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O Marido, o Pai, o Apóstolo

PREFÁCIO

Padre Emmanuel de Gibergues

Este livrinho nasceu de uma inspiração essencialmente apostólica.


Há quatro anos, durante uma missão dada em São Philippe de Roule, pelos
Missionários Diocesanos de Paris, que o Senhor Vigário pedia a um deles que
pregasse um retiro especial para os homens de posição social.
Era uma novidade. Timidamente tentada, a experiência deu bom
resultado. Duzentos homens responderam ao primeiro apelo, e reuniram-se na
capela dos catecismos.
No ano seguinte, logo no primeiro dia, houve uma afluência de mais de
seiscentos, e foi preciso, durante o retiro, mudar da capela para a igreja, onde o
auditório, mais à vontade, aumentou, atingido o número a oitocentos.
Estava fundada a obra do retiro dos homens da boa sociedade em São Philippe.
O ano passado, eram mais de mil e duzentos auditores, e S. E. o Cardeal
Arcebispo de Paris quis vir ele mesmo abençoar o retiro e consagrar definitivamente
a instituição com a sua presença.
Para esta quaresma, a igreja era muitíssimo pequena, tal era a concorrência de
homens que se dirigiam ao templo e se apertavam para, aí, conquistarem um lugar.
Homens de ciência e de letras, procuradores, homens de profissões liberais, de obras
pias e de caridade, negociantes, funcionários públicos, descendentes das grandes
famílias de França, homens de todos os partidos e opiniões, aí estavam reunidos sob
o olhar de Deus, em casa d' Aquele que não faz exceção de pessoas.
Era um belo e consolador espetáculo ver tantos homens de inteligência, de
talento, de elevadas posições, concentrados e atentos ao pé do púlpito da verdade,
seguindo um retiro.
O que esperavam do pregador, o que vinham procurar, não era a eloqüência
humana, o estilo florido, as idéias novas; era a palavra evangélica em toda a sua
simplicidade, mas também na sua força divina, para subjugar os espíritos e ganhar
as almas.
O número dos convertidos, dos que se aproximaram de Deus, após longos anos
de afastamento; a afluência notável dos homens à mesa sagrada, no último dia,
provaram bem que o fim havia sido alcançado.
De diversos lados, homens de importância pediram-nos que publicássemos
algumas destas instruções, para gravarem no coração daqueles que as tinham ouvido,
as verdades que lhes haviam feito bem, e também para serem levadas à inteligência
e ao coração daqueles que não tinham podido ouvi-las.
Cedendo a essas insistências reiteradas, pusemo-nos à obra e escrevemos as
páginas que se seguem, deixando às verdades que encerram, o seu caráter e feição de
ensinamento oral e de palavra apostólica, cujo único fim é fazer bem aqueles que as
lerem, tornando-os melhores.
Em todas as classes da sociedade, especialmente entre os homens, produziu-
se, de alguns anos para cá, um movimento sensível em prol da religião. Andam
aborrecidos por não saberem a que hão de ater-se; têm a «nostalgia do divino»; têm
sede das verdades eternas.
Andam também assustados com a rebelião das paixões humanas; sentem a
necessidade absoluta da religião, sem a qual o mundo fica abalado e a sociedade
perecerá; e, antes de tudo, querem viver.
Quaisquer que sejam as divisões dos espíritos, todas as almas retas, todos os
corações honestos se conformam, hoje, com a necessidade de se restaurar a moral do
Evangelho, pela pureza dos costumes e integridade da vida.
Ora, é pela família, sobretudo, que deve começar esta restauração; é pela família
que se estenderá por todo o país. Daí as instruções que se seguem.
Que a leitura destas páginas fortifique na virtude os bons e os faça progredir no
bem; que lhes dê novo alento e novo arrojo, e que faça com que os outros reflitam e
voltem à pratica da moral cristã, sem a qual não há paz, força nem verdadeira
grandeza para o homem, neste mundo, é o único desejo, a única ambição e será a
maior recompensa daquele que as escreveu, e que desejaria ter feito passar nelas todo
o seu amor por Jesus Cristo e pelas almas, pela Igreja e pela França!
Permita o venerado pastor de São Philippe que eu deixe, aqui, expresso o
protesto do meu eterno reconhecimento pela confiança que testemunhou ao
pregador, concedendo-lhe esta nobre tarefa!
Os numerosos auditores do retiro recebam também a expressão dos meus
sinceros agradecimentos, pelo ânimo, pelas santas alegrias e consolações
sobrenaturais, que me deram!
E Deus seja bendito, pelas graças que dignou infundir à palavra humilde do
Seu apóstolo, e pelos frutos abundantes que Ele lhe fez produzir!

Paris, 1º de Maio de 1901.


Festa dos Apóstolos São Philippe e São Jayme

O Marido
Seus deveres
O Pai
Sua importância e deveres
I - O Apóstolo
Da obrigação de ser apóstolo, demonstrada pela condenação do inútil
II- O Apóstolo
Seus deveres na sociedade moderna

_______________________________________

O MARIDO

Primeira parte
Segunda parte
Terceira parte
Quarta parte
Quinta parte
Final do Capítulo

O PAI

Primeira parte
Segunda parte
Terceira parte
Quarta parte
Quinta parte
Final do Capítulo
O APÓSTOLO I

Primeira parte
Segunda parte
Terceira parte
Quarta parte
Final

O APÓSTOLO II

Primeira parte
Parte Final

O marido, os seus deveres - 1ª Parte

Sacramentum hoc magnum est, ego dico in Christo et in Ecclesiâ.


Este sacramento é grande, digo-o em Cristo e na sua Igreja.
Epístola aos Efésios, V. 3ª.

Meus senhores,

Se quiséssemos ir até á fonte das decadências e das prosperidades que se vêem


suceder na história dos povos, é até à família que deveríamos ir.
A família é a base e o fundamento da sociedade. É o terreno sagrado aonde
vêem desabrochar todas as esperanças humanas.
É o berço aonde tudo se prepara, pode dizer-se, se decide: os destinos sociais,
a sorte da Igreja e das almas, a glória de Deus e a grandeza da pátria.
A família não é somente a primeira das sociedades humanas. Criação do eterno
amor, é de instituição divina; e foi nEle mesmo que Deus colheu o exemplar dela.
Antes de todos os séculos, em um só Deus, há uma família divina: o Padre, o Filho, o
Espírito Santo; os três dão-se um testemunho inefável de vida, inteligência e amor.
Conhecem-Se, falam-Se e amam-Se eternamente. A unidade absoluta, a
sociedade perfeita, a fecundidade sempre presente, eis a família divina. É o tipo da
família cristã.
Lêde o Gênesis. Por duas vezes, Deus se concentra e toma conselho consigo
mesmo.
Cria o homem à Sua imagem e semelhança; e, imediatamente, dá-lhe uma
companheira semelhante.
Está fundada a família. Logo aparecerá a trindade humana, Trindade divina.
Uma, indissolúvel, fecunda, como esta, tal foi a família, desde a sua origem.
Jesus Cristo veio para estabelecer as suas leis desprezadas e violadas na
antiguidade, e proclamar, de novo, os seus princípios constitutivos e sagrados. Fez
mais. O contrato pelo qual se formava a sociedade conjugal, constituiu-o sacramento;
e quis, para demonstrar mais a sua santidade, que os esposos fossem os próprios
ministros. O matrimônio não é somente um sacramento que os esposos recebem,
mas um sacramento que se dão um ao outro. O padre é apenas a testemunha; são
eles que são realmente os padres: Sacramentum hoc magnum est.
A graça que recebem nele é muito mais do que uma graça momentânea. É um
credito que adquirem de Deus e em virtude do qual inúmeras graças lhes são
ulteriormente distribuídas, dia a dia, instante a instante, para cumprirem todos os
deveres e satisfazerem a todas as obrigações da vida conjugal. É uma fonte abundante
e inesgotável de graças, aberta em suas almas, de onde sairão, quando for necessário,
torrentes de luz, de força e de vida. Sacramentum hoc magnum est.
E, para mostrar ao mesmo tempo a abundância da graça, a dignidade santa
dos esposos, e também a grandeza dos deveres e a força das obrigações que contraem,
é às relações, à união, às trocas inefáveis de amor e dedicação de Cristo e de Sua
Igreja, que o Apóstolo os compara: ego dico in Christo et in Ecclesiâ.
O que foi, o que há de ser sempre Cristo para a Sua Igreja, o marido deve
sempre sê-lo para sua mulher; o que a Igreja é para o seu Cristo, a mulher deve sê-lo
para seu marido: Sacramentum hoc magnum est, ego dico in Christo et in Ecclesiâ.
É nesta altura que Jesus Cristo colocou o matrimônio cristão, a sociedade
conjugal. Para descobrir quais são os deveres do marido, basta observar que o
matrimônio é um contrato. Ora, todo o contrato é uma troca e comparta três
elementos: um fim, um objeto, um motivo.
O fim, é o que se recebe; o objeto, que se dá; o motivo, é o porque, a razão que
determina.
Ponho, por exemplo, a minha casa à venda, aqui tenho o objeto do contrato; o
dinheiro que recebo, é o fim; o prazer ou a vantagem que me dá o dinheiro, é o
motivo. Todos os deveres do marido podem, portanto, resumir-se nestes três artigos:
receber, dar, determinar-se por um motivo. Examiná-los-emos sob este triplo ponto
de vista.

Formação para os homens - parte 2


Padre Emmanuel de Gibergues

O fim do matrimônio é receber. Mas quê? Vantagens puramente humanas,


terrestres, frívolas, passageiras? Ah! não, meus senhores. Há, entretanto, muitos
homens que pensam assim.
Há os que não veem o matrimônio senão à sombra florida de não sei que Éden
imaginário. Sonham com uma primavera eterna, sob o céu azul da Itália, uma
adoração perpétua num ideal de amor, aonde a alegria dessa reciprocidade de afeto
na doce intimidade do lar, não deixaria lugar nem aos cuidados, nem as tristezas,
nem as provações da vida.
- São os simples! O matrimônio não é somente poesia, ou romance.
Há outros que não procuram no matrimônio senão uma formalidade de
convenção e conveniência, necessária para que a sociedade lhes conceda certos
benefícios, para que os receba, nos seus salões e os dignifique aos olhos do mundo;
mas sem lhes restringir, todavia, a liberdade e os prazeres. São os grosseiros, os
homens sem lealdade, sem verdadeira honra! O matrimônio não é um simples
costume, um pavilhão respeitável, uma etiqueta honesta, para encobrir o vício e a
devassidão; nem tão pouco um fim, para os celibatários fartos de divertimentos.
Há outros que só veem nele a aliança de duas raças, de dois nomes, de duas
situações. São os espíritos levianos, superficiais! O matrimônio não é somente uma
simples conveniência de famílias.
Outros só lhe pedem uma elevação de dignidade, de posição, de consideração
humana, de classe social. São os ambiciosos! O matrimônio não é um estribo, uma
escada, um elevador para subir na sociedade.
Outros não veem senão o dinheiro, dote e esperanças. - Compreendo, quando
se tem uma dignidade a sustentar, um nome a honrar, uma influência a manter, que
se procure fortuna, - em si, isso não é repreensível, mas não será por isso,
nem sobre isso que se concluirá o matrimônio: será uma simples condição, não um
fim, nem objeto. O matrimônio não é um meio com modo para se enriquecer, um
ajuste, uma especulação.
Enfim, para terminar esta triste enumeração, há outros que não procuram no
matrimônio senão uma satisfação aos instintos menos nobres do ser humano.
O físico, os sentidos, a matéria, é tudo para eles. - São os tacanhos, os aviltados,
quando não são os libertinos e os devassos, atraídos pela emoção de uma sorte de
voluptuosidade que a sua vida passada, por mais rica que haja sido em sensações
desse gênero, não lhes pôde fazer conhecer, e pela miragem de uma fonte pura, aonde
os seus sentidos estragados se vão fortalecer e remoçar como num orvalho fresco.
Deixar-se levar somente pelas suas paixões, em decisão tão grave, é,
primeiramente, expor-se a decepções cruéis... há aparências tão enganadoras! ... é,
em seguida, degradar-se. Só pensar em satisfazer os seus sentidos, não é o nobre
matrimonio do homem, é o instinto do animal.
Que se deve então receber e, por conseguinte, procurar no matrimônio? Qual
é o seu verdadeiro fim, o seu fim essencial e supremo?
É o próprio fim do homem. O matrimônio não foi instituído por Deus senão
para auxiliar o homem a atingir o seu fim, o seu duplo fim: aperfeiçoar-se e
multiplicar-se. Deixemos de parte o desenvolvimento da raça (de que falaremos),
para não tratarmos senão do aperfeiçoamento do individuo. Em que consiste este
aperfeiçoamento? Em concluir nele a semelhança divina, em aproximar-se do ideal
divino, em desenvolver a sua inteligência, a sua vontade, o seu coração, no sentido
de Deus, em tornar-se melhor e mais virtuoso, em glorificar a Deus, e salvar a alma,
alcançando o céu. Tal é o fim essencial da sociedade conjugal
Para este progresso, para esta continua ascensão para Deus, o homem
necessitava da mulher. Segundo a palavra criadora, não era bom que ficasse só;
precisava de uma companheira, uma associada, sociam, um auxiliar semelhante a si
mesmo, adjutorium simile sibi.1
É porque o homem era incompleto. Tinha a majestade, a força, a energia;
faltava-lhe alguma coisa da graça, da delicadeza, da sensibilidade, da doçura que
Deus lhe queria dar. Faltava-lhe um ser semelhante a quem confiasse os seus
sentimentos, com quem trocasse os seus pensamentos, fortalecesse e elevasse o seu
coração expandindo: - a mulher.
Mas, meus senhores, como é que a mulher vai ajudar o homem a atingir seu
fim, completá-lo e aperfeiçoá-lo?
Será tornando-lhe tudo fácil, tirando-lhe os espinhos e todas as pedras do
caminho? É a ilusão de muitos maridos. Sustentados pela força inicial de sua
primeira paixão, e no encanto de seu primeiro amor, nada lhes custa, e imaginam
que a vida vai ser, para eles, um jardim de flores. A sua companheira parece-lhes
ideal e encantadora, capaz de todos os sacrifícios, pronta a sofrer tudo por eles. A
felicidade sorri-lhes com todo o esplendor num céu sem nuvens.
A ilusão vai muitas vezes até ao egoísmo. O homem pensa, com prazer, que a
mulher foi criada para servi-lo; que tem direito a tudo, e dela exigir tudo; que a
mulher foi feita para sofrer, e ele... para ser sofrido!
As dificuldades, porém, não tardam a aparecer. A mulher, por mais cheia de
virtudes que seja (e que será se não possuir nenhuma?) conserva sempre alguns
defeitos, alguns caprichos, os conformes à sua natureza, e ao seu caráter.
A oposição de idéias, os conflitos de opiniões, as discussões não tardam a
surgir: são pequenas discórdias, ligeiras irritações, palavras um tanto exasperadas;
alguns arrebatamentos e tudo isso que, não se tomando cuidado, se multiplica e
desenvolve com uma rapidez prodigiosa.
Que resultará de tudo isto? O marido iludido ou egoísta porá a culpa em sua
mulher; far-lhe-á censuras amargas, attribuir-lhe-á todos os males. Se for indulgente
será justo? - Parecer-lhe-á que acorda de um sonho, e que decididamente não há
felicidade durável no matrimônio, que é preciso conformar-se com a sua sorte. Será
isto verdade? Não. Nem é justo nem verdadeiro.
Há uma felicidade cristã muito sólida e muito durável no matrimônio, e nem
sempre é culpa das mulheres, se a não encontram; às vezes é culpa dos maridos,
quase sempre de ambos. Não se compreende o fim do matrimônio. Esperando
encontrar só alegrias, ficam espantados de que se lhes deparem provações.
Estas provações são providenciais, e é por meio delas, sobretudo, que o
matrimônio atingirá o seu fim, e que, cada um dos esposos, receberá o seu
aperfeiçoamento, se compreender o seu papel.
O marido cristão queixar-se-á primeiro de si mesmo. Sem renunciar
absolutamente a felicidade, mas, pelo contrário, para conservá-la com mais
segurança em seu lar, dir-se-á que a felicidade está no dever, e que é ao dever que ele
tem de apegar-se com toda a energia de sua fé, e todas as forças de seu coração. O
seu dever, é subir, aperfeiçoar-se, tornar-se melhor. Mas, para isso, duas coisas lhe
parecem de necessidade evidente: conhecer-se e dominar-se a si próprio. Eis aí toda
a moral! e esta ciência, esta vitória, é o matrimonio que lh'as dá.

Formação para os homens - parte 3


Padre Emmanuel de Gibergues

Até aí, não se conhecia a si mesmo.


