De fato, ora por uma razão, ora por outra, nada conseguiam e
viam os seus passos perdidos.
Só um convento satisfazia completamente o ardente atrativo da
piedosa virgem, o das Passionistas. Ela sentira esse desejo pela
leitura da vida do Bem-aventurado Gabriel, e parece que por este
mesmo servo de Deus, numa visão, recebeu animadoras
esperanças de um dia ser do seu número.
Daí em diante, não pensou em mais nada, e só por este Instituto
gemia aos pés de seu Deus.
Havia então uma só Comunidade de Religiosas Passionistas na
Itália, na cidade de Corneto6 a cem quilômetros de Roma e duzentos
e setenta e cinco de Lucca. Que fazer?
Depois de refletir po muito tempo e pedir conselhos, resolveu ir até
lá fazer um retiro. Fez esse pedido em regra juntamente com outras
três amigas de Lucca.
Mas quem o poderia pensar? Deus permitiu que a superiora que
possuía, aliás, muita elevação de espírito e bondade de coração,
respondesse de um modo decisivo: “As três venham, porém Gema
não, e vejam que se teimarem em trazê-la não as deixaremos
entrar”.
Aquela boa superiora, tendo ouvido falar de Gema em todos os
sentidos, a tomava sem dúvida por uma dessas jovens histéricas ou
alucinadas, que tanto prejudicam a uma comunidade.
A inesperada recusa foi comunicada a Gema, que sentiu uma
pena cruel, mas sem se alterar; e ouvindo que em casa se
queixavam muito daquela religiosa disse:

Porque falam assim? Não falem mal da madre presidente – assim as


Passionistas chamavam a superiora de seu convento – quanto a mim eu a
amo muito, e quando entrar no Céu, a Madre Presidente será a primeira a
quem irei saudar.

Falando com uma amiga sobre um sonho que tivera, disse:

Conheci em sonho a madre presidente que olhava para mim com um olhar
tão severo. Eu lhe quero tanto bem e ela não gosta de mim.

Entretanto, firmemente convencida que era esta a sua vocação,


não mudava de ideia de vir a ser um dia Passionista.
Falhando a tentativa com a presidente de Corneto, fez amizade
com uma veneranda madre7 do mesmo mosteiro a quem escrevia
cartas de um alto misticismo, que terminavam sempre com alguma
expressão, bem viva de seu ardente desejo.

Levai-me para o convento convoco. Ficai certa de que procederei bem.


Satisfaçam o meu desejo. Não tenho um vintém, sou muito pobre, mas
procurarei tornar-me útil como irmã conversa.8 Creia que sei trabalhar, sei
varrer, lavar a louça, ajudar na cozinha, e minhas forças suportam qualquer
trabalho pesado. Recebei-me para agradar a Jesus.

Outra vez:

Eu sei que o padre – seu diretor – está em Corneto. Dize-lhe muitas coisas
em meu nome; pedi-lhe que me faça entrar no convento convosco. Serei
sempre obediente e não farei nada por mim mesma, eu lhe direi tudo e só
procederei conforme for de sua vontade. Sinto-me tão mal no mundo, minha
mãe. Diga ao padre que reze muito e se decida porque em breve não será
mais tempo.

As mesmas instâncias ela me fazia diretamente, com muito


abandono, porém:

Depressa, meu pai, ouvi a Jesus senão não será mais tempo. Tornarei a
falar em breve sobre esta frase cem vezes repetida: “não haverá mais
tempo”.

Começava-se a falar, então, na fundação de um convento de


Passionistas na cidade de Lucca.
Que alegria para Gema que esperou ver realizar, enfim, o seu
desejado intento! Ela animava o quanto podia a todos os que
trabalhavam em tão piedosa empresa; confiava no Senhor, não se
deixando abater pelas dificuldades, pelo contrário, por este mesmo
motivo, cobrava maior ardor!

Jesus o quer – dizia ela –, e o que Jesus quer certamente se realizará;


apressem-se e ponham mãos à obra.

Aqueles que, guiados pela prudência humana de cujo número


confesso que eu era, não se deixavam levar por esses argumentos
e adiavam aquela fundação. Ponderavam como era impossível
fundar um convento de clausura rigorosa sem dinheiro. É preciso
comprar uma casa, adaptá-la, mobiliá-la... Onde achar, em seguida,
o necessário para a subsistência das religiosas? Depois de dois
anos de assíduos trabalhos, apenas tinham podido reunir duas mil
liras e a Cúria Episcopal de Lucca exigia para cada religiosa um
capital grande, e o convento de Corneto estava firme em não deixar
nenhuma freira sair daquele convento para fundar outro, se não lhe
dessem uma boa garantia.
Gema, porém continuava a insistir:

Prestai bem atenção, meu pai, Jesus está descontente com a vossa
desconfiança, como se Ele não pudesse, num instante, prover a tudo.
Comecem e verão o que Jesus o fará.

Ela, pelo seu lado, acompanhada pela sua inseparável


companheira, percorria as ruas da cidade de Lucca, procurando
uma casa conveniente ou pelo menos um terreno apropriado a essa
construção.
Em março de 1901, como se a fundação já estivesse em
andamento, escrevia à Religiosa Passionista de Corneto, de quem
já falei:

Senti tanta consolação em saber de sua opinião que Jesus quer o novo
convento! Sim, é verdade, Jesus o quer; e em breve Ele lhe dará esta
consolação.

E ainda:
Monsenhor disse que é preciso que alguém venha falar com o senhor
Arcebispo para se chegar a uma resolução definitiva. Já temos aqui 8.000
liras e há muitas casas grandes para vender ou alugar, conforme a vontade
dos superiores. Mas se estes dormem! Enfim, esperemos com confiança.
Que Jesus se digne também a ocultar-me num cantinho do convento.

Em outra carta, aludindo a mim, escrevia:

Se nosso bom pai se decidisse a fazer a vontade de Jesus – que lhe era
bem conhecida –, tudo se arranjaria. Rezemos para que Jesus lhe dê a graça
de vencer as suas hesitações. Queira levantar-lhe o ânimo, dar-lhe coragem
de que muito precisa, e tirar-lhe o medo. Pobre pai! Não tenha receio de
nada!

Ao ouvir tais reflexões, eu me revolvia sobre espinhos, e suplicava


a divina Majestade que me abrisse algum caminho, mas os meses
passavam e eu não via nenhum meio!
Durante este tempo, para mais excitar a sua serva na oração e na
atividade, o Senhor lhe fazia ver sua alta estima pelas Religiosas da
Paixão, a glória que redundaria para Ele da instituição de um
mosteiro de sua ordem em Lucca, e o grande bem que fariam.
Em uma visão, em que Jesus lhe apareceu como descrevi no
capítulo anterior, e lhe disse que a justiça do Pai celeste pedia
vítimas, acrescentou:9

Quantas vezes o detive, apresentando-lhe almas preciosas e vítimas fortes!


Suas penitências, seus sofrimentos, seus atos heroicos O tem detido. Agora,
ainda para aplacá-lo, eu lhe ofereci vítimas, mas estas são poucas.
“Quem são elas?” – interrogou Gema e Jesus respondeu: “As filhas da
minha Paixão. Se soubesse quantas vezes eu vi meu Pai aplacar-se, quando
eu lhe as apresentava!”.

E concluiu:

“Escreve imediatamente a teu pai, peça-lhe que vá a Roma e fale deste


desejo ao Papa, que ele lhe diga que um grande castigo está ameaçado, e é
preciso que apareçam vítimas”.10

A ideia fixa do novo mosteiro, sempre ligada à esperança de aí


achar um sereno refúgio, absorvia a donzela continuamente, até nos
êxtases:

Jesus, o confessor me disse que insista convosco para que se funde o


convento, que ele tem grande desejo de ver efetuada esta obra. Fostes vós
que me inspirastes este veemente desejo. Pensai nisto, pois, cumprireis o
que prometestes, não é verdade? Então, pensai nisto, ó Jesus, e apressai-
Vos.

Gema não tinha a menor duvida do feliz resultado da obra. Jesus,


a Mãe celeste e o Bem-aventurado Gabriel lhe tinham falando bem
claramente, dando-lhe toda a certeza de sua realização. Tinham-lhe
revelado o modo pelo qual se efetuaria; os pormenores mais exatos
de sua execução, pontualmente como se haviam de realizar depois
da sua morte. Ela tinha anunciado:

A fundação se realizará pouco depois da beatificação do Bem-aventurado


Gabriel. Concorrerão para estabelecê-la o Sumo Pontífice, o Bispo, um
Consultor Geral e o próprio geral das Passionistas, influenciado e instado
pelo Consultor, que o fará ser favorável, bem como o provincial da Província
Romana, e outro padre que este mandará a Lucca para arranjar tudo. Para
impedir tão santa obra, o demônio dará contínuos e fortíssimos ataques, e
fará surgir tantas dificuldades que se julgará impossível a sua realização.
Efetuada, porém, os próprios adversários se tornarão favoráveis,
demonstrando toda a sua satisfação.

Depois, fez uma última predição, que devia ser muito dolorosa ao
seu coração. Já fiz menção dela, ei-la aqui:

Decidam – dizia ela –, porque em breve não será mais tempo. Jesus não
espera mais, e me disse que me levará consigo se, dentro de seis meses,
não se der principio à obra.

Finalmente Deus fez conhecer a Gema que a condição não seria


observada, e foi-lhe preciso resignar-se.

Esta manhã – escreveu ela – o que eu senti não poderei exprimir: somente
direi que senti muita vontade de chorar. Retirei-me logo para o meu quarto,
para ficar mais livre e chorei muito. Finalmente exclamei: Fiat voluntas tua.11
Mas minhas lágrimas não eram de dor, e sim de completa resignação.
O Fiat estava dito, Gema não pensou mais em ser religiosa, e não
deu mais um só passo; ocupou-se unicamente, daí em diante, em
preparar-se bem para a morte, que teve lugar, como ela profetizou,
no fim de seis meses.
Deus se contentou com o seu desejo, e com o merecimento do
sacrifício que com tanta generosidade lhe tinha feito a sua fiel serva.
Por outro lado, os votos da profissão religiosa ela já os tinha feito
particularmente; freira e Passionista, ela o era de coração e de
espírito, pois trazia o crucifixo gravado no meio do coração, e os
estigmas da Paixão na própria carne.
Podia, pois, sem pesar, sair deste mundo satisfeita e com a íntima
alegria de ter cumprido admiravelmente o fim para que Deus a
criara.
Logo que a santa jovem exalou o seu último suspiro, começaram
em mim os remorsos, e com razão! Os remorsos provocaram a
execução da ideia e, sem mais tardar, deu-se princípio a esta
fundação.
Lembrando-me da ordem que um ano antes ela me transmitira:
“Vá a Roma e fale com o Papa”, assim fiz agora e falei com o Santo
Padre Pio X,12 recentemente elevado ao Sumo Pontificado. Ouviu-
me com amor, agradou-se do projeto da obra, tomou a pena e, com
sua augusta mão, deu a sua alta aprovação.
O precioso documento assim é concebido:

“Abençoamos com paternal afeto a fundação do novo mosteiro das


religiosas Passionistas na cidade de Lucca; ao nosso venerável irmão
Arcebispo Nicolau Ghilardi, que a favorece louvavelmente, à E. Madre Maria
Josefa do Coração de Jesus, que deve ser a sua primeira superiora, a todos
os benfeitores que concorreram ou que concorrem em estabelecê-la, e às
religiosas presentes e futuras que farão parte. Queremos que estas piedosas
virgens em suas orações, penitências, práticas de devoção, e outros
exercícios prescritos pela Regra de seu instituto, façam o propósito de se
oferecer como vítimas ao Senhor pelas necessidades espirituais da Santa
Igreja, e do Soberano Pontífice.
Do Vaticano, aos 2 de outubro de 1903.
Pio X PAPA”.
Gema tinha dito a verdade; Jesus tinha falado ao coração do seu
Vigário, e conforme o que tinha feito conhecer à sua serva numa
visão, quis que este declarasse solenemente que as Passionistas do
novo mosteiro se oferecessem como vítimas de expiação para o
bem da Igreja.
De posse deste precioso papel, apresentei-me em Lucca e em
Corneto, e tudo se facilitou. Outras duas cartas pontifícias ao
Arcebispo daquela cidade e ao Bispo destas, concorreram para
reforçar os meus passos, e a fundação foi decidida.
É notável também que o próprio Soberano Pontífice quisesse
designar a superiora do novo mosteiro, e que fosse exatamente
aquela freira de Corneto a quem Gema tinha escrito: “Jesus lhe dará
esta consolação”.
Entretanto, a questão pecuniária retardava ainda os arranjos,
quando uma terceira carta ao Administrador Apostólico de Lucca,
durante o tempo da sede vacante, tirou toda a dificuldade.
Duas religiosas de Coro e mais uma conversa, partiram do
mosteiro de Corneto para a cidade de Lucca, no mês de março de
1905, dois anos depois da morte da serva de Deus.
Em vão o inimigo se esforçou por fazer surgir todos os obstáculos,
e até mesmo verdadeiras perseguições de todos os lados; a obra foi
prosperando; e ali, onde tantas outras comunidades religiosas muito
tempo antes estabelecidas na cidade acharam dificuldade em
receber noviças, aquela recém-chegada tomou um grande impulso.
Até hoje as novas religiosas ocuparam uma casa provisória, não
tendo podido, contra toda previsão humana, estabelecer-se no seu
mosteiro já há tanto tempo adquirido. Assim se verificou também a
predição de Gema, que a fundação do mosteiro, começando algum
tempo antes, só se terminaria a pouca distância da beatificação do
venerável Gabriel de Nossa Senhora das Dores.
Com efeito, esta beatificação teve lugar no dia 31 de maio de
1908; e no dia 31 de julho é que receberam dos antigos
proprietários a entrega das chaves do dito mosteiro, isto é, só
depois de dois meses, e numa sexta-feira, como tinha sido predito
pela serva de Deus.
Diremos, para quem desejar, algumas informações sobre este
instituto, que foi fundado por São Paulo da Cruz, que lhe deu os
mesmos estatutos, o hábito, o mesmo espírito e teor de vida
penitente que já tinha dado aos Passionistas. Sua assídua
ocupação consiste no Coro dia e noite, na meditação e no trabalho.
Embora tenham clausura papal, com o consentimento dos
reverendos párocos, instruem das grades as meninas na doutrina
cristã e recebem no convento em certos tempos do ano as meninas
que se preparam para a Primeira Comunhão, e as senhoras para
retiro espiritual.
Por todos estes motivos e pela vida verdadeiramente angélica que
levavam essas religiosas, agradava muito a Gema e fazia com que
ela considerasse como felizes as pessoas que se inscreviam em
seu número; e por isso lhe foi preciso fazer um ato de resignação
heroica, ao ver-se excluída daquele modo.
Em iguais condições se achou também Santa Rosa de Viterbo,13
que, vendo-se recusada pelas Franciscanas da dita cidade, disse:
“Não me querem viva, mas elas me terão morta”.
Gema disse o mesmo quando pronunciou o seu generoso fiat:

As Passionistas não me quiseram receber, mas eu quero estar com elas, e


de fato estarei depois de minha morte.

