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HW BGXZ C
40586.18.14

MEMEM

Harvard College Library

In Memory of

Aleixo de Queiroz Ribeiro

de Sotomayor d'Almeida
eVasconcellos

Count of Santa Eulalia

TheGift of

JohnB. Stetson Junior

oftheClass of1906

A.J.Downey 30. LONDON 1992


!
CHATEAUBRIAND

O GENIO DO CHRISTIANISMO

TRADUCÇÃO
DE

CAMILLO CASTELLO BRANCO


REVISTA POR
AUGUSTO SOROMENHO

Sexta edição correcta, illustrada com 10 gravuras

VOLUME II

CUS

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De LELLO & IRMÃO, editores
RUA DAS CARMELITAS , 144
-
1911
O GENIO DO CHRISTIANISMO
Livraria Chardron , de Lello & Irmão, editores
Rua das Carmelitas , 144 — PORTO

P. Manuel d'Albuquerque J. B. de S. Victor


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Philosophia fundamental . 2 $400 nita cart. 500
0
CHATEAUBRIAND

O GENIO DO CHRISTIANISMO

TRADUCÇÃO
DE

CAMILLO CASTELLO BRANCO


REVISTA POR
AUGUSTO SOROMENHO

Sexta edição correcta, illustrada com 10 gravuras

VOLUME II

DECUS
12

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De LELLO & IRMÃO, editores
RUA DAS CARMELITAS; 144
-
1911
40586.18.14

HARVARD COLES F
COUNT OF SANTA EULALIA
COLLECTION
GIFT OF
JOHN & STETSON, Jr.
Ju6.16,1923

PROPRIEDADE DOS EDITORES

Porto - Imprensa Moderna


PARTE TERCEIRA

BELLAS-ARTES E LITTERATURA
LIVRO PRIMEIRO

BELLAS - ARTES

CAPITULO I

Musica

DA INFLUENCIA DO CHRISTIANISMO NA MUSICA

Irmãs da poesia, as bellas-artes vão agora ser o


objecto dos nossos estudos : ligadas ao progresso da re-
ligião christã, por mãe a reconheceram logo que ella
surgiu no mundo : em troca dos seus attractivos terre-
nos deu-lhes ella a sua divindade : a musica notou -lhe os
hymnos, a pintura representou-a nos seus dolorosos
triumphos, a esculptura deleitou-se em scismar com
ella por sobre tumulos, e a architectura erigiu-lhe tem-
plos sublimes e mysteriosos como o seu pensamento .
Platão definiu maravilhosamente a natureza da mu-
sica : «Não se deve , diz elle, julgar da musica pelo gôso ,
nem procurar aquella cujo objecto unico seja o deleite ,
mas sim a que encerra em si similhanças com o bello» .
De feito, considerada como arte, a musica é uma
imitação da natureza : consiste, portanto, a sua perfeição
em representar a mais bella natureza possivel. Ora, o
prazer é opiniativo, varía conforme os tempos, os cos-
tumes, e os povos , e não póde ser o bello, pois que o
bello é um, e existe absolutamente . D'ahi vem que toda
a instituição que serve para purificar a alma, para des-
empecel-a de desordens e dissonancias, e para formar
n'ella a virtude, é, por essa mesma qualidade, propicia
á mais bella musica, ou á mais perfeita imitação do
bello . Se essa instituição, porém, participa da natureza
O GENIO DO CHRISTIANISMO

religiosa, então possue ella as duas condições essen-


ciaes á harmonia, o bello e o mysterioso. O hymno
vem-nos dos anjos , e a fonte das harmonias brota
do céo .
E' a religião que faz gemer, alta noite, a vestal no
seu tranquillo choro ; é a religião que suavemente canta.
ao pé do leito do infeliz . Jeremias deve-lhe as suas la-
mentações, e David as suas sublimes penitenciaes . Mais
altiva sob a velha aliança, só pintava dôres de monar-
chas e prophetas ; mais modesta e não menos real sob
a lei nova, os seus suspiros quadram tanto aos pode-
rosos como aos fracos , porque em Jesus Christo en-
controu ella a humildade alliada á grandeza .
Accrescentemos que a religião christã é essencial-
mente melodiosa, pela razão unica de amar a solidão .
Não que ella seja inimiga do mundo ; pelo contrario,
se lhe mostra prasenteira : mas a celestial philomela
prefere os ignorados ermos . Está como estranha um
pouco sob o tecto dos homens ; antes quer as florestas,
que são os palacios de seu pae, e sua antiga patria.
De lá é que alça a voz do firmamento, no meio dos
concertos da natureza : a natureza narra sem cessar as
glorias do Creador, e não ha ahi nada mais religioso que
os cantares que desferem ao vento as carvalheiras e os
cannaviaes do deserto .
Por isso, o musico , que quer acompanhar a religião
nas suas relações , é obrigado a aprender a imitar as
harmonias do ermo : incumbe -lhe conhecer os sons que
resôam nas arvores e nas aguas ; escutar o zunido do
vento nos claustros , e os murmurios que ciciam nos
templos gothicos, nas relvas dos cemiterios e nas cata-
cumbas dos mortos .
O christianismo inventou o orgão, e deu suspiros até
ao bronze . Foi elle quem salvou a musica nos seculos
barbaros . Onde quer que assentou seu solio , ahi se
formou um povo que cantou naturalmente como as
aves . Quando policiou os selvagens foi por meio de
canticos; e o iroquez, que reagira aos dogmas, succum-
biu ás harmonias .
PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 9

Religião de paz ! Vós não impozestes aos homens ,


como os demais cultos, preceitos de odio e guerra : amor
e harmonia foi o que sómente lhes preceitastes .

CAPITULO II

O canto gregoriano

Se a historia não provasse que o canto gregoriano


é a reliquia d'essa antiga musica, de que tantos milagres
se contam, bastaria examinar-lhe a escala para o con-
vencimento de sua remota origem. Antes de Guido
d'Arezzo não se elevava além da quinta, começando por
dó, ré, mi, fa, sol . Estes cinco tons são a gamma natu-
ral da voz , dão uma phrase musical cheia e agradavel .
M. Burette conservou-nos algumas arias gregas .
Comparadas ao cantochão, reconhece -se-lhes o mesmo
systema . A maior parte dos psalmos são sublimes de
gravidade, principalmente o Dixit Dominus Domino
meo, o Confitebor tibi, e o Laudate, pueri . O In exitu,
obra de Rameau, tem um caracter menos antiquado :
é talvez coevo da Ut queant laxis , isto é , do seculo de
Carlos Magno .
O christianismo é serio como o homem, e até no
sorriso tem gravidade . Nada tão mavioso como os sus-
piros que os nossos infortunios arrancam á religião . O
officio dos defuntos é uma obra prima : parece que se
escutam as cavas resonancias dos sepulchros . A darmos
credito a uma antiga tradição , o canto que liberta os
mortos, como o denomina um dos nossos melhores
poetas, é o mesmo que se entoava nas pompas funebres
de Athenas, no templo de Pericles .
No officio da semana santa distingue- se a Paixão ,
por S. Matheus . O recitativo do historiador, os gritos
da populaça judaica , a nobreza das respostas de Jesus,
formam um drama pathetico .
Pergoleze ostentou no Stabat Mater a riqueza da sua

1
10 O GENIO DO CHRISTIANISMO

arte ; mas excedeu elle o singelo canto da Igreja ? Variou


a musica sobre cada estrophe, e, todavia, o caracter
essencial da tristeza está na repetição do mesmo sen-
timento, e, digamol-o assim, na monotonia da dôr. Di-
versas razões pódem excitar as lagrimas, mas as lagri-
mas têm sempre uma amargura similhante : e demais ,
é raro chorar simultaneamente um complexo de males ;
quando as feridas se multiplicam, uma ha sempre mais
corrosiva que as outras, que vem a absorver as penas
menores . D'ahi vem o enlevarem-nos ainda os nossos
velhos rimances francezes . Esta toada igual, que se re-
pete em cada copla com differentes palavras, imita per-
feitamente a natureza : o homem que soffre divaga assim
com seus pensamentos por differentes imagens, ao
passo que o essencial de suas tristezas é sempre o
mesmo.
Pergoleze desconheceu, pois , esta verdade inclusa.
na theoria das paixões, logo que quiz diversificar um
suspiro da alma do outro suspiro que o precedeu . Onde
quer que ha variedade, ha distracção, onde ha distra-
cção, não ha tristeza : tão necessaria é a unidade do
sentimento ! tão fraco é o homem n'aquella mesma parte
onde se accumula a sua força, na dôr, queremos dizer .
A lição das Lamentações de Jeremias tem um cara-
cter particular ; embora retocada pelos modernos, 0
essencial d'ella é hebraico, ao que nos parece, porque
em nada se assimilha ás arias gregas do cantochão .
O Pentateuco cantava-se em Jerusalem, como as buco-
licas, n'um tom cheio e suave : as prophecias diziam - se
em tom rude e pathetico, e os psalmos tinham uma
entoação extatica que lhes era particularmente consa-
1
grada. Agora tornamos a essas magestosas reminis-
cencias, que o culto catholico suggere . Moysés e Ho-
mero, o Libano e o Cytheron , Solyma e Roma, Baby-
lonia e Athenas, deixaram seus despojos aos nossos
altares .
Emfim, é o enthusiasmo propriamente que inspira

1 Bonnet, Historia da musica e seus effeitos.


PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 11

o Te-Deum . Quando, represado nos plainos de Lens ou


Fontenoy, rodeado de balas e sangue ainda fumegante,
um exercito francez, ao estridor dos clarins e das trom-
betas, rareado pelo fogo da refrega , dobrava o joelho ,
e entoava o hymno ao Deus das batalhas ; ou quando ,
no meio dos lampadarios, dos altares dourados , dos
cirios, dos incensos , dos suspiros do orgão, do balançar
dos sinos, do fremir dos fagotes e rabecões, esse hymno
resoava nas vidraças, nos subterraneos e zimborios
d'uma basilica, então não havia homem ahi que se não
sentisse em extasis, que não experimentasse algum
movimento d'esse delirio , que fazia proromper em car-
mes Pindaro nos bosques d'Olympia, ou David na tor-
rente de Cedron .
De resto, fallando só dos cantos gregos da Igreja,
conhece -se que não empregamos todo o nosso cabedal ,
pois poderamos mostrar Ambrosio, Damasio, Leão , Gre-
gorio, trabalhando por si mesmos na restauração da
arte musical : poderamos citar as obras primas da mu-
sica moderna, composta para as festividades christãs ,
e finalmente todos os grandes mestres, Vinci, Leo,
Hasse, Galuppi , Durante , educados, formados , ou pro-
tegidos nos oratorios de Veneza, Napoles, Roma, e na
côrte dos soberanos pontifices .

CAPITULO III

Parte historica da pintura dos modernos

Conta a Grecia que uma donzella, enxergando a


sombra do seu amante sobre um muro, desenhou os
contornos d'esta sombra . D'este modo , no pensar dos
antigos , uma paixão voluvel produziu a arte das mais
perfeitas illusões .
A escóla christã quiz outro mestre : reconhece- o no
Artista que, amassando entre as mãos um pouco de
barro, proferiu estas palvras : Façamos o homem á nossa
similhança. Logo, para nós , o primeiro traço do dese-
12 O GENIO DO CHRISTIANISMO

nho existiu na ideia eterna de Deus, e a primeira estatua


que o mundo viu foi essa famosa argilla animada pelo
sôpro do Creador.
Ha uma força de erro que obriga ao silencio como a
força da verdade : uma e outra, levadas ao apuro , impri-
mem convicção, uma negativa, outra affirmativamente .
Assim, pois, ao ouvir-se sustentar que o christianismo
é inimigo das artes, fica-se mudo de espanto : porque
instantaneamente occorrem Miguel Angelo , Raphael ,
Carrache, Dominiquino, Le Sueur, Poussin, Coustou ,
e tantos outros artistas , cujos nomes encheriam vo-
lumes.
No meiado do quarto seculo, o imperio romano, in-
vadido por barbaros e dilacerado pela heresia, caíu em
ruinas, de todas as partes . As artes só acharam refugio
entre os christãos e imperadores orthodoxos . Theodo-
sio, por uma lei especial De excusatione artificium ,
desonerou os pintores e suas familias de todos os tri-
butos e aquartelamento de soldados . Os Padres da Igreja
não cessam de elogiar a pintura . S. Gregorio exprime- se
d'um modo distincto : Vidi saepius inscriptionis ima-
ginem, et sine lacrymis transire non potui, cum tam
1
efficaciter ob oculos poneret historiam ; ¹ era um painel
representando o sacrificio de Abrahão . S. Basilio en-
carece mais o encomio, pois assevera que os pintores
conseguem tanto com os seus quadros, como os oradores
com a sua eloquencia . 2 Um monge chamado Méthodius
pintou no oitavo seculo o Juizo final, que converteu Bo-
goris , rei dos bulgaros . Os padres haviam accumulado
no collegio da Orthodoxia , em Constantinopla, a mais
insigne bibliotheca do mundo, e as obras primas das
artes : via- se ahi com particularidade a Venus de Pra-
xitelles, o que ao menos prova que os fundadores do
culto catholico não eram barbaros sem gosto , nem
monges, beatos, escravos d'uma absurda superstição..

1 Segundo Conc. de Nicea, act. XL.


2 S. Basilio, xx.
3 Curopal .; Cedren.; Zonar.; Maimb. , Hist. dos Iconocl.
4 Cedren .; Zonar .; Constant .; Maimb.; Hist. dos Iconocl.
PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 13

Este collegio foi destruido pelos imperadores icono-


clastas . Os professores fôram queimados vivos , e só
com grande perigo de vida os christãos conseguiram
salvar a pelle do dragão de cento e vinte pés de com-
primento, onde as obras de Homero estavam escriptas
em lettras de ouro . Fôram presa das chammas os pai-
neis das igrejas . Estupidos e furiosos heresiarchas ,
muito parecidos com os puritanos de Cromwel, destro-
çaram a golpes de espada os mosaicos da igreja de
nossa Senhora de Constantinopla, e do palacio dos Bla-
quernes . Tamanho foi o odio e a sêde de perseguições ,
que nem aos pintores perdoaram : foi-lhes prohibido,
sob pena de morte, continuarem seus estudos . O monge
Lazaro teve a coragem de ser martyr da arte . Debalde
Theophilo lhe fez queimar as mãos para o embaraçar
de suster o pincel ; escondido no subterraneo da igreja
de S. João Baptista, o religioso pintou com os dedos
jarretados o grande santo , cujo cliente elle era ; ¹ digno
por certo de instituir-se o advogado dos pintores , e
ser incorporado n'essa familia excelsa, que o sôpro do
espirito arrebata acima da humanidade .
Sob o reinado dos godos e lombardos , o christianis-
mo continuou a estender mão valedora aos talentos .
Notam -se mórmente esses esforços nas igrejas edifica-
das por Theodorico, Lutprand , e Dedier. O mesmo
espirito de religião inspirou Carlos Magno ; e a igreja
dos Apostolos , erecta pelo grande principe em Floren-
ça, passa ainda hoje por um monumento insigne . 2
Finalmente, no seculo treze, a religião christã, de-
pois de arcar com mil empêços , reconduziu em trium-
pho á terra o côro das musas . Tudo se fez a pró das
igrejas, com a protecção dos pontifices e soberanos re-
ligiosos . Bouchet, grego d'origem, foi o primeiro ar-
chitecto ; Nicolau , o primeiro esculptor ; e Cimabué, o
primeiro pintor que exhumaram o gosto antigo das
ruinas de Roma e Grecia . Desde então , as artes, em
diversas mãos e genios, chegaram até ao seculo de

1 Maimb., Hist. dos Iconocl.; Cedren ; Curopal .


2 Vasari., Poem . del. Vit.
14 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Leão X, em que fulguraram cómo astros Raphael e Mi-


guel Angelo.
Não pertence ao nosso trabalho historiar plenamente
a arte . O que nos incumbe indigitar são os pontos em
que o christianismo é mais favoravel que qualquer outra
religião á pintura . Facil é provar tres coisas : 1. , que
a religião christã, de seu natural espiritual e mystica ,
presta á pintura um bello ideal mais divino e perfeito
que o oriundo d'um culto material ; 2.ª, que, corrigindo
a fealdade das paixões, ou combatendo-as com força ,
dá toques mais sublimes á figura humana, e faz melhor
sentir a alma nos musculos e nos vinculos da materia ;
3. , que ella, em summa, ministra ás artes assumptos
mais bellos, mais ricos, mais dramaticos, mais patheti-
cos, que os assumptos mythologicos .
As duas primeiras proposições fôram amplamente
desenvolvidas no nosso exame da poesia ; agora nos
occuparemos só da terceira .

CAPITULO IV

Assumptos de quadros

Verdades fundamentaes :
1. Os assumptos antigos ficaram em legado aos
modernos pintores ; de modo que ao cabedal das scenas
mythologicas ajuntam o das scenas christãs .
2. Que o christianismo falla mais que a fabula ao
talento, prova-se no melhor exito que, em geral, os
nossos pintores têm tido no desempenho de assumptos.
sagrados .
3. Os costumes modernos adaptam-se pouco ás ar-
tes d'imitação : porém o culto catholico prestou á pin-
tura costumes tão nobres como os da antiguidade . ¹

1 Esses costumes dos padres e primitivos christãos, costumes


que herdaram nossos monges, são a tunica dos antigos philosophos
gregos, chamada pallium. Isto mesmo foi motivo de perseguição aos
PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 15

3
Pausanias, 2 Plinio, e Plutarco 4 deixaram -nos a
descripção dos quadros da escola grega. Zeuxis tomára
como traça das suas principaes obras Penélope , Helena,
e o Amor; Polygnoto configurára nos muros do templo
de Delphos o saque de Troya, e a descida de Ulysses
aos infernos . Euphranor pintou os doze deuses ; Theseu
dando as leis e as batalhas de Cadmea, de Leuctres e
de Mantinea ; Apelles representou Venus Anadyomena,
sob as feições de Campaspe ; Etion as bodas de Ale-
xandre e Roxana, e Timantho o sacrificio de Ephigenia .
Cotejae estes assumptos com os christãos , e conhe-
cer-lhe-heis a inferioridade . O sacrificio de Abrahão ,
por exemplo, é tão pathetico e mais simples em gosto
que o de Ephigenia, porque não tem soldados, nem
grupo, nem tumulto, nem esse movimento que serve
para distrahir da scena . E ' o viso d'uma montanha ;
é um patriarcha que conta seus annos por seculos , é
um cutélo erguido sobre um filho unico, é o braço de
Deus suspendendo o braço paternal . As historias do
Velho Testamento têm enchido os nossos templos de
quadros identicos ; e sabido é quanto os habitos patriar-
chaes, os costumes do Oriente, a magestosa natureza
dos animaes e solidões da Asia , são favoraveis ao pincel .
O Novo Testamento muda o genio da pintura. Sem
The apoucar a sublimidade, dá-lhe mais ternura. Quem
não ha cem vezes admirado as Natividades, as Virgens,
e o Menino, as Fugidas para o deserto, as Coroações
de espinhos, os Sacramentos , as Missões dos apostolos ,
os Descendimentos da cruz, as Mulheres no santo sepul-
chro ? Bacchanaes , festas de Venus, raptos, metamor-
phoses, pódem tocar o coração como os quadros tirados
da Escriptura ? O christianismo mostra-nos em tudo a

fieis ; logo que os romanos ou judeus os viam assim trajados, excla-


mavam o impostor grego ! (Hiero, Ep. X ad Furiam). Pode consul-
tar-se Kort. Holt., de Morib christ., cap. 11 , pag. 23 ; e Bar., an. LVI ,
n.º 11. Tertuliano escreveu um livro inteiro (De Palio) em tal as-
sumpto.
1 Pausan., liv. v.
2 Plin., liv. xxxv, eap. vin -ix.
3 Plut., In Hipp . , Pomp., Lucul,, etc.
16 O GENIO DO CHRISTIANISMO

virtude e o infortunio, e o polytheismo é um culto de


crimes e prosperidades . A nossa religião é a nossa his-
toria : foi para nós que tantos espectaculos tragicos se
déram ao mundo : somos partes nas scenas que o pincel
manifesta, e as mais moraes e affectuosas concordan-
cias são reproduzidas nos assumptos christãos . Sêde
eternamente glorificada, religião de Jesus Christo, que
representastes no Louvre o Rei dos reis crucificado, o
Juizo final no tecto da sala dos nossos juizes, a Resur-
reição no Hospital geral, e o Nascimento do Salvador
no asylo dos orphãos abandonados de pae e mãe.
Finalmente, a respeito dos assumptos de quadros ,
podemos aqui dizer o que n'outra parte dissemos ácerca
dos de poemas : o christianismo brotou para o pintor
uma parte dramatica muito superior á da mythologia.
A' religião tambem devemos Claude de Lorrain, bem
como Delille e Saint-Lambert. 1¹ Mas tanto raciocinar é
vão : examinae a galeria do Louvre, e dizei ainda, se
podeis, que o genio do christianismo é pouco favoravel
ás bellas-artes .

CAPITULO V

Esculptura

O que se disse da pintura póde igualmente appli-


car-se á esculptura, afóra as pequenas discrepancias
provenientes da parte technica de cada uma das artes .
A estatua de Moysés, por Miguel Angelo, em Roma;
Adão e Eva, por Baccio, em Florença ; o grupo do voto
de Luiz XIII , por Costou, em Paris ; o S. Diniz, do mes-
mo; o jazigo do cardeal de Richelieu, obra do duplicado
genio de Lebrun e Girardon ; o monumento de Colbert,
executado conforme o desenho de Lebrun , por Coysevox
e Tuby; o Christo, a mãe piedosa , os oito apostolos , de
Bouchardon ; e muitas outras estatuas do genero reli-

1 Vêde no fim a nota 1.a


PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 17

gioso, mostram que o christianismo anima por igual a


tela o marmore.
Seria, comtudo , para desejar que os esculptores de
futuro banissem de suas composições funebres esses
esqueletos que collocavam nos jazigos : não está ahi o
genio do christianismo, que symbolisa a morte do justo
em emblemas agradaveis .
1
Convém, outrosim, não representar cadaveres, ¹
seja qual for o merito da execução, ou a humanidade
succumbindo a longas enfermidades. 2 Um guerreiro ,
no vigor dos annos, expirando no campo da honra, póde
ser grandioso ; mas um corpo alquebrado de molestias ,
é imagem repulsiva ás artes , a menos que não interve-
uha um milagre, como no tumulo de S. Carlos Borro-
meu. 3 Que no tumulo do christão se colloquem de um
lado os prantos da familia e as saudades dos homens ,
do outro o sorriso da esperança e os jubilos do céo : um
tal sepulchro, em cujos dois lados se vissem assim as
scenas do tempo e da eternidade, seria admiravel . A
morte podia ahi apparecer, mas sob a fórma d'um anjo
amavel e severo a um tempo : porque o tumulo do justo
deve sempre suggerir-nos as palavras de S. Paulo : O'
morte ! onde está a tua victoria ? que fizeste do teu
aguilhão ? 4

CAPITULO VI

Architectura

QUARTEL DOS INVALIDOS

Tratando da influencia do christianismo nas artes,


não se precisa subtileza nem eloquencia ; ahi estão os

1 Como no mausoleo de Francisco 1 e Anna de Bretanha .


2 Como no tumulo do duque d'Harcourt.
3 A pintura comporta melhor a representação do cadaver que a
esculptura, porque n'esta o marmore offerece formas palpaveis e frias
que a aproximam muito da verdade.
4 I Cor., cap. xx, v . 55.
2
18 O GENIO DO CHRISTIANISMO

monumentos que respondam aos detractores do culto


evangelico : Basta, por exemplo, nomear S. Pedro de
Roma, Santa Sophia de Constantinopla, e S. Paulo de
Londres, para persuadir que devemos á religião as tres
obras primas da architectura moderna .
O christianismo instituiu na architectura, como nas
outras artes , as verdadeiras proporções . Os nossos tem-
plos, maiores que os de Athenas , e menos agigantados
que os de Memphis, estão n'aquella illustrada mediania
onde imperam o bello e o bom gosto por excellencia .
Com o auxilio do zimborio, desconhecido aos antigos,
a religião fez uma feliz mistura do que ha mais arrojado
na ordem gothica, e do que as ordens gregas têm de
mais simples e gracioso .
Esta cupula que, na maior parte das nossas igrejas,
está convertida em campanario, dá ás povoações e ci-
dades um caracter moral que faltava ás cidades antigas .
Os olhos do viajante onde primeiro se fitam é na flexa
religiosa, cujo aspecto desperta muitos sentimentos e
recordações : é a funebre pyramide em redor da qual
dormem os avoengos ; é o monumento de gôso , onde
o sacro bronze annuncia a vida do fiel ; é lá que os es-
posos se juntam ; é lá que os christãos se prostram ante
o altar, o fraco pedindo força a Deus, o culposo pedindo
a misericordia divina, o innocente louvando o amantis-
simo Deus . Collocae um campanario na paisagem de
aspecto nú, ermo e triste, e logo a animareis : as suaves
ideias de pastor e rebanho, de gasalhado para o viajante,
de esmola para o peregrino, de hospitalidade e frater-
nidade christã, surgem de todas as partes .
Quanto mais crentes e piedosas fôram as idades que
erigiram os nossos monumentos, mais admiraveis são
estes pela grandeza e nobreza do seu caracter. Um no-
tavel exemplo se vê no Quartel dos Invalidos e na Escóla
militar. Dir- se- ia que o primeiro elevou ao céo suas
abobadas á voz do seculo piedoso , e que o segundo bai-
xou para o chão á palavra do seculo atheu .
Tres corpos principaes, formando com a igreja um
quadrilongo, constituem o edificio dos Invalidos . Porém
que fino gosto n'esta simplicidade ! que gentileza n'a-
PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 19

quelle paço, que não é mais que um claustro militar,


onde a arte mesclou as ideias guerreiras com as reli-
giosas, e casou a imagem d'um arraial de soldados ve-
lhos ás reminiscencias compassivas d'um hospicio ! E'
simultaneamente o padrão do Deus dos exercitos, e do
Deus do Evangelho . A ferrugem dos seculos , que prin-
cipia a empardecel-o , dá-lhe magestosa analogia com
esses veteranos, ruinas animadas, que passeiam de-
baixo desses velhos porticos . Nos primeiros páteos a
ideia da guerra sobresahe em tudo ; fossos , explanadas,
baluartes, artilheria, tendas, sentinellas . Ide mais den-
tro ; o ruido esmorece gradualmente, e vae escoar- se na
igreja, onde reina profundo silencio . Este religioso edi-
ficio está collocado por traz dos alojamentos militares,
como a imagem do repouso e da esperança no desfecho
de uma vida trabalhada de perigos e inquietações .
O seculo de Luiz XIV é talvez o unico que bem co-
nheceu as conveniencias moraes, e que sempre fez das
artes o que devia fazer, nem mais nem menos . O ouro
do commercio elevou as faustosas columnatas do hos-
pital de Greenwich, em Inglaterra ; mas mais soberbo
e magestoso é o edificio dos Invalidos . Nação , que taes
palacios edificou para a velhice dos seus exercitos , re-
cebeu o poder da espada, e o sceptro das artes .

CAPITULO VII

Versailles

A pintura, a architectura, a poesia, e a grande elo-


quencia, degeneram sempre nos seculos philosophicos .
E' que o espirito raciocinador, apagando a imaginação,
mina os alicerces das bellas artes . Crê- se ser mais ha-
bil, porque se corrigem alguns erros em physica, os
quaes são substituidos por outros erros de entendi-
mento ; e retrocede -se na verdade, pois que se perde
uma das mais bellas faculdades do espirito .
Em Versailles é que as pompas da idade religiosa
20 O GENIO DO CHRISTIANISMO

da França haviam confluido . Um seculo é apenas pas-


sado, e todos esses arvoredos , que resoavam com o ru-
mor das festas, apenas têm de vida a voz da cigarra
e do rouxinol . Esse palacio, que só de si é uma grande
cidade, esses escadós de marmore que parecem topetar
as nuvens, essas estatuas, lagos, e bosques, estão,
actualmente, em desmoronamente, cobertos de musgo,
estanques, ou arrasados, e todavia nunca este aposento
de reis pareceu mais pomposo nem menos solitario .
Outr'ora era tudo vasio ahi : a pequenez da derradeira
côrte (antes que a sua grandeza lhe viesse do infortunio)
parecia demasiado á sua vontade nos vastos retiros de
Luiz XIV .
Quando o tempo abala os imperios, ha um grande
nome, associado ás suas ruinas, que as cobre . Se a
nobre miseria do guerreiro succede hoje em Versailles
á magnificencia das côrtes , se os paineis de milagres
e martyres lá substituem as pinturas profanas, de que
ha de offender-se por tal a sombra de Luiz XIV ? Reli-
gião, artes e exercitos devem-lhe a elle a sua illustra-
ção : glorioso é, pois, que as ruinas do seu palacio sir-
vam de abrigo ás ruinas do exercito, das artes e da
religião .

CAPITULO VIII

Das igrejas gothicas

Cada coisa no seu logar, verdade trivial á força de


repetida ; mas sem a qual é impossivel a perfeição . Os
gregos amariam tanto um templo egypcio em Athenas,
como os egypcios um templo grego em Memphis . Estes
dois monumentos, trocados os logares , perderiam sua
principal belleza, isto é, as suas analogias com as insti-
tuições e costumes dos povos . Esta reflexão é applica-
vel aos monumentos do christianismo . E' maravilhoso
até observar que n'este seculo incredulo, os poetas e
romancistas, por um natural retrocesso aos costumes
de nossos maiores, se aprazem em introduzir nas suas
PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 21

ficções os subterraneos, phantasmas, castellos e tem-


plos gothicos : tão encantadoras são as memorias liga-
das á historia da religião e da patria ! As nações não
lançam de si as velhas costumeiras como um velho
trajo . E' possivel tirar-lhes alguns pedaços, mas outros
vão ficando , que cerzidos aos trajos novos, formam um
mixto de côres desgracioso .
Erijam -se embora elegantissimos e luminosos tem-
plos gregos, para congregar o bom povo de S. Luiz , e
fazel- o adorar um Deus metaphysico : o povo será sem-
pre saudoso de nossa Senhora de Reims e de Paris,
d'essas basilicas afumeadas, cheias de gerações que
passaram , e almas de seus avós : será sempre saudoso
da jazida d'alguns senhores de Montmorency, sobre
a qual sohia de ajoelhar-se durante a missa, sem es-
quecer a sagrada fonte onde, ao nascer, fôra levado .
E ' que tudo isso está essencialmente alliado aos nossos
costumes ; é que um monumento só é veneravel depois
que uma longa historia do passado está, para assim
dizer, esculpturada nas suas abobadas entenebrecidas
pelos seculos . D'ahi vem não haver nada maravilhoso
n'um templo que vimos edificar, e cujos vãos e cupulas
se construiram á nossa vista . Deus é a eterna lei ; sua
origem e tudo que respeita ao seu culto deve perder- se
na noite dos tempos .
Não podia entrar- se n'uma igreja gothica sem expe-
rimentar uma especie de calefrio, e um vago sentimento
da divindade . De subito, nos voava o espirito ao tempo.
em que os cenobitas, após a vida contemplativa nas
mattas de seus mosteiros, vinham prostrar- se ao altar,
e entoar louvores ao Senhor, pela calada da noite . A
velha França como que resurgia, com seus usos sin-
gulares, o povo tão differente do que é hoje: vinha o
recordar as revoluções , lavores, e artes d'esse povo .
Quanto mais remotos de nós, mais magicos nos pare-
.
ciam esses tempos, mais nos enchiam d'essas ideias
que terminam sempre em reflexões ácerca do nada do
homem e celeridade da vida .
222

CHRISTIANISMO
DO
GENIO
O
A ordem gothica, com suas barbarescas proporções,
tem , todavia, uma peculiar belleza . ¹
As florestas fôram os primeiros templos da divin-
dade, e lá hauriram os homens a primeira ideia archi-
tectonica. Conforme os climas, devia de variar essa
arte . Os gregos contornaram a elegante columna co-
rynthia com o seu capitel de folhagem, pelo molde da
palmeira. 2 Os pilares enormes de vetusto estylo egy-
pcio representam o sycomoro, a figueira oriental, a
bananeira, e a maior parte das arvores gigantescas
d'Africa e Asia .
As florestas gaulezas tambem passaram aos templos
de nossos paes, e as nossas carvalheiras mantiveram
assim a sagrada origem d'ellas . Essas abobadas cinze-
ladas em folhagem, esses umbraes que escoram as pa-
redes e rematam rapidamente como troncos partidos ,
a frescura dos tectos, as trevas do santuario, as naves
obscuras, os passadiços secretos, as portadas profundas,
tudo simula os labyrinthos das selvas na igreja gothica,
tudo nos insinua o religioso terror, os mysterios e a
divindade d'esses bosques . As duas alterosas torres ,
erectas á entrada do edificio, sobrelevam os olmos e o
teixo do cemiterio, e recortam-se pittorescas no azul
do céo . Umas vezes o sol nado illumina suas gemeas
frontes ; outras vezes parecem coroadas d'um capitel de
nuvens, ou engrossadas por um cinto de vapores atmos-
phericos . Até as aves parece enganarem- se , e tomal-as
pelas arvores das suas florestas : as gralhas esvoaçam
em redor das suas cupulas, e empoleiram-se nas gale-

1 Crê-se que a herdamos dos arabes, com a esculptura do mes-


mo estylo. A affinidade d'ella com os monumentos do Egypto mais
nos induziria a crêr que nos foi transmittida pelos christãos primi-
tivos do Oriente ; mas a nós mais nos apraz referir a sua origem á
natureza.
2 Vitruvio conta d'outro theor a invenção do capitel ; mas isto
não impugna o principio geral de que a architectura nasceu nas sel-
vas. O que pode é causar espanto de que a variedade da columna
não condiga com a variedade das arvores. Imaginemos, por exemplo,
uma columna que podéra chamar-se palmista, e que seria a repre-
sentação natural da palmeira . Um orbe de folhas um pouco recurvas
e esculpidas no topo d'um breve fuste de marmore, faria, a nosso
vêr, agradavel effeito em um portico.
PARTE TERCEIRA LIVRO PRIMEIRO 23

rias . Mas de subito confusos rumores surdem do cimo


d'essas torres, e afugentam os passaros apavorados . O
architecto christão, não contente com edificar florestas,
quiz, digamol-o assim, imitar-lhes os murmurios : e,
por meio do orgão, do bronze suspenso, identificou com
os templos gothicos o reboar dos ventos e trovões , que
rugem nos reconcavos das florestas . Os seculos , evo-
cados por esses sons religiosos , desferem suas antigas
vozes do seio das pedras , e suspiram na vasta basilica :
o santuario muge como o antro da sibylla antiga ; e ,
em quanto o bronze se balancêa estrondoso sobre vossa
cabeça, os subterraneos abobadados da morte se calam
profundamente sob vossos pés .
LIVRO SEGUNDO

PHILOSOPHIA

CAPITULO I

Astronomia e Mathematica

Consideremos agora a influencia do christianismo


na litteratura em geral . Podemos classifical-a sob tres
pontos principaes : philosophia, historia, eloquencia.
Por philosophia, entendemos aqui a sciencia em to-
dos os seus ramos .
Vêr-se-ha que não atacamos a sabedoria , defendendo
a religião : longe de nós confundir a sophistica arrogan-
cia com os sãos conhecimentos do coração e do espirito .
A verdadeira philosophia é a innocencia da vilhice dos
povos, quando elles cessaram de ser virtuosos por ins-
tincto, e que só o puderam ser pela razão : esta segunda
innocencia é menos segura que a primeira ; mas mais
sublime, se é possivel o logral -a.
Por qualquer face examinado , vê- se que o culto evan-
gelico engrandece as ideias, e é proprio para a expan-
são dos sentimentos . Os seus dogmas, nas sciencias ,
não contrariam alguma verdade natural , a sua doutrina
não prohibe estudo algum . Um philosopho antigo ia
sempre de encontro a alguma divindade na sua carreira ;
os sacerdotes de Apollo ou Jupiter condemnavam - o ,
sob pena de desterro ou morte, a ser absurdo toda a
vida. Porém, o Deus dos christãos, como não se alojou
mesquinhamente n'um sol, deixou os astros ás vãs pes-
quizas dos sabios : lançou- lhes o mundo diante como
26 O GENIO JO CHRISTIANISMO

1
pábulo ás suas disputações . O physico póde pesar o
ar no seu tubo, sem receio de offender Juno . Não é dos
elementos do nosso corpo, mas sim das virtudes da
nossa alma, que o soberano Juiz nos pedirá conta um
dia .
Sabemos que se não esquecerão de recordar algumas
bullas da santa Sé, ou alguns decretos da Sorbonna,
condemnando tal ou tal descobrimento philosophico ;
mas quantos decretos, em favor d'esses mesmos desco-
brimentos , não pódem citar-se emanados de Roma ?
Que ha ahi que reparar, senão que os padres são ho-
mens como nós, e uns se têm mostrado mais alumia-
dos que outros, conforme o curso natural dos seculos ?
Para que a nossa primeira asserção tenha uma base,
basta que o christianismo por si mesmo nada haja dito
contra as sciencias .
Advirtamos bem que a Igreja protegeu quasi sempre
as artes, com quanto algumas vezes desalentasse os
estudos abstractos ; n'isto mostrou ella a sua costumada
sapiencia. Atormentem-se embora os homens , jámais
comprehenderão a natureza, porque não foram elles que
disseram ao mar : Virás até aqui: não passarás além; e
aqui se quebrará a soberbia das tuas vagas. 2 Systemas
succederão eternamente a systemas, e a verdade ficará
sempre desconhecida . Que não aprasa um dia á na-
tureza, diz Montaigne, abrir-nos seu seio ? O' Deus !
quantos abusos, quantos erros não achariamos em nossa
pobre sciencia ! 3
Os antigos legisladores, consentaneos n'este ponto ,
como em outros muitos, com os principios da religião
4
christã, impugnavam os philosophos, e honorificavam
á larga os artistas . Essas suppostas perseguições do
christianismo contra as sciencias devem tambem ser

1 Ecclesiastico 111 , V. 11.


2 Job. , XXXVII , v. 11 .
3 Ensaios, lib. 11, cap. XII.
4 Xenoph . , Hist. græc.; Plut. , Mor.; Plat. , In Thaed., in Repub.
5 Os gregos encrudesceram o odio aos philosophos até ao crime ,
pois que fizeram morrer Socrates.
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 27

arguidas aos antigos, nos quaes, não obstante, reconhe-


cemos grande saber. No anno 591 de Roma, o senado
promulgou um decreto que desterrava os philosophos
da cidade ; e, seis annos depois, Catão deu-se pressa em
despedir Carnéades, embaixador d'Athenas, « com medo,
dizia elle, que a mocidade, affeiçoando-se ás argucias
gregas, perdesse a simpleza dos velhos habitos » . Se o
systema de Copernico foi repellido da côrte de Roma,
não teve igual destino entre os gregos ? «Aristarcho , diz
Plutarco, julgava que os gregos deviam processar Clean-
tho de Samos , e condemnal- o de blasphemia contra os
deuses, porque aventára o mover-se o foco do mundo ;
sendo certo que este homem, querendo salvar as appa-
rencias, suppunha que o céo permanecia immovel, e
era a terra que se movia pelo circulo obliquo do zodia-
1
co, girando em redor do seu eixo » . ¹
Antes é certo que a moderna Roma se mostrou mais
illustrada, pois que o mesmo tribunal ecclesiastico , que
condemnou primeiro o systema de Copernico, permit-
tiu, seis annos depois, ensinal-o como hypothese . 2 E,
demais, esperar-se-ia d'um padre romano mais lucidez
astronomica que a de Tycho-Brahe, que continuava a
negar o movimento da terra ? Finalmente, um papa
Gregorio, reformador do calendario ; um monge Bacon ,
o inventor do telescopio, talvez; um cardeal Cuza, um
padre Gassendi, não foram protectores, os luminares
da astronomia ?
Platão, esse genio amorosissimo das altas sciencias ,
diz formalmente em uma das suas obras mais preclaras ,
que os altos estudos não utilisam a todos , mas sim a

1 Plut., Da face que apparecia dentro da orbita da lua, cap. IX.


Sabido é que ha erro no texto de Plutarco , e que, pelo contrario, era
Aristarcho de Samos que Cleantho queria fazer perseguir por sua opi-
nião sobre o movimento da terra : isto nada altera o que queremos
provar.
2 O abbade Barthélemy encontrou o prelado Baiardi occupado
em responder aos monges da Calabria, que o tinham consultado so-
bre o systema de Corpernico. «O prelado respondia longa e sabiamente
as suas perguntes, expunha as leis da gravitação, pronunciava- se con-
tra a illusão dos nossos sentidos , e terminava por aconselhar aos mon.
ges que não revolvessem as cinzas de Copernico." (Voyage en Italie).
28 O GENIO DO CHRISTIANISMO

um pequeno numero; e ajunta esta reflexão, confirmada


pela experiencia, « que uma absoluta ignorancia não é
o peior mal, nem é o para mais se temer ; e que um
grosso cabedal de sciencia mal encaminhada é muito
peior ainda». ¹1
Pelo que, se a religião a tal respeito precisasse jus-
tificar-se, não nos minguariam auctoridades entre os
antigos, nem mesmo entre os modernos . Hobbes es-
creveu muitos tratados contra a incerteza da sciencia
a mais certa de todas, a mathematica. No que se inti-
tula : Contra Geometras, sive contra phastum professo-
rum, analysa uma por uma as demonstrações de Eucli-
des, e mostra o que ha n'ellas de falsidade, incerteza,
e arbitrio. O modo como se apresenta é digno de re-
paro : Itaque per hanc epistolam hoc ago ut ostendam
tibi non minorem esse dubitandi causam in scriptis
mathematicorum, quam in scriptis physicorum , ethico-
rum , 3 etc. « Far-te-hei vêr n'este tratado que não ha
menos motivos de duvida nas mathematicas, que em
physica, em moral , etc. »
Mais energicamente contra as sciencias se expressa
Bacon, ainda quando parece defendel-as . No entender
d'esse grande homem está provado « que uma ligeira
tintura de philosophia póde encaminhar á negação do
Supremo Sêr ; mas que um saber mais solido conduz o
4
homem a Deus . >>
Se esta ideia é exacta, quão terrivel é ! por quanto,
por um só genio capaz de chegar a esta solidez de saber
requerida por Bacon, e onde, pondera Pascal, uma nova
ignorancia se encontra, quantos medianos espiritos lá.
não irão, ficando para sempre n'essas nevoas da scien-
cia que escondem a divindade ?
O orgulho é que ha de perder sempre a multidão :
nunca se poderá persuadil-a de que ella nada sabe

1 De Leg., liv. vn .
2 Examinatio et emendatio mathematicæ hodierna, dial. vi
contra Geometras.
3 Hobb. , Opera omnia. Amsterd ., edit. 1667 .
4 De Lug. scient. , lib . v.
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 29

quando cuida que tudo sabe . Só os grandes homens


pódem comprehender aquella extrema balisa do saber
humano, d'onde vêmos evaporarem -se os thesouros ac-
cumulados, e nos achamos em nossa original indigen-
cia . Razão por que a maioria dos sabios entendeu que
os estudos philosophicos eram em extremo perigosos
para a multidão . Locke empregou os tres primeiros
capitulos do livro quarto do seu Ensaio ácerca do enten-
dimento humano , em mostrar os limites do nosso saber,
que são realmente assustadores, tão perto de nós estão !
Diz elle : «Estando o nosso conhecimento restringido
a raias tão apertadas, como já mostrei , não será ocioso ,
para melhor se vêr o estado actual do nosso espirito ,
haver conhecimento da nossa ignorancia, que... muito
póde servir para cortar argumentações... se, após des-
cobrir até onde chegam nossas ideias claras ... nos não
afundamos n'este abysmo de trevas (onde nos são de
todo inuteis os olhos e nossas faculdades nos não fariam
perceber a menor coisa) pertinazes n'este estulto pen-
samento de que nada ha superior á nossa comprehen-
1
são». Emfim, é sabido que Newton, desgostoso do
estudo das mathematicas, esteve largos annos sem que-
rer que lhe fallassem d'ellas ; e, já em nossos dias , Gib-
bon, que por tão largo espaço foi apostolo das ideias
novas, escreveu : « As sciencias exactas habilitaram - nos
a desdenhar a evidencia moral, tão fertil em gratas sen-
sações , e que foi feita para determinar as opiniões e
acções da nossa vida» .
De feito, muita gente creu que a sciencia nas mãos
do homem desseca o coração, despoetisa a natureza,
inclina os espiritos fracos ao atheismo , e do atheismo
ao crime: que as bellas artes, pelo contrario, deleitam-
nos o tempo, enternecem- nos a alma, enchem - nos de
fé na divindade, e encaminham pela religião á pratica
das virtudes . Não citaremos Rousseau, cuja auctori-
dade parece aqui suspeita ; mas Descartes, por exemplo ,
exprimiu-se por modo assaz extranho a respeito da
sciencia que constituiu uma parte da sua gloria.