Seus pais, os seus professores, haviam-no repreendido; os seus amigos
haviam-lhe apontado os defeitos, e talvez tivessem zombado dele! Mas nada havia
podido fazer cair o véu espesso que os melhores se obstinam em conservar, e que
impede que se vejam.
O sentimento de sua responsabilidade começará a abrir-lhe os olhos. Se
quiser ser sincero, há de sentir-se impotente para fazer a felicidade daquela que ele
ama! ...
Em seguida, na intimidade da vida conjugal, no contato diário, nas decisões a
tomar em comum na fusão das duas existências, o fundo da sua natureza depressa se
revelará. Admirar-se-á de descobrir em si defeitos que não conhecia, porque lhes
faltara ocasião de se produzirem.
Além disso, se não quiser entrincheirar-se em seu orgulho, não receará de
aceitar os conselhos de sua mulher; não há de querer privar-se de luzes tão preciosas.
Se a mulher tem menos conhecimento e talvez menos razão, tem mais coração e
perspicácia. Um marido que rejeitasse os seus conselhos ou que a desanimasse de
renová-los, pelo seu mau acolhimento, não sabe de que luzes e, quase, de que
revelações o seu estúpido amor próprio o privaria para sempre. Quem poderá melhor
do que a mulher conhecer o temperamento do marido notar-lhe e fazer-lhe
compreender os seus defeitos? É ao marido que compete fazê-lo em primeiro lugar;
mas os conselhos de sua afetuosa franqueza terão um acolhimento tanto maior,
quanto mais pronto ele estiver para recebê-los com cordial gratidão e docilidade
generosa.
Não se deve desacoroçoar do papel de monitor, porque, se é alívio o dizer uma
verdade no arrebatamento da cólera, é uma aflição, e é preciso um esforço, na calma
de uma afeição, que deseja o bem sem paixão nem rancor.
O matrimônio não ensina só a conhecer-se, ajuda a vencer-se, o que é bem
preciso. Se não se quiser renunciar a felicidade, vê-la desfazer em fumaça,
transformar num estado miserável de hostilidade surda e permanente, que torna a
vida insuportável, é preciso renunciar a si mesmo. A renúncia não é somente o
fundamento da vida cristã, porém da felicidade conjugal; de sorte que, por um
desígnio providencial, a mesma causa conduz-nos, ao mesmo tempo, à virtude e à
felicidade.
Na vida conjugal, as ocasiões de renúncia são diárias, e, portanto, assim
também as ocasiões de aumentar, de receber o aperfeiçoamento, que é o fim do
matrimônio.
O egoísmo é o nosso inimigo mortal; vivermos em nós, de nós, para nós, é o
nosso mal. A nossa educação moral consiste em sairmos de nós mesmos; e o
matrimônio é a instituição divina, para obrigar dois seres humanos a saírem de si
mesmos, para vencerem o seu egoísmo mutuo, e fazerem o aprendizado da virtude.
Nos primeiros dias nada custava; agora, tudo pesa, e vive-se como sob a
pressão, de uma cadeia pesadíssima. Outrora era o sopro vernal de uma afeição,
radiante; agora, é o vento da tempestade. O homem só via em sua mulher um ser
atraente, encantador; agora começa a descobrir nela um ser, por vezes, terrível na
sua doçura, horrível mesmo nos seus atrativos. É o momento da renúncia, de elevar-
se ao desinteresse sublime: é a educação moral que se faz.
Que digo eu? É a educação divina, pois, não é só um ideal humano que deveis
realizar no matrimônio, meus senhores, mas um ideal divino, a união de Cristo com
a Sua Igreja.
Que fez Cristo por Sua Igreja? non sibi placuit 1 diz S. Paulo, não se orgulhou
de Si mesmo. Humilhou-Se, renunciou-Se, despojou-Se, crucificou-Se. Sacrificou a
glória de que gozava no seio de Seu Pai, e a glória humana, de que poderia ter-Se
revestido. Sacrificou o Seu repouso, o Seu corpo, o Seu sangue, a Sua alma, a Sua
vida. Não há um só sacrifício perante o qual haja recuado. Eis o modelo que São Paulo
não receia propor-vos, maridos cristãos!
É que a moral cristã, na decadência humana, é a moral essencialmente do
sacrifício e da renunciação. É, aí, que ela nos descobre o remédio para todos os nossos
males e a fonte de todos os bens: tantum proficies quantum tibi ipsi vim intuleris,
diz a Imitação, aproveitareis na proporção das contrariedades que vos impuserdes.
Nada é mais necessário na sociedade conjugal. Sem a abnegação, cedo ou
tarde, virá a divisão, em seguida a incompatibilidade de humor, enfim a destruição
do lar.
Se desejais a união, a fusão das vossas duas vidas em uma só, é à abnegação
que deveis recorrer. Só com ela, o matrimônio atinge o seu fim: a educação do homem
e do cristão.
Ora, a fonte inesgotável da abnegação acha-se no Evangelho, na força moral
de que dispõe o cristianismo, nos sacramentos, e aqui, especialmente, no sacramento
do matrimônio e em todas as graças de que é a fonte inexaurível.
Qual não é, pois, a infelicidade e a culpa daqueles, que, aproximando-se do
sacramento do matrimônio sem preparação, se privam das graças mais preciosas?
Mas a infelicidade maior, a culpa maior é dos que se aproximam dele sem confissão
séria, em estado de pecado mortal, dos que profanam este grande sacramento, e
constituem a família, - causa horror só em pensá-lo - por um sacrilégio!
Que vossos filhos e vossas filhas, meus senhores, se preparem seriamente
para o matrimônio; que o não realizem senão em estado de graça e com disposições
sérias e cristãs!
Só assim se encontrará o remédio para os sofrimentos da vida conjugal, e, com
a virtude, a verdadeira felicidade.
Procurá-lo em outra parte; queixar-se das leis do Evangelho, que parecem
esmagadoras, é um engano. Não são as leis que se devem modificar, são os costumes.
E em vez de dizer como os decadentes: «Alargai a moral, não posso», é preciso dizer
como os fortes, como os enérgicos, como os cristãos: Restaurai a moral, e com ela a
felicidade: «Com Deus, que me fortifica, tudo posso»2

Notas:

1- Epístola aos Romanos, XV, 3.


2- Epístola aos Filipenses.

Continuará...

Formação para os homens - parte 4


Padre Emmanuel de Gibergues
Receber o complemento de si mesmo, o seu aperfeiçoamento moral e divino no
sacrifício mútuo, eis o fim essencial da sociedade conjugal, e o primeiro dever do marido.
O objeto da sociedade conjugal é dar. E dar o que, meus senhores? - O que há nela
de maior, de mais completo, de mais universal: - a pessoa humana, isto é, o corpo e a
alma, a matéria e o espírito, a liberdade e a vontade, a inteligência, as crenças e idéias, as
virtudes, as aflições e alegrias, as provações e esperanças, os bens e a vida, em uma
palavra, tudo.
É o dom mais absoluto que se pode conceder. É o sentido profundo da palavra do
Evangelho: erunt duo in carne uma fam non sunt duo.1 Serão dois na mesma carne... já
não são dois, para serem um, e para sempre.
É a união indissolúvel de dois espíritos, de dois corações, de duas vontades, de
dois caracteres, de dois corpos e de duas almas, uma fusão de duas existências numa só,
sustentando-se e ajudando-se mutuamente, tanto nos deveres como nos prazeres, tanto
nas alegrias como nas dores; sacrificando um ao outro a paciência, e dedicação de todos
os dias, na liberdade santa de um amor puro, fiel, inviolável; achando ambos o sentimento
da mesma natureza, e amando-se com toda a firmeza e com toda a força do seu ser e da
sua vida: eis o matrimônio cristão de todo o coração, por impossível, a outro.
Vedes, digamo-lo de passagem, como é conveniente para esta unidade profunda,
total, indissolúvel, que haja harmonia entre as naturezas, as inteligência, as idéias, os
gostos, os caracteres, temperamentos, sentimentos religiosos; e o que acontecerá de tantos
matrimônios, onde não se faz muito caso de tudo isto?
Nesta união tão perfeita, qual será a forma da dádiva que deve fazer o marido?
Qual será, para ele, o objeto do contrato? Qual o seu papel a desempenhar?
A Escritura Sagrada o diz em uma palavra: caput.2 É a cabeça, o chefe; é ele que
tem a autoridade, o poder, a direção. Donde concluo: 1.º que o deve usar; 2.º que o deve
usar na ordem e para os fins do matrimônio.
Primeiramente, deve usá-lo: é a condição para que a união persevere; e não é inútil
lembrá-lo, porque há maridos que o não empregam; abdicam; é mais cômodo. Esquecem
que o exercício da autoridade não é só um direito, mas um dever, de que lhes serão pedidas
contas.
Alguns, é por fraqueza; é preciso muito trabalho, não têm coragem. - Outros, é
por incapacidade; não sabem, e com receio de não acertarem, nada fazem. - Outros, é por
indiferentismo; que lhes importa? as coisas irão aonde têm de chegar. - Outros, é por
orgulho desdém; está abaixo do homem o ocupar-se com uma mulher, a não ser para
gozá-la ou torná-la sua serventuária. Estes formam partido à parte. - Outros enfim, é por
egoísmo: é bastante o pensarem em si, em seus negócios, prazeres, (quando não é, ah! em
suas paixões) ia a dizer na continuação das afeições de sua mocidade, nas suas desordens
de maridos libertinos, ou em seus vícios de velhos.
Os maridos que abdicam, e quebram a unidade da família e o objeto do contrato,
arrebatando eles mesmos a sua coroa, cometem todos em sua multidão banal uma
injustiça comum; fazem geralmente uma idéia muito clara dos deveres que o matrimônio
impõe a sua mulher, e uma idéia muito vaga dos deveres que impõe a eles
mesmos. Acrescentar às delícias habituais de sua vida, um acessório agradável na pessoa
de uma mulher honesta e graciosa, atenta em poupar-lhes os pequenos cuidados da vida
material, tornando o seu lar sempre alegre e duradouro, fazendo dele um abrigo sempre
pronto para as horas de fadiga ou aborrecimento, é todo o seu sonho. Que tenham a
responsabilidade da alma, que uma grande parte da educação intelectual, moral e religiosa
de sua mulher lhes incumbe, não parecem duvidar.
É, entretanto, o seu papel, o seu dever exercerem a autoridade e empregarem a sua
influência na família para o primeiro e o maior de todos os bens, o de sua mulher.
A mulher tem essencialmente necessidade de ser dirigida; e quase sempre,
sobretudo, a mulher francesa, o deseja e é própria para recebê-lo.
Deseja-o. Quantas vezes ouvimos as moças dizerem: «Quero um marido que me
seja superior, e que me guie.» Uma superioridade que lhes inspire confiança e sobre a
qual se apoiem, é o seu desejo mais sincero.
É também a sua necessidade. Uma moça pouco sabe. Por mais cuidados que
tenham tido na sua educação e instrução, tanto uma como outra, ainda não estão
completas. Além disso, viveu muito recatada; vai ser lançada de repente, noutra posição;
é impossível que se torne assim uma mulher perfeita: tem necessidade de uma direção.
E é muito apta para recebê-la. A maioria das mulheres seriam o que seus maridos
desejassem, se eles se dessem ao trabalho de prepará-las. Mesmo que até então tenha
havido educação fútil, gosto de dissipação, vaidade, há raramente frivolidade incurável.
Toda a mulher, ainda jovem, tem em si um grande fundo de abnegação e dedicação, que
a doce autoridade do primeiro amor é onipotente para desenvolver. É o marido que deve
modelar a sua vontade, formar segundo os seus desejos, elevar à dignidade dos seus
sentimentos e pensamentos, esse jovem coração e esse jovem espírito que só deseja
agradar-lhe. Ele deve acrescentar aos laços que unem o esposo à esposa, os que unem o
discípulo ao seu mestre, ao seu guia, ao seu amigo. Há, aí, um papel muito digno de tentar
os que desejam atingir, pela virtude, a felicidade verdadeira.
É o aperfeiçoamento da esposa, é a união cristã, a edificação dos filhos, é todo o
bem da família.
O marido deve empregar a autoridade; é a sua função, é o seu papel.

Notas:

1- Gênesis II, 24.


2- Epístola aos Efésios, V, 23.

Continuará...
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Formação para os homens - parte 5

Padre Emmanuel de Gibergues

Receber no sacrifício e renunciação, como é o fim do matrimônio; dar na dedicação por


uma autoridade justa, digna, pacífica e terna, como é o seu objeto; não está acima das forças
humanas? Não; porque há um motivo todo poderoso, um móvel soberano o amor, o amor
movido pela graça, o amor cristão.

As dificuldades da tarefa, meus senhores, fazem com que compreendais a sua


necessidade, e a loucura dos matrimônios sem amor. Onde se achará, pois, a força para cumprir
tais deveres? Só o amor é capaz disso. Só o coração tem toda a força que exige este ato decisivo,
soberano, irrevogável, e do qual está suspenso um destino inteiro.

E que amor será preciso? Apelo para vós, meus senhores, que tendes amado
santamente, que tivestes o vosso ideal. Amaveis, sem medida, para a terra e para o céu, para o
tempo e para a eternidade. Amar, unicamente e para sempre, aquela que havia sabido merecer
toda a vossa estima, toda a vossa confiança, todo o vosso amor, e serdes amados por ela
unicamente e para sempre, era o vosso sonho!

O amor é eterno, ou não existe.

Mas qual é o amor que pode ser eterno? O amor carnal não, porque dura tanto quanto
o encanto que o provocou, - uma primavera. As paixões não alimentam o amor, não; antes o
profanam e matam.

Se o amor quiser viver, que se modere e se equilibre! Saído de Deus, se quiser crescer,
que sacuda a matéria e se eleve para Deus!
O amor racional, baseado nas qualidades do espírito, do coração, da alma, sem aliás
excluir, de modo algum, os encantos físicos, pode ser durável. Mas ainda não é suficiente; é
preciso subir mais alto; é preciso chegar ao amor cristão!

O amor cristão não exclui o precedente; pelo contrário, supõe o amor racional;
completa-o, eleva-o e excede-o, libertando-o do tempo. Não é somente a alma que ele vê
através do corpo, porém Deus na alma. É uma afeição superior, de ordem divina, tal qual a
afeição de Cristo por Sua Igreja: Viri diligite uxores vestras, sicut Christus dilexit Ecclesiam1. Já
não é uma chama terrestre: é o fogo do céu; já não é o amor do homem: é o próprio amor de
Deus no coração do homem.

Se o marido não é cristão, não sente a diferença, porque não pensa nisto; ou não está
ao alcance de compreendê-la, a mulher cristã sente-a e sofre cruelmente.

Não o sabeis? Não o quereis saber; fechais os olhos para não vos incomodardes; mas
não impedireis que sofra aquela que vos ama, e que sofra tanto mais profundamente, quanto
mais vos amar.

Não é razoável, nem justo. Seria melhor pensar nisto, e vós também procurardes no
sofrimento, força para subirdes mais alto.

Só o amor cristão é verdadeiramente eterno; o outro não reflete, ou, se reflete, é muito
pouco, no além.

Só o amor cristão é verdadeiramente forte. Se o amor humano for feliz; se não tiver
tentações demasiadamente fortes, poderá ser feito, mas duma fidelidade de ocasião. Mas, se a
tempestade bramir, se a tentação se levantar, será arrebatado; ou, o que é pior, não acreditará
mais na fidelidade.

Mas o amor cristão tirou do sacramento uma força que o aperfeiçoa e santifica, e lhe dá
a mais perfeita fidelidade; a fidelidade sem mancha, a fidelidade do coração, à imagem de Jesus
Cristo para com a Sua Igreja. Está ao abrigo de todas as vicissitudes; o que Deus uniu, nada o
poderá separar: quod Deus conjunxit, homo non separet.2

Não se contenta em ser eterno, precisa crescer, porque o amor, como tudo quanto vive,
tem necessidade de desenvolver-se.

É pela paciência, humildade, franqueza do coração, confiança absoluta, pelo hábito de


se dizer tudo e de fazer tudo em comum por uma intimidade sempre progressiva, que o amor
crescerá. Em vez de tornarem os pontos de contato tão raros quanto possível, como aqueles
que não se amando, ou suportando-se dificilmente, querem, todavia, conservar a paz, os
esposos que se amam multiplicam-nos para estreitarem mais a aliança. A diversidade dos
caracteres, a variedade dos pontos de vista, a diferença das opiniões subsistem, e isto é mais
um encanto. Só desaparece a diversidade dos sentimentos.

Ambos desprezam tudo o que é vil, ambos se elevam; amam tudo o que é nobre e
grande. Lêem o mesmo livro, admiram o mesmo quadro, ou a mesma paisagem; gozam do
mesmo prazer ou do mesmo repouso. Rezam juntos; preenchem os seus deveres religiosos;
praticam a caridade. Praticam junta a virtude, o bem, as boas obras. A sua vida intelectual,
moral, religiosa é realmente uma só vida; sempre os mesmos interesses de espírito, de alma e
de coração.
O seu lar não é só a sua casa, levam-no consigo como um altar doméstico. Está em toda
a parte onde estão juntos; está em seu coração, em toda a parte onde confundem, numa
intimidade sempre crescente, os seus pensamentos, as suas impressões, os seus entusiasmos,
as suas crenças, os seus esforços, as suas virtudes, a sua caridade!

Este hábito de intimidade em trocas mútuas e constantes de sacrifícios e dedicação, por


motivos sobrenaturais e santos, é tão poderoso para aumentar o amor, que até pode criá-lo
entre dois seres que sentem estima e confiança um pelo outro, sem, todavia, ainda se amarem
na verdadeira acepção da palavra. Não é esta a história de Paulina? No começo, ama a
Polyeucte, por dever de esposa, como o desposara por dever de filha. A sua vontade aí está, o
seu coração ainda não; e a perturbação que lhe causa a volta de Severo, a sua repugnância em
servir «um vencedor tão poderoso,» a coragem com que exige dele a promessa de que nunca
mais a tornará a ver, provam, suficientemente, para que lado se deixaria arrastar o seu coração,
se a razão e a virtude não o desviassem dessa tendência. No fim, toda a sua alma, toda a sua
ternura pertencem aquele a quem chama, daí por diante, o seu Polyeucte: o coração e a razão
harmonizaram-se num amor que ela criou pela força da virtude.

Quando o coração e a razão são assim unidos; quando o amor é sobrenatural e cristão,
os anos podem vir, pode-se envelhecer que o coração não envelhece. O amor eleva-se, apura-
se e a gente aproxima-se por uma ascensão lenta, dessa maneira de amar, que é a do céu.

Se o vácuo se faz à roda dos esposos; se a morte os fere, se lhes aparecem provações,
mais se unem pelo amor que se fortifica na repetição mútua das tocantes palavras de
Andromaca a Heitor: «Tu és, agora, o meu venerado pai e a minha venerada mãe; tu és os meus
irmãos; tu és o meu esposo muito amado.»

A morte pode chegar; será uma dor viva e amarga, mas não os desunirá; após alguns
momentos, a reunião far-se-á em Deus, e, em lugar do tempo terão, para se amarem, a
eternidade.

Tal é o amor cristão no matrimônio. É verdadeiramente o amor de Cristo e da Sua Igreja,


amor todo-poderoso, amor santo, sem mácula, indissolúvel, amor para a terra e o céu, para o
tempo e para a eternidade.

Notas:

1) Epístola aos Efésios V, 25: "Maridos amai vossas mulheres como Cristo amou a Sua
Igreja".

2) S. Matheus XIX, 6.

Formação para os homens - parte 6


Padre Emmanuel de Gibergues
Eis a sociedade conjugal! Receber, dar e amar. Receber na abnegação e no
sacrifício, o aperfeiçoamento de si mesmo, o complemento da sua educação moral e
divina. Cada um dá tudo o que tem de melhor, que é a si mesmo; dá tudo
desinteressadamente pelo bem e a felicidade do outro. Amam-se fielmente, santamente,
e este amor todo-poderoso, porque é imortal e divino, dá-lhes força para receberem tudo
e darem tudo com alegria. Por cima do lar, paira o ideal divino, a união de Cristo com a
Sua Igreja, a Sua abnegação mútua, o Seu amor único e imortal.
Pela virtude dos sacramentos, a graça sempre aí está, sobretudo nas horas difíceis,
para iluminar, fortificar, santificar, sustentar. Eis a união dos esposos com os seus deveres
austeros e com as suas provações, mas também, com as suas alegrias santas e quase
divinas. Ei-la na sua grandeza, na sua beleza sublime, em toda a sua
santidade. Sacramentum hoc magnum est, ego dico in Christo et in Ecclesia.
Mas, ai! como tais uniões são raras!
E poderá isto causar-nos admiração? Os poetas, os romancistas, os escritores, os
guias da opinião zombaram da virtude, glorificaram o adultério, disseminaram a paixão,
afastaram a abnegação. Minaram, pela base, o edifício religioso do matrimônio cristão;
proclamaram a lei do divórcio, à espera, sem dúvida, da poligamia e da união livre. E esta
decadência, este regresso sensível à animalidade, chama-se um progresso! Ah! não, é um
mal horrível, do qual poderíamos morrer. Invadiu as classes populares; multiplica-se de
uma maneira assustadora.
É tempo de tornar a dar às famílias a sua instituição divina, se não quiserdes
perecer. Mas não pretendais, meus senhores, libertar-vos, por estardes altamente
colocados, das leis que sabeis necessárias às multidões populares. Não há aqui nem
privilégios, nem exceções. Todos sois filhos do mesmo Deus, do mesmo Pai; todos, estais
sujeitos às mesmas obrigações, e os mais em evidência devem dar os maiores exemplos.
Com a vossa autoridade, com os vossos conselhos, com a vossa influência,
multiplicai as famílias fiéis, os matrimônios cristãos, as uniões santas, para não
perecermos pela imoralidade e pela desorganização da família. Colocai bem alto a moral
em vosso lar, para que brilhe com magnificência aos olhos de todos, e fortalecei a união
em vossos corações para que ela se retempere pouco a pouco, em todo o país. Porque, se
todos os povos desaparecidos pereceram por sua corrupção, ou adormeceram gelados pelo
frio da morte, perto de seus lares apagados, é dos lares vivos, onde arde a chama do amor
sagrado, imortal, todo-poderoso; dos lares cristãos, das vidas cristãs, e dos costumes
puros, que hão de sair as nações fortes e poderosas; porque é aí só que podem descer as
graças do Alto, que vivificam, e as bênçãos que imortalizam!
O PAI - A sua importância e os seus deveres - Parte 1
Padre Emmanuel de Gibergues

Qui scandalizaverit unum de pusillis istis...


expedit ei ut suspendatur mola asinaria in collo ejus,
et demergatur in profundum maris.

