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Ensaio sobre os estigmas de São Francisco.

(...) acima de tudo, que, comparado a


maioria de nós, pelo menos, São
Francisco é a mais sublime
aproximação ao Mestre, e, ainda sendo
um intermediário e um reflexo, é,
todavia, um esplêndido e
misericordioso espelho de Cristo. (G.K
Chesterton1)

Foi proposital iniciar a presente reflexão com as eximias e poéticas


palavras de Chesterton, esse nobre escrito inglês que de maneira peculiar
põem Francisco de Assis como um espelho do Mestre Jesus, assim claro,
como outros grandes franciscanos também sugerem. É justamente desse
ponto de partida de um espelho que seguem as meditações espirituais a
seguir, sobre os estigmas de São Francisco. Talvez um tanto quanto pessoais
e subjetivas, todavia, auridas das mais singelas afeições franciscanas.

Pondero ao leitor que percorra as meditações espirituais que seguem a


respeito do Pobre de Assis, como em profunda oração, e se a sabedoria e a
humildade franciscana me permitem, servir-me-ei das palavras de São
Boaventura, fiel seguidor de Francisco, que em sua obra magna espiritual nos
exorta; “Que não venha a crer que baste a leitura sem a unção, a meditação
sem a devoção, a indagação sem a admiração, a atenção profunda sem a
alegria do coração, a atividade sem a piedade, a ciência sem a caridade (...) 2”
(Itin, prólogo, n 4).

Nas principais hagiografias de São Francisco, dentre os mais belos


episódios que narram a vida do Pobre de Assis, se reverbera com maior
nobilidade o momento da união de Francisco com o Crucificado, que a tradição

1
CHESTERTONE, G.K, 1874-1936. São Francisco de Assis, Tradução Anônima- Campinas, SP: Ecclesiae,
2014.
2
BOAVENTURA DE BAGNOREGIO: Escritos filosóficos-teológicos, Itinerário da mente para Deus, Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1998.
franciscana costuma chamar de estigmatização, mas, como nossa linguagem
pretende ser espiritual pode-se pois chamar esse episódio de encontro, ou
ainda de Cristificação. Não tanto por se tratar de um novo conceito, longe de tal
pensamento, mais sim por parecer que o termo encontro é uma melhor
acepção ao momento em que Francisco espelha ao mundo o reflexo do Mestre
da cruz, e traz assim uma novidade ao que já era novo, por se tratar da loucura
da Cruz.

Voltemos nosso coração ao século XVIII, em especial a Assis. Era o


ano de 1224, dois anos depois o Poverello faria seu trânsito, todavia, no
episódio em questão ele transitava até o monte Alverne. É interessante
rememorar que a montanha (ou monte) sempre foi entre os místicos o lugar de
encontro com Deus. Parece florir nos montes certas fendas de aproximação e
de encontro com o mistério, que muitas vezes se revela nos corações. Um
encontro que pressupõe, nas acepções bíblicas, a revelação de Deus, como foi
com Moises, que, o Deus sem nome se fez nomeável (Ex 3, 14-15).

A experiencia de Moises no monte Horeb traz a revelação do nome de


Deus, e em um pitoresco cenário, também em um monte só que este chamado
monte das oliveiras, ou Getsêmani, Nosso Senhor se prepara para sua cruz,
para sua entrega, para consumar seu mistério. Ora, também Francisco no
monte faz seu grande momento de indizível significação. O Pobre de Assis se
torna para o mundo um outro Cristo, e tudo começa com a revelação do Divino
como narra Boaventura em sua Legenda Maior.