1 Locke, Entend, hum. , liv. iv, cap. 11 , art, IV,


30 O GENIO DO CHRISTIANISMO

« Nada se lhe afigurava menos solido , diz o douto


auctor da sua vida, que o occupar-se de numeros sim-
ples e figuras imaginarias, como se se devesse prender
a taes bagatelas, sem fitar a vista mais longe . Alguma
coisa mais que inutil elle via em tal ; acreditava perigoso
o entregarem-se muito sériamente a essas superficiaes
demonstrações, que a industria e a experiencia minis-
1
travam menos vezes que o acaso . Era maxima d'elle
que esta applicação nos desfaz insensivelmente do exer-
cicio da nossa razão , e nos expõe a perder o trilho que
2
a sua luz nos traça» .
Esta opinião do auctor da applicação da algebra á
geometria é coisa digna de attenção .
O padre Castel, por sua vez , parece regosijar- se a
rebaixar o assumpto sobre que elle mesmo escreveu :
« Em geral, diz elle, dá- se demasiada importancia ás
mathematicas ... A geometria tem altas verdades, obje-
ctos pouco desenvolvidos, pontos de vista que mal se
enxergam. Para que dissimulal -o ? Tem paralogismos ,
apparencias de contradicção, conclusões systematicas
e de concessão , opiniões sectarias , e ainda conjecturas
e paradoxos até» . ³
Se é acreditavel Buffon , « o que se diz verdades ma-
thematicas reduz- se a identidade de ideias, sem reali-
dade alguma» . 4 Emfim, o abbade de Condillac, affe-
ctando o mesmo desprezo de Hobbes pelos geometras ,
diz ácerca d'elles : « Quando sahem dos seus calculos
para entrarem em averiguações d'uma natureza diffe-
rente , não se lhes acha a mesma clareza, precisão e ex-
tensão de espirito . Temos quatro metaphysicos cele-
bres : Descartes, Malebranche, Leibnitz, e Locke : só o
ultimo não foi geometra, e quão superior elle é aos
outros ! 5

1 Cartas de 1638, pag. 412 , Cartesii , 1. de Derict. ingen. regula ,


n . 5.
2 Obras de Desc., tom. 1 , pag. 112.
3 Math. univ. , pag. 3-5 .
4 Hist. nat.. tom. 1 , prim. disc . , pag. 77.
5 Ensaio acerca da origem dos conhecimentos humanos, tom. 11 ,
secç. 11 , cap. 1v, pag. 239, ediç . Amat. 1783.
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 31

E' inexacto este juizo . Em metaphysica pura, Male-


branche e Leibnitz alcançaram muito mais que o phi-
losopho inglez . Verdade é que os espiritos geometricos
são muitas vezes falsos no regimen ordinario da vida ;
mas a causa d'isso está na sua extrema justeza . Querem
encontrar verdades absolutas em tudo, ao passo que em
moral e politica as verdades são relativas . E ' rigoro-
samente certo que dois e dois são quatro : mas não é
por igual evidente que uma boa lei em Athenas seja
uma boa lei em Paris . E' certo que a liberdade é ex-
cellente coisa : e porque o é, convém derramar torrentes
de sangue para estabelecel-a n'um paiz, em tal grau
que esse paiz a não supporte ?
Em mathematica devemos olhar ao principio ; em
moral á consequencia . Uma é verdade simples, a outra
é verdade complexa . Nada desorganisa o compasso do
geometra, e tudo desconcerta o coração do philosopho .
Quando o instrumento do segundo fôr tão seguro como
o do primeiro, poderemos esperar conhecer o essencial
das coisas : por agora, é necessario contar com o erro .
Quem quizesse intrometter a rigidez geometrica nas
relações sociaes, tornar-se-ia o mais estupido ou o mais
malvado dos homens .
Longe de provarem a extensão do espirito dos ho-
mens que as empregam, pelo contrario, as mathema-
ticas devem ser consideradas o apoio da sua fraqueza,
o supplemento da sua insufficiente capacidade, um me-
thodo de abreviatura adequado a coordenar resultados
em uma cabeça capaz de alcançal- os por si mesma . De
feito, não são ellas mais que signaes genericos de ideias
que nos poupam ao trabalho de as ter, rotulos numeri-
cos d'um thesouro não contado, instrumentos com que
se opéra, e não coisas sobre as quaes se actua . Suppo-
nha-se que um pensamento é representado por A, e
outro por B: que prodigiosa differença não haveria en-
tre o homem que desenvolvesse esses dois pensamentos
em suas diversas analogias moraes, politicas e religio-
sas, e outro homem, que, com a penna na mão , multi-
plicasse pacientemente o seu A e seu B, achando cu-
riosas combinações, mas sem ter perante o espirito al-
32 O GENIO DO CHRISTIANISMO

gum objecto mais que as propriedades de duas lettras


estereis ?
Porém, se, com exclusão d'outra, doutrinaes um me-
nino n'esta sciencia que poucas ideias dá, arriscaes-vos
a seccar a fonte das ideias d'esse menino, tolher o me-
lhor natural, apagar a imaginação mais fecunda, apou-
car o mais vasto entendimento . Enchereis essa tenra
cabeça de numeros e figuras que nada lhe representam ;
acostumal-o -heis a satisfazer-se com uma dada somma,
a caminhar sempre encostado a uma theoria, a não
exercitar jamais as suas forças, a alliviar sua memo-
ria e espirito com operações artificiosas , a só conhecer,
a só amar, emfim, esses rigorosos principios e verdades
absolutas que perturbam a sociedade .
Disseram que as mathematicas servem de corrigir
na mocidade os erros do raciocinio . Mas muito enge-
nhosa, e ao mesmo tempo solidamente foi respondido.
que para classificar ideias era preciso havel -as primeiro ;
que pretender coordenar o entendimento d'um menino
era querer arrumar um quarto vasio . Dae-lhe primeiro
conhecimentos claros de seus deveres moraes e reli-
giosos : ensinae-lhe as lettras divinas e humanas : depois ,
quando vos tiverdes esmerado em educar o coração do
vosso discipulo , quando o seu cerebro estiver sufficien-
temente cheio de objectos de comparação e principios
exactos , regrae-os , se quizerdes, com a geometria .
Além disso, é infallivel o proveito das mathematicas
na vida ? Importa que os magistrados, ministros, classes
civis e religiosas conheçam as propriedades d'um cir-
culo ou triangulo ? Dizem que o que se quer é o posi-
tivo . Oh ! grande Deus ! que ha ahi menos positivo que
as sciencias, cujos systemas mudam muitas vezes em
cada seculo ? Que importa ao agricultor que o elemento .
da terra não seja homogeneo, ou ao matteiro que o pau
seja uma substancia pyrolinhosa ? Uma pagina elo-
quente de Bossuet em moral é mais util , e difficil de
escrever, que um volume d'abstracções philosophicas .
Diz-se, porém, que se applicam os descobrimentos
das sciencias ás artes mechanicas . Estes grandes in-
ventos quasi nunca produzem o effeito antevisto . A
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 33

perfeição agraria, em Inglaterra , resulta menos d'algu-


mas experiencias scientificas, que do trabalho aturado
e da industria do lavrador obrigado a dar tratos a um
torrão ingrato .
Falsamente attribuimos ás nossas sciencias o que
pertence ao progresso natural da sociedade . Os braços
e os animaes rusticos multiplicaram-se ; as manufactu-
ras e productos agronomicos devem ter-se augmentado
e melhorado proporcionalmente . Que se possuam char-
ruas mais ligeiras, machinas mais perfeitas para o tra-
balho , é vantajoso ; crêr, porém, que o engenho e saber
humano se encerram n'um circulo de inventos mecha-
nicos, é errar prodigiosamente.
Em quanto ás mathematicas propriamente ditas , está
provado que, em pouco tempo, póde aprender- se o que
é util saber-se para sahir um bom engenheiro . Afóra
esta geometria pratica, o resto é uma geometria espe-
culativa, que tem seus trocadilhos, suas frioleiras , e ,
digamo -lo assim, seus romances como as outras scien-
cias. «Importa bem distinguir, diz Voltaire, entre geo-
metria util e geometria curiosa ... Quadrae curvas quan-
to vos aprouver, o que fareis é ostentar sagacidade ex-
trema . Assimilhaes-vos a um arithmetico que examina
as propriedades dos numeros , em logar de calcular os
seus haveres ... Quando Archimedes achou o peso espe-
cifico dos corpos, fez um serviço ao genero humano ;
mas de que vos aproveita achar tres numeros taes que
a differença das quadraturas de dois junta ao numero
tres, faça sempre uma quadratura, e que a somma das
tres differenças, junta ao mesmo cubo, faça sempre
1
uma quadratura ? Nugae difficilis » .
Por mais amarga que esta verdade seja aos mathe-
maticos, incumbe-nos dizer : a natureza não os fez para
occuparem a primeira plana. Afóra alguns geometras
inventores, condemnou-os a uma triste obscuridade ; e
esses mesmos genios inventores estão .em risco de ol-
vido, se o historiador se não encarrega de os annunciar

1 Questão dcerca da Encycl. Geom ,


VOL. II 3
.∞
34 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ao mundo : Archimedes deve a sua gloria a Polybio, e


Voltaire creou entre nós a nomeada de Newton . Platão
e Pythagoras vivem como moralistas e legisladores,
Leibnitz e Descartes como methaphysicos mais que na
qualidade de geometras talvez . D'Alambert teria hoje
a sorte de Varignon e Duhamel, cujos nomes, ainda ve-
nerados na escola , só existem para o mundo nos elogios
academicos , se não alliasse á reputação d'erudito a
d'escriptor. Um poeta com alguns versos passa á pos-
teridade, immortalisa seu seculo, e leva ao futuro ho-
mens que elle se dignou cantar na lyra : o sabio, co-
nhecido apenas durante a vida, é esquecido no dia
seguinte ao da morte . Ingrato a seu pezar, nada póde
fazer em pró do grande homem que protegeu . Em vão
collocará o seu nome na fornalha d'um chimico ou na
machina d'um physico : estimaveis esforços, dos quaes,
todavia, nada glorioso resultará . A gloria nasceu sem
azas ; é preciso que ella as peça emprestadas ás musas,
se quer voar aos céos . Foi Corneille, Racine , Boileau,
fôram os oradores , os historiadores, os artistas que
immortalisaram Luiz XIV, muito mais que os sabios
florescentes em seu seculo . Este exemplo é de todos os
tempos e paizes . Cessem , pois, de se lastimarem os
mathematicos , se os povos por geral instincto collocam
as leftras na vanguarda das sciencias ! E ' que, de feito ,
o homem que legou um só preceito moral, um só sen-
timento relativo á terra, é mais proveitoso á sociedade,
que o geometra descobridor das mais eximias proprie-
dades do triangulo .
A final , não é talvez difficil conciliar os que decla-
mam contra as mathematicas e os que as preferem a
tudo . Esta desavença de opiniões vem do erro commum
que confunde um grande com um habil mathematico .
Ha ahi uma geometria material composta de linhas, de
pontos, de Ax B; com tempo e perseverança o media-
nissimo espirito póde ser prodigioso n'ella. Torna-se,
então, uma especie de machina geometrica que executa
por si mesma operações complicadas, como a machina
arithmetica de Pascal . Em sciencias, o ultimo que chega
é sempre o mais instruido : eis-aqui por que tal escolar
PARTE TERCEIRA · LIVRO SEGUNDO 35

dos nossos dias está mais adiantado que Newton em


mathematicas ; e tal que passa por sabio hoje será tido
como ignorante pela geração futura. Obstinados em
seus calculos, os geometras-machinas desdenham ridi-
culamente as artes da imaginação ; sorriem de piedade
quando se lhes falla de litteratura, moral e religião ;
conhecem, dizem elles, a natureza . Não é bem mais
adoravel a ignorancia de Platão, que denomina a na-
tureza uma poesia mysteriosa ?
Existe felizmente outra geometria, a geometria in-
tellectual. E' a que convém saber- se para entrar na es-
cola dos discipulos de Socrates ; é a que vê Deus atravez
do circulo e do triangulo, e creou Pascal, Leibnitz , Des-
cartes e Newton . No maximo numero, os geometras
inventores foram religiosos.
E' forçoso, porém, confessar que é rarissima esta
geometria dos grandes homens . Por um só genio que
pisa a sublime carreira da sciencia, quantos outros se
perdem em suas inextricaveis veredas ! Cumpre obser-
var aqui uma das tão communs reacções nas leis da
Providencia : as ideias irreligiosas conduzem necessa-
riamente ás sciencias , e as sciencias conduzem necessa-
ramente ás ideias irreligiosas. Quando, n'um seculo
impio, o homem chega a desconfessar a existencia de
Deus sendo essa a unica verdade que elle tem de seu ,
e carecendo imperiosamente de verdades positivas-
busca crear- se verdades novas, e crê acha-las nas abs-
tracções das sciencias . Por outro lado é natural que os
espiritos communs ou mancebos irreflectidos , encon-
trando verdades mathematicas no universo, vendo-as
no céo com Newton, na chimica com Lavoisier, nos
mineraes com Hauy ; é natural, dizemos, que as tomem
como principio das coisas, e nada vejam além d'ellas .
Esta simplicidade da natureza , que deveria fazer -lhes
suppor, como Aristoteles, um primeiro motor, e, como
Platão, um eterno geometra, apenas lhes serve de ex-
travio : Deus para elles é, por inducção prompta, as
propriedades dos corpos , e a cadêa dos numeros até
lhes sonega a grande Unidade ,
36 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO II

Chimica e historia natural

Fôram aquelles excessos os que fortificaram os ini-


migos das sciencias, e engendraram as eloquentes de-
clamações de Rousseau e seus sectarios . Não ha nada
mais admiravel, dizem, que os descobrimentos de Spal-
lanzani, de Lavoisier, de Lagrange ; mas o que damni-
fica tudo são as consequencias que os falsos talentos
querem inferir d'ahi . Que ! porque se conseguiu de-
monstrar a simplicidade dos succos digestivos, ou dis-
criminar os da geração ; porque a chimica augmentou,
ou, se antes assim o querem, diminuiu o numero dos
elementos; porque a lei da gravitação é accessivel ao
infimo escolar; porque uma creança conseguiu rabiscar
algumas figuras geometricas ; porque este ou aquelle
escriptor é um subtil ideologo , ha de forçosamente con-
cluir-se d'ahi que não ha Deus, nem verdadeira religião ?
Que abuso de raciocinio !
Outra observação fortaleceu nos principios timoratos
o dissabor dos estudos philosophicos . Dizem elles : « Se
esses descobrimentos fôssem certos, invariaveis, pode-
riamos entender o orgulho que elles inspiram, não aos
homens estimaveis que os fizeram , mas á multidão que
os logra. Comtudo, nas sciencias chamadas positivas,
a experiencia de hoje não malogra a experiencia de
hontem ?
«Os erros da antiga physica tiveram seus partidarios
e defensores . Uma boa obra litteraria vive em todos
os tempos ; os seculos lhe accrescentam ainda um brilho
novo. Mas as sciencias, só attentas ás propriedades
dos corpos, vêem o rapido encanecer de seus mais ce-
lebrados systemas . Em chimica, por exemplo, julga-
1
va-se possuir uma nomenclatura regular ; e agora

1 Pelas terminações dos acidos em oso e em ico. Recentemente


se demonstrou que o acido nitrico e sulfurico não eram o resultado
d'uma addição de oxygenio ao acido nitroso e sulfuroso. Houvera sem,
་་ ་་་
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 37

vieram a conhecer o engano . Mais um certo numero


de factos, e mister será quebrar as casas da chimica
moderna . Que se lucra em transtornar nomes, em cha-
mar oxygenio ao ar vital ? As sciencias são um laby-
rintho, onde mais se enreda quem mais perto se cuida
da sahida» .
São especiosas estas objecções, mas entendem tanto
com a chimica, como as outras sciencias . Arguil- a de
illudir- se em suas experiencias é accusal -a da sua boa
fé, e de não estar no secreto da essencia das coisas .
E quem está n'esse secreto , senão aquella primeira
Intelligencia que existe de toda a eternidade ? A bre-
vidade de nossa vida, a fraqueza de nossos sentidos , a
rudeza de nossos meios e instrumentos oppoem-se ao
descobrimento d'essa formula geral, que Deus, para
sempre, nos esconde . Sabe-se que as nossas sciencias
decompoem e recompoem, mas não pódem compôr.
N'esta impossibilidade de crear patenteia-se o lado fraco
e o nada do homem . Faça o que fizer, nada póde , tudo
The resiste : não póde docilisar a materia aos seus usos ,
sem que ella se pranteie e gema : parece que elle ajunta
os seus suspiros e coração tumultuosos a todas as suas
obras.
Na obra do Creador, ao inverso, é tudo calado, por-
que é feita sem esforço ; tudo silencioso, porque tudo é
submisso . Fallou Deus, e o cháos emmudeceu , e os
globos giraram no espaço sem ruido . As potencias uni-
das da materia são para uma só palavra de Deus o que
o nada é para o todo, o que as coisas creadas são para
a necessidade . Vêde o homem nos seus trabalhos : que
pavoroso apparelho de machinas ! Afla o ferro, mani-
pula o veneno, invoca os elementos em sua ajuda, faz

pre um vacuo no systema, para o acido muriatico, que não tinha po-
itivo em oso. Diz-se que Mr. Berthollet está em ponto de provar que
o azote, considerado até agora uma simples essencia combinada com
o calorico, é uma substancia composta. Ha em chimica um só facto
assignado por Boerhaave, e desenvolvido por Lavoisier , a saber-
que o calorico, ou a substancia que, unida á luz, compõe o fogo, tende
sem cessar a dilatar os corpos, ou a afastar entre si as moleculas
constituintes.
38 O GENIO DO CHRISTIANISMO

mugir a agua, assobiar a atmosphera, accende os for-


nos . Armado de fogo, que vae tentar esse novo Prome-
theu ? Vae crear um mundo ? não ; vae destruir: o que
elle póde produzir é sómente a morte .
Quer seja prejuizo d'educação, quer o habito de va-
gar por desertos, e estudar a natureza só com o cora-
ção, confessamos que nos faz alguma pena vêr o es-
pirito de analyse e classificassão dominar nas sciencias
de prazer, onde só deveria procurar-se a formosura e
a bondade de Deus . Se licito nos é dizel -o, faz compai-
xão , em nosso entender, achar hoje o homem mammi-
fero na classe dos macacos, dos morcegos, e das pre-
guiças, segundo o systema de Linneo . Não seria me-
lhor deixal- o no tôpo da creação, onde o haviam collo-
cado Moysés, Aristoteles, Buffon e a natureza ? Con-
finante do céo pela alma, e da terra pelo corpo , era
bello vêl- o formar na cadêa dos entes o fuzil que liga o
mundo visivel ao invisivel, o tempo á eternidade .
«N'este seculo ainda, diz Buffon, em que as scien-
cias parecem ser cultivadas com esmero, creio que é
facil conhecer que a philosophia é desprezada, e talvez
mais que nunca. As artes chamadas scientificas substi-
tuiram-na . Os methodos de calculo e geometria, os de
botanica e historia natural, as formulas, e, em resumo,
os diccionarios occupam quasi toda a gente . Cuidam
que sabem mais porque se augmentou o numero das
expressões symbolicas e phrases technicas, e não se
attende a que todas essas artes não são mais que andai-
mes para chegar á sciencia, e não a sciencia mesma;
dos quaes só nos devemos servir quando de todo os
não podérmos dispensar e devemos sempre temer que
nos falhem quando os encostarmos ao edificio » . ¹
São judiciosas estas reflexões ; mas afigura-se-nos
que ha um perigo ainda mais momentoso nas classifi-
cações . Não é para receiar que este furor de subordinar
os nossos conhecimentos a signaes physicos , de não
vêr nas differentes raças da creação senão dedos , den-

1 Buff., Hist. nat., tom. 1, prim . disc. , pag. 79.


PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 39

tes , bicos, não é para receiar, repetimos, que tal furor


conduza insensivelmente a mocidade ao materialismo ?
A sciencia, pois, em que os inconvenientes de incredu-
lidade mais se fazem sentir, é a historia natural. Mur-
cha-se tudo o que se toca : os perfumes , o luzimento das
côres, a airosidade das fórmas desapparecem das plan-
tas para os botanicos que lhes não ligam moralidade e
ternura.
Quando se não tem religião, o coração é insensivel,
e não ha belleza ; porque a belleza não é um sêr exis-
tente fóra de nós ; no coração do homem é que estão
as graças da natureza .
E aquelle que estuda os animaes, se é incredulo ,
que faz senão estudar cadaveres ? Onde o conduzem
suas indagações ? Em que põe elle a mira ? E' para
esse que se estabeleceram gabinetes, e escolas , onde a
morte, com a fouce em punho , é o demonstrador ; cemi-
terios, em cujo meio se collocaram os relogios para
contar os minutos aos esqueletos, para marcar as horas
á eternidade !
E' n'esses tumulos onde o nada enthesourou as suas
maravilhas, onde o despojo do macaco insulta o despojo
do homem, é ahi que se deve investigar a razão d'este
phenomeno : um naturalista atheu: á força de respirar
a atmosphera dos sepulchros , a sua alma adquiriu a
morte.
Quando a sciencia era pobre e erma ; quando errava
no valle e na floresta , espiando a ave que levava o cibo
aos seus filhinhos , ou o quadrupede volvendo ao seu
covil ; quando o laboratorio d'ella era a natureza, e seu
amphitheatro os céos e os campos ; quando era simples.
e maravilhosa como os desertos , onde passava a vida, a
sciencia então era religiosa . Assentada á sombra do
carvalho , coroada de flôres que ella colhera sobre a
montanha, bastava-lhe pintar as scenas que a rodeavam .
Os seus livros eram catalogos de remedios para as en-
fermidades corporaes , ou collecções de canticos , cujas
palavras mitigavam as dôres d'alma . Quando , porém,
as congregações de sabios se formaram, quando os phi-
losophos em cata de renome, e não da natureza, quize-
40 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ram fallar das obras de Deus, sem as ter amado , a in-


credulidade nasceu com o amor proprio, e a sciencia
converteu-se em instrumentozinho d'uma nomeada con-
digna.
Nunca tão severamente fallou a Igreja contra os es-
tudos philosophos, como os diversos philosophos que
citamos nos anteriores capitulos . Se a arguirem de ter
desconfiado um pouco das lettras que não guarecem
de molestia alguma, como diz Seneca, hão de tambem
condemnar a chusma de legisladores , estadistas , mo-
ralistas, que conspiraram muito mais hostis que a reli-
gião christã contra o perigo, incerteza , e obscuridade
das sciencias .
Onde achará ella a verdade ? Será em Locke, tão
sublimado por Condillac ? Em Leibnitz , que achava
Locke tão somenos em ideologia ? Ou em Kant, que ,
em nossos dias, impugnou Locke e Condillac ? Crê-la-ha
em Minos, Lycurgo, Catão , J. J. Rousseau, que dester-
ram as sciencias das suas republicas ; ou adoptará o
sentir dos legisladores que as toleram ? Que terriveis
lições lhe occorrem, se a Igreja as busca em redor de
si ! que ampla materia para reflectir sobre esta historia.
da arvore da sciencia que produz a morte ! Os seculos
de philosophia abraçaram sempre os seculos de aniqui-
Jamento .
A Igreja não podia pois adoptar, n'uma questão que
dividiu a terra, um ' partido diverso do que adoptou :
retezar ou alargar as redeas, conforme a indole das
coisas e dos tempos ; oppôr a moral ao abuso que o
homem faz do saber, e curar de conservar-lhe, para seu
bem, um coração simples, e um pensar humilde.
Concluamos que o erro da época é separar em de-
masia as ideias abstractas dos estudos litterarios . Uns
pertencem ao espirito , os outros ao coração ; ora, bom
é que se não cultive o primeiro com exclusão do se-
gundo, sacrificando a parte que ama á que raciocina.
Por meio d'uma feliz combinação de conhecimentos
physicos e moraes , e sobretudo pelo concurso das ideias
religiosas, conseguir-se-ha ministrar á nossa mocidade
aquella educação que outr'ora formou tantos homens
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 41

grandes . Não se cuide que o nosso torrão está exhau-


rido. Esta formosa terra de França, para prodigalisar
novas messes, basta ser cultivada um pouco ao theor
de nossos paes : é uma d'essas terras felizes , onde rei-
nam os genios protectores dos homens, e esse sôpro
divinal que, no crêr de Platão, assignalam os climas
propicios á virtude . ¹

CAPITULO III

Dos philosophos christãos

METAPHYSICOS

Acodem os exemplos a confirmar os principios ; e


uma religião que reclama Bacon, Newton, Bayle, Clar-
ke, Leibnitz, Grotius, Pascal, Arnaud, Nicole, Male-
branche, la Bruyère (não fallando dos padres da Igreja,
nem de Bossuet, Fénelon , Massillon , nem Bourdaloue ,
que só como oradores queremos enumerar) , uma tal
religião póde gabar-se de ser favoravel á philosophia .
Bacon deve a sua celebridade ao seu tratado On the
Advancement of learning, e ao seu Novum organum
scientiarum . No primeiro examina o circulo das scien-
cias, classificando cada objecto sob sua faculdade ; fa-
culdades que elle reconhece em numero de quatro :
alma ou sensação , memoria, imaginação , entendimento .
As sciencias reduzem-se a tres : poesia, historia, philo-
sophia.
Na segunda obra rejeita o raciocinio por syllogismo ,
e propõe a physica experimental, como guia unica na
natureza . Faz gosto ainda lêr a profissão de fé do illus-
tre chanceller de Inglaterra, e a oração que elle costu-
mava dizer antes de se pôr ao trabalho . Esta christã
sinceridade, em tamanho homem, sensibilisa . Quando
Newton e Bossuet descobriam suas venerandas cabeças

1 Plat., De leg., liv. v.


12 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ao proferirem o nome de Deus, eram talvez mais admi-


raveis n'esse momento, que quando um pesava os mun-
dos, de que o outro ensinava a desprezar o pó .
Clarke, no seu Tratado da existencia de Deus; Leib-
nitz, na sua Theodicea; Malebranche, na sua Investiga-
ção da verdade, tão alto se elevaram em metaphysica,
que, após elles, nada deixaram que averiguar.
Singularissima coisa é que o nosso seculo se creia
superior em metaphysica e dialectica ao seculo prece-
dente . Os factos depôem contra nós . Condillac, que, na
verdade, nada innovou, não póde só por si contrabalan-
çar Locke, Descartes , Malebranche e Leibnitz . O que
elle faz é desmembrar o primeiro, e perder- se sempre
que o não segue . No restante, a metaphysica moderna
differe da antiga em separar, quanto em si cabe, a ima-
ginação das percepções abstractas . Nós temos separado
as faculdades do intellecto, reservando o pensamento
para uma materia , o raciocinio para outra, etc. D'onde
resulta que as nossas obras carecem de nexo , e o nosso
espirito, assim repartido por capitulos, offerece o in-
conveniente da historia, onde cada assumpto é tratado
separadamente . Em quanto se principia um novo ar-
tigo, escapa-nos o anterior; fogem-nos os liamentos que
prendem em si factos : recaímos na confusão, á força de
methodo, e a superabundancia de conclusões particu-
lares empece-nos de chegar á conclusão geral .
Quando se trata, como na obra de Clarke, de impu-
gnar individuos empavezados de raciocinadores, e aos
quaes é necessario provar que se raciocina tão ajuiza-
damente como elles, importa muito empregar o systema
firme e cerrado do doutor inglez ; porém, em qualquer
outro caso, porque preferir esta sequidão a um estylo
claro, posto que animado ? porque não empenhar o
coração tanto n'uma obra grave , como n'outra de puro
recreio ? Ainda se lê a metaphysica de Platão, porque
uma imaginação brilhante a coloriu .
Os nossos derradeiros ideologos caíram em grande
erro, separando a historia do espirito humano da his-
toria das coisas divinas, e sustentando que a ultima
não nos elucida coisa alguma positiva, e que só a pri-
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 43

meira serve ao uso immediato . Que necessidade ha ,


pois, de conhecer as operações do pensamento do ho-
mem, se não é para reporta - las a Deus ? Que me im-
porta a mim saber se recebo ou não recebo as minhas
ideias por intermedio dos sentidos ? Diz Condillac : « Os
metaphysicos meus antepassados perderam-se nos mun-
dos chimericos : só eu achei a verdade ; a minha scien-
cia é de maximo proveito . Vou dizer-vos o que é con-
sciencia, reflexão, reminiscencia, etc. » Isto que me
aproveita ? Uma coisa só é boa e positiva quando en-
cerra uma intenção moral : ora, toda a metaphyca que
não é theologia, como a dos antigos e dos christãos ,
toda a metaphysica que cava um abysmo entre Deus
e o homem, pretendendo que Deus é trevas , é por isso
inaccessivel ás investigações humanas : tal metaphysica
é futil e perigosa, porque não tem fim algum .
Pelo contrario, a outra, que me associa á divindade,
dando-me alta ideia da grandeza e perfeição do meu
sêr, dispõe-me a bem pensar e a bem fazer . Os fins
moraes prendem- se por este annel á metaphysica, que
se faz d'est'arte uma vereda mais sublime para attingir
a virtude . E ' o que Platão denominava a sciencia dos
deuses por excellencia, e Pythagoras a geometria divina:
Tirante d'isto, a metaphysica é um microscopio que
descobre curiosamente alguns objectos pequenos que o
olho nú não alcançaria ; objectos que, conhecidos ou
ignorandos , não formam nem enchem um vasio na
existencia.

CAPITULO IV

Continuação dos philosophos christãos

PUBLICISTAS

N'estes ultimos tempos fizemos grande ostentação


do nosso saber em politica ; dir- se-ia que antes de nós
o mundo moderno não ouvira jámais fallar de liberdade,
nem das differentes fórmas sociaes . E ' por isso prova-
14 O GENIO DO CHRISTIANISMO

velmente que as temos ensaiado todas umas depois das


outras com tanta habilidade e bom exito . Comtudo ,
Machiavel, Thomaz Morus, Marianna, Bodin, Grotius ,
Puffendorf e Locke, philosophos christãos , haviam - se
occupado da natureza dos governos muito antes de
Mably e Rouseau .
Não analysaremos as obras d'estes publicistas , cujos
nomes basta lembrar como prova de que todos os ge-
neros de gloria litteraria pertencem ao christianismo :
n'outra parte demostraremos o que a liberdade do ge-
nero humano deve a esta mesma religião , accusada de
fomentar a escravidão .
Muito bom seria que as obras politicas, se ainda
alguem se occupar com ellas (o que Deus não permitta) ,
tivessem as graças com que os antigos faziam as suas . A
Cyropedia de Xenophonte, a Republica e Leis de Platão
são a um tempo graves tratados e livros cheios de belle-
zas . Platão é insigne em dar uma fórma maravilhosa
ás mais estereis discussões ; até o enunciado d'uma lei
captiva e prende . Aqui são tres anciãos , que vão dis-
correndo desde Gnosse até á caverna de Jupiter, e se
assentam á sombra de cyprestes em risonhos prados :
alli , é o homicida involuntario, que, com um pé mettido
no mar, faz libações a Neptuno ; mais adiante um poeta
estrangeiro é recebido com hymnos e perfumes ; deno-
minando- o homem divino, corôam-o de louros , condu-
zem-o coberto de honras em triumphal procissão fóra do
territorio da republica . D'est'arte, Platão, por diversissi-
mos modos engenhosos, propunha suas ideias , e ado-
çava as mais asperas sentenças, examinando os delictos
á luz da religião .
Note-se que os modernos publicistas encomiaram o
governo republicano , ao passo que os escriptores po-
liticos da Grecia deram geralmente a preferencia á mo-
narchia . E porque ? porque uns e outros desadoravam
o que tinham, e queriam o que não tinham : é a historia
de todos os homens .
Por ultimo, os sabios da Grecia encaravam a socie-
dade moralmente ; os nossos ultimos philosophos enca-
ravam-a politicamente . Os primeiros queriam que o gó-
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 45

verno promanasse dos costumes ; os segundos quizeram


que os costumes derivassem do governo . A philosophia
de uns assentava na religião, a dos outros no atheismo .
Platão e Socrates diziam aos povos : « Sêde virtuosos , e
sereis livres !» Nós dissemos -lhes : « Sêde livres, e sereis
virtuosos !» A Grecia, com sentimentos taes, foi ditosa .
Nós, com principios contrarios, que seremos ?

CAPITULO V

Moralistas

LA BRUYÈRE

Escriptores contemporaneos, por mais diversos que


sejam em genio, têm sempre entre si communidade de
analogias. Reconhecem-se os da excellente época da
França pela firmeza do estylo, pelo pouco esmiuçar de
palavras, pela simpleza de locuções, c, apezar d'isso ,
por um certo construir de phrase grega e latina , que
sem lesar a indole da lingua franceza, revela os mo-
delos em que se haviam feito esses homens .
Além disso, os litteratos dividem- se , digamol-o as-
sim , em bandos que seguem tal ou tal mestre, esta ou
aquella escola. Pelo que, os escriptores de Port- Royal
distinguem-se dos escriptores da Société. Fénelon , Mas-
sillon, e Flechier encontram-se em alguns pontos, e
n'outros Pascal, Bossuet e La Bruyère . Distinguem-se
estes ultimos por uma especie de desabrimento de pen-
samento e estylo, que lhes é peculiar . Deve- se, porém,
confessar que La Bruyère, voluntario imitador de Pascal
(mórmente no capitulo «Espiritos-fortes») , debilita al-
gumas vezes a argumentação e modos d'aquelle preclaro
engenho . Quando o auctor dos Caracteres, ao querer
demonstrar a pequenez do homem, diz : « Vós estaes, ó
Lucilio, collocado sobre este átomo , etc. » , diz muito
menos que este trecho do auctor dos Pensamentos :
46 O GENIO DO CHRISTIANISMO

«O que é o homem no infinito ? quem póde comprehen-


del- o ?»
Diz mais La Bruyère : « Para o homem ha só tres suc-
cessos : nascer, viver, e morrer; não se sente nascer,
soffre ao morrer, e esquece - se de viver » . Pascal deu
melhor ideia do nosso nada : « O acto final é sempre san-
guinolento, por mais formoso que tenha sido o anda-
mento da comedia . Cobre -se a cabeça de terra, e ahi
está tudo para todo o sempre» . Terribilissima é esta
ultima phrase ! Primeiro, vê- se a comedia, depois a
terra, e alfim a eternidade . A negligencia da phrase
mostra o pouco valor da vida . Que amarga indifferença
1
n'esta curta e glacial historia do homem ! ¹
Como quer que seja, La Bruyère é um dos insignes
escriptores do seculo de Luiz XIV . Ninguem soube
tanto variar a linguagem, dar-lhe tão diversas fórmas,
e tanto movimento ás ideias . Da alta eloquencia desce
á familiaridade, e passa do gracejo ao raciocínio, sem
jamais ferir o bom gosto ou o leitor . A sua arma dilecta
é a ironia : tão philosopho como Theophrasto , tem mais
vasto relance de olhos, e é mais original e profundo nas
criticas . Theophrasto conjectura, La Rochefoucauld
adivinha, e La Bruyère mostra o que se passa no ámago
dos corações.
Grande triumpho é para a religião contar Pascal e
La Bruyère entre os seus philosophos . A' vista de exem-
plos taes conviria que não fossem tão precipitados em
affirmar que só os espiritos curtos pódem ser christãos .
«Se a minha religião fôsse falsa, diz o auctor dos
Caracteres, confesso-o, não poderia haver logro melhor
engenhado : ninguem seria capaz de evadir- se a elle .