Aquele que maltratasse um destes rapazinhos...


ser-lhe-ia melhor que lhe atassem uma pedra ao pescoço
e o precipitassem no fundo do mar.
S. Matheus, XVIII. 6.

Eminência 1,
Meus senhores,

Aprouve a Deus, em Sua sabedoria, que o ser humano viesse ao mundo e se


multiplicasse por intercessão recíproca do homem e da mulher, destas duas criaturas
indissoluvelmente unidas por sua livre vontade. Daí, estas duas palavras importantes do
Genesis: crescite et multiplicamini2. Digamos só algumas palavras da sua importância
para insistirmos sobre os seus deveres.
Quem falará da importância da paternidade? Na ordem da natureza, não há outra
mais elevada; fica-se deslumbrado quando se pensa nisto. O poder de criar, de tirar do
nada, de fazer do nada alguma coisa; este privilégio sublime, que só pertence a Deus; este
poder, que está acima de todos os poderes; este atributo, que é o caráter próprio do
soberano Senhor de todas as coisas; este poder de dar a vida, e que acreditávamos
incomunicável, foi da vontade de Deus concedê-lo ao homem.
É Ele, sem dúvida, que conserva a Sua propriedade radical, e o homem não age
independentemente, mas sim por um poder comunicado; mas comunicado com tal
liberalidade, que seriamos tentado a dizer: com que imprudência! Parece que Deus se
desapossou, que se privou a Si próprio desse poder da vida, para o deixar, para sempre, à
vontade do homem. Poderia Ele elevar o homem a maior altura, dar-lhe um dom natural
mais sublime, mais admirável, que ultrapasse a divindade? ego dixi: dii estis3; (eu vos
digo: sois deuses).
Desde a origem do mundo, o nome de pai é o mais belo, o mais santo, depois do
nome de Deus.
Divino, por sua origem e natureza, pois que o nome de pai representa a própria
autoridade do poder criador e da vida dada; é ainda o alicerce do primeiro império
estabelecido entre os homens - o império doméstico; e ficou sempre como o tipo do que
há de mais venerável.
Quanto ao homem, queriam mostrar a importância que davam a uma dignidade, a
uma instituição, a um serviço prestado; recorriam a esta palavra, para tomarem alguma
coisa de sua aureola e majestade. Para exprimirem o que têm de mais caro, depois da
família, e que não é senão uma extensão dela, dizem: a pátria. Para honrarem certos
homens dentre todos os outros, deram-lhes o nome de pais da pátria, pais do povo, pais
conscritos, patriarcas.
A própria religião, para glorificar ou caracterizar o que tinha de mais grandioso e
de mais sublime, não achou palavra mais bela, e disse: pais da fé, pais do deserto, pais
dos concílios, pais da Igreja, pais das almas, pais espirituais. Deu-se este nome ao próprio
chefe da Igreja: Papa, que significa pai.
Que digo eu? Quando o Filho de Deus quis ensinar-nos a rezar, não achou nome
mais augusto, para colocar nos lábios, do que o de «Padre-Nosso», para mostrar ao mesmo
tempo que Deus não tem prerrogativa mais sublime, e que toda a paternidade dimana
d'Ele: Unus Deus et Pater omnium4.

Não! nada, sobre a terra, é mais nobre do que a paternidade humana, pois que nela
encontram-se, ao mesmo tempo, a comunicação da paternidade divina, a origem, o
modelo de toda a autoridade, de todo bem, de toda a grandeza, e como que uma expansão
misteriosa do próprio sacerdócio.
Sim! o pai é padre em toda a extensão do termo, e só ele o era no principio: regale
sacerdotium5. É por isso que a religião sempre reconheceu ao pai o direito e o poder de
abençoar.
Os pagãos não abençoavam. Enéas transporta, das ruínas de Tróia, o seu velho
pai, às costas; e seu pai, quando morre, não o abençoa. As palavras de Heitor a seu filho,
nos braços de Andrômaca, são heróicas, mas não o abençoa.
Priamo, o mais sublime dos pais da antiguidade, não abençoara Heitor antes do
combate.
Mas entre o povo de Deus, Abraão, Isaac, Jacob, e os patriarcas de todos os tempos
abençoaram seus filhos. Entre todos os povos cristãos, nos tempos de fé, os pais
abençoavam seus filhos em ocasiões graves e solenes, pelo menos à hora da morte; como
Deus o havia feito ao primeiro homem, e Jesus Cristo aos Seus apóstolos, quando subiu
ao céu.
Ainda hoje se vê pais abençoarem os filhos, por exemplo, na ocasião da sua
primeira comunhão, e esta bênção, emanando do coração de um pai sobre seus filhos,
volta, de novo, ao coração paterno, e torna-se, para ele mesmo, uma bênção de Deus. É
verdadeiramente um sacerdócio, em que o pai sente uma dessas emoções poderosas, que
comovem até ao mais íntimo da alma.
A emoção ainda é mais forte, para os que se sentem menos dignos de uma função
tão pura. Já se viu pais recusarem obstinadamente a bênção a seus filhos e exclamarem:
Não, não! não posso! Em seguida, cederem, e tendo dado a bênção, derramarem lágrimas,
que depois não podiam estancar.
Ah! Meus senhores, qualquer que seja o estado de um homem, por mais baixo que
tenha descido, há alguma coisa que o eleva, e se torna, para ele mesmo, a fonte inesgotável
dos mais nobres sentimentos - a consciência de ser pai.
Tem-se visto pais recuperarem, em presença dos filhos e num instante, toda a
dignidade e respeito de si mesmos, que o mal lhes havia feito perder, e tornarem-se bons,
castos, justos, crentes e cristãos!
E se acontece - pois, na humanidade, que é livre, dá-se o contraste espantoso de
haver santos e de haver miseráveis, - se acontece, repito, que um homem calque aos pés
o seu dever de pai e volva contra seu próprio filho esse poder de amor, de proteção física
e moral, levanta-se um grito de indignação e de espanto! Este pai desnaturado, que assim
procede, é incluído, por unanimidade, na classe dos monstros... A grandeza de sua queda,
ainda mostra melhor a altura de que caiu, e qual é a nobreza o sacerdócio real do pai que
não pode recusar o seu diadema sem cair completamente e causar horror! ...
Há perdão para tudo; e a alegria do padre é apagar tais iniquidades; mas é preciso
o poder infinito do sangue redentor, para lavar tais manchas e levantar de tais quedas! ...

Notas:

1- S. E. o Cardeal Arcebispo de Paris presidia à Reunião.


2- Genesis VIII, 17 “Crescei e multiplicai-vos.”
3- Salmo, XXXI, 6.
4- Epístola aos Efésios, IV. 6. “Um só Deus e Pai de todos.”
5- Epístola de S. Pedro, II, 6. “Sacerdote real.”

O PAI - A sua importância e os seus deveres - Parte 2


Padre Emmanuel de Gibergues
Vindo de dignidade semelhantes, os deveres do pai não podem ser senão sagrados,
e, portanto, formidáveis. Há dois: O dever da vida, e o dever da educação.
Sobre o dever da vida não insistirei.
Mas ser-me-á permitido dizer-vos, meus senhores, qual é a vossa
responsabilidade. Deus teve, portanto, essa confiança em vós, deu-vos esta honra:
abdicou, em vosso favor, o poder de criar.
A espécie inteligente e livre, a raça humana está nas vossas mãos. Mas esteja ou
não esteja; multiplique-se larga ou parcimoniosamente: isso depende de vós.
Seja nobre ou baixa, resplandecente de virtudes ou podre de vícios: isso depende
de vós.
Pode descer abaixo dos selvagens ou dar-nos ainda muitas santas Clotilde, S. Luiz,
Joana d' Arc, S. Vicente de Paulo: é a vós que compete decidir; e isso depende de cederdes
aos atrativos das paixões de colocardes a moral e a religião em vossos costumes; pois que,
com o poder de dardes a vida, tendes a necessidade de transmiti-la tal como a tendes, tal
como a preparastes. É uma responsabilidade a mais!
Atualmente (noto eu, meus senhores) há homens que compreendem a honra e não
recuam em face do sacrifício. Refletem, rezam, consultam, quando é preciso; não temem
a luz; procuram lealmente a vontade de Deus: a lei divina é sagrada para eles.
Sabem que cuidados requer a saúde de sua esposa, que é o bem dos filhos já
nascidos; mas sabem também que é bom o multiplicar a vida, e a sua confiança em Deus
modera os receios que o futuro lhes poderia inspirar. Toda a questão de ambição, de bem-
estar, de egoísmo é posta de parte: antes de tudo está o dever. A graça sacramental dar-
lhes-á força para cumpri-lo, sem dispensá-los do esforço pessoal. A tudo estão decididos,
menos a ofenderem a Deus; a todos os sacrifícios, a todas as provações.
Dizem: se a Pátria tem o direito de pedir-nos o nosso sangue para defendê-la, Deus
também tem o direito de no-lo pedir para defender a moralidade do lar, que é o primeiro
bem da pátria.
Dizem que há horas na vida em que é preciso ser herói ou mártir, para cumprir
com o dever; e serão heróis, mártires, se preciso for, porque querem permanecer cristãos.
O sentimento das suas augustas funções há de elevá-los ainda mais alto.
Conhecem toda a força da hereditariedade, tanto na ordem física, como na ordem
moral. Sabem que o pai transmite a seus filhos, com o seu sangue, alguma coisa de sua
alma, de suas virtudes, de sua fé; e as bênçãos que Deus acrescenta, segundo as promessas
da Escritura, a esses bens da herança.
Sabem como se formam, de pais a filhos, essas raças vigorosas, sãs de corpo e
alma, e essas gerações fortes de crentes, para as quais a fé já não é somente uma convicção
individual, mas uma herança; não somente a determinação livre de uma vontade pessoal,
mas a necessidade de um temperamento que a fé conquistou.
Sabem que com a fé são também as virtudes do Evangelho que se tornam assim
uma tradição de família, gravam-se no coração de uma raça de preferência, e passam até
ao sangue como uma herança sagrada que se transmite de geração em geração e se vai
enriquecendo a cada transmissão, de sorte que esses descendentes da humanidade
decaída, parecem resgatados, desde o seio de suas mães.
Estes pensamentos sérios e os sentimentos que trazem em sua conduta, em sua
vida, em seu sangue, a sorte de uma geração inteira fortificam, nesses pais cristãos - a
força do dever; ajudam-nos a vencerem os assaltos mais terríveis das paixões, e servem-
lhes de maravilhoso socorro nos desfalecimentos ou tentações, das quais nem os melhores
são excetuados.
A todos estes homens de coração e de coragem, a todos estes valorosos da
consciência e do dever, honra e reconhecimento!
Não são só os pais da família e da pátria: são os verdadeiros pais da humanidade
regenerada, resgatada; salva; os associados dos apóstolos, os continuadores da missão de
Cristo, os coadjutores de Deus!
Há outros que, infelizmente, por leviandade ou descuido, por ambição ou
libertinagem, ou não sei por que outras paixões ainda, rebaixam e profanam as funções
augustas e o sacerdócio sublime da paternidade.
Há outros, contra os quais Bossuet se levantava com indignação exclamando:
«Desgraçadas das uniões, que desejam ser estéreis, que não serão abençoadas, nem por
Deus nem pelos homens!»
Queria falar dos pais avarentos ambiciosos, egoístas, descrentes da Providência e
do futuro, que, ludibriando o desejo natural e alterando a ordem de Deus, rejeitam a
paternidade como um fardo, e reprimem o nascimento e a formação dessas nobres
criaturas, dessas almas à imagem de Deus, que deveriam oferecer ao céu como o fruto de
sua bênção.
Há outros que, como a árvore das florestas, atiram ao sopro de todas as paixões, a
força misteriosa, cujo gérmen divino está neles.
Alguns há também que profanam a sua vida, antes de comunicá-la, que
enfraquecem e desnaturalizam essa força que lhes vem de Deus, e não transmitem senão
um sangue debilitado, estragado, uma vida rebaixada, uma alma que não tem senão
vícios!
Todos estes quebraram o seu cetro pelas suas próprias mãos; descoroaram-se eles
mesmos; não são mais dignos de serem chamados pais; ou, se é preciso ainda deixar-lhes
esse nome, como lembrança de sua antiga grandeza e sinal de sua queda, devem ser
chamados os pais do mal e do pecado; os pais do vício e do deboche, os pais da corrupção
e da morte, os continuadores, os coadjutores de Satanás!
Ó grandeza, ó santidade sublime da paternidade, cujos deveres não podem ser
cumpridos sem gerar o que há de melhor, desconhecidos sem produzir o que há de pior!
Dos pais sem consciência, sem virtudes, livrai-nos Senhor! ... Mas os pais de
consciência, cumpridores do seu dever, virtuosos, cheios de heroísmo, os pais cristãos,
abençoai-os, Senhor, e multiplicai-os!

O PAI - A sua importância e os seus deveres - Parte 3


Padre Emmanuel de Gibergues
Após o dever de dar a vida, vem o dever de engrandecê-la, o dever da educação.
Não é exagero dizer que é uma obra divina. Educar, educere, significa elevar o homem,
tirá-lo do pecado original, em que está mergulhado por sua natureza; arrancá-lo das trevas,
das servidões, das incapacidades, das humilhações, das paixões de sua natureza decaída,
da escravidão do demônio, para revesti-lo de Jesus Cristo, para elevá-lo a pouco e pouco,
esclarecê-lo, formar o seu espírito e coração, torná-lo vencedor de suas paixões e senhor
de si mesmo, fazer dele um homem honesto, um cristão, quiçá um santo; completar nele,
enfim, a semelhança divina à qual foi criado, conduzindo-o ao estado e grau de perfeição
que Deus lhe destinou e, finalmente, ao lugar da sua morada eterna.
Eis a educação! é bem a obra de Deus, a obra criadora, porque Deus havia criado
o homem perfeitamente educado, “a justiça e santidade da verdade” é a obra redentora,
sobretudo, porque o pecado, tendo destruído a educação original do homem, foi preciso
que Jesus Cristo a restabelecesse na dor e no sangue; e a continuasse todos os dias, em
cada um de nós, pela graça e pelos sacramentos.
A educação é a própria obra de Jesus Cristo sobre a terra; os pais são os Seus
continuadores e auxiliares; é a obra por excelência!
Mas, ai! como são raros os que pensam neste dever ou que desejam cumpri-lo!
Não se preparam para isto. A educação é uma obra eminentemente difícil. Não só requer
dedicação, mas muito tato, saber, experiência e observação. Quais são os rapazes e
raparigas que pensam seriamente nisto, antes do seu casamento e se preparam
eficazmente? ...
Preparai vossos filhos e vossas filhas; meus senhores, para serem educadores.
Preparam-se para serem oficiais, magistrados, professores, industriais, sábios; preparam-
se para todas as funções sérias, durante anos de trabalho, e porque os futuros pais e as
futuras mães se não hão de preparar para a mais difícil de todas as tarefas; - a educação?
Não se preparam porque não se querem incomodar com isto. Logo que as crianças
nascem confiam-nas a cuidados mercenários; assim que podem, para se verem livres
deles, colocam-nos em colégios, ou os abandonam sem fiscalização a professores ou a
professoras; e continuam a vida de prazeres, de festas, a vida mundana e egoísta.
Os enjeitados têm a caridade para recebê-los; têm religiosos ou religiosas que lhes
servem de admiráveis pais e de extremosas mães. Há crianças de famílias ricas, de
famílias que se dizem cristãs, que não são tão bem tratadas e que, seus pais, para
livremente se divertirem as confiam a criados que, na maior parte dos casos, as
corrompem e depravam.
Naturalmente, nem um pai nem uma mãe se devem isolar da sociedade, mas é
necessário que o tempo que deve ser empregado nos cuidados e educação dos filhos, não
seja absorvido pelos entretenimentos e outras preocupações mundanas.
O contrário significa um abatimento moral, o desprezo do maior dever dos pais,
cuja desordem e infelicidade não se poderiam lastimar bastante, e recear as consequências
perniciosas.
Mas supondo um pai que compreenda a gravidade do seu dever e esteja preparado
para cumpri-lo, decidido a fazer os sacrifícios necessários, a trabalhar quanto for
necessário, seriamente, pessoalmente, na educação de seus filhos; que deverá fazer?
Tudo se pode resumir nos pontos seguintes: a correção, a religião, o exemplo,
a preservação, a última educação, o futuro.
O dever de correção é consequência imediata da queda original.
O homem não nasce naturalmente bom, como afirma Rousseau: nasce mau,
depravado, com uma vontade propensa para o mal, com terríveis paixões em gérmen; em
uma palavra, com o que a Igreja chama a concupiscência, que o batismo, tornando-o filho
de Deus, enfraquece, contrabalança, mas não suprime. São estes instintos perversos que
a correção combate, ou antes, ensina à criança a combater por si mesma. Visto não os
poder suprimir e não dever ceder-lhes, será preciso que os domine, para vencê-los mais
tarde. A correção exige do pai e da mãe quatro qualidades: a perspicácia, a firmeza,
a bondade e a concórdia mutua.
A correção exige a perspicácia porque é uma obra de luz e de sapiência, em que,
primeiro que tudo, é preciso ver lucidamente.
É preciso conhecer-se bem o fim proposto; necessitam-se idéias nítidas; princípios
sólidos, e pensar em educar as crianças para Deus e não para si mesmo. Se os pais não
estão certos do que creem ou querem, como poderão corrigir seus filhos?
É preciso conhecer nas próprias crianças o que elas são; pois que nem todas são
semelhantes; as suas naturezas físicas e morais são essencialmente diferentes. Tratá-las
todas do mesmo modo, é um engano e um erro.
É preciso estudar, em especial, a natureza de cada criança; o seu caráter, as suas
qualidades, os seus defeitos, para se saber como se há de tratar, o que se poderá exigir de
dela, a medida de esforços de que poderá dispôr, o que ela tem de mais importante a
combater ou a desenvolver.
Para isto, é necessário força de vontade para ver sem paixão; porém, bem poucos
pais são capazes de assim proceder em virtude da cegueira a que os leva a afeição natural.
Diz-se que a cegueira das mães, no que diz respeito às filhas, não se pode comparar senão
à cegueira dos maridos, no que diz respeito a suas mulheres. Pode dizer-se o mesmo, dum
modo geral, da cegueira dos pais para com seus filhos; é profunda e como incurável. Os
educadores sabem-no e lamentam-no; os mais ilustres têm-no afirmado mais de cem
vezes. Os pais defendem os filhos quando os mestres os repreendem, e dão razão aos
filhos. Muito poucos pais querem reconhecer os defeitos dos filhos, saber a verdade a seu
respeito.
Com a perspicácia desaparece esta cegueira da alma e morrem todas as suas
ilusões. É o fruto do verdadeiro amor:illuminatos oculos cordis1. A correção é obra de
luz, requer a perspicácia.