Se Deus me der vida e a Santa Igreja, com seu infalível juízo


reconhecer a santidade desta nova serva do Senhor, espero ter
essa consolação.14
As filhas de São Paulo da Cruz de Lucca, felizes de possuir seus
restos mortais sob o altar de sua capela, dirão à posteridade que a
verdadeira fundadora e padroeira do seu mosteiro naquela cidade é
a própria Virgem Gema Galgani.

1 Mosteiro da Ordem da Visitação de Santa Maria, de Lucca – NC.


2 As Religiosas Capuchinhas, fundadas pela Serva de Deus Maria Lorenza Longo (1463-
1542), são regidas pelas Regra de Santa Clara de Assis (1193-1253), fundadora, com São
Francisco de Assis, das “Damas Pobres”, as Clarissas – NC.
3 Ordem das Irmãs da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, seguindo regra
de Santo Alberto. Existem carmelitas descalças, da Reforma de Santa Teresa; e da Antiga
Observância, que na Itália estão ligadas à herança espiritual de Santa Maria Madalena de
Pazzi. Em especial, o Mosteiro Carmelita de Vetralla é muito ligado aos Passionistas, já
que São Paulo da Cruz teve muitas filhas espirituais neste mosteiro – NC.
4 O nome Mantelladas se referiu por muito tempo às mulheres pertencentes à Ordens
Terceiras, como Santa Catarina de Sena. Refere-se também às Religiosas da Ordem dos
Servos de Maria, que se remetem à consagração de Santa Juliana Falconieri (1270-1341),
sobrinha de um do sete Santos Fundadores. Na Toscana, a fama de santidade dos Servitas
era muito grande – NC.
5 Sabemos que também entre as suas antigas mestras, Oblatas do Espírito Santo, não
foi aceita. A Bem-aventurada Elena Guerra não a aceitou, temendo uma “mania mística” já
existente entre suas irmãs. In: Tubaldo, Igino. Uma Donna coraggiosa tra restaurazione e
rinovvamento, Torino: Effata, 2000, p. 190 – NC.
6 Primeiro Mosteiro Passionista. Deste Mosteiro havia sido fundado um outro em 1872,
em Mamers, diocese de Mans, França, pela Madre Maria Teresa Margarida do Sagrado
Coração Oubry (1841-1914). Durante a expulsão dos Passionistas em 1903, as irmãs vão
para Bélgica, e posteriormente uma nova fundação se dá em Thielt, na Bélgica. Em 1912,
consegue retornar a Mans – NC.
7 Madre Josefa do Coração de Jesus Armellini (1850-1921), fundadora do Mosteiro de
Lucca. Acerca dela disse Nosso Senhor à Santa Gema, em dezembro de 1899: “Deve-se
saber que aquela monja é uma alma que em breve, pelas angústias que passou e deverá
passar, alcançará ao mais alto grau de perfeição; é uma alma a mim muito cara e por isso
a cubro de cruzes; agora chegou um momento que tem muitas”. Alma contemplativa, unida
à Paixão de Nosso Senhor. Odiada pelo demônio que, certamente, tinha horror daquela
fundação, ela teve que, dele, sofrer grandes vexações – NC.
8 Era comum, nos institutos de vida contemplativa, se aceitarem moças como conversas.
Moças de pouca escolaridade, por isso, dispensadas da obrigação do Coro, isto é, do
Ofício Divino, e se dedicavam principalmente aos serviços domésticos. Só a humildade
poderia fazer Gema pensar que ela se adequava a realidade de conversa – NC.
9 Mesma visão relativa aos castigos, o Venerável Padre Germano entendeu que ela se
refere somente à fundação do Mosteiro das Passionistas em Lucca. Reveja nota 9, na
página 197 – NC.
10 Esta é a única das experiências místicas de Santa Gema na qual Nosso Senhor pede
que se dirija ao Santo Padre o Papa, então Leão XIII. O Venerável Padre Germano
entendeu que se tratava apenas da fundação do Mosteiro das Passionistas. Reveja nota 9,
na página 197 – NC.
11 “Seja feita a vossa vontade”, quarta petição do Pai-Nosso – NC.
12 São Pio X (1835-1914), papa reinante de 1903 até a sua morte. Defensor da fé
católica contra o modernismo, ele mesmo estava inscrito, desde de 21 de maio de 1909, na
Associação de Almas Vítimas, ligada às Filhas do Coração de Jesus, fundadas pela Beata
Maria de Jesus Deluil-Martiny, com fortíssima espiritualidade vitimal – NC.
13 Santa Rosa de Viterbo (1233-1251), terceira franciscana. Seu corpo incorrupto se
encontra no Capela do Mosteiro das Clarissas de Santa Rosa de Viterbo, nesta mesma
cidade, na Itália – NC.
14 Atualmente, as religiosas passionistas tem seu Mosteiro definitivo, no Mosteiro-
Santuário de Santa Gema Galgani, onde se encontram os restos mortais de Santa Gema,
do Venerável Padre Germano e do Servo de Deus Monsenhor Volpi. Este mosteiro foi
inaugurado para as solenidades de canonização de Santa Gema, sendo então superiora a
Serva de Deus Madre Madalena Marcucci, depois fundadora do Mosteiro de Santa Gema
de Madri, na Espanha – NC.
CAPÍTULO XXXI

VÍTIMA EXPIATÓRIA:
A ÚLTIMA ENFERMIDADE DE GEMA (MAIO DE 1902 – ABRIL DE
1903)

Embora Gema tivesse sofrido muito em consequência das


tribulações de espírito, das frequentes efusões de sangue e grande
falta do indispensável alimento, além das contínuas e horríveis
vexações do demônio, tinha boa saúde, conservava ótima
aparência, belas cores e forças físicas.
Além de alguns acessos de febre, ocasionados mais pelos ardores
celestes do amor divino do que por qualquer causa natural, até
Pentecostes de 1902, nenhuma outra doença, desde a prodigiosa
cura da espinite,1 veio turbar este florescente estado.
Nesta última solenidade, as comunicações celestes foram
extraordinárias, o seu recolhimento tornou-se ainda mais profundo e
o seu rosto mais inflamado; o peito arfava de tal sorte que parecia
lhe querer romper o coração.
Em tão extraordinária disposição de espírito, foi arrebatada por
muito tempo em altíssimos êxtases, foram-lhe reveladas, então, as
grandes coisas que lhe estavam preparadas.
Ela se tinha oferecido a Deus como vítima pela salvação das
almas, mas a vítima não atinge verdadeiramente o seu fim, senão
quando é imolada. Gema, pois, devia chegar a esse ponto para
cumprir a sua missão expiatória.
O Senhor vinha agora solicitar o seu consentimento.

Eu tenho necessidade – disse Ele – de uma expiação particular pelos


pecados e sacrilégios de que me vejo ultrajado pelos ministros do santuário...

E acrescentou:

Se não fosse em atenção aos anjos que rodeiam o Meu Altar, a quantos
não fulminaria imediatamente.

A estas palavras, à vista de um Deus irritado, o coração da fiel


esposa estremeceu de dor e de horror; uma palidez mortal cobriu-
lhe o rosto, e os seus olhos se inundaram de lágrimas.
Quando, em seguida, Jesus lhe propôs que aceitasse esta
expiação por aqueles pecados, exclamou com toda a força e
espontaneidade:

Duvidais, ó Jesus, que eu o aceite? Oh! Depressa, Jesus, descarregai


sobre mim os vossos golpes e glorificai-vos nesta miserável criatura.

Deus aceitou este generoso ato, e Gema caiu logo gravemente


doente. O seu estômago se fechou, por assim dizer, a ponto de não
poder mais tomar alimento de espécie alguma. Não podia engolir a
mais leve quantidade sem que lhe revolvesse as entranhas e lhe
ocasionasse dores cruéis, quando não chegava a expelir tudo.
Tolerava apenas alguns goles de vinho, e foi em que consistiu, por
dois meses inteiros, toda a sua alimentação, sendo um verdadeiro
prodígio poder viver assim. Ninguém conhecia a natureza desta
doença e a causa dos fenômenos singulares e alarmantes que a
acompanhavam. Somente a compreendia a própria vítima, que
conversando um dia com o Senhor, disse:

Jesus, em breve estaremos no fim do vosso mês.2 Ele foi verdadeiramente


todo vosso, bem o sabeis, Jesus, mas quanto a mim, nunca me saciarei.
Depois deste mês, tenho tanto que fazer por obediência, ajudai-me, Jesus!

Pelo meu lado, estando ciente do que se passava, não quis que a
santa donzela recorresse aos médicos e lhe escrevi dizendo que,
por obediência, pedisse ao Senhor o seu restabelecimento.
Com a maior docilidade, ela, fazendo-se violência, rogou a Deus e
Jesus lhe respondeu que em atenção à virtude da obediência, e
para mostrar que Ele era o autor da misteriosa enfermidade, a faria
sarar logo, mas por pouco tempo.
De fato, Gema ficou boa de repente, aceitou de novo a
alimentação ordinária, e no fim de uma semana voltaram-lhe as
forças, as cores do rosto, e desapareceu a magreza que a tinha
tornado como um esqueleto, em consequência dos sessenta dias de
absoluto jejum.
Mas os desígnios de Deus deviam cumprir-se. No dia 9 de
setembro, depois de umas tréguas de 20 dias, o mal reapareceu; e
no dia 21 do mesmo mês, voltaram a febre e os vômitos de sangue,
não mais aquele sangue provocado pelas impetuosas expansões de
amor, mas sangue vivo saindo dos pulmões.
Ao mesmo tempo, para tornar mais doloroso este martírio, o
Senhor tirou, de repente, da sua caríssima vítima expiatória, todas
as doçuras da contemplação, as suaves palpitações do coração, e,
salvo raras exceções, todas as manifestações extraordinárias e
misteriosas, como os êxtases de amor, as visões, raptos e outras
coisas semelhantes. Assim, ficou só, sem conforto algum,
consumindo-se na dor, em holocausto ao Senhor.
As cartas que me escreviam a seu respeito inspiravam compaixão:

Gema está muito doente, está feita um esqueleto coberto de pele. Sofre
dores terríveis e penas interiores que fazem arrepiar. Gema não pode mais.
Receio que morra de um momento para outro. Estou aflitíssima por não saber
o que fazer para aliviá-la. Ela sente grande necessidade da vossa presença.
Vinde dizer-nos como devemos proceder.

À vista de tão repetidas instâncias, resolvi ir. Estávamos no mês


de outubro. A pobre menina sentiu tanto prazer com a notícia da
minha chegada que quis se levantar para me esperar em pé e dar-
me as boas vindas.
Qual não foi, porém, a minha dor ao vê-la nesse estado? E ainda
com o pressentimento que desta vez o Senhor a levaria para Si.
Dei-lhe a minha bênção e lhe ordenei que se tornasse a deitar;
depois assentei-me a seu lado e conversamos:

– Então Gema, que faremos?


– Vamos para Jesus, meu pai – respondeu-me com a expressão de uma
indizível alegria.
– É certo? – perguntei.
– Sim, meu pai, desta vez Jesus me disse muito claramente. Para o Céu,
meu pai, com Jesus... com Jesus para o Céu!
– Mas – repliquei – e os pecados, quando os expiaremos? Que belo
negócio queres fazer!
E ela respondeu: – Jesus já pensou nisso. Ele me fará sofrer tanto neste
breve tempo em que tenho que viver que, santificando com os merecimentos
da sua Paixão as minhas pobres penas, se dará por satisfeito e me levará
Consigo para o Paraíso.
– Mas eu não quero que morras já – disse-lhe.
Ela, com ingênua vivacidade: – Se, porém, Jesus o quer? Então...

Aqui, não sei como, começamos a falar mais por miúdo das
particularidades da sua morte: como se lhe mistrariam os
Sacramentos, como a vestiriam, depois a colocariam no caixão e a
levariam ao cemitério para ser sepultada.
Ela falava de tudo isto com uma naturalidade admirável, como se
se tratasse simplesmente de uma mudança de cama ou de casa.
Ouvia-me e me respondia com graça e jovialidade. Mas quando a
conversação caiu sobre o lugar da sepultura, ela se tornou séria. E
com a voz um pouco comovida, me disse:

Atendei bem, meu pai, onde me colocam. Não saia de Lucca, antes de se
ter bem certificado de que o meu cadáver seja posto em lugar seguro.

Não compreendi a quê queria aludir, então, pedi uma explicação.

Refiro-me ao meu corpo; não quero que seja visto nem tocado por
ninguém, porque é de Jesus!

Tranquilizei-a e ficou satisfeita.


