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S.

FRANCISCO NÃO QUIS MUDAR O MUNDO


NEM A IGREJA: APENAS O CORAÇÃO
Outubro 4, 2023

1. O Livro de Ben-Sira 44-50 apresenta, lado-a-lado, um


belo friso de figuras ilustres, desde o justo Henoc, que
viveu nesta terra 365 anos, um ano de anos, sendo depois
arrebatado para o céu, como lemos no Livro do Génesis
5,21-24, até ao Sumo-sacerdote Simão, que exerceu o
ofício de sumo-sacerdote desde finais do século III (220)
até princípios do século II a.C. (195). A lição de hoje,
retirada do Livro de Ben-Sira 50,1.3-7, detém-se sobre
esta figura sacerdotal, acentuando que, trajado com as
suas vestes sacerdotais ricamente adornadas, o sumo-
sacerdote Simão procedeu à reparação do Templo e cuidou
do seu povo. Di-lo sem o dizer: o sumo-sacerdote
transportava aos ombros e levava sobre o coração o inteiro
povo de Israel, pois sobre os ombros, nas alças do
humeral, levava duas pedras preciosas, uma em cada
ombro, cada uma gravada com seis nomes das tribos de
Israel, e sobre o peito, no peitoral, levava doze pedras
preciosas, em que estavam inscritos os nomes das doze
tribos de Israel. O sumo-sacerdote Simão reparou, pois, o
Templo, e cuidou do seu povo, carregando-o aos ombros
e levando-o sobre o coração.

2. Claro que se vê bem nesta bela simbologia, em


contraluz, Francisco, o poverello de Assis, vestido de
pobre, mas que recebe, talvez em 1205, do próprio Senhor
do Universo Crucificado, na Igreja de S. Damião, a
incumbência de reparar a sua Igreja que ameaçava ruínas.
E não era só, vê-se bem, o edifício da igreja de S. Damião.
Era sobretudo o edifício espiritual da Igreja de Deus, o
Povo Santo de Deus que espiritual e moralmente se
desmoronava. Entre Crucifixo e Crucifixo. Tudo começa no
Crucifixo de S. Damião, em 1205, e culmina no Crucifixo
de Monte Alverne, de quem Francisco recebe os estigmas,
em 1223, provavelmente no dia 14 de setembro, glorioso
dia da Exaltação da Santa Cruz.

3. O rumo essencial da vida de Francisco foi traçado entre


1205 e 1208, tinha Francisco entre 24 e 26 anos. Em 1205,
é o encontro com o crucificado de S. Damião. Em 1208,
Francisco escuta, na igreja da Porziuncola, o Evangelho de
Mateus 10,1-16, em que Jesus envia os seus Apóstolos a
pregar sem ouro, nem prata, nem cobre, nem alforge, nem
duas túnicas, nem sandálias, nem cajado! Recebestes de
graça, dai de graça! Tomás de Celano, o primeiro biógrafo
de S. Francisco descreve o «onde» e o «quando» desta
cena: «um dia, em que nesta igreja (da Porziuncola) se lia
a passagem do Evangelho relativa ao envio dos Apóstolos
a pregar, o Santo, que estava presente e tinha captado o
sentido geral, terminada a missa, pediu ao sacerdote que
lhe explicasse a passagem. O sacerdote comentou-lho
ponto por ponto, e Francisco, ouvindo que os discípulos de
Cristo não devem possuir nem ouro, nem prata, nem
dinheiro, nem alforge, nem pão, nem cajado para o
caminho, nem sandálias, nem dias túnicas, mas devem
apenas pregar o reino de Deus e a penitência, de repente,
exultando de fervor divino, exclamou: “É isto que quero, é
isto que peço, é isto que desejo praticar com todo o meu
coração”» (FF 356). Francisco levou o que ouviu a sério.
Para trás deixava um mundo de festas e folguedos. E o
segredo mais profundo desta reviravolta que Francisco
operou (ou que foi operada em Francisco) consiste na
mudança radical da sua vida, à maneira do Evangelho,
chamemos-lhe conversão. Francisco não foi nem nunca
quis ser um reformador, nem da sociedade nem da Igreja,
não obstante a época em que viveu se apresentar cheia de
chagas a sangrar no que à fé e aos costumes dizia respeito.
Francisco não quis mudar o mundo nem a Igreja! Quis
apenas mudar a sua vida de acordo com as pautas do
Evangelho.

4. Se há uma marca que carateriza Francisco, e na qual


todas as fontes são concordes, é a altíssima pobreza.
No Pequeno Testamento, ditado em Siena, à pressa, a Frei
Benedetto da Prato, em abril-maio de 1226, poucos meses
antes da sua morte, Francisco reúne e resume a sua
aventura humana e espiritual nestas poucas linhas:
«Como, em razão da fraqueza e do sofrimento da doença,
não posso falar, manifesto brevemente aos meus irmãos a
minha vontade nestas três palavras, que são: como sinal
da minha bênção e do meu testamento, amem-se sempre
uns aos outros (1); amem sempre nossa senhora, a santa
pobreza (2); e sejam sempre fiéis e submissos aos
prelados e a todos os clérigos da santa mãe Igreja (3)».