1- Epístola aos Efésios: I 18. "Os olhos esclarecidos do coração."


O PAI - A sua importância e os seus deveres - Parte 4
Padre Emmanuel de Gibergues

É obra de força, requer firmeza.


Esta falta ainda mais do que a perspicácia.
Porque é mais difícil querer do que saber; e se os pais não querem saber, é porque
o saber condená-los-ia a querer. Quem não tem querer, não sabe mandar nem proibir,
nem, o que é capital, obrigar as crianças a quererem. Não só na infância, mas ainda mais
tarde e sempre, lhes fazem física e moralmente, todas as suas vontades. Em toda extensão
do termo, educam-nas mal, isto é, corrompem-nas.
Adulam o corpo e a alma, a carne e o espírito; alimentam as paixões; excitam-lhes
a vaidade, o orgulho; honram-nas, adoram-nas.
Cedem-lhes tudo; habituam-nas a vencerem os outros, a dominarem, a fazerem a
sua própria vontade. É o sistema de concessão levado até a mais deplorável fraqueza.
Vêem-se moços que chegam a ser os verdadeiros donos da casa, a mandarem em tudo, e
a aniquilarem os próprios pais que, para conservarem uma aparência de dignidade,
dizem amém a tudo.
Mas a criança não quer obedecer, e não quererá, objetam! Então porque sois pais,
meus senhores, senão para quererdes com sabedoria, e fazerdes querer com a vossa
autoridade?
Mas ele tem quinze anos, já se não pode obrigar! O Evangelho resume a vida de
Jesus Cristo em casa de seus pais, por uma só palavra: erat subditus illis 1.
Obedeceu até aos trinta anos. É o exemplo que deveis apresentar a vossos filhos.
Aos quinze, aos vinte anos, os vossos filhos devem obedecer-vos.
Mas a firmeza não é o arrebatamento a brutalidade, a frieza, o capricho, a paixão,
a injustiça.
A firmeza deve ser justa e paciente. Justa para mandar, segundo o dever, o bem,
as forças da criança: deve ser uma firmeza elevada, sobrenatural, proporcionada. Os pais
devem combater o próprio mal e não os efeitos que os incomodam; devem corrigir as
inclinações da criança, porque são viciosas e não porque os fazem sofrer.
A firmeza deve ser paciente, isto é moderada, senhora de si; é preciso saber
esperar, e não querer fazer tudo de uma só vez.
Firmeza justa e paciente, não há nada que seja mais recomendando aos pais pelas
Escrituras Sagrada: «Aquele que não emprega a vara, diz ela, trata a criança como se a
odiasse.»2.
À firmeza é preciso juntardes a bondade, para que as crianças vos amem. Sem ela,
a firmeza seria odiosa e repelida, ou sofrida como escravidão.
«Qual é o vosso segredo para terdes tanta influência sobre as crianças?»
perguntavam a um célebre educador, ao que ele respondia: «Começo por me fazer amar.»
É preciso fazer-se amar pelas crianças, levá-las pelo coração, e cuidar-lhes sempre do
coração.
Não é por uma bondade de concessão ou de fraqueza, que tem sido definida: A
arte de desenvolver, numa criança, todos os defeitos que recebeu da natureza, e juntar-lhe
todos os que a natureza se esqueceu de dar-lhe. Isto seria a destruição da firmeza, a ruína
da educação.
Não é também, da parte do pai, uma bondade demasiadamente familiar uma
bondade de camarada. Antigamente, havia talvez distância demais e como cerimônia e
frieza entre o pai e o filho. Hoje é excessivamente o contrário cai-se na camaradagem, o
que é um mal: traz a idéia da igualdade e enfraquece o poder paternal. Os maiores mestres
da antiguidade, como Platão e Cícero, e os dos tempos modernos, no que diz respeito à
educação, pronunciaram-se claramente sobre este ponto. A camaradagem prejudica o
respeito e a autoridade.
É preciso uma bondade digna e forte, firme e sem fraqueza, e que não veja em
tudo senão o bem da criança; uma bondade que seja o reflexo e como que a imagem da
de Deus, a única que merece ser chamada a bondade paternal.
Enfim, porque sois dois, porque há a mãe ao lado do pai, a mãe que tem a sua
grande parte na educação e autoridade também sobre a criança, é essencial que haja entre
os dois uma concordância mútua. Isto é muito raro. Os pais, muitas vezes, censuram-se,
contradizem-se, brigam diante dos filhos.
Mas a criança não escapa à tentação de julgar os que fazem dela testemunha de
suas desavenças; a sua consciência sente-se ferida, a autoridade é atacada e fica diminuída
a seus olhos.
Fazei as vossas observações mútuas em particular, nunca em presença das
crianças. Não mineis a vossa própria autoridade. Não mostreis diante delas senão uma
união constante e um acordo perfeito: é a condição para manterdes intacta a autoridade,
inviolável e sagrada. Com a concordância mútua, a bondade, a firmeza, a perspicácia, far-
se-á a obra de correção, todavia com a condição de estar aí a religião para inspirar tudo,
animar tudo, vivificar tudo.
Sem a religião não há educação possível. Os menos religiosos reconhecem-no,
quando são sinceros, quero dizer, quando não fazem obra de sectários, mas obra de pais,
quando se trata de seus próprios filhos.
Diderot ensinava ele mesmo o catecismo a sua filha; e respondeu a um amigo que
se admirava disto: «Ainda não se encontrou melhor meio de educação.»
Littré consentiu que sua mulher educasse cristamente sua filha, sob a condição de
encarregar-se da educação dela, segundo os seus métodos, quando esta tivesse dezesseis
anos. E, quando chegou aos dezesseis anos, o coração do pai, ainda ligado ao positivismo,
foi mais forte e mais perspicaz do que as suas teorias, e Littré não ousou tocar no trabalho
de sua mulher, que havia feito de sua filha uma menina modelo.
Quantos pais, hoje, são ímpios por interesse, por espírito de partido, por ambição,
e põem em segredo, ou poriam, se tivessem coragem para isso, suas filhas em casas de
religiosas e seus filhos em casa de religiosos? É porque o coração de pai, meus senhores,
quando não é desnaturado, é um santuário sagrado, onde se encontram, não obstante todos
os desvarios, como em asilo inviolável, a verdade, a sinceridade, a inteligência de tudo o
que é grande e santo, justo e bom, quando se trata dos interesses de seus filhos!
É, desde a idade mais tenra, que se deve imprimir fortemente o sentimento
religioso na alma da criança. As primeiras noções, os primeiros sentimentos que ela
recebe são os mais tenazes, os mais indestrutíveis.
Na sua alma nova, imprimem-se com tal força estes sentimentos, que nada, nada
os poderá apagar.
As paixões, os erros poderão perturbar a superfície; a religião, se tiver sido
ministrada como um culto, que é, desde a infância, firme e invulnerável, ficará como uma
rocha de granito.
Desde o primeiro despertar da razão, falai às crianças a linguagem da razão e da
fé e compenetrai-as das grandes idéias que fazem o homem e o cristão.
Em vez de lhes meterdes medos ridículos, ou ameaças, dizei-lhes que são vigiadas
por Deus, que Jesus Cristo morreu por elas. Falai-lhes do julgamento de Deus, do Céu,
do Inferno, do Purgatório, da Paixão de Jesus Cristo.
Inculcai-lhes profundamente o amor e culto do dever, da pátria, da Igreja, da
virtude, da justiça, da caridade, da Virgem Santíssima, de Jesus Cristo, de Deus.
Que as suas orações sejam sempre feitas seriamente, e nunca por brinquedo, nem
diante de estranho, só para mostrarem o que sabem fazer, é o que cumpre indicar-lhes.
Tornai-as piedosas, contando-lhes a vida de Jesus Cristo, cuja infância deve
servir-lhes de modelo.
Conduzi-as cedo ao catecismo, porque aí, por instruções ao seu alcance,
encontrarão exortações cristãs. Os pais não têm melhor auxiliar do que o padre na obra
da educação moral. O padre não pode recusar-se, mas elas também não o podem recusar.
A primeira confissão deve ser, para as crianças, um negócio grave, um ato que
nunca deverão esquecer.
Que a sua primeira Comunhão receba toda a preparação e seja rodeada de todas
as medidas necessárias para que se torne o ponto central e como que o eixo de toda a sua
vida, é indispensável.
Urge que entre os doze e os vinte ou vinte e cinco anos, enquanto dependerem de
vós, o estudo da religião tenha o primeiro lugar em seu pensamento, como nas vossas três
ocupações. Se uma educação religiosa, não confirma sempre, infelizmente, o triunfo da
moral, uma educação sem religião assegura a sua derrota irremediável.
Dai-lhes uma religião sólida, esclarecida, bem arraigada, escolhendo-lhes com o
maior cuidado os cursos, os pregadores, os livros de religião.
Fazei consciências indomáveis que não capitulem, caracteres de aço que não
obedeçam senão a Deus.
Fazei com que sejam homens de convicção e de fé. São as idéias, as convicções,
que governam o mundo: é a fé que o levanta e transforma. Mas é necessário uma fé que
faça parte de nós mesmos, que esteja no sangue, e como segunda natureza: é a obra da
educação!

Notas:

1- São Lucas II, 51. "Era-lhes submisso."


2- Provérbios, XIII, 24.
O PAI - A sua importância e os seus deveres - Parte 5
Padre Emmanuel de Gibergues

A religião não penetraria na alma das crianças, a correção não corrigiria nada, se
ambas não fossem apoiadas pelos vossos exemplos. Vós bem o reconheceis, meus
senhores; se não praticais o que exigis, não podeis exigir com força e convicção, aquilo
que não está em vosso coração. A vossa hipocrisia paralisará, queimará os vossos lábios:
achar-vos-eis sem autoridade, sem força. O orador, diziam os antigos, é o homem de bem,
que fala bem; é a definição do pai: ele só falará bem, se for homem de bem; só mandará
bem no que souber praticar.
Como escapar ao olhar, ao ouvido da criança, à sua finura, ao seu espírito de
observação? Se a vossa vida depuser contra as vossas lições, destruí las-á. A criança
lembrar-se-á dos exemplos e esquecerá as lições. «Toma cuidado, diz o Sábio, que a
tua vida não seja a causadora da morte de teu filho.» [i]
Se, pelo contrário, o exemplo confirmar a lição, a criança ficará vencida.
Dai o exemplo a vossos filhos, meus senhores. Que vos vejam rezar, ao menos
algumas vezes, é do maior alcance.
Quando a criança vê seu pai de joelhos, compreende melhor a oração parece-lhe
que há alguma coisa da majestade do próprio Deus que desce sobre a fronte de seu pai.
Respeita mais; e quer mais ao mesmo tempo, a seu pai da terra e a seu pai do Céu.
Fazei com que os vossos filhos vos vejam na missa em atitude silenciosa, de
respeito e de oração e vos vejam comungar, quando mais não seja, pela Páscoa; ou pelo
menos, que saibam que vós cumpris este sagrado preceito. A criança que não vê seu pai
comungar, que sabe que seu pai não comunga, sofrerá mais cedo ou mais tarde, em sua
consciência, assaltos terríveis, e tanto maiores quanto mais respeitar seu pai; a sua fé
ficará abalada.
Deixai que vossos filhos sejam testemunhas diárias da vossa paciência, da vossa
humildade, da vossa bondade, da vossa mortificação, da vossa caridade, das vossas boas
obras, do bem que fazeis, da paz e alegria que espalhais ao redor de vós por vossos
exemplos e vossas virtudes!
Felizes dos que encontram em seus pais, o modelo do que devem seguir, e aos
quais não se pode dar melhor conselho do que dizer-lhes: «Meus filhos, olhai para os
vossos pais e fazei como eles!»
Estes exemplos são fáceis, meus senhores, se compreenderdes a sua importância;
se penetrardes no santuário de vosso coração paterno, para nisto refletirdes; se tomardes
o costume, antes de agirdes, de pedir conselho ao berço ou ao futuro de vossos filhos.
Mas não sois os únicos a ter influência sobre vossos filhos. Outras influências há
que poderiam impedir ou destruir a vossa obra. Deveis preservá-los pela vigilância.
Preservai-os contra os perigos dos colégios e escolas, escolhendo com escrúpulo
os estabelecimentos, os mestres a quem ides confiá-los.
A vossa responsabilidade a este respeito é grande. Não podeis ir ao acaso, nem
contentar-vos com informações vagas e indeterminadas. Deveis ver vós mesmos e
assegurar-vos de que tudo é correto. Deveis seguir a criança no ensino que recebe,
sobretudo nas classes altas, e nunca abdicar do vosso direito de vigilância e de censura.
Preservai vossos filhos das conversações dos estranhos, dos amigos, dos criados.
As crianças ouvem tudo, porque escutam tudo. Uma palavra, uma observação poderá ser
o veneno lançado em sua alma. Vós deveis defendê-los e a vossa vigilância tendo sido
surpreendida, se o mal foi praticado, devereis descobri-lo e remediá-lo.
Quando a criança parecer perturbada, não receeis mandá-la repetir o que tiver
ouvido, para lhe mostrardes a sua falsidade e o perigo que daí pode advir.
Preservai os vossos filhos de leituras perigosas. A leitura tem lugar preponderante
na formação do espírito, do coração e da alma. É do vosso dever proibir-lhes leituras
perniciosas; e, se os estudos os obrigarem a fazê-las, devereis corrigir e destruir o seu
efeito.
Sois vós que deveis indicar-lhes os livros que eles devem ler, - livros úteis e bons,
fortificadores do espírito e retemperadores da alma, e em que possam aprender tudo o que
é necessário para serem felizes e agradáveis a Deus.
Afastai os vossos filhos das más companhias que, muitas vezes, começam na
infância com a imoralidade dos cuidadosmercenários, e mais tarde com os amigos
corrompidos. As más companhias ainda perdem mais a mocidade do que essas leituras
prejudiciais.
A influência que um companheiro de maus costumes ou caráter baixo pode
exercer sobre outro que é puro, ingênuo e bom, é tão extraordinária quanto perigosa.
Começa o mau por se iniciar no espírito do bom, fazendo-lhe a apologia das suas falsas
teorias ou dos seus péssimos costumes. Aquele que é bom, a princípio, resiste, depois, ou
por timidez ou por fraqueza, deixa-se arrastar para o mal, para o crime... E ei-lo perdido
para a sociedade, para a família e para Deus!
Afastai, pois, de vossos filhos, e sem piedade, os maus companheiros, e fazei por
aproximá-los dos bons que serão para eles uma proteção, um amparo, uma segurança.
Preservai-os da ociosidade. Se vos achais em posição modesta, serão, obrigados a
trabalhar, o que será uma felicidade. Se fordes ricos, ou se eles estiverem destinados a sê-
lo, será um grande perigo. A ociosidade é funesta: desideria occidunt pigrum[ii] diz a
Escritura. A ocupação útil, o trabalho, é a lei da vida para todos, tanto para os ricos como
para os pobres. Os acidentes da vida não se fazem muitas vezes esperar, obrigando todo
o mundo a trabalhar; e em quanto isto não acontece, para que vossos filhos estejam
preparados, obrigai-os ao trabalho. Se não seguirem qualquer carreira, fazei com que
empreguem bem o tempo e que pratiquem o bem.
Impeli-os a praticarem obras de caridade, e a cumprirem os deveres sociais. É
nisto que eles encontrarão um magnífico papel a desempenhar, e a mais útil das
influências; e, pelo que a experiência tem demonstrado, aí encontrarão o melhor
preservativo contra o mal.

[i] Provérbios, XIX, 18.


[ii] Provérbios XXI, 25. “Os maus desejos matam o preguiçoso.”
O PAI - A sua importância e os seus deveres - Final
Padre Emmanuel de Gibergues

A última educação do moço, não é a menos importante. Trata-se de premuni-lo


contra os perigos que vai encontrar na vida; contra os assaltos, até aí desconhecidos, das
suas próprias paixões, contra o arrebatamento de tudo o que é novo e sedutor.
Mas ainda não é o momento de dizer: Tudo está concluído; não resta senão rezar.
Sem dúvida; é preciso que redobrem as orações, mas é também preciso agir, não ficar em
inação.
A autoridade deverá ser exercida com mais brandura, com mais ponderação e deve
revestir-se de mais doçura, tato e circunspeção; mas deverá conservar-se vigilante e firme,
não se conformar com o mal, dizendo: todo o mundo faz assim é preciso passar a
mocidade; mas dizer, pelo contrário: “Não! o meu filho, não será como toda essa gente:
é preciso que a sua mocidade, o seu sangue e a sua virtude se conservem intactos, para
Deus, para a pátria e para a família que, por sua vez, há de constituir”.
Falai-lhe dos seus futuros deveres, de sua família, de seus filhos e de sua esposa!
Em tudo isto há uma fonte de sentimentos nobilíssimos, muito poderosos, que,
maravilhosamente, hão de vir em socorro da religião, que há de sustentá-lo nas terríveis
lutas que vai sofrer e assegurar-lhe e vitória. Fazei pairar, com antecipação, sobre a sua
vida, a imagem da terna e inocente donzela e a dessas nobres criatura que se lhe
assemelharão, e das quais ele será pai.
Dar-lhe-eis deste modo, força maravilhosa, e assim o protegereis e o
preservareis...
Se cair, não penseis que está tudo perdido; não desespereis, para que não fique
com vontade de desesperar-se também. Sede bons, perdoai-lhe, levantai-o; nunca o façais
perder a confiança em vós, em vosso coração.
Mas sede firmes e sem fraquezas. Há horas em que só o pai pode salvar o filho;
só ele é que terá bastante autoridade e força para isso. Só a voz da natureza e do sangue
será bastante poderosa para ser atendida.
Enfim, ajudai vossos filhos na questão grave do futuro, que não podem decidir a
sós. Tratando-se de vocação religiosa, sondai-lh'a com prudência; mas não lhe ponhais
obstáculos. Se a vocação não for de Deus, cairá por si perante estas prudentes medidas.
Se for de Deus, que mal e que erro seria a vossa oposição a Deus! Que consequências
para o futuro de vossos filhos!
Tratando-se de casamento, ponde de parte a ambição, a avareza, o egoísmo, e
colocai-vos francamente sob o ponto de vista do verdadeiro bem de vossos filhos, e sob
o ponto de vista cristão. Assegurai-vos da moralidade e sentimentos religiosos, da saúde,
do caráter, do gênero de educação e da família. Tomai bem as informações, nunca serão
demasiadas; sede desconfiados e não crédulos.
Em seguida, deixai a palavra ao interessado; não precipiteis nada; dai tempo para
se verem e tornarem a ver: para se conhecerem, para saberem se são do agrado um do
outro; nunca forceis um coração; as consequências poderiam ser desastrosas.
Tratando-se, finalmente, duma carreira a seguir, esclarecei e auxiliai-o com os
vossos conselhos, mas guiai-vos sempre por vistas elevadas e por motivos nobres e
cristãos; depois deixai o rapaz seguir livremente a sua inclinação e as suas aptidões; não
lhe imponhais nunca a vossa vontade pessoal.