Quanto não se sentia feliz a santa filha, por estar perto de seu pai
espiritual! Parecia-lhe estar, daqui em diante, segura no meio dos
mais terríveis ataques, e agradecia interiormente a Deus por lhe dar
este consolo depois de tantos sofrimentos.
Na mesma noite confessou-se, e para contentá-la, permiti-lhe que
renovasse a sua confissão geral. E pela última vez, chorando de
consolação, pude bem convencer-me de novo que, durante os 25
anos de sua vida, Gema não havia cometido um só pecado venial
com plena advertência, e assim levava ao Céu, imaculada, a bela
estola da inocência que tinha recebido no santo Batismo.
Não é possível descrever a consolação espiritual que a doente
sentiu depois desta confissão. Manifestou tanta alegria que foi
preciso moderá-la, pelo receio de que tão viva comoção, e palavras
tão ardentes, não viessem agravar a sua extrema fraqueza.
Na manhã seguinte, cedo, ordenei que lhe administrassem o
Sagrado Viático.
Gema não quis tomar nenhum alimento durante toda a noite,
apesar da ardente sede ocasionada pela congestão pulmonar.
Ela foi colocada na cama, vestida como uma esposa, com o véu
branco sobre a cabeça. Dirigi-lhe algumas palavras adequadas à
circunstâncias, e me fui ajoelhar num canto do quarto.
Desde logo, Gema foi arrebatada num profundo êxtase, com as
mãos juntas sobre o peito, os olhos fechados, o espírito recolhido e
insensível como costumava sempre nessas ocasiões. Parecia um
anjo em adoração diante da majestade de Deus. O padre entrou
com o Sagrado Viático, pôs o cibório sobre o pequeno altar e voltou-
se para à doente; mas à vista do angélico rosto, que parecia lançar
raios e chamas, ficou tomado de um religioso temor.
Eu o animei dizendo-lhe que se aproximasse à Sagrada Partícula,
assegurando-lhe que, embora em êxtase, a doente procederia como
se estivesse no uso dos sentidos, o que aconteceu.
Ao aproximar-se o seu Jesus, ela abriu os olhos cheios de
lágrimas, estendeu a língua, recebeu a Comunhão, e no mesmo
instante recaiu no mesmo êxtase.
Terminada a piedosa cerimônia, o padre voltou com o Santíssimo
Sacramento para a igreja, e correu de volta ao quarto da enferma,
onde ficou prostrado de joelhos, ao lado da cama, rezando e
chorando todo o tempo que durou a ação de graças dessa
Comunhão. Eu também, embora habituado a tais transformações
dessa alma celestial, não podia dominar minhas lágrimas, e nunca
mais me esquecerei daquele dia, daquele quarto e daquele leito.
A doença prosseguiu o seu curso com ligeiras alternativas. As
síncopes eram tão frequentes e perigosas que era preciso haver, dia
e noite, uma pessoa ao seu lado para facilitar-lhe a respiração por
meio do oxigênio e impedir a asfixia; eu estava com a estola para
lhe dar a última absolvição.
Depois de estar alguns dias a sua cabeceira, eu lhe disse: “Gema,
quanto tempo ainda teremos? É preciso partir”. Respondeu-me: “Se
quiserdes ir, meu pai, podeis ir, eu não morrerei ainda. Sucumbirei
certamente desta doença, mas não já; pelo menos Jesus assim me
disse”.
Abençoei pela última vez este caríssimo anjo, que eu não devia
tornar a ver neste mundo, e retirei-me.
Antes de me despedir daquela família cristã, preocupe-me com a
segurança das crianças, pois não se deve tentar a Deus. Os
médicos tinham declarado ser a doença tísica pulmonar. É verdade
que alguns, não achando a prova na análise microscópica, eram de
opinião diversa e diziam ser uma doença nova e misteriosa, mas
todos concordavam sobre a possibilidade da infecção pelo contágio
e insistiam sobre a urgência de isolar a enferma.
Mas achei mil dificuldades em executar essa determinação.
“Como?”, diziam todos os membros da família, tanto os maiores,
como os pequenos. “Como nos privar de Gema? Deus a trouxe a
nossa casa, e nós a deixaríamos sair? Isto nunca. Se ela tiver de
morrer, trataremos dela até o fim”.
O filho mais velho, estudante da Universidade, exclamou: “Que
seria de nós se Gema não estivesse mais em nossa casa? Deus
tem abençoado e favorecido a nossa família pelos merecimentos
desta santa, a quem damos hospitalidade. Vereis, vereis, o que
será”. Era esse o sentimento de todos. Assim, tanto tergiversaram
que três meses depois da minha partida, ainda não se tinham
podido resolver aquela separação.
Afinal, prevaleceram os sábios conselhos, e consentiram num
meio termo. Uma tia de Gema alugou um pequeno quarto contíguo
à casa, donde se lhe podiam ver as janelas, e na noite de 24 de
janeiro de 1903, para lá transportaram a querida doente. Porém,
pouca ou nenhuma mudança houve quanto ao serviço e à
assistência que lhe prestavam.
Os seus dedicados benfeitores não deixavam a sua cabeceira. Os
próprios meninos, apesar da proibição dos médicos, conseguiram
iludir toda a vigilância e, ora um, ora outro, acompanhavam em
segredo a tia e corriam para ver a Gema, de quem não podiam mais
viver separados.
A pobre enferma sentia também vivamente a dor da separação.
Ela amava ternamente todas as pessoas desta afetuosa família;
mais particularmente aquela a quem ela chamava a sua segunda
mãe, e saindo da casa chorando, exclamava:

É a segunda vez que perco minha mãe. Mas viva Jesus! Só com Jesus...”.

Eis com que termos ela escreveu ao seu pai espiritual, no dia 6 de
fevereiro:

Meu bom pai, viva sempre Jesus! É a minha palavra de cada instante, o
meu dia inteiro! Viva Jesus, que me deu tanta força e coragem, que eu lhe
deveria agradecer sem cessar. Aceitei de bom grado o sacrifício quase sem
senti-lo. Compreendi, meu caro pai, que não é mais tempo de ser criança.
Força e coragem! Mas vinde algumas vezes em meu auxílio, por meio de
algumas exortações que me fazem tanto bem. Conservai-vos contente como
eu, meu pai, no meio das aflições. Abençoai-me sempre e muito. Todas as
manhãs, a todos os momentos, peço por vós, para que tenhais ainda um
pouco de paciência para comigo. Sou a pobre Gema.

Pouco tempo depois de estar instalada na sua nova casa,


escreveu uma última carta à sua Mãe celeste, conforme costumava
fazer, nas suas principais festas, ou por ocasião de alguma
necessidade particular; ora, não sei o porquê, mas desta vez, pois
nunca assim tinha feito antes, ela a incluiu na última carta que me
escreveu.
A querida filha não podia certamente deixar uma lembrança mais
preciosa, na qual imprimira toda a sua alma.
Eis aqui os pontos mais salientes:

Minha Mãe, minha débil existência continua neste mundo na luta, mas
estou contente, entre o temor e a esperança entrego-me nas mãos de Deus.
Grito, grito bem alto no meio de minhas aflições; volto- me para Jesus,
prometendo-lhe muito amor, mas Jesus está escondido. Ele não me ama
mais, ou me ama muito pouco. Ó minha Mãe, viva Jesus! Jesus, depressa e
santamente, se vingará com o seu santo amor, da mais ingrata de suas
criaturas. Ó minha Mãe, pedi por mim! Dizei a Jesus que serei boa e
obediente. Mas eu quero ir depressa para o Céu se é do seu gosto.
Abençoai-me, sou a pobre Gema.

É assim que no meio das ondas mais revoltas da tempestade, se


vê flutuar nesta virgem, sempre com serenidade na mais viva fé e
no seio das maiores amarguras da agonia, a suave expansão do
amor diante do horror da morte, a tranquilidade da esperança e o
desejo do Céu. Feliz de quem, a seu exemplo, consegue formar o
seu coração com tão elevados sentimentos.

1 Uma espécie de inflamação das articulações da coluna.


2 Mês de junho, tradicionalmente dedicado ao Sagrado Coração de Jesus – NC.
CAPÍTULO XXXII

ÚLTIMAS DORES:
AS HEROICAS VIRTUDES PRATICADAS PELA SERVA DE DEUS
(MARÇO – ABRIL DE 1903)

Uma vida toda crucificada com Jesus. Era de esperar que com
Jesus Crucificado também terminasse. Gema tinha participado
sucessivamente de todos os tormentos do Homem-Deus; das
angústias interiores, dos sofrimentos externos por obra dos
demônios, do suor de sangue, dos açoites, das feridas em todo o
corpo, dos penetrantes espinhos da coroa, do deslocamento dos
ossos, e das dores causadas pelos pregos.
Para que fosse uma viva e perfeita imagem de Jesus, faltavam
somente a agonia e a morte num mar de dores – e Jesus não quis
privá-la desta graça. Como aquele corpo tão débil não podia
certamente suportar tantos sofrimentos, achou Ele um meio de
substituir a intensidade pela duração, conservando durante longos
meses a vítima pregada na cruz.
Deste martírio já assistimos ao princípio, contemplemos agora a
sua consumação.
Apesar da gravidade do seu estado, a piedosa doente tinha, até
aqui, conseguido levantar-se todas as manhãs bem cedo, e arrastar-
se,embora com muito custo, até à igreja mais próxima para receber
a Sagrada Comunhão. Sua incansável mãe adotiva vinha a cada
vez tomá-la, reconduzi-la para casa; ajudava-a a deitar-se
novamente na cama, onde a deixava para que aí fizesse a ação de
graças.
Mas a ventura que Gema achava neste alimento celestial era
grande demais, e suave demais era o conforto que sentia, por isso
Jesus lhe o tirou.
Em menos de dois meses a febre aumentou de tal modo que lhe
impediu todo e qualquer movimento; ela então inclinou a cabeça e
disse: “Jesus, assim seja”.
O seu alimento tinha consistido até então em alguns goles de
líquidos substanciais e fortificantes. Em breve, porém, o estômago
não admitia mais nem sequer esse sustento, e teve que renunciar a
ele, aceitando mais esta provação sem proferir a menor queixa. O
seu organismo se foi desfazendo pouco a pouco, e ela se achou
reduzida a tal modo que não havia um só lugar em que não sofresse
uma dor particular.

Pobre mártir! – escreviam-me de Lucca. Pobre vítima de Jesus! O seu


tormento é incessante; parece que se lhe esmagam os ossos; o padecimento
é geral, ela vai se consumindo e não pode resistir mais. Há vinte dias que
perdeu a vista, a voz está tão enfraquecida que custa ouvi-la, mesmo
aproximando o ouvido dos seus lábios; é um esqueleto que se desfaz de hora
em hora; o seu aspecto inspira medo e faz pena.

Entretanto, todos estes tormentos intensíssimos não eram nada


em comparação àqueles que os demônios infligiam à pobre
enferma.
O Espírito Santo nos diz que nos últimos instantes da nossa vida,
Satanás, sabendo que pouco tempo lhe resta para nos prejudicar,
assalta os desesperados com terríveis tentações, como um leão que
vê sua presa prestes a fugir, habens iram magnam.1
Ora, que ataques furiosos não reservaria à Gema, a quem tinha
perseguido durante toda a vida com ódio mortal, e a quem fez
sempre uma guerra implacável.
Lê-se de outros santos que, nos seus últimos dias, tiveram que
sofrer, do infernal inimigo, assaltos mais ou menos longos e fortes
mas, em suma, passageiros.
Quanto à Gema, foi um contínuo assalto, apenas interrompido por
curtos momentos de trégua.
O fato é aterrorizador, mas absolutamente certo, por ser
unanimemente atestado pelas pessoas que lhe assistiram durante a
última enfermidade, no espaço de sete meses.
O espírito maligno perturbava-lhe a imaginação com mil fantasmas
que enchiam o seu coração de tristeza, ansiedade, amarguras e
temores, para tentar levá-la ao desespero. Representava-lhe sob as
mais sombrias cores o quadro de sua vida, repassada de angústias,
as desgraças de sua família, as privações de todo o gênero. Fazia
passar diante de seus olhos os agentes da força pública que, por
ocasião da morte de seu pai, tinham vindo acompanhados de
credores para sequestrar todos os seus bens, para aí exclamar: “Eis
aí o resultado de todas as tuas fadigas no serviço de Deus!”.
Aproveitando-se também do estado de aridez espiritual, em que,
para mais purificá-la, o Senhor a deixava quase sempre, empregava
todos os seus artifícios em persegui-la, dizendo-lhe que por se ter
desviado do caminho reto da santidade, Deus a tinha abandonado,
e que era certa a sua condenação.
Insinuava-lhe, o astuto tentador, que suas heroicas virtudes, e até
mesmo os mais insignes favores recebidos do Céu, não eram senão
ilusão e hipocrisia.
Esta última tentação foi, de todas, a mais terrível e a mais longa.
A pobre donzela caiu numa terrível desolação, e querendo a todo
o custo a sua salvação, resolveu remediar, se fosse possível, todo o
passado, com uma confissão geral. Tomou a pena e naquela
agitação de espírito e confusão de ideias em que estava envolta,
escreveu detidamente a história de toda a sua vida, declarando-se
merecedora de mil infernos, porque com uma malícia diabólica tinha
enganado a seus confessores, seus diretores e a si mesma.
Passando em seguida a uma minuciosa revista dos Mandamentos
da Lei de Deus e da Igreja, dos Pecados Capitais e deveres de
estado, confessava-se culpada dos maiores crimes.
Estas páginas (que antes de serem seladas foram lidas por quem
estava autorizado) ela quis que fossem levadas a um santo
sacerdote, que lhe era conhecido, suplicando-lhe que lhe viesse dar
a absolvição de todos aqueles pecados. Tal sacerdote a satisfez e a
deixou sossegada.
Mas o inimigo não se deu por vencido. Empregou todos os
esforços para induzi-la a atos de impaciência e de cólera, e assim
fazer com que perdesse ao menos a reputação que tinha de virtuosa
e santa; pois assim era merecidamente considerada por todos.
Todavia, o que mais afligia e enchia de amarguras a este anjo,
eram os supremos esforços do inimigo para envergonhar o seu
virginal pudor. O espírito imundo sabia muito bem com que amor e
cuidados ela tinha guardado este tesouro em toda sua vida, e com
que heroísmo já tinha combatido contra ele neste terreno, e vencido!
Agora, não pretendia mais uma vitória, que a sabia impossível, mas
ao menos queria tirar uma vingança, amargurando os últimos dias
desta inocente pomba.
O quarto da santa enferma parecia, para ela, ter-se convertido
num inferno.
Já não eram pensamentos ou imaginações, nem seduções, aos
quais não podia ser sensível uma alma de tal têmpera, porém,
aparições reais sob formas variadas e de um cinismo brutal.

Meu pai, meu pai – escrevia-me do seu leito de dores –, esta aflição é forte
demais para mim. Dizei a Jesus que a troque por qualquer outra... Mandai de
longe orações e exorcismos para afastar este maldito demônio, ou ordenai ao
vosso anjo da guarda que o venha expulsar daqui.

Mal terminava uma batalha, começava outra. Uma das


enfermeiras da Serva de Deus, por vezes me escreveu:

Esta hedionda besta vai acabar com a querida Gema; saio de junto dela,
chorando; este horrível demônio dá conta dela e ninguém o pode afugentar.
São barulhos atroadores, figuras terríveis de animais ferozes; certamente ele
a matará. Procuramos socorrê-la, aspergindo água benta no quarto; o rumor
cessa por algum tempo, para recomeçar logo depois com mais força.

Da alma, passando ao corpo, quantos artifícios não imaginava o


inimigo para atormentá-la!
Recebeu algum alívio quanto à dificuldade de engolir, e trataram
logo de trazer-lhe algum alimento. Porém em vão; mal lhe
apresentavam e o malvado o fazia aparecer coberto de insetos
repugnantes, e dos objetos mais nojentos que se podem imaginar. O
estômago dela se revoltava e era preciso retirar tudo de sua vista.
Outros animais repelentes, reais ou imaginários, subiam à sua
cama, arrastavam-se sobre o seu corpo e a atormentavam de mil
modos, sem que a querida menina se pudesse livrar deles.
Muitas vezes ela disse, aterrada à irmã enfermeira, que sentia
uma serpente enrolar-se pelo corpo, da cabeça até os pés, tentando
sufocá-la.
Pedia instantemente que usassem dos exorcismos, mas não
julgavam conveniente. Então, ela experimentou fazê-los por si
mesma, e encarando o inimigo de frente, com o rosto inflamado e a
voz imperiosa, exclamou:

Espíritos malignos, eu vos ordeno que volteis para o lugar que vos é
destinado; senão, ai de vós, eu vos acuso diante do meu Deus!