1 Este pensamento foi eliminado na pequena edição annotada de


Pascal : provavelmente os editores acharam que falhava ahi o bello
estylo. Temos ouvido criticar a prosa do seculo de Luiz xiv, como
pobre de harmonia, de elegancia, e propriedade na expressão. Já ou-
vimos dizer : «Se Bossuet e Pascal tornassem, não escreveriam as-
sim." Somos nós, dizem, os prosadores por excellencia, e mais habeis
na arte de dispôr palavras. Não será antes que nós exprimimos com
affectado estylo ideias vulgares, ao passo que os escriptores do seculo
de Luiz XIV diziam com extrema simplicidade coisas magnificas ?
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 47

Que magestade ! que brilhantismo de mysterio ! que


série e encadeamento de doutrinas ! que sobranceira
razão ! que candura ! que innocentes costumes ! que
força invencivel e dominante de testimunhos prestados
successivamente, atravez de tres seculos, por milhares
de sujeitos os mais sabios, os mais prudentes que tinha
então a terra, sustendados no desterro, nos ferros, em
face da morte e do supplicio extremo, pelo sentimento
d'uma verdade unica !»
Se La Bruyère voltasse ao mundo, espantar- se - ia de
ver tratada de infame, ridicula e absurda a religião,
cuja excellencia e formosura confessavam os grandes
homens seus coevos . Acreditaria, certo, que os espiritos-
fortes são homens muito superiores aos escriptores que
os precederam, e que, ante elles, Pascal, Bossuet, Fé-
nelon e Racine são auctores desengenhosos . As obras
d'elles abril-as-ia com acatamento e terror . Parece que
o estamos vendo predisposto a encontrar em cada linha
algum grande descobrimento do espirito humano , al-
guma ideia levantada, talvez ainda algum facto historico
ignorado, do qual se prove, até saciar, a falsidade do
christianismo . Que diria, que pensaria elle no seu se-
gundo espanto, que viria logo em seguida ao primeiro ?
Falta-nos La Bruyère : a Revolução renovou o pecu-
lio de caracteres . A avareza, a ignorancia, o amor pro-
prio, mostram- se a uma nova luz . Estes vicios no se-
culo de Luiz XIV adoçavam- se com a religião e a ur-
banidade ; hoje correm parelhas com a impiedade e
rudeza das fórmas . Deviam de ser, pois, n'aquelle se-
culo, mais finas as tintas , mais delicados os matizes :
então podiam ser ridiculos, hoje são odiosos .

CAPITULO VI

Continuação dos moralistas

Houve um homem que aos doze annos com rectas e


curvas creou as mathematicas ; aos dezeseis fez o mais
48 O GENIO DO CHRISTIANISMO

luminoso tratado dos conicos que se viu desde a anti-


guidade ; aos dezenove reduziu a machina uma sciencia
que existe toda no intellecto ; aos vinte e tres demons-
trou os phenomenos do peso do ar, e destruiu um dos
grandes erros da antiga physica ; este homem , na idade
em que os outros começam apenas a nascer, acabando
de percorrer o circulo das sciencias humanas , conheceu
o seu nada, e voltou para a religião as suas ideias, e,
desde então até á morte, acontecida aos trinta e nove
annos, sempre enfermo e resignado, adestrou a lingua
em que fallaram Bossuet e Racine, deu o modelo da
mais completa facecia e do mais forte raciocinio : final-
mente, nos curto's intervallos de seus padecimentos,
resolveu por abstracção um dos mais altos problemas
de geometria, e lançou ao papel pensamentos que têm
um tanto de divino como de humano : este genio assom-
broso chamava- se Braz Pascal.
E' difficil não ficar confuso d'espanto, quando , ao
folhearem-se os Pensamentos do philosopho christão ,
se fixam os seis capitulos em que elle trata da natureza
do homem . Os sentimentos de Pascal são sobretudo
notaveis por sua entranhada melancolia, e por não sei
que immensidade : fica- se suspenso em meio d'esses
sentimentos como no infinito . Os metaphysicos fallam
d'aquella ideia abstracta, que não tem propriedade al-
guma da materia, que toca em tudo sem deslocar- se ,
que vive de si mesma, que não póde perecer, porque é
indivisivel, e que prova peremptoriamente a immorta-
lidade da alma : esta definição da ideia parece ter sido
suggerida aos metaphysicos pelos escriptos de Pascal .
Ha ahi um monumento importante de philosophia
christã, e de philosophia contemporanea : são os Pensa-
mentos de Pascal, commentados pelos editores . Como
que se vêem as ruinas de Palmyra, soberbas reliquias
do genio e do tempo, ao sopé das quaes o arabe do de-
serto ergueu a sua miseravel choça .
Voltaire disse : « Pascal, sublime louco, nasceu cedo
de mais um seculo» . Entende-se a significação d'esse
seculo cedo de mais . Basta uma observação , para fazer
vêr quanto o Pascal sophista teria sido inferior ao
Pascal christão .
PARTE TERCEIRA - LIVRO SEGUNDO 49

Em que parte de seus escriptos o solitario de Port-


Royal sobrepujou os maiores genios ? Nos seis capitu-
los ácerca do homem . Ora, esses seis capitulos , que
versam inteiramente sobre a quéda original, não exis-
tiriam se Pascal fosse incredulo .
Vem aqui a ponto uma observação valiosa . Entre
as pessoas que se bandearam nas opiniões philosophi-
cas, umas não cansam de detrahir o seculo de Luiz XIV,
outras, jactanciosas de imparcialidade, concedem a esse
seculo dons d'imaginação , e refuzam-lhe faculdades,
pensantes . O seculo pensador por excellencia, excla-
mam, é o seculo XVIII.
Quem imparcialmente lêr os escriptores do seculo.
de Luiz XIV, de prompto conhecrá que tudo foi do
dominio d'elles ; porém, contemplando de mais alto que
nós os objectos, desdenharam os trilhos que vamos se-
guindo, ao cabo dos quaes a sua vista penetrante des-
cobrira precipicios .
Podemos robustecer com mil provas esta asserção .
Por não conhecerem as objecções contra a religião é
que tão grandes homens fôram religiosos ? Esquecem
que Bayle publicava n'essa mesma época as suas du-
vidas e sophismas ? Não é notorio que Clarke e Leib-
nitz se occuparam exclusivamente em combater a in-
credulidade ? que Pascal queria defender a religião ?
que La Bruyère fazia o seu capitulo dos Espiritos fortes?
e Massillon o seu sermão da Verdade d'um porvir ?
que Bossuet, emfim, vibrava estas fulminantes palavras
contra os atheus : «Que viram esses genios raros , que
viram de mais que os outros ? Que ignorancia a d'elles ,
e quão facil seria confundil- os, se fracos e presumpço-
sos, não temessem ser illustrados ! Pois cuidam elles
que viram melhor os tropeços , porque caíram, e que
os outros, QUE OS VIRAM, Os desprezaram ? Nada viram ,
nada ouvem , nada sabem até estabelecer o nada em
que crêem depois d'esta vida , e nem sequer esse mise-
ravel quinhão lhes está seguro ? »
Quaes correlações moraes , politicas, e religiosas es-
caparam a Pascal ? Que face de coisas não compulsou ?
Se considera a natureza humana em globo, pinta-a com
VOL. II 4
50 O GENIO DO CHRISTIANISMO

estes traços tão conhecidos e assombrosos : « A primeira


coisa que se offerece ao homem, que se contempla, é
o seu corpo, etc. » E n'outro logar : « O homem nada é
mais que uma canna pensante, etc. » Pergunta - se , se
em tudo isso Pascal se denunciou fraco pensador ?
A'cerca do poder da opinião, que Pascal tratou pri-
meiro, amplamente têm fallado os modernos escripto-
res . Um dos maiores arrojos , que Rousseau aventurou
em politica, lê- se no Discurso ácerca da desigualdade
das condições . « O primeiro que tapou um terreno , e
disse : isto é meu, foi o verdadeiro fundador da socie-
dade civil» . E' quasi palavra por palavra a terrivel ideia
que o solitario de Port-Royal exprimiu com mais vehe-
mencia : «Este campo é meu , diziam essas pobres crean-
ças, tenho um logar ao sol : eis - ahi o exordio e a imagem
da usurpação da terra inteira>> .
E eis-ahi um d'esses pensamentos que fazem tremer
por Pascal . No que viria a parar esse grande homem,
se não fosse christão ? Que adoravel freio é essa reli-
gião, que sem nos empecer d'espraiar por largos hori-
zontes a vista, nos embaraça a quéda no despenhadeiro !
E ' ainda Pascal quem disse : « Tres graus de altura
no pólo destroem a jurisprudencia . Um meridiano
decide da verdade , ou de poucos annos de possessão .
As leis fundamentaes variam, o direito tem suas épocas :
graciosa justiça a que se limita n'uma montanha ! ver-
dade áquem dos Pyreneus, erro além ! »
Em verdade, o pensador mais audaz d'este seculo,
o escriptor mais resoluto a generalisar as ideias para
transtornar o mundo, não disse coisa tão forte contra
a justiça dos governos e prejuízo das nações .
Os insultos que nós philosophicamente havemos pro-
digalisado á natureza humana fôram mais ou menos
bebidos nos escriptos de Pascal . Mas, aspando d'esse
raro genio a miseria do homem, não soubemos como
elle descobrir -lhe a grandeza . Bossuet e Fénelon , o
primeiro na sua Historia universal, nas suas Adverten-
cias, e na sua Politica haurida da Escriptura, o segundo
no seu Telemacho , disseram no tocante a governos o
essencial. O proprio Montesquieu o que fez as mais das
PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 51

vezes foi desenvolver os principios do bispo de Meaux ,


como já foi justamente notado . Poder-se -iam compilar
volumes dos diversos logares favoraveis á liberdade e
amor patrio, que se encontram nos auctores do seculo
dezesete .
Que é o que n'esse seculo se não tentou ? Igualdade
de pesos e medidas, abolição de costumes provinciaes,
reforma de codigo civil e criminal, repartição igual do
imposto, todos esses projectos de que nos empavona-
mos foram propostos, examinados, e até executados
quando as vantagens da reforma contrabalançavam os
inconvenientes .
Bossuet não chegou a querer congraçar a Igreja
protestante com a romana ? Se reflectirem que Bagnoli,
Le Maistre, Arnauld , Nicole e Pascal se dedicaram á
educação da mocidade, hão de ter difficuldade em de-
cidir se é mais proficua e erudita a educação que se dá
hoje . Os melhores livros classicos que temos são ainda
os de Port-Royal, e nós copiamol -os, muitas vezes, es-
condendo o roubo , nas nossas obras elementares .
A nossa súperioridade, pois , reduz - se a algum pro-
gresso nos estudos naturaes, progresso que procede do
andar do tempo, e que não compensa a perda da ima-
ginação, consecutiva a esse progresso . A concepção é
identica em todos os seculos ; porém mais particular-
mente acompanhada ou das artes ou das sciencias : a sua
maxima grandeza poetica, e belleza moral, depende das
artes .
Mas se o seculo de Luiz XIV concebeu ideias libe-
raes, porque não as empregou como nós ? Não alar-
deêmos as nossas tentativas . Pascal, Bossuet, Fénelon
viram mais ao largo que nós, pois conhecendo, tanto
e melhor que nós, a natureza das coisas , presentiram
o perigo das innovações . Ainda mesmo que nas suas
obras não attestassem que elles conceberam ideias phi-

1 Barbarismo bebido do inglez pela philosophia. Porque razão


será que o nosso prodigioso amor da patria procura sempre os seus
vocabulos nos diccionarios das linguas estrangeiras ?
52 O GENIO DO CHRISTIANISMO

losophicas, crêr- se- ia que esses insignes escriptores não


sentiram os abusos, nem conheceram o bom e o mau
das coisas humanas ? Porém, o seu principio era este :
não deve fazer- se um mal pequeno , ainda que seja para
1
alcançar um grande bem; e com razão demais, por
causa de systemas, cujo resultado é, por via de regra,
funesto .
Não era, pois , á mingua de engenho que Pascal, tão
conhecedor, como já se mostrou , do vicio das leis , em
sentido absoluto, dizia em sentido relativo : «Quão pro-
veitoso foi estremar os homens pelas qualidades exte-
riores ! Qual de nós passará primeiro ? qual cederá o
logar ? o menos apto ? mas eu sou tão apto como elle :
temos de guerrear o posto . Elle tem quatro lacaios , e
eu só um: isto é claro, basta saber contar : sou eu que
cedo, e sou um tôlo se não ceder ».
E' a resposta a volumes de sophistas . O auctor dos
Pensamentos, submettendo- se aos quatro lacaios , é
muito mais philosopho que esses pensamenteadores,
que os quatro lacaios revoltaram.
Em resumo, o seculo de Luiz XIV foi de paz , não
porque despercebesse determinados factos, mas porque
os viu no mais intimo d'elles , e os considerou em todas
as faces e pesou em todos os perigos . Se se não en-
golfou nas ideias de hoje , é porque lhes foi superior :
o que é pujança denominamos nós fraqueza : o segredo
d'esse seculo e o do nosso está no arcano d'este pen-
samento de Pascal :
«As sciencias têm duas extremidades que se tocam :
a primeira é a pura ignorancia natural em que se en-
contram os homens quando nascem ; a outra extremi-
dade é onde chegam as grandes almas , que, havendo
percorrido quanto os homens pódem saber, acham por
fim que tudo ignoram, e tornam á ignorancia d'onde
partiram ; mas é uma ignorancia douta que se conhece.
D'estes, os que saíram da ignorancia natural, e não con-
seguiram chegar á outra, alguma coisa sabem superfi-

1 Hist. de Port- Royal .


PARTE TERCEIRA LIVRO SEGUNDO 53

cialmente d'esta remediavel sciencia, e afiguram-se sa-


bios . Estes desarranjam o mundo, e julgam peior que
todos os outros . A plebe e os astutos regulam de ordi-
nario o andamento do mundo : os outros desprezam -o
e são desprezados »> .
Não podemos deixar de fazer aqui a nosso respeito
uma triste reflexão . Pascal emprehendera dar ao mundo
a obra de que hoje publicamos uma tão mesquinha e
frouxa porção . Que primor não sahiria das mãos de tal
mestre ! Se Deus não lhe concedeu a execução da sua
traça, é que provalvelmente não convém que certas du-
vidas na fé sejam esclarecidas , para que haja sempre
incentivo a essas tentações e provas, d'onde sahe o fino
ouro dos santos e martyres .
LIVRO TERCEIRO

HISTORIA

CAPITULO I

Da influencia do christianismo no theor


de escrever a Historia

Se o christianismo foi causa de tanto progredirem


as ideias philosophicas, deve de ser necessariamente
propicio á indole da historia , pois que esta é um ramo
da philosophia e politica . Quem quer que rejeitar as
sublimes noticias que a religião nos dá da natureza de
seu auctor, priva- se voluntariamente d'um recurso fe-
cundo de imagens e concepções .
De feito, o melhor conhecedor dos homens será o
que mais tempo houver meditado nas traças da Provi-
dencia : quem mais dentro penetrar os ardis da divina
Sabedoria, será o idoneo para desfivelar a marcara á
sabedoria humana. Os planos dos reis , as abominações
das cidades, as vias iniquas e insidiosas da politica, o
alvoroto dos animos pelo fio secreto das paixões , essas
inquietações, que por vezes senhoream as massas, a
transmutação do poder do rei ao vassallo, do nobre ao
plebeu, do rico ao pobre : todo esse machinismo vos
será facto inexplicavel, se não assistirdes, diga- se assim ,
ao conselho do Altissimo, com os variados espiritos de
força, prudencia, fraqueza e erro, que elle manda ás
nações que quer salvar ou perder.
Entre, pois, a eternidade no essencial da historia do
56 O GENIO DO CHRISTIANISMO

tempo, e refiramos tudo a Deus, como a causa univer-


sal . Exaltem quanto lhes aprouver Aquelle que, desfian-
do os segredos de nossos corações, faz derivar os mais
estrondosos successos de miserabilissimas fontes .
Deus attento ao reinado dos homens ; a impiedade,
isto é, a ausencia das virtudes moraes, constituida razão
immediata das desgraças dos povos : a nosso vêr, essa
é uma base historica muito mais nobre e muito mais
segura que a primeira.
E, para mostrar um exemplo em nossa revolução ,
digam-nos se fôram causas ordinarias que , no correr
d'alguns annos , degeneraram as nossas affeições , e nos
obliteraram a simplicidade e grandeza, nativas do co-
ração humano . Sahiu d'entre o povo o espirito de Deus ;
o que ahi ficou foi a culpa original, que reassumiu o
seu antigo imperio, como nos dias de Cain e sua des-
cendencia. Quem queria ser razoavel, sentia em si não
sei que impossibilidade de bem fazer; quem estendia
uma mão pacifica , via esta mão subitamente árida : 0
estandarte vermelho está arvorado nas trincheiras das
cidades ; a guerra foi declarada ás nações ; as palavras
do propheta cumpriram-se então : Os ossos dos reis de
Judá, os ossos dos padres, os ossos dos habitantes de
1
Jerusalem serão lançados fóra dos seus sepulchros.
Offendendo as tradições, calcam-se aos pés as consti-
tuições antigas ; offendendo as esperanças , nada se faz
em pró da posteridade : os tumulos e os filhos são por
igual profanados . N'esta fieira da vida, que nos foi
transmittida por nossos avós, e que nós devemos pro-
longar além de nós, só o presente nos occupa, e cada
qual devotado á sua propria corrupção , como um sa-
cerdocio abominavel, vive como se nada o precedesse,
e nada devesse succeder- lhe .
Em quanto este espirito de perdição devora interior-
mente a França, um espirito de, salvação a defende ex-
teriormente . Não ha prudencia nem grandeza senão nas
fronteiras ; no interior tudo em terra , no exterior tudo

1 Jerem., cap. viii , v. 1 .


PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 57

gloria. A patria já não está nos seus lares : está acam-


pada junto ao Rheno, como no tempo da raça de Mo-
roveu : dil-a-heis o povo judaico expulso da terra de
Gessen, subjugando as nações barbarescas do deserto .
Enlace tal de coisas não tem principio natural nos
acontecimentos humanos . Só o escriptor religioso póde
aqui descobrir um profundo designio do Altissimo : se
as potencias colligadas só quizessem suspender as vio-
lencias da revolução , e deixar depois a França reparar
seus males e erros , talvez vingassem. Deus , porém , viu
a iniquidade das côrtes, e disse ao soldado estrangeiro :
«Quebrarei o gladio na tua mão ; não destruirás o povo
de S. Luiz» .
D'este modo a religião ensina a definir os mais in-
comprehensiveis factos da historia . Demais, ha no nome
de Deus alguma coisa sobreexcellente que imprime ao
estylo certa emphase maravilhosa, de sorte que o es-
criptor mais religioso é por via de regra o mais elo-
quente . Sem religião póde haver espirito , mas genio ,
difficultosamente . Notae mais que o historiador crente
inspira confiança n'aquelle seu dizer de homem hon-
rado, que nos dispõe a crêl -o . O historiador sophista,
pelo contrario , afugenta a fé ; porque, mostrando - nos
sempre a sociedade a uma luz odiosa, propendemos a
julgal-o mau ou mentiroso.

CAPITULO II

Causas geraes que empeceram aos auctores modernos


o bom exito na Historia

CAUSA PRIMEIRA

Excellencias dos assumptos antigos

Occorre já uma objecção : se o christianismo é favo-


ravel ao genio da historia, porque é que os escriptores
modernos são, no geral, inferiores aos antigos n'esta
profunda e importante parte da litteratura ?
58 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Primeiro, o facto presumido por similhante objecção


não é de rigor veridico , pois que um dos mais bellos
monumentos historicos que existem , o Discurso ácerca
da historia universal, foi dictado pelo espirito do chris-
lianismo . Pondo de parte, porém, por um momento ,
esta obra, as causas da nossa inferioridade em historia,
se tal inferioridade existe, merecem ser averiguadas .
De duas especies nos parece que são : umas ligadas
á historia, outras ao historiador.
Na historia antiga ha um quadro que os tempos mo-
dernos não reproduziram . Os gregos fôram distinctos ,
sobretudo na magnitude dos homens ; os romanos na
magnitude das coisas . Roma e Athenas , partindo do
estado de natureza para chegarem ao extremo grau da
civilisação, sobem a escala dos vicios e virtudes , da
ignorancia e das artes . Vê-se crescer o homem e o seu
pensamento : primeiro, creança, depois , assaltado de
paixões da mocidade, forte e sabio na idade madura,
fraco e corrompido na velhice . O estado segue o ho-
mem, passando do governo real ou paternal ao governo
republicano, e cahindo no despotismo com a idade da
decrepitude .
Com quanto os modernos povos apresentem, como
logo mostraremos, algumas épocas interessantes, al-
guns reinados famosos, alguns retratos brilhantes, al-
guns feitos d'estrondo , força é assentir que elles não
ministram ao historiador o complexo de coisas , a sub-
limidade de lições , que completam e aperfeiçoam no
todo a historia antiga . Os modernos povos não princi-
piaram pelo primeiro passo, não se formaram por si
mesmos gradativamente , foram trasladados do fundo
das florestas e do estado selvatico para o meio das ci-
dades e do estado civil : são vergonteas novas enxerta-
das em tronco velho . Pelo que, na sua origem é tudo
escuro : vêdes ahi , a um tempo, grandes vicios e grandes
virtudes, grosseira ignorancia e relampagos de luz , va-
gas noticias de justiça e governação, mistura confusa
de costumes e linguagem: estes povos não passaram
nem pelo estado em que os bons costumes fazem as
PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 59

leis, nem pelo outro em que as boas leis fazem os cos-


tumes.
Quando estas nações chegam a cimentar- se sobre as
ruinas do velho mundo, um outro phenomeno retem
o historiador : tudo surge instantaneamente regulado ,
uma face uniforme em tudo, em toda a parte monarchia ;
apenas algumas pequenas republicas, que se transfor-
mam em principados, ou são absorvidas por nações
visinhas . Ao mesmo tempo se desenvolvem as artes e
sciencias, mas tranquillamente e sem ruido . Desaggre-
gam -se, para assim dizer, dos humanos destinos ; nada
já influem sobre a sorte dos imperios . Relegadas para
uma classe de cidadãos , mais se tornam objecto de luxo
e curiosidade , que um sexto sentido das nações .
Assim a um tempo os governos se consolidam . Uma
balança religiosa e politica sustenta o equilibrio das
diversas partes da Europa ; o menor estado moderno
póde gloriar- se d'uma duração igual á dos imperios dos
Cyros e dos Cezares . O christianismo foi a ancora que
fixou tantas nações fluctuantes, aferrando aos portos
esses estados que se espedaçarão, se chegarem a romper
a cadêa commum a que a religião os prende .
Ora, disseminando pelos povos esta uniformidade,
ou, digamol-o assim , esta monotonia de costumes que
as leis davam ao Egypto , e ainda agora dão aos indios
e chinas, o christianismo por força desavivou as côres
da historia . Essas virtudes geraes, taes como a bene-
ficencia, o pudor, a caridade, com que elle substituiu
as ambiguas virtudes politicas : essas virtudes , dizemos ,
figuram menos no theatro do mundo . Como são verda-
deiras virtudes, evitam o brilho e o ruido : ha nos mo-
dernos povos um certo silencio dos tramites da vida ,
que desanima o historiador . Não nos lastimemos por
isso ; o homem moral de hoje é muito superior ao an-
tigo homem moral. Um culto abominavel não perver-
teu a nossa razão ; não adoramos monstros ; a impudi-
cicia não passa de fronte erguida entre os christãos ;
não temos escravos nem gladiadores . Não vae longe o
dia em que o sangue nos horrorisava . Ah ! não inve-
jemos aos romanos o seu Tacito, se é preciso havermol- o
á custa de um Tiberio.
60 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO III

Seguimento do anterior

SEGUNDA CAUSA

Os antigos exhauriram todos os generos de Historia,


excepto o genero Christão

A esta primeira causa da inferioridade de nossos


historiadores, inferida do essencial dos assumptos, ha
de ajuntar- se outra, que impende do modo como os an-
tigos escreviam a historia . Tendo estes consumido
todos os generos de pintura , era necessario que o chris-
tianismo proporcionasse um novo genero de pensar e
reflectir, aliás os modernos nunca poderiam dar á his-
toria uma physionomia nova.
Viçosa e brilhante em Herodoto, expôz aos olhos da
Grecia a pintura do nascimento da sociedade e dos cos-
tumes primitivos dos homens . Havia então a vantagem
de escrever os annaes da fabula, escrevendo os da ver-
dade . Era obrigatorio pintar, e não o era reflectir : os
vicios e as virtudes das nações estavam ainda na sua
idade poetica .
Outro tempo, outros costumes . Thucydides foi pri-
vado d'esses quadros do berço do mundo, mas forrageou
n'um campo ainda inculto da historia . A traços severos
pintou os males causados pelas dissenções civis , dei-
xando á posteridade exemplos, que ella não aproveita.
Xenophonte descobriu , por sua vez, uma estrada
nova. Sem fazer- se pesado , nem descurar a elegancia
attica, lançou ao coração humano piedosos olhares, e
gerou historia moral.
Collocado em mais vasto theatro, e no unico paiz
onde foram conhecidos dois generos de eloquencia, a
do tribunal e a do forum , Tito - Livio trasladou-as para
os seus escriptos : foi o orador da historia, como Hero-
doto fôra o poeta .
Emfim, a corrupção dos homens, os reinados de
PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 61

Tiberio e Nero engendraram o derradeiro genero de


historia, o genero philosophico . As causas dos successos
que Herodoto inquiriria entre os deuses , Thucydides
nas constituições politicas, Xenophonte na moral , Tito-
Livio n'essas diversas causas reunidas , viu-as Tacito na
protervia do coração humano.
Não se segue que esses grandes historiadores bri-
lhassem exclusivamente no genero que lhes attribui-
mos ; parece-nos, porém, que o predominante em seus
escriptos é esse . Entre esses caracteres primitivos da
historia, acham-se variantes que foram exercitadas por
historiadores de ordem secundaria . Polibio está entre
o politico Thucydides e o philosopho Xenophonte ; Sal-
lustio participa de Tacito e Tito-Livio; mas o primeiro.
- excede-o na energia do pensamento, e o outro na graça
da narrativa . Suetonio conta a anecdota sem reflexão
nem resguardo ; Plutarco ajunta-lhe a moralidade ; Va-
lerio Paterculo aprendeu a generalisar a historia sem
desfigural-a ; Floro fêl -a como epitome philosophico ;
finalmente, Diodoro Siculo, Trogue-Pompeu, Dionysio
de Halicarnasso , Cornelio Nepote, Quinto Curcio, Au-
relio Victor, Ammiano Marcellino, Justino, Eutropio,
e outros que calamos ou nos não lembram, encaminha-
ram a historia até ao tempo em que ella chegou ás
mãos de auctores christãos , época em que tudo mudou
no espirito e costumes dos homens .
Não se dá com as verdades o que é proprio das illu-
sões : estas são inexhauriveis ; e o circulo das primeiras
tem limites : a poesia é nova sempre, porque o erro já-
mais envelhece ; e é o que faz o gracioso á vista hu-
mana . Mas , em moral e historia, gira- se no terreno
estreito da verdade ; é forçoso, a despeito de tudo , re-
caír em observações conhecidas . Que vereda historica.
ainda não trilhada, restava aos modernos ? Podiam
imitar apenas, e, n'essas imitações, muitas causas lhes
tolheriam o accesso á altura dos seus modelos . Como
poesia, a origem dos cattos , dos teucteros, dos mattia-
cos nada tem d'esse brilhante Olympo, d'essas cidades
construidas ao som da lyra, d'essa encantada infancia
dos helenos e pelasgos ; como politica, o regimen feudal
62 O GENIO DO CHRISTIANISMO

vedava grandes lições ; como eloquencia, havia ahi só a


do pulpito ; como philosophia, os povos não eram ainda
assaz desgraçados e corrompidos , para que ella come-
çasse a apparecer.
Todavia fôram, com mais ou menos felicidade , imi-
tados . Bentivoglio , em Italia, seguiu Tito -Livio , e seria
eloquente se não fosse affectado . Davila, Guicciardini
e Fra-Paolo fôram mais singelos, e Marianna, em Hes-
panha, revelou excellente vocação ; desgraçadamente
este ardente jesuita deshonrou um genero de litteratura,
cujo primeiro merito é a imparcialidade . Hume, Ro-
bertson e Gibbon seguiram mais ou menos Sallustio
ou Tacito ; mas este ultimo historiador produziu dois
homens tão insignes como elle : Machiavel e Montes-
quieu .
Tacito, não obstante, deve ser escolhido para mo-
delo com cautela : é mais seguro imitar Tito -Livio . A
eloquencia do primeiro é-lhe particular de mais para
ser exercitada por quem não lhe fôr igual em genio .
Tacito, Machiavel e Montesquieu formaram uma escola
perigosa; introduzindo essas palavras ambiciosas, essas
phrases áridas , esses ornatos rapidos, que, sob appa-
rencia de brevidade, degeneram em obscuridade e mau
gosto .
Deixemos, pois , tal estylo a esses genios immortaes ,
que por diversas causas se crearam um genero exclu-
sivo ; genero que elles podiam sustentar, e cuja imitação
é arriscada . Lembremo- nos que os escriptores dos es-
plendidos seculos litterarios ignoraram a concisão affe-
ctada de ideias e palavras . Os pensamentos de Tito - Livio
e Bossuet são abundantes , e concatenados entre si ; cada
palavra deriva da palavra anterior, e torna-se o germen
da palavra adveniente . Não é por saltos , intervallos e
em linha recta que os grandes rios correm (se tal ima-
gem nos é licita) : trazem de longinqua origem uma
onda, que continuamente engrossa ; nos plainos dila-
tam -se ; abraçam com suas immensas roscas cidades e
levam ao oceano ingente aguas capazes de encherem
seus abysmos .
PARTE TERCEIRA --- LIVRO TERCEIRO 63

CAPITULO IV

Porque teem os francezes « Memorias » sómente ?

Outra questão com referencia aos francezes : porque


temos só Memorias em vez de historia , e porque são
essas Memorias, na maior parte, execellentes ?
O francez foi sempre, e ainda quando barbaro, futil,
inquieto e sociavel. Reflecte pouco sobre os objectos
em globo ; mas observa curiosamente os pormenores ,
e o seu relancear d'olhos é prompto, seguro e dedicado ;
importa que elle esteja sempre em scena, e nem como
historiador consente em sahir do terreno . As Memorias
faculfam-lhe liberdade de voejar com o genio . Sempre
em scena, narra as suas observações sempre agudas ,
e por vezes profundas . Apraz-lhe o dizer : Eu estava lá;
o rei disse-me ... Eu soube do principe ... Aconselhei...
Previ o bem e o mal . Satisfaz -se -lhe com isto o seu
amor proprio ; ostenta ao leitor o seu espirito ; e o desejo
que tem de mostrar-se pensador engenhoso , encaminha
muitas vezes a discernir com acerto . Além de que,
n'este genero de historia , não é obrigado a abdicar as
paixões, das quaes elle penosamente se desfaz . Tal
coisa ou tal personagem enthusiasmam- o ; e , agora in-
sultando o bando opposto, e logo escarnecendo o seu,
o francez exerce por igual a sua vingança e malicia .
Desde o senhor de Joinville, até ao cardeal de Retz ,
desde as Memorias do tempo da Liga, até ás do tempo
da Fronde, este caracter em tudo se revela, e até no
grave Sully se denuncía. Quando, porém, quer trasla-
dar- se para a historia esta arte dos pormenores, mu-
dam as correlações ; confundem-se nos grandes qua-
dros as pequenas variantes, como ligeiras rugas na
face do oceano . Então, forçados a generalisar as nos-
sas observações, cahimos no espirito systematico . Por
outro lado, não podendo fallar de nós ás claras, escon-
demo-nos atraz das nossas personagens . Na narração
tornamo- nos áridos e minuciosos , por isso que con-
versamos melhor do que narramos ; nas reflexões geraes
64 O GENIO DO CHRISTIANISMO

somos pêcos ou vulgares , porque só conhecemos cabal-


mente o homem da nossa sociedade . 1
Finalmente a vida privada dos francezes é pouco
favoravel á indole da historia . O repouso da alma é
necessario a quem quer escrever doutamente ácerca
dos homens ; ora, os nossos litteratos , que , na maior
parte, vivem sem familia , ou fóra da familia, e nutrem
na sociedade paixões inquietas e dias miseravelmente
consagrados aos triumphos do amor proprio, estão, por
seus costumes, em antagonismo directo com a serie-
dade da historia . Este uso d'encerrar a nossa existen-
cia n'um circulo, delimita-nos por força a vista e res-
tringe-nos as ideias . Todos embebidos n'uma natureza
convencional, não conhecemos a verdadeira ; ácerca
d'esta, só raciocinamos á força d'espirito, e como even-
tualmente ; e, se topamos a verdade, é menos um facto
da experiencia, que uma coisa adivinhada .
Concluamos, pois, que é á mudança da ordem das
coisas humanas e dos tempos , á difficuldade de desco-
brir veredas novas em moral, em politica e philosophia,
que se deve attribuir o insufficiente resultado dos mo-
dernos na historia ; e, nomeadamente os francezes, se
apenas têm boas Memorias , deve procurar- se na pro-
pria indole d'elles a causa d'esta singularidade .
Alguem quer attribuir essa falta a causas politicas :
disseram que se a historia se não levanta hoje onde os
antigos a elevaram, é porque o genio independente
d'ella tem estado sempre a ferros . Esta asserção pa-
rece-nos ir d'encontro aos factos . Em tempo, ou paiz
algum, qualquer que tenha sido a fórma governamen-

1 Sabemos que ha excepções, e que alguns francezes se hão dis-


tinguido como historiadores. Em breve faremos justiça ao seu mere-
cimento ; parece- nos , porém, que será erro oppórem-nol-os como ob-
jecções que não destroem um facto geral. Se déssemos n'isso, quaes
juizos seriam verdadeiros em critica ? As theorias geraes não são da
natureza do homem ; o mais depurado em verdade tem em si uma
mescla da mentira . A verdade humana é similhante ao triangulo ,
que só pode ter um angulo recto ; parece que a natureza quiz gravar
uma imagem da nossa insufficiente rectidão na unica sciencia repu-
tada certa entre nós.
PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 65

tal, nunca a liberdade de pensar foi mais ampla que em


França no tempo da monarchia . Poderão , de certo,
citar alguns factos de oppressão, algumas censuras
rigorosas ou injustas, mas esses factos não contraba-
1
lançariam o numero de exemplos contrarios . ¹ Abram- se
as nossas Memorias, e em cada pagina verão as mais
duras verdades, e muitas vezes as mais ultrajantes , pro-
digalisadas aos reis , aos nobres e ao clero . O francez
nunca vergou humildemente sob o jugo ; desforrou -se
sempre da repressão, que as fórmas monarchicas lhe
impunham, pela independencia da opinião . Os Contos
de Rabelais , o Tratado da servidão voluntaria de Boecio ,
as Tentativas de Montaigne, a Sabedoria de Charron ,
as Republicas de Bodin , os escriptos em pró da Liga,
o tratado em que Marianna chega a defender o regici-
dio, provam assaz que não é só de agora que se ousa
examinar tudo . Se é o titulo de cidadão , e não o de
subdito, que faz exclusivamente o de historiador, porque
é que Tacito, Tito-Livio mesmo, e , entre nós , Montes-
quieu e o bispo de Meaux, proferiram severas lições
sob o imperio dos senhores mais absolutos da terra ?
Certo, que arguindo os factos deshonestos, e elogiando
os bons, esses grandes genios não entenderam que a
liberdade d'escrever consistia em derrubar os governos ,
abalar as bases do dever ; se , em verdade, houvessem
feito uso tão pernicioso do seu talento, Augusto, Tra-
jano e Luiz forçal -os-iam ao silencio ; mas esta especie
de dependencia não será mais um bem que um mal ?
Quando Voltaire se submetteu a uma censura legitima,

1 Responderei com um só facto a todas as objecções que possam


fazer-me contra a antiga censura. Não é em França que se tem com-
posto, vendido, publicado , e, muitas vezes, impresso todas as obras
contra a religião ? e os proprios grandes não eram os primeiros a fa-
zel-as válidas e a protegel-as ? A censura, pois, n'este caso, era ape-
nas uma coisa irrisoria, porque nunca pôde impedir que um livro se
publicasse, nem que um auctor escrevesse livremente o seu pensa-
mento sobre toda a especie d'assumptos. Além de que, o maior mal
que podia acontecer a um escriptor era ir passar alguns mezes á Bas-
tilha, d'onde não tardava a sahir com as honras d'uma perseguição,
que, algumas vezes, era o seu unico titulo à celebridade.
VOL. II 5
66 O GENIO DO CHRISTIANISMO

deu-nos Carlos XII e o Seculo de Luiz XIV; quando se


desenfreou, produziu o Ensaio ácerca dos costumes . Ha
verdades que são a origem das maiores desordens ,
porque revolvem as paixões ; e, comtudo , se nos não
obriga ao silencio uma justa auctoridade , são essas
mesmas verdades as que nos apraz revelar ; porque con-
tentam simultaneamente a malicia de nossos corações
derrancados pela quéda, e a nossa primitiva tendencia
para a verdade .

CAPITULO V

O bom da historia moderna

E' um dever examinar agora o reverso das coisas , e


mostrar que a historia moderna poderia ainda tornar- se
valiosa, se fosse tratada por mão habil . O estabeleci-
mento dos francos nas Gallias, Carlos Magno, as cru-
zadas, a cavallaria , uma batalha de Bouvines, um com-
bate de Lepanto, um Conradino em Napoles, um Hen-
rique IV em França, um Carlos I em Inglaterra, são,
pelo menos , épocas memoraveis, costumes singulares,
acontecimentos famosos, catastrophes tragicas . Mas a
grande tentativa do historiador moderno seria a mu-
dança que o christianismo operou na ordem social . O
Evangelho, dando bases novas á moral, modificou a
indole das nações, e creou na Europa homens inteira-
mente diversos dos antigos por opiniões, governação,
costumes, usos, sciencias e artes .
E que traços caracteristicos não offerecem nações
novas ? Aqui, os germanos , nações onde a corrupção
dos grandes jámais influiu nos pequenos, onde a in-
differença dos primeiros pela patria jámais tolheu o
amarem -a os segundos ; povos , em que o espirito de
revolta e fidelidade, de escravidão e independencia já-
mais se desmentiu desde o tempo de Tacito . Além , os
bátavos , que tiram o espirito do bom discernimento ,
engenhosos por industria, virtuosos por fleugmaticos,
PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 67

e apaixonados racionalmente . A Italia dos cem prin-


cipes e das magnificas recordações contrasta com a
Suissa obscura e republicana.
A Hespanha, separada das outras nações , apresenta
ao historiador um caracter ainda mais original : a espe-
cie de estagnação de costumes em que repousa ser-
lhe-ha util talvez um dia ; quando os povos europeus
estiverem gastos pela corrupção , só a Hespanha poderá
resurgir radiosa sobre a scena do mundo, porque o
essencial dos seus costumes subsiste lá .
Cruzamento de sangue allemão e francez , o povo
bretão mostra em tudo a sua dupla origem. O seu go-
verno formado de realeza e aristocracia, a sua religião
menos pomposa que a catholica , e mais brilhante que
a lutherana, o seu soldado a um tempo pesado e activo,
litteratura e artes , emfim , até a linguagem e fórmas
corporeas, tudo participa das duas origens d'onde pro-
cede . A simpleza, á serenidade, ao bom juizo , á mo-
rosidade germanica, ajunta o lustre, ardimento e a
vivacidade do espirito francez.
Os inglezes possuem o espirito publico, nós o decoro
nacional : as nossas excellentes qualidades mais são
donativos do favor divino, que fructos de educação po-
litica : á maneira dos semi -deuses , temos menos da terra
que do céo.
Primogenitos da antiguidade, os francezes , de seu
natural romanos, são gregos por caracter. Inquietos
e levianos na prosperidade ; constantes e invenciveis nos
revezes ; feitos para as artes ; civilisados até ao excesso
durante a paz do Estado ; selvagens e grosseiros nas
rebelliões politicas , fluctuantes como navios sem lastro
ao sabor as paixões ; agora no céo, logo nos abysmos ;
enthusiastas pelo bem e pelo mal, praticando o primeiro
sem mira na ganancia, e o segundo sem pungimentos.
de remorsos ; esquecendo crimes e virtudes ; amantes
covardes da vida durante a paz ; prodigos d'ella nas pe-
lejas ; vãos, mofadores, ambiciosos, por igual rotineiros
e innovadores, desprezando o que não é elles ; os mais
amaveis homens individualmente, e collectivamente os
mais desagradaveis ; urbanos na sua terra, e intoleraveis
68 O GENIO DO CHRISTIANISMO

no estrangeiro ; a revez mais mansos e meigos que um


cordeiro, e mais carniceiros e ferozes que um tigre : taes
fôram os athenienses d'outr'ora , e taes são os francezes
de hoje .
D'est'arte, pezadas as vantagens e desvantagens da
historia antiga e moderna, é tempo de lembrar ao leitor
que, se os historiadores da antiguidade são, em geral,
superiores aos nossos, esta verdade soffre todavia gran-
des excepções . Graças ao genio do christianismo, vamos
mostrar que o espirito francez, na historia, quasi attin-
giu a mesma perfeição que nos outros ramos da litte-
ratura .