É na Escritura Sagrada, meus senhores, que deveríeis ler a importância do pai, e


de seus deveres, as bênçãos permitidas aos que os cumprem, as infelicidades e os castigos
dos que os desprezam. Deixo isto ao vosso cuidado. Vereis que não há palavras mais
surpreendentes em qualquer outro assunto, do mesmo modo que não há palavra mais
temível do que a que o Salvador dirige aqueles que fazem mal às crianças: “Aquele que
houver escandalizado um destes pequenos, seria melhor que lhe atassem uma pedra ao
pescoço e fosse lançado ao fundo do mar”.
Como será terrível no dia do juízo a responsabilidade dos pais! Ah! que bênçãos
para aqueles que houverem compreendido os seus deveres, e os tiverem preenchido digna
e corajosamente, para aqueles que tiverem sido os salvadores de seus filhos, e, por eles,
de inúmeras gerações!
Mas que maldições cairão sobre aqueles que tiverem desprezado os mais santos e
mais sagrados de todos os deveres; sobre aqueles que tiverem sido o escândalo e a
perdição de seus filhos, e, por eles, de muitos outros!
Se, em nossos dias, há um espetáculo que entristeça profundamente os que se
importam com a virtude e o bem, com o futuro da religião e do país, é o espetáculo da
decadência da autoridade paterna. Têm-se atacado a autoridade e os direitos de Deus, a
paternidade divina; têm-se exaltado os direitos do homem, o direito dos filhos, nos
escritos, nos discursos, nas leis, de todos os modos. Um sopro forte de independência
passou sobre as novas gerações. A autoridade paterna tem sido profundamente abalada
nos costumes e nas leis, minada pela base, descoroada, desarmada! Os mais ilustres
pensadores disseram-no, e soltaram o brado de alarma.
Os filhos já não querem obedecer: querem mandar antes do tempo; elevam-se
acima dos pais, e acham-se superiores em tudo. Acabou-se a autoridade, acabou-se o
respeito, acabou-se a submissão, acabou-se a família. É o individualismo excessivo; é a
sociedade que se pulveriza.
Quem nos tornará a dar homens? Quem tornará a fazer cristãos, para que a
sociedade se erga? São as famílias cristãs, os lares cristãos, os únicos capazes de fazerem
reflorescer ainda a autoridade, o respeito, a obediência.
São os guardas do lar, os chefes de família; são os pais!
Disseram bem: “Os filhos são a colheita dos pais.” Se já não temos homens, ou
pelo menos se não temos bastantes; se a colheita é demasiadamente rara, se os celeiros da
França estão vazios, é porque nos faltam pais, pais cristãos.
E eis porque, na tormenta que nos agita, todos os que, pensando no futuro não se
querem desanimar, todos os que guardam no coração uma confiança invencível e
esperanças imortais, se voltam para os pais, e lhes rogam que se conheçam a si mesmos,
para compreenderem a grandeza de seus deveres e a sua influência soberana, e para lhes
dizerem: “É de vós, ó chefes de família, ó representantes de Deus, ó dispensadores da
vida, ó guardas da infância, é de vós, ó pais cristãos que dependem neste mundo, os bens
e os males, a virtude e o vício, a grandeza e a decadência, a vida e a morte da família e da
sociedade, dos indivíduos e do Estado, da Igreja e da França!"

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O Apóstolo I - Parte I
O APÓSTOLO

Da obrigação de ser apóstolo


Demonstrada pela condenação do inútil
Padre Emmanuel de Gibergues
Servum inutilem ejiciste.
Rejeitai o servo inútil.
S. Mateus, XXV, 30.

Meus senhores,
É um processo que vamos instaurar esta tarde. É um acusado que se julga inocente,
e que dorme na mais profunda ilusão: o servo inútil, “Servum inutilem”, que vamos citar,
sucessivamente, perante seis tribunais, que o condenarão sem piedade: o tribunal de Deus,
do Evangelho, da razão, da sociedade, da natureza e de seus próprios interesses.
Primeiramente, é necessário precisar bem a questão, tornar conhecido o acusado,
descrevê-lo em termos nítidos e precisos. Vou tocar numa chaga viva da nossa sociedade
moderna: entristecerei alguns, darei prazer a outros. Lembrai-vos, meus senhores, que os
missionários e os apóstolos têm todos os direitos, porque falam em nome de Deus, e
porque tudo o que dizem lhes passa pelo coração, ou antes pelo coração de Deus, para
penetrar no vosso, para o bem e salvação de vossas almas.
O inútil é aquele para quem a moral tem duas partes: uma que ele aceita e outra
que rejeita. Declina a malo, et bonum[1]; eis a moral. Declina a malo, evitar o mal, não
o consegue sempre; muitas vezes, não o evita absolutamente; mas, enfim, reconhece que
faz mal, e que deveria evitá-lo.
Fac bonum, fazer o bem, não se julga obrigado a isso; não vê nisso senão um
conselho, e não uma obrigação determinada e um dever.
O inútil é aquele que se dá por justificado perante Deus, se não pratica o mal,
embora não pratique o bem. Para ele, não há pecados por pensamentos, por palavras e
obras; nem existem pecados por desmazelo ou desleixo.
O inútil é aquele que guarda os dons que recebeu de Deus sem fazê-los frutificar,
ou fazendo-os frutificar somente para ele próprio.
Poderia aplicar-se aqui a reflexão de Diderot, escrita por ele, já no fim da sua vida,
na margem dum capítulo de Seneca sobre o número dos anos perdidos: “Nunca li este
capítulo sem corar; é nele que está a minha história”.
O inútil é aquele que recebeu inteligência e que a não cultiva, ou cultiva-a somente
para si próprio, para seu prazer e satisfação. Poderia falar, escrever, fazer obras úteis,
prestar serviços, combater o erro, o mal, esclarecer os espíritos, propagar a fé nas almas,
mas não o faz!
O inútil é aquele que possui fortuna e a emprega somente em satisfação dos seus
prazeres. Poderá fazer algumas esmolas, e, às vezes, importantes, para dar na vista, ou
para acalmar a consciência; mas nunca dará o que poderia e deveria dar. Poderia fazer
muito bem, sustentar famílias inteiras, auxiliar ou criar obras meritórias, empregar, enfim,
a sua fortuna magnificamente. Mas nunca tem bastante para os seus cavalos, os seus
cachorros, as suas caçadas, as suas viagens, os seus prazeres, as suas reuniões, o seu modo
de viver, as toiletes de sua mulher... - ia a empregar o plural, mas já não seria a vida inútil,
para ser a vida culpada.
O inútil é aquele que desperdiça a sua fortuna, em vez de empregá-la em
conformidade com os sentimentos cristãos e com os desejos de Deus.
O inútil é aquele que tem tempo e não o emprega senão em prazeres. Sempre
muito ocupado! No inverno: no clube, bailes e espetáculos; no verão: nas águas, nas
viagens; no outono, na caça.
O inútil é aquele que profana a coisa sagrada, que se chama o tempo na ociosidade
e no prazer.
O inútil é aquele que tem influência ou que poderia tê-la, sobre os seus
semelhantes, na família, sobre sua mulher, seus filhos, seus criados, ao redor de si, sobre
seus amigos, parentes, no seu distrito, sua aldeia, seu cantão, seu departamento, seu país,
e que não a tem porque se não quer incomodar. Prefere despeitar-se com o seu tempo e
século - é mais cômodo -; queixar-se de que tudo vai mal, e esperar um salvador que caia
do céu, a quem pediria com mais empenho, se tal acontecesse, o aumento do aluguel dos
seus prédios ou terras, do que a restauração ou engrandecimento do país.
O inútil é aquele que se podia casar e não quer, para viver mais sossegado; que
poderia ter filhos, e não os tem, porque não quer; ou só tem um, porque não quer ter o
cuidado de muitos.
É aquele que não se interessa pela educação de seus filhos, e não lhes pede senão
que o deixem sossegado. É aquele que não procura ao pé de sua mulher, senão satisfações
e prazeres; que não lhe pede senão que seja a alegria e o encanto de sua vida, sem ocupar-
se de desenvolver, o espírito, a vontade, o coração, a alma de sua esposa, de educá-la, de
instigá-la à pratica do bem, à santificação, às boas obras, e que é capaz de impedir, até, o
bem que ela deseje fazer, porque isso mesmo incomodá-lo-ia.
O inútil, em sentido ainda mais elevado[2] é aquele que trabalha, cuja vida está
preenchida, mas que só visa a um fim: ter mais comodidades, ter mais êxito.
É aquele que pratica boas obras, mas somente por filantropia, ou por necessidade
de atividade ou de soberana.
É aquele que deseja alcançar uma situação elevada, mas para seu próprio interesse,
e não para servir o país.
É aquele que, inutilizado pela idade, ou pelo sofrimento, se revolta e murmura,
em vez de submeter-se à vontade de Deus, e transformar em apostolado a sua inação
forçada e as suas provas.
Todas estas vidas ocupadas, completas pelo sofrimento, trabalho, afazeres, que
poderiam ser muito úteis, se fossem dirigidas para Deus, tornam-se inúteis perante Deus,
porque lhes falta à intenção sobrenatural, e só é útil, no sentido cristão, o que se faz em
honra de Deus.
Como vedes, há graus e categorias na inutilidade da vida. Pode-se ser um pouco
inútil, muito, ou completamente inútil; duma ou doutra maneira; nisto ou naquilo...
Que cada um de vós, meus senhores, se examine, e medite para ver sobre o que
há de recair a condenação que vamos pronunciar.
Se a vossa vida é totalmente inútil, empenhai-vos em transformá-la.
Se houver lacunas, preenchei-as. Se a intenção for má, corrigi-a.
Se a vossa vida for boa e útil, firmai-vos no bem: compreendei melhor as razões
de nela permanecerdes; e lembrai-vos desta instrução para a repetirdes a outros, que não
estão aqui, e que teriam grande necessidade de ouvi-la.
Assim, para um de vós, meus senhores, a palavra de Deus não ecoará no deserto;
mas frutificará em vossas almas.

[1] Salmo, XXXVI, 27. “Evita o mal, e faze o bem.”


[2] São Mateus, VI, 22.

O Apóstolo I - Parte 2
Padre Emmanuel de Gibergues

A vida inútil é condenada por Deus.


Sempre o foi, desde a origem, pela lei do trabalho, imposta ao homem, mesmo
antes do pecado. Deus, diz a Escritura Sagrada, havia colocado o nosso primeiro pai no
Paraíso terrestre “para trabalhar, ut operaretur”[1].
A lei do trabalho foi renovada ainda mais formalmente, depois do pecado. Já
obrigatório, mas alegremente aceito, como desabrochamento necessário da atividade
livre, o trabalho tomou, desde então, um caráter novo de expiação, de castigo e
reparação: In sudore vultus tui, vesceris pane[2].
Nenhuma exceção, aliás, foi feita, nem por direito de nascimento, nem por direito
de fortuna, nem por direito de superioridade alguma, intelectual ou moral. Os príncipes
como os vassalos, os reis corno os povos, os senhores como os servos, os ricos como os
pobres, os que possuem o necessário ou o supérfluo como os que nada têm, a todos toca
a lei, pois a lei foi feita pelo Criador do universo e Senhor do mundo.
Os escritores sagrados não cessaram de lembrá-la à humanidade decaída “O
homem, dizem eles, é feito para trabalhar, como o pássaro para voar”[3]. “Aquele que
não trabalha não é digno de comer”[4].
Levantam-se indignados contra a preguiça, e forçam o inútil a corar, indicando-
lhe a formiga como exemplo do trabalho, e com quem póde aprender. Vade ad formicum,
opiger[5].
Não se trata, todavia, só do trabalho material, do trabalho do corpo. O trabalho do
espírito está compreendido na lei, e não é menos doloroso: o Padre Lacordaire dizia, com
razão, que se “crucificava à sua pena”. Trata-se de todo o trabalho útil, de todo o emprego
do corpo ou da alma, para o bem e a felicidade dos outros. É a lei de Deus; condena o
inútil.
O inútil é condenado pelo Evangelho. São os exemplos e as palavras de Jesus
Cristo que o condenam. Jesus Cristo sujeitou-Se a trabalhar numa humilde oficina durante
trinta anos, para honrar o trabalho, para nos mostrar evidentemente a necessidade de
trabalhar, para ter o direito de dizer-nos, como o fez no fim de Sua vida: dei-vos o
exemplo: exemplum dedi vobis[6].
Jesus Cristo, nos Seus ensinamentos, levantou-Se, com toda a Sua força, contra
os inúteis.
Que imagem maravilhosa dá-nos do inútil, a árvore que, embora plantada em
terreno fértil e, não obstante ter sido objeto de todos os cuidados, não produz fruto, no
primeiro, no segundo, nem no terceiro ano.
Ut quid terram occupat?[7] que faz ela sobre a terra? Porque toma o lugar que poderia
ser tão utilmente ocupado por outras? Para que, esses bens de que goza e gasta em seu
próprio beneficio, sem dar nada nem produzir nada para os outros? Mas cautela, que a
cólera do Salvador póde explodir!
Primeiro que tudo, é uma ameaça: excidetur, et ignem mittetur[8] será cortada e
lançada ao fogo. Mas não, isto não basta! Para que esperar mais? A paciência divina está
cansada: succidite[9] cortai-a imediatamente!
Que retrato mais frisante pode haver do inútil, do que o desse servo que recebe do
seu senhor certo talento, e, em vez de fazê-lo prosperar, o esconde, o enterra? Recebeu de
Deus muitos dons: dons da situação e da fortuna, dons da inteligência e do coração, dons
da natureza e dons da graça. Esteriliza tudo; sepulta tudo, no seu egoísmo e na sua inação.
Que fará o seu Senhor, que fará Jesus Cristo? Indignar-Se-á contra ele; dar-lhe-á
justas repreensões; tirar-lhe-á o que lhe deu; repudiá-lo-á; amaldiçoá-lo-
á; Servum inutilem ejicite in tenebras exteriores[10], repudiai este servo inútil!
E Jesus Cristo acrescenta: que pedirá mais aquele que tiver recebido mais: cui plus
datum est, plus datum est, plus quaeretur ab eo[11]... Oh, vós a quem Deus encheu de
favores, compreendei a grandeza de vossas obrigações!
A medida de vossa responsabilidade é a medida dos benefícios que tiverdes
recebido; e se fordes infiéis, o castigo será proporcional às graças que houverdes
desprezado: potenter potenier tormenta sustinebunt[12].

[1] Genesis, II, 15.


[2] Genesis, III, 19. “Comerás o pó com o suor de teu rosto.”
[3] Jó, V, 7.
[4] São Lucas, X, 7, 1ª epístola aos Coríntios, III, 8.
[5] Provérbios, VI, 6.
[6] São João, XIII, 15.
[7] São Lucas, XIII, 7.
[8] São Mateus, VII, 19.
[9] São Lucas, XIII, 7.
[10] São Matheus, XXV, 18.
[11] São Lucas, XII, 48.
[12] Sabedoria, VI, 7. “Os pecadores serão poderosamente torturados”.
O Apóstolo I - Parte 3
Padre Emmanuel de Gibergues

A vida inútil é condenada pela razão.


A razão diz-nos que uma vida tal faz injúria a Deus, lesando todos os Seus direitos.
Deus é criador, e, por conseguinte, soberano Senhor do homem e de sua vida. Será
necessário prová-lo?
Qual é para o homem, a operação análoga à ação criadora? É o trabalho.
E que lhe confere o trabalho? O direito de propriedade. O que o homem fez com as suas
mãos, com a sua indústria, com o seu gênio, pertence-lhe, e pertence-lhe em absoluto.
Pode dar o produto do seu trabalho, vendê-lo, destruí-lo, que não tem que dar contas a
ninguém. Ainda com mais razão, Deus tem os mesmos direitos sobre a Sua criatura;
porque o homem não deu senão a forma aos objetos saídos de suas mãos; não criou a sua
matéria primordial; operou somente uma transformação; mas Deus tirou-nos do nada.
Nada havia; só Deus é que existia.
Sem obrigação alguma, sem interesse, sem nenhuma necessidade, tendo, em Si
mesmo, tudo, Deus criou-nos por um ato soberanamente livre e gratuito de Sua vontade.
Somos inteira e totalmente de Deus, portanto; somos inteira e totalmente para Deus;
somos o Seu bem, a Sua propriedade, a Sua obra, a Sua obra prima. Deus, por direito de
criação, é soberano Senhor do homem.
Ainda mais: a obra saída de nossas mãos subsiste por si mesmo, pelo menos por
um tempo mais ou menos longo, segundo a sua natureza.
Os que construíram as nossas belas catedrais da Idade-Média morreram há muito
tempo, e esses monumentos, obra deles, subsistem ainda... Nós não podemos subsistir um
instante sem Deus, nem mesmo agir sem Ele. Criador do nosso ser, é o seu conservador
necessário, e como uma pedra não pode equilibrar-se no espaço, sem que a nossa mão a
sustente, nós não podemos subsistir no ser, senão mantidos por Deus; diz São Paulo, nós
somos n’Ele. Não podemos agir e viver senão com o Seu auxílio, in ipso vivimus e
movemur.[1]
Como o ar, que respiramos, nos envolve, nos penetra, regenera o nosso sangue,
renova e entretém a nossa vida, o poder de Deus envolve-nos, sustenta-nos, dá-nos o ser,
o movimento e a vida. O direito de Deus conservador do nosso ser, não é menos absoluto
do que o direito de Deus criador.
Somos, a todo o instante da duração, por Deus; portanto, somos, a todo o instante,
de Deus.
Ainda não é tudo. A vida sobrenatural da graça, que nos foi dada no batismo, essa
vida maravilhosa, que é a própria vida de Deus em nós, divinae consortes naturae[2], é,
em realidade, uma segunda criação, bem mais admirável do que a primeira, e que confere
a Deus, sobre nós, novos direitos, que excedem aos primeiros como o infinito excede ao
finito. Sobrenaturalmente, bem mais ainda do que naturalmente, somos de Deus, e por
Deus; portanto, para Deus. Os direitos de Deus, o Seu domínio soberano sobre o cristão,
aumentam na proporção de toda a extensão do dom que ele recebeu o dom da vida divina.
Neste novo dom, que liberalidade!
Tinhamo-los perdido pelo pecado; Deus no-lo deu de novo. Tornou a dá-lo à
humanidade pela Redenção: dá-o de novo a cada um de nós, pelo Batismo e pela
Providência. Torna a dá-lo, até aos pagãos, se seguem a luz natural da sua consciência,
pelo desejo do batismo.
Como torna Ele a dá-lo? Superabundavit[3], com superabundância. E à custa do
que? Será sem esforço, sem sofrimento da Sua parte? Podia fazê-lo: um só ato da
humanidade do Verbo teria sido suficiente para resgatar milhares de mundos...
Não o quis. Para fazer-nos apreciar mais a Sua grandeza, e para tocar mais o nosso
coração endurecido, foi por Sua pobreza, por Sua humildade, pelo Seu trabalho, pela Sua
obediência, pelos Seus sofrimentos, pela Sua morte, pelo Seu sangue e pela Sua vida, que
no-lo deu novamente, que nos resgatou: pretioso sanguine redemisti[4].
Se a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido, o que devemos a Deus,
sendo infinito, pois que o valor é infinito, e o preço pelo qual o recuperamos infinito
também, a justiça confere a Deus, sobre nós, direitos infinitos, direitos absolutos.
Eis o que nos diz a razão.
E que o homem não nos venha dizer: Não pedi para nascer, tivessem-me deixado
no nada... Objeção insensata, que limita o supremo poder de Deus, tirando-Lhe o direito
de criar; objeção que dá direitos ao nada, o direito de recusar-se ao ser, objeção que põe
em paralelo o nada com Deus! – O que? Deus não teria o direito de dar, o direito de ser
bom, o direito que vós tendes, sim, vós, o direito de serdes pai? Deus não teria o direito
de criar? Deus deveria pedir licença ao nada, antes de produzir o ser? Não, mil vezes não!
Pelo Seu amor e a Sua onipotência, Deus cria o homem, eleva-o ao estado
sobrenatural, resgata-o e salva-o. Estes atos de Deus constituem o homem na dependência
e no dever, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, os direitos necessários para cumprir o seu
dever e alcançar o seu duplo fim: a glória de Deus e a sua própria felicidade.
“O homem foi criado para Deus”, diz santo Inácio, resumindo tudo nestas três
palavras. Para Deus, isto é, para reconhecer os Seus direitos, para submeter-se a Ele, para
glorificá-lO.