Depois, voltando-se para a sua Mãe celeste exclamou:

Minha Mãe, eu me acho nas mãos do demônio, que luta, que me bate e
flagela para arrancar-me das mãos de Jesus. Não, não Jesus, não me
abandoneis, eu serei boa, fiel. Oh! Minha Mãe, pedi a Jesus por mim. Estou
sozinha, de noite, cheia de terror, oprimida, e como que atada em todas as
potências da minha alma, e em todos os sentidos do meu corpo, sem poder-
me mover. Viva Jesus!

De vez em quando, o divino Mestre, para amimá-la e tranquilizá-la,


lhe aparecia e, falando claramente, dizia:

Porque minha filha, em vez de te entristeceres com as perseguições de teu


inimigo, não aumentas a tua esperança em mim? Humilha-te debaixo da
minha mão poderosa, sem te deixar abater pelas tentações. Resiste sempre
sem te deixar vencer, e se a tentação perseverar, persevera também, na
resistência; a luta conduzir-te-á à vitória.

Outras vezes era o seu anjo da guarda que se apresentava para


lhe dar algum conforto, e conforme ela me escrevia, com essas
suaves visitas, sentia-se reanimar. Mas essa ventura durava poucos
momentos, e a sua alma recaia logo nas trevas: o tentador
reaparecia ainda mais furioso do que antes.
Assim se passavam, para a pobre paciente, os dias, as semanas e
os meses, dando-nos ela o exemplo da mais admirável paciência, e
motivo de salutar temor, pelo qual nos poderá suceder, a nós, que
não temos os merecimentos de Gema, na terrível hora da morte.
Quanto às dores e outros sofrimentos físicos provenientes da
doença, a virtuosa donzela nem pensava neles. Nunca se mostrou
aborrecida ou cansada nem com o rosto abatido, como geralmente
se apresentam os doentes. Pelo contrário, conservava sempre o seu
ar de contentamento e o seu sorriso angélico.
Nunca demonstrou ficar acabrunhada com as diversas crises da
enfermidade, nem deixou escapar do peito os gemidos e suspiros
que a força da dor arranca inconscientemente aos enfermos, até
mesmo aos mais corajosos.
Nunca pedia o menor alívio, nem ao menos que a virassem na
cama, que a aliviaria do incômodo de estar na mesma posição.
Mostrava-se sempre satisfeita com a assistência que lhe
prestavam, ainda que, por falta de combinação, chegavam a deixá-
la só uma noite inteira, ou quando mais necessário era algum
caridoso serviço.
Para evitar este último inconveniente, recorreram, afinal, às boas
irmãs enfermeiras Barbantini, que, com a sua habitual caridade, se
encarregaram de todo o seu tratamento e a assistiram até o fim.
Uma delas, maravilhada da heroica paciência da Serva de Deus,
dá-nos este testemunho:

Em todo o tempo que tive a consolação de assistir à querida Gema na sua


última doença, nunca lhe ouvi proferir uma queixa. No princípio, somente eu
a ouvi algumas vezes dizer: “Meu Jesus, não posso mais!”. Mas dizendo-lhe
eu, que com a graça de Deus tudo é possível, não repetiu mais aquelas
palavras; e quando alguma pessoa presente, tomada de compaixão, dizia:
“Pobrezinha, não pode mais”, “Sim”, ela respondia depressa: “Ainda posso
um pouquinho!”. Entretanto – continua a Irmã –, eu a vi em tais sofrimentos,
que me parece não serem mais terríveis os do Purgatório.

Neste dilúvio de males e lutas atrozes, a virtuosa enferma achava


facilidade em se entreter familiarmente com Deus com a mesma
calma e suavidade de espírito como costumava no tempo das
maiores consolações. “Oh! Onde estais, Jesus?”,2 dizia
habitualmente no fim de cada combate com o inimigo infernal, “não
receies que eu vos esqueça, Vós o sabeis, Jesus, Vós vedes o meu
coração”.
Ela proferia estas e outras semelhantes palavras com os braços
abertos, e os olhos fixos no Céu, além de uma expressão de
indizível ternura. Depois, voltando-se para Nossa Senhora, dizia:

Minha Mãe, assegurai a Jesus que eu lhe guardarei a minha palavra, e lhe
serei fiel.

Por vezes, sentindo-se de repente atacada pelo inimigo com mais


vigor, exclamava com a mesma afetuosa confiança:

Oh! Jesus, se é do vosso gosto, dai-me uma pequena trégua, oh! Jesus!

Tais aspirações se sucediam sem interrupção, às vezes


articuladas, porém, frequentemente interiores:

Não sabeis Jesus, que sou toda vossa?

Certa vez, uma Irmã assistente que lhe ouviu tais expressões, lhe
perguntou:

Se Jesus vos desse a escolha entre ir já para o Céu, cessando todo o


sofrimento, ou ficar aqui, continuando a sofrer, para sua maior glória, que
escolheríeis?

Gema, com vivacidade, respondeu:

Antes sofrer do que ir para o Céu, desde que o sofrimento seja por amor de
Jesus e para glorificá-lo.

Durante as longas horas da noite, Gema instava com a Irmã para


que rezasse em voz alta diversas orações:

Vamos, irmã, vamos rezemos! Não nos ocupemos de mais nada, mas de
Jesus somente!

As boas religiosas, entusiasmadas em ver tanto fervor numa pobre


donzela já quase moribunda, disputavam-se na consolação de servi-
la, porque asseguravam que recebiam tanta edificação e conforto
com tão santo exemplo, que não sentiam nem cansaço nem
incômodo. Demos a palavra a uma delas, a Irmã Camila:
A impressão que me deixou esta jovem é que ela era um conjunto de todas
as virtudes. Durante todo o tempo em que lhe dispensei os meus cuidados,
foi para mim uma edificação contínua. Observei que ela possuía uma ciência
profunda da vida espiritual e da vida mística... Conversando com ela (que não
falava de assuntos que não eram celestiais), sentia grande conforto para o
meu espírito, parecendo-me ouvir falar um anjo. Suas expressões eram
sempre tão claras, exatas e frisantes, que não se poderia esperar melhor de
um teólogo. Se eu lhe recordava o exemplo de Jesus para amimá-la a sofrer,
então o seu rosto se inflamava, desabrochava em seus lábios um doce
sorriso e parecia não sofrer mais, tão delicioso era o enternecimento que a
lembrança de Jesus despertava no seu coração.

De ordinário, os sentimentos que se exalavam de sua alma eram


os de uma profunda compunção.
Muitas vezes, dizem as testemunhas, via-se que ela tremia com o
pensamento dos seus pecados. Durante todo o curso da doença,
essa lembrança a enchia de terror, e não era possível ouvir, sem
ficar comovido, às palavras ternas e ardentes que escapavam de
seus lábios.

Oh! Jesus – ela exclamava –, quantos pecados! Não os vedes Jesus? Mas
a vossa misericórdia é infinita. Vós me os tendes perdoado muitas vezes; Vós
me perdoareis ainda agora.

Em seguida, com os olhos cheios de lágrimas, dirigia-se à


Santíssima Virgem:

Minha Mãe, quando eu me apresentar diante de vosso divino Filho, dizei-


Lhe que tenha compaixão de mim.

Sua oração jaculatória mais com de dia e de noite era esta:

Meu Jesus, Misericórdia!

Outra irmã enfermeira fez esta declaração:

A virtude que mais resplandeceu em Gema durante a sua doença, e que


mais vivamente me comoveu, foi a sua grande humildade.

Finalmente, a oração da admirável jovem era ininterrupta. Quando


alguém ao seu lado lhe sugeria santos pensamentos, ela se voltava
para um grande crucifixo pendurado na parede do lado direito do
seu quarto, ou para uma imagem da Santíssima Virgem, colocada
defronte da sua cama, e rezava em voz alta. Se cansada de falar,
ela calava; compreendia-se pela expressão do rosto que os seus
colóquios com o Senhor continuavam com o mesmo fervor.

Monsenhor – dizia ela – me aconselha a rezar com o coração quando não


posso com os lábios; e assim faço.

Antes de perder a vista, Gema se aplicava às vezes a uma leitura


piedosa. E vendo-a um dia com o livro na mão, a sua tia lhe
perguntou:

– Lês, Gema?

– Sim, minha tia, eu leio a preparação para a morte.

Com efeito, durante a doença, fazia impreterivelmente cada tarde


aquele exercício.

– Mas, dize-me – replicou a tia –, não sentes pesar em morrer?

– Oh! Não – respondeu Gema –, nada mais me prende neste mundo!

Mas não era somente com Deus que se comprazia a piedosa


virgem de falar no meio de suas acerbas dores, mas também com
as pessoas. Quando não estava rezando ou sustentando algum
combate espiritual, porque quanto aos sofrimentos físicos não lhes
dava atenção, era toda cheia de amabilidade para os que a
rodeavam, edificando-os conforme já vimos, com santas
conversações, e esforçando-se por lhes suavizar a dor que
mostravam sentir pelo seu lamentável estado.
À tia que chorava junto ao seu leito, dizia:

Minha tia, eu conheço bem o seu caráter e sei quanto é compadecida


vendo-me sofrer: sofre também muito. Afaste-se, retire-se. Sim, façam com
que ela saia! Ela sofre demais por minha causa... não a deixem mais vir para
perto de mim.
Respondia a todos os que a interrogavam com palavras amáveis e
até com ditos chistosos; aos gracejos com que frequentemente
procuravam distraí-la, respondia também, com gracejos ou às vezes
com um riso gostoso.
Quando os filhos de seus benfeitores iam vê-la, Gema os
acariciava afetuosamente e lhes davam doces e bolos com que a
tinham presenteado e que ela guardara especialmente para eles.
Um dia recebeu a visita da única irmã sua que ainda sobrevivia,3 e
esta, ao vê-la em tão triste estado, caiu num pranto desfeito.

Não chores, Angelina – lhe disse a paciente enferma –, acalma-te, isto não
é nada; peço-te perdão dos maus exemplos que te tenho dado.

Estas palavras redobraram a comoção da irmã que, por sua vez,


pediu perdão de qualquer falta.
Gema a tranquilizou:

Não penses nisto Angelina, sê boa, é o que te peço!

E se despediram.
Enfim, mostrava-se sempre cheia de gratidão e deferência para
com as Irmãs que lhe prodigalizavam seus cuidados, e ainda que a
sua natureza franca e simples fosse avesso aos cumprimentos,
todavia, a expressão dos seus olhos revelava como tinha o coração
compenetrado de profundo reconhecimento.
Um dia ela ouviu sua mãe adotiva dizer à superiora destas Irmãs:

Para as recompensar, eu saberei cumprir o meu dever.

Gema a interrompeu com vivacidade, exclamando:

Não, não; quanto às Irmãs, eu penso nelas junto de Jesus.

Para qualquer pessoa que lhe prestasse o menor serviço, repetia:

Sede bom, e não duvideis que eu me lembrarei de vós aos pés de Jesus.
Quando eu estiver com Jesus, não me esquecerei do que me fazeis agora.
No último período da doença, Gema, pela extrema fraqueza, caía
muita vezes em síncopes ou em delírios.
O demônio aproveitava-se destes momentos, em que era
impossível a reação, para atormentá-la ainda mais com terríveis
fantasmas; mas mesmo neste estado de prostração, Gema sabia
entoar o seu habitual grito de guerra para repelir as malignas
sugestões:

Viva Jesus! Toda de Jesus! Jesus somente!

Observavam que, na maior força do delírio, apenas lhe falavam


em Deus e logo voltava a si, respondendo tão a propósito como se
estivesse com o espírito perfeitamente são. O mesmo acontecia
quando, por si mesma, cooperando a graça, se entretinha em algum
elevado pensamento de Deus. Então, a inconsciência cedia lugar à
razão, e do delírio, passava-se repentinamente à palavra sublime de
alto misticismo. Assim aconteceu uma vez, quando ficou fora de si
por um violento acesso de tosse que parecia querer sufocá-la, ou
fazer-lhe estalar o peito, passou a dizer palavras incoerentes e
gracejos quando uma pessoa da família, por perto, a contemplava
com compaixão.
Ela também, lançando com amor o seu olhar sobre a jovem, lhe
disse:

Aprende Eufêmia, como Jesus quer ser amado.

Era esta donzela 4 a predileta de Gema, a confidente de todos os


seus segredos, que a assistiu assiduamente em todo o tempo de
sua doença, esteve presente nos seus últimos instantes e recolheu
o seu espírito como uma preciosa herança.
Mas, voltemos ao nosso Calvário, à nossa santa crucificada, para
acabar de edificar-nos e ver como morrem os santos.

1 Refere-se a uma passagem do livro do Apocalipse 12, 12: “Por isso, alegrai-vos, ó
céus, e todos que aí habitais. Mas, ó terra e mar, cuidado, porque o demônio desceu para
vós, cheio de grande ira, sabendo que pouco tempo lhe resta”.
2 Como explicar o abandono de Nosso Senhor depois da união mística permanente,
depois do seus matrimônio com Nosso Senhor? Só se explica à luz da vocação reparadora
de Santa Gema, assim como também ocorreu com Seu Pai, São Paulo da Cruz, que sofreu
longamente uma “noite reparadora”. Também a sofreu Madre Francisca de Jesus, que
consentiu, em espírito de reparação, permanecer na escuridão, como podemos ver no
primeiro livro desta coleção, escrito pelo Fr. Garrigou-Lagrange: Madre Francisca de Jesus,
Campinas, Ecclesiae, 2013 – NC.
3 Angelina Galgani teve a graça de estar presente na canonização de sua irmã – NC.
4 Trata-se da já citada Eufêmia Giannini, Venerável Madre Gema de Jesus, monja
passionista, e depois fundadora das Irmãs de Santa Gema.
CAPÍTULO XXXIII

PESAR PROFUNDO:
A PRECIOSA MORTE E SEPULTURA DA SERVA DE DEUS (8-12
DE ABRIL DE 1903)

A cruel doença já percorreu seu período. Gema não tem mais do


que um sopro de vida. Todo o seu corpo está entregue à dor; a
palidez da morte cobre o seu rosto e ela jaz imóvel sobre o seu leito
numa atitude tão enternecedora que lembra o próprio Jesus
expirando na cruz.
Quatro ou cinco dias antes da morte, ela se tornou tão pesada que
três pessoas robustas e os próprios moços da casa custavam
levantá-la da cama, quando pela sua delgada estatura e extrema
magreza, reduzida à pele e ossos deveria ter sido possível carregá-
la até por uma criança. “Temos lidado com tantos doentes, diziam as
irmãs, e nunca vimos este fenômeno”.1
Chegaram a fazer essa observação à própria Gema, que (bem
podendo saber a razão) respondia ingenuamente: “Não sou eu, ficai
certos, que peso assim”.
É bem provável que o demônio tivesse a mão nesse negócio, por
maldade, a fim de aumentar os sofrimentos da pobre vítima. De fato,
logo que expirou, voltou ao seu peso natural.
Chegando a quarta-feira santa, 8 de abril, Gema parecia
levemente extática, com os olhos fixos de vez em quando no Céu, e
exclamava com uma ansiedade abrasada: “Jesus! Jesus!”.
De repente, entrou num desses grandes arrebatamentos, tão
frequentes em sua vida, mas de curta duração. Voltando a si, a irmã
lhe perguntou se, naquele momento, Jesus lhe tinha consolado. Ela
ingenuamente respondeu: “Oh! Muito, irmã; se vos fosse dado
contemplar a menor parte do que Jesus acaba de me mostrar, que
gozo seria o vosso!”, e falando assim, atesta a religiosa, estava toda
transfigurada.
No mesmo dia ela recebeu o Sagrado Viático com grande
sentimento e devoção, abstendo-se, porém, como era seu costume,
de qualquer manifestação exterior de piedade fora do comum.
Desde o dia 23 de março, em que pela última vez tinha saído para
ir à igreja, não tinha mais comungado.
Assim, pedia com instância para comungar no dia seguinte, quinta-
feira santa, dia tão solene para seu coração, e como o sacerdote
tivesse alguma dificuldade em administrar-lhe a Sagrada
Comunhão, pela segunda vez em forma de Viático, ela, de bom
grado, para não se privar desse divino conforto, ficou em jejum,
suportando a sede ardente que a devorava.
Uma testemunha diz que parecia uma santa, assentada na cama
com as mãos postas, os olhos baixos, o semblante radiante e o
sorriso nos lábios, apesar da violência do mal que a consumia.
Logo que recebeu a sagrada Hóstia, entrou num profundo
recolhimento que se tornou extático, embora não tão absorvente,
pois conservava a facilidade de responder, por momentos, a quem
lhe falava de assuntos santos.
Durante estes êxtases, parecia-lhe ver uma coroa de espinhos, e
disse:

Antes que estejas terminada, por quanto ainda tenho que passar?