CAPITULO VI

Voltaire como historiador

«Voltaire, diz Montesquieu, não escreverá jámais


uma boa historia ; é como os frades, que nunca escre-
vem pela materia que tratam, mas para gloria da sua
ordem . Voltaire escreve para seu convento » .
Este juizo , applicado ao Seculo de Luiz XIV, e á
Historia de Carlos XII, é rigoroso de mais ; é, porém,
justo a respeito da Tentativa ácerca dos costumes das
nações. Dois nomes principalmente amedrontavam
os que combatiam o christianismo , Pascal e Bossuet.
Era forçoso, pois, aggredil-os, e curar de destruir-lhes
indirectamente a auctoridade .. D'ahi procede a edição
annotada de Pascal, e a Tentativa que pretenderam
contrapôr ao Discurso ácerca da historia universal . Já-
mais, porém, o partido. anti-religioso, a muitos respei-
tos experto, commetteu erro mais crasso, e solicitou
maior triumpho ao christianismo . Como é que Vol-
taire, com tão bom discernimento e justeza de espirito,

1 Voltaire deixou escapar , na sua Correspondencia, uma expres-


são, que bem mostra a verdade historica e a intenção com que escre-
via esta Tentativa. Lancei, diz elle, os dois hemispherios no ridiculo :
è um golpe infallivel, (An. de 1754, Corresp. ger. , vol. v, pag. 94) .
PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 69

não comprehendeu o risco d'uma lucta peito a peito


com Bossuet e Pascal ? Succedeu- lhe em historia o que
sempre he succedeu em poesia : é que, declamando.
contra a religião , as suas mais excellentes paginas são
christãs, como n'este retrato de S. Luiz .
Diz elle: « Luiz IX parecia um principe destinado a
reformar a Europa , se ella podésse sêl - o ; a tornar a
França triumphante e civilisada ; e a ser, em tudo, mo-
delo de homens . Piedoso como um anachoreta , tinha ,
ao mesmo tempo, todas as virtudes de rei . Uma sábia
economia não lhe damnificava a liberdade . Soube con-
ciliar politica profunda com exacta justiça, e foi , talvez ,
o unico soberano que similhante elogio mereceu . Pru-
dente e firme no conselho ; intrepido nos combates , sem
arrebatamento ; compassivo, como se tivesse sido sem-
pre desgraçado, nenhum homem transcendeu mais em
virtude ... Ferido de peste á vista de Tunis ... fez que
o deitassem na cinza, e expirou aos cincoenta e cinco
annos da sua idade, com a piedade d'um religioso e a
coragem d'um grande homem » .
N'este retrato, escripto com tamanha elegancia,
Voltaire, fallando do anachoreta, queria abater o heroe?
De certo ; mas vêde o erro ! O drama e a excellencia
d'aquelle quadro está precisamente no contraste das
virtudes religiosas e virtudes guerreiras , da humani-
dade christã e magnificencia real .
O christianismo realça forçosamente o luzimento das
pinturas historicas, dando relevo, digamol - o assim , na
tela ás personagens , e fazendo lustrar o colorido vivo
das paixões n'um fundo sereno e suave . Menosprezar-
lhe a moral terna e melancolica, seria renunciar ao
unico expediente novo de eloquencia, que os antigos
não tiveram . Não duvidamos que Voltaire , se tivesse
sido religioso, brilhasse como historiador : o que lhe
minguava era a gravidade : e, ainda assim, apezar de
suas imperfeições , é talvez, depois de Bossuet, o pri-
meiro historiador da França .
70 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO VII

Philippe de Commines e Rollin

Um christão possue em subido grau os attributos


que um antigo requer do historiador... bem discernir
as coisas do mundo , e dizer aprazivel.¹ Como escriptor
de Vidas , Philippe de Commines assimilha singular-
mente Plutarco ; chega a ser até mais ihano em simpli-
cidade, que o biographo antigo : Plutarco prima em ser
simples quasi sempre ; corre espontaneo após a ideia ; é
um agradavel impostor em locuções ingenuas .
De certo é mais douto que Commines ; e, sem em-
bargo, o velho senhor gaulez, com o Evangelho e a fé
nos eremitas, deixou, apezar d'ignorante , memorias
cheias de doutrina . Na antiguidade era preciso ser eru-
dito para escrever ; agora , um simples christão , devo-
tado, sem mais estudo , ao amor de Deus , muitas vezes
ha composto um volume admiravel . Isto fez dizer S.
Paulo : «Aquelle que, fallido de caridade, se afigura alu-
miado, nada sabe» .
Rollin é o Fénelon da historia, e , como elle , aformo-
seou o Egypto e a Grecia. Os primeiros volumes da
Historia antiga respiram o genio da antiguidade : a nar-
rativa do virtuoso reitor é cheia, simples e serena . O
christianismo , enternecendo-lhe a penna, ensinou -lhe
o segredo de commover o coração . Os espiritos d'ella
revelam o homem de bem, cujo coração é uma festa
incessante, 2 conforme a expressão maravilhosa da Es-
criptura. Não conhecemos obras que tranquillisem mais
suavemente a alma . Rollin derramou sobre os crimes
dos homens a paz d'uma consciencia immaculada , e
a ungida caridade d'um apostolo de Jesus Christo.
Nunca mais veremos renascerem esses tempos , em
que a educação da infancia e a esperança da posteri-
dade eram confiadas a similhantes mãos ?

1 Luciano, Como se ha de escrever a historia.


2 Ecclesiastic. , cap. xxx, v. 27.
PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 71

CAPITULO VIII

Bossuet, como historiador

No Discurso ácerca da historia universal , é que mais


póde admirar-se o influxo do genio do christianismo
sobre o genio da historia . Politico como Thucydides ,
moral como Xenophonte , eloquente como Tito-Livio,
tão profundo e grande pintor como Tacito, o bispo de
Meaux excede-os na gravidade e sublimidade da locu-
ção, de que não ha , n'outra parte, exemplo , a não ser
no exordio do livro dos Machabeus.
Bossuet é mais que historiador, é um padre da
Igreja, é um sacerdote inspirado, cuja fronte se illu-
mina muitas vezes , como a do legislador dos hebreus .
Que revista elle passa á terra ! como , a um tempo, exa-
mina mi logares ! Patriarcha sob a palmeira de To-
phel, ministro na côrte de Babylonia , sacerdote em
Memphis, legislador em Sparta, cidadão em Athenas e
Roma, muda de logar e de tempo a seu bel-prazer ;
passa com a rapidez e magestade dos seculos . Com a
vara da lei em punho, e auctoridade incrivel, conduz
confusamente ao tumulo judeus e gentios ; alfim vem
elle mesmo, no couce do prestito de tantas gerações ;
e caminhando apoiado em Isaias e Jeremias, eleva as
suas propheticas lamentações por sobre o pó e as reli-
quias da humanidede .
A primeira parte do Discurso ácerca da historia uni-
versal é admiravel pela narração ; a segunda, pela sub-
limidade do estylo e alta metaphysica das ideias ; a ter-
ceira, pela profundeza das inducções moraes e politicas.
Tito -Livio e Sallustio não diriam a respeito dos antigos
romanos mais sublimes palavras que estas do bispo de
Meaux :
«A indole d'um romano, para assim dizer, é o amor
da liberdade e da patria ; uma fazia-lhe amar a outra :
por quanto, amando elle a sua liberdade, amava tam-
bem sua patria como a mãe que o nutria de sentimentos
por igual generosos e livres.
72 O GENIO DO CHRISTIANISMO

«Sob este nome de liberdade os romanos idealisa-


vam, e mais os gregos , um estado em que só houvesse
subditos da lei, e onde a lei fosse mais poderosa que
alguem » .
Quem nos ouvisse declamar contra a religião , cui-
daria que um padre é necessariamente um escravo, e
que ninguem antes de nós soube raciocinar dignamente
sobre a liberdade : leiam, pois, Bossuet no artigo dos
gregos e romanos .
Quem melhor que elle fallou de vicios e virtudes ?
quem melhor ponderou as coisas mundanas ? A inter-
vallos , prorompe n'um d'esses raptos sem modelo na
eloquencia antiga, nascidos do genio do christianismo.
Por exemplo, depois de haver exaltado as pyramides.
do Egypto, accrescenta : « Por mais que os homens se
esforcem , o seu nada apparece em tudo . Estas pyra-
mides eram jazigos ; e os reis , que as construiram , não
conseguiram ainda ser trasladados para ellas , para
assim gosarem de seus moimentos » . ¹
Não se decide o que ahi se avantaja mais, se a gran-
deza da ideia, se o remontado da expressão . Esta pa-
lavra gosarem , applicada a um sepulchro , declara, a um
tempo, a magnificencia d'esse sepulchro, a vaidade dos
Pharaós, que o erigiram, a rapidez da nossa existencia,
emfim, o incredivel nada do homem, que, podendo só
como bem real possuir na terra um tumulo, é algumas
vezes , ainda assim, privado d'esse esteril patrimonio .
Notemos que Tacito fallou das pyramides , 2 e que a
sua philosophia nada lhe suggeriu comparavel á adver-
tencia que a religião inspirou a Bossuet : tão grande é
a influencia do genio do christianismo sobre o espirito
d'um grande homem !
O mais grandioso retrato historico, por Tacito , é o
de Tiberio ; mas o de Cromwel excede - o , porque Bossuet
é historiador ainda nas suas Orações funebres . Qué di-
remos do brado de prazer, que despede Tacito, fallando

1 Disc. dcerc. da hist. univ., 3.ª parte.


2 Ann., liv. 11 , 61 .
PARTE TERCEIRA LIVRO TERCEIRO 73

dos bructeros, que se estrangulavam á vista d'um acam-


pamento romano ? « Graças aos deuses, que tivemos o
prazer de contemplar esse combate sem nos intromet-
termos n'elle . Simples espectadores, vimos ( coisa admi-
ravel ! ) sessenta mil homens estrangularem- se defronte
de nós para nos recrearem . Oxalá, oxalá que as nações ,
já que nos não amam , nutram assim no seu coração
odio eterno entre si » . 1
Escutemos Bossuet :
« Depois do diluvio é que appareceram esses devasta-
dores de provincias, denominados conquistadores, que,
levados só da gloria do mando, exterminaram tantos
innocentes... Desde então, a cubiça ludibriou , sem ter-
mos, a vida humana ; vieram os homens ao extremo de
se matarem reciprocamente sem se odiarem ; o apogeu
da gloria, e o requinte da arte, foi matarem - se uns aos
outros ». 2
E' difficil deixar de adorar uma religião que tal diffe-
rença faz entre a moral d'um Bossuet e a d'um Tacito !
O historiador romano, após haver narrado que Thra-
syllo predissera o reinado de Tiberio, accrescenta : « A'
vista d'estes e quejandos factos, não sei se as coisas da
vida são ... subordinadas ás leis da immutavel necessi-
3
dade, ou se só impendem do acaso» . "
Seguem-se as opiniões dos pilosophos, que Tacito
gravemente adduz, deixando de sobejo suppôr que elle
crê nas predicções dos astrologos .
A razão, a sã moral e a eloquencia ainda pertencem
ao padre christão :
« A longa fieira de causas particulares que fazem e
desfazem imperios , depende das ordens secretas da
divina Providencia. Deus, das celestiaes alturas, go-
verna as redeas de todos os reinos ; e de sua mão im-
pendem todos os reinos ; e de sua mão impendem todos
os corações . Agora enfreia as paixões, logo relaxa- lhes

1 Tacito, Costumes dos germanos, xxx11 .


2 Disc. dcerc. da hist. univ.
3 Ann., liv. vi, 22.
74 O GENIO DO CHRISTIANISMO

as redeas, e assim revolve o genero humano ... Conhe-


ce a sabedoria humana, em tudo limitada : illumina-a,
alarga-lhe os horizontes, e depois abandona-a á sua
ignorancia. Cega-a, precipita - a, confunde- a por ella
mesma, que se enreda, e empece em suas proprias
subtilezas e precauções traiçoeiras ... E ' Elle ( Deus ) que
prepara estes effeitos nas mais remotas causas , e que
dá estes tremendos golpes, cuja repercussão tão longe
alcança... Mas que os homens se não enganem : Deus
guia, quando lhe apraz, o espirito desgarrado ; e o in-
sultador da estranha cegueira cahe em trevas mais cer-
radas, sem que para ensandecel - o seja preciso mais que
as longas prosperidades » .
Quanto é mediocre a eloquencia antiga a par d'esta
eloquencia christã !
LIVRO QUARTO

ELOQUENCIA

CAPITULO I

Influxo do christianismo na eloquencia

O christianismo tantas provas dá de sua excellencia,


que, se cuidaes ter de mostral - a n'um só assumpto , ou-
tro vos acode logo aos bicos da penna . Fallamos dos
philosophos, e ahi vem agora os oradores perguntar se
os olvidamos . Raciocinamos a respeito do christianis-
mo nas sciencias e na historia, e o christianismo nos
está chamando para lembrarmos ao mundo os mais
sublimes effeitos da eloquencia conhecidos . Os mo-
dernos devem á religião catholica a arte do discurso , a
qual, se a nossa litteratura a não tivesse, teria dado ao
engenho antigo uma incontestavel superioridade sobre
o nosso . E' este um dos maximos triumphos do nosso
culto : e, digam o que disserem encomiastas de Cicero
e Demosthenes , Massillon e Bossuet pódem, sem receio,
sustentar-lhes o confronto.
Os antigos unicamente conheceram a eloquencia ju-
diciaria e politica : a eloquencia moral, isto é, a de todo
o tempo , de todos os governos , de todos os paizes , só
com o Evangelho appareceu na terra .
Cicero defende um cliente ; Demosthenes combate
um adversario, ou cura de inflammar o amor patrio
n'um povo abastardado ; um e outro empenham -se em
mover as paixões , e fundam as esperanças do bom
exito na turvação que incutem nos animos . A eloquen-
76 O GENIO DO CHRISTIANISMO

cia do pulpito anhelou a victoria em mais elevada re-


gião . Combatendo os impetos da alma é que ella in-
tenta seduzil-a; apaziguando as paixões é que ella busca
fazer-se ouvir por ellas . Deus e caridade, eis ahi seu
texto, sempre o mesmo, sempre inexhaurivel . Brilha ,
sem dependencia dos ardis de bandos, dos motins po-
pulares, e das circumstancias estrondosas : na mais pro-
funda paz, ao pé do esquife do cidadão mais obscuro,
acodem-lhe os mais sublimes arroubamentos : uma vir-
tude ignorada lhe basta para captar; fará verter lagri-
mas por um homem de quem nunca se ouviu proferir
o nome . Incapaz de temor e de justiça, dá lições aos
reis, sem insultal- os ; consola o pobre, sem lisongear-
lhe os vicios . Conhece a politica e as coisas terrenas ;
essas coisas, porém , que eram o incentivo da eloquen-
cia antiga, são para ella razões secundarias , vê -as
da altura d'onde domina, á maneira de aguia, que,
do tôpo da serra, contempla os objectos no raso da
explanada .
A differença entre a eloquencia christã e a dos gregos
e romanos está n'aquella tristeza evangelica, cuja alma
é, segundo La Bruyère, n'aquella magestosa melancolia
de que se nutre . Lêem-se uma, e duas vezes talvez as
Verrinas, as Catilinarias de Cicero, e a oração em pró
da Corôa, e as Philippicas de Demosthenes ; mas ma-
nuseam-se e meditam -se sempre as Orações funebres
de Bossuet, e os Sermões de Bourdaloue e Massillon .
Os discursos dos oradores christãos são livros , os dos
oradores da antiguidade são meramente discursos . Com
que maravilhoso discernimento os santos doutores me-
ditam nas vaidades do mundo ! « Toda a nossa vida,
dizem, é a embriaguez d'um dia, e vós empregaes este
dia em cata de loucas chimeras . Chegareis ao cumulo
de vossos desejos , saciareis todos os vossos appetites,
sereis rei , imperador, senhor da terra ; mais um mo-
mento , e a morte dissipará esses nadas com vosso
nada» .
Este genero de meditação , tão grave e solemne, tão
ao natural guindado ao grandioso, foi de todo desco-
nhecido aos antigos oradores . Os pagãos consumiam-se
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 77

1
em cata das sombras da vida; ¹ ignoravam que a ver-
dadeira existencia começa na morte . Só a religião chris-
tă fundou esta grande escola do tumulo, onde se instrue
o apostolo do Evangelho ; não consente, como os semi-
sabios da Grecia, que se prodigalise o pensamento im-
mortal do homem em coisas momentaneas .
Demais, em todos os seculos e paizes, a caudal da
eloquencia foi a religião . Se Demosthenes e Cicero fô-
ram insignes oradores, é porque eram, sobretudo, re-
2
ligiosos . Os membros da Convenção , ao revéz, só os-
tentaram talentos mutilados, retalhos de eloquencia,
porque atacavam a fé de seus paes, e se vedavam assim
3
as inspirações do coração. ³

CAPITULO II

Dos oradores

DOS PADRES DA IGREJA

A eloquencia dos doutores da Igreja é magestosa,


forte, real, digamol - o assim, e auctorisada até vos con-
fundir e subjugar. Conhece - se que a sua missão vem

1 Job.
1 Constantemente trazem na boca o nome dos deuses. Vejam a
invocação do primeiro aos manes dos heroes do Marathon, e a apo-
theose do segundo aos deuses despojados por Verres.
2 Nem se diga que os francezes não tiveram tempo de se exer-
citarem na nova liça onde desceram : a eloquencia é um fructo das
revoluções ; cresce n'ellas espontanea e descultivada ; o selvagem e o
negro fallaram algumas vezes como Demosthenes. Álém d'isso, não
lhes escasseavam os modelos , pois que traziam entre mãos as obras
primas do antigo forum, e as d'esse forum sagrado, onde o orador
christão explica a eterna lei. Quando M. de Monthosier exclamava, a
respeito do clero, na assembléa constituinte : «Vos os expulsaes dos
seus palacios, elles irão ter à cabana do pobre que nutriram ; vós que-
reis as suas cruzes d'ouro, elles tomarão uma cruz de pau : foi uma
cruz de pau que salvou o mundo. Este rasgo não foi inspirado pela
demagogia, mas sim pela religião. Vergniaud, emfim, exaltou - se à
grande eloquencia , n'algumas passagens do seu discurso a favor de
Luiz xvi, porque o assumpto o alteou à esphera das ideias religiosas ;
as pyramides, os mortos, o silencio e os túmulos.
78 O GENIO DO CHRISTIANISMO

de cima, e que elles ensinam por ordem immediata do


Omnipotente . Todavia, no incendio da inspiração , con-
servam a serena magestade do genio .
Santo Ambrosio é o Fénelon dos padres da Igreja
latina . E' florído , suave e copioso , e, afóra os defeitos
do seculo, as suas obras prestam leitura tão agradavel
como instructiva : aos que quizerem convencer - se, bas-
ta-lhes a leitura do Tratado da Virgindade, e o Elogio
dos Patriarchas .
Quando se nomeia hoje um santo, vem á ideia al-
gum frade lerdo e fanatico, dedicado, por imbecilidade
ou por natural, a uma irrisoria superstição . Agostinho
offerece, todavia , diverso quadro . Um mancebo ardente
e superabundante de vida entrega-se ás paixões ; de-
pressa esgota as voluptuosidades , e espanta- se de que
os amores terrenos não possam encher o vasio de seu
coração . Aprôa para o céo a alma alvorotada ; voz in-
tima lhe segreda que é lá que existe a soberana formo-
sura que elle suspira . Deus lhe murmura á alma , e
este homem do seculo, que o seculo não podéra saciar,
encontra emfim o repouso e o complemento de seus
anhelos no seio da religião .
Montaigne e Rousseau deram -nos as suas Confissões .
O primeiro mofou da credulidade do seu leitor ; o se-
gundo revelou vergonhosas torpezas, apresentando - se
modelo de virtude, citando até o testimunho de Deus .
Nas Confissões de Santo Agostinho aprende- se a conhe-
cer o homem qual elle é . O santo não se confessa á
terra, é ao céo, nada esconde d'Aquelle que tudo sabe .
E' um christão genefluxo no tribunal da penitencia,
deplorando suas culpas , e patenteando-as, para que o
medico lhe applique o cauterio á chaga . Não teme
afadigar com miudezas Aquelle de quem disse estas
sublimes palavras : é paciente, porque é eterno . E que
retrato nos elle dá do Deus, a quem confia seus pec-
cados !
Diz : « Sois infinitamente grande, infinitamente mise-
ricordioso, infinitamente justo ; a vossa belleza é in-
comparavel, a vossa força irresistivel, a vossa pujança
illimitada . Sempre activo , sempre quieto , sustentaes,
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 79

encheis, conservaes o universo : amaes desapaixonado ,


sois ciumento sem turvação ; mudaes as vossas opera-
ções , e jámais os vossos planos ... Mas que digo eu , a
vós , meu Deus ! que póde ahi dizer-se de vós ? »
O mesmo homem que traçou esta brilhante imagem
do verdadeiro Deus, vae agora fallar-nos dos desvios da
sua mocidade com mui adoravel lhaneza :
<«<Fui emfim para Carthago . Mal cheguei , vi - me si-
tiado d'uma chusma d'amores culposos que se me apre-
sentavam por toda a parte ... A quietação parecia- me
insoffrivel, e eu atirava -me ás veredas precipitosas e
traiçoeiras .
«Mas a minha ventura estava toda em amar e ser
amado, porque ha ahi o querer achar a vida no que se
ama... Cahi emfim no visco onde eu anciava caír : fui
amado e possui o que amava . Mas, oh meu Deus, vós
me fizeste então conhecer vossa bondade e misericor-
dia, enchendo-me de amargura ; porque , em vez das
doçuras que eu havia phantasiado , só encontrei ciumes,
suspeitas, sustos, cóleras, desavenças e arrebatamen-
tos» .
O tom singelo, triste e apaixonado d'esta narração,
o retrogradar a Deus e á paz celestial, no instante' em
que o santo mais agitado parece por illusões da terra
e reminiscencias dos erros da sua vida : esta mistura
de saudades e remorsos é repassada de attractivos . Não
conhecemos phrase mais delicada que esta em senti-
mento : a minha ventura estava em amar e ser amado ,
porque ha ahi o querer achar a vida no que se ama.
E' ainda Santo Agostinho quem isto disse : «Uma alma
contemplativa faz- se assim mesma um ermo » . A Cidade
de Deus, as Cartas , e alguns tratados do mesmo padre,
abundam n'este lote de pensamentos .
S. Jeronymo brilha pelo vigor da imaginação , que
uma erudição immensa não podéra quebrantar-lhe . A
collecção das suas cartas é um dos mais valiosos mo-
numentos da litteratura dos padres. Como Santo Agos-
tinho, o escolho d'elle fôram as voluptuosidades mun-
danaes .
Dá- lhe jubilo pintar a natureza e a solidão . Do re-
80 O GENIO DO CHRISTIANISMO

cesso da sua gruta de Bethlem, vê a quéda do imperio


romano : assumpto vasto para o reflectir d'um santo
anachoreta ! Por isso, a morte e a vaidade de nossos
dias, estão , contínuo , presentes a S. Jeronymo !
«Morremos e mudamos de hora em hora, escreve
elle a um amigo , e comtudo vivemos como se fossemos
immorredouros . O tempo que emprégo agora dictando ,
é necessario agora mutilal- o de meus dias . A miudo
nos escrevemos , caro Heliodoro ; as nossas cartas
atravessam os mares, e á medida que o navio foge,
a nossa vida se esvae : cada onda lhe arrebata um
momento» . 1
Assim como Santo Ambrosio é o Fénelon dos pa-
dres , Tertulliano é o Bossuet . Porção do seu arrazoado
em pró da religião poderia servir hoje no mesmo pleito .
E' d'estranhar que o christianismo se veja hoje na dura
necessidade de defender-se perante seus filhos , como
outr'ora se defendia de seus algozes, e que a Apologe-
tica para os GENTIOS se convertesse em Apologetica para
OS CHRISTÃOS .
O que mais n'esta obra impressiona é o desenvol-
vimento do espirito humano : faculta- se- nos o accesso
a uma nova ordem de ideias ; presente - se que já não é
a antiguidade primeva, nem o balbuciar do homem que
se escuta.
Tertulliano falla como um moderno, os seus incen-
tivos de eloquencia procedem do circulo das eternas
verdades , e não das causas de paixão circumstancia ,
empregadas na tribuna romana ou na praça publica
dos athenienses . Taes progressos do genio philosophico
são evidentemente o fructo da nossa religião . Sem o
aniquilamento dos deuses falsos, e a restauração do
verdadeiro culto , o homem encaneceria n'uma infancia
infinita ; porque estando sempre no erro, relativamente
á causa final, os demais conhecimentos seriam mais
ou menos contaminados do vicio fundamental .
Os outros tratados de Tertulliano, nomeadamente os

1 Jeron., Epist.
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 81

da Paciencia, dos Espectaculos, dos Martyres , dos Or-


natos das mulheres, e da Resurreição da carne, são
matizados de profusas elegancias . « Não sei ( diz o ora-
dor, censurando o luxo das mulheres christãs ) se mãos
afeitas a braceletes poderão supportar o peso das al-
gemas ; se pés ornados de faixas poderão supportar o
peso das cadeas . Assaz receio que uma cabeça enre-
dada de perolas e diamantes não deixe logar ao gume
1
da espada». ¹
Estas palavras, dirigidas a mulheres que eram a
miudo levadas ao cadafalso , resplandecem de coragem
e fé.
Peza-nos não podermos citar integralmente a epis-
tola aos martyres , mais preciosa para nós depois da
perseguição de Robespierre : « Illustres confessores de
Jesus Christo, diz Tertulliano , um christão acha no
carcere as mesmas delicias que os prophetas achavam
no deserto ... Não o denomineis masmorra , chamae-lhe
antes solidão . Quando a alma está no céo, o corpo não
sente o peso das cadêas : o homem inteiro vae arreba-
tado n'ella» .
Este ultimo trecho é sublime.
Do padre de Carthago é que Bossuet copiou esta
passagem tão terrivel e admirada :
« Depressa a nossa carne muda de natureza, o nosso
corpo toma um novo nome ; até o de cadaver, diz Ter-
tulliano , dura pouco, por isso que ainda assim nos
mostra algumas feições humanas : converte - se em não
sei que, que não tem nome sabido em lingua algu-
ma... 2 : tão verdade é que tudo morre n'elle, até os fu-
nebres termos, pelos quaes se exprimem esses mise-
raveis restos » .
Tertulliano era doutissimo , posto que se argua de
ignorancia; deparam-se-nos em seus escriptos porme-
nores da vida privada dos romanos , que debalde se

1 Locum spatha non det. Póde traduzir- se : não vergue sob a es-
pada. Preferi a outra accepção como mais litteral e energica. Spatha,
de origem grega, é a etymologia da nossa palavra espada.
2 Oraç. funeb. da Duq. de Orl.
VOL. II 6
O GENIO DO CHRISTIANISMO

inquiririam n'outro logar. Frequentes barbarismos , e


latinidade africana, deslustram as obras d'este grande
orador . Cáe frequentes vezes no declamativo , e o seu
gosto é incerto . «O estylo de Tertulliano é de ferro,
dizia Balzac ; confessemos, porém, que forjou excellen-
tes armas com esse ferro » .
Segundo Lactancio, appellidado o Cicero christão,
S. Cypriano é o primeiro padre eloquente da Igreja
latina. Mas S. Cypriano imita quasi sempre Tertullia-
no, enfraquecendo por igual os defeitos e bellezas do
seu modelo. E ' o juizo de La Harpe, cuja auctoridade
em critica deve citar- se sempre .
Dos padres da Igreja grega dois são eloquentissi-
mos : S. Chrysostomo e S. Basilio . As homilias do pri-
meiro sobre a morte, e a desgraça de Eutropio são obras
primas . A elocução de S. Chrysostomo é pura, mas
laboriosa ; o seu estylo fatiga como o de Isocrates . Li-
banius destinára-lhe a sua cadeira de rhetorica antes
do joven orador se christianisar .
S. Basilio é mais fluente, e menos elevado que S.
Chrysostomo . Accommoda-se quasi sempre ao tom
1
mystico e á paraphrase da Escriptura .
S. Gregorio Nazianzeno, 2 appellidado o Theologo,
deixou- nos , entre suas obras em prosa, alguns poemas
dos mysterios do christianismo .
« Demorava sempre no seu ermo de Arianze, seu
paiz natal, diz Fleury : um jardim, uma fonte , arvoredo
que lhe formava o coberto , eram todas as suas deli-
cias . Jejuava , e orava com copioso pranto ... Essas
poesias sacras foram as occupações de S. Gregorio no
seu derradeiro retiro ... Ahi escreveu elle a historia
da sua vida e soffrimentos ... Ora , ensina, explica os
mysterios , e dá regras para os costumes ... Queria elle
dar aos que amavam a poesia e a musica assumptos
uteis para se recrearem , e não deixarem aos pagãos a

1 Ha d'elle uma carta famosa acerca do ermo : é a primeira das


suas epistolas, e serviu de base á sua regra .
2 Tinha um filho de igual nome e santidade.
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO

vantagem de se persuadirem que só elles podiam luzir


nas bellas lettras » . 1
Finalmente, o denominado o ultimo dos padres, an-
tes que Bossuet apparecesse, S. Bernardo, allia ao
grande talento a grande doutrina . Foi perfeito , sobre-
tudo, em pintar costumes , e algum tanto participava
do genio de Theophrasto e La Bruyère .
Diz : «O orgulhoso tem a voz imperiosa, e o silencio
carrancudo ; é dissoluto no gôso , furibundo na tristeza,
deshonesto no intimo, honesto no exterior ; no andar
é rude, nas respostas agro ; sempre rijo no ataque, e
molle na defeza ; cede com enfado, e importuna para
obter; não faz o que póde nem o que deve fazer ; mas
2
está prompto a fazer o que não deve e o que, não póde » .
Não esqueçamos o phenomeno do seculo XIII, o livro
intitulado a Imitação de Christo . Como é que o monge,
encerrado na sua cella , amoldurou a expressão, e adqui-
riu agudo conhecimento do homem, no meio do seculo
em que as paixões eram grosseiras, e mais grosseiro
ainda o gosto ? Quem lhe ha revelado, na solidão , esses
mysterios do coração e da eloquencia ? um só mestre :
Jesus Christo .

CAPITULO III

Massillon

Transpondo numerosos seculos, viremos a oradores,


cujos nomes só embaraçam muito certos individuos,
porque sabem que não bastam sophismas para destruir
a auctoridade de Bossuet, Fénelon, Massillon , Bourda-
loue, Fléchier, Mascaron, o abbade Poulle.
E'-nos penoso correr rapidamente sobre tantas ri-
quezas, sem nos podermos deter em cada um d'esses

1 Fleury, Hist. Eccl., tom. iv, liv. xix, cap. 1x, pag. 557.
2 De Mor., liv. XXXIV , cap. XVI .
84 O GENIO DO CHRISTIANISMO

oradores . Porém, como escolher entre tantos thesou-


ros ? como citar ao leitor o que lhe é desconhecido ?
Não engrossariamos em demasia estas paginas , pe-
jando- as d'essas illustres provas da excellencia do
christianismo ? Não empregaremos as forças todas ,
não abusaremos das nossas vantagens , por mêdo de
levar os inimigos do christianismo, forçados pela evi-
dencia, á obstinação , derradeiro reducto do espirito de
sophisma posto em apuros .
Pelo que não invocaremos o auxilio de Fénelon , tão
cheio de uncção nas meditações christãs, nem Bour-
daloue, força e victoria da evangelica doutrina: não
invocaremos o soccorro das doutas composições de
Fléchier, nem da brilhante imaginação do ultimo dos
oradores christãos, o abbade Poulle . O' religião, que
triumphos os teus ! Quem duvidaria da tua excellencia,
quando Fénelon e Bossuet occupavam teus pulpitos,
quando Bourdaloue instruia com magestosa voz um
monarcha ditoso então, para o qual, na desdita, o céo
misericordioso reservava o doce Massillon !
O bispo de Clermont não primava só na ternura de
genio : tambem expedia sons vigorosos e energicos .
Parece-nos que se ha sobejamente gabado a sua Peque-
na Quaresma; de certo que o auctor ahi revela grande
sciencia do coração humano, penetrante alcance dos
vicios cortezãos, moralidades escriptas com uma ele-
gancia que não damnifica a simplicidade ; mas eloquen-
cia mais compacta, estylo mais afouto, movimentos
mais patheticos e pensamentos mais profundos , encon-
tram -se em alguns de seus outros sermões, taes como
o da morte, o da impenitencia final, o do pequeno nu-
mero dos escolhidos, o da morte do peccador, o da ne-
cessidade d'um porvir, o da Paixão de Jesus Christo.
Lêde, por exemplo, esta pintura do peccador agoni-
sante :
« Ao cabo, na ancia de seus tristes esforços , param
seus olhos, as feições alteram-se, o rosto desfigura- se,
entreabre -se por si mesma a bôca livida , todo o corpo
estremece ; e , ao derradeiro esforço , sua desgraçada
alma arranca-se como pezarosa d'esse corpo de lôdo,
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 85

cáe entre as mãos de Deus, e acha-se sósinha ao pé do


terrivel tribunal» . 1
A este quadro do impio moribundo ajuntae o das
coisas do mundo no nada :
« Contemplae o mundo qual o vistes nos vossos pri-
meiros annos , e qual hoje o vêdes : uma nova côrte suc-
cedeu á que os vossos primeiros annos viram ; novos
personagens entraram em scena : as grandes partes
estão substituidas por novos actores : novos successos ,
novas intrigas , novas paixões, novos heroes , na virtude
e no vicio, são o mote das louvaminhas , das galhofas
e das censuras publicas . Nada é estavel, tudo muda,
tudo se usa, extingue -se tudo : só Deus é sempre o
mesmo. A torrente dos seculos , que arrasta os seculos
todos , passa diante de seus olhos , e Elle vê com indi-
gnação fracos mortaes, arrastados n'esse rapido curso ,
insultarem-o passando» .
O exemplo da vaidade de coisas humanas, tirado do
seculo de Luiz XIV, que acabava de escurecer- se ( e ci-
tado talvez perante os anciãos que haviam presenciado
a gloria d'elle ) é mui pathetico ! A phrase que remata
o periodo parece de Bossuet, tão rasgada e sublime é
ella !
Daremos um exemplo mais d'esse genero de solida
eloquencia que refusam a Massillon os que só fallam
da sua abundancia e doçura . D'esta vez extrahiremos
um logar, em que o orador dá de mão ao seu estylo
valido, isto é, a sentimentos e imagens, para ser apenas
um simples argumentador. No sermão da Verdade
d'um futuro, persegue assim o incredulo :
«Que diria eu mais ? Se tudo expira comnosco , fri-
volos cuidados são os do renome e da posteridade ; a
honra que se presta á memoria dos homens illustres,
é erro pueril, pois para riso é honrar o que não existe ;
a religião dos tumulos, é vulgar chimera ; cinzas de
paes e amigos, são vil pó, que é força entregar ao
vento, e que a ninguem pertence ; as extremas inten-

1 Massil., Morte do peccador, 1.ª parte.


86 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ções dos moribundos, sagradas entre os mais barbaros


povos, são o ultimo som d'uma machina que se des-
conjuncta; e, digamos tudo n'uma palavra, se tudo
expira comnosco , as leis são uma servidão insensata ;
reis e soberanos, phantasmas que a fraqueza dos povos
elevou ; a justiça, uma usurpação da liberdade humana ;
a lei do matrimonio, um escrupulo vão ; o pudor, um
prejuizo ; honra e probidade, chimeras ; os incestos, os
parricidios, as negras perfidias, brinquedos da natu-
reza, e nomes que politica dos legisladores inventou .
«E ' ao que se reduz a philosophia dos impios : eis-
aqui a força, a razão, a sabedoria que elles nos encam-
pam eternamente . Acatae as suas maximas, e o uni-
verso volta ao pavoroso cháos ; tudo é confusão na terra,
e todas as ideias do vicio e da virtude se aniquilam ,
desapparecem as leis mais inviolaveis da sociedade,
perece a disciplina dos costumes, o governo dos esta-
dos e dos imperios desconcerta-se, desfaz- se a harmo-
nia das corporações politicas, o genero humano con-
verte-se n'uma assembleia de loucos, de barbaros, de
velhacos, de desnaturados, que só tem por lei a força,
por freio as paixões e o temor da auctoridade, por vin-
culo a irreligião e independencia, por deuses elles mes-
mos : tal é o mundo dos impios ; e se esta traça de re-
publica vos apraz, formae, se podeis, uma sociedade.
d'esses monstros : o que me falta dizer-vos é que sois
dignos de ter ahi um logar » .
Compare-se Cicero e Massillon, Bossuet e Demos-
thenes, e achar- se-ha sempre a differença que já no-
tamos entre as suas eloquencias . Nos oradores chris-
tãos, ordem de ideias mais geral, conhecimento mais
profundo do coração humano, serie de raciocinios mais
clara, emfim, uma eloquencia religiosa e pathetica,
desconhecida á antiguidade .
Massillon fez algumas orações funebres , inferiores
aos outros discursos . O elogio de Luiz XIV é só nota-
vel na primeira phrase : «Deus só é grande, meus ir-
mãos » . Bello dito proferido em presença do jazigo de
Luiz, o Grande !
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 87

CAPITULO IV

Bossuet como orador

Que diremos de Bossuet como orador ? com quem


comparal-o ? quaes discursos de Cicero e Demosthenes
se não deslumbram diante das Orações funebres ? Es-
tas palavras d'um rei parece que fôram destinadas ao
orador christão : Ouro e perolas são assaz communs,
1
porém os doutos labios são vaso raro e inapreciavel.
Sem cessar dedicado ao tumulo , e como inclinado
sobre as profundezas d'uma outra vida, Bossuet folga
em proferir as tremendas palavras tempo e morte, que
repercutem aos abysmos silenciosos da eternidade . En-
golfa-se, submerge-se nas tristezas profundas, nas an-
gustias inconcebiveis . Após um seculo, os corações
estremecem ainda ao famoso brado : « Madame está em
paroxysmos , Madame expirou !» Quando receberam os
reis lições iguaes ? quando se exprimiu a philosophia
com tanta independencia ? O diadema é nada aos olhos
do orador : ante elle, o pobre é igual ao monarcha, e o
mais absoluto potentado do globo é obrigado a ouvir
dizer, em presença de milhares de testemunhas, que
as suas grandezas não são senão vaidade , que o seu
poder é sonho , e que elle em si não é mais que pó .
Tres coisas se succedem continuamente nos dis-
cursos de Bossuet : o rasgo de genio ou de eloquencia ;
a citação tão encasada no texto , que se identifica n'elle ;
a reflexão emfim, ou o relance de olho de aguia ás cau-
sas do successo referido . Muitas vezes , este luminar
da Igreja, tambem alumia as discussões de altissima
metaphysica, ou theologia mais sublimada : nada lhe
é escuro . O bispo de Meaux creou uma lingua que elle
só fallou, onde, por via de regra, o mais simples termo
e a mais relevante ideia, a mais commum expressão
e a mais terrivel imagem, alliam- se, como na Escri-
ptura, formando dimensões enormes e vehementes .