[1] Atos dos Apóstolos, XVII, 28.


[2] Segunda Epístola de São Pedro I, 4. “Participantes da natureza divina”.
[3] Epístola aos Romanos V, 20.
[4] Te-Deum.

O Apóstolo I - parte 4
Padre Emmanuel de Gibergues

Deus é o nosso soberano Senhor: o Senhor da nossa inteligência, do nosso


coração, da nossa vontade, da nossa atividade, do nosso corpo e da nossa alma.
A nossa vida não nos pertence, é d'Ele, e devemos dedicar-lh'a.
A vida sem utilidade é a maior das injustiças para com Deus, lesa todos os Seus
direitos. Eis o que nos diz a razão, condenando a vida improdutiva, inútil.
A vida que não traz utilidade é condenada pela natureza. Desde a raiz duma
herbácea, que absorve os sucos da terra para alimentar-se, até aos astros que giram por
cima de nossas cabeças, em obediência a leis necessárias, e numa admirável e perpétua
harmonia, tudo trabalha na natureza; tudo grita ao inútil: trabalha também por tua vez!
Mas ainda temos considerações mais atuais e evidentes.
A vida inútil é condenada pela sociedade, porque a prejudica e ofende, privando-
a do que lhe é devido. Meus senhores, tendes recebido muito da sociedade, e é nessa
proporção que lhe deveis pagar. Porque fostes pagos antecipadamente, não é razão para
não merecerdes o vosso salário. O que serieis vós, e o que teríeis sido, sem a sociedade?
As casas que vos abrigam, o vestuário que trazeis, o pão que comeis, os prazeres da arte,
da ciência, da literatura, todas as comodidades da civilização que gozais, tudo isto, é à
sociedade que o deveis. Não seria a mais iníqua de todas as injustiças, se os beneficiados
com tantas vantagens não contribuíssem com as suas habilitações pessoais e trabalho,
para o bem geral e para a riqueza comum?

Seria mais do que uma injustiça: seria um escândalo. O rico inútil torna-se egoísta,
orgulhoso, insolente. Chega a persuadir-se que há duas raças na humanidade:
Uma, feita para servir, para trabalhar, para padecer, para se gastar ao serviço da
outra; outra feita para gozar, para ser servida.
Uma, cuja mão é fina e branca, coberta de pedras preciosas, ou elegantemente
enluvada; cujo corpo é delicado, e lhe repugna sofrer; cuja vida é feita de perfumes, de
flores e prazeres; outra, cuja mão é rude e calosa, o corpo endurecido pela dor, a vida
devotada, ao trabalho e ao sofrimento.
Oh! não, não, rico inútil e cego, não há duas raças na humanidade; há só uma.
Todos os homens são irmãos e devem auxiliar-se mutuamente.
Ou antes, se houvesse uma preferência no coração de Deus, no coração d'Aquele
que nos há de julgar a todos, seria pelos pobres e trabalhadores.
A vida d'Aquele que deve servir de modelo a todos nós, d'Aquele que nos,
resgatou, salvou, foi uma vida de trabalho, de pobreza, de sofrimento.
A mão d'Aquele que foi pregado na Cruz, para nos livrar do pecado e da morte
eterna, é a mão de um trabalhador!
O inútil constitui um escândalo para a sociedade, e, por isso mesmo, uma ameaça
para a sua existência, um fermento perpétuo de revolução, um perigo de morte.
Um dia, atravessando um dos nossos boulevards, tive a empolgante demonstração
de tudo isto. A alguns passos do lugar em que eu me encontrava e adiante de mim, pára
uma soberba carruagem à porta dum hotel: uma senhora, maravilhosamente vestida,
apeia-se com sua filha. Nesta ocasião, do lado oposto ao da carruagem e perto de mim,
passava, afadigadamente, uma jovem operária, que levava um embrulho debaixo do
braço. A pobre mocinha ia, penso eu, levar obra feita a alguma freguesa, e receber
algumas moedas, para o seu sustento e, talvez, o de sua família.
Vendo a senhora e sua filha descerem do carro, parou repentinamente, e o seu olhar,
tornando-se bruscamente refulgente, tomou uma expressão profunda e singular de dor e
de inveja. Olhava para aquele soberbo vestuário, para aqueles cavalos de preço, e, sem
dúvida, dizia consigo mesmo: “Com tudo isto, teria eu o bastante para alimentar minha
família, durante muitas semanas!...”
É a inveja que se apodera do coração do pobre, quando o fausto dos ricos o
deslumbra e lhe aparece como um escárnio. E, se a riqueza não se faz desculpar, perdoar,
pelos serviços prestados, pelo emprego útil da vida, pela dedicação; se, pelo contrário,
ostenta a sua inutilidade como um escândalo e uma provocação, então nasce no coração
dos que sofrem, e a quem tudo falta, uma inveja desmedida, um ciúme feroz, e que se
pode converter em ameaças.
No lugar dessa costureira, colocai um trabalhador de braços vigorosos; colocai
cem, mil, dez mil; suponde-os sem religião, sem esperanças eternas, sem o temor de Deus;
suponde que tenham a compreensão e o orgulho da sua força, do seu poder; colocai diante
deles ricos orgulhosos, egoístas, ociosos, pensando só no gozo da vida e no acumular dos
seus haveres; em uma palavra, homens inúteis: o primeiro grito de ódio e vingança que
se erguer do seio dessas multidões trabalhadoras, arrebatá-las-á todas ao assalto da
riqueza e do capital, e a sociedade afogar-se-á em sangue!
Relede a vossa história. Houve um século em que as classes elevadas haviam
abandonado as funções úteis, e desertado dos cargos sociais, para irem divertir-se e dançar
na Corte. A inutilidade tinha os seus grandes dias, e o escândalo ostentava-se mesmo no
trono. Foi o sinal! E como a religião havia sido desprezada, rebaixada, destruída por
aqueles mesmos que a deviam ter sustentado e defendido, e, não havendo já freio para as
paixões populares, deu-se uma das crises mais medonhas como a história nunca tinha
registrado.
A vida inútil é o fermento das mais violentas revoluções; a sociedade condena-a
por ser o escândalo, a desonra e a ruína da própria sociedade.

O Apóstolo I - Final
Padre Emmanuel de Gibergues
A vida inútil, meus senhores, é condenada pelos vossos próprios interesses, e,
primeiramente, pelos vossos interesses naturais.
O momento aproxima-se, em que todo mundo será obrigado a trabalhar para viver.
Os rendimentos estão diminuindo. Outrora os 5% não eram raros; agora, são uma
exceção.
As fortunas dividem-se, necessariamente, a cada transmissão. Se há mais do que
dois filhos, e, se não se encontra no matrimônio mais do que o que se traz, a situação é
precária: fica-se abaixo dos pais. Em algumas gerações, as mais belas fortunas
transformam-se em modesta abastança.
Poderá chegar um dia em que os homens tenham de aceitar moças sem dote, para
constituírem família, contando só com o produto do seu trabalho para proverem a todos
os encargos do seu estado. Neste caso, só os úteis, os trabalhadores é que poderão
experimentar o gozo da família, os encantos do lar doméstico.
Os inúteis, os ociosos ficarão de mãos gastas e de cara torta, abandonados ao seu
celibato de incorrigíveis mandriões.
A vida inútil avilta a inteligência. O espírito enferruja-se e enerva-se na inação: o
preguiçoso está sempre na indigência, diz a Escritura Sagrada: “piger semper est in
egestate”[1].
A vida inútil avilta o caráter. O hábito de não fazer nada abate a energia da vontade
e afrouxa todas as molas da alma, tornando o homem incapaz de qualquer sacrifício e de
qualquer esforço.
A vida inútil avilta o coração. A força de não pensar senão em si, torna-se
indiferente a tudo, exceto à satisfação das suas paixões. A mínima inquietação, um sono
agitado, uma digestão mal feita, um divertimento gorado, um cão ferido, um cavalo que
sofre de uma pata, a mínima contrariedade pessoal, eis as inquietações do inútil! Que lhe
importam os pobres que não têm pão, os desgraçados que sofrem fome ou frio, a pátria
humilhada, a sociedade em perigo e a Igreja perseguida? Contanto que ele se sinta bem,
que os seus negócios corram como deseja; que os prazeres abundem, e que não diminuam
os seus rendimentos, o resto pouco importa! O seu coração está fechado, endurecido,
destruído!
A vida inútil avilta o homem; tira-lhe valor, degrada-o e desonra-o. Não é mais a
vida nobre da inteligência e do coração, do espírito e da alma; é a vida do animal.
A vida inútil é uma vida fastidiosa. A felicidade que o inútil procura, foge dele
como a sua sombra; nunca consegue alcançá-la. E, tarde ou cedo, um vácuo horrível se
formará em torno dele. Nem para si mesmo, nem para os outros terá prestígio; e, não
sabendo ao que há de ater-se, passa a vida a matar o tempo e a consumir-se em inúteis
remorsos. Numa certa idade, por demasiadamente tarde, é impossível refazer a vida. É
uma vida desfeita em que se morre de aborrecimento.
A vida inútil, enfim, meus senhores, é, sobretudo, condenada pelos vossos
interesses sobrenaturais, isto é, pelos vossos melhores e mais duráveis interesses.
É uma vida sem merecimentos, sem valor aos olhos de Deus, e perdida para o céu.
O inútil poderá ter tido as mãos cheias de dinheiro, cheias de grandes acontecimentos,
repletas de prazeres; porém morrerá sem levar nada consigo; morrerá de mãos vazias.
É uma vida culpável por todos os erros que ela traz consigo, necessariamente,
como consequência inevitável da inação: “os maus desejos matam o preguiçoso”, diz a
Escritura Sagrada: desideria occidunt pigrum[2].
O inútil não é inativo senão para o bem; mas para brotarem e medrarem os maus
germens, é um terreno fertilíssimo, onde o mal rapidamente se desenvolve.
Nele, é tão fácil e pronto o desenvolvimento do pecado, quanto moroso e lento, o
da virtude: é presa fácil de todas as paixões, de todas as desordens e de todos os vícios.
É uma vida culpada em si mesmo, dissemo-lo, porque foi condenada por Deus e
Jesus Cristo, e porque a inação, a ociosidade, a inutilidade são um verdadeiro pecado.
Não fazer o bem, basta para desagradar a Deus, para carregar-se das mais graves
responsabilidades, e incorrer nos mais horríveis castigos.
Conheceis a parábola do Evangelho:
“Um homem rico, vestido de púrpura e linho, fazia todos os dias festins
esplêndidos. Havia à sua porta, estendido por terra, um mendigo, chamado Lázaro todo
coberto de úlceras que desejaria alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico;
mas ninguém lh'as dava. Os cães vinham lamber as suas úlceras.
“Aconteceu morrer o mendigo levado pelos anjos ao seio de Abraão. O rico
também morreu, e foi sepultado no inferno.
“Então, do meio de seus tormentos, erguendo os olhos, viu Abraão ao longe e
Lázaro em seu seio, e pôs-se a gritar: Abraão, meu pai, tem piedade de mim, e manda-me
Lázaro; que molhe o dedo n'agua, para refrigerar-me a língua, pois estou mortificado
nesta chama.
“Abraão respondeu-lhe: Meu filho, lembra-te que, durante a tua vida, não
recebeste senão bens, e que Lázaro não recebeu senão males. Agora, está consolado e tu
estás mortificado. Em todas as coisas, entre nós e vós, há um imenso e eterno abismo, que
é impossível transpôr a uns e a outros”[3].
Pensastes, sem dúvida, meus senhores, que se tratava daquele que foi rico em bens
deste mundo, e fez deles mau uso, guardando-os para si, sem dividi-los com os pobres; e
não vos enganastes.
Mas há outra riqueza maior do que a dos bens perecíveis deste mundo, e que não
é menos apontada pela parábola do Evangelho: é a riqueza da inteligência, do coração, da
vontade; são todos os tesouros de uma natureza bem dotada, capaz de compreender, de
amar, de dedicar-se, de fazer conhecer a verdade e amar o bem.
Há uma riqueza ainda mais nobre: é a dos bens sobrenaturais da graca e os méritos
de Jesus Cristo; é a riqueza de uma alma que vive da fé, da esperança e da caridade; que
vive da própria vida de Deus. O rico que faz festins esplendidos, é o cristão que se ajoelha
à mesa sagrada, para alimentar-se da Carne e do Sangue de seu Deus.
Quanto maior é a riqueza, a muito mais obriga; quanto mais tendes, tanto mais
deveis dar aos pobres, aos desgraçados, aos famintos, aos incrédulos, aos pecadores e a
Deus.
Se não dais nada, se guardais tudo para vós, se sois o inútil, sois o mau
rico. sepultus est in inferno[4]
E para ficardes mais bem avisados, meus senhores; para não poderdes pretextar
nem ignorância, nem boa fé, Jesus Cristo, no Santo Evangelho, quis dar-vos
antecipadamente a própria sentença e a causa formal da condenação dos réprobos, nas
palavras que eles ouvirão no juízo final.
Voltando-se para eles, o Soberano Juiz dir-lhes-á: “Retirai-vos de mim, malditos;
ide para o fogo eterno, porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me
destes de beber...” E, como os réprobos se admirarão, Jesus Cristo continuará: “Em
verdade vô-lo digo, o que não fizestes por um dos mais pequenos, foi por mim que o não
fizestes”.
A única causa que Jesus Cristo põe em evidência, o único motivo que alega para
a condenação dos réprobos, é que não praticaram o bem, a caridade; a caridade material,
sem dúvida, mas também a caridade espiritual, que sobrepuja à primeira, tanto quanto a
alma sobrepuja ao corpo, e a eternidade ao tempo.
É só o inútil que é apontado no primeiro artigo; só ele é que é apontado. Parece
haver perdão para todos, menos para ele; parece que Jesus Cristo no dia do juízo,
esquecerá todos os pecados, para se não lembrar senão daquele.
A quem tiver exercido a caridade material e moral, por dedicação ao próximo, a
misericórdia parece dever ser imensa, e tudo dever ser perdoado: caritas operit
multitudinem peccatorum[5].
Mas para o egoísta e o inútil, para aquele que só tiver vivido para si mesmo, não
haverá senão castigos e maldições.
Entre ele e o Deus de amor e de caridade, o Cristo que se imolou para a salvação
de Seus irmãos, não poderia haver nada de comum; é irrevogável e para sempre: Discedit
a me maledicti in ignem aeternum[6].
Ó inútil, eis o teu processo! Eis-te condenado pelo céu e pela terra; pelos homens
e por Deus. Que vais fazer? Aonde te vais refugiar contra a cólera celeste: Quo a facie
tua fugiam?[7]
Nada mais tens que fazer do que condenar-te a ti mesmo, condenar a tua vida,
mudá-la, torná-la tão nobre, útil, caritativa e dedicada, quanto tiver sido baixa, egoísta e
estéril, para que possas merecer ouvir no último dia a sentença da eterna felicidade:
“Vinde, benditos de meu Pai, tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de
beber... possui o reino que vos foi preparado, desde a origem do mundo!”[8]

[1] Provérbios, XXXI,5.


[2] Provérbios XXI, 25.
[3] São Lucas, XVI, 20 a 26.
[4] São Lucas, XVI, 22. “Ele foi sepultado no inferno”.
[5] Primeira epístola de São Pedro IV, . “A caridade cobre a multidão dos pecados”.
[6] São Mateus, XXV, 41. “Retirai-vos de mim, malditos, ide para o fogo eterno”.
[7] Salmo, CXXXVIII, 7.
[8] São Mateus, XXV, 34 a 35.
O Apóstolo II - Os seus deveres na sociedade moderna -
Parte 1
Padre Emmanuel de Gibergues

Hoc est proeceptum, meum ut diligates invicem,


sicut dilexi vos.
É meu preceito que vos ameis uns aos outros,
como vos amei eu mesmo.
S. João XV, 12.