Voltando-se para a Irmã, acrescentou:

Oh! Que dia o de amanhã! – Era sexta-feira santa.

Rompeu esse dia. Pelas 10 horas da manhã, a senhora que a


assistia, sentindo-se extenuada de cansaço e de insônia, quis
retirar-se para repousar um pouco. Mas a moribunda lhe suplicou:

Não me deixeis enquanto eu não estiver pregada na cruz. Tenho que ser
cru-cificada com Jesus. Jesus disse-me que seus filhos devem morrer
crucificados.

A senhora ficou, e pouco tempo depois, Gema cai num profundo


êxtase, estendeu pouco a pouco os braços e permaneceu assim por
uma hora e meia. Em seu semblante, resplandecia uma mistura de
dor e de amor, de desolação e de calma.
Não fala mais, porém, que de expressivo não tem toda a sua
pessoa? Está agonizando com Jesus na cruz. Os assistentes,
atônitos, a contemplam, sem nunca saciar-se. “Imaginai – escreveu-
me um deles –, Jesus crucificado moribundo; tal era a fisionomia de
Gema neste momento”.
Continuou a sofrer penas mortais por todo aquele dia, na noite
seguinte e na manhã do sábado.
Parecia que devia expirar de um momento para outro, sob a
violência de espasmos terríveis, e mais ainda das angústias
interiores.
Às ٨ horas do Sábado Santo, administraram-lhe a Extrema-Unção
estando ela com pleno conhecimento e acompanhando com singular
devoção as orações da Igreja, e esforçando-se em responder,
embora com voz extinta, o melhor que lhe era possível.
A maior dor que sentiu o Salvador na sua agonia na cruz, dizem os
Santos, foi o abandono aparente do seu celeste Pai, abandono por
demais real da parte dos homens, a ponto de se queixar do alto do
duro madeiro; e Gema devia também assemelhar-se nesse ponto ao
seu Divino Mestre.
O leitor ter-se-á provavelmente admirado de, como nesse transe
terrível, não se achasse ao lado da moribunda nem seus
confessores, diretores ou pai espiritual, mas somente algumas
senhoras caridosas que ali estavam, mais por se compadecerem de
seus sofrimentos do que para lhe oferecerem algum conforto. Mas
assim aconteceu porque Deus o determinou para completar o
martírio e os merecimentos de sua predileta serva.
Um sacerdote da Igreja mais próxima lhe levou o Viático e não
voltou mais; o vigário da freguesia administrou-lhe a Extrema-Unção
e retirou-se, tomando a aparecer só no último momento para fazer a
encomendação da alma.
O confessor extraordinário, chamado por ela, ouviu-lhe a confissão
em poucos minutos e não voltou; o confessor ordinário, que era o
único que conhecia todos os mistérios de sua alma, tendo-a dirigido
desde criança e que, portanto, poder-lhe-ia ser de tão grande auxílio
e conforto no meio de tantas penas espirituais, dores, tentações e
combates, só apareceu alguns momentos, por mais que a pobre
donzela com instância suplicasse que não a abandonasse.
Quanto a mim, afastado de Lucca, e ignorando o iminente perigo e
a grave necessidade, não pensei nem em ir vê-la nem escrever-lhe
cartas que a confortassem. Assim, Gema se achou isolada sofrendo
só com Jesus.
No princípio, sentindo-se mal, ela reclamou a minha presença e
pediu que me telegrafassem; mas advertida interiormente, que Deus
queria ainda este sacrifício, não manifestou mais nenhum desejo a
este respeito.
Quando lhe falavam de mim, depois de exprimir com um amável
sorriso que eu estava presente ao seu espírito, dizia:

Eu não peço mais nada. Fiz a Deus o sacrifício de tudo e de todos. Agora
preparo-me para morrer.

Deus também retirou-se por sua vez, não fazendo mais descer
nem um raio de luz sobre o seu espírito, nem uma centelha de
consolação sobre o coração daquela mártir.
Assim, aniquilada pela veemência do mal, esmagada sob o peso
de imensas dores, atormentada em todas as faculdades da alma e
do corpo pelos inimigos infernais, sem conforto nem do lado do Céu
nem do lado da Terra, esta inocente mártir, erguendo a voz
desfalecida, exclamou:

Agora, é certo que de todo não posso mais, Jesus. Recomendo-vos minha
pobre alma... Jesus!

Era o “consummatum est” 2 e o “in manus tuas”3 do Salvador


morrendo na cruz, e foram as últimas palavras de Gema. A vítima
estava inteiramente consumida, só lhe faltava dar o último suspiro
para completar o seu sacrifício. Passou meia hora. Gema está
assentada sobre a cama, com a cabeça apoiada sobre o ombro de
uma das senhoras, suas benfeitoras. Sua jovem confidente,
Eufêmia, de joelhos diante dela como Madalena aos pés de Cristo
na cruz; segura as suas mãos, ora apertando-as ao coração, ora
inclinando sobre elas a fronte.
A irmã assistente e as outras pessoas piedosas da família, tanto
os homens como as senhoras, conservavam-se em pé,
contemplando tão sublime cena.
Gema parecia adormecida e calma quando, de repente, enquanto
todos os olhares estavam fixos em seu rosto angélico e ainda belo,
apesar do estrago de tão prolongada doença, seus lábios se
entreabrem num doce sorriso, inclina suavemente a cabeça para um
lado, e deixa de viver, como nos diz o Evangelho de Jesus na cruz:
Et inclinato capite tradidit spiritum.4
Logo a sua bela alma, recreada, como tenho a firme confiança
pela presença visível do seu caríssimo Jesus, da sua celeste Mãe,
do anjo custódio, que lhe foi tão familiar durante a vida, de São
Paulo da Cruz, que tantas vezes invocou nos seus últimos
momentos, e do Bem-aventurado Gabriel, de quem foi sempre
devotíssima, carregada de coroas e de palmas, voou para o seio de
Deus.
Ninguém, a princípio, percebeu que ela havia falecido, pois além
de não ter precedido a menor agonia no exalar o último suspiro, não
fez nenhum esforço nem contorção; não deu o mais leve sinal de
opressão que denotasse sufocação ou asfixia. Sua morte foi como
um beijo de despedida que a sua alma inocente dava ao seu
puríssimo corpo; em poucas palavras, foi o que se exprime nos
salmos: “o sono dos diletos do Senhor”.5
Deu-se esta bem-aventurada morte à uma hora depois do meio dia
do Sábado de Aleluia, que naquele ano de 1903, foi no dia 11 de
abril.
Gema tinha dito uma vez à sua tia:

Pedi a Jesus que me fizesse morrer numa grande solenidade! Quão belo
deve ser morrer numa grande solenidade!

E eu acrescento: que consolação morrer na solenidade da


ressurreição de Jesus, depois de ter santificado a sexta-feira Santa
sobre a cruz de Jesus, participando de todas as suas dores!...
Oh! Bendita Virgem, fazei que nós também tenhamos esse amor
do sofrimento de Jesus, sem o qual não se pode entrar na sua
glória. Do Céu, onde estás agora, não te esqueças das promessas
que fizeste aos que te serviram e ajudaram na tua santificação.
Morta a santa jovem, as irmãs prestaram os últimos serviços ao
seu cadáver e por inspiração de quem conhecia a fundo os íntimos
desejos do seu coração, que se resumiam em ser Religiosa
Passionista, vestiram-na de preto, colocaram sobre o seu peito um
crucifixo e sobre o coração o emblema da Paixão, que é principal
distintivo daquele Instituto; ornaram a sua cabeça com uma grinalda
de flores, puseram o rosário no pescoço, uniram-lhe as mãos junto
ao peito, do mesmo modo que ela ficava quando absorta em êxtase.
Conservou-se impresso em sua fisionomia aquele gracioso sorriso,
com o qual exalou a sua alma; e o seu corpo, respirando não sei
quê de celestial, assim preparado e adornado, parecia de uma
pessoa viva que dormia tranquilamente, ou estava arrebatada dos
sentidos em íntima comunicação com Deus.
Espalhada essa triste notícia, muitas pessoas foram rezar junto do
leito fúnebre.
Os meninos da família que a tinha hospedado, acudiram
imediatamente, e não podiam enxugar as lágrimas.
Até os menores, de 4 e 5 anos queriam beijar-lhe as mãos, e
comovidos, diziam: “Gema, Gema!”.
O velho sacerdote, membro daquela família, de que já falamos, e
que mais do que ninguém amava e venerava aquele anjo, encerrou-
se naquele pobre quarto e lá permaneceu imóvel, todo o dia da
Páscoa, a chorar e rezar, até que o bendito corpo foi levado ao
cemitério.
Entre as muitas pessoas que compareceram, apresentou-se
aquele digno sacerdote a quem a boa Gema, cruelmente atribulada
pelo espírito maligno, chamou para fazer a sua confissão geral.
À vista da falecida virgem, foi tal a reverência que sentiu, que
atirando-se de joelhos a seus pés, exclamava: “Gema tens a teus
pés um grande pecador. Reza a Jesus por mim”.
Outros eclesiásticos e seculares tocavam com rosários em sua
fronte para guardá-los como preciosa lembrança.
Continuou a concorrência durante todo o dia seguinte, tirando
alguns flores da coroa que tinha sobre a cabeça, e por devoção
encostando nas suas mãos e nos seus pés; outros lhe cortavam os
cabelos – e a tal ponto era o desejo de possuírem os seus cabelos
que se a irmã assistente não o tivesse impedido, lhe os tirariam
todos.
Já tarde, chegou um respeitável sacerdote que, não tendo podido
vê-la morta, quis ao menos rezar naquele quarto, donde saíra o seu
cadáver, e comovido até as lágrimas disse: “Parece-me estar num
santuário do qual este leito, figura o altar. Como se reza bem!
Quisera nunca afastar-me daqui!”.
Resolvendo-se afinal a sair, voltava repetidas vezes, olhando para
dentro e exclamando: “Feliz dela que soube viver como um anjo e
morrer como uma Santa!”.
Adiantava-se, porém, à tarde, e era necessário levar o precioso
despojo.
A respeitável Associação da Rosa encarregou-se do enterro com
muita pompa; mas a glória de carregar sobre seus ombros aquele
caro penhor, reclamou-o para si o mais velho dos filhos da família
onde Gema viveu, estudante da Universidade, com outra pessoa da
mesma casa, e mais dois colegas, todos revestidos com seus belos
hábitos amarelos.
Foi encerrado o bendito corpo em um decente caixão de madeira,
onde tiveram o cuidado de depositar em um tubo de cristal a
seguinte belíssima memória em pergaminho, ditada pelo
Reverendíssimo Dom Roberto Andreuccetti, Corretor da dita Igreja
da Rosa:

“Gema Galgani nasceu em Camigliano, junto de Lucca, aos 12 de março de


1878. Filha de Henrique Galgani e Aurelia Landi. De costumes irrepreensíveis
e singular piedade, foi admirável exemplo de virtudes cristãs. Provada desde
a infância por grandes desventuras domésticas, purificada por longa e
dolorosa enfermidade, suportada com edificante resignação, achou sempre o
seu único conforto na constante devoção a Jesus Crucificado, a quem
ardentemente desejava consagrar-se inteiramente, vestindo o hábito religioso
entre as Filhas de São Paulo da Cruz. Madura para o Céu, para ali voou no
sábado Santo, aos 11 de abril de 1903. Vive com os anjos, ó alma piedosa, e
reza por nós”.

Estando tudo preparado, depositado o caixão sobre um rico


féretro, ornado de flores e carregado por pessoas piedosas;
ordenou-se o devoto acompanhamento até o cemitério, seguido pelo
clero e por alguns devotos, fazendo todos a pé aquele longo
caminho.
Certamente que a solenidade do dia de Páscoa formava singular
contraste com a cerimônia fúnebre, porém, quanto era expressivo
este contraste! Esta procissão assemelhava-se à volta de uma festa
que acabava de realizar-se.
Enquanto a alma da jovem virgem tinha sido levada pelos anjos
para festejar no Céu o triunfo da Ressurreição do Senhor, os
homens iam confiar às entranhas da terra os seus restos mortais,
que lhes eram agora inúteis, a fim de que os restitua naquele dia
final em que terão de servir uma segunda vez.
O caixão foi depositado numa sepultura particular, ao ar livre e
sobre uma placa de mármore gravaram este epitáfio latino.

Gema Galgani Lucensis Virgo innocentissima


quae divini amoris aestu magis
quam vi morbi absumpta
quinto aetatis lustro vix emenso
ad coelestis sponsi nuptias evolavit die
XI M. Aprilis A. MCMIII
per vigilio dominicae resurrectionis
Anima dulcis te in pace cum angelis.

Eis aqui a tradução:

Gema Galgani de Lucca, virgem puríssima, que no quinto lustro da idade,


consumida mais pelas chamas de amor divino do que pela doença, no dia 11
de abril de 1903, véspera de Páscoa da Ressurreição, voou para o seio do
seu celeste Esposo. Repousa em paz, ó Bela Alma, na companhia dos anjos!