1 Prov., cap. xx, v, 15.


88 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Tal, quando elle exclama, apontando o sarcophago


de Madame: Eil-a alli, apezar d'esse grande coração ,
essa princeza tão admirada e tão querida: eil-a ahi tal
qual a morte nol-a, fez ! Porque estremecemos a esta
simples phrase : tal qual a morte nol-a fez ? E ' pelo
contraste que se acha entre esse grande coração, essa
princeza tão admirada, e o accidente inevitavel da
morte, que lhe succedeu como á mais indigente das
mulheres; é porque esse verbo fazer, applicado á morte ,
que desfaz tudo, produz contradicção nas palavras e
conflicto na alma ; como se, para pintar este desgra-
çado successo, as expressões mudassem de sentido , e
a linguagem soffresse o abalo que soffre o coração .
Já advertimos que os escriptores do seculo de
Luiz XIV, afóra Pascal, Bossuet, Massillon, La Fon-
taine, á mingua de vida retirada, desconheceram esta
especie de sentimento melancolico, de que hoje se
abusa estranhamente .
Como é, porém, que o bispo de Meaux, constante.
conviva das pompas de Versailles, conheceu a profun-
deza d'este melancolico scismar ? E' porque a religião
The deu a soledade ; é porque o seu corpo estava no
bulicio mundano, e o espirito no ermo ; é porque elle
abrigára o coração nos tabernaculos do Senhor ; e, como
elle o disse de Maria Thereza d'Austria , « porque o
viam ir aos altares a saborear com David um repouso
humilde, e engolfar-se no seu oratorio, onde, a despeito
-do tumultuar da côrte , elle encontrava o Carmelo de
Elias, o deserto de João , e o monte tantas vezes teste-
munha dos gemidos de Jesus» .
As Orações funebres de Bossuet não têm entre si
merecimento igual, mas são, por qualquer lado exami-
nadas, todas sublimes . A da rainha d'Inglaterra é um
primor de estylo, e um modelo d'escripto philosophico
e politico.
A da duqueza d'Orleans é a mais assombrosa, porque
inteira parte do genio . Não ha n'ella os quadros das
nações amotinadas, nem o desenvolvimento dos nego-
cios publicos, que sustenta a voz do orador. O inte-
resse que póde suggerir uma princeza expirante na
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 89

flor dos annos parece dever exhaurir-se rapido . Re-


sume-se tudo em alguns triviaes confrontos de belleza,
mocidade, grandeza e morte ; e, todavia, sobre terreno
assim esteril , Bossuet cimentou um dos mais bellos
monumentos da eloquencia ; d'ahi partiu para mostrar
a miseria do homem visto pela sua face morredoura,
e sua grandeza pela immortal. Começa por aviltal- o
abaixo dos vermes que roem nos sepulchros, para de-
pois o descrever glorioso com a virtude nas regiões in-
corruptiveis .
E ' sabido com que engenho , na oração funebre da
princeza Palatina, elle desceu, sem damnificar a ma-
gestade da arte oratoria , até á interpretação d'um so-
nho, ao mesmo tempo que ostentou n'esse discurso alta
capacidade para abstracções philosophicas .
Se os elogios de Maria Thereza e do chanceller
de França não têm a sublimidade dos primeiros , será
menos vasto o circulo , menos profunda a natureza das
ideias que o panegyrista expendeu ? — « E agora , diz
elle, essas duas almas piedosas (Michel Le Tellier e
Lamoignon) movidas, na terra, pelo desejo de fazer
reinar as leis , contemplam juntas, as claras , as eternas
leis d'onde derivam as nossas ; e , se alguma leve feição
de nossas frageis distincções apparece ainda n'uma
tão simples e clara visão , ellas, como attributo de regra
e de justiça, adoram Deus » .
Por entre estas theologias , quantos generos mais de
excellencias sublimes ou graciosas, tristes ou encanta-
doras ! Vêde o quadro da Fronde : « A monarchia aba-
lada desde os alicerces , a guerra civil, a guerra estran-
geira, o fogo dentro e fóra... Seria uma d'essas tem-
pestades , por meio das quaes o céo precisa desintu-
mecer- se algumas vezes ?... ou seria como o laborioso
parto da França, que ia dar á luz o reinado miraculoso
de Luiz ?» 1 Seguem-se reparos ás illusões das amiza-
des terrenas, as quaes «se vão com os annos e com
os interesses » , e á obscuridade do coração do homem

1 Oraç. fun. d'Anna de Gonz.


90 O GENIO DO CHRISTIANISMO

« que não sabe ao justo o que ha de querer, não sabe


o que quer, e tão refolhado falso é para os outros
como para si » . ¹
Sòa, porém, a trombeta, e Gustavo apparece :
«Apparece á Polonia, surpreza e atraiçoada, como
um leão que tem aferrada a preza nas garras, para
logo a fazer pedaços . Que é feito d'essa temerosa ca-
vallaria que rompe sobre o inimigo com a rapidez da
aguia ? Onde estão essas almas bellicosas , essas clavas
tão gabadas, esses arcos , que jámais cuspiram a setta
debalde ? Já não servem senão á fuga, diante do ven-
cedor, a ligeireza das cavallos e a destreza dos ho-
mens !» 2
Adiante, e no meu ouvido retine a voz d'um pro-
pheta . E' Isaias ? é Jeremias, que apostropha a ilha
da Conferencia e as pompas nupciaes de Luiz ?
«Sagradas festas, afortunado consorcio, véo nupcial,
benção, sacrificio, possa eu hoje mesclar vossas pompas.
e ceremonias com estas pompas funeraes , e o apogeu
das grandezas , com suas ruinas !» ³
O poeta (relevem-nos dar a Bossuet um titulo que
preenche a gloria de David ) o poeta obedece ainda ao
toque : já não dedilha a corda inspirada; mas, baixando
a lyra até ao tom em que Salomão descantava os reba-
nhos do monte Galaad, suspira estas serenas palavras :
«Na solidão de Saint-Fare , tão remota das estradas do
seculo quanto a sua bemaventurada situação a separa
de todo o commercio do mundo, n'esta santa monta-
nha, que Deus escolhera, havia já mil annos ; lá onde
as esposas de Jesus Christo reviviam a formosura dos
antigos dias ; lá onde os gosos mundanaes eram desco-
nhecidos ; lá onde as pégadas dos curiosos vagabundos
da terra se não viam ; sob o regimen da santa prelada,
que sabia dar o leite aos meninos, bem como o pão aos
4
fortes, os principios da princeza Anna fôram ditosos » .

1 Oraç. fun. d'Anna de Gonz.


2 Idem .
3 Oraç. fun. de Maria Theresa d'Austria.
4 Oraç. fun. d'Anna de Gonz.
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 91

Esta pagina, que parece extrahida do livro de Ruth ,


não cansou o pincel de Bossuet : sobra-lhe ainda sobe-
gidão do antigo e suave colorido para descrever uma
venturosa morte . « Michel Le Tellier diz elle come-
çou o hymno das divinas misericordias : MISERICORDIAS
DOMINI IN ÆTERNUM CANTABO . Cantarei eternamente as
misericordias do Senhor . Expira balbuciando essas pa-
lavras, e continúa com os anjos o sagrado cantico » .
Longo tempo crêramos que a oração funebre do
principe de Condé, excepto o rapto que a termina, era
geralmente louvada em excesso ; pensavamos que era
mais facil, como de feito é, conseguir as formas elo-
quentes do começo d'este elogio, que as do coração de
madame Henriette ; quando, porém, lêmos este discurso
attentamente ; quando vimos o orador embocar a tuba.
epica durante metade da narração , e entoar, com um
folgado desleixo, um canto de Homero ; quando, reti-
rando-se a Chantilly com Achilles a repousar, de novo
afina pelo tom evangelico , e encontra os excelsos pen-
samentos, as intuições christãs, que abundam nas pri-
meiras orações funebres ; quando, deixado na jazida
Condé, invoca povos, principes, prelados e guerreiros
á eça do heroe ; quando, emfim, o mesmo Bossuet, com
as alvejantes cans, entòa o canto do cysne, e já , com
um pé na sepultura, aponta o seculo de Luiz, cujos fu-
neraes parece celebrar, prestes a abysmar- se na eterni-
dade ; a este supremo assomo da eloquencia humana ,
lagrimas de admiração nos desceram nas faces , e o li-
vro nos cahiu das mãos .

CAPITULO V

Que a incredulidade é causa principal da decadencia


do gosto e do engenho

O que até aqui dissemos póde encaminhar o leitor


a esta reflexão, que a incredulidade é causa principal
da decadencia do gosto e do engenho. Perdida a fé em
92 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Athenas e Roma, desappareceram os talentos com os


deuses, e as musas entregaram á barbarie os que já
não tinham crença n'ellas .
N'um seculo illustrado, custa a crêr até que ponto
os bons costumes dependem do bom discernimento , e
o bom discernimento dos bons costumes . As obras de
Racine, apurando-se á medida que se apura a religio-
sidade do auctor, terminam alfim na Athalia. Pelo con-
trario, adverti como a impiedade e o genio de Voltaire
se manifestam ao mesmo tempo, em seus escriptos ,
por uma mixtão de coisas selectas e odiosas . O mau
gosto, tornado incorrigivel, é uma falsidade e juizo,
um viez natural nas ideias : ora como o espirito actua
sobre o coração, difficultoso é que as vias do segundo
sejam rectas, quando as do primeiro não o são . Quem
ama a deformidade , em época de mil obras primas que
podem advertir e emendar o gosto, não está longe de
amar o vicio : quem é insensivel á belleza, não admira
que despreze a virtude .
Escriptor que se nega a crêr em Deus, auctor do
universo e julgador dos homens, cuja alma fez im-
mortal, desterra das suas obras o infinito . Circumscreve
a ideia a um circulo de lôdo , d'onde não ha sahir . Nada
vê augusto na natureza ; tudo ahi se opéra por meios
impuros de corrupção e regeneração . O abysmo é ape-
nas uma pouca de agua bituminosa, as montanhas são
protuberancias de pedras calcareas e vitrificaveis; e o
céo onde o dia prepara immensa solidão , para servir
de acampamento ao exercito dos astros que, silencio-
sos, veem com a noite ; o céo , dizemos , não é mais que
estreita abobada momentaneamente suspensa pela mão
caprichosa do Acaso.
Se no que é da natureza o incredulo está assim aper-
tado, quem lhe dará eloquencia para descrever o ho-
mem ? As suas expressões são pobres, e os thesouros
da palavra estão para elle aferrolhados . Contemplae
no seio d'esse sepulchro, um cadaver, essa estatua do
nada, envolta n'um lençol : é o homem atheu ! Feto
oriundo do corpo impuro da mulher, abaixo dos ani-
maes em instincto, pó como elles , e volvendo - se em
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 93

pó como elles ; não tendo paixões , mas sim appetites ;


não obedecendo a leis moraes, mas sim a estimulos
physicos ; vendo ante elle como destino final o sepul-
chro e os vermes : tal é o sêr que se presumia animado
d'um halito immortal ! Não mais nos falleis em myste-
rios da alma, em secreto encanto da virtude : graças
infantis, amores juvenis, amizade nobre, elevação de
pensar, attractivos de patria e de tumulos , vossos en-
cantos nada são !
E' de forçosa necessidade que a descrença introduza
o espirito argumentador, as definições abstractas, o es-
tylo scientifico, e com elle o neologismo, coisas mor-
taes ao gosto e á eloquencia .
E' possivel que a somma dos talentos, repartidos
pelos auctores do seculo dezoito, seja igual á que re-
1
ceberam os escriptores do seculo dezesete . E porque
é o segundo seculo inferior ao primeiro ? Porque, di-
gamol - o já agora sem dissimulo, porque os escriptores
do nosso seculo fôram em geral collocados muito acima .
Se ha tanto que censurar, como não é possivel deixar
de convir, nas obras de Voltaire e Rousseau , que dire-
mos das de Raynal e Diderot ? Com razão elogiaram
o methodo dos nossos ultimos metaphysicos . Dever-
se-ia, ainda assim, observar que ha duas especies de
clarezas: uma entende com uma ordem vulgar de ideias
(um logar commum explica- se claramente) : a outra
procede d'uma admiravel faculdade de conceber e ex-
primir com clareza um pensamento forte e composto .
Os seixos no leito d'um regato facilmente se enxergam,
porque a agua não é profunda ; mas o ambar, o coral
e as perolas chamam o olho do mergulhador a immen-
sas profundezas, sob as ondas transparentes do abysmo .
Ora, se o nosso seculo litterario é inferior ao de
Luiz XIV, dêmos como achada a causa em nossa reli-
gião . Já mostramos quanto Voltaire lucraria se fosse

1 Concedemol-o à força da argumentação ; mas não o crêmos .


Pascal e Bossuet, Molière e La Fontaine são quatro homens totalmente
incomparaveis, e que se não verão jámais. Se não incluimos Racine
n'este numero, é porque elle tem um rival em Virgilio.
94 O GENIO DO CHRISTIANISMO

christão : hoje disputaria a palma ás musas de Racine.


As obras d'elle teriam um colorido moral, sem o que
não ha perfeição ; haveria n'ellas as memorias d'antigos
tempos , cuja ausencia tão vasias as torna . Quem re-
nega o Deus do seu paiz é , por via de regra , um ho-
mem sem acatamento á memoria de seus paes ; as cam-
pas nada o abalam ; as instituições de seus avós afigu-
ram-se-lhe costumes barbaros ; não lhe é já prazer re-
cordar as maximas, a doutrina, as inclinações de sua
mãe.
E' , comtudo , verdade , que a maior porção do genio
faz-se d'esta especie de recordações . As excellencias
que um auctor depõe n'um livro são os sentimentos
que lhe affluem da reminiscencia dos primeiros dias
da sua mocidade . Voltaire peccou gravemente contra
estas regras criticas (e todavia tão suaves ! ) , elle , que
sempre motejava os usos e costumes de nossos ante-
passados . Como é que o que delicía os outros homens
é sempre o que dissabora um incredulo ?
A religião é o poderosissimo incentivo do amor da
patria; os escriptores piedosos derramaram sempre em
seus escriptos esse nobre sentimento . Com que vene-
ração, e conceito magnifico não fallam sempre da
França os escriptores do seculo de Luiz XIV ! Ai de
quem injuría a sua terra ! Que a patria se canse de
ser ingrata antes que nós deixemos de amal - a ! seja o
nosso coração maior que as injustiças d'ella !
Se o homem religioso ama a patria, é porque o seu
espirito é ingenuo, e que os naturaes sentimentos que
nos prendem aos campos de nossos avós são como a
essencia e habito de seu coração . Dá a mão a seus
paes e filhos : está enraizado no torrão natal, como o
carvalho que vê em baixo as suas velhas raizes entra-
nharem -se na terra, e o seu tópo de renovos burbulhan-
tes aspirando ao céo .
Rousseau é um dos escriptores do seculo dezoito ,
cujo estylo mais seduz , porque este homem, adrede ex-
centrico, creára- se ao menos uma sombra de religio-
sidade . Tinha fé em alguma coisa que não era o Christo,
mas era, ainda assim, o Evangelho ; e esta sombra do
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 95

christianismo, tal qual era, algumas vezes lhe vestiu


de graças o engenho . Elle, que tanto se enfadára con-
tra os sophistas, não iria melhor, dando - se á ternura
da sua alma, que deixar- se perder, como elles, em
systemas cujos velhos erros remoçou ?
Buffon seria perfeito se tivesse tanta sensibilidade,
quanta eloquencia . Estranha observação, que sempre
estamos fazendo, e repetiremos até ao fastio , e da qual
nos peza não poder convencer o seculo : sem religião
não ha sensibilidade . Buffon surprehende, mas raro
enternece . Lêde o admiravel artigo do cão : todos os
cães ahi figuram : o cão de caça, o cão pastor, o cão
selvagem, o molosso, o fraldeiro . Que falta ahi ? o cão
do cego : e era d'esse que um christão primeiro se lem-
braria.
Quasi sempre, as connexões maviosas falharam a
Buffon . Justiça, não obstante , se faça ao grande pintor
da natureza : o seu estylo é de rara perfeição . Quem
bem quizer manter as boas graças, sem altear- se ou
abaixar-se muito, ha de concertar com solicitude o seu
espirito e proceder . E' notorio que Buffon respeitava
o que era digno de respeitar- se . Não acreditava que
ser philosopho era ser pregoeiro da descrença, e in-
sultador dos altares de vinte e quatro milhões d'almas .
Em seus deveres de christão era regular, e bom exem-
plo de seus domesticos . Rousseau, atido á essencia e
rejeitando as exterioridades do culto, revela em seus
escriptos a ternura do religioso no ruim tom de so-
phista : Buffon, por inversa razão , tem a aridez da phi-
losophia no decoro da religião . O christianismo deu
ao intimo do estylo do primeiro a magia, a languidez ,
o amor ; e á exterioridade do estylo do segundo, a or-
dem, a clareza, a magnificencia . De modo que as pro-
ducções d'esses homens celebres tem, tanto no bem
como no mal, o cunho do que abraçaram e rejeitaram
da religião .
Nomeando Montesquieu, recordamos o homem ver-
dadeiramente grande do seculo dezoito . O Espirito das
leis, e as Considerações das causas da grandeza dos
romanos, e sua decadencia, viverão em quanto viver
96 O GENIO DO CHRISTIANISMO

a lingua em que taes obras fôram escriptas . Se Mon-


tesquieu, n'um escripto da mocidade, feriu a religião
com alguns golpes dos que apontava aos nossos cos-
tumes, foi isso um erro passageiro, uma especie de
feudo pago á corrupção da regencia . Mas no livro, que
o leva á plana dos homens illustres. Montesquieu re-
para a offensa magnificamente , elogiando o culto que
atacára por imprudencia . A madureza dos annos, e
ainda o interesse de sua gloria persuadiram-o de que,
para erguer um monumento duradouro, importa cavar
os fundamentos em solo menos movediço que o pó
d'este mundo ; genio , que abrangia todas as épocas.
escorou-se na unica religião que tem a promessa de
todas as épocas .
Das nossas observações deduz- se que os escriptores
do seculo dezoito devem maior parte de seus defeitos
ao systema fallaz da philosophia ; e que chegariam mais
ao pé da perfeição, se tivessem sido mais religiosos .
Deu- se na nossa época, raros exceptuados , uma es-
pecie de aborto geral de talentos . Dir- se -ia até que a
impiedade, esterilisadora de tudo, tambem se mani-
festa no deperecimento da natureza physica . Olhae as
gerações que succederam ao seculo de Luiz XIV . Onde
estão esses homens de aspecto sereno e magestoso , de
porte e trajes venerandos, de linguagem pura, de garbo
classico e guerreiro, conquistador, e inspirado pelas
artes ? Buscam-se, e não se encontram. Homemzinhos
desconhecidos passeiam como pigmeus sob as alterosas.
arcarias dos monumentos d'outra idade . Na dura phy-
sionomia d'essa gente transluz o egoismo e desprêzo
de Deus, não ha pureza de linguagem, nem nobreza
de trajes : tomal -os-ieis não por filhos , mas sim por
histriões da grande raça que os precedeu .
Os discipulos da nova escola apagam a imaginação
com não sei que verdade que não é a verdadeira ver-
dade . O estylo d'esta gente é arido , a expressão refo-
lhada, a imaginação desamoravel, e sem flamma, nem
uncção, nem abundancia, nem simplicidade . Nas suas
obras está o vacuo e o definhamento : falta a immensi-
dade, porque não ha Deus ahi . Em vez d'esta maviosa
PARTE TERCEIRA LIVRO QUARTO 97

religião, d'esse harmonioso instrumento, de que os au-


ctores do seculo de Luiz XIV se serviam para achar a
afinação da sua eloquencia, os escriptores modernos
usam d'uma tacanha philosophia que tudo retalha,
e mede a compasso os sentimentos ; submette ao cal-
culo a alma, e reduz o universo, incluindo Deus, a uma
subtracção passageira do nada .
Pelo que, o seculo dezoito diminue quotidianamente
na perspectiva, ao passo que o dezesete parece accres-
cer á medida que nos alongamos . Um rebaixa-se , o
outro ascende aos céos . Embora queiram abater o
genio de Bossuet e de Racine, estes serão sempre como
o grandioso vulto de Homero, que se entrevê atravez
das gerações : o pó que levanta um seculo desmoronan-
do-se, algumas vezes o tolda ; mas, dissipada a nuvem,
vê-se resurgir a magestosa figura, que mais se engran-
deceu para dominar as novas ruinas .

VOL . II 17
f
LIVRO QUINTO

Harmonias da religião christã com as scenas da


natureza e as paixões do coração humano

CAPITULO I

Divisão das harmonias

Antes de entrar na descripção do culto, falta exa-


minar algumas materias que não podémos cabalmente.
desenvolver nos precedentes livros . Estas materias têm
referencia aos lados physico e moral das artes . Assim,
por exemplo, as localidades dos mosteiros, as ruinas
dos monumentos religiosos, etc. , concernem á parte
material da architectura, ao passo que os effeitos da
doutrina christã, as paixões do coração do homem e os
quadros da natureza, entram na parte dramatica e des-
criptiva da poesia .
Taes são os assumptos que ajuntamos n'este livro ,
sob o titulo geral de harmonias, etc.

CAPITULO II

Harmonias physicas

LOCALIDADES DOS MONUMENTOS RELIGIOSOS ,


CONVENTOS MARONITAS, COPHTAS , ETC.

Nas coisas humanas ha duas especies de natureza ,


collocadas uma no começo, outra no fim da sociedade .
100 O GENIO DO CHRISTIANISMO

A não ser assim, o homem, arredando- se sempre dat


sua origem, tornar-se-ia uma especie de monstro ; mas,
por lei providencial, quanto mais se civilisa, mais se
avisinha do seu primitivo estado : segue- se que a scien-
cia no grau supremo é a ignorancia, e que as artes
perfeitas são a naturéza .
Esta segunda natureza, ou esta natureza da socie-
dade, é a mais bella : o seu instincto é o genio , e a vir-
tude a sua innocencia; porque o genio e a virtude do
homem civilisado são a innocencia e o instincto aperfei-
çoados do selvagem . ' Ora, ninguem póde comparar um
indio do Canadá a Socrates , posto que o primeiro seja ,
fallando a rigor, tão moral como o segundo . Quem tal
asseverasse, teria de sustentar que a paz das paixões
embryonarias no menino tem excellencia igual á paz
das paixões subjugadas no adulto ; que o ser de puras
sensações é igual ao ser cogitante : o mesmo seria dizer
que a fraqueza é tão bella como a força . Um lagozinho
não desvasta as suas margens , e d'isso ninguem se
admira; a fraqueza dá-lhe o repouso : ama-se, porém,
a bonança no mar, porque elle tem o poder das tem-
pestades ; e admira- se o silencio do abysmo, porque elle
vem da propria profundeza das aguas .
De per meio aos seculos da natureza e aos da civi-
lisação ha outros que nós denominamos seculos de bar-
barie. Os antigos não os conheceram . Formam-se da
reunião subita d'um povo policiado com um povo sel-
vagem. A corrupção do gosto deve ser o distinctivo
d'essas idades . Por uma parte, o selvagem, senhorean-
do -se das artes, ' não tem a dexteridade precisa para se
apurar até á elegancia ; e da outra, o homem civilisado
carece de simplicidade para retroceder ao primitivo.
estado da natureza .
Não ha que esperar então pureza senão d'individuos
em que uma causa moral actua de si mesma, indepen-
dente de causas temporarias . Razão porque os primei-
ros solitarios, dados ao gosto delicado e seguro da re-
ligião, que nunca engana se lhe não misturam coisas
estranhas, escolheram nas diversas partes do mundo
os mais surprehendentes locaes para ahi fundarem
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 101

seus mosteiros . Não ha eremita que não escolhesse


tão artisticamente como Claude de Lorrain , e Le Notre,
o rochedo onde cavou a gruta.
Divisam- se aqui e acolá, na cordilheira do Libano,
conventos maronitas edificados sobre os abysmos . En-
tra-se n'uns por longas cavernas , cuja entrada se fecha
com fragmentos de rocha : outros só são accessiveis por
via de cestos que se guindam . O sacro rio brota da raiz
da montanha ; a floresta dos cedros negros domina o
quadro, e é dominada por tôpos esphericos coroados
de neve . Só depois que se entra no mosteiro é que a
maravilha cessa : no interior ha vinhedos, regatos , bos-
ques ; no exterior , uma natureza horrida , e a terra,
que com seus rios , campinas, e mares se esvaece em
aniladas profundezas. Alimentados pela religião, en-
tre a terra e o firmamento, sobre escarpadas penhas, é
d'ahi que piedosos solitarios enfiam seu vôo ao céo ,
como aguias da serrania . As cellulas orbiculares , e
separadas, dos conventos egypcios são encerradas no
circuito d'uma muralha, que os abroquela dos arabes .
Do viso da torre, edificada no meio d'estes conventos ,
descobrem-se charnecas de areia em que sobresahem
os pardacentos cumes das pyramides, ou marcos, que
ensinam o caminho ao viajeiro . Uma caravana abexim ,
errantes beduinos perpassam ás vezes , lá ao longe, em
alguns dos horizontes da movediça extensão ; não é
raro o vento do meio - dia empanar a perspectiva com
uma atmosphera de poeira . A lua pratêa um solo es-
calvado, em que as silenciosas brizas nem sequer en-
contram uma hervinha onde resoar um som . Ermo

10 abbade Fleury, nos seus Costumes dos christãos, pondera


que os antigos mosteiros são edificados como as casas romanas, pelo
modo porque as descrevem Vitruvio e Paladio. 66 A igreja- diz elle-
que é a primeira que se encontra, a fim da sua entrada ser livre aos
seculares, parece assimilhar-se a essa primeira sala, a que os roma-
nos chamavam atrium : d'alli passava - se a um páteo cercado de ga-
lerias, a que se dava o nome de perystilo : é justamente o claustro ,
para onde se passa da igreja e d'onde se vae para os outros reparti-
mentos, isto é, para a sala do capitulo, que é o exedro dos antigos-
para o refeitorio, que é o triclinium, -e para o jardim, que fica por
detraz de tudo, como nas casas antigas. 99
102 O GENIO DO CHRISTIANISMO

d'arvores, não ha sombras n'esse deserto ; só nas ca-


sarias do mosteiro se encontram sombras, mas som-
bras da noite .
De sobre o isthmo de Panamá, na America, o ce-
nobita póde contemplar da cumiada do seu convento
os dois mares que banham as duas praias do Novo-
mundo, uma bonançosa, em quanto a outra se apar-
cella : eis-ahi para a meditação o duplo quadro da tem-
pestade e da bonança .
Os mosteiros situados nos Andes vêem aplanar -se
ao longe as ondas do oceano Pacifico . Um céo dia-
phano abaixa o circulo de seus horizontes sobre a terra
e mares, e parece encerrar o edificio da religião n'um
globo de crystal. As chagas, substituindo a hera reli-
giosa, matizam com suas purpureas cifras os sagrados
muros : o lamaz atravessa a corrente sobre uma ponte
fluctuante de cipós, e o peruviano infeliz vem exorar
o Deus de Las - Casas .
Toda a gente ha visto na Europa velhas abbadias
sumidas nos bosques, onde só se denunciam aos pas-
sageiros por seus campanarios perdidos nas grimpas
dos carvalhos . Os monumentos medianos recebem a
sua grandeza das paisagens que os rodeiam ; a religião
christã, pelo contrario, aformosêa o theatro, onde col-
loca os seus altares e suspende os seus sagrados orna-
mentos . Fallamos dos conventos europeus na historia
de René, e d'alguns effeitos d'elles entre as scenas da
natureza . Para terminar a exposição d'estes monu-
mentos, daremos ao leitor um precioso fragmento que
devemos á amizade . Taes mudanças o auctor lhe fez ,
que mais parece uma obra nova . Estes excellentes ver-
sos provarão aos poetas que as suas musas lucrariam
mais nos arroubamentos do claustro, que no fazerem - se
ecco da impiedade.

A CARTUXA DE PARIS

Ancião claustro, onde occultos os discipulos


De Bruno, sob o céo, seus votos guardam,
Claustro santo, descerra-me os teus porticos .
Em teus rudes jardins errar me deixa,
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 103

Ahi, onde scismar Catinat vinha,


Esquecido dos reis, longe da côrte.
Paris de mais conheço : derramados
Meus leves pensamentos, ao acaso,
N'este vasto recinto. em vão anhelam
Consolidar o quasi extincto liame
Que a cada instante sinto desatar-se .
Sósinho venho, aqui scismar delicias.
Rumorosas trincheiras, Tuillerias
Esplendidas, fugi ; Louvre, que ostentas
Aos olhos meus, que o portico deslumbram,
Após cem annos de Luiz as pompas,
Ficae-vos ! que eu prefiro estes logares
Onde minh'alma em si reconcentrada
No centro de Paris, desfructa o´ermo .
Apraz-me o ermo, os meus primeiros versos
A elle os consagrei .
Já de nós longe
Setembro vae fugindo , e menos vivo
O sol seus raios verte sobre o mundo ;
Já desmaia na terra a refulgencia
Que instantes fulge ainda em fins do anno .
D'estes sitios que eu amo a paz redobra ;
Melancolica luz, tão grata aos olhos,
A sombreada verdura, o grave aspeito
A's tristezas monasticas se casam.
Sobre a pallida relva d'estes bosques,
Eu amo o divagar, amo este ar puro,
Deleitam-me estas sombras e silencio.

Esses coches ruidosos do abastado ,


Essas canceiras, e ondas alterosas
Do povo irrequieto, os sons confusos
Que da ingente cidade se levantam,
Não turvam a solidão de Bruno aos filhos ;
Em redor o tumulto, e em paz sua alma.
Com mudadas feições , todos os dias,
Do seculo o phantasma vae passando
Levado pelo tempo, e desenrola
Em torno d'elles mentirosas pompas.
Debalde, que ás chimeras refugiram ;
Excepto a eternidade, o mais lhe é sonho .
Deplorae-lhe, ainda assim, a sina triste!
Que preconceito infausto a leis tão agras
Prendeu, dizeis, os pios suicidas ?
E' longo o seu morrer , negra tristeza
Os vae ralando : o altar ' sculpe seus votos
Em bronzeas placas, e nas cellas d'elles
O desespero unicamente habita.
104 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Entrem commigo os piedosos muros


Os que as victimas credulas lastimam .
Não respiraes aqui um ar celeste ?
Eis-vos tranquillos, as paixões se calam ,
Do claustro mudo as trevas vos deleitam.

Mas que lugubre som desce da torre,


E eccoa em derredor dos dormitorios ?
E' o bronze que explica a voz do tempo,
E, a cada hora, ao cenobita humilde
Repete em eccos : Lembra-te da morte !
Expira lento o som n'estas abobadas,
E, extincto, n'alma ainda répercute.
A só meditação que, desde a aurora,
Por estes pavimentos passa austera
Ao som do dobre pára , e lê, nas campas,
Legenda, já dos annos desgastada,
Que um gothico escriptor traçou na pedra.
Eloquentes paineis ! quanto minh'alma
Se alegra ao vêr as fumeadas cupulas,
E a hera que circumda os velhos muros,
Onde pia o cantor dos passamentos ,
E da noite o caír. e os tristes olmos
Onde filtra do sol a restea extrema,
E o busto pio que se envolve em musgo,
E o sino da monótona toada ;
E o tempo que descanta sacros hymnos
A cada aurora que no céo desponta ;
E o martyr, cuja cinza a ara encerra,
E a relva que verdeja as pobres campas,
Onde o monge feliz passou sereno
Do silencio do claustro ao do jazigo !

E agora descem trevas sobre os muros,


Redobra o luto, é mais espessa a sombra;
Os visos do Meudon o sol me escondem,
O dia cede á noite ; e o occidente
Já menos rubro, perde a sua luz extrema.
De subito refulge aurora nova
Que sóbe lenta ás cupulas escuras
1
Do palacio que Médicis erguera;
Os cimos lhe branquêa, e minha vista
Encantada recebe pelos vidros
O argentino clarão. Da noite o astro
Saudoso verte da celeste altura

10 Luxembourg.
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 105

Sobre as lousas claustraes luz de mysterio.


E como que reflecte a luz suave
Que ao justo morto as palpebras deleita ...
Aqui não me apavora o horror da morte ;
Enternece-me o vêl-a, e não me assombra.
Illudo-me ? Escutemos. Ouço hymnos
Por entre estas abobadas antigas ;
Eis que descende a Religião velada.
Aproxima-se : a paz dulcificante
No fundo de vossa alma se insinua.
Ouvis de um Deus a voz desconhecida
Que vos diz : Filho, vem , vem ao deserto,
Vem, que eu lá serei, filho, comtigo.

Agora, d'este arroubamento os olhos


Volvei, e vêde nos mundanos trilhos
Os homens fatigados procurando
A esperança fallaz do bem que foge.
Lembrae os usos das selvagens eras
Quando a Europa gemeu sob o flagello
De vandalos , lombardos e de godos
Que, ferozes e rudes, disputavam
Do Cesar o imperio lacerado.
Dizei, se os Bentos , se os Bazilios , dando
Sacro asylo á desgraça, quando a força
Era sem freio, e sem amparo o fraco,
Dizei, se os censuraes ? Aridos cerros,
Desertos do Levante, catacumbas,
Mattos, areaes, selvaticas Thebaidas,
Oh! quantos desgraçados abrigastes
Outr'ora do oppressor ao impio ferro !
Escondiam-se alli, e christãos puros,
Que sob as azas guarda a pia crença,
Vivendo só com Deus em seus sepulchros,
Oravam, sem temor de seus algozes.
Não ousava o tyranno ahi buscal- os ...
E, quantas vezes, verdugo inerme,
De si horrorisado , e de seus crimes
N'esses santos logares pedia graça,
Prostrado aos pés das victimas oppressas ?
Virtude heroica os ermos habitava.
Nas reliquias de Thebas e Carthago
Eu vejo em furnas lôbregas, profundas,
E nas cavas das torres assoladas
Penitentes que deixam mundo e côrtes .
O grito das paixões cala o cilicio ;
Mas não é sem deleite a penitencia :
Não os esquece aquelle que procuram ;
A' voz de Deus florescem-lhe os desertos,
106 O GENIO DO CHRISTIANISMO

A' sombra tua, querida, ó palmeira


Dos desertos da Syria , se gosavam.
Prophetico Jordão, por tuas margens
Divagam ; e vós, lybicos cedros,
Que escutastes de um rei os magos hymnos,
Do vosso tôpo ao céo lhe erguestes as preces,
A gruta lhes protege o somno quieto ;
O grito da aguia ás vezes, os desperta;
Sobre o ermo penhasco o Eterno louvam,
Ao som das aguas onde a sêde apagam ,
Quando, subito, um anjo, sem disfarce ,
Lhes traz do céo pacifica mensagem .

E, comtudo, a tormenta, ás vezes, vinha


Seus dias enturbar. Honra sublime
De antigas eras, o eloquente Jeronymo,
Oppresso do cilicio, e sacco, e cinza,
Viu de Roma as volupias em seu ermo.
As luctas mais e mais lhe acrisolaram
A sapiencia austera. Aqui, como elle,
Um sensivel mortal carpiu seus males.
Ai ! suspiros d'amor, oh ! quantas vezes,
Durante a noite, gemem nos mosteiros !
Debalde o austero olhar amor repelle,
E ao pé da lousa vela a penitencia,
Que elle em crepes de luto se insinua.
A Comminge, a Rancé, perdão, por certo,
O Senhor concedeu ; quem os não chora ?
Quem lhes não sabe o amor? e as amarguras ?
E tu, que as almas com teu nome apiedas ,
Com só teu nome agitas e commoves
Do Paracleto inisera Vestal,
Tu, que, sem proferir juras vulgares,
Ao amor has dado sensações ignotas,
Tu, que ao homem sensivel transpareces
No rosto da mulher, que, illuso adora,
Heloisa ! o coração pulsa ao teu nome!
Qual Abeylard, todo o amante te ama !
Longe das turbas vãs , oh ! quantas vezes
O asylo onde passaste a infancia tua
Hei buscado em Paris ? As velhas torres
Que manda ao céo a cathedral vetusta,
Onde os nossos avós se ajoelhavam,
Do teu amor a historia inda conservam .
Tudo falla de ti , n'ella revives, 1

1 Heloisa vivia no claustro Notre- Dame : ainda ahi se vê a casa


de seu tio o conego Fulberto.
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 107

Reliquias encontrei lá do recinto


De Fulberto. Lá consta que um gemido
Sôa em cada anno á mesma hora
Em que triste hymeneu tu contrahiste.
A virgem lê, ao descahir da tarde,
Essa carta d'amor fecundo e ardente.
Ao amante dilata a chamma eterna .
Exacerbada pelo ardor da tua.
Imprudente fallar aqui d'amores,
Quando em redor de mim só vejo campas,
E ameaças do céo ! De anathemas se cobrem
Estes muros, estes longos dormitorios,
De sentenças mortaes que aos olhos turvos
O anjo do exterminio em tudo esculpe !
Eu tudo leio : Deus, Vingança, Inferno !
Rigor em toda a parte, e não clemencia.
Claustro, d'onde o céo amor desterra,
Onde o instincto mais caro é mais culpado,
Já teu luto me apraz menos á alma.
A phantasia aquí buscando vinha
Santo repouso, acolhimento longo ;
Mas outra sensação minh'alma anhela.
Minha fraqueza treme a taes deveres.
Quando o tempo, porém, que desengana,
Os erros das paixões em mim destrua,
E o breve goso de amargor travados ;
Quando o meu coração nutrir tristezas,
Nos momentos mais doces do poeta,
Que, do mundo cansado, livre ao menos,
Quer sósinho scismar, de si gosando.
Virei buscar-te,, ó solidão tranquilla,
Em teu seio olvidar da vida o tedio,
E sob estas abobadas desertas
Encontrar o sentir d'estes meus carmes. '

1 Aos conhecedores do verso francez seria um peccado enga-


nal-os com a frouxa e deslisada versão que ahi deixamos. Não a to-
mem para confronto, que o original não o tolera.
(Nota do traductor).
108 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO III

Ruinas em geral

QUE AS HA DE DUAS ESPECIES

Do exame das situações dos monumentos christãos


passemos aos effeitos das ruinas d'esses monumentos .
Estas prestam ao coração magestosas reminiscencias ,
e ás artes affectuosas composições . Algumas paginas
consagraremos a esta poetica dos mortos .
Todos os homens sentem uma secreta attracção para
as ruinas . Este sentimento entende com a fragilidade
da nossa natureza, com uma secreta conformidade
entre os monumentos derrocados , e a velocidade da
nossa existencia . A isto accresce , além d'isso , uma ideia
que lisongêa a nossa pequenez, e é vêr povos inteiros ,
homens por vezes tão afamados , não poderem , ainda
assim, sobreviver aos poucos dias marcados á nossa
obscuridade . As ruinas , portanto , são escolas de mo-
ralidade entre as scenas da natureza : se se nos deparam
n'um quadro, ahi fitamos exclusivamente os olhos ;
para lá nos estão sempre fugindo de tudo o mais . E
porque não passariam as obras humanas, se o sol que
as alumia ha de cahir da sua abobada ? Aquelle que
o collocou no céo, é o unico Soberano, cujo imperio,
não conhece ruinas .
Ha duas especies de ruinas : uma , obra do tempo ;
outra, obra do homem . As primeiras não são desagra-
daveis, porque a natureza não trabalha a par dos annos .
Onde elles amontoam entulhos , semêa ella flôres ; onde
entreabrem um tumulo , põe ella o ninho de uma pom-
ba : continuamente applicada a reprouzir, a natureza
rodeia a morte das mais dôces illusões da vida.
As segundas são mais devastações que ruinas : offe-
recem tão sómente a imagem do nada, sem um poder
reparador . Obra da desgraça e não dos annos, assimi-
lham cabellos brancos na cabeça de um moço . As des-
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 109

truições dos homens são, além d'isso , mais violentas


e completas que as das idades : as segundas minam , as
primeiras derrubam . Quando Deus , por causas inco-
gnitas para nós , quer accelerar as ruinas do mundo ,
manda ao Tempo emprestar a sua fouce ao homem ;
e o Tempo nos vê com espanto arrasar n'um relance
d'olhos o que elle só destruiria em seculos .
Passeavamos um dia por detraz do palacio Luxem-
bourg, e achamo -nos ao pé d'essa mesma Cartuxa, que
M. de Fontanes cantou . Vimos uma igreja com os te-
etos rotos, as gradarias das frestas arrancadas, e as
portas fechadas com pranchas postas a prumo . A maior
parte das outras casarias do edificio já não existia .
Passeamos longo tempo por entre as pedras sepulchraes
de marmore negro, dispersas aqui e acolá sobre a terra ;
umas estavam de todo quebradas, as outras mostravam
ainda alguns vestigios de epitaphios . Entramos no
claustro interior ; duas ameixoeiras estavam ahi entre
a relva e o entulho . Nos muros viam-se pinturas quasi
desvanecidas, representando a vida de S. Bruno : um
quadrante existia ainda sobre uma das empenas da
igreja ; e , no santuario, em vez do hymno de paz que
outr'ora se elevava em honra dos mortos , ouvia -se ran-
ger o instrumento do operario que serrava lousas .
As reflexões que fizemos n'este logar póde fazel-as
toda a gente . Sahimos de lá com o coração apertado ,
e engolfamo-nos no arrabalde visinho, sem destino .
Avisinhava-se a noite ; quando caminhavamos entre
duas paredes n'uma rua deserta, de repente o som d'um
orgão nos feriu os ouvidos, e as palavras do cantico :
Laudate Dominum , omnes gentes , sahiram do interior
d'uma igreja visinha : era então o oitavario do Santissi-
mo Sacramento . Não sabemos dizer que commoção
fizeram em nós estes canticos religiosos ; pareceu-ǹos
ouvir uma voz do céo que dizia : « Christão sem fé, por-
que perdes a esperança ? crês, pois, que eu varie, co-
mo os homens, de designios ? que desampare, porque
castiguei ? Longe de accusar meus decretos , imita
esses servos fieis que abençoam os golpes de minha
mão até de sob as ruinas com que os esmago» .
110 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Entramos na igreja no momento em que o padre


dava a benção . Pobres mulheres, velhos, meninos,
estavam ajoelhados . Ajoelhamos entre elles : choramos,
e dissemos no intimo da alma : « Senhor , perdôa, se
murmuramos vendo a devastação do teu templo : per-
dôa á nossa razão abalada ! o homem não é em si mais
que um templo em ruinas, um despojo do peccado e
da morte : o seu amor tibio, a sua fé vacillante , a sua
caridade limitada, os seus incompletos sentimentos ,
os seus pensamentos insufficientes, o seu coração par-
tido , tudo é ruinas no homem» .

CAPITULO IV

Effeito pittoresco das ruinas

RUINAS DE PALMYRA, DO EGYPTO, ETC.