Meus senhores,
Que um católico tenha deveres fora da família; deveres para com a sociedade, a
Igreja e a pátria; que tenha para ele, ao lado do dever do marido e do pai, o dever do
cidadão, do cristão, do homem para com os seus semelhantes; ao lado do dever familiar,
o dever apostólico e social, é a própria evidência.
O católico não é, segundo um velho prejuízo, restabelecido por Bacon, um
“emigrado para o seu íntimo”, cuidando somente da sua salvação e dos seus interesses
espirituais. Tem encargos de corpo e alma para com os seus semelhantes, e,
especialmente, para com os que fazem parte da mesma cidade, da mesma pátria; nada do
que lhes diz respeito e interessa lhe deve ser estranho; os deveres apostólicos e sociais
obrigam-no em consciência; temo-lo demonstrado.
São os grandes deveres da hora atual. Sobre os destroços da sociedade antiga,
forma-se, organiza-se uma sociedade nova.
Todos os espíritos estão alarmados, levantam-se todas as cobiças. De todos os
lados surge uma luta aberta; todos querem apoderar-se da sociedade, para tomarem a sua
direção e governo. Os maus encarniçam-se, têm a dianteira. Os bons ficarão na
retaguarda, de braços cruzados? Não! Os bons nunca cessaram de agir; os seus esforços
multiplicam-se todos os anos; vê-se chegar o momento, onde, sob a pressão dos
acontecimentos, eles avançarão todos. Há alguns anos, que era preciso convencê-los da
necessidade de agirem, abalá-los, empurrá-los; agora, está dada a impulsão; começou o
movimento, não parará. Os inúteis, os egoístas, tornar-se-ão cada vez mais raros; a
vergonha, o medo, o despertar também, esperemo-lo, dos sentimentos nobres forçá-los-
ão à ação, por sua vez.
Pregar o apostolado será sempre necessário, para despertar os adormecidos, e
estimular os bons; mas o mais urgente, neste momento, é determinar as suas condições,
regular a sua marcha e marcar o papel que os homens têm a desempenhar, será todo o fim
desta construção.
Há, meus senhores, para o dever social e o apostolado dos católicos, condições
gerais e permanentes, condições especiais e transitórias. As primeiras são os mesmos
princípios do apostolado, que não podem variar, que se encontram em todos os séculos.
Os segundos são as formas que devem tomar esses princípios, para se adaptarem às
sociedades modernas e às necessidades da hora presente.
É ao apóstolo por excelência, ao modelo perfeito de todo o dever social e
apostólico, a Jesus Cristo, que pediremos os princípios do apostolado. Hoc est
praeceptum meum ut diligatis invicem, sicut dilexi vos. É a nós que compete precisar as
aplicações modernas deste preceito.
Ora, Jesus Cristo entregou-Se inteiramente ao dever do apostolado. Com a Sua
inteligência, a Sua vontade e atividade, o Seu coração, o Seu ser e a Sua vida dedicou-Se-
lhe por completo. Também nós devemos entregar-nos inteiramente a ele; é a Sua ordem
“sicut dilexi vos”. Devemos amar e consumi-los tanto como Ele, mas devemos fazê-lo,
segundo as leis da sociedade moderna, e como convém à nossa época: é o que vamos ver.

Jesus Cristo, antes de tudo, fez obra de inteligência e de ensinamento. É o primeiro


caráter do Seu apostolado. Apresenta-se como a luz do mundo, lux mundi,[1] e para dar
testemunho à verdade, ut testimonium perhibeam veritati[2].
É Senhor na acepção mais lata do termo, conforme Ele mesmo o diz: Magister
vester unus est, Christus[3].
Os apóstolos tomaram a feição e o caráter do seu Mestre. Ele lhes havia dito:
“Ensinai”; e eles ensinaram. Ele lhes havia dito: “Vós sereis as minhas testemunhas”, e
eles foram as Suas testemunhas, as testemunhas da verdade. “Nós vimos, diziam eles, as
nossas mãos tocarem o Verbo vivo, e não podemos falar”. É como testemunhas da
verdade, e em particular do grande feito da ressurreição, prova soberana da divindade do
seu Mestre, que se espalharam pelo mundo, e que o ganharam com luz, com fé e com a
crença em Jesus Cristo.
Como os seus predecessores, como o seu Senhor, os apóstolos modernos, meus
senhores, devem fazer obra de inteligência. Devem revestir este primeiro caráter de serem
testemunhas da verdade, homens de luz, de saber, de convicção. É a primeira e
indispensável condição do apostolado moderno.
Primeiro, é preciso ter luzes, idéias. Sem idéias, nem desejo, nem impulso, nem
poder, é a morte. E a primeira de todas as idéias, é a de crer na utilidade do apostolado e
do dever social; é crer que “Deus fez as nações sanáveis”[4], que se pode fazer bem,
substituir a vida e a saúde pelas teorias insalubres e mortíferas, e que, em vez de se
restringir a gemer, a lamentar-se, a erguer os braços para o céu, o que é certamente mais
cômodo, mas o que é a negação do dever, e a deserção do posto de combate.
Depois, é preciso fazer idéias justas: não ter um catolicismo seu, mas o catolicismo
da Igreja, um catolicismo preciso e completo, o único capaz de renovar a sociedade.
Atualmente, duas tendências nos dividem: uns só esperam na liberdade, pelo horror do
despotismo doutrora; outros só esperam na autoridade, com medo da anarquia, ou por
cansaço das agitações estéreis.
O problema vital das nossas sociedades modernas é encontrar a concordância
entre liberdades, tornadas necessárias, e a disciplina, tornada indispensável. Ora, a
solução está precisamente no catolicismo, porque o sentido desta harmonia, entre a
liberdade e a autoridade, é o próprio sentido católico.
É um erro, com efeito, dos espíritos superficiais não verem, no catolicismo, senão
o princípio de autoridade e de governo; deixa a cada um uma liberdade, uma vida própria,
uma iniciativa prodigiosa.
É muito diverso um Luiz XIV, fazendo um decreto, dum Papa promulgando um
dogma. Um cria por autoridade; o outro nada mais faz do que atestar.
Qual é o dogma que, antes de ser definido pela autoridade, não foi crido pelo
conjunto dos fiéis? de sorte que, aqui, é primeiro a autoridade a seguir a multidão, do que
a multidão a ser levada pela autoridade. A autoridade não fez a consciência católica,
discriminou-a, atestou-a.
Está longe ainda um Soberano mobilizando um exército, dum Papa que institui
uma dessas grandes Ordens religiosas, que são como que o exército da Igreja. Qual é
dessas Ordens religiosas, cuja eflorescência, há dezoito séculos, tem sido tão maravilhosa,
a que foi fundada pela autoridade? Não há uma só, que não deva a sua origem à iniciativa
privada dum São Bento, dum São Bruno, dum São Domingos, dum São Francisco de
Assis, dum Santo Inácio, duma Santa Tereza, dum São Francisco de Salles, dum São
Vicente de Paula, e de cem outros. A autoridade tem-se limitado a consagrar, a ratificar.
A autoridade precisa, afirma, endireita, conduz, aprova, evita que a consciência
individual erre e prevaleça contra a consciência universal. Mas que liberdade, que
iniciativa, que fecundidade prodigiosa de vida e ação, sob a inspiração do Espírito Santo,
espalhado por todos os membros da Igreja! Não é o ideal de uma sociedade moderna?
Ora se têm exaltado os direitos do indivíduo, ora os do Estado, e não deixamos de
andar agitados entre a anarquia e o despotismo. É, pelo espírito e pelo senso católico, que
se fará a conciliação. Mas é preciso o verdadeiro senso católico: são necessárias, ao
católico, idéias justas e completas.
É preciso que tenha idéias profundamente arraigadas, convicções. Não deveis ser
partidários, meus senhores, mas deveis saber tomar o partido da verdade, da justiça, de
Deus, e traduzir as vossas convicções, mas duma maneira clara e precisa. Esta é a única
condição de persuadirdes o espírito dos outros, sobretudo o espírito do povo. Os
desprezadores, os desdenhosos, os negativos, nunca tiveram ação sobre o povo. O povo
nada compreende das recriminações estéreis; não isenta senão os que têm idéias claras,
um plano positivo e simples, aqueles que lhe mostram claramente o que devem destruir
ou edificar. As idéias que caminham, que triunfam, são as idéias nítidas, positivas e
simples.

Continuará...

[1] São João, VIII, 12.


[2] São João, XVIII, 37.
[3] São Matheus, XXIII, 10. “Não tendes senão um Senhor, Cristo”.
[4] Sabedoria, I, 14.

O Apóstolo II - Os seus deveres na sociedade moderna -


Parte 1
Padre Emmanuel de Gibergues
Hoc est proeceptum, meum ut diligates invicem,
sicut dilexi vos.
É meu preceito que vos ameis uns aos outros,
como vos amei eu mesmo.
S. João XV, 12.

Meus senhores,
Que um católico tenha deveres fora da família; deveres para com a sociedade, a
Igreja e a pátria; que tenha para ele, ao lado do dever do marido e do pai, o dever do
cidadão, do cristão, do homem para com os seus semelhantes; ao lado do dever familiar,
o dever apostólico e social, é a própria evidência.
O católico não é, segundo um velho prejuízo, restabelecido por Bacon, um
“emigrado para o seu íntimo”, cuidando somente da sua salvação e dos seus interesses
espirituais. Tem encargos de corpo e alma para com os seus semelhantes, e,
especialmente, para com os que fazem parte da mesma cidade, da mesma pátria; nada do
que lhes diz respeito e interessa lhe deve ser estranho; os deveres apostólicos e sociais
obrigam-no em consciência; temo-lo demonstrado.
São os grandes deveres da hora atual. Sobre os destroços da sociedade antiga,
forma-se, organiza-se uma sociedade nova.
Todos os espíritos estão alarmados, levantam-se todas as cobiças. De todos os
lados surge uma luta aberta; todos querem apoderar-se da sociedade, para tomarem a sua
direção e governo. Os maus encarniçam-se, têm a dianteira. Os bons ficarão na
retaguarda, de braços cruzados? Não! Os bons nunca cessaram de agir; os seus esforços
multiplicam-se todos os anos; vê-se chegar o momento, onde, sob a pressão dos
acontecimentos, eles avançarão todos. Há alguns anos, que era preciso convencê-los da
necessidade de agirem, abalá-los, empurrá-los; agora, está dada a impulsão; começou o
movimento, não parará. Os inúteis, os egoístas, tornar-se-ão cada vez mais raros; a
vergonha, o medo, o despertar também, esperemo-lo, dos sentimentos nobres forçá-los-
ão à ação, por sua vez.
Pregar o apostolado será sempre necessário, para despertar os adormecidos, e
estimular os bons; mas o mais urgente, neste momento, é determinar as suas condições,
regular a sua marcha e marcar o papel que os homens têm a desempenhar, será todo o fim
desta construção.
Há, meus senhores, para o dever social e o apostolado dos católicos, condições
gerais e permanentes, condições especiais e transitórias. As primeiras são os mesmos
princípios do apostolado, que não podem variar, que se encontram em todos os séculos.
Os segundos são as formas que devem tomar esses princípios, para se adaptarem às
sociedades modernas e às necessidades da hora presente.
É ao apóstolo por excelência, ao modelo perfeito de todo o dever social e
apostólico, a Jesus Cristo, que pediremos os princípios do apostolado. Hoc est
praeceptum meum ut diligatis invicem, sicut dilexi vos. É a nós que compete precisar as
aplicações modernas deste preceito.
Ora, Jesus Cristo entregou-Se inteiramente ao dever do apostolado. Com a Sua
inteligência, a Sua vontade e atividade, o Seu coração, o Seu ser e a Sua vida dedicou-Se-
lhe por completo. Também nós devemos entregar-nos inteiramente a ele; é a Sua ordem
“sicut dilexi vos”. Devemos amar e consumi-los tanto como Ele, mas devemos fazê-lo,
segundo as leis da sociedade moderna, e como convém à nossa época: é o que vamos ver.

Jesus Cristo, antes de tudo, fez obra de inteligência e de ensinamento. É o primeiro


caráter do Seu apostolado. Apresenta-se como a luz do mundo, lux mundi,[1] e para dar
testemunho à verdade, ut testimonium perhibeam veritati[2].
É Senhor na acepção mais lata do termo, conforme Ele mesmo o diz: Magister
vester unus est, Christus[3].
Os apóstolos tomaram a feição e o caráter do seu Mestre. Ele lhes havia dito:
“Ensinai”; e eles ensinaram. Ele lhes havia dito: “Vós sereis as minhas testemunhas”, e
eles foram as Suas testemunhas, as testemunhas da verdade. “Nós vimos, diziam eles, as
nossas mãos tocarem o Verbo vivo, e não podemos falar”. É como testemunhas da
verdade, e em particular do grande feito da ressurreição, prova soberana da divindade do
seu Mestre, que se espalharam pelo mundo, e que o ganharam com luz, com fé e com a
crença em Jesus Cristo.
Como os seus predecessores, como o seu Senhor, os apóstolos modernos, meus
senhores, devem fazer obra de inteligência. Devem revestir este primeiro caráter de serem
testemunhas da verdade, homens de luz, de saber, de convicção. É a primeira e
indispensável condição do apostolado moderno.
Primeiro, é preciso ter luzes, idéias. Sem idéias, nem desejo, nem impulso, nem
poder, é a morte. E a primeira de todas as idéias, é a de crer na utilidade do apostolado e
do dever social; é crer que “Deus fez as nações sanáveis”[4], que se pode fazer bem,
substituir a vida e a saúde pelas teorias insalubres e mortíferas, e que, em vez de se
restringir a gemer, a lamentar-se, a erguer os braços para o céu, o que é certamente mais
cômodo, mas o que é a negação do dever, e a deserção do posto de combate.
Depois, é preciso fazer idéias justas: não ter um catolicismo seu, mas o catolicismo
da Igreja, um catolicismo preciso e completo, o único capaz de renovar a sociedade.
Atualmente, duas tendências nos dividem: uns só esperam na liberdade, pelo horror do
despotismo doutrora; outros só esperam na autoridade, com medo da anarquia, ou por
cansaço das agitações estéreis.
O problema vital das nossas sociedades modernas é encontrar a concordância
entre liberdades, tornadas necessárias, e a disciplina, tornada indispensável. Ora, a
solução está precisamente no catolicismo, porque o sentido desta harmonia, entre a
liberdade e a autoridade, é o próprio sentido católico.
É um erro, com efeito, dos espíritos superficiais não verem, no catolicismo, senão
o princípio de autoridade e de governo; deixa a cada um uma liberdade, uma vida própria,
uma iniciativa prodigiosa.
É muito diverso um Luiz XIV, fazendo um decreto, dum Papa promulgando um
dogma. Um cria por autoridade; o outro nada mais faz do que atestar.
Qual é o dogma que, antes de ser definido pela autoridade, não foi crido pelo
conjunto dos fiéis? de sorte que, aqui, é primeiro a autoridade a seguir a multidão, do que
a multidão a ser levada pela autoridade. A autoridade não fez a consciência católica,
discriminou-a, atestou-a.
Está longe ainda um Soberano mobilizando um exército, dum Papa que institui
uma dessas grandes Ordens religiosas, que são como que o exército da Igreja. Qual é
dessas Ordens religiosas, cuja eflorescência, há dezoito séculos, tem sido tão maravilhosa,
a que foi fundada pela autoridade? Não há uma só, que não deva a sua origem à iniciativa
privada dum São Bento, dum São Bruno, dum São Domingos, dum São Francisco de
Assis, dum Santo Inácio, duma Santa Tereza, dum São Francisco de Salles, dum São
Vicente de Paula, e de cem outros. A autoridade tem-se limitado a consagrar, a ratificar.
A autoridade precisa, afirma, endireita, conduz, aprova, evita que a consciência
individual erre e prevaleça contra a consciência universal. Mas que liberdade, que
iniciativa, que fecundidade prodigiosa de vida e ação, sob a inspiração do Espírito Santo,
espalhado por todos os membros da Igreja! Não é o ideal de uma sociedade moderna?
Ora se têm exaltado os direitos do indivíduo, ora os do Estado, e não deixamos de
andar agitados entre a anarquia e o despotismo. É, pelo espírito e pelo senso católico, que
se fará a conciliação. Mas é preciso o verdadeiro senso católico: são necessárias, ao
católico, idéias justas e completas.
É preciso que tenha idéias profundamente arraigadas, convicções. Não deveis ser
partidários, meus senhores, mas deveis saber tomar o partido da verdade, da justiça, de
Deus, e traduzir as vossas convicções, mas duma maneira clara e precisa. Esta é a única
condição de persuadirdes o espírito dos outros, sobretudo o espírito do povo. Os
desprezadores, os desdenhosos, os negativos, nunca tiveram ação sobre o povo. O povo
nada compreende das recriminações estéreis; não isenta senão os que têm idéias claras,
um plano positivo e simples, aqueles que lhe mostram claramente o que devem destruir
ou edificar. As idéias que caminham, que triunfam, são as idéias nítidas, positivas e
simples.

Continuará...

[1] São João, VIII, 12.


[2] São João, XVIII, 37.
[3] São Matheus, XXIII, 10. “Não tendes senão um Senhor, Cristo”.
[4] Sabedoria, I, 14.

O Apóstolo II - Os seus deveres na sociedade moderna -


Parte Final
Padre Emmanuel de Gibergues
É preciso que tenha idéias profundamente arraigadas, convicções. Não deveis ser
partidários, meus senhores, mas deveis saber tomar o partido da verdade, da justiça, de
Deus, e traduzir as vossas convicções, mas duma maneira clara e precisa. Esta é a única
condição de persuadirdes o espírito dos outros, sobretudo o espírito do povo. Os
desprezadores, os desdenhosos, os negativos, nunca tiveram ação sobre o povo. O povo
nada compreende das recriminações estéreis; não isenta senão os que têm idéias claras,
um plano positivo e simples, aqueles que lhe mostram claramente o que devem destruir
ou edificar. As idéias que caminham, que triunfam, são as idéias nítidas, positivas e
simples.
Sobretudo, meus senhores, com o espírito moderno, é preciso não haver o aspecto
de querer impôr, mas sim o de propôr e persuadir. Não é pelas exterioridades nem pelo
constrangimento, que se fará a restauração das almas, a estabilidade das inteligências, e
o equilíbrio das vontades. É a consciência individual que deve ser esclarecida e renovada,
para que a consciência nacional o seja. Isso não se fará nem por leis, nem pela autoridade,
apesar de contribuírem para isso, mas pela persuasão e pelos ensinamentos, como toda a
obra de luz e de verdade. É da dignidade do homem, não ser guiado como o animal, mas
sim dirigido pelos sentimentos e pela razão. O povo também não se conduz como uma
criança, mas como um adulto. É preciso esclarecer o seu espírito, persuadi-lo, levá-lo a
compreender e a submeter-se à verdade.
Enfim, as idéias do apostolo devem ser essencialmente desinteressadas, para
prevalecerem. E Jesus Cristo foi-o no supremo grau. Tinha o direito de dizer: “Não
procuro a minha glória, mas a glória de meu Pai; a minha doutrina não é minha, é a
doutrina d' Aquele que me enviou”. Não encontrou nela interesse pessoal, vantagem
humana. Como recompensa da Sua propaganda de idéias, não recebeu senão
humilhações, sofrimentos e a morte; deveu o Seu suplício ao Seu desinteresse; mas deveu-
lhe também o triunfo das idéias que trazia ao mundo, e todos os Seus apóstolos fizeram
como Ele.
É que a verdade não é do homem; a sua força está em que vem de mais alto do
que ele; mas é preciso que se faça sentir, e o povo é muito desconfiado a este respeito.
“Que interesse tem ele em dizer isto? ou mais explicitamente, o que ganha com isto?” É
a pergunta que se faz sempre. Fazem-no-la em nossas missões do campo e subúrbios, por
ocasião de nossas visitas aos domicílios: “Quanto lhe pagam por isto?” Tomam-nos por
mercenários, assalariados. Não se quer, não se pode crer na propaganda desinteressada
das idéias.
Mas, quando se chega a crer, é um espanto, primeiramente, em seguida: uma
atração poderosa. “Estes homens não ganham nada pelo que fazem. Só trabalham pela
verdade, pela justiça e pelo bem; são homens de Deus: devemos crê-los!”
Assim raciocina o povo.
Tomai cuidado, meus senhores, que as vossas idéias não sejam maculadas pelo
interesse pessoal; que o catolicismo não seja, para vós, uma sorte de machina
governamental, instrumento político. Tomai cuidado, que, em vez de pensardes na
reforma da sociedade segundo as idéias do catolicismo, não ambicioneis sujeitar o
catolicismo à idéia que fazeis da sociedade; seria um erro e um perigo grave.
Lembrai-vos de Napoleão e Pio VII.
A religião está acima de tudo; não deve ser escravizada; afastaríeis do catolicismo
um grande número de almas generosas, que fariam, unicamente, da religião de Jesus
Cristo, a idéia duma sentinela, ocupada em velar pelos humanos, pelos tronos ou pelas
caixas-fortes, e do padre, uma espécie de soldado moral de batina, e da Igreja, um servo
de partido.
Que as vossas idéias, meus senhores, não sejam as vossas idéias, mas as idéias do
Evangelho. Que a vossa doutrina não seja a vossa doutrina, mas a doutrina de Jesus Cristo.
Não procureis senão a justiça e o bem. Que o desinteresse brilhe em todas as vossas
convicções, é a condição essencial, para que o sucesso seja completo.