***
A dor, que se apoderou de toda a família benfeitora de Gema, e a
perturbação em que ficaram, fez com que esquecessem, por
momentos, do pensamento que tinham concebido: de mandar abrir,
depois de sua morte, o seu peito, na esperança de achar em seu
coração algum sinal extraordinário.
Recordaram-se, porém, desse projeto logo depois do enterro e
tomaram a resolução de realizá-lo sem demora.
Mas foi necessário esperar algum tempo para as formalidades
exigidas pela autoridade civil, e no dia 24 de abril, décimo terceiro
depois da morte da serva de Deus, procedeu-se à exumação.
Achou-se o cadáver ainda intacto, tal qual tinha sido aí depositado,
mas já com indícios de decomposição.
Descoberto e tirado o coração, apresentou-se fresco, vigoroso,
flexível, vermelho e cheio de sangue, como o coração de uma
pessoa viva, pelo que ficaram sumamente maravilhados os práticos
encarregados da autópsia.
Mais ainda: a forma do coração era verdadeiramente singular,
diferente do tipo natural, chato nas duas faces, e muito dilatado de
ambos os lados, parecendo mais largo do que alto. Mas a
admiração ainda foi maior quando, sob o golpe do escalpelo, brotou
dos ventrículos e aurículas, um sangue vivo e vermelho, e tão
liquefato que correu sobre o mármore em que se fazia a operação.
É sabido que, logo depois da morte e resfriado o cadáver, todo o
sangue contido no coração sai, ou no caso de resfriamento muito
rápido, coagula-se, perdendo a cor viva. Quanto mais treze dias
depois da morte, e de uma morte causada por doença
contagiosa?!...
Ah! Aquele coração que foi uma fornalha de tantas chamas
celestes, e palpitou de puro amor de Deus, e que não se podendo
mais conter na sua cavidade natural, levantou e encurvou
fortemente três costelas do peito, que abriu uma saída para fora na
misteriosa chaga do lado como para expandir o excesso dos seus
ardores, que queimou toda a região torácica a ponto de não se
poder aproximar dele a mão sem sentir a sensação de queimadura;
aquele coração não podia morrer!...
E foi um erro, foi uma pena que o entregassem ao ferro da mão
profana para cortá-lo. Mas Deus permitiu que assim acontecesse,
para nos manifestar um prodígio que, sem isso teria sido ignorado.
A forma anormal, observada nesta preciosa víscera, parece-me
que não pode admitir outra explicação senão a dos tormentos
extraordinários provocados pelo amor celeste que o abrasava.
Releia o leitor o que já dissemos a este respeito, e verá que era
até de esperar vê-lo despedaçado.
É certo que Gema nunca teve nenhum sintoma de moléstia
cardíaca que pudesse produzir tão extraordinário efeito. Seu
coração foi sempre são e robusto, e fora das ocasiões dos êxtases e
do martírio místico de sua alma, nunca apresentou a mínima
irregularidade ou perturbação, pois, apenas cessadas estas
comoções divinas, ela recuperava logo seu estado normal.
A donzela esteve um pouco anêmica nos últimos anos de sua
vida, mas ninguém sustentará que esta enfermidade produzisse, em
tão breve tempo, tão grande transformação do órgão vital.
Menos ainda se poderia atribui esse fenômeno à decomposição
dos tecidos do coração encerrado por treze dias na terra; porque é
uma contradição manifesta a decomposição de uma víscera, e a
frescura do sangue nela contido; e a destruição dos tecidos é
incompatível com a viva cor vermelha.
A despeito, portanto, dos incrédulos, reconhecemos o prodígio e
bendizemos ao Divino Autor, dele sempre admirável em seus
santos.
E agora, chegando ao termo da vida de Gema, e quase de minha
obra, prostro-me aos vossos pés, ó Jesus, que por um traço
admirável da vossa Providência, me escolhestes para dirigir esta
alma eleita na vida espiritual, prodigalizando-me luzes que
impediam a minha incapacidade de pôr obstáculos às suas sublimes
aspirações à santidade.
Vós me ordenastes, como tenho perfeita convicção, de revelar ao
mundo, pela publicação destas memórias, a grandeza do vosso
amor e das vossas misericórdias para com a vossa serva.
Obedeci; não me resta, pois senão dizer-Vos: “Senhor, sou um
servo inútil”.6
Peço-Vos que desvies vosso olhar de minhas misérias, e que
pelos grandes merecimentos de Gema, leveis estas pobres páginas
às mãos de inúmeras pessoas, para que conheçam quanto sois
bom, e a felicidade que se sente em amar-Vos e servir-Vos
exclusivamente a exemplo da seráfica Virgem de Lucca.

1 Fenômeno inverso da levitação. Não é único na hagiografia cristã, como a Venerável


Margarida do Santíssimo Sacramento (1610-1648), carmelita descalça de Beaune, mística
da Santa Infância. In: Bouflet, Joachim, La lévitation chez les mystiques, Paris: Le jardin
des livres, 2006, p.188 – NC.
2 “Tudo está consumado” (cf. Jo 19, 30).
3 “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (cf. Lc 23, 44).
4 “Inclinou a cabeça e rendeu o espírito” (cf. Jo 19, 30).
5 Sl 126, 2.
6 Lc 17, 10.
APÊNDICE I

A CANONIZAÇÃO DE SANTA GEMA

Santa Gema morreu muito jovem, desconhecida e oculta. Parecia


que tudo iria acabar aí, mas foi aí que tudo começou. Do Céu, devia
ela cantar as maravilhas que o Senhor operou nela; de lá devia
continuar a chamar os pecadores.
O Padre Germano, já sem as reticências do passado, consegue
ver claramente a obra de Deus na alma da sua filha espiritual.
Durante meses, trabalhou para ocultá-la completamente, e para
guardar esta flor que a Providência lhe deu como filha. Agora, o
tempo do escondimento acabou.
É tempo de cumprir os desígnios de Deus. É tempo de fundar este
mosteiro, que Nosso Senhor queria em Lucca.
Eram os anos de ouro do pontificado de São Pio X. Se por um lado
a Igreja era atacada pelo racionalismo delirante, pelo modernismo
galopante, por outro o Santo Padre convidava a Igreja ao combate
espiritual. Era tempo de dizer ao mundo, racionalista, positivista, o
amor de Deus, manifesto na Paixão de seu Filho, vivido na carne da
virgem de Lucca.
Com a publicação da biografia escrita pelo Padre Germano, em
1907, houve uma verdadeira comoção acerca da sua vida e
espiritualidade. E sobre a espiritualidade passionista.
Uma vez, São Pio X perguntou ao Venerável Padre Germano:
“Mas está certo tudo que está escrito na biografia?”. E este
respondeu: “O que escrevi é só uma parte do que poderia escrever”.
O Processo Informativo foi aberto em Lucca. No dia 3 de outubro
de 1907, o bispo nomeou os membros de uma comissão especial
para tomar os primeiros testemunhos.
Em 28 de abril de 1920, Bento XV firmou o Decreto de introdução
da causa da beatificação. Em 20 de janeiro de 1922, abre-se em
Pisa o Processo Apostólico. Em 1928, o processo é interrompido por
razões de prudência. Trata-se de um processo de uma pessoa
cercada de fatos extraordinários. Mas, em 29 de novembro de 1931,
Pio XI assinou o Decreto de Virtudes Heroicas, tornando-a
Venerável.
Conforme as normas canônicas então vigentes, eram necessários
dois milagres para beatificação e outros dois para canonização.
No dia 14 de maio de 1933, Ano Santo da Redenção, é
beatificada. A tia Cecília havia morrido havia dois anos, conforme
lhe tinha predito Santa Gema. Estavam presentes o senhor Mateus
Giannini e sua esposa Justina, um grupo das Oblatas do Espírito
Santo, entre elas Irmã Julia Sestini, sua mestra.
E em 2 de maio de 1940, festa da Ascensão do Senhor, teve sua
solene canonização. Estavam presentes sua irmã Angelina Galgani,
os Giannini, ressaltando a presença de Eufêmia, sua grande amiga
e confidente, então Madre Gema de Jesus.
Se ainda viva, Santa Gema teria acabado de comemorar seus 62
anos. Mas a Santíssima Virgem como tinha lhe dito, veio lhe buscar
na juventude.
Se nesta Terra jamais pôde ser monja passionista, no Céu, tem a
honra de estar entre as Filhas de São Paulo da Cruz.
Sua devoção se espalhou rapidamente. Logo, sua biografia
começou a ser traduzida em outras línguas. Surgiram outras
biografias, como a da Irmã Gesualda do Espírito Santo, carmelita da
antiga observância.
E muitas graças foram sendo derramadas. E sua voz continuou a
chamar os pecadores de volta para Deus, chamar as almas para
Escola do Amor, que é Paixão de Nosso Senhor.

PADRE GERMANO

Vincenzo Ruoppolo nasceu em 17 de janeiro de 1850, em Vico


Equense, na península de Sorrento. Ingressou em 1855 no
noviciado da Escada Santa, em Roma, tendo como mestre de
noviços o Bem-aventurado Bernardo Maria Silvestrelli (1831-1911),
que depois foi Superior Geral da congregação. Depois da profissão
dos votos, ingressou com estudante no Retiro dos Santos João e
Paulo, também em Roma, em 1866.
Em 29 de junho de 1867, pôde presenciar a grande solenidade da
canonização do fundador São Paulo da Cruz.
Vai à Bélgica, onde é ordenado em Tornai, em 1872. Na casa de
estudos de Ere, teve a chance de ser aluno do famoso Padre
Serafim do Sagrado Coração, diretor espiritual da Serva de Deus
Louise Lateau (1850-1883), cuja repercussão se estendeu por toda
a Europa, sendo estudadas pelos dons místicos, por médicos
famosíssimos. Esses fatos teriam grande repercussão na maneira
com que ele lidou com os fatos extraordinários relativos à Santa
Gema.
Em 1876, retornou para lecionar na Escada Santa, em Roma,
onde pôde realizar trabalhos filosóficos, graças ao impulso dado por
Leão XIII aos estudos tomistas, através da Encíclica Aeterni Patris,
em 1879.
Ficou reconhecido por seus estudos em arqueologia sacra, sendo
membro da Academia Romana de Arqueologia, entre os anos 1887-
1895. Dele foi o achado arqueológico da Casa do Santos João e
Paulo, mártires romanos, sob a casa geral dos Passionitas.
Tornou-se, enfim, um famoso confessor, exorcista e diretor
espiritual.
Além de tudo, foi postulador de São Gabriel da Virgem Dolorosa,
de quem escreveu uma biografia.
Mas certamente a obra-prima de sua vida é esta biografia. Nela
manifesta seu espírito próprio, passionista e reparador.
Por seus esforços, junto com a Madre Josefa, fundou o Mosteiro
Passionista de Lucca.
Sabe-se que lutou muito para não receber a púrpura cardinalícia
durante o Pontificado de Leão XIII e também de São Pio X.
Faleceu em 11 de dezembro de 1909, após revisar a sexta edição
da biografia de Santa Gema, que aqui apresentamos. Seu processo
de beatificação está avançado, sendo publicado o Decreto de
Virtudes Heroicas em 11 de julho de 1995.

SANTA GEMA, PASSIONISTA


O próprio padre Germano aponta no livro que Santa Gema é
fundadora do Mosteiro Passionista de Lucca, ao menos,
espiritualmente.
Deus tinha planos para o Mosteiro de Lucca; e um plano para as
monjas passionistas, as “filhas da minha Paixão”, como Ele dizia a
Santa Gema.
As monjas passionistas foram fundadas por São Paulo da Cruz e
pela Venerável Madre Crucifixa de Jesus Constantini, em Tarquinia,
na Itália.
Este Mosteiro foi longamente esperado e desejado por São Paulo
da Cruz, pela Madre Crucifixa, assim como por outras suas filhas
espirituais, como as leigas Inês Grazi e a Venerável Lucia Burlini.
São Paulo da Cruz foi um verdadeiro místico, alcançando grande
união com Deus, mas foi também um exímio diretor espiritual de
muitas almas, seja no claustro, seja no século. Conhecedor dos
caminhos da vida espiritual, e dos riscos de engano, não era muito
propenso a acreditar em todo tipo de visão e locução em seus filhos
espirituais.
Na verdade, em seu epistolário, especialmente naquelas cartas a
Inês Grazi, entrevemos um verdadeiro método de discernimento de
espíritos, muito útil para os diretores de almas.
Mas, longe ser cético, estava atento à vontade de Deus. A
Venerável Lucia Burlini, teve uma visão do Calvário, onde Nosso
Senhor Crucificado era cercado por pombas que encontravam
abrigo em seu Sagrado Lado.
Tal é a vocação Passionista. Assim como a esposa do Cântico dos
Cânticos, encontra abrigo no Rochedo como pomba, a monja
passionista encontrará repouso no Lado Aberto de Jesus
Crucificado.
Certamente, o maior desejo de Santa Gema era ser monja
passionista. E mais, a fundação do Mosteiro em Lucca.
Atualmente, as religiosas encontram-se no belo Mosteiro-
Santuário de Santa Gema Galgani de Lucca. Mas com a graça de
Deus, as monjas passionistas se espalharam pelo mundo – e pelo
Brasil, não sem a ajuda celeste de Santa Gema, que brilha na
eternidade como uma verdadeira filha de São Paulo da Cruz.
APÊNDICE II

HORA SANTA
UMA HORA DE ORAÇÃO COM JESUS AGONIZANTE NO HORTO
DAS OLIVEIRAS

Da Bem-aventurada Elena Guerra,praticada por Santa Gema


Galgani

INTRODUÇÃO

Põe-te, ó alma piedosa, na presença do teu amantíssimo Salvador,


e pensa naquela noite em que o bom Jesus, depois de ter instituído
a Sagrada Eucaristia, para teu alimento, sai com os apóstolos e se
encaminha para o horto das oliveiras, a fim de dar começo àquela
dolorosíssima Paixão, com a qual devia salvar o mundo.
Aquele rosto divino, em que resplandeciam todas as graças e
formosuras, cobre-se de palidez mortal, reflexo da grande e
profunda tristeza que lhe aniquila a alma, tristeza que o bom Jesus
manifesta por suas próprias palavras.
O aflito Jesus volve a ti o seu olhar, como para te dizer: ó alma
querida, que tantas amarguras me custaste, permanece comigo ao
menos uma hora, e vê se há dor igual à minha dor! Considera como
na noite da minha agonia debalde “procurei alguém que me
consolasse e não o achei”.
Meu adorável Jesus, poderá haver criatura tão ingrata e de
coração tão endurecido, que se recuse a passar uma hora em vossa
companhia, recordando aqueles mistérios de imensa dor e
incomparável amor, que se cumpriram nas trevas da noite de vossa
Paixão no Jardim das Oliveiras?
Meu bom Jesus, eis-me aqui convosco. Dignai-vos fazer-me
compreender a crueldade dos vossos sofrimentos e o excesso de
amor que vos levou a vos imolar como vítima dos meus pecados e
de todos os homens.

