1. O Livro de Ben-Sira 44-50 apresenta, lado-a-lado, um
belo friso de figuras ilustres, desde o justo Henoc, que viveu nesta terra 365 anos, um ano de anos, sendo depois arrebatado para o céu, como lemos no Livro do Génesis 5,21-24, até ao Sumo-sacerdote Simão, que exerceu o ofício de sumo-sacerdote desde finais do século III (220) até princípios do século II a.C. (195). A lição de hoje, retirada do Livro de Ben-Sira 50,1.3-7, detém-se sobre esta figura sacerdotal, acentuando que, trajado com as suas vestes sacerdotais ricamente adornadas, o sumo- sacerdote Simão procedeu à reparação do Templo e cuidou do seu povo. Di-lo sem o dizer: o sumo-sacerdote transportava aos ombros e levava sobre o coração o inteiro povo de Israel, pois sobre os ombros, nas alças do humeral, levava duas pedras preciosas, uma em cada ombro, cada uma gravada com seis nomes das tribos de Israel, e sobre o peito, no peitoral, levava doze pedras preciosas, em que estavam inscritos os nomes das doze tribos de Israel. O sumo-sacerdote Simão reparou, pois, o Templo, e cuidou do seu povo, carregando-o aos ombros e levando-o sobre o coração.
2. Claro que se vê bem nesta bela simbologia, em
contraluz, Francisco, o poverello de Assis, vestido de pobre, mas que recebe, talvez em 1205, do próprio Senhor do Universo Crucificado, na Igreja de S. Damião, a incumbência de reparar a sua Igreja que ameaçava ruínas. E não era só, vê-se bem, o edifício da igreja de S. Damião. Era sobretudo o edifício espiritual da Igreja de Deus, o Povo Santo de Deus que espiritual e moralmente se desmoronava. Entre Crucifixo e Crucifixo. Tudo começa no Crucifixo de S. Damião, em 1205, e culmina no Crucifixo de Monte Alverne, de quem Francisco recebe os estigmas, em 1223, provavelmente no dia 14 de setembro, glorioso dia da Exaltação da Santa Cruz.
3. O rumo essencial da vida de Francisco foi traçado entre
1205 e 1208, tinha Francisco entre 24 e 26 anos. Em 1205, é o encontro com o crucificado de S. Damião. Em 1208, Francisco escuta, na igreja da Porziuncola, o Evangelho de Mateus 10,1-16, em que Jesus envia os seus Apóstolos a pregar sem ouro, nem prata, nem cobre, nem alforge, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado! Recebestes de graça, dai de graça! Tomás de Celano, o primeiro biógrafo de S. Francisco descreve o «onde» e o «quando» desta cena: «um dia, em que nesta igreja (da Porziuncola) se lia a passagem do Evangelho relativa ao envio dos Apóstolos a pregar, o Santo, que estava presente e tinha captado o sentido geral, terminada a missa, pediu ao sacerdote que lhe explicasse a passagem. O sacerdote comentou-lho ponto por ponto, e Francisco, ouvindo que os discípulos de Cristo não devem possuir nem ouro, nem prata, nem dinheiro, nem alforge, nem pão, nem cajado para o caminho, nem sandálias, nem dias túnicas, mas devem apenas pregar o reino de Deus e a penitência, de repente, exultando de fervor divino, exclamou: “É isto que quero, é isto que peço, é isto que desejo praticar com todo o meu coração”» (FF 356). Francisco levou o que ouviu a sério. Para trás deixava um mundo de festas e folguedos. E o segredo mais profundo desta reviravolta que Francisco operou (ou que foi operada em Francisco) consiste na mudança radical da sua vida, à maneira do Evangelho, chamemos-lhe conversão. Francisco não foi nem nunca quis ser um reformador, nem da sociedade nem da Igreja, não obstante a época em que viveu se apresentar cheia de chagas a sangrar no que à fé e aos costumes dizia respeito. Francisco não quis mudar o mundo nem a Igreja! Quis apenas mudar a sua vida de acordo com as pautas do Evangelho.
4. Se há uma marca que carateriza Francisco, e na qual
todas as fontes são concordes, é a altíssima pobreza. No Pequeno Testamento, ditado em Siena, à pressa, a Frei Benedetto da Prato, em abril-maio de 1226, poucos meses antes da sua morte, Francisco reúne e resume a sua aventura humana e espiritual nestas poucas linhas: «Como, em razão da fraqueza e do sofrimento da doença, não posso falar, manifesto brevemente aos meus irmãos a minha vontade nestas três palavras, que são: como sinal da minha bênção e do meu testamento, amem-se sempre uns aos outros (1); amem sempre nossa senhora, a santa pobreza (2); e sejam sempre fiéis e submissos aos prelados e a todos os clérigos da santa mãe Igreja (3)».