As ruinas consideradas com referencia á paisagem


são mais pittorescas no quadro que o monumento com-
pleto e conservado . Nos templos não tocados pelos se-
culos , os muros acobertam uma parte da localidade e
objectos externos, e tolhem a vista das columnatas e
cimbrios do edificio ; quando, porém, esses templos se
aluem , ficam só restos dispersos, entre os quaes a vista
alcança em cima e ao longe astros, nuvens, montes ,
rios e florestas . Então, por effeito da optica, recúa
o horizonte , e as galerias suspensas no ar recortam - se
nos horizontes. Os antigos não ignoraram similhantes
effeitos, por isso erigiam circos não massiços para
deixar ás illusões da perspectiva livre accesso.
As ruinas têm particulares harmonias com os de-
sertos, segundo o estylo da sua architectura, os locaes
onde estão, e os reinos da natureza no meridiano que
occupam .
Nos climas quentes, pouco favoraveis ás hervagens
e musgos, estão ellas privadas d'essas gramineas que
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 111

enfeitam os nossos castellos gothicos e velhas torres ;


mas tambem lá os enormes vegetaes se adaptam ao
maior volume das fórmas architectonicas. Em Palmyra ,
a tamareira parte as cabeças de homens e leões que
' sustentam os capiteis do templo do Sol ; a palmeira
substitue com a sua columna a columna cahida, e o
pecegueiro, que os antigos consagravam a Harpocrates,
eleva- se na mansão do silencio . Ainda ahi se vê uma
especie de arvore, cuja folha filamentosa e fructos crys-
tallinos formam com as ruinas debruçadas um melan-
colico accordo . Algumas vezes uma caravana, parada
n'esses desertos, augmenta-lhes os effeitos pittorescos :
o trajar oriental quadra á nobreza d'estas ruinas, e os
camêlos parece que as avultam quando, deitados entre
os fragmentos da alvenaria, apenas deixam vêr os cor-
Covos e as cabeças fouveiras .
E' outro o caracter das ruinas do Egypto : frequen-
temente mostram em pequeno espaço diversos modos
de architectura e recordações. As columnas do velho
estylo egypcio erguem-se a par da columna corynthia ;
um retalho da ordem toscana une-se a uma torre arabe,
um monumento do povo -pastor a um monumento dos
romanos . Sphynges, Anubis , estatuas mutiladas , obe-
liscos partidos rola-os o Nilo, sepultam-se na terra,
escondem -se nos arrozaes, nos favaes e nas planicies
do trifolio . Algumas vezes, estas ruinas parece que
sobrenadam na agua, similhando frotas, nas inunda-
ções do rio ; outras vezes as nuvens, ondeando no dorso
das pyramides, parece que as partem em duas . O cha-
cal, posto sobre um pedestal vasio, estende o focinho
de lobo, por detraz d'uma estatua de Pan com a ca-
beça de bode; a gazella, o abestruz, o ibis, a gerboase
pulam por entre os entulhos, ao passo que o camão,
immovel, se conserva sobre uma pedra, como um pas-
saro jeroglifico de granito e pórfido .
O valle de Tempé, os bosques olympicos, as costas
da Attica e do Peloponeso mostram as ruinas da Grecia .
Ahi começam a apparecer musgos, plantas trepadeiras,
e as flores saxateis . Uma grinalda vagabunda de jas-
mim abraça uma Venus, como querendo restituir-lhe
112 O GENIO DO CHRISTIANISMO

o cinto ; uma barba de alvo musgo pende do queixo


d'uma Hebé ; a papoula abre- se sobre as folhas do livro
de Mnemosyne : é o symbolo do passado renome e do
actual olvido d'esses logares . As ondas do Egeu que
veem morrer sob esboroados porticos, a philomela que
se prantêa, a gemedora alcione, o cadmus que cinge
com seus anneis um altar, o cysne que fabríca o seu
ninho no seio d'alguma Leda, mil accidentes, emfim,
que parecem obra das Graças, encantam estas poeticas
reliquias : dir- se-ia que um sôpro divinal anima ainda
o pó dos templos de Apollo e musas ; e a paisagem in-
teira, banhada pelo mar , assimilha um quadro de
Apelles consagrado a Neptuno, e impendente das suas
ribas .

CAPITULO V

Ruinas dos monumentos christãos

As ruinas dos monumentos christãos não têm tanta


gentileza como as dos monumentos de Roma ou Grecia ;
mas, a outros respeitos, podem supportar o parallelo .
As mais formosas que n'este genero se conhecem são
as que se vêem em Inglaterra, á margem dos lagos de
Cumberland, nas montanhas da Escocia, e até nas
Orcadas . As porções inferiores do côro, os arcos das
janellas, os florões cinzelados das voltas, as pilastras
dos claustros , e alguns pannos do campanario, são em
geral as partes que mais tem resistido aos esforços do
tempo .
Nas architecturas gregas as abobadas e os cimbrios
seguem parallelamente os arcos do céo ; de maneira que,
sobre o colorido pardacento das nuvens, ou sobre uma
obscura paisagem, perdem-se nos fundos ; ao invéz , na
ordem gothica, as agulhas contrastam com os arredon-
damentos do céo e as curvas do horizonte . O gothico,
formado todo de vacuos , veste -se mais facilmente de
hervas e flores, que os cheios das ordens gregas . As
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 113

bordaduras redobradas das pilastras, as cupulas folhea-


das, ou concavas á maneira de colhér, são como outros
tantos açafates onde os ventos depositam com a poeira
a semente dos vegetaes . O saião enrosca - se no cimento ,
os musgos balouçam a caliça nos seus elasticos fila-
mentos, a silva faz sahir pelo vão da janella os seus
circulos, e a hera, distendendo -se pelos claustros se-
ptentrionaes , recahe sobre as arcadas em festões .
Não ha ruinas de effeitos mais pittorescos que estas :
sob um céo nevoento , rodeada de tufões e borrascas, á
beira d'esse mar cujas procellas Ossian cantou , a ar-
chitectura gothica tem alguma coisa de magestosa e
sombria como o Deus do Sinai, cuja memoria ella per-
petúa . Assentado sobre um altar partido, nas Orcadas ,
o viajeiro assombra-se da tristeza d'estes logares : um
oceano selvagem, cachopos nublosos , valles d'onde
surge a pedra de um sepulchro, torrentes que derivam
atravez das mattas, alguns pinheiros avermelhados lan-
çados sobre a nudez de um morro flanqueado de ca-
madas de neve, é tudo o que ahi se contempla . O vento
circula nas ruinas, e suas innumeraveis frestas são
outros tantos tubos por onde silva o gemido ; o orgão
outr'ora era menos suspiroso sob suas abobadas reli-
giosas . Comprida hervagem pende e sacode-se dos
abertos dos zimborios : por detraz d'esses abertos vê- se
passar a nuvem , e pairar a ave das terras boreaes . Al-
gumas vezes, desgarrado do seu roteiro, um navio aco-
bertado com as arredondadas vélas , como se fôsse um
espirito das aguas, envolto nas suas azas , sulca as on-
das desertas ; sob o sopro do aquilão parece prostrar- se
a cada instante e saudar os mares que banham as ruinas
do templo de Deus.
Os homens adoradores da sabedoria que passou so-
bre essas ondas , ahi vieram a essas plagas ignotas .
Umas vezes , em suas solemnidades , caminhavam ao
longo das ribas, psalmeando : « Quão vasto é este mar
1
que estende ao longe os seus braços espaçosos !»

1 Ps ., cap. cl . v. 25.
VOL. II 8
114 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Outras vezes, assentados na gruta de Fingal, ao pé dos


suspiraculos do oceano, pensavam ouvir esta voz que
dizia Job : « Sabes quem encerrou o mar em seus
diques, quando extravasava sahindo do seio de sua
mãe : Quasi de vulva procedens ? » ¹ A' noite , quando as
tempestades hybernaes desciam , e o mosteiro desappa-
recia nos turbilhões, os tranquillos cenobitas, acantoa-
dos em suas cellulas , adormeciam ao murmurio das
procellas, ditosos por se haverem embarcado no barco
do Senhor, que não perecerá jámais .
Reliquias sacras dos monumentos christãos , vós
não memoraes, como tantas ruinas, o sangue, a injus-
tiça e as violencias ! Contaes-nos uma historia de paz ,
ou quando muito os soffrimentos mysteriosos do Filho
do homem ! E vós, santos eremitas, que para chegar
a mansões mais fortunosas , vos exilastes sob o gêlo do
pólo , agora estaes gosando o fructo de vossos sacrifi-
cios ! Se entre os anjos , como entre os homens , ha
povoações e desertos , assim como escondestes vossas
virtudes nas solidões da terra, tereis por certo esco-
lhido as solidões do céo para lá esconder vossa bem-
aventurança !

CAPITULO VI

Harmonias moraes

DEVOÇÕES POPULARES

Deixemos as harmonias physicas dos monumentos


religiosos e das scenas da natureza , para irmos ás har-
monias moraes do christianismo . Deve dar- se a pri-
meira plana ás devoções populares, que consistem em
certas crenças e ritos praticados pelo vulgo , sem que
a Igreja absolutamente os adopte ou prescreva. De

1 Job., cap. xxxvi , v. 8.


000 noc.

O REGRESSO DO PEREGRINO
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO

feito, n'isto se estão vendo as harmonias da religião


com a natureza . Quando o povo cuida ouvir nos ventos
a voz dos mortos, quando falla dos phantasmas noctur-
nos, quando vae de romaria para remediar seus males,
é claro que estas crenças são analogias sensiveis entre
algumas scenas naturaes, alguns dogmas sagrados , e
a miseria de nossos corações . D'onde se ha de inferir
que é mais poetico o culto que tem mais devoções po-
pulares, pois que a poesia está nos motos da alma e
nos accidentes da natureza, que a intervenção das ideias
religiosas tornou mysteriosos .
Seriamos lastimaveis, se querendo submetter tudo
ás regras da razão , condemnassemos com rigor essas
crenças que auxiliam o povo a supportar as máguas
da vida , lhe ensinam uma moral que as melhores leis
jámais lhe ensinariam. E' bom, é bello, digam o que
disserem , que todas as nossas acções sejam cheias de
Deus, e que sem cessar nos acerquemos de seus mi-
lagres.
O povo é muito mais sábio que os philosophos . Cada
fonte, cada cruz do caminho, cada suspiro do vento da
noite dá-lhe um prodigio . Para o homem de fé a natu-
reza é uma constante maravilha . Se soffre, reza a uma
santa imagem, e sente-se consolado. Se precisa tornar
a vêr um parente , um amigo, faz um voto, toma o bor-
dão de peregrino, transpõe os Alpes ou os Pyreneus,
visita nossa Senhora do Loreto, ou S. Thiago da Galliza ;
ajoelha; pede ao santo que lhe restitua um filho (pobre
marinheiro errante nos mares, talvez) , que lhe salve a
esposa, que lhe prolongue os dias do pae . Desopprime-
se-lhe o coração . Parte na volta de seu albergue : carre-
gado de conchas, manda ás cabanas o som do seu bu-
zio, e canta, em candida toada , a bondade de Maria ,
mãe de Deus . Todos aporfiam em ter alguma coisa que
pertencesse ao peregrino ! Quantas doenças curadas
por uma fita benta ! Chega o peregrino á sua aldeia ; a
primeira pessoa que lhe sahe ao encontro é sua mulher
já fóra da cama, restabelecida do parto, é o filho re-
gressado, é o pae que remoçou .
Felizes, mil vezes felizes os que crêem ! Sorriem
118 O GENIO DO CHRISTIANISMO

sem temer que o sorriso lhes fuja ; choram , cuidando


que não chorarão jámais . Não são, porém, perdidos
os seus prantos ; a religião recolhe- os na sua urna, e
ao Eterno os offerece . Os passos do verdadeiro crente
nunca são desacompanhados : um bom anjo lhe vae
a par, e o aconselha em sonhos, e o defende do anjo
mau. Tão devotado lhe é este amigo celestial, que , em
bem d'elle , consente exilar- se na terra.
Ha nada, entre os antigos, tão admiravel como uma
multidão de práticas usadas outr'ora em nossa religião?
Se no canto d'uma floresta se encontrava um homem
morto, hasteava -se n'esse local uma cruz , em signal de
misericordia . Esta cruz pedia ao samaritano uma la-
grima para o infeliz, e ao morador da cidade fiel uma
prece para o seu irmão . E depois , este viajante era tal-
vez um estrangeiro cahido longe do seu paiz, como esse
illustre Incognito sacrificado pela mão dos homens,
longe da sua patria celestial . Que trato entre nós e
Deus que sublimidade isto não dava á natureza hu-
mana ! que assombroso era atrevermo-nos a achar
conformidades entre nossos dias mortaes e a eterna
existencia do Dominador do universo !
Não fallaremos d'esses jubileus, substituidos ás fes-
tas seculares, que mergulham os christãos nas piscinas
do arrependimento, renovando as consciencias, e invo-
cando os peccadores á amnistia da religião . Nem tão
pouco diremos como, em calamidades publicas, gran-
des e pequenos se iam, pés descalços , de igreja em
igreja, desarmando a cólera de Deus . O pastor cami-
nhava na frente, com a corda ao pescoço, victima hu-
milde sacrificada á salvação do rebanho.
O povo, porém, não se temia d'esses flagellos quan-
do tinha sob o seu tecto o santo lenho, o louro benzido ,
o registro do santo protector da familia. Quantas ve-
zes se ajoelhavam a essas reliquias, para exorar soccor-
ros não alcançados dos homens !
Quem não conhece nossa Senhora dos bosques, esta
moradora do tronco do carcomido espinheiro , ou do
vão musgoso da fonte ? E' por seus milagres celebrada
nas cabanas . Muitas mães vos dirão que as suas dôres
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 119

do parto foram menores desde que se apegaram com a


boa Maria dos bosques. As donzellas que perderam os
seus noivos têm visto muitas vezes , á claridade da lua,
as almas d'esses mancebos no solitario logar; e reco-
nheceram -lhes a voz no murmurar da fonte . As pom-
bas que bebem d'essas aguas têm sempre ovos no seu
ninho, e as flores que crescem sobre essas bordas, têm
sempre botões na tige . Era urgente que a santa das
florestas fizesse milagres brandos como os musgos que
habita, e graciosos como as aguas que lhe manam em
roda.
Nos grandes successos da vida é que os costumes
religiosos offerecem aos desgraçados suas consolações .
Presenciamos uma vez um naufragio . Abicando a praia,
os marinheiros despiram as jaquetas, e só conservaram
as calças e camisas ensopadas . Haviam feito, durante
a tempestade, um Voto á Virgem. Foram em procissão
a uma capellinha dedicada a S. Thomaz . O capitão
ia na frente, e o povo seguia- os , cantando com elles o
Avè, maris stella . O padre celebrou a missa dos nau-
fragados, e os maritimos penduraram os seus vestidos
molhados do mar, como ex-voto , nas paredes da ca-
pella . A philosophia póde pejar as suas paginas de
magnifico palavriado ; duvidamos , porém, que os infe-
lizes venham jámais pendurar os seus vestidos no tem-
plo d'ella.
A morte, altamente poetica , porque se allia á im-
mortalidade , altamente mysteriosa por causa do seu
silencio, devia de ter mil modos de annunciar-se ao
povo . Umas vezes um trespasse adivinha-se nos sons
d'um sino que toca espontaneamente ; outras vezes o
homem em vésperas de morrer ouve tres pancadas no
sobrado do quarto . Uma religiosa benedictina, prestes
a deixar a terra, achava uma candida corôa de espi-
nheiro no limiar da cella . A' mãe, que perdia um filho
em longes terras, avisavam -a logo os sonhos . Os que
negam estes presentimentos não conhecerão jámais os
secretos caminhos por onde dois corações amantes se
communicam d'uma extrema á outra do mundo . Muitas
vezes o defunto amado , resurgindo do tumulo, appa-
120 O GENIO DO CHRISTIANISMO

rece ao seu amigo, e pede-lhe orações que o resgatem


das chammas , e o conduzam á bemaventurança dos
eleitos . D'este modo a religião déra em quinhão á ami-
zade o bello privilegio que Deus tem de dar uma eter-
nidade de ventura .
Opiniões de differente especie, mas sempre de ca-
racter religioso, inspiravam a humanidade : tão inge-
nuas são ellas, que impecem ao escriptor. Tocar em
um ninho de andorinha , matar um pintarroxo , uma
carriça, um grillo hospede do lar caseiro , um cão en-
canecido no serviço da familia, era um acto de impie-
dade , que não deixava , dizia- se , de acarretar desgraça .
Por admiravel acatamento á velhice , cria-se que as
pessoas idosas eram auspicioso agouro n'uma casa , e
que um criado antigo influia felicidade no amo . N'isto
se descobrem traços do tocante culto dos lares, e re-
corda- se a filha de Labão conduzindo os deuses pa-
ternaes .
Tinha de fé o povo que ninguem praticava acção má
sem condemnar -se a ter em volta de si apparições hor-
riveis durante o resto da sua vida . Mais sábia que nós,
a antiguidade teria grande cautella em não destruir
estas uteis harmonias da religião , da consciencia e da
'moral . E bem assim não rejeitaria est'outra opinião
que certificava que todo o homem, no goso d'uma pros-
peridade mal adquirida, pactuára com o espirito as
trevas, e vendera sua alma ao inferno .
Finalmente, os ventos, chuvas, soes , estações , cul-
turas, artes , nascença, infancia, casamento, velhice,
morte, tudo tinha seus santos e imagens, nenhum povo
se rodeou de divindades amigas como o povo christão .
Não se trata de examinar rigorosamente estas cren-
ças . Longe de prescrever em tal materia , a religião ,
pelo contrario, vedava os abusos e corrigia as dema-
sias . Quer-se sómente saber se o seu fim é moral, se
taes crenças tendem melhor que as leis a encami-
nhar a multidão á virtude . Que homem de juizo du-
vidaria ? A' força de declamar contra a superstição ,
vir- se -ha a cabo de franquear o caminho a todos os
crimes . O que ha de n'isso haver de espantoso para
PARTE TERCEIRA LIVRO QUINTO 121

os sophistas, será, que entre os males cuja causa são ,


nem sequer conseguirão o prazer de ver o povo mais.
incredulo . O povo, deixando de subordinar o seu es-
pirito á religião, formará monstruosas opiniões . Tran-
zil-o-ha um terror tanto mais estranho, quanto o obje-
cto d'elle lhe será desconhecido ; tremerá no cemiterio
onde gravou que a morte é o somno eterno; e , fingindo
desprezar o poder divino, irá interrogar a bohemia,
ou consultar os seus destinos nas trampolinices das
cartas .
E' necessario o maravilhoso , um futuro , esperanças
ao homem , pois que elle se sente formado para a im-
mortalidade . Os conjuros, e necromancia, são, no povo,
o instincto da religião, e uma das mais convincentes
provas da necessidade d'um culto . Está- se perto de
tudo crêr, quando nada se crê ; crêem- se adivinhas ,
quando se negam prophetas ; acceitam-se sortilegios ,
quando se renunciam as ceremonias religiosas ; abrem-
se os antros das feiticeiras, quanto se fecham os tem-
plos do Senhor.
PARTE QUARTA

CULTO
LIVRO PRIMEIRO

Igrejas, ornamentos , canticos, orações,


solemnidades, etc.

CAPITULO I

Dos sinos

O culto christão vae occupar-nos agora . Esta materia


é de si tão opulenta como a das tres primeiras partes ,
com as quaes fórma um todo acabado .
Pois que vamos entrar no templo, fallemos primeiro
do sino que lá nos chama .
A nosso vêr, é já maravilha descobrir o meio de
despertar, n'um dado minuto, a mesma sensação em
mil corações diversos, por uma só badalada, e obrigar
o vento e as nuvens a fazerem-se cargo dos pensa-
mentos humanos . Realça, porém , a indubitavel belleza
do campanario, considerado como harmonia : é essa
uma das bellezas que os artistas denominam o gran-
dioso. O estampido do raio é sublime, e só pela sua
grandeza o é : o mesmo se dirá dos ventos , dos mares,
dos vulcões, das cataractas, da voz de um povo inteiro .
Pythagoras , que attentava o ouvido ao martellar do
ferreiro, com que prazer não escutaria o som dos nossos
campanarios , na véspera de uma festa de igreja ! As
cordas da lyra podem enternecer a alma, mas enthu-
siasmal-a só pódem os rebombos da peleja , ou o repi-
que estrondoso que, na região das nuvens , apregoa
o triumpho do Deus dos exercitos .
E, todavia, não é este ainda o mais notavel caracte-
ristico do som dos sinos : este som tem numerosas al-
lianças intimas comnosco . Quantas vezes, no silencio
126 O GENIO DO CHRISTIANISMO

da noite, as badaladas da agonia, similhantes ás lentas


pulsações de um coração expirante, não têm assaltado
por surpreza o coração d'uma esposa adultera ! Quan-
tas vezes não abalam o atheu , que na sua impia vigilia
ousára escrever que não ha Deus ! A penna cahe-lhe
da mão ; escuta com pavor o dobre a finados, que pa-
rece dizer-lhe : E' certo que não ha Deus ? Oh ! quantas
toadas similhantes assaltaram o somno dos nossos ty-
rannos ! Prodigiosa religião , que ao som apenas d'um
magico bronze póde converter prazeres em tormentos ,
abalar o atheu , e fazer cahir o punhal das mãos do
homicida !
Mais suaves sensações nos provém dos sinos . Quan-
do , na sazão das seifas , se ouvia, ao raiar da aurora,
com o canto da cotovia, os repiquezinhos das nossas
igrejas ruraes , dir-se -ia que o anjo das messes , para
acordar os lavradores, modulava, em algum instru-
mento dos hebreus , a historia de Séphora ou de Noemi .
Afigura-se-nos que se fossemos poeta, não desdenha-
riamos o sino movido por phantasmas na velha capella
da floresta, nem o que balancea um religioso terror
para afastar o trovão, nem o que toca de noite em cer-
tos portos de mar, para dirigir o piloto atravez dos
recifes . Os carrilhões de sinos parecem augmentar a
alegria dos devotos em occasiões de festividade ; pelo
contrario, nas calamidades, esses mesmos sons incu-
tem terror . Erriçam -se os cabellos só com a recorda-
ção d'esses dias de fogo e carnagem, quando soava o
toque a rebate . Qual de nós se esqueceu d'esses urros
e agudos gritos, cortados por intervallos de silencio,
durante os quaes se distinguiam raros lampejos do
fuzil, alguma voz lamentosa e solitaria, e , sobretudo ,
a toada do sino de alarma, ou o som do relogio que
soava tranquillamente a hora costumada ?
N'uma sociedade, porém, bem ordenada, o estrepito
do rebate, espertando a ideia de soccorro, commovia
a alma á piedade e ao mêdo, e fazia brotar assim as
duas fontes de sensações tragicas .
Taes são aproximadamente as sensações procedentes
dos toques dos nossos templos, sensações tanto mais
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 127

gratas , quanto n'ellas entraram anhelos do céo . Se os


sinos estivessem adjuntos a quaesquer monumentos
que não fossem igrejas , teriam perdido a sympathia
moral de nossos corações . Como que o proprio Deus
mandava ao anjo das victorias balancear os sinos que
apregoavam nossos triumphos, ou ao anjo da morte
dar o signal do trespasso da alma que ascendia ao céo .
D'est'arte, por mil secretas vozes, uma sociedade christã
trata com a divindade, e essas instituições vão sumir- se
mysteriosamente na origem do mysterio .
Deixemos , pois , que os sinos reunam os fieis , porque
a voz do homem não é pura bastante para chamar ao
pé dos altares o arrependimento, a innocencia e o in-
furtunio . Nos selvagens d'America, quando os suppli-
cantes se apresentam á porta d'uma cabana, é um me-
nino da casa quem introduz esses infelizes no lar de
seu pae ; se os sinos fossem apeados , sería preciso
adoptar um menino que nos introduzisse na casa do
Senhor .

CAPITULO II

Da vestimenta dos padres, e ornamentos da igreja

Não acabam de exaltar as instituições da antigui-


dade, e não percebem que o culto evangelico é a unica.
reliquia d'essa antiguidade que chegou até nós ; tudo
na Igreja recorda esses remotos tempos, em que os
homens se aprazem ainda errar em espirito . Contem-
pla-se o padre christão , e logo acode á ideia a patria de
Numa, de Lycurgo ou de Zoroastro . A tiara mostra-nos
• mêdo errante sobre as ruinas de Suza e de Ecbatana ;
a alva, cujo nome latino recorda a aurora e a candura
virginal, offerece amaveis consonancias com as ideias
religiosas ; sempre uma recordação magestosa ou uma
grata harmonia se alliga aos estofos de nossos altares .
E estes altares christãos , emmoldurados como tumulos
antigos, e essas imagens do sol vivente, encerradas nos
128 O GENIO DO CHRISTIANISMO

sacrarios, têm alguma coisa offensiva á vista, ou dissa-


borida ao bom siso ? Os nossos calices tomaram o nome
das plantas, e o lirio prestára-lhes feitio : graciosa con-
cordancia entre o Cordeiro e as flôres .
Como signal mais directo da fé , a cruz é tambem
a alguns olhos o mais ridiculo . Escarneceram -na os
romanos, como a escarnecem os novos inimigos do
christianismo ; e Tertulliano mostrou-lhes que elles
mesmos usavam d'esse signal nos seus feixes d'armas .
A attitude, que deu a cruz ao Filho do homem , é sub-
lime ; o quebrantado do corpo e a cabeça inclinada
fazem um divino contraste com os braços estendidos
ao céo . Demais , a natureza foi menos delicada que os
descrentes : não se desdenhou de esculpir a cruz em
milhares dos seus productos : ha uma familia completa
de flores que pertencem a esta fórma, e esta familia
distingue - se pela propensão ao ermo ; a mão do Omni-
potente collocou tambem o estandarte da nossa salva-
ção entre os astros .
A urna dos perfumes imitava o feitio d'uma na-
veta ; lume e vapores olorosos ondeavam n'um vaso,
pendente d'uma longa cadeia : acolá se viam candela-
bros de bronze dourado, obra d'um Cafieri ou d'um
Vassé, e imagens dos mysticos lampadarios do rei pro-
pheta ; aqui, as virtudes cardeaes, sentadas, sustenta-
vam a estante triangular, em cujos rostos se viam ly-
ras, e no tôpo um globo terrestre ; e , eminente á for-
mosa allegoria, uma aguia de bronze parecia levar nas
azas despregadas as nossas orações ao céo . De todos
os lados se viam pulpitos levemente suspensos , e vasos
coroados de flammas, balcões, grandes tocheiras , mar-
moreos balaustres, e bancos lavrados por Charpentier
e Dugoulon, e lampadarios torneados por Ballin, e as
ambulas rubras desenhadas por Bertrand e Cotte . Al-
gumas vezes os restos dos templos dos deuses fabulo-
sos serviam a ornato do templo do verdadeiro Deus :
as pias d'agua-benta de S. Sulpicio eram duas urnas
sepulchraes, trazidas d'Alexandria ; as bacias, patenas ,
e aguas-lustraes recordavam os antigos sacrificios ; e,
sem se confundirem, andavam ahi sempre recordações
da Grecia e de Israel.
PARTE QUARTA - LIVRO PRIMEIRO 129

Finalmente, as lampadas e flores que decoravam


nossas igrejas, serviam de eternisar a memoria d'esses
tempos de perseguição, em que os fieis se ajuntavam
para orar ao pé dos sepulchros . Parecia vêrem-se os
primitivos christãos accenderem furtivamente o seu
archote sob as funereas arcadas , e as donzellas condu-
zindo flores para enfeitarem o altar das catacumbas :
um pastor, distincto por sua pobreza e bem fazer, con-
sagrava essas offerendas ao Senhor. O verdadeiro rei-
nado de Jesus Christo, Deus dos pequenos e misera-
veis, foi então . Serviam-o em altar tão pobre como
eram os servos . Mas se os calices eram de pau, os
ministros eram d'ouro, como diz S. Bonifacio ; e nunca
tantas virtudes evangelicas se viram como n'essas ida-
des, em que, para bemdizerem o Deus da luz e da
vida, era-lhes preciso esconderem-se nas trevas e na
morte .

CAPITULO III

Canticos e orações

Arguem o culto catholico de empregar nos seus can-


ticos e orações uma lingua estranha ao povo , como se
a prégação fosse em latim, e os officios não andassem
traduzidos em todos os livros de missa . Demais, se a
religião, tão movel como os homens, mudasse como
elles de idioma, como conhecerem -se agora as obras
da antiguidade ? Tal é a consequencia da nossa má
vontade, que censuramos os mesmos costumes , aos
quaes devemos uma parte das nossas sciencias e re-
galos.
Porém, considerando as usanças da Igreja romana
em suas immediatas relações sómente, não vêmos que
a lingua de Virgilio, conservada em nosso culto (e até
na de Homero, em certos logares e tempos) possa ser
assim displicente ! Crêmos que uma lingua anciã e
mysteriosa, uma lingua que os seculos não alteram ,
VOL . II 9
130 O GENIO DO CHRISTIANISMO

assaz convinha ao culto do Sêr eterno, incomprehen-


sivel, immutavel . E pois que o pungir de nossas dôres
nos fórça a erguer ao Rei dos reis supplicante voz , não
é natural que se lhe falle no mais gentil idioma da terra,
n'aquelle mesmo de que usavam as nações prostradas
quando elevavam aos Cesares as suas deprecações ?
Além disso (e notavel coisa é ! ) as orações em Tatim
parecem duplicar o sentimento religioso das multidões .
Não será isso um effeito da nossa propensão ao secreto ?
No acervo de pensamentos e infortunios que lhe asse-
diam a existencia, o homem, proferindo palavras pouco.
familiares ou ainda desconhecidas, crê pedir o que lhe
falta, e elle ignora ; apraze -o o vago da oração , e sua
alma inquieta, que mal sabe o que deseja, saborêa - se ,
formando votos tão mysteriosos como as suas precisões .
Falta examinar o que se denomina barbarie dos can-
ticos sagrados .
E ' de sentimento quasi universal que, no genero
lyrico, os hebreus são superiores aos outros povos da
antiguidade ; e assim que, a Igreja que quotidianamente
canta psalmos e lições dos prophetas, tem um excel-
lente peculio de hymnos . Custa adivinhar o que ha de
ridiculo ou barbaro n'aquelles :

" Em promessas do mundo, alma, não fies, etc. " 1


"
Que ao som da minha voz a terra se erga, etc. "
" Eu senti meus tristes dias
«
Ao seu occaso penderem, etc. , 8

A Igreja tem outro manancial de canticos nos evan-


gelhos e epistolas dos apostolos . Racine imitando estas
3
prosas, pensou como Malherbe e Rousseau, que eram
dignas da sua musa . S. Chrysostomo, S. Gregorio , San-
to Ambrosio, S. Thomaz d'Aquino, Coffin , Santeul

1 Malh., liv. 1, ode 111.


2 Rouss., liv. 1, odes 111 e x.
3 Vêde o cantico extrahido de S. Paulo .
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 131

reviveram o plectro grego e latino nos tumulos de Alceu


e Horacio . Solícita em louvar ao Senhor, a religião
associa os seus concertos matinaes aos da aurora :

SPLENDOR PATERNE GLORIÆ, ETC.

De luz, ó fonte ineffavel,


Verbo onde seus dons revê o Eterno,
Astro para o qual o sol é sombra,
Ergue-te, sol adoravel,
Sagrada luz, que emprestas luz ao dia, etc.

1
Ao pôr do sol, entòa a Igreja : ¹

CELI DEUS SANCTISSIME

Deus, que accendes na abobada estrellada,


Teu throno glorioso,
E em candidez de purpura raiada
Pintas o céo radioso ...

Esta musica de Israel , na lyra de Racine, não deixa


de ser graciosa ; menos se crê ouvir um som real, do
que a voz interna e melliflua, que, segundo Platão,
desperta ao amanhecer os homens enamorados da vir-
tude, cantando em seus corações com a maxima vehe-
mencia.
Porém , prescindindo d'esses hymnos, as mais tri-
viaes orações da Igreja são admiraveis : só o costume
de repetil -as desde a infancia nos agorentará as belle-
zas d'ellas . Seria ahi um nunca acabar de louvami-
nhas se se achasse em Platão ou Seneca uma profissão
de fé tão simples, tão pura, tão clara como esta :
«Creio em Deus Padre, Omnipontente, Creador do
céo e da terra, e de todo o visivel e invisivel» .

1 Os officios tiraram o seu nome da divisão do dia entre os ro-


manos.
A primeira parte do dia chamava-se prima ; a segunda , tertia ;
a terceira, sexta ; a quarta, nona - porque começavam na primeira,
terceira, sexta e nona hora. A primeira vigilia chamava - se vespera,
tarde,
132 O GENIO DO CHRISTIANISMO

A oração dominical é obra d'um Deus que conhecia


todas as nossas necessidades : ponderem - se bem estas
palavras :
«Pae nosso, que estás no céo » ;
Reconhecimento d'um Deus unico .
«Santificado seja o teu nome; >»
Culto que se deve á divindade ; vaidade das coisas do
mundo ; só Deus merece ser santificado .
«Venha a nós o teu reino» ;
Immortalidade da alma.
«Seja feita a tua vontade, assim na terra como no
céo»;
Expressões sublimes, que comprehendem os attri-
butos da divindade, santa submissão que abrange a
ordem physica e moral do universo .
«O pão nosso de cada dia nos dá hoje» ;
Como isto é sensibilisador e philosophico ! Qual é
a primeira necessidade do homem ? um bocado de pão ,
e ainda é só para hoje (hodie) que elle o necessita ; por-
que existirá elle ámanhã ?
«E perdóa-nos, Senhor, as nossas dividas, assim
como nós perdoamos as dos nossos devedores » ;
E ' a moral e caridade em duas palavras .
«Não nos deixes cahir em tentação , mas livra-nos do
mal»;
Eis-aqui em toda a sua plenitude o coração humano :
é o homem com a sua fraqueza ! Que não rogue forças
para vencer; peça só para não ser aggredido , para não
padecer. Só Aquelle que creou o homem podia conhe-
cel-o tão bem !
Não fallaremos da saudação angelica, verdadeira-
mente cheia de graça, nem da confissão que o christão
faz diariamente aos pés do Eterno. As leis não suppri-
rão jámais a moralidade de costume tal . Sabem bem
que freio é para o homem esta penosa confissão que
elle renova todas as manhãs : Pequei por pensamentos ,
palavras e obras ? Pythagoras recommendára aos seus
discipulos uma confissão similhante : estava reservado
ao christianismo realisar os sonhos de virtude què so-
nhavam os sabios de Roma e Athenas .
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 133

De feito, o christianismo é a um tempo seita philo-


sophica e antiga legislação . De lá lhe derivam as absti-
nencias, os jejuns, as vigilias, cujos traços se nos de-
param nas antigas republicas, e eram praticados nas
sabias escolas da India, do Egypto e da Grecia : quanto
mais se examina o essencial da questão , mais conven-
cido se fica de que a maior parte dos insultos baratea-
dos ao culto christão repercutem na antiguidade . Vol-
vamos, porém, ás orações .
Os actos de fé, esperança, e caridade predispõem o
coração para a virtude : as orações das ceremonias
christãs, relativas a objectos civis ou religiosos , ou
ainda a meros accidentes da vida, mostram perfeitas
conveniencias , elevados sentimentos, grandiosas remi-
niscencias, e um estylo por igual magnifico e singelo .
Na missa nupcial, o sacerdote lià a epistola de S. Paulo :
«Meus irmãos , que as mulheres obedeçam aos maridos
como ao Senhor, e do Evangelho : « No qual tempo os
phariseus chegaram-se a Jesus para tental-o , e disse-
ram-lhe: E' licito ao homem rejeitar sua mulher ? E elle
respondeu: Está escripto que o homem deixará pae e
mãe, e se ligará á múlher» .
A' benção nupcial, o celebrante, depois de pronun-
ciar as palavras que Deus dissera a Adão e Eva : « Cres-
cite et multiplicamini» , accrescentava :
« O' Deus, se vos apraz , uni os espiritos d'estes es-
posos, e vertei em seus corações uma sincera amizade !
Attentae com olhos propicios em vossa serva ... Fazei
que o seu jugo seja jugo de amor e paz ; fazei que ella
seja casta e fiel , o exemplo das mulheres fortes ; que
se entregue a seu marido, amavel como Rachel ; que
seja ajuizada como Rebecca ; que frua longa vida e seja
fiel como Sara ... Que alcance longa fecundidade ; que
viva vida pura e irreprehensivel, a fim de chegar ao
repouso dos santos, e ao reino celestial . Fazei , Senhor,
que ambos elles cheguem a ver os filhos dos seus filhos
até á terceira e quarta geração , e cheguem a uma ditosa.
decrepitude» .
Na ceremonia das mães que entravam o templo após
o parto, cantavam o psalmo Nisi Dominus: « Se o Eterno
134 O GENIO DO CHRISTIANISMO

não cimenta a casa, em vão trabalham aquelles que a


edificam » .
No principio da quaresma , á ceremonia da commi-
nação, ou denuncia da colera celeste, proferiam-se es-
tas maldições do Deuteronomio:
«Maldito seja aquelle que desprezou seu pae e sua
mãe » .
«Maldito seja aquelle que transvia o cego em seu
caminho» , etc.
Na visita aos enfermos, o padre , ao entrar, dizia :

«Paz n'esta casa, e nos que a habitam ! » Depois , á
cabeceira do leito do doente :
«Pae misericordioso , conserva e detem este doente
no corpo da tua Igreja como um de seus membros !
Attende á sua contrição , acolhe suas lagrimas , consola
suas dôres !>>
Lia, em seguida, o psalmo In te, Domine:
«Senhor, eu refugiei-me em ti ; livra-me por tua jus-
tiça» .
Ao recordar que eram quasi sempre miseraveis os
que o padre visitava sobre a palha onde se deitavam .
quanto mais divinas ainda parecem as orações christãs !
Todos conhecem as graves orações dos agonisantes .
Lê-se primeiro a oração Proficiscere : Sahe d'este mun
do, alma chrită; depois, este trecho da Paixão : No qual
tempo, Jesus, sahindo, foi ao monte das Oliveiras, etc .;
em seguida, esta leitura do Apocalypse: N'aquelles dias,
vi os mortos, grandes e pequenos, que compareceram
diante do throno, etc .; finalmente, a visão de Ezequiel :
A mão do Senhor tocou-me, e tirando -me fóra pelo
espirito do Senhor, deixou-me no meio d'um campo
que estava talado de ossadas . Então o Senhor me disse :
Prophetisa ao espirito; filho do homem, diz ao espirito:
Vinde nos quatro ventos , bafejae estes mortos para que
resurjam, etc.
Em incendios , pestes , e guerras havia orações desi-
gnadas . Ha de lembrar-nos por toda a vida ter ouvido
lêr, durante um naufragio em que nós mesmo corria-
mos perigo, o psalmo Confitemini, Domino: «Confessae
o Senhor, porque elle é bom...
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 135

« A' sua ordem, o sôpro da tempestade se levanta,


e as vagas se amontôam : os maritimos então soccor-
rem-se ao Senhor em sua angustia, e elle os tira do
perigo .
«E elle encadêa a tormenta, e a muda em calmaria,
e as ondas do mar se pacificam » .
No tempo da Paschoa, Jeremias resurgia do pó de
Sião para prantear o Filho do homem . A Igreja to-
mava o que ha de mais excellente e melancolico nos Pa-
dres e na Biblia para compôr os canticos d'esta semana
consagrada ao maior dos mysterios, que é tambem a
maior das dôres . Até nas ladainhas havia o gemido
e o arroubamento admiravel . Senão , vejam estes ver-
siculos das ladainhas da Providencia:
« Providencia de Deus, consolo da alma peregrina,
«Providencia de Deus, esperança do peccador des-
amparado ,
<«<Providencia de Deus, bonança das tempestades,
«<Providencia de Deus, repouso do coração , etc. ,
«Tende piedade de nós » .
Finalmente, os nossos canticos gaulezes , e ainda as
natividades de nossos avós , tambem tinham seu mere-
cimento : como que transpirava d'elles a singeleza e
frescor da fé . Porque é que nas nossas missões das
aldeias se enternecia o animo, quando os lavradores
vinham cantando á tarde :
«Adoremos todos, ó mysterio ineffavel !
«Um Deus occulto , etc .»>
E ' que n'essas vozes campestres havia uma irresis-
tivel modulação de verdade e convicção . Os Nataes,
representados em scenas rusticas, tinham uma agra-
davel entonação na boca da aldea . Quando o fremito
do fuso acompanhava as suas cantilenas, e que seus
filhinhos, encostados aos joelhos d'ellas, escutavam to-
dos attentos a historia do Menino Jesus e seu presepio ,
em vão se buscariam arias mais suaves, nem religião
mais conveniente a uma mãe .
136 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO IV

Das solemnidades da Igreja

DO DOMINGO

Já fizemos notar ¹ belleza do setimo dia, que cor-


responde ao do repouso do Creador . Esta divisão do
tempo conheceu -a a mais remota antiguidade. Pouco
interessa agora saber se isto é tradição obscura da crea-
ção transmittida ao genero humano pelos filhos de Noé,
ou se os pastores descobriram esta divisão observando
os planetas : o certo é que ella é a mais perfeita de
quantas empregaram os legisladores . Independente-
mente de suas justas correlações com as forças dos
homens e animaes , tem harmonias geometricas que os
antigos curavam sempre de estabelecer entre as leis
particulares e geraes do universo . Esta divisão dá o
seis para o trabalho ; e o seis por duas multiplicações,
produz os trezentos e sessenta dias do anno antigo , e
os trezentos e sessenta graus de circumferencia . Bem
podia, pois , achar-se magnificencia e philosophia n'esta
lei religiosa que dividia o circulo de nossos trabalhos ,
bem como o circulo descripto pelos astros em sua re-
volução, como se o termo das fadigas do homem fôsse
a consummação dos seculos, e todas as idades os me-
nores espaços a encher de suas dôres .
O calculo decimal póde aproveitar a um povo mer-
cantil ; mas não é nem bello nem commodo a outros
respeitos da vida, e nas equações celestes . A natureza
raro o emprega ; agorenta o anno e o curso do sol ; e
a lei do peso ou gravitação, lei unica , talvez, do uni-
verso, completa -se pelo quadrado , e não pelo quintuplo
das distancias . E não melhor se adapta ao nascimento,
crescimento, e desenvolvimento das especies : quasi

1 Parte primeira , liv . 11 , cap. 1.


PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 137

todas as femeas produzem por tres, nove e doze, que


pertencem ao calculo seximal. ¹
Entretanto, a experiencia diz que o quinto é um dia
muito cêdo , e o decimo um dia muito tarde para o des-
canso . O Terror, que tudo podia em França, nunca
pôde obrigar o lavrador a preencher a decada, porque
as forças humanas não pódem, e , como se observou ,
as dos animaes tambem não . O boi não póde trabalhar
nove dias a fio ; ao cabo do sexto, os seus mugidos pa-
recem pedir as horas marcadas pelo Creador para o
repouso geral da natureza . 2
O domingo reunia duas grandes vantagens : era a
um tempo dia de folga e de religião . E' forçoso que o
homem se refocille do trabalho ; mas como a lei civil
não póde superintender nos seus ocios, subtrahil- o
n'esse momento á lei religiosa é desenfreal -o de todo ,
é engolfal -o no estado de natureza, e atirar uma especie
de selvagem ao meio da sociedade . Para prevenir este
perigo, os antigos tambem fizeram dia religioso , o dia
do descanço, e o christianismo consagrára este exem-
plo.
Comtudo, este dia de benção da terra, de repouso
de Jehovah, incommodou os animos d'uma Convenção
que fizera alliança com a morte, porque ella era digna
3
d'uma tal sociedade . Após seis mil annos de universal
consenso, após sessenta seculos de Hosannah, a sabe-
doria dos Danton , erguendo a fronte, ousou julgar má
a obra que o Eterno achára boa . Pensou ella que sub-
mergindo-nos no cháos, poderia substituir a tradição.
de suas ruinas e trevas ao nascimento da luz e da or-
dem dos mundos ; quiz separar o povo francez dos ou-
tros povos, e tornal-o, á laia dos judeus , uma casta
inimiga do genero humano . Um decimo dia, ao qual
andava associada toda a gloria de Robespierre, veio

1 Vêde Buffon.
2 Os lavradores diziam : 66 Os nossos bois conhecem o domingo,
e não querem trabalhar n'este dia. "
3 Sap., cap . 1 , v. 16.
138 O GENIO DO CHRISTIANISMO

supprir o velho sabbath, ligado á memoria do berço


do tempo, dia santificado pela religião de nossos paes,
festejado por cem milhões de christãos na superficie
do globo, celebrado pelos santos e milicias celestes , e,
para assim dizer, guardado pelo proprio Deus nos se-
culos da eternidade .