Portanto, como estivesse arrebatado em Deus por seráficos ardores


dos desejos e por compassiva doçura se transformasse naquele que
por excessiva caridade (cf. Ef 2,4) quis ser crucificado, numa manhã,
na proximidade da festa da Exaltação da Santa Cruz, enquanto
rezava num lado do monte, viu um Serafim que tinha seis asas (cf. Is,
6,2) tão inflamadas quão esplêndidas a descer da sublimidade dos
céus. E como tivesse chegado em voo rapidíssimo a um lugar no ar
próximo do homem de Deus, apareceu entre as asas a imagem de
um homem crucificado que tinha as mãos em forma de cruz e os pês
estendidos e pregados na cruz.3

3
Fontes Franciscanas, Legenda Maior de São Boaventura- XIII, 3, 1-3, fragmentado, Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014.
O biografo do Santo de Assis que também foi mais tarde canonizado,
São Boaventura, relata na sua eximia obra a hagiografia de nosso Poverello, o
momento ápice da vida de Francisco que foi seu encontro com o Crucificado.

No monte Alverne Francisco estava em um dos momentos mais


solitários de sua vida, em profundas angustias a níveis existências e subjetivas,
de certa forma foi um dos momentos mais sombrios da vida de nosso santo. E
diante desse enigma de estar no meio de uma “noite escura” como dizem
alguns místicos, surge então o encontro de natureza singularíssima, Deus se
revela a Francisco, mais também Francisco se revela a Deus, um vai ao
encontro do outro. O Deus-Homem que se insere na história, revela-se na vida
de um simples frade de uma pequena cidade do interior.

O encontro com o Crucificado perpassa uma dimensão mística que


envolve uma série de fatores que não poderíamos abordar nesta breve
reflexão, contudo, é pitoresco como o encontro é ante qualquer outra coisa
movido por um profundo desejo, e o desejo de Francisco era justamente o
desejo de Deus, o coração de São Francisco se apetecia inteiramente por
Cristo Crucificado.

Uma primeira narrativa, um pouco anterior a de Boaventura se


encontra em Tomás de Celano. Este narra o encontro de forma mais simples
que Boaventura, todavia, sendo esse relato de Frei Celano a vida primeira,
tem-se nesses escritos uma formidável fonte de riqueza histórica:

Dois anos antes de devolver sua alma ao céu, permanecendo ele no


eremitério que pelo lugar em que estava situado se chama Alverne,
viu, numa visão divina (cf, Ez,1,1;8,1), um homem á semelhança de
um Serafim que tinha seis asas, o qual pairava acima dele com as
mãos estendidas e com os pés unidos, pregado na cruz. (...) Pensava
solicito o que poderia significar esta visão, e o espirito dele ficava
muito ansioso (cf. Sl 142,4) para captar o sentido inteligível dela(...). 4

Ora, encontra-se neste relato, de outro hagiógrafo de São Francisco,


um elemento interessante quando o Crucificado aparece a Francisco, é dito
que Francisco tentava entender o incompreensível, ou como fala Celano, “
captar o sentido inteligível dela (da visão)”. Olhando pelo lado da mística, a
revelação de Deus é sempre misteriosa, todos os esforços do intelecto humano

4
Fontes Franciscanas, Tomas de Celano/ Primeiro Celano 94- fragmentado, Petrópolis, RJ: Vozes,
2014.
de captar conceitos, definições ou mesmo compreender esses fenômenos de
teofania acabam por fracassar. E sendo realista, também nossa reflexão
falharia se tentarmos aqui captar aquilo que a cognoscibilidade é incapaz de
alcançar, que em última instância, é o encontro de dois amores. E tal como em
todo bom romance, somente os que se amam sabem como é, pois não é
sistematização, mas se trata de viver, de existir, se trata do ato puro em si, por
isso é mistério de amor.

Se em certa medida parece já ser estupefato o encontro e a revelação


do Crucificado no Alverne, para ser ainda mais pitoresco o que vem depois
torna-se chave de compreensão da vida de Francisco. Pela primeira vez na
história do cristianismo o amante se torna imagem do amado, e a forma da
criatura se assemelha ao Criador. O episódio polêmico, mais poético, do Pobre
de Assis que ganha as marcas do Rei do Universo. O mais simples dos
homens, se torna maior que a própria montanha em que ele estava, e o
mistério e o Divino novamente se reverbera na frágil humanidade.