5. Na sua obra póstuma Escritos de Londres e últimas
cartas (1957), Simone Weil anotava que «a riqueza aniquila a beleza…, porque a esconde com a mentira. É a mentira contida na riqueza que mata a poesia. É por isso que os ricos têm necessidade do luxo como de um sucedâneo». Modelo de articulação entre a pobreza e beleza é S. Francisco, que «não procurou na pobreza a dor, mas a verdade e a beleza, a poesia do encontro verdadeiro».
6. «Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado, da tua eudokía». «Senhor», Francisco usa nos seus escritos por 410 vezes. Senhor de todos e de tudo, assim compreende Francisco. «Irmão» ou «Irmãos», Francisco usa por 306 vezes, e também qualifica todos e tudo.
7. Estas poucas linhas do Evangelho deste Dia de S.
Francisco, retiradas de Mateus 11,25-30, guardam o segredo mais inteiro de Jesus e de Francisco. Há quem considere estas breves linhas como o mais belo e importante dizer de Jesus nos Evangelhos Sinóticos. Na verdade, estas linhas leves e ledas como asas guardam o segredo mais inteiro de Jesus, o seu tesouro mais profundo, o tesouro ou a pedra preciosa da parábola (Mateus 13,44-46), preciosa e firme, porque leve e suave como uma almofada, onde Jesus pode reclinar tranquilamente a cabeça (cf. João 1,18), e tranquilamente conduzir, dormindo mansamente à popa, a nossa barca no meio deste mar encapelado (cf. Marcos 4,38). Nos lábios de Jesus, chama-se «PAI» (Mateus 11,25) este lugar seguro e manso, doce e aprazível, que acolhe os pequeninos, os senta sobre os seus joelhos, lhes conta a sua história mais bela, e lhes afaga o rosto com ternura. Diz bem Santo Agostinho que «o peso de Cristo é tão leve que levanta, como o peso das asas para os passarinhos!». E o Padre Jesuíta francês, Léonce de Grandmaison (1868- 1927), também se segurava neste fio de ouro, e rezava assim: «Santa Maria, Mãe de Deus, conserva em mim um coração de criança, puro e transparente, como uma nascente».
8. O segredo e o tesouro de Jesus era o Pai, de quem Jesus
era «o Filho», pura transparência do Pai. O segredo e o tesouro de Francisco é Jesus, pura transparência de Jesus. Por isso, com S. Paulo, na lição de hoje da Carta aos Gálatas 6,14-18, também Francisco pode dizer: «Gloriar- me, sim, na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo»… «Carrego no meu corpo as marcas (os estigmas) de Jesus». Sou «nova criatura», saída das mãos puras de Deus, com a missão de dominar a terra e os animais. Francisco, pastor de ovelhas e de lobos, dominador dos animais. Entenda-se bem: dominador da animalidade e da brutalidade, construtor da mansidão, da paz e do bem, e da ternura.
9. Ser santo, como Francisco é santo, é ser sensibilíssimo,
pois consiste em ouvir com os ouvidos de Deus, ver com os olhos de Deus, falar com a língua de Deus, tocar com as mãos de Deus, amar com o coração de Deus. Tornar- se, portanto, pura transparência de Deus, obra da graça de Deus. É verdade o dizer de Jesus no Evangelho de hoje: «Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar». 10. Acerca de Jesus, dizem os insuspeitos fariseus, no Evangelho de João: «O mundo veio atrás dele» (João 12,19). Todos sabemos quem era Jesus. E todos sabemos também que havia em Francisco de Assis qualquer coisa que não há em nós. «Por que é que o mundo inteiro corre atrás de ti?», terá perguntado um dia Frei Masseo a Francisco. Francisco terá respondido: «Porque os olhos de Deus não encontraram sobre a terra pecador mais vil do que eu». Frei Masseo não deve ter entendido a resposta de Francisco. Mas eu penso que a resposta é certeira e verdadeira, e deve ler-se ou cantar-se em duas pautas diferentes, mas complementares. Primeira: não há santo que não se sinta verdadeiramente pecador, o maior pecador; segunda, não há santo que não se sinta verdadeiramente amado e perdoado, vendo sobre ele cair em ondas sucessivas o olhar agraciador de Deus, o perdão de Deus.
11. Francisco, pequenino e humilde, recebeu no coração
esta enxurrada do amor de Deus. Por isso, vive de Deus e transmite Deus. Eis a razão pela qual o mundo inteiro corria atrás dele e continua a correr atrás de Jesus. Francisco semelhante a Jesus, transparência de Jesus. Por Francisco até Jesus. Nosso Pai São Francisco, roga por estes teus filhos de hoje, que procuram onde nada se pode encontrar.