A Hora Santa se divide em quartos de hora e, quando feita


publicamente, pode-se entremear algum cântico devoto. Por isso
colocamos em seus respectivos lugares as estrofes apropriadas.

Redimidos, vinde ao horto,


Vinde o sangue contemplar
Que Jesus, sem um conforto,
Verte ali pra nos salvar.

Ó Jesus, aos vossos braços,


Compungidos, nós tornamos.
Estreitai-nos com os laços
Que, pecando, nós quebramos.

Com Jesus aqui fiquemos,


Adorando, suplicando;
Hora breve aqui passemos,
Seu martírio relembrando.1

PRIMEIRO QUARTO DE HORA

A TRISTEZA DE JESUS

A minha alma está numa tristeza mortal (Mt 26, 38)


Não há sofrimento que se possa comparar com os da hora da
morte. Por isso o nosso Salvador, que é a verdade infalível, para
nos fazer compreender a dor excessiva que o oprimiu na entrada do
horto, declara que sua alma está submersa numa tristeza mortal,
isto é, que a dor que sofre é tão grande que lhe pudera causar a
morte.
Encaminha-se depois para o Horto das Oliveiras e, chegando ao
lugar onde costumava passar as noites em oração, exorta seus fiéis
discípulos que levara consigo para serem testemunhas de suas
amarguras, a velarem e rezarem juntamente com Ele. E afastando-
se à distância de um tiro de pedra, prostra-se ante a Majestade de
seu Pai e dá começo à oração mais generosa que já se fez neste
mundo.
A primeira causa da tristeza de Jesus no jardim foi a vista do
horrendo cúmulo de tormentos e de opróbrios que em breve se
deviam arremessar a Ele, como as ondas bravias de um mar
encapelado pela fúria da tempestade.
Com efeito, apenas se afasta de seus queridos discípulos,
apresentam-se-lhe ao pensamento todas as horríveis cenas de dor
e de sangue de sua Sagrada Paixão: traições, ironias, irrisões,
calúnias.
Ainda mais: uma cruel flagelação, com grande número de açoites,
que suas carnes dilaceradas cairão aos pedaços, até se lhe
descobrirem os ossos! Mas não basta. Pungentes espinhos hão de
atormentar até a morte sua sagrada fronte! Prevê ainda as
bofetadas, escarros e maus tratos! Mais: há de sofrer a infâmia de
uma condenação injusta, e será escarnecido pelos magnatas de sua
nação e pelo povo.
Depois, desfalecido por tantos sofrimentos, arrastar-se-á até o
monte do sacrifício, carregando aos ombros chagados a cruz, a cujo
peso sucumbirá multas vezes. Beberá o amargoso fel, será despido
diante de uma multidão insolente, pregar-se-ão suas mãos e seus
pés, naqueles cravos ficará pendendo três horas suspenso entre o
Céu e a Terra, para expiar, num abismo de sofrimentos, as
iniquidades do gênero humano! Ainda não é tudo.
A esses inumeráveis e atrozes tormentos acrescerão os mais
amargos escárnios, os insultos e as provocações!
Depois, a sede ardente, torturante, aumentada mais ainda pelo
vinagre! O abandono do Pai... a dor imensa de sua Mãe diletíssima
e a horrível e pavorosa morte!
Alma remida, filha das penas atrozes de Jesus, considera o teu
Salvador, abismado em um oceano de dores, e tudo isso por teu
amor, para te salvar, para te levar consigo ao Paraíso.
Jesus, oprimido por tanta angústia, procura os seus três
discípulos, aos quais recomendara que velassem e rezassem, mas
encontra-os dormindo.
Nem uma palavra de conforto, nem um sentimento de compaixão
para com Jesus agonizante!
Na amargura desse abandono, Jesus a ti se dirige, ó alma
piedosa, para ver se encontra em teu coração um pouco de afeto,
de compaixão, de gratidão...
E não terás uma palavra de conforto para o bom Jesus? Se
estiveras ao seu lado na noite de sua agonia, que lhe disseras?
Ah! Abre-lhe o teu coração e fazes o que então fizestes, o que
muito lhe agradará, pois Jesus aceita sempre com a mesma
complacência as demonstrações de afeto dos corações dos seus
filhos fiéis.
Pausa de Silêncio

OFERECIMENTO

Pai Santo, que tanto amastes o mundo, a ponto de sacrificardes o


vosso Filho humanado, eu vos agradeço, em nome de todos os
vossos filhos remidos, este ato de vossa infinita caridade e vos
ofereço a santidade perfeitíssima e todos os merecimentos do vosso
Filho unigênito.
Pai nosso, Ave-Maria e Glória.
Pai Santo, que para nos livrar da perdição eterna, acumulastes
sobre a adorável humanidade do vosso Filho unigênito, o peso
formidável de todas as nossas iniquidades, eu vos ofereço as
agonias de Jesus no Getsêmani, suplicando-vos que me concedais
gozar o fruto de suas horríveis penas por toda a eternidade.
Pai nosso, Ave-Maria e Glória.
Pai Santo, que para reconciliar a culpada humanidade com vossa
Divina Majestade, submetestes a uma inexorável justiça o vosso
Filho unigênito, que foi obrigado a carregar nos seus inocentes
ombros todas as penas devidas às nossas culpas, ofereço-vos a
submissão amorosa de Jesus no horto, suplicando-vos me
concedais a graça da conversão e salvação de todos os pecadores.
Pai nosso, Ave-Maria e Glória.

Quanta angústia no jardim,


Se apodera do Senhor!
Quanto sofre o céus, por mim
O meu terno Salvador!

Os meus olhos se umedecem


De divino, amargo pranto,
Vendo as almas que perecem,
Mesmo após padecer tanto.

SEGUNDO QUARTO DE HORA

Jesus geme sob o peso das iniquidades humanas


Nas trevas da noite e no abandono por parte dos seus queridos
discípulos, já passou Jesus uma longa e penosa hora de
sofrimentos.
A visão nitidíssima dos cruéis tormentos que o esperam, enche de
terror e de angústias sua alma bendita. Mais enorme ainda lhe
parece o peso de sua missão de Salvador do mundo. Vê já chegado
o tempo de sua imolação.
A Terra e o Inferno conjuram contra ele. Há de sustentar, pois, uma
grande luta: todos os ataques contra ele se dirigem.
E que faz Jesus? Empalidece, treme e humildemente recorre ao
Pai, exclamando: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice”.
Qual será a resposta a essa humilde prece do Filho de Deus?
Nenhuma. O Céu não responde ao pobre Jesus! Pois Jesus quer
sofrer mais esta pena para nos implorar uma perseverança humilde
na oração e uma confiança constante, mesmo quando o Céu parece
não atender às nossas súplicas. Ah! Meu bom Jesus, não há pena
que não quisésseis sofrer para nosso conforto e para nosso
exemplo.
Acompanha, porém, ó alma piedosa, o teu Jesus que, levado pelo
amor para contigo, avança ainda mais no caminho da dor. A série
horrível de todos os crimes, de todas as perversidades dos filhos de
Adão, apresenta-se-lhe ao pensamento e dilacera-lhe a alma. E já
se vê sobrecarregado de todas essas abominações: e, assim,
coberto dessas imundícies, há de comparecer ante os olhos
puríssimos de seu Pai.
Não é possível que a inteligência humana possa compreender,
nem tão pouco imaginar o horrível tormento que sofreu então a
bendita e inocentíssima alma de Jesus. Disso piedosamente já ele
se queixara, dizendo pela boca do profeta: “Sobre as minhas costas
trabalharam os pecadores!”.
Oh! Como está o querido Salvador oprimido sob o peso de tantos
pecados! Mas o Divino Cordeiro, que está para ser imolado à justiça
divina, tão ofendida pelos homens, depois de satisfazer as
iniquidades humanas, imolando sua preciosa vida num patíbulo para
tirar os pecados do mundo, poderá, ao menos, esperar que os
homens, reconhecidos por tantos benefícios, estejam dispostos a
abandonar o pecado e permanecer fiéis Àquele que com tantas
penas os livrou da morte eterna? Ah! Prouvera que assim fosse,
pobre Jesus.
Entretanto, um quadro ainda mais horrível aparece ante o seu
divino olhar. Vê, depois de ter remido com tantos sofrimentos a
humanidade, e de ter lavrado a Terra com seu sangue precioso,
depois de ter infundido em seus filhos o divino Espírito-Santo e de
ter transformado a Terra em um paraíso de graças na adorável
Eucaristia, ah!, depois de tantos excessos de caridade, vê ainda
reinar no mundo o pecado!
Vê conculcada sua santa lei, sua Igreja perseguida, caluniados os
seus ministros, abandonadas as suas graças, o seu amor
desprezado e, chorando exclama: Qual utilitas in sanguine meo? –
“Para que derramar todo o meu sangue?”.
Para que morrer entre os tormentos de um patíbulo, se depois os
homens, ingratos a tantos benefícios, hão de continuar sempre a se
entregar ao demônio e à perdição eterna? Quando acabará no
mundo o reino do pecado?
Aqui o bom Jesus lança um olhar a todos os séculos do porvir e,
em cada século, em cada ano, vê pecados. Pecados em cada dia,
pecados em cada momento! E o peso de todos esses pecados
sempre mais O oprime e Lhe faz repetir: “Sobre as minhas costas
trabalharam os pecadores; prolongaram a sua iniquidade”. (Sl 128,
3)
Ó minha alma, também estarias tu no número daqueles que,
aumentando a cadeia dos pecados e adiando sempre,
indeterminadamente, a conversão prometida, arranca do coração
agonizante de Jesus aquele lamento cheio de tão justa dor?
Oh! Como é horrendo o pecado, depois que um Deus derramou
todo o seu sangue para o destruir! Oh! Como é abominável o
pecado em almas já lavadas por aquele sangue divino! Em almas
unidas pela Santíssima Eucaristia ao Coração de Jesus! Ó
aflitíssimo Salvador, tendes toda a razão de vos queixar e de chorar!
Mas, se Jesus com tanta razão se queixa dos pecados dos seus
filhos em geral, quanto não sofrerá pelos pecados dos seus mais
queridos, isto é, das almas que lhe são consagradas?
Alma dileta, exclama o Redentor, almas da minha paz, isto é, que
sois as amigas íntimas do meu coração, almas que viveis em minha
casa, almas que comeis o meu pão, almas que vos alimentais à
minha mesa, por que me transpassais o coração com o pecado?
Povo do meu coração, que é o que vos fiz? Em que vos magoei?
Mitiguei-vos a sede com as águas celestiais da minha graça, e dai-
me em troca vinagre e fel! Saciei-vos a fome com o precioso maná
da minha Carne, e retribuis-me com bofetadas e flagelos! Povo meu,
que é que vos fiz? Em que vos contristei? Eu vos preparei no Céu
um trono, e vós me apresentais um patíbulo!
Ó almas queridas, diletas do meu coração, que podia eu fazer por
vós que O não tenha feito? Que coisa há que eu devesse fazer à
minha vinha que lhe não tenha feito? (Is 5, 4) E em troca de tanto
amor, procurais-me tribulações e espinhos!
Pausa de Silêncio

OFERECIMENTO

Por que não poderia eu, ó meu aflito Salvador oferecer-vos, em


troca do vosso infinito amor, o meu coração e os de todos os
homens, inflamados de ardentíssima caridade? Mui compungido
pela minha frieza, ofereço-vos, ó bom Jesus, os desejos ardentes
com que os antigos patriarcas e profetas suspiraram pela vossa
vinda, e o santo zelo com que os vossos apóstolos levaram o vosso
nome por toda a Terra.
Pai nosso, Ave-Maria e Glória.
Ofereço-vos, ó meu atormentado Redentor, a perfeita e terníssima
compaixão que teve de vossos sofrimentos vossa Mãe Imaculada, a
Virgem das Dores, e a perfeitíssima gratidão com que ela, em nome
de todo o gênero humano, vos agradeceu, vos louvou e vos
bendisse pelo benefício infinito da Redenção.
Pai nosso, Ave-Maria e Glória.
Meu agonizante Jesus, não podendo eu, mesquinha criatura, dar-
vos como desejara, algum conforto em tantas a amarguras, ofereço-
vos a inexcedível alegria com que a adorável Trindade, juntamente
com todos os anjos do Céu, aplaudiu a grandiosa obra da
Redenção, por vós dolorosa e amorosamente consumada; e
suplico-vos também que façais compreender a todos os vossos
filhos, redimidos com o vosso sangue, este mistério de infinita
caridade.
Pai nosso, Ave-Maria e Glória.

Sob o peso do pecado


E oprimido pela dor,
por terra cai prostrado
Nosso amante Redentor.
Vinde, ó anjos, um conforto
Prodigai ao vosso Deus,
Que agoniza, exangue, no horto,
Pra tornar-nos filhos seus.