CAPITULO V

Explicação da Missa

Ha um tão simples e natural argumento em abono


das ceremonias da missa, que não se concebe como elle
tem esquecido aos catholicos nas suas polemicas com
os protestantes . Que é o que constitue o culto em
uma qualquer religião ? E' o sacrificio . Uma religião
sem sacrificio não tem culto propriamente dito . Esta
verdade é incontestavel, pois que, nos diversos povos
da terra, as ceremonias religiosas procedem do sacri-
ficio , e não é o sacrificio que procede das ceremonias
religiosas . D'onde se deve concluir, que o unico povo
christão que tem um culto é aquelle que conserva uma
immolação.
Acceite o principio, combatem-lhe a fórma , talvez . Se
a esses termos se reduz a objecção , não é difficil provar
que a missa é o mais bello, mysterioso, e divino dos
sacrificios .
Universal tradição nos ensina que a creatura outr'ora
se tornára culpada para com o Creador . Todas as na-
ções quizeram aplacar o céo ; todas acreditavam ser
mister uma victima ; todas se persuadiram d'isso tanto,
que principiaram offerecendo o proprio homem em
holocausto : foi o selvagem que recorreu primeiro a esse
horrido sacrificio, porque era elle o mais aproximado
da sentença original que pedia a morte do homem.
A's victimas humanas substituiram com o tempo o
sangue dos animaes ; mas , nas grandes calamidades ,
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 139

tornavam ao antigo uso : os oraculos nem os filhos dos


reis poupavam : a filha de Jephthé, Isaac, Ephigenia,
foram reclamadas pelo céo ; Curtius e Codrus sacrifica-
ram-se a Roma e Athenas .
Todavia, o sacrificio humano devia ser o primeiro
abolido, porque pertencia ao estado de natureza em
que o homem é quasi todo physico; continuaram a im-
molar animaes longo tempo ; quando vieram a reflectir
na ordem das coisas divinas, deram pela insufficiencia
do sacrificio material, comprehenderam que o sangue
dos bodes e dos novilhos não podia redimir um sêr
intellectivo e capaz de virtude . Cuidaram pois d'offe-
recer hostia mais digna da natureza humana . Já os
philosophos tinham dito que os deuses não se abran-
davam com hecatombes , e só acceitavam a offerenda
de corações humildes : Jesus Christo confirmou estes
vagos sentimentos da razão . O Cordeiro mystico , vo-
tado á salvação universal, substituiu o cordeirinho que
nascia primeiro no rebanho, e á immolação do homem
physico foi para sempre substituida a immolação das
paixões , ou sacrificio do homem moral.
Quanto mais se aprofundar o christianismo, mais se
verá que é elle o desenvolvimento das luzes naturaes ,
e o resultado necessario da velhice da sociedade . Quem
poderia soffrer hoje o sangue infecto dos animaes em
redor d'um altar, e crêr que as entranhas d'um boi
tornam o céo propicio aos nossos rogos ? Concebe-se,
porém, de sobra, que uma victima espiritual, offere-
cida quotidianamente pelos peccados dos homens , póde
ser agradavel ao Senhor.
Todavia, para conservar o culto externo, era neces-
sario um symbolo da victima moral . Jesus Christo,
antes de deixar a terra, proveu á grosseria de nossos
sentidos , que não podem alcançar além do objecto ma-
terial, instituindo a Eucharistia, onde, sob especies
visiveis de pão e vinho , escondeu a offerenda invisivel
de seu sangue e nossos corações . Tal é a explicação do
sacrificio christão , explicação que não contraría o bom
senso e a sã philosophia ; e , se o leitor quer meditar um
momento, talvez descubra novas instituições sobre os
santos abysmos dos nossos mysterios .
140 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO VI

Ceremonias e orações da Missa

1
Falta só justificar os ritos do sacrificio . Supponha-
mos que a missa é uma antiga ceremonia, cujas orações
e descripção se encontram nos jogos seculares de Ho-
racio , ou em algumas tragedias gregas : como nos faria
admirar este dialogo que principia o sacrificio christão !
y. Chegarei ao altar de Deus.
R. De Deus, que alegra a minha mocidade .
. Fazei fulgurar vossa luz e vossa verdade, ellas
me guiarão aos vossos tabernaculos e ao vosso santo
monte.
R. Chegarei ao altar de Deus, de Deus que alegra
a minha mocidade.
y. Cantarei vossos louvores na harpa, ó Senhor !
Mas porque está triste a minha alma, e porque me
conturbas ?
R. Espera em Deus, etc.
Este dialogo é um verdadeiro poema lyrico entre o
padre e o catechumeno ; o primeiro , cheio de dias e
experiencia, geme sobre a miseria do homem, pelo
qual vae offerecer o sacrificio ; o segundo, cheio de mo-

1 66 Outr'ora dizia eu a missa com a ligeireza com que, por


habito, se fazem as coisas mais graves, quando são muito frequentes.
Segundo os meus novos principios, celebro-a com mais veneração :
compenetro-me da magestade do Sêr Supremo, da sua presença , da
insufficiencia do espirito humano, que tão mal concebe o que respeita
ao seu auctor. Pensando em que lhe offereço os votos do povo sob
uma formula prescripta, sigo cuidadosamente todos os ritos : recito
com attenção , tratando de não omittir a menor palavra ou a menor
ceremonia. Quando se aproxima o momento da consagração, recon-
centro-me para a fazer com todas as disposições que exigem a Igreja
e a grandeza do sacramento, procurando abater a minha razão ante a
Suprema Intelligencia. Quem és tu ? Pergunto a mim mesmo, para
medir o poder infinito. As palavras sacramentaes pronuncio- as com
respeito, prestando-lhes toda a fé que depende de mim. Por incon-
cebivel que seja este mysterio, não temo ser punido, no dia do juizo,
por o ter profanado em meu coração . » (Rousseau, Emil., t. 111.)
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 141

cidade e esperança, canta a victima por quem será


redimido.
Vem depois o Confiteor, oração admiravel por sua
moralidade. O padre implora a misericordia do Omni-
potente para o povo e para si .
Recomeça o dialogo:
. Senhor, escutae minha oração !
R. E que os meus brados cheguem até vós !
O sacrificador sóbe ao altar, inclina-se e beja com
respeito a pedra que, em antigos tempos, occultava
os ossos dos martyres .
Memoria das catacumbas .
N'este momento o padre é abrazado em divino fogo :
como os prophetas de Israel, entôa o cantico cantado
pelos anjos sobre o berço do Salvador, parte do qual
Ezequiel ouviu na nuvem :
«Gloria a Deus nas alturas do céo, e sobre a terra
paz aos homens de boa vontade . Nós vos louvamos ,
nós vos bemdizemos, nós vos adoramos , Rei do céo ,
em vossa immensa gloria !» etc.
Ao cantico segue- se a epistola . O amigo do Redem-
ptor do mundo, João, faz ouvir palavras dulcissimas ,
ou o sublime Paulo, insultando a morte, descobre os
mysterios de Deus . Prestes a lêr uma lição do Evan-
gelho , o padre suspende- se, e pede ao Eterno que lhe
purifique seus labios com a braza com que tocou os
labios de Isaias . Então sôam na assembleia as palavras
de Jesus Christo ; é o julgamento da mulher adultera ;
é o samaritano vertendo balsamo nas chagas do Senhor ;
são as creancinhas abençoadas em sua innocencia.
Que farão o padre e a assembleia ouvindo taes pala-
vras ? Declarar por certo que crêem firmemente na
existencia de um Deus que deixou exemplos taes na
terra . O symbolo da fé é logo cantado em triumpho . A
philosophia, que se jacta d'applaudir o que é grande,
devera ter reparado que é a primeira vez que um povo
inteiro professou publicamente o dogma da unidade
de um Deus : Credo in unum Deum .
Entretanto o sacrificador prepara á hostia, para si ,
para os vivos, e para os mortos . Apresenta o calix :
142 O GENIO DO CHRISTIANISMO

«Senhor, nós vos offertamos a taça da nossa salvação » .


Benze o pão e o vinho : « Vinde, Deus eternal ! abençoae
este sacrificio !»
Lava as mãos : Lavarei minhas mãos entre innocen-
tes. Oh ! não queiraes que meus dias se finem entre os
que amam o sangue .
Memoria das perseguições .
Preparado tudo , o celebrante volta-se para o povo,
e diz :
«Orae, irmãos » .
O povo responde :
«Que o Senhor receba de vossas mãos este sacri-
ficio».
O padre guarda silencio por um momento , depois,
de subito, annunciando a eternidade : Per omnia sæ-
cula sæculorum , exclama :
«Elevae vossos corações ! »
E milhares de vozes respondem :
«Habemus ad Dominum: Nós os elevaremos para o
Senhor».
O prefacio é cantado pela antiga melopêa ou reci-
tativo da tragedia grega ; as dominações, potestades,
virtudes, anjos e seraphins são convidados a baixar
com a grande victima, e a repetir com o côro dos fieis
o triplice Sanctus , e o Hosannah eterno .
Chega finalmente o tremendo instante . O Canon,
em que está gravada a lei eterna, foi aberto ; a consa-
gração termina pelas proprias palavras de Jesus Chris-
to : Senhor ! diz o padre, inclinando - se profundamente
que a hostia santa vos compraza como os dons de
Abel, o justo, como a sacrificio de Abrahão , nosso pa-
triarcha, como o de vosso summo sacerdote Melchise-
dech. Nós vos supplicamos ordeneis que estas offeren-
das sejam levadas ao vosso altar sublime por mãos do
vosso anjo, á presença de vossa magestade divina.
Ditas estas palavras, cumpre-se o mysterio, o cor-
deiro desce para ser immolado ;
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 143

Solemne instante ! o povo ajoelhado,


O templo com seus porticos musgosos ,
Velhos muros, luz frouxa, e as vidraças
De gothicas pinturas, bronzea lampada
Mytho ancião do sol, da eternidade
Luz perante o Senhor, de noite e dia ;
D'um Deus a magestade a nós baixada,
O voto, o pranto, o incenso á ara erguido,
E as tenras formosuras que, veladas
Por olhos maternaes, mais dulcificam
Com as candidas vozes as tão ternas
Pompas da religião ; o piedoso
Silencio que succede á voz do orgão,
A mystica juncção de céos e terra,
Tudo inflamma, transporta e move o crente,
Que crê passado ter a invios mundos,
Onde o archanjo immortal em aureas harpas,
Canta aos pés do Senhor perpetuo hymno.
De toda a parte, então, um Deus se escuta ;
Ao sabio não se mostra, mas revela-se
Aos ternos corações : sua presença
E' mais para sentir- se que provar-se. ¹

CAPITULO VII

Festividade de «Corpus- Christi »

As festividades christãs não têm que ver com as


ceremonias do paganismo ; cá não se passeia triumphal-
mente o boi-deus, o bode sagrado ; não se impõe, sob
pena de morrer desfeito em pedaços, a adoração d'um
gato ou crocodilo ; ou rolar- se ebrio na rua, commet-
tendo toda a casta de abominações por Venus, Flora
ou Baccho . Em nossas solemnidades é tudo essencial-
mente moral. Se a Igreja prohibe designadamente as
2
danças é porque ella sabe quantas paixões se occul-

1 Dia dos fieis defunctos, por M. de Fontanes.


2 Ainda se usa em alguns paizes, como na America Meridional ,
porque ainda reina grande innocencia entre os selvagens convertidos
ao christianismo.
144 O GENIO DO CHRISTIANISMO

tam n'esse prazer de innocente apparencia. O Deus


dos christãos só quer enlevos do coração, e os orde-
nados movimentos do espirito que rege a pacifica har-
monia das virtudes . E qual é, por exemplo , a solem-
nidade pagã que possa comparar-se á festividade em
que celebramos o nome do Senhor ? 1
Apenas a aurora annuncia a festa do Rei do mundo,
cobrem-se as casas de tapetes de sêda e lã , juncam- se
as ruas de flôres, e os campanarios chamam ao templo.
a multidão de fieis . Dá-se o signal : é tudo agitação , e
a procissão entra em movimento .
Apparecem primeiro as corporações que formam
as sociedades populares . Sobre suas espaduas pesam
os andores dos protectores de suas tribus, e em alguns
casos, as reliquias d'esses homens que , nascidos em
uma classe inferior, mereceram por suas virtudes ser
adorados dos reis : lição sublime que só a religião chris-
tã ha dado á terra.
Após estes grupos populares hastêa -se o estandarte
de Jesus Christo, que já não é symbolo de dôr, mas
sim de jubilo . A passos lentos caminham em duas
alas uma longa serie d'esposos da solidão , filhos da

1 Os absurdos rigoristas religiosos não conhecem o effeito das


ceremonias exteriores sobre o povo . Nunca viram a adoração da cruz
em sexta-feira santa, e o enthusiasmo das turbas na procissão de
Corpus, enthusiasmo de que eu proprio me deixo possuir ás vezes .
Nunca vi essa longa fileira de sacerdotes com os seus habitos , esses
moços acolytos com as suas sobrepelizes brancas, essa turba multa
que os precede e que os segue em religioso silencio, esses homens
que prostram a fronte no chão ; nunca ouvi esse cantico pathetico e
grave entoado pelos padres e respondido affectuosamente por uma
infinidade de vozes de homens e mulheres, moças e meniños, sem
que sentisse uma commoção interior, um intimo sobresalto e sem
que as lagrimas me assomassem aos olhos. Ha ahi um não sei quê
de sombrio e melancolico. Conheci um pintor protestante, que resi-
dira longo tempo em Roma, e que confessava que nunca vira officiar,
em S. Pedro, o soberano pontifice, no meio dos cardeaes e de todos
os prelados romanos, sem se tornar catholico.

"... Supprimi todos os symbolos sensiveis, e bem depressa se redu-


zirá tudo a uma algaravia metaphysica , que tomará tantas formas e
feições caprichosas, quantas forem as cabeças. » (Diderot, Essais sur
la peinture).
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 145

torrente e do penhasco , cujo antiquado traje suggere á


memoria outros costumes e outros seculos . O clero se-
cular segue estes solitarios : algumas vezes , os prelados,
trajando a purpura romana, estendem ainda a religiosa
cadea. O pontifice da festividade avista- se, emfim, so-
sinho, ao longe . Sustentam suas mãos a radiosa Eu-
charistia, que fulge sob um pallio na extrema da pro-
cissão , como ás vezes se vê brilhar o sol , envolto em
aurea nuvem, ao cabo d'uma avenida illuminada por
seus raios .
Os grupos dos adolescentes vão entre as alas da
procissão ; uns levam açafates de flôres ; outros vasos
de perfumarias . Ao signal repetido do mestre de cere-
monias, os coristas voltam- se para a imagem do eterno
Sol, esparzem petalas de côres em sua passagem . En-
voltos em alvas tunicas, os levitas balanceiam o incen-
sorio diante do Altissimo . Erguem os canticos ao longo
das alas santas : o repique dos sinos e o estrondo da
artilheria annunciam que o Omnipotente transpôz os
umbraes do seu templo . A intervallos, calam -se as
vozes e os instrumentos, e um silencio, tão magestoso
1
como o dos grandes mares em calmaria, reina na
multidão recolhida em si : ouvem-se apenas os medidos
passos no sonoro pavimento .
Mas, aonde vae esse Deus terrivel, cuja magestade
as potencias da terra assim proclamam ? Vae a re-
pousar-se sob tendas de linho e arcos de ramagem,
que lhe apresentam, como nos dias da velha alliança ,
templos singelos e campestres retiros . Precedem-o os
humildes de coração , os pobres e os meninos ; seguem- o
os juizes, os guerreiros e os potentados . Caminha entre
a simplicidade e a grandeza, como aos homens se mos-
tra, no mez que adoptou para a sua festividade, entre
a sazão das flôres e a dos raios.
As janellas e muros da cidade estão ornados de ha-
bitantes, cujo coração se expande a esta festa do Deus
da patria ; o recem-nascido estende os bracinhos ao Je-

1 Bibl. Sacr.
VOL. II 10
146 O GENIO DO CHRISTIANISMO

sus do monte, e o velho, inclinado á sepultura, sente- se


instantaneamente livre de seus temores ; em presença
do Deus vivo mal sabe dizer que certeza de vida o enche
de jubilo .
As solemnidades do christianismo estão em admi-
ravel harmonia com as scenas da natureza . A festa do
Creador occorre no momento em que a terra e o céo
manifestam seu poder, em que os bosques e os campos
se inçam de gerações novas : tudo se espósa com os
mais dôces liames : não ha nos campos uma só planta
viuva.
Pelo contrario , o cahir da folha traz a festividade
dos fieis defuntos para o homem, que cahe como a fo-
lhagem dos bosques ."
Na primavera, a Igreja expõe nas nossas aldeias
outra pompa . O Corpus -Christi condiz com os esplen-
dores das côrtes ; os cirios com a singeleza da aldeia .
O homem rustico sente com jubilo abrir - se-lhe a alma
ás influencias da religião , e a sua gleba aos orvalhos
celestes : feliz aquelle que produzir messes uteis, e in-
clinar o coração sob o peso de suas mesmas virtudes,
á maneira da tige que se dobra ao pezo do grão .

CAPITULO VIII

Das Ladainhas

Ouvem -se os campanarios das freguezias ruraes :


os aldeãos despegam do trabalho : o vinhateiro desce
da encosta, o lavrador corre da veiga, o lenheiro sahe
da matta : as mães, fechando suas casinhas , chegam
com seus filhos , e as donzellas largam a roca, os re-
banhos e as fontes para assistirem á festa .
O ajuntamento é no cemiterio da parochia, sobre as
sepulturas verdejantes dos avós . Logo apparece o clero
destinado á ceremonia ; é um ancião pastor reconhecido
só pelo nome de cura; e esse venerando nome, que ab-
PARTE QUARTA - LIVRO PRIMEIRO 147

sorveu o baptismal, indica menos o ministro do tem-


plo que o pae infatigavel do rebanho . Sahe do retiro
edificado ao pé do recinto dos mortos, cujas cinzas
guarda . Está estabelecido em seu presbyterio como
guarda avançada nas fronteiras da vida, para receber
os que entram e os que sahem d'este reino de dôres .
O povo, a alameda, a vinha em redor da janella , al-
gumas pombas formam a herdade d'este rei dos sacri-
ficios .
O apostolo do Evangelho, vestido com a simples
sobrepeliz, ajunta as suas ovelhas no adro . Faz-lhes
uma falla, bellissima de certo, a julgarmol-a pelas la-
grimas dos circumstantes . Ouve-se -lhe repetir a miudo :
Meus filhos, meus caros filhos ; e n'isso está o segredo
da eloquencia do Chrysostomo campestre .
Após a exhortação , entra a caminhar o ajuntamen-
to, cantando : Com prazer sahireis , com prazer sereis
acolhido: exultarão as collinas , e com jubilo vos ouvi-
rão. A bandeira dos santos, balsão antigo dos tempos
cavalleirosos , abre a carreira ao rebanho , que segue
promiscuamente o seu pastor. Caminha por estradas
sombrias e fundamente sulcadas pela roda dos carros ;
transpõe altos comoros formados por um só tronco de
carvalho ; estanceia ao longo d'uma sebe de pilriteiros,
onde zune a abelha, e assobiam os melros e chilrêam
os piscos . As arvores estão vestidas de flôr, ou verdejan-
tes de tenra folhagem. Bosques, valles, rios, penhascos,
escutam alternadamente os hymnos dos ceifeiros . Es-
pantados d'estes cantares, os hospedés das searas es-
voaçam das tenras messes, e param a distancia para
vêrem passar a procissão aldea .
Regressa, finalmente, o cirio á aldeia. Volta cada
qual ao seu trabalho ; a religião não quer que o dia, em
que se pede a Deus os bens da terra , seja um dia de
ociosidade . Com que esperança se enterra a relha do
arado , depois de haver implorado Aquelle que dirige
o sol, e guarda em seus cofres os ventos do meio- dia,
e os tepidos chuveiros ! Para bem acabar o dia, tão
santamente começado, os anciãos da aldeia veem, ao
entardecer, conversar com o cura, que está ceando
148 O GENIO DO CHRISTIANISMO

sob os álamos do páteo . A lua derrama então as derra-


deiras harmonias sobre esta festa, que traz em cada
anno o mais suave mez , e o curso do astro mais mys-
terioso . Como que se ouve de toda a parte o germina-
rem os grãos na terra, e as plantas a crescerem e a
desenvolverem -se ; vozes ignotas murmuram no seio das
florestas, como côro dos anjos campestres, cujo patro-
cinio foi implorado , e o suspirar do rouxinol chega ao
ouvido dos anciãos assentados tão longe das sepulturas .

CAPITULO IX

De algumas festividades christãs

NATAL, REIS , ETC.

Dignos são de, lastima aquelles que não transportam


.
jamais seus corações a esses tempos de fé, em que um
acto de religião era uma festa de familia, e que des-
prezam prazeres , que reputam sem valia por serem
innocentes .
Que nos dão elles em paga d'esses singelos recreios
de que nos privam ? Quizeram dar-nos alguma coisa .
A Convenção inventou os seus dias sagrados : a fome
então appellidava- se santa, e o Hosannah foi trocado
pelos brados de - Viva a morte ! Estranho caso ! ho-
mens poderosos , fallando em nome da igualdade e das
paixões, não poderam jámais fundar uma festividade ;
e o mais obscuro santo, que só pobreza , obediencia, e
renuncia de bens houvera prégado, tinha sua solem-
nidade na mesma occasião em que á prática do seu
culto expunha a vida. Saibamos d'ahi que só é duravel
a festividade que se alliga á religião e á memoria do
bemfazer . Não basta dizer aos homens «Alegrae-vos » ,
para que elles se alegrem : não se criam os dias de
prazer como os dias de desgosto, e não se decretam os
risos tão facilmente como as lagrimas.
PARTE QUARTA- LIVRO PRIMEIRO 149

Em quanto a estatua de Marat substituia a de S. Vi-


cente de Paula ; em quanto se celebravam suas exe-
quias, cujos anniversarios serão assignalados em nos-
sos annaes como dias d'eterna angustia , alguma pie-
dosa familia celebrava ás occultas uma festividade
christã, e a religião entrava com alguma alegria em
tamanha tristeza . Os corações simples não recordam
sem ternura essas horas expansivas em que as familias
se ajuntavam em redor dos folares, que memoravam
os presentes dos magos . O avô, recolhido no restante
do anno ao seu quarto, reapparecia n'esse dia como a
divindade dos lares paternos . Seus netos , que desde
muito sonhavam a suspirada festa, rodeavam - lhe os
joelhos , e rejuvenesciam- o com sua mocidade . Respi-
ravam alegria as faces e os corações ; a sala do festim
enfeitavam-a á maravilha, e cada qual estreava o seu
vestido . Ao tinir dos copos, á estralada dos risos, tira-
vam-se á sorte as realezas que não custavam lagrimas
nem suspiros , e conferiam-se sceptros que não pesa-
vam na mão de quem os sustinha . A's vezes uma frau-
dulencia, que redobrava a alegria dos vassallos, e ex-
citava os queixumes da soberana, fazia caír a fortuna
á filha da casa e ao filho do visinho, ultimamente che-
gado do exercito . As donzellas , que ficavam com as
coroas, córavam de confusas : as mães sorriam , e o avô
despejava o copo á saude da rainha nova !
Ora, o cura, presente á festança , recebia, para repar-
til- o com outros donativos , o primeiro quinhão , cha-
mado o quinhão dos pobres . Jogos antigos, um bailado
em que algum criado era o mestre da musica, prolon-
gavam os brinquedos ; e toda a casa, amas ,, caseiros,
servos , senhores e filhos, dansavam á mistura as velhas
danças de roda.
Taes scenas repetiam-se em toda a christandade
desde o palacio até ao colmado : não havia ahi lavrador
que não achasse com que satisfazer, n'esse dia, o de-
sejo do bearnez . E que série de dias venturosos ! Natal,
o dia de Anno -Bom , a festa dos Reis, os prazeres que
precedem a penitencia . Em tal tempo os caseiros re-
novavam os seus arrendamentos, os obreiros recebiam
150 O GENIO DO CHRISTIANISMO

o seu salario : era o momento dos casamentos , dos pre-


sentes, das caridades, das visitas : o cliente visitava o
juiz, e este áquelle ; corporações, confrarias, munici-
palidades, tribunaes judiciarios , universidades , admi-
nistrador do concelho, reuniam-se, á costumeira gau-.
leza. Nem a pobres e enfermos mingoavam n'esse dia
as consolações . Por isso que era obrigatorio receber
n'esse dia o seu visinho , o restante do anno era de
boa visinhança, e a paz e união reinavam na sociedade .
Não ha que pôr em dúvida se estas instituições ser-
viam poderosamente á manutenção da virtude, entre-
tendo a cordialidade e o amor entre os parentes . Mui
longe estamos já d'esses tempos, em que uma mulher,
na morte de seu consorte, procurava o filho mais , ve-
lho, entregava -lhe as chaves, e lhe dava contas do go-
verno como ao cabeça da familia . Já não temos aquella
alta ideia da dignidade do homem que nos inspirava
o christianismo . Mães e filhos mais querem dever tudo
aos artigos d'um contracto , que fiar-se em sentimentos
da natureza, porque a lei substituiu em tudo os cos-
tumes .
Estas festas christãs eram tanto mais graciosas,
quanto mais antigas, e era um prazer considerar que
Nem épocas remotas os nossos antepassados se regosija-
ram no mesmo dia . Além d'isso , eram muitas estas
festas, e d'ahi resultava que, a despeito dos dissabores
da vida, a religião achára o modo de dar momentos de
felicidade a milhões de infelizes de geração em ge-
ração.
Na noite natalicia do Messias, as chusmas de meni- .
nos que adoravam o presepio, as igrejas illuminadas e
decoradas de flôres, o povo, que se comprimia em redor
do berço do seu Deus, os christãos que, em capella
retirada, se reconciliavam com o céo, as festivas alle-
luias, a toada do orgão e dos sinos , eram uma pompa
cheia de innocencia e magestade .
Logo em seguida ao ultimo dia de gôso, muitas ve-
zes assignalado por nossas demasias, vinha a ceremo-
nia das Cinzas , como a morte no dia seguinte ao dos
prazeres . « Homem, dizia o padre, lembra-te que és pó,
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 151

e em pó te has de tornar» . O official que assistia ao


pé dos monarchas persas para lhes lembrar que eram
mortaes, ou o soldado romano que abatia o orgulho do
triumphador, não davam mais proficuas lições .
Não bastaria um volume para descrever miudamente
as ceremonias da Semana - Santa ; sabe -se com que ma-
gnificencia ellas se faziam na capital do mundo chris-
tão; assim nos abstemos de descrevel-as . Deixamos aos
pintores e poetas o cuidado de representar dignamente.
o clero lutuoso, os altares e templos encobertos, a
musica sublime, as celestes vozes cantando as lamenta-
ções de Jeremias, a Paixão com seus incomprehensi-
veis mysterios, o Santo Sepulchro rodeado de povo
prostrado, o pontifice lavando os pés dos pobres, as
trevas, os silencios cortados de ruidos formidaveis, o
grito de victoria expedido subitamente do pulpito, of
Deus, emfim, que abre os caminhos do céo ás almas
redimidas, e deixa aos christãos da terra, com uma re-
ligião divina, inexhauriveis esperanças .

CAPITULO X

Funeraes

POMPAS FUNEBRES DOS GRANDES

Os que lembrados estiverem do que dissemos na


primeira parte d'esta obra ácerca do ultimo sacramento
dos christãos, assentirão que só n'esta ceremonia ha
mais bellezas verdadeiras , que em tudo o que se sabe
do culto dos mortos entre os antigos . Depois, a religião
christã, só tendo em vista os fins divinos da humani-
dade, multiplicou as honras em volta do tumulo, va-
riando as pompas, segundo a classe e destinos do fina-
do. Por este theor, tornou mais dôce a cada um esta
dura, mas salutar, ideia da morte, com a qual ella se
apraz nutrir-nos a alma : d'est'arte a pomba amollece
no bico o cibo que dá aos filhinhos .
152 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Se a religião tem de exercer as exequias de algum


potentado da terra, não receeis que a grandeza lhe
falte . Quanto mais infeliz tiver sido o objecto chorado ,
mais pompas ella realçará em redor do seu féretro,
mais eloquentes serão as suas lições : altura e quéda,
fastigios e abysmos, d'onde cahem, e onde os reis des-
apparecem, é ella quem os mede .
Quando, pois, a urna das dôres se abre, e se enche
das lagrimas dos soberanos e das rainhas ; quando gran-
diosas cinzas e grandes desgraças subvertem as duplas
vaidades n'uma estreita jazida, a religião congrega os
fieis em qualquer templo . As abobadas, os altares, as
columnas, os santos, velam- se de negro ; ao centro da
nave eleva- se uma eça rodeada de cirios . A missa dos
funeraes é celebrada aos pés d'Aquelle que não nasceu
nem morrerá : entretanto reina o silencio . Surgído na
cadeira da verdade, um padre, unico a trajar de branco
no meio do luto geral, calva a fronte, pallido o rosto,
cerradas as palpebras, cruzadas sobre o peito as mãos ,
está recolhido ás profundezas de Deus : de subito des-
cerram-se seus olhos , separam- se as mãos , e as pala-
vras cahem- lhe dos labios .
«Aquelle que reina nos céos, e de quem impendem
todos os imperios, a quem só pertence a gloria, a ma-
gestade e a independencia, é tambem o unico a glori-
ficar-se de dar a lei aos reis, e de lhes dar, quando lhe
apraz, grandes e terriveis lições . Quer elle erija thro-
nos, quer os assole, quer communique seu poder aos
principes, quer lh'o retire, e só lhes deixe a fraqueza
ingenita, ensina-lhes os deveres por um theor soberano
e condigno de si ... 1
« Christãos, que a memoria d'uma grande rainha,
filha, esposa, mãe de reis potentissimos, e soberana
de tres reinos , occorra a esta triste ceremonia, este dis-
curso vos exporá um d'esses terriveis exemplos que
ostentam aos olhos do mundo sua inteira vaidade . Ve-
reis n'uma vida só todos os extremos das coisas hu-

1 Bossuet, Oraç. fun. da rainha da Gr. Bret.


PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 153

manas : a felicidade sem limites, e bem assim as mise-


rias; um longo e attribulado gôso d'uma das nobilissi-
mas coroas do universo ; a maxima gloria que podem
dar nascimento e grandeza em cumulo sobre uma ca-
beça, que depois é exposta a todos os ultrajes da for-
tuna ... ; a rebellião por largo estadío retida , e ao cabo
completamente senhora ; a licença desenfreada ; as leis
abolidas, a magestade violada por attentados inauditos,
um throno indignamente derrubado ... Eis os ensina-
mentos que Deus dá aos reis » .
Memorias d'um grande seculo, d'uma princeza des-
ditosa, e d'uma revolução memoranda, oh ! quanto a
religião vos tornou patheticas e sublimes, transmittin-
do-vos á posteridade !

CAPITULO XI

Funeraes do guerreiro, sahimentos dos ricos,


costumes, ete.

Nobre simplicidade presidia ás exequias do guerrei-


ro christão . Quando ainda se cria em alguma coisa,
amava- se vêr um capellão n'uma barraca aberta, junto
ao arraial, celebrar uma missa de defuntos sobre um
altar composto de tambores . Era um magnifico espe-
ctaculo vêr o Deus dos exercitos baixar, á voz d'um
padre, sobre as tendas de um acampamento francez,
emquanto velhos soldados , que tinham tantas vezes
arcado com a morte, cahiam de joelhos diante d'um
esquife, d'um altar e d'um ministro de paz . Ao rufar
dos tambores lutuosos, ás salvas interruptas da arti-
lheria, os granadeiros conduziam o cadaver do seu va-
lente capitão ao fosso que elles haviam cavado com
suas bayonetas . Ao sahir d'esses funeraes não se iam
correndo a jogar nas tripodes, a esgotar as duplas taças
e ás pelles leoninas de garras d'ouro ; mas davam - se
pressa em buscar, no afogo das pelejas, jogos funebres
154 . O GENIO DO CHRISTIANISMO

e uma arena mais gloriosa ; e, se não se immolava um


novilho negro aos manes do heroe, ao menos em honra
sua esparzia-se um sangue menos esteril, o dos inimi-
gos da patria .
Fallaremos d'esses enterros feitos ao bruxolear das
tochas nas nossas cidades, d'essas capellas ardentes,
d'esses carros roçagantes de negro, d'esses cavallos co-
bertos de crepes e plumagem, d'esse silencio quebrado
pelos versetos do hymno da cólera - Dies iræ !
A religião levava aos sahimentos dos poderosos or-
phãos indigentes, trajados das identicas insignias do
infurtunio ; assim fazia ella sentir a filhos sem pae al-
guma coisa de piedade filial ; ao mesmo tempo indigi-
tava á extrema miseria o que são bens que se esvaem
no tumulo ; e ensinava ao rico que, para Deus, não ha
mais efficaz meditação que a da innocencia e do infor-
tunio.
No trespasse dos padres havia um uso particular:
enterravam -os com a face descoberta : o povo julgava
lêr nas feições do seu pastor a sentença do soberano
Juiz, e reconhecer os jubilos do predestinado atravez
da sombra d'uma santa morte, como nos véos d'uma
pura noite se entrevêem os esplendores do céo.
Similhante costume se observava nos conventos .
Vimos uma joven freira assim deitada sobre o seu es-
quife . A lividez da sua face confundia-se com a do
lençol de linho, que mal a cobria; ornava-lhe a fronte
uma grinalda de rosas brancas, e um cirio ardia entre
suas mãos . As graças e a paz do coração não defen-
dem da morte . Fenecem os lirios, apezar da candidez
de suas corollas, e da tranquillidade dos valles que
habitam .
A simplicidade dos funeraes entendia por igual com
o que nutre e com o que defende a patria . Quatro al-
deãos, precedidos do cura, transportavam sobre suas
espadoas o homem dos campos ao tumulo de seus paes .
Se alguns lavradores encontravam o sahimento, sus-
pendiam o trabalho, descobriam- se, e saudavam com
o signal da cruz o seu companheiro extincto . Via-se ao
longe esse morto passar por entre as louras messes
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 155

que elle semeára talvez . O esquife , coberto de um


crepe mortuario, vae balouçando como uma papoula
negra por de sobre as aureas searas e a florescencia
de purpura e azul . O cortejo consistia em meninos, e
uma viuva pranteando - se . Passando em frente da cruz
da estrada, où da santa do rochedo, descançavam um
pouco, pousavam o esquife sobre o combro de uma
herdade, invocavam a Nossa Senhora campestre, ao pé
da qual o lavrador defunto tantas vezes havia pedidò
uma boa morte, ou uma colheita abundosa . Era alli
que elle trazia os bois para a sombra ao pino do sol ;
era alli que elle tomava a sua refeição de leite e pão-
centeio, quando as cigarras e cotovias chilreavam . Quão
differente de então repousa ahi agora ! Mas ao menos
os sulcos não serão regados com o seu suor ; ao menos
desopprimiu-se-lhe o seio dos cuidados paternaes ; e ,
pelo mesmo caminho que o conduzir á igreja em dias
festivos , eil-o ahi vae á sepultura entre os affectuosos
monumentos da sua vida - filhos virtuosos e innocen-
tes messes .

CAPITULO XII

Das orações pelos defuntos

Na antiguidade, o cadaver do pobre e do escravo


era abandonado quasi sem honras ; entre nós , o minis-
tro dos altares é obrigado a velar tanto o esquife do
aldeão como o catafalco do monarcha . O pobre do
Evangelho, exhalando o seu ultimo suspiro, torna-se
logo (ó sublimidade !) um sêr augusto e sagrado ! Logo
que o mendigo que depreca ás nossas portas , objecto
de desgosto e desprezo , deixou a vida , a religião fórça-
nos a inclinarmo-nos diante d'elle , citando-nos para a
formidavel igualdade, ou antes impondo -nos respeitar
um justo resgatado pelo sangue de Jesus Christo , e
d'uma condição obscura e miseravel exalçado ao throno
celestial : assim é que o grandioso nome de christão
nivela tudo na morte; e a soberba do mais poderoso
156 O GENIO DO CHRISTIANISMO

potentado não póde arrancar á religião um responso


que não seja identico ao que ella reza pelo homem da
escoria social .
Quão admiraveis são essas rezas ! Umas vezes, gri-
tos dolorosos , outras, exclamações de esperança : pran-
têa-se a morte, regosija- se, treme, tranquillisa- se, geme
e supplica .
Exibit spiritus ejus, etc.
« No dia em que elles rendem o espirito, volvem á
terra primitiva, e todos os seus pensamentos vãos pe-
recem » . 1
Delicta juventutis meæ, etc.
« Meu Deus , não vos lembreis das culpas da minha
mocidade, nem das minhas stulticias » . 2
Os queixumes do rei propheta são entrecortados
pelos suspiros do santo arabe.
« O' Deus, cessae de me affligir, porque os meus dias
são como coisa nenhuma . Que é o homem, para mere-
cer tantos desvelos , e para que vós lhe dediqueis vosso
coração ?...
«Quando de manhã me procurardes, não me acha-
reis. 3
«A vida faz-me tédio : entrego-me aos pezares e ás
lastimas ... Senhor, são vossos dias como os dos mor-
taes, e vossos eternos annos como os annos transito-
rios do homem ?
«Porque desviaes de mim o rosto , Senhor, e me tra-
taes como a inimigo ? Devereis desenvolver toda a
vossa força contra uma folha que o vento arrebata, e
perseguir uma folha sêcca ? 5
«O homem nascido da mulher vive pouco , e abunda
em muita miseria : esvae- se como sombra que não, per-
manece nunca da mesma fórma.

