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O presépio: evangelização pela simplicidade

Domingos Zamagna

Nesta época do ano as nossas igrejas e capelas nos brindam


com presépios, alguns de grande riqueza artística. Muitas famílias
montam também um presépio em suas residências, fazendo vibrar a
fantasia das crianças. Museus e outras instituições abrem exposições
de presépios, mantendo viva uma tradição cultural e religiosa do
povo brasileiro. Pena que a Prefeitura da capital, nesses últimos
anos, tenha desprezado esta tradição do nosso povo, que ultrapassa
os limites confessionais, pois é uma herança cultural que herdamos
sobretudo da Itália, Espanha e Portugal desde o século 13.
A representação plástica que evoca a natividade de Jesus não
vai além de uma rude manjedoura, quiçá uma tosca pousada de
migrantes na beira da estrada, pouco importando o número de
personagens envolvidos e se os fatos correspondem mais ou menos à
realidade.
O presépio não é uma exibição cerebrina, não é um boletim de
ocorrência, não é para convencer qualquer erudito, ou justo, ou puro:
só convence a quem tiver o espírito da humildade, da hospitalidade,
da sabedoria dos pequenos.
É um convite à imaginação cordial: não de um coração de
pedra, mas um coração de carne, como ensinou Ezequiel (36,26);
um coração contrito, como reza o Salmo (51,19).
Longe da estridência, usa a linguagem da simplicidade, da
intimidade, da entrega, do acalento do amor. Será que me lembro da
última vez que isso aconteceu comigo, de verdade?
É para ser contemplado segurando a mão de crianças, dos
velhinhos, da mulher ou do homem amado, apoiando-se nos ombros
dos amigos, em sintonia com a reverberação da vida.
Não é para ser visto às pressas, é para ser saboreado ao som do
cântico do silêncio, sentindo a pulsação da prece. Terei vergonha se
verter uma lágrima que limpe os olhos da minha fé?
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Um dos nossos maiores poetas, Mário Quintana, exprimiu


admiravelmente qual deve ser o caminho que ultrapassa a
especulação, para além da própria ação, e que nos aproxima do agir
de Deus, que é contemplar. Seus versos podem ser uma oração a ser
recitada diante do presépio:

Sentir primeiro, pensar depois


Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois
Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, justificar depois
Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois.

Mais que tudo: deixemo-nos moldar pela mensagem que nos


legaram o Rei do universo – a plenitude que se fez fragmento – e sua
família, ainda reclusos numa choupana, às vésperas da fuga para o
exílio, por causa da perseguição de um outro tipo de rei. Os pastores,
gente excluída e considerada impura, foram os primeiros a ouvir dos
anjos do céu o precônio de um novo mundo, que mais tarde o
Carpinteiro de Nazaré externou como o mais transformador dos
programas de vida, as Bem-aventuranças (Mt 5; Lc 6).

Quando um profundo silêncio envolvia o universo,


e a noite estava no meio do seu curso,
a vossa Palavra onipotente, Senhor,
desceu do céu, do vosso trono real.” (Da liturgia do Natal, cf
Sb18,14-15)
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Não temais!
Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo:
Nasceu-vos hoje um Salvador,
que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi. (Lc 2,10-11)

A devoção à infância de Jesus existe desde o berço da Igreja. O


centro da devoção foi sempre o lugar do nascimento, Belém de Judá.
Salvo em períodos de perseguição, peregrinos de todas as partes da
cristandade afluíram a Belém e de lá levavam troféus que lhes
evocassem o Menino Jesus, sua mãe Maria e seu pai José. Não
bastando a veneração aos troféus, os cristãos começaram a construir
capelas imitando a gruta de Belém. A basílica de Santa Maria Maior,
em Roma, conserva uma singela construção do século V conhecida
como Sancta Maria ad Presepe.
Numa magnífica simbologia, muito cedo se deu a aproximação
entre o altar e a creche natalina. Com efeito, Belém significa, em
hebraico, “casa do pão”; Jo 6,41.51 chama Jesus de “pão vivo”. Os
Santos Padres não negligenciaram essa fonte de inspiração. S.
Gregório de Nissa, por exemplo, compara os cristãos aos animais
que, para se nutrir, dirigem-se à manjedoura. S. João Crisóstomo
afirma que “este altar funciona como uma manjedoura”. Numerosos
autores repetirão que na creche ou em Belém o pão vivo se oferece
aos homens, como na Eucaristia sobre o altar. E os artistas, em suas
Natividades frequentemente representam o Menino deitado sobre o
altar.
O símbolo entre a Eucaristia e o berço certamente inspirou S.
Francisco de Assis quando ele celebrou a festa do Natal em Greccio
(Úmbria, Itália), em 1223. Daí certamente derivam as representações
que até hoje conservamos nas confecções dos presépios. No meio de
um bosque o Poverello encontrou uma escavação em forma de
gruta, em que ele colocou uma manjedoura com o jumento, o boi e o
feno. Ainda nenhuma imagem da Virgem, do Menino e de José. Os
participantes da cerimônia completaram com sua criatividade a
composição dramática da cena do nascimento do Salvador. Em cima
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da manjedoura celebrou-se a Missa e aos poucos o altar provisório


foi substituído por um definitivo. Nenhum documento registra se
essa solenização foi renovada por S. Francisco ou por seus filhos e
filhas espirituais. A Legenda de Santa Clara narra que a santa,
doente, impedida de participar dos ofícios litúrgicos natalinos, teria
tido uma visão das representações. Não foram, contudo, os
franciscanos, mas sim os jesuítas, que divulgaram essa versão de
Francisco de Assis como o iniciador da devoção ao presépio.
Da península itálica essa devoção se estendeu para toda a
Europa e durante toda a idade média teve forte aceitação na
península ibérica, de onde nos veio a tradição portuguesa das
singelas e artísticas lapinhas.
Na cidade de São Paulo, temos encantadoras reproduções de
presépios, desde os expostos no Museu de Arte Sacra (como o
imenso, variado e até divertido “presépio napolitano”), até a
impressionante e cada vez maior coleção de presépios do mundo
inteiro expostos nessa época do ano pelos frades franciscanos no
Convento São Francisco, no centro da capital. Também o Mosteiro
de Sâo Bento organiza linda exposição nesta época
Nas palavras de Tomás de Celano, biógrafo de São Francisco,
aquela celebração era realmente nova, “um novo mistério... uma
nova alegria. O Menino Jesus estava esquecido nos corações de
muitos... Francisco o ressuscitou”.

Feliz Natal de alegria e paz!

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