Desaparecendo, então, a visão, deixou no coração dele um admirável


ardor, mas também na carne imprimiu a não menos admirável
imagem dos sinais. – Pois, imediatamente começaram a aparecer nas
mãos e nos pés dele os sinais dos cravos (cf. Jo 20, 25), do mesmo
modo como vira pouco antes naquela figura de homem crucificado. 5

Aqui novamente temos Boaventura que narra com todo seu exímio
domínio da linguagem, o episodio que marca o ápice da vida espiritual de
Francisco de Assis. Podemos rezar o trecho e pensar em que nível o coração
de Francisco estava durante as impressões dos estigmas. Como sua alma,
levada a máxima depois do encontro revelador se encontrou. Leva-nos a refletir
a natureza humana de cada indivíduo. Como ficamos marcados depois de
encontrarmos com o Divino. Que sinais ficam em nossos corações após termos
feito um encontro com o Sagrado. São provocações pertinentes é claro, mais
são as questões que a experiencia de Francisco nos convida.

Poderíamos nos deter como tantos em refletir sobre esses episódios.


Contudo, penso que se tornaria nula qualquer tentativa de dizer o indizível
como comentado anteriormente. A experiência pessoal foi de Cristo e
5
Fontes Franciscanas, Legenda Maior de São Boaventura- XIII, 3 fragmentado, Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014.
Francisco, e cabe aos amantes o real significado desse encontro, a nós,
contudo, é possível rezarmos a cena.

Diante do encontro com o Mestre o Poverello se torna um espelho, que


reflete a paixão, o sofrimento a cruz. Lembramos que as marcas da Cruz
possuem uma leitura interessante quando esta se mostra revelando também a
humanidade de Cristo. É radiante então pensar, que nos sinais que simbolizam
a “fraqueza” de Cristo, suas dores, sua cruz, suas feridas e sua humanidade,
em Francisco marcam e simbolizam a mesma dimensão, a humanidade e a
cruz.

Há então, nestes episódios, uma dimensão muito mais profunda que a


mera adequação do corpo de um com o outro, das dores físicas de um para
com o outro. Acontece uma real cristificação, a tal ponto que em Francisco se
refletia o próprio Cristo, muito mais internamente que externamente, e nesta
acepção, os estigmas seriam ante quaisquer outras coisas a própria crucifixão
de Cristo em Francisco. Neste ponto, convém usar Paulo que bem expressa
essa união amante em amado, “Fui crucificado junto com Cristo, já não sou eu
que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gál 2, 20).

Por fim, diante de todas essas provocações, resta apenas afirmar que
os estigmas, mesmo na sua relação pessoal e inteligível, pois se trata de
mistério entre o ser de Francisco e o Ser que é Deus-Homem. Resta-nos a
admiração, o encantamento, o exemplo e o amor. Que também cada um de
nós em nossos corações, possamos herdar as marcas da paixão, depois de
nosso encontro pessoal com Cristo. Que essas marcas, sejam para nós
verdadeiras marcas de Cruz, e segundo a fé cristã, a Cruz precede a
ressureição.

Finalizo esta breve reflexão e rogo a Deus, que sempre possamos


verdadeiramente nos alegrar no mistério da cruz, como verdadeiros
franciscanos e como verdadeiros cristãos, que abraçam a cruz e vivem esse
mistério, que nos narra São Paulo: “com efeito, a linguagem da Cruz é loucura
para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é
poder de Deus (1 Cor, 18)”.
BIBLIOGRAFIA.

CHESTERTONE, G.K, São Francisco de Assis; Tradução anônima-


Campinas, SP; Ecclesiae, 2014.

BIBLIA DE JERUSALEM, PAULUS, Tradução do texto em língua portuguesa


diretamente dos originais. São Paulo, 2013.

Fontes Franciscanas/ apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio


Teixeira, Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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