1 Officio dos defuntos, ps. CLIV.


2 Ibid., ps. XXIV.
3 Ibid., 1 liç .
4 Ibid., 11 liç.
5 Ibid., v liç .
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 157

« Dous annos correm rapidos, e eu trilho um cami-


nho por onde não volverei jámais . ¹
« Meus dias são idos , todos os meus pensamentos
se esvaíram, todas as esperanças de meu coração se
dissiparam... Eu digo ao sepulchro : Sereis meu pae ;
e aos vermes : Sereis-me como mãe e irmãos » .
A espaços , o dialogo do padre e do côro interrompe
a série dos canticos .
Padre: « Meus dias desvaneceram- se como fumo :
meus ossos cahiram pulverisados » .
Côro : « Meus dias declinaram como a sombra» .
Padre: «Que é a vida ? um tenue vapor» . '
Côro : « Meus dias declinaram como a sombra» .
Padre: «Os mortos estão dormindo no pó » .
Côro: «Erguer- se -hão , uns na eterna gloria, outros
no opprobrio eterno».
Padre: «Resuscitarão todos, mas não todos quaes
eram » .
Côro: «Erguer- se-hão » .
A' communhão da missa, diz o padre:
<«< Felizes aquelles que morrem no Senhor ! Desde
logo se lhes acabam os trabalhos, porque suas boas
obras vão com elles» .
Ao levantar o esquife, entôa- se o psalmo das lamen-
tações e das esperanças : « Senhor ! eu exclamo a vós
do fundo do abysmo ! que meus brados cheguem a
vós !»
No transportar o cadaver, recomeça o dialogo : Qui
dormiunt: «Elles dormem no pó ; - Erguer- se-hão »> .
Se é um padre, accrescenta -se : « Uma victima foi com
prazer immolada no tabernaculo do Senhor» .
Ao descer o caixão á cova : « Restituamos a terra á
terra, a cinza á cinza, o pó ao pó » .
No momento, emfim, em que se cobre de terra o es-
quife, o padre exclama as palavras do Apocalypse: Ou-
viu-se uma voz de cima que dizia: Bemaventurados os
mortos.

1 lbid. , vu liç.
158 O GENIO DO CHRISTIANISMO

E ainda assim, estas sublimes rezas não eram as


unicas que a Igreja offerecia pelos mortos : se tinha
véos immaculados e coroas de flôres para a tumba da
creança, tinha tambem orações adequadas á idade e
ao sexo da pessoa finada. Se quatro virgens, vestidas
de linho, e enfeitadas de grinaldas de folhas, condu-
ziam o despojo de uma companheira em um esquife
coberto de alvas cortinas, o padre recitava em voz alta ,
ao pé, d'este joven cadaver, um hymno á virgindade .
Era, umas vezes, a Avè, Maria Stella, cantico suavissi-
mo, onde a hora da morte é dada como o cumprimento
da esperança ; outras vezes , eram as imagens ternas e
poeticas , havidas da Escriptura : Passou como a herva
dos campos: ainda esta manhã florescia em toda a
sua graça, e ao entardecer achamol-a mirrhada. Não
é ella como a flôr que elanguesce tocada pelo ferro
do arado ? como a papoula que pende a corolla aba-
tida pela rajada tempestuosa ? PLUVIA CUM FORTE GRA-
VANTUR .
E que oração funebre recitava o pastor sobre a
morta creança , que sua mãe lagrimosa lhe apresentava
no caixãozinho ? Entoava o hymno que os tres meni-
nos hebreus cantavam na fornalha , e que a Igreja re-
pete ao amanhecer do domingo : Que tudo abençoe as
obras do Senhor ! A religião abençoa Deus por ter co-
roado o menino com a morte , livrando assim o anjo
das amarguras da vida . Convida a natureza a deliciar- se
em redor do tumulo da innocencia : não é de dôr, mas
sim de alegria os gritos que ella solta . No mesmo es-
pirito canta o Laudat, pueri, Dominum , que termina
por esta estrophe : Qui habitare facit sterilem ia domo
matrem filiorum laetantem . «O Senhor, que torna fe-
cunda a casa esteril , e faz que a mãe se delicie em
seus filhos » . Que canticos para paes consternados !
Mostra-lhes a Igreja o menino que elles acabam de
perder, vivendo na mansão bemaventurada, e promet-
te-lhes outros filhos sobre a terra !
Não contente ainda com ter assim attendido a cada
esquife, a religião coroou as coisas da outra vida com
uma ceremonia geral, em que reune a memoria dos
PARTE QUARTA LIVRO PRIMEIRO 159

innumeraveis moradores dos sepulchros ; 1 vasta com-


munidade de mortos em que o grande repousa a par do
pequeno ; republica de perfeita igualdade, em que se
não entra sem tirar o chapéo emplumado , ou a corôa,
para caber pela porta baixa do tumulo . N'esse dia so-
lemne, em que se celebram os funeraes da familia toda
de Adão, a alma allia suas attribulações pelos defuntos
antigos ás saudades que ella sente pelos que ha pouco
perdera . Por esta alliança a tristeza tem não sei quê
de soberana belleza, á maneira da dôr moderna que se
caracterisa á antiga, quando o que a exprime nutriu
seu espirito das velhas tragedias de Homero . Só a re-
ligião podia dilatar o coração do homem ao ponto d'elle
conter saudades e suspiros iguaes em numero á mul-
tidão de mortos que lhe cumpria honorificar .

1 Vède no fim a nota 3.ª 1


LIVRO SEGUNDO

TUMULOS

CAPITULO I

Tumulos antigos

EGYPTO

Tristissimos seriam sem signaes religiosos os derra-


deiros officios que se ministram ao homem . A religião
nasceu nos tumulos, e os tumulos não podem dispen-
sal-a : é justó que o brado esperançoso se erga do fundo
do sepulchro, e que o padre do Deus vivo acompanhe
á jazida os restos do homem : é d'alguma fórma a im-
mortalidade caminhando á frente da morte .
Dos funeraes passemos aos tumulos, que tamanho
espaço occupam na historia da humanidade . Para que
mais cabalmente se aprecie o culto que os honra na
christandade, vejamos em que estado subsistiram nos
povos idólatras.
Ha um paiz na terra que deve a celebridade aos seus
tumulos. Duas vezes attrahidos pela magnificencia das
ruinas e das recordações, os francezes voltaram - se para
essa região . O povo de S. Luiz sente em si impulsos
de grandeza que o forçam a insinuar-se, por todos os
cantos do globo, em tudo que é grande como elle . E',
todavia, certo serem as mumias objectos que valham
muito a nossa curiosidade ? Dir- se -ia que o velho Egy-
pto receava que a posteridade ignorasse um dia o que
era a morte, e quiz, atravez as idades, fazer-lhe chegar
amostras de cadaveres .
Não dareis n'esta terra um passo que não encontreis
um moimento . Se vêdes um obelisco , é um tumulo ;
VOL. II
11
162 O GENIO DO CHRISTIANISMO

os restos d'uma columna, são um tumulo ; uma caverna


subterranea é um tumulo . E quando a lua, alteando- se
por detraz da grande pyramide, refulge no tôpo d'esse
sepulchro immenso, julgareis vêr o pharol da morte,
a vaguear em realidade nas margens, onde outr'ora o
barqueiro dos infernos embarcava as sombras .

CAPITULO II

Gregos e Romanos

Entre os gregos e romanos os mortos sem renome


repousavam á entrada das cidades , ao longo das es-
tradas, porque provavelmente os tumulos são verda-
deiros monumentos do viajante : os finados celebres
eram muitas vezes sepultados á beira-mar.
Estas especies de avisos funebres, que annunciavam
de longe o litoral e o escolho ao navegante, eram -lhe
sem duvida assumpto a gravissimas reflexões . Oh !
quão seguro e fiel não devia parecer-lhe o mar, em
comparação da terra , onde a procella havia esmigalhado
tão alterosas fortunas, e engolido tantas vidas illustres !
Perto da cidade d'Alexandre divisava-se um comoro-
sinho de areia erguido pela piedade d'um liberto e d'um
velho soldado aos manes do grande Pompeu ; não longe
das ruinas de Carthago descobria-se sobre um penhasco
a estatua armada consagrada á memoria de Catão ; sobre
as ribas de Italia, o mausoléo de Scipião assignalava
o local onde o grande homem morreu no exilio ; e o
tumulo de Cicero indicava o sitio em que o pae da
patria foi cruelmente assassinado .
Ao passo, porém, que a fatal Roma erguia á beira-
mar esses testimunhos da sua injustiça, a Grecia, con-
solando a humanidade , collocava á beira das mesmas
ondas os mais risonhos monumentos. Os discipulos
de Platão e Pythagoras , aproando para terras do Egy-
pto , onde iam instruir-se no concernente aos deuses ,
passavam em frente da ilha de Io, á vista do tumulo de
PARTE QUARTA LIVRO SEGUNDO 163

Homero . Era natural que o cantor d'Achilles descan-


sasse sob a vigilia de Thetis ; podéra presumir-se que
a sombra do poeta se aprazia ainda narrando as des-
graças de Ilion ás Nereidas , ou que, nas dulcissimas
noites da Jonia, disputava ás sereias o premio das
cantilenas .

CAPITULO III

Tumulos modernos

CHINA E TURQUIA

E' pathetico o costume dos chins, enterrando em


seus jardins os parentes . E' mavioso ouvir nos bosques.
a voz das sombras de seus paes, e levar sempre ao
deserto algumas recordações .
Na outra extrema da Asia, os turcos usam o mesmo
costume . O estreito dos Dardanelos apresenta um es-
pectaculo mui philosophico ; d'um lado elevam- se os
promontorios da Europa com todas as suas ruinas ; do
outro, as costas da Asia orladas de cemiterios islami-
tas . Que diversidade de usos tem animado esses lito-
raes ! Que povos lá sepultados desde o tempo em que
a lyra de Orpheu alli agrupou os selvagens até que a
barbarie assenhoreou essas regiões ! Pelasgos , hellenos ,
gregos, meonios ; povos do Ida, do Tmolo, do Meandro
e do Pactolo ; subditos de Mithridates , escravos dos
Cesares ; vandalos, hordas de godos , hunos , francos ,
arabes, todos vós sobre essas ribanceiras honorificastes
os tumulos , e só n'isso vos indentificastes em costu-
mes . A morte, zombando a bel- prazer das coisas e
destinos humanos , prestou o cenotaphio de um impe-
rador romano aos restos d'um tartaro , e no sepulchro
de Platão encerrou as cinzas d'um mollah . 1

Os principaes chefes da religião musulmana na Turquia de-


nominam-se assim,
164 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO IV

Caledonia , ou antiga Escocia

Quatro pedras musgosas marcam nas charnecas da


Caledonia a jazida dos guerreiros de Fingal . Oscar e
Malvina passaram, mas na sua patria erma nada mu-
dou . O montanhez da Escocia apraz - se ainda em re-
petir os cantares de seus avoengos ; é ainda bravo ,
sensivel, e generoso ; seus modernos costumes são como
a recordação dos costumes antigos : não é já a mão do
bardo (perdoe-se-nos a imagem) que se ouve dedilhando
a harpa ; é o tremulo das cordas produzido pelo tocar
d'uma sombra, que, por noite, em salão deserto, an-
nunciava a morte d'um heroe . «Carril acompanhava-lhe
a voz . Cheia de meiguice e melancolia, a sua musica
era uma como lembrança dos dias que já não são .
Ouviram-o as sombras dos bardos sobre os flancos da
Slimora . Debeis sons se prolongaram ao longo das
florestas, e os valles calados da noite exultaram . Assim,
durante o silencio do meio dia, quando Ossian está sen-
tado na encosta das suas brizas , zumbido da abelha
da serra cala em sua orelha ; a miudo , o zephyro, em
sua passagem, arrebata o ligeiro som, mas para logo
retrocede» .
O homem aqui é como o cego Ossian, assentado nos
tumulos dos reis de Morven : onde quer que estenda a
mão á sombra, toca as cinzas de seus paes .

CAPITULO V

Otaiti

Quando os navegadores pela primeira vez penetraram


no oceano Pacifico , viram desdobrar-se ao longe as
vagas constantemente acariciadas por balsamicas auras .
De subito , ilhas incognitas sahiram do seio da immen-
PARTE QUARTA LIVRO SEGUNDO 165

sidade . Bosques de palmeiras, á mistura com enormes.


arvores parecidas com alterosos fetos , cobriam as ribas ,
e desciam até ás praias em amphitheatro . Os tôpos
azulados das montanhas coroavam estas florestas ma-
gestosamente . Estas ilhas, cercadas por um cinto de
coraes, pareciam balouçar-se como navios ancorados
sobre as mais serenas aguas ... A engenhosa antigui-
dade creria que Venus cingira a sua faixa em redor
d'essas novas Cytheras para preserval-as das tempes-
tades.
A natureza resguardára um povo, bello como o céo
que o vira nascer, sob estas sombras desconhecidas .
Os moradores do Otaiti vestiam- se com uma droga de
casca de figueira ; moravam sob tectos de folhas de
moreira, sustentados por madeiras odoriferas , e faziam
voar sobre as ondas duplicadas canôas com vélas de
junco, e bandeirolas de festões e plumagens . Usavam
danças consagradas aos prazeres ; as cantatas amorosas
não eram ignoradas n'essas margens . Tudo ahi res-
cendia ao languor da vida, aos dias serenos e ás noites
silenciosas . A existencia d'esses tranquillos selvagens
resumia-se em dormir á beira dos regatos, disputar pre-
guiça com as ondas , e passear com chapéos e mantos
de folhagem. Os cuidados que occupam os penosos
dias dos outros homens , não os conheciam esses insu-
lares ; bastava-lhes o leite e o pão que achavam pen-
dentes das frondes das arvores , quando vagueavam
pelas florestas .
Tal appareceu Otaiti a Willis, a Cooke, a Bougain-
ville . Ao aproximarem-se, porém, das praias , divisa-
ram alguns monumentos d'arte que condiziam com os
da natureza : eram os mourões d'um cemiterio . Vai-
dade dos prazeres humanos ! O primeiro pavilhão que
se descobre sobre estas praias encantadas é o da morte,
que fluctua sobranceiro a todas as felicidades humanas .
Não cuidemos, pois, que estes logares, onde á pri-
meira vista se nos depara um viver insensato , são es-
tranhos a sentimentos graves , necessarios a todos os
homens . Os otaitezes, como todos os povos, tem ritos
religiosos e ceremonias funebres ; mórmente ao myste-
166 O GENIO DO CHRISTIANISMO

rio da morte ligam uma grande ideia . Quando se con-


duz um escravo ao cemiterio todo o mundo lhe foge
do transito ; o mestre de cerimonias murmura então
algumas palavras ao ouvido do morto . Chegado ao
logar do repouso, não descem o corpo á terra, mas
suspendem -o n'um berço , que se cobre com uma canôa
ás avessas, symbolo do naufragio da vida. Algumas
vezes uma mulher vem chorar ao pé do cemiterio :
assenta-se com os pés no mar, a cabeça baixa, e os
cabellos cahidos sobre o rosto : as vagas acompanham-
The o canto doloroso , e a sua voz sobe ao Omnipotente
com a voz do tumulo e a do oceano Pacifico .

CAPITULO VI

Tumulos christãos

Ao fallar dos sepulchros pelo theor da nossa religião,


eleva- se o tom, e robustece - se a voz ; como que se sente
que o verdadeiro tumulo do homem está ahi . O moi-
mento do idólatra falla -vos do passado sómente : o do
christão falla-vos unicamente do porvir. O christianis-
mo opéra em tudo o melhor possivel : não ha n'elle as
semi -concepções tão frequentes nos outros cultos . Pelo
que, em ordem a sepulchros , menosprezando as ideias
intermedias que entendem com accidentes e logares ,
estremou-se das outras religiões por um sublime uso :
collocou as cinzas dos fieis na sombra dos templos do
Senhor, e depoz os mortos no seio do Deus vivo.
Lycurgo não se arreceou de estabelecer os jazigos
no centro de Lacedemonia : á maneira da nossa reli-
gião, pensou elle que as cinzas dos paes, longe de abre-
viarem a vida dos filhos, prolongam-lhes de feito o vi-
ver, ensinando-lhes moderação e virtude, conducentes a
uma ditosa velhice . As razões humanas , contrapostas
a essas razões divinas, mui longe estão de convencerem .
Morre-se menos em França que no restante da Europa.
onde os cemiterios ainda se conservam nas cidades ?
PARTE QUARTA LIVRO SEGUNDO 167

Quando outr'ora entre nós se arredaram das igrejas


as sepulturas , o povo, que não é de si tão discreto como
os philosophantes, que não tem razões identicas para
se temer do fim da vida, oppòz - se ao abandono das
antigas sepulturas . E, de feito, em que se avantajavam
aos antigos os cemiterios modernos ? Onde estavam as
heras, os teixos, e as verduras, alimentados tantos se-
culos do beneficiamento dos tumulos ? Onde mostravam
as sagradas ossadas dos antepassados , o templo, a vi-
venda do medico espiritual, finalmente esse apparato
religioso que promettia e assegurava um breve renas-
cimento ? Em vez d'esses cemiterios visitados , demar-
caram nos arrabaldes um recinto abandonado dos vivos
e das lembranças, onde a morte, desnudada do menor
emblema de esperança, se afigurava de essencia im-
morredoura.
Prestem -nos crença : os reinos cahem por muito sa-
cudidos, quando os abalam por essas bases fundamen-
laes do edificio . 1 Se ao menos se acommodassem com
a simples mudança das sepulturas ! Não contentes com
esta primeira offensa aos usos, exhumaram as cinzas
de nossos paes, trasladaram -as , á laia do lixo que o
varredor atirou para dentro da carroça.
Estava guardado para este seculo effectuar-se o que
para os antigos significava a maxima desgraça, e era
para os scelerados o extremo supplicio : queremos fallar
da dispersão das cinzas, que a philosophia applaudiu
como providencia e primor . Em que haviam delin-
quido nossos avós, para que assim fossem tratados
seus restos, se o seu crime não foi darem vida a filhos
como nós ? Attendei á mira de tal providencia, e pas-
mae da enormidade da sapiencia humana : em cidades
de França erigiram -se carceres no terreno dos cemi-
terios deslocados ; edificaram-se prisões para homens.

1 Os antigos, a dar- se violação no jazigo dos mortos, julgariam


destruido um estado. São sabidas as excellentes leis do Egypto, acerca
das sepulturas. As leis de Solon excommungam os violadores das se-
pulturas, entregando-os ás Furias. As Institutas de Justiniano re-
gulam os legados, as deixas, a venda e resgate d'um sepulchro , etc.
168 O GENIO DO CHRISTIANISMO

no campo onde Deus decretára o termo completo da


escravidão ; edificaram mansões de dôr em substituição
das acolheitas onde todas as máguas expiravam ; final-
mente, o que ficou foi uma similhança, horrivel por
certo , entre essas prisões e cemiterios : é que ahi se
exercitaram os iniquos julgamentos dos homens, ahi
onde Deus proferiu as sentenças da sua inviolavel jus-
1
tiça. ¹

CAPITULO VII

Cemiterios ruraes

Não tiveram os antigos localidades tão amenas de


cemiterios como as nossas nas aldeias : prados, campos,
fontes, bosques, risonha perspectiva, encasavam suas
singelas imagens nas campas dos agricultores . Era
bello ver o corpulento e decrepito teixo só vegetativo
pela crusta, o pomar do presbyterio, a crescida her-
vagem, os álamos , o olmo funeral, o buxo , e as cru-
zinhas de consolação e graça ! Rodeada dos placidos
moimentos, a igreja rural erguia o seu campanario,
coroado pelo rustico emblema da vigilancia . Só lá se
'ouvia o cantar do pintarroxo, e o rumor dos rebanhos
que tosavam a hervagem da campa de seu antigo pastor .
As avenidas, que cortavam o bento recinto , iam dar

1 Não fallamos das abominações perpetradas nos dias revolu-


cionarios . Não ha animal domestico que em nação estrangeira tanto
ou quanto policiada não seja sepultado com mais decencia que o corpo
d'um cidadão francez. E ' sabido como os enterros se faziam ; e como,
por alguns cobres, se fazia atirar o cadaver d'um pae, de mãe, ou
esposa ao monturo. Nem ahi estavam seguros esses mortos sagrados
porque haviam homens que viviam de roubar o lençol, o caixão, ou
os cabellos do cadaver. Estes successos devem attribuir- se a designio
do Altissimo ; devia de seguir- se isto na primeira violação à monar-
chia. Muito é para desejar que se restituam ao tumulo os signaes
de religião que lhes tiraram, é mormente que se não confie aos cães
a vigilancia dos cemiterios. Em tal excesso de miseria dá o homem
quando perde Deus de vista ! Já descrido da protecção do homem
cuja fé não tem caução alguma, é obrigado a submetter as suas cin-
zas à guarda dos animaes !
PARTE QUARTA LIVRO SEGUNDO 169

á igreja, ou á residencia do cura ; traçaram - nas o pobre


e o peregrino, indo exorar o Deus dos milagres , ou
mendigar o pão de esmola ao homem do Evangelho :
o indifferente e o rico , esses não deixavam pégadas
sobre essas sepulturas .
O epitaphio resumia-se n'isto : Guilherme ou Paulo
nasceu em tal anno , morreu em tal anno . Em algumas
campas nem sequer havia nome. O lavrador christão
descansa esquecido na morte, á maneira d'esses ve-
getaes uteis, entre os quáes elle viveu : a natureza não
entalha o nome dos robles sobre os troncos derribados
nas florestas .
Todavia, vagando uma vez n'um cemiterio rural,
avistamos um epitaphio latino sobre uma pedra que
denunciava a sepultura d'uma creança . Surprehendidos
d'esta magnificencia, fômos ao pé para conhecer da
erudição do parocho de aldeia : lêmos estas palavras do
Evangelho :

Sinite parvulos venire ad me.


" Deixae que os meninos se acerquem de mim . „

Na Suissa ha cemiterios edificados sobre penhascos,


imminentes aos lagos, precipicios, e valles . A cabra-
montez e a aguia aposentam-se lá, e a morte estende - se
por sobre essas escarpas ,. como as plantas alpinas ,
cuja raiz mergulha nos gêlos eternos . Após sua morte.
o aldeão de Glaris ou de Saint-Gall é trasladado por
seu pastor a essas eminencias . A pompa funebre do
sahimento é a pompa da natureza, e a sua musica lá
sobre as cristas dos Alpes são as cantilenas bucolicas
que recordam ao proscripto suisso o pae, a mãe , as
irmãs e os balidos dos rebanhos da sua serra .
A Italia patenteia ao viajante as suas catacumbas , ou
o humilde monumento d'um martyr nos jardins de Me-
cenas e Lucullo . A Inglaterra tem os seus mortos amor-
talhados em lã, e os seus tumulos semeados de rezeda.

1 Vêde no fim a nota 4.a


170 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Nos cemiterios de Albião já nossos olhos enternecidos


encontraram por vezes um nome francez entre epita-
phios estrangeiros .
Tornemos aos tumulos da patria .

CAPITULO VIII

Sepulturas nas Igrejas

Recordae de relance os velhos mosteiros , ou as ca-


thedraes gothicas como ellas outr'ora existiam : percor-
rei as alas do côro, capellas, naves, claustros lageados
pela morte, esses santuarios cheios de sepulchros .
Quaes tumulos d'esse labyrintho vos tocam mais ? São
os modernos, carregados de figuras allegoricas , que
esmagam com seus marmores glaciaes as cinzas menos
geladas que elles ? Vãos simulacros, que parecem qui-
nhoar da dupla lethargia do sarcophago em que assen-
tam, e dos corações mundanos que os fizeram erigir.
Para esses lançareis apenas um olhar. Porém, parareis
em frente d'esse tumulo pulverulento, sobre o qual está
deitada a figura gothica d'algum bispo aparamentado
de seus habitos pontificaes, as mãos erguidas, e os
olhos fechados ; parareis diante do moimento em que
um padre, apoiado sobre o cotovelo, e a face encostada
á mão, parece scismar na morte . O somno do prelado
e a attitude do sacerdote têm seu quê de mysterioso :
o primeiro parece profundamente occupado do que ve
em seus arroubos sepulchraes ; o segundo, á maneira
de viajante, não quiz deitar-se de todo, tão visinho está
o momento em que deve levantar- se !
E esta illustre matrona, que repousa aqui a par com
seu marido , quem é ? Ambos estão trajados ao primor
gaulez : um travesseiro lhes ampara as cabeças, e estas
parecem tão pesadas pelos narcoticos da morte , ' que
fazem rebaixar o travesseiro de granito ! Ditosos es-
posos, se não tiveram confidencias angustiosas que se-
gredar no leito de seus funereos esposorios ! Ao fundo
PARTE QUARTA · LIVRO SEGUNDO 171

d'esta capella recondita, eis quatro escudeiros marmo-


reos, vestidos de ferro, armados completamente, de
mãos erguidas, e ajoelhados nos quatro angulos da
cimalha d'um jazigo . E's tu , Bayard , que resgatavas
as virgens para esposal-as com os amantes ? E's tu,
Beaumanoir, que bebias teu proprio sangue no com-
bate dos Trinta ? E' algum outro cavalleiro que dorme
aqui ? Estes escudeiros parecem orar fervorosamente ,
porque esses intrepidos varões, antiga honra do nome
francez, com quanto guerreiros não se temiam menos
de Deus no ámago do coração ; exclamando : Montjoie
e S. Diniz, arrancavam a França aos inglezes , e faziam
milagres de valentia em pró da Igreja , por sua dama,
e seu rei . Não haverá motivos de maravilha n'essas
eras dos Rolandos , dos Godofredos , dos senhores de
Coucy e Joinville ; nas épocas dos mouros e sarracenos,
dos reinos de Jerusalem e de Chypre, nos tempos em
que o Oriente e a Asia se travavam com a Europa e
o Occidente em espiritos e costumes ; nas idades em
que Thibault cantava, e os trovadores se associavam
ás armas , as danças á religião, e os torneios aos asse-
dios e ás batalhas ?
Eram , por certo, maravilhosos esses tempos, mas
são idos . A religião advertira os cavalleiros da vaidade
das coisas humanas, quando em seguida a uma longa
enumeração de titulos pomposos : Alto e poderoso se-
nhor, misser Anne de Montmorency, condestavel de
França, etc., etc. , ella accrescentava : Rogae por este
pobre peccador . E' o nada em tudo !
No tocante a sepulturas subterraneas, estas eram
geralmente destinadas aos reis e aos monges . Quem
quizesse nutrir- se de graves e uteis pensamentos, descia
aos carneiros dos conventos, e contemplava esses so-
litarios dormentes , tão serenos em suas sepulturas,
quanto na vida o haviam sido .
Profundo seja o vosso dormir sob essas abobadas,
homens de paz, que compartistes com vossos irmãos
o legado da morte, e, á maneira do heroe da Grecia,
indo á conquista de outro universo, só reservastes para
vós a esperança !
172 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO IX

S. Diniz

A's portas de Paris viam - se outr'ora famosas sepul-


turas entre as sepulturas dos homens . Os estrangeiros
vinham em chusma visitar as maravilhas de S. Diniz .
Por isso captavam profunda reverencia á França , e
voltavam dizendo -se como S. Gregorio : Este reino é
em verdade o maior entre as nações . Mas desencadea-
ram-se os ventos da cólera em redor do edificio da
morte ; as ondas dos povos passaram sobre elle , e os
homens espantados interrogam- se ainda : Porque arte
o templo de AMMON se sumiu sob as areias dos de-
sertos ?
A' abbadia gothica, onde se congregavam esses
grandes vassallos da morte, não mingoavam esplen-
dores : estavam-lhe á porta as riquezas da França ; o
Sena corria na extremidade do seu plaino ; preclaros
nomes e gloriosas memorias, d'alli perto , celebravam
vastas localidades : a cidade de Henrique IV e de Luiz o
Grande era convisinha ; e o regio sepulchro de S. Diniz
estava no meio do nosso poder e luxo, como um the-
souro em que se depositavam as reliquias dos tempos,
e o excedente das grandezas do imperio francez .
E ' que ahi vinham, um por um, submergirem- se os
reis de França . Um d'elles, e sempre o ultimo baixado
a esses abysmos, ficava sobre as escaleiras do subterra-
neo, como para convidar a descer a sua posteridade .
Ainda assim, Luiz XIV esperou em vão os seus dois
ultimos filhos ; um despenhou-se no interior da abo-
bada, deixando o seu ascendente no limiar ; o outro,
á maneira de OEdipo, desappareceu n'uma tempestade .
Caso digno de meditar-se ! O primeiro monarcha en-
contrado pelos delegados da justiça divina, foi esse
Luiz, tão celebrado pela obediencia que as nações lhe
prestavam . Ainda jazia inteiro no seu féretro . Em
defeza de seu throno foi-lhe inutil erguer-se com a
magestade do seu seculo, e um prestito d'oito seculos.
PARTE QUARTA LIVRO SEGUNDO 173

de reis ; debalde seu gesto minaz apavorou os inimigos


dos mortos, quando, precipitado n'uma valla commum,
cahiu sobre o seio de Maria de Medices . Tudo foi ani-
quilado. Deus, na effusão da sua cólera, jurára por seu
nome castigar a França . Não inquiramos sobre a terra
as causas de similhantes succedimentos : no céo é onde
estão .
Já em tempo de Bossuet, a custo podéra depositar-se
« madame» Henriette no subterraneo d'esses principes
ertinctos: «tão apertadas ahi estão as fileiras —- exclama
o mais eloquente dos oradores tanto a morte se
apressa a encher as vacaturas » . Em presença das ida-
des, cujas ondas decorridas parecem ainda ferver n'es-
sas profundezas , os espiritos alquebram-se ao peso das
ideias que os opprimem ; a alma estremece ao contem- .
plar tamanho nada e tamanha grandeza ! Quando se
busca uma expressão assaz grandiosa para pintar o
que ha mais sublimado, a outra metade do objecto
solicita a mais rasteira palavra para exprimir o que ha
mais vil. Aqui , a sombra das anciãs abobadas se aba-
tem para se confundirem com as sombras dos velhos
jazigos ; acolá, as gradarias ferreas cercam inutilmente
os esquifes, e não podem defender a morte das arre-
mettidas dos homens . Escutae o surdo lavor do verme
da campa, que parece tecer n'esses caixões as indes-
tructiveis rêdes da morte ! Tudo clama que se desce
alli ao imperio das ruinas ; e, pelo odor de vetustade lá
derramado sobre as funebres arcadas , julgareis , diga-
mol-o assim, respirar o pó dos tempos passados .
Leitores christãos , sêde indulgentes com as lagri-
mas que nos saltam dos olhos, quando passamos entre
a familia de S. Luiz e de Clovis . Se , de subito, esses
reis, arrojando a mortalha que os veste, se erguessem
sobre seus tumulos , e nos cravassem os olhos ao clarão
d'aquella lampada ! ... Sim, nós os vêmos , esses espe-
ctros reaes, meio erguidos : reconhecemol-os, e ousa-
mos interrogar essas magestades do tumulo . Povo real
de phantasmas, dizei-nos : quererieis resurgir agora,
sob pena de serdes coroados ? tenta-vos ainda o thro-
no ?... Mas que profundo silencio é este ? Porque em-
174 O GENIO DO CHRISTIANISMO

mudeceis assim sob estas abobadas ? Sacudis a pul-


verea nuvem das regias frontes ; recerraes os olhos ,
e recahis serenamente em vossos féretros .
Se interrogassemos esses mortos campestres , cujas
cinzas ha pouco visitamos, elles fenderiam a relva de
suas campas e surgindo do seio da terra como evapo-
rações luminosas, responder-nos-iam: «Se Deus assim .
o quer, porque não reviveremos ? Porque não passa-
remos ainda dias pacientes nas nossas cabanas ? O
nosso alvião não era tão pesado como vós pensaes ; os
nossos proprios suores tinham seus prazeres , quando
eram enxutos por uma esposa terna, ou abençoados
pela religião » .
Mas onde nos leva a descripção d'esses sepulchros.
já varridos da terra ? Já não existem ! Os meninos
brincaram com as ossadas dos poderosos monarchas :
S. Diniz está ermo, é paragem das aves que passam,
e sobre seus altares espedaçados cresce a hervagem .
Em vez do cantico de morte, que retinia sob esses zim-
borios, ouve - se agora apenas as gottas de chuva que
filtram pelas fendas do tecto, a quéda d'alguma pedra
que se esboròa das paredes, ou o som do relogio que
vae rodando sobre os tumulos vasios e subterraneos
devastados .
LIVRO TERCEIRO

ANALYSE GERAL DO CLERO

CAPITULO I

Jesus Christo e sua vida

Ao tempo da apparição do Redemptor sobre a terra,


as nações estavam na espectativa d'algum famoso per-
sonagem . Suetonio diz : « Derramára-se no oriente a
velha e permanente opinião de que um homem surgiria
da Judéa, e obteria o imperio universal» . 1 Tacito, quasi
com palavras identicas, conta o mesmo facto . Confor-
me este historiador, « a maior parte dos judeus estavam
persuadidos, segundo um oraculo conservado nos an-
tigos livros dos seus prophetas, que n'esse tempo ( o de
Vespasiano) o Oriente prevaleceria, e alguem, oriundo
da Judéa , reinaria sobre o mundo» . 2
Josepho, fallando da ruina de Jerusalem, narra que
os judeus fôram principalmente instigados á revolta
contra os romanos por uma obscura prophecia, que
Ihes annunciava que n'esta época um homem surgiria
entre elles, e subjugaria o universo. 3
O Novo Testamento tambem offerece traços d'esta
esperança derramada em Israel ; a multidão que vae ao
deserto pergunta a S. João Baptista se elle é o grande
Messias, o Christo de Deus, desde muito esperado : os
discipulos de Emaús ficam tranzidos de tristeza quando

1 Suet.. in Vesp., cap. iv.


2 Tacit., Hist ., liv. v, cap. vin .
3 Josephos, De Bell. Judaic. , pag. 1283.
176 O GENIO DO CHRISTIANISMO

reconhecem que João não é o homem que deve resgatar


Israel.
As setenta semanas de Daniel, ou os quatrocentos
e noventa annos, desde a reconstrucção do templo,
estavam cumpridos . Origenes, finalmente, depois que
relata estas tradições judaicas, ajunta : « que um grande
numero d'elles confessaram a Jesus Christo como o
1
libertador promettido pelos prophetas » .
Entretanto, o céo prepara os caminhos do Filho do
homem . As nações, longo tempo divergentes em cos-
tumes, governo e linguagem, entretinham inimizades
hereditarias : de repente cessa o ruido das armas, e os
povos, reconciliados ou vencidos, veem confundir- se
no povo romano .
Por um lado, religião e costumes chegaram ao grau
de corrupção que por força produz mudança no tracto.
humano ; por outro , os dogmas da unidade de Deus e
da immortalidade da alma começam a espalhar- se :
d'est'arte os caminhos se desempecem á doutrina evan-
gelica, que uma lingua universal vae auxiliar na pro-
paganda .
Este imperio romano fórma-se de nações selvagens
e cultas, sendo as mais d'ellas infinitamente desgra-
çadas : a simplicidade do Christo para as primeiras ,
as virtudes moraes para as segundas , para todas a sua
misericordia e caridade, taes são os expedientes de sal-
vação que traça o céo . E tão efficazes são estes expe-
dientes, que, dois seculos depois do Messias , Tertullia-
no dizia aos juizes de Roma : « Nós somos de hontem,
e enchemos vossas cidades, ilhas, fortalezas, colonias,
tribus, decurias , concelhos , palacios , senado , forum :
apenas vos deixamos os vossos templos» . Sola relin-
quimus templa . 2
A' grandeza dos preparativos naturaes casou - se o
fulgor dos prodigios : os verdadeiros oraculos , desde
longo tempo mudos em Jerusalem, recobram a voz, e

1 Orig., Contra Rel. , pag. 127.


2 Tert., Apologet., cap. XXXVII,
PARTE QUARTA · LIVRO TERCEIRO 177

as falsas sybillas emmudecem . Nova estrella se le-


vanta no Oriente, Gabriel baixa a Maria, e um côro
d'espiritos bemaventurados canta nas alturas celestiaes
durante a noite : Gloria a Deus, e paz aos homens !
Subito se espalha o boato de que o Salvador nasceu
na Judéa . Não nasceu na purpura, mas sim no alber-
gue da pobreza ; não foi annunciado aos grandes e aos
soberbos, mas aos simples e pequenos os anjos o re-
velaram ; não agrupou em redor do seu braço os felizes
do mundo, mas sim os desgraçados ; e, por esse pri-
meiro acto da sua vida, declarou-se de preferencial
Deus dos miseraveis.
Paremos aqui para uma reflexão . Nós vêmos , desde
o começo dos seculos, os reis , os heroes, os homens
preclaros tornarem-se deuses das nações . Eis , porém ,
que o filho d'um carpinteiro, n'um recanto da Judéa ,
é um modelo de dôres e indigencias : um supplicio of
infama publicamente : os seus discipulos sahem da in-
fima escala social ; préga o sacrificio, a renuncia ás
pompas mundanas , ao prazer, ao poder ; prefere o es-
cravo ao senhor, o pobre ao rico, o leproso ao sadío :
tudo que chora, tudo que soffre, tudo que o mundo
desampara, o delicía a elle, que ameaça o poder, a
riqueza e a felicidade . Aniquila a sciencia commum
da moral ; estabelece harmonias novas entre os homens,
novo direito das gentes , nova fé publica . D'est'arte
eleva a sua divindade , vence a religião dos Cesa-
res, assenta-se em seu throno, e chega a subjugar a
terra . Não ! quando a voz universal bramasse contra
Jesus Christo, quando todas as luzes da philosophia.
se reunissem contra os seus dogmas , nunca nos con-
venceriam de que uma religião assente em base tal é
religião humana . Aquelle que conseguiu fazer adorar
uma cruz, Aquelle que offereceu aos homens como
objecto de culto a humanidade soffredora, a virtude
perseguida, esse, aqui o juramos , não podia ser senão
Deus .
Apparece Jesus Christo no meio dos homens, cheio.
de graça e verdade . Arrebatam a auctoridade e doçura
de sua palavra. Chega para ser o mais desgraçado dos
VOL. II 12
178 O GENIO DO CHRISTIANISMO

mortaes, e todos os seus prodigios são feitos em bem


dos miseraveis . Os seus milagres , diz Bossuet, são mais
bondade que poder. Escolhe o apologo ou a parabola ,
que facilmente se entalha no espirito dos povos , para
recommendar os seus preceitos . Vae caminhando e
ensinando atravez dos campos . Encontrando flôres ,
exhorta seus discipulos a confiarem na Providencia,
que ampara as plantas debeis, e alimenta as avesinhas ;
encontrando os fructos da terra, ensina a avaliar o
homem por suas obras . Se lhe trazem uma creança,
recommenda a innocencia ; no meio de pastores , dá-se
a si mesmo o titulo de pastor das almas , e afigura- se
levando aos hombros o cordeiro tresmalhado . Na pri-
mavera assenta - se na collina , e dos objectos que o ro-
deiam tira assumpto para instruir a multidão assentada
a seus pés . Do proprio espectaculo d'esta multidão
pobre e desgraçada, nascem as suas Bemaventuranças ;
Bemaventurados os que choram ! Bemaventurados os
que têm fome e sêde . Os que observam, e os que des-
prezam estes preceitos são comparados a dois homens.
que edificam duas casas , uma sobre rocha, outra sobre
area movediça : no entender de alguns interpretes, mos-
trava elle, assim fallando, uma aldêazinha florente so-
bre uma collina, e ao sopé d'esta collina as cabanas
1
alagadas por uma inundação . Quando pede agua á
mulher de Samaria, afigura -lhe a sua doutrina sob a
formosa imagem d'uma fonte de vivas aguas .
Os mais violentos adversarios de Jesus Christo não
ousaram jámais atacal-o em pessoa . Celso , Juliano,
Volusiano 2 confessam seus milagres, e Porphyrio
conta que até os oraculos dos pagãos o denominavam
homem illustre por sua piedade . Tiberio quizera
classifical-o entre os deuses ; 4 segundo Lampridius ,

1 Fortin, on the truth of the Christ. rel., pag. 218 .


2 Orig., Cont. Cels., 1 , 11 ; Jul. , Ap . , Cyril . , lib. vi ; Aug., ep. 11,
iv , t. 11 .
3 Euseb. , dem. 111 e v. 3.
4 Tert., Apoleget.
5 Lamp. , in Alex. Sev. , cap . iv e xxx1.
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 179

Adriano erigira-lhe tempos , e Alexandre