5. Na sua obra póstuma Escritos de Londres e últimas


cartas (1957), Simone Weil anotava que «a riqueza
aniquila a beleza…, porque a esconde com a mentira. É a
mentira contida na riqueza que mata a poesia. É por isso
que os ricos têm necessidade do luxo como de um
sucedâneo». Modelo de articulação entre a pobreza e
beleza é S. Francisco, que «não procurou na pobreza a dor,
mas a verdade e a beleza, a poesia do encontro
verdadeiro».

6. «Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra,


porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes,
e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim
foi do teu agrado, da tua eudokía». «Senhor», Francisco
usa nos seus escritos por 410 vezes. Senhor de todos e
de tudo, assim compreende Francisco. «Irmão» ou
«Irmãos», Francisco usa por 306 vezes, e também
qualifica todos e tudo.

7. Estas poucas linhas do Evangelho deste Dia de S.


Francisco, retiradas de Mateus 11,25-30, guardam o
segredo mais inteiro de Jesus e de Francisco. Há quem
considere estas breves linhas como o mais belo e
importante dizer de Jesus nos Evangelhos Sinóticos. Na
verdade, estas linhas leves e ledas como asas guardam o
segredo mais inteiro de Jesus, o seu tesouro mais
profundo, o tesouro ou a pedra preciosa da parábola
(Mateus 13,44-46), preciosa e firme, porque leve e suave
como uma almofada, onde Jesus pode reclinar
tranquilamente a cabeça (cf. João 1,18), e tranquilamente
conduzir, dormindo mansamente à popa, a nossa barca no
meio deste mar encapelado (cf. Marcos 4,38). Nos lábios
de Jesus, chama-se «PAI» (Mateus 11,25) este lugar
seguro e manso, doce e aprazível, que acolhe os
pequeninos, os senta sobre os seus joelhos, lhes conta a
sua história mais bela, e lhes afaga o rosto com ternura.
Diz bem Santo Agostinho que «o peso de Cristo é tão leve
que levanta, como o peso das asas para os passarinhos!».
E o Padre Jesuíta francês, Léonce de Grandmaison (1868-
1927), também se segurava neste fio de ouro, e rezava
assim: «Santa Maria, Mãe de Deus, conserva em mim um
coração de criança, puro e transparente, como uma
nascente».

8. O segredo e o tesouro de Jesus era o Pai, de quem Jesus


era «o Filho», pura transparência do Pai. O segredo e o
tesouro de Francisco é Jesus, pura transparência de Jesus.
Por isso, com S. Paulo, na lição de hoje da Carta aos
Gálatas 6,14-18, também Francisco pode dizer: «Gloriar-
me, sim, na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo»…
«Carrego no meu corpo as marcas (os estigmas) de
Jesus». Sou «nova criatura», saída das mãos puras de
Deus, com a missão de dominar a terra e os animais.
Francisco, pastor de ovelhas e de lobos, dominador dos
animais. Entenda-se bem: dominador da animalidade e da
brutalidade, construtor da mansidão, da paz e do bem, e
da ternura.

9. Ser santo, como Francisco é santo, é ser sensibilíssimo,


pois consiste em ouvir com os ouvidos de Deus, ver com
os olhos de Deus, falar com a língua de Deus, tocar com
as mãos de Deus, amar com o coração de Deus. Tornar-
se, portanto, pura transparência de Deus, obra da graça
de Deus. É verdade o dizer de Jesus no Evangelho de hoje:
«Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece
o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser
revelar».
10. Acerca de Jesus, dizem os insuspeitos fariseus, no
Evangelho de João: «O mundo veio atrás dele» (João
12,19). Todos sabemos quem era Jesus. E todos sabemos
também que havia em Francisco de Assis qualquer coisa
que não há em nós. «Por que é que o mundo inteiro corre
atrás de ti?», terá perguntado um dia Frei Masseo a
Francisco. Francisco terá respondido: «Porque os olhos de
Deus não encontraram sobre a terra pecador mais vil do
que eu». Frei Masseo não deve ter entendido a resposta
de Francisco. Mas eu penso que a resposta é certeira e
verdadeira, e deve ler-se ou cantar-se em duas pautas
diferentes, mas complementares. Primeira: não há santo
que não se sinta verdadeiramente pecador, o maior
pecador; segunda, não há santo que não se sinta
verdadeiramente amado e perdoado, vendo sobre ele cair
em ondas sucessivas o olhar agraciador de Deus, o perdão
de Deus.

11. Francisco, pequenino e humilde, recebeu no coração


esta enxurrada do amor de Deus. Por isso, vive de Deus e
transmite Deus. Eis a razão pela qual o mundo inteiro
corria atrás dele e continua a correr atrás de Jesus.
Francisco semelhante a Jesus, transparência de Jesus. Por
Francisco até Jesus. Nosso Pai São Francisco, roga por
estes teus filhos de hoje, que procuram onde nada se pode
encontrar.

António Couto

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