Jesus Cristo não fez só obra de inteligência e de luz; mas fez obra de vontade e de
atividade. Não veio só em testemunho da verdade, mas como salvador das almas. Venit
Filius hominis quaerere et salvum facere quod perierat.[1] E, para ter mais poder sobre
nós, começou por fazer antes de dizer: capit facere et docere.[2] Deu-nos o exemplo,
antes do preceito: Exemplum dedi vobis.[3]
Os apóstolos fizeram como Ele. Lembrando-se que eram o sol da terra, foram até
aos confins da terra. A sua atividade não conheceu limites; dirigiram-se aos Gentios,
como aos Judeus, aos Gregos, aos Romanos, aos Bárbaros; trabalharam, lutaram,
sofreram, pagaram com a sua pessoa, e teriam podido dizer todos como um
deles: Imitatores mei estote, sicut et ego Christi.[4]
O apóstolo moderno não deve ser só uma testemunha da verdade, um homem de
luz e convicção, um homem desinteressado, mas um homem de ação e de vontade, um
salvador em toda a extensão do termo, e não somente um discursista.
Discursistas temos de sobra.
Discursistas, os turbulentos e inúteis que levam vida alegre, que fazem
demonstrações ruidosas, acompanhadas de reuniões alegres, que finalizam por banquetes,
onde se proclamam os princípios libertadores; e que, no momento do perigo, não são
salvadores, senão de si mesmos!
Discursistas, são aqueles que se contentam em fazer ostentação nos salões e nos
clubes, em declamar, julgar e aconselhar!
Discursistas, são todos aqueles que falam em vez de agirem, ou para se
dispensarem e se justificarem de o não fazerem!
Discursistas, são os rapazes que falam com muito acerto, mas praticam o
contrário, e que fariam corar de vergonha os avós, se eles voltassem do outro a este
mundo, pois que não querem compreender que não é o nome que dá honra, mas o uso que
se faz dele, e que o nome é um encargo a mais; os rapazes que herdam de seus
antepassados, mas que se deserdam, por sua própria vontade, da única herança digna de
nome; a do dever, da virtude e da dedicação.
Discursistas, são os hipócritas, os ambiciosos, os vendidos, os fariseus do século
vinte, que não crêem nem em uma só palavra do que dizem, que não falam senão com o
fim de alcançarem uma popularidade desleal, feita de mentira e astúcia que os encubra e
abrigue.
Discursistas temos em demasia!
Mas salvadores, são os homens de convicção e de ação útil, que fazem correr as
suas idéias durante a vida, em prol do bem e da salvação de seus irmãos!
Salvadores, são os que sabem pagar com a sua pessoa, e compreender que não são
as instituições que fazem bem, mas os homens!
Salvadores, são os rapazes que se apartam das inutilidades de tantos outros, da
ociosidade, de todas as seduções da mocidade, das distrações fáceis e dos prazeres
elegantes, e, na febre do trabalho, de exame, de posição a conseguir, arranjam ainda
tempo, para os padroados, as reuniões apostólicas, as obras pias!
Salvadores, são os pais de família que, desempenhando funções honrosas, embora
apertados pelos deveres dos seus cargos e da sua posição, vão levar aos trabalhadores, aos
pobres, aos humildes, alguma coisa de seu tempo, de sua inteligência, de sua dedicação;
vão falar-lhes do que lhes diz respeito, interessar-se pelos seus trabalhos e por suas vidas!
Salvadores, são os instrutores da mocidade, os Irmãos e Irmãs da caridade, os
padres e religiosos que renunciaram às doçuras do lar, às alegrias da família, a tudo, para
consagrarem a sua vida ao bem e à felicidade dos outros, a elevar os espíritos, a aliviar os
corpos, a fortalecer as almas, a distribuir, por todos os que sofrem, os benefícios de uma
dedicação, que é inesgotável, porque vem do Infinito, e volta para ele!
Eis ao que se dá o nome de salvadores! Já os temos; que Deus os multiplique! ...
Como deverá praticar o católico para ser salvador? Deverá exortar os católicos, e
os que o não são, ou que só o são de nome.
Aos católicos, pregará a união e a vida. Far-lhes-á sentir a vacuidade das
discussões apaixonadas, das polêmicas violentas, o mal que fazem aos que ofendem e
afastam, o mal que fazem aqueles que a empregam, o tempo que se perde nisso e que se
rouba à ação, ao bem, ao país. Far-se-á o eixo das exortações constantes do Soberano
Pontífice, à conciliação, à paz, à concordância e à união.
Deixando de parte as antigas brigas, as palavras agressivas, irritantes,
provocadoras, os epítetos que dividem ou causam desconfiança, mostrará que a união não
se pode fazer, senão desfazendo-se de tudo o que é pessoal, humano, terrestre, e, por
consequência, frágil e perecedouro, e elevando-se a tudo o que é necessário, divino: in
necessariis unitas.[5]
Mas a união, o necessário, o divino não são a imobilidade e a morte. Pregarão a
vida, a avançada, o progresso, a ação eficaz, sob todas as suas formas, com a prudência
da serpente, mas também com a simplicidade, a elevação, a rapidez da pomba.
Aos indiferentes, aos hostis, aos não católicos, falarão em toda oportunidade, e
em todo o encontro, em toda a parte aonde os encontrem, no quartel, nas escolas, na
sociedade. Quantos erros poderão destruir, quantos preconceitos poderão fazer
desaparecer, se forem seriamente instruídos, se tiverem o sincero desejo de esclarecer e
não de polemicar! Aqueles que atacam a religião, conhecem-na tão pouco e tão mal, que
bastará, muitas vezes, reconduzi-los à integridade do ensinamento católico, para
confundi-los, ou, antes, reconciliá-los, se forem de boa fé.
Os católicos não esperarão que venham junto deles. Eles irão ter com os que não
os procurarem e com os que não podem vir ter com eles, sem que os vão procurar o povo,
os camponeses e os operários.
O camponês não entende de teorias; é desconfiado; não compreende mais do que
o conselho imediato e prático. É difícil tocá-lo profundamente, se não se viver,
ordinariamente, no campo.
Para ele, nada há como a conversação individual a um canto da lareira, na curva
dum caminho ou à borda dum campo. Falai-lhe das suas terras, de seus interesses, das
suas despesas; ganhei a sua confiança por meio de entrevistas privadas, ou, pelo menos,
por conferências periódicas. Então, podereis entrar em questões mais elevadas.
Nos operários rurais, há uma aptidão especial, para compreenderem as teorias e
raciocínios; possuem a lucidez do espírito em subido grau. Exercem continuamente sobre
os camponeses, seus vizinhos, uma influência extraordinária. São eles que fazem, na
maior parte, as eleições. Por meio deles, é que se pode propagar um apostolado. Por meio
deles, conferências bem organizadas seriam úteis, e poderiam renovar todo o espírito
rural. Veem, em multidão, às missões e não deixariam de vir a conferências leigas.
O mesmo se daria com os trabalhadores das cidades. Mas é a estes que não se
devem impôr idéias. Do seu espírito crítico, censurador e liberal, resultaria um insucesso.
É preciso lançar mão dos seus defeitos, criticando o que se quer destruir, procedendo por
via de pesquisa, e como que procurando a descoberta do que se quer estabelecer. É por
este motivo que as conferências dialogadas têm, entre eles, o maior sucesso. Quantas
vezes os ouvimos nos dizerem: “Foi isso que me converteu”.
Mas todas as vossas conferências, todas as vossas conversações nada farão, se os
princípios que aplicardes não forem os vossos, meus senhores; se a vossa vida não for a
confirmação das vossas palavras e da vossa ação social.
O que é o desinteresse para a idéia, é o exemplo para a ação. É o desinteresse que
faz aceitar a idéia; é o exemplo que confirma a ação e lhe dá uma força invencível, assim
como o exemplo contrário produz a sua negação e destruição.
Sêde ordenados em vossos costumes, casai-vos, e casai os vossos filhos e as
vossas filhas cristãmente; não façais deles caçadores de dotes; não receeis ter filhos;
edificai os vossos criados com os vossos discursos, e sãos exemplos. Abandonai o luxo
ruidoso, as festas escandalosas; renunciai a ociosidade insolente e provocadora; amai a
vida familiar; honrai o pastor da vossa aldeia, sem o absorverdes em vosso proveito, isto
é, sem o familiarizardes; frequentai a Igreja e os ofício divinos; sustentai as escolas, as
obras pias, as associações, sem as fazerdes vossas, mas, pelo contrário, tornando-vos
delas.
Esta conduta modesta, digna, dedicada, desinteressada, em uma palavra, cristã,
dará às vossas palavras e ações um poder irresistível.

Bem percebeis, meus senhores, que tudo isto se não pode fazer sem amor. A razão
do apostolado do Salvador, a sua força é o Seu amor: “Sicut dilexi vos”. Pôs nele todo o
Seu coração. O Seu amor agiu duplamente em favor de Seu apostolado. Agiu sobre ele e
sobre nós; sobre ele, para sustentá-lo, sobre nós, para nos conquistar.
O amor será também o móvel do nosso apostolado. Ele, e só ele o poderá produzir.
Só ele nos tornará capazes de falarmos e agirmos. Só ele sacudirá o fundo de indiferença,
de apatia e de egoísmo que se encontra no fundo de todo coração humano. É o fermento
que fará levedar toda a massa; que fará desaparecer as repugnâncias naturais que temos,
quando se trata de agir e trabalhar para os outros. Jesus Cristo no-lo ordena: hoc est
praeceptum meum ut diligatis invicem. E, sabendo como o amor precisa ser grande para
uma tal tarefa, é o Seu que nos propõe para modelo: Sicut dilexi vos.
O amor natural, a simpatia natural, de homem para homem, não são suficientes.
Ai! infelizmente, é antes a antipatias e o ódio, que os homens têm uns aos outros;
e os grandes, os ricos, os felizes, não são, naturalmente, levados a gozar, a reter tudo, a
desdenhar e a desprezar os pequenos?
Só o amor cristão, que vê a Deus no próximo, terá bastante força para fazer de vós
verdadeiros apóstolos. Só ele será a fonte inesgotável da caridade, da dedicação ao povo,
do nobre cuidado da sua inteligência, da sua vida, da sua alma e do seu corpo.
Também, só o amor cristão saberá conquistar os espíritos, os corações, as almas.
A justiça é necessária: é preciso reclamá-la francamente. Sem adular o povo, sem
assoprar-lhe a revolta e o ódio dos ricos, sejamos os primeiros a pedir, para ele, a justiça;
o soberano Pontífice deu-nos o exemplo.
Mas a justiça não basta; nunca será suficiente; será sempre impotente, incompleta
sem a caridade, sem o amor cristão. A justiça não estabelecerá senão um equilíbrio
instável, que a menor injustiça, quer parta dos grandes, quer dos pequenos, romperá.
Só a caridade, compensando, pelo sacrifício voluntário, as injustiças, cometidas,
assegurará a estabilidade e a paz social. Só ela unirá os corações, as almas, o país, dando
aos poderosos a dedicação e o socorro efetivo; e concedendo aos fracos a resignação, o
perdão e a paciência.
Mas que espécie de amor às classes elevadas deverão ter pelas classes laboriosas?
Não um amor aristocrático, um amor condescendente; a palavra traduz bem o meu
pensamento; não um amor que desce, que parece descer indo até ao povo.
Estaria longe de ser suficiente. O povo não tolera que o humilhem e desprezem.
São inúteis as recriminações a este respeito; é assim, e, em seu lugar, seriam os,
provavelmente, como ele. O povo não pede que a gente se humilhe diante dele, mas não
suporta a insolência e o desprezo; quer que se lhe fale como de homem para homem e
com respeito, que o estimem como igual, que creiam nele, que tenham confiança nele,
que o tenham em alguma conta.
Não está nisto o amor cristão? Jesus não disse aos Seus apóstolos: “Não vos
chamarei servos, mas chamar-vos-ei meus amigos.” [6] Não devemos nós falar, agir
sentir, amar, como ele?: Sicut dilexi vos.
É um amor de amigo e de irmão que se nos pede.
O amor cristão vai mais longe. Jesus lançou-Se aos pés dos Seus apóstolos e disse:
“Vim para o meio de vós como quem serve.” [7] “Que aquele que quer ser o maior, se
faça o menor.”[8] Acrescentou: “O que fizerdes ao menor de meus irmãos, é a mim que
o fareis.[9]
O cristão, dirigindo-se aos pequenos, aos humildes, não crê rebaixar-se, mas antes
elevar-se; porque a sua fé representa-lhe o pobre como que sobre um trono de glória,
aonde ele saúda, honra, ama e serve a Jesus Cristo em sua pessoa.
E ao mesmo tempo que o cristão vê Deus no pobre, faz ver Deus ao pobre; faz-
lh'o, de certo modo, tocar, porque o pobre sabe bem que é em nome de Deus que é
socorrido, e que só Deus pode inspirar tanta caridade e desinteresse.
Assim compreendido, o amor cristão, a caridade, como seu verdadeiro nome, que
é a união do amor de Deus e do amor do próximo, produzirá prodígios: prodígios de
apostolado e de zelo, naquele que o praticarem; prodígios de transformação e conquista,
sobre aqueles que forem o seu objeto. “Dai-me um ponto de apoio e uma alavanca, dizia
um sábio, e levantarei o mundo”.
No mundo moral o ponto de apoio é Deus, a alavanca é a caridade!
O amor conduzir-nos-á à ultima virtude do apóstolo: a dedicação.
Dedicar-se é mais do que amar, é ir até os confins do amor, como Jesus, cujo
Evangelho nos diz: In finem dilexit. [10]
Dedicar-se é mais do que dar a inteligência, a atividade, o coração; é dar-se
completamente: o corpo, a alma ser e a vida.
Foi assim que Jesus Cristo se deu, foi assim que se tornou o nosso Redentor.
“Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por aqueles que ama,[11] e
eu dou-a: ninguém m'a tira, dou-a livremente.”[12] Eis o Redentor.
Toma sobre Si os pecados dos outros, faz-Se vítima, e, em lugar deles, é imolado.
Foi o que fez Jesus Cristo: foi sobre a Cruz que nos resgatou.
Seguindo o Seu exemplo, os apóstolos tornaram-se de todos; gastaram tudo e
gastaram-se a si mesmos. Foram os mártires do seu apostolado e os redentores do mundo.
Até aí, meus senhores, devemos ir.
As meias dedicações, na família e na sociedade, não são suficientes; é preciso dedicar-
vos como Jesus Cristo, até ao fim, sem vos deixardes embaraçar pelas oposições, os
desprezos, os desdéns, as contradições.
Riram do Salvador, caçoaram d’Ele, trataram-no de louco, de possesso; os Seus
próprios discípulos abandonaram-nO, renegaram-nO, atraiçoaram-nO; e, quando Ele
morreu sobre a cruz, podia-se julgar que a Sua obra estava destruída para sempre. Foi a
hora de Seu desabrochamento e do Seu triunfo.
Dedicai-vos como Jesus Cristo, sicut dilexi vos. Como Ele, oferecei as vossas
preces, os vossos sofrimentos, as vossas provações, as vossas fadigas, a vossa própria
vida pela salvação de vossos irmãos; dedicai-vos até ao martírio! pois “ser mártir,
exclama Ozanam, é coisa possível a todos os cristãos; é dar a sua vida em sacrifício, que
o sacrifício seja consumado de vez como o holocausto, ou que se efetue lentamente e
arda, noite e dia, sobre o altar; ser mártir, é dar ao céu o que se tem recebido dele, o corpo,
o sangue, a alma inteira”. É dedicar-se na família e para fora, para com os seus e os outros,
para com a pátria e a humanidade. É dedicar-se na humildade, no sacrifício
na oração, no dever, pelo triunfo de tudo o que é justo e santo, de tudo o que é, nobre e
bom. É dedicar-se ao bem dos homens e à glória de Deus, sicut dilexi vos!

Não digais: é impossível. Houve quem fizesse nos séculos passados; há quem faça
no nosso século: Ozanam, Montalembert, de Melun... para não citar senão estes. Há quem
o faça todos os dias à nossa vista; não se nomeiam os vivos, olha-se para eles, admiramo-
los, imitamo-los; vós os conheceis. Dedicai-vos como eles. Jesus Cristo vo-lo ordena, e
as necessidades dos tempos em que estamos vos fazem disso uma obrigação urgente.
Quando um exército atravessa um país assolado pelo inimigo, redobrar de
disciplina e coragem, de padecimento e audácia, unir-se em volta da bandeira, e dedicar-
se até à morte, é o dever sagrado do soldado, como será o triunfo, ou, pelo menos, a honra
da pátria!
Tal é o mundo aonde estais, meus senhores. Invadido pelo erro, o cepticismo e
todas as doutrinas falsas, arrasado pelos esforços dos maus, é um campo de batalha aonde
tudo se vai decidir. Não! não! já não é permitido, já não é possível ficar indiferente. É ao
redor da cruz que nos devemos agrupar todos! É, após Jesus Cristo, o nosso chefe, que
devemos marchar! É, sob o Seu olhar que devemos combater, os combates da inteligência
e da verdade, os combates da vontade e da atividade, os combates do exemplo e do
desinteresse, os combates do amor e da dedicação! É, sob o Seu olhar, que devemos
vencer ou morrer, porque se trata da justiça e do bem, da virtude e da verdade; trata-se,
verdadeiramente, da vida ou da morte, da vida ou da morte das almas, da vida ou morte
do mundo! Para o levantamento da pátria, para a salvação das almas e a glória de Deus,
sêde, pois, os soldados e os apóstolos do dever e da dedicação; sêde os seus heróis, e, se
preciso for, os seus mártires! Hoe est praeceptum meum ut diligatis invicem sicut dilexi
vos.
AMÉM!

[1] S. Lucas, XIX, 10. “O Filho do Homem veio procurar e salvar o que havia
perecido.”
[2] Atos dos Apóstolos, I, 1.
[3] São João, XIII, 15.
[4] I.ª Epístola aos Coríntios, XI. “Sede os meus imitadores, como eu sou o imitador
de Cristo”.
[5] S. Agostinho. “Nas coisas necessárias, unidade”.
[6] São João, XV, 15.
[7] São Lucas, XXII, 27.
[8] São Lucas, XXII, 26.
[9] São Matheus, XXV, 40.
[10] São João, XIII, 1.
[11] São João, XV, 13.
[12] São João, X, 18.

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