TERCEIRO QUARTO DE HORA

O generoso Fiat
Contempla, ó alma remida o teu Salvador, que, com o coração
ferido pela ingratidão humana, cai agonizante sobre a terra fria de
Getsêmani. Aí está sozinho, abandonado, sem ter quem O console,
a Ele, que nunca recusou conforto aos atribulados aos fracos, aos
infelizes!
Alma fiel, é chegado o momento de pagares ao aflito Jesus amor
com amor. Que terias feito, à noite da Paixão, se estiveras ao lado
de Jesus agonizante?
Meu aflito Senhor, quero levantar-vos do solo! Quero oferecer-vos
meu coração para manter as cores da vossa face! Quero dizer-vos
uma palavra que vos conforte!
Meu meigo Salvador, eu vos amo, eu vos amo! Quero procurar-vos
amor, quero proporcionar-vos amor, quero que todos vos amem,
quero empregar toda a minha vida para que sejais amado, sim, para
que sejais muito amado, sempre amado, eternamente amado por
todos os vossos filhos.
Meu amável Jesus, disse-vos que estaria disposto a dar até a
minha própria vida, isto é, que estaria pronto a suportar qualquer
sacrifício para vos tornar amado; mas, quando encontrar alguma
leve contrariedade, humilhação, recusa, repreensão, indelicadeza,
sofrerei tudo isso por amor de vós? Amo eu realmente o sacrifício?
Folgo de vos apresentar a mortificação de alguma paixão? Meu bom
Jesus, envergonho-me e não sei o que vos hei de responder. Mas,
aqui, perto de vós, aqui, na escola da dor e do amor, quero
aprender, ó meu doce Mestre, a mortificar-me, a sacrificar-me por
amor de vós.
Passam, entretanto, lentamente as horas da mortal agonia de
Jesus. Ele, o Deus do Céu e da Terra, geme, prostrado no chão,
sem ter quem o conforte. E os discípulos? Que fazem eles?
Dormem! Oh! Jesus, na noite de sua Paixão, havia de satisfazer
também pelo pecado do abandono dos seus queridos discípulos, e
sentia em seu coração toda a amargura desse abandono.
Jesus, então, aceitou e mesmo desejou esse sofrimento; mais
agora, já não o quer: ao contrário, deseja que os seus filhos,
remidos com o seu sangue divino, velem, meditando na sua Paixão.
A maior parte dos homens, porém, dorme o sono dos ingratos, que
consiste no esquecimento daquele que tanto nos ama e nos quer.
Oh! Excesso de ingratidão e crueldade!
Ó bom Jesus, não vos conhecemos! Se vos conhecêssemos,
pensaríamos sempre em vós, e o nosso coração não palpitaria
senão por vós.
Enquanto Jesus, sozinho, geme e agoniza, prostrado por terra, eis
que um anjo do Céu vem confortá-Lo. Jesus, com a humildade de
um Filho obediente, acolhe o mensageiro do Pai celestial, pronto a
submeter-se às suas ordens. O anjo, porém, vem para O alentar, e
não para lhe abrandar os sofrimentos nem para O livrar de sorver o
amaríssimo cálice. Com efeito, o mensageiro celeste anima Jesus a
afrontar a grande luta e a receber todos os golpes que contra ele
arremessará o Céu, o mundo e o Inferno: o Céu, porque a eterna
justiça de seu Pai está para punir nele todas as iniquidades
humanas; o mundo, porque não podendo suportar a santidade do
Filho de Deus, lhe prepara o patíbulo; o Inferno, porque incitado pelo
ódio contra o Santo dos Santos, provoca com maior violência a
crueldade dos inimigos de Jesus, para mais barbaramente o
atormentarem. Depois o anjo exorta Jesus a beber, até a última
gota, o cálice abominável das perversidades humanas e a suportar
o peso da Divina Justiça.
Entretanto, justiça e misericórdia esperam o Fiat de Jesus, com
que se hão de conciliar para sempre. Espera-o o Céu, para se poder
povoar de santos: espera-o a Terra, que anela por ver cancelado
pelo sangue do divino Redentor a maldição merecida pelo pecado;
esperam-no os justos, prisioneiros no seio de Abraão, para poderem
voar ao amplexo do Criador; esperam-nos míseros mortais, para
tornarem a ser filhos de Deus e verem reabertas as portas do
Paraíso.
Mas quanto não vai custar esse Fiat ao meu Jesus! Ele
inocentíssimo, Santo e Imaculado, tem de se revestir dos trajes de
pecador, de criminoso! Tem de se fazer réu, tornando próprias as
nossas iniquidades! Isto imensamente o aflige e o faz repetir: “Pai
meu, se é possível, afasta este cálice!”. (Mt 26, 39)
Pronuncia o Fiat, e consente tomar sobre si todos os nossos
crimes, como se fora culpado dos mesmos; aceita e atrai sobre si os
terríveis castigos a nós destinados.
Fiat: Faça-se, diz aos espinhos, para expiar os nossos maus
pensamentos. Fiat, aos flagelos, para castigar em seu corpo
inocente os nossos pecados sensuais. Fiat, aos insultos, aos
escarros, às bofetadas, para expiar o nosso orgulho. Fiat, ao vinagre
e ao fel, em satisfação dos nossos inúmeros pecados da língua e da
gula. Fiat, à cruz e aos cravos, em reparação das nossas
desobediências.
Fiat àquelas três horas de horrível agonia sobre o patíbulo, para
cancelar todas as nossas culpas e reparar todos os nossos males.
Fiat, finalmente, à morte, para nos dar a vida eterna.
Oh! Precioso Fiat, que alegra o Céu, salva o mundo e esmaga o
Inferno! Fiat, que parte cadeias e enxuga lágrimas! Graças vos dou,
ó bom Jesus, graças vos dou por tão generoso Fiat. Bendigo-vos e
agradeço-vos em nome de toda a humanidade.
Pausa de Silêncio
OFERECIMENTO
Pai Santo, que, em reparação de nossas rebeldias e
desobediências, quisestes ser honrado com o generoso Fiat de
Jesus no Jardim das Oliveiras: eu vo-lo ofereço em expiação de
todas as ofensas que a vossa adorável Majestade recebeu de minha
rebelde vontade, suplicando-vos que me concedais, pelos
merecimentos desse mesmo Fiat, perfeita docilidade e obediência.
Pai Nosso Ave-Maria e Glória.
Pai Santo, pela glória que vos resultou do generoso Fiat de Jesus
no Horto, suplico-vos me perdoeis todas as minhas rebeliões e
desobediências, e me concedais a graça de sempre viver
plenamente submisso à vontade dos meus superiores por amor de
vós.
Pai Nosso, Ave-Maria e Glória.
Pai Santo, pela magnanimidade e dolorosas consequências que a
Jesus custou o Fiat do Getsêmani, suplico-vos me concedais a mim,
a todas as almas que vos são consagradas e a todos os cristãos,
aquele espírito de santa fortaleza, constância e generosidade que
afronta alegremente, para vossa glória, qualquer sacrifício.
Pai Nosso, Ave-Maria e Glória.

A palavra suspirada
De infinito, ardente amor
Por Jesus é pronunciada
Com profunda e imensa dor!

Esse Fiat amoroso


Custa sofrimentos sérios:
Um patíbulo afrontoso,
Penas, dores, vitupérios.

ÚLTIMO QUARTO DE HORA

O sangue de Jesus e seus frutos


Jesus já proferiu o nobre Fiat! Mas o esforço imenso o faz cair
novamente em terra, agonizante, sob o enorme peso que sobre si
tomou. De um lado, aperta-o a divina justiça, considerando-O como
vítima universal, em que se reúnem todas as culpas e todas as
penas: de outro, impele-O o desejo infinito de cumprir a sua missão
de Redentor do mundo, o que Lhe antecipa o doloroso e tão
desejado batismo de sangue.
Ah! Já agora o bom Jesus se pode considerar o trigo escolhido,
triturado entre duas mós de moinho, ou o sazonado cacho de uva,
espremido no lagar.
Realmente, pela dor imensa que lhe oprime o coração, começa a
suar sangue com tanta abundância que chega a banhar a terra do
jardim.
Oh! Quanto custou a Jesus esse Fiat! Oh! Quanto teve que sofrer
para pagar as nossas dívidas! Que vergonha é para mim tudo isso,
pois recuso ainda os mais leves sacrifícios, depois de ter visto o
meu Deus tornar-se vítima espontânea por amor de mim: “Foi
oferecido porque ele mesmo quis”. (Is 53, 7)
Mas, para que, doce Jesus, vos consumirdes entre tantas dores,
vós, que com um só suspiro poderíeis salvar o mundo todo?
Já o profeta predissera que a redenção de Jesus seria abundante;
e abundante realmente é, pois não somente nos livra da morte
eterna, mas ainda nos restitui a bênção de inocentes, de justos, de
santos. Somente um Deus podia cumprir tão grande obra!
Jesus, porém, ainda não está satisfeito: o seu incompreensível
amor quer, por meio de suas dores, depor em nossas mãos, como
coisa absolutamente nossa, o tesouro infinito de seus méritos, com
que possamos obter do Altíssimo todos os bens. Que mais se
poderia desejar?
Mas, há bens tão grandes, que o homem não ousaria pedir, nem
tão pouco lhe passaria pela mente podê-los conseguir. Porém, a
caridade Infinita do nosso meigo Salvador os premedita; e, com a
voz do seu sangue, com os gemidos do seu coração agonizante, a
seu Pai nos implora a suma graça de sermos elevados até o
amplexo da divindade na Santa Eucaristia, por Ele mesmo instituída
nesta noite de sua Paixão.
E como tudo isso ainda não bastava para saciar um amor que não
conhece limites, quer Jesus que se nos infunda, e em nossas almas
permaneça o seu divino Espírito, o Paráclito: “Pedirei a meu Pai”,
dissera Ele nessa mesma noite, “pedirei a meu Pai e ele vos enviará
o Espírito Santo”. E agora, aqui no Getsêmani, derramando sangue,
cumpre o Senhor a sua promessa, tornando-nos dignos de receber
o Paráclito, elevando-nos assim ao grau supremo da felicidade, da
graça e da glória.
Parece que nada mais pode Jesus fazer por nós; um desejo,
todavia, tem ainda: recorda-se de que o Pai lhe dissera: “Pede-me e
dar-te-ei as nações como herança tua”; e elevando ao Céu o rosto
ensanguentado, roga ao Pai que lhe conceda, possa ter, no seio das
nações prometidas como herança, um grupo de almas escolhidas,
que sejam as esposas prediletas do seu coração, e nas quais possa
derramar a abundância das graças por Ele merecidas à custa de
tantos sofrimentos: “Dá-me almas, dá-me almas e podes tirar-me
tudo”.
Almas, ó meu Pai, dá-me almas, e tudo te entregarei, até a minha
vida, que em prol das almas se consumirá no patíbulo. “Dá-me
almas”. Entre tantas almas, Jesus escolhe também a tua, deseja-a
e, gemendo, pede-a ao Pai, e por ela renova, em particular, a oferta
de si mesmo e de suas infinitas penas.
Ó alma, ó alma, quanto és amada por esse Deus que, suando
sangue, te escolheu, te quis, te abraçou como sua esposa querida!
Assim, como, daqui a pouco, do alto da cruz, dirá a sua Mãe: “Eis
o teu filho”, e na pessoa de João lhe entregará todos os seus filhos
remidos; da mesma forma agora, no Getsêmani, a seu Pai se dirige,
exclamando: “Eis os teus filhos”.
Eu, teu filho por natureza, tomo o lugar do homem pecador, para
que tome este o meu lugar e se torne teu filho pela graça. Para mim
a pena, ó meu Pai, e perdão e paz para o pecador; para mim a
morte, para ele a vida; para mim o abandono, ó meu Pai, para ele a
perfeita, feliz e eterna união contigo. Eis, eis os teus filhos!
Abraça-os: o meu sangue purifica-os, torna-os belos e dignos de ti.
Pai meu, eu quero (nunca Jesus dissera eu quero, mais agora o diz)
eu quero que as almas que me deste constituam uma só coisa
conosco, unificadas em nós, como também nós somos um.
Lembra-te, meu Pai, que me rebaixei a fazer-me homem, para que
o homem fosse elevado até Ti e reinasse na mesma glória por toda
a eternidade.
Eis os incompreensíveis mistérios de amor, que se operam no
Coração de um Deus! Eis os maravilhosos frutos do sangue de
Jesus!
Silêncio, admiração e generoso amor: eis, ó alma remida, ó alma
esposa de um Deus humanado, tudo o que poderás oferecer ao teu
Jesus em troca desse grande, santo e Infinito amor, com que se
imola por ti.
Pausa de Silêncio

OFERECIMENTO

Pai Santo, com o coração compenetrado do mais vivo


reconhecimento eu vos dou graças, em nome de todos os homens,
porque nos destes um Redentor tão bom e tão generoso pelo qual,
com vantagem infinita, termos readquirido os bens perdidos pela
culpa original. Ofereço-vos pela salvação de todos os remidos o
sangue que ele derramou. Ó! Fazei que os frutos da Redenção,
sejam tão copiosos quanto à mesma Redenção, e que o bom Jesus
seja conhecido por todos os filhos de Adão, bendito, amado,
glorificado por toda a eternidade.
Pai nosso, Ave Maria e Glória.
Pai Santo, eu vos ofereço o precioso sangue de Jesus, para
implorar da vossa misericórdia, a exaltação e o incremento da Igreja
Católica, a conversão de todos os infiéis, de todos os hereges e de
todos os pecadores, a perseverança dos justos e a libertação das
almas do Purgatório. Eu vo-lo ofereço para o maior bem dos meus
superiores e de todos os que me são mais queridos. E também vo-lo
ofereço para santificação de minha alma e para obter a graça que
ardentemente vos peço. (Aqui se pede a graça.)
Pai nosso, Ave Maria e Glória.
Pai Santo, que tanto amastes o mundo, que lhe enviastes o vosso
Filho unigênito, sacrificando-O entre os maiores sofrimentos, fazei
agora com que o mundo ame realmente a Jesus, lhe seja
reconhecido, bendiga-O, exalte-O, e que bem numerosas sejam as
almas a Ele perfeitamente unidas e constantemente fiéis,
encontrando-se nesse número também a minha pobre alma.
Ofereço-vos os gemidos, as súplicas, as agonias de Jesus no
Getsêmani, com o sangue por Ele derramado, para que vos digneis
despertar nos corações de todos os cristãos uma vivíssima devoção
aos admiráveis mistérios da Redenção, e lhes infundais aquele
generoso espírito de sacrifício que torna as almas semelhantes a
Jesus.

Pai nosso, Ave Maria e Glória.

Ao divino Amante demos


Graças mil, de coração,
Pois que em seu sangue nós temos
Um penhor de salvação.

És, ó sangue, quem da morte,


Nossas almas libertou,
Quem trocou a nossa sorte,
Quem o Céu nos franqueou.

CONCLUSÃO

Mais um olhar ao teu Jesus, ó alma, filha do amor e das suas


dores. As longas horas da agonia no Getsêmani já se passaram
para dar lugar a uma série interminável de tormentos e às últimas
três horas da agonia sobre o patíbulo. Eis Judas, que vem para trair
o seu Mestre, e Jesus vai-lhe ao encontro, qual manso cordeiro. Ah!
Meu Jesus, terei de vos ver nos braços de um traidor?
Ah! Não! Vinde aos meus braços ou, antes, ao meu coração, ó
bom Jesus, pois eu não quero ofender-vos jamais, e sim amar-vos
para sempre.
COMUNHÃO ESPIRITUAL

Sugerimos aqui a oração para a Comunhão Espiritual de Santo Afonso Maria de


Ligório:2

“Meu Jesus, eu creio que estais presente no Santíssimo Sacramento. Amo-


vos sobre todas as coisas, e minha alma suspira por Vós. Mas, como não
posso receber-Vos agora no Santíssimo Sacramento, vinde, ao menos
espiritualmente, a meu coração. Abraço-me convosco como se já estivésseis
comigo: uno-me Convosco inteiramente. Ah! não permitais que torne a
separar-me de Vós! Ó Jesus, sumo bem e doce amor meu, vulnerai e
inflamai o meu coração, a fim de que esteja abrasado em Vosso amor para
sempre. Amém”.

(Indulgência parcial)

1 Pode-se usar na popular melodia usada na Via-Sacra: A Morrer Crucificado.


2 Consiste no ardente desejo de receber Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo
Sacramento, mas por algum impedimento prático, recorre-se a esta oração. É um ato de
piedade que a Igreja reconhece auxiliar na elevação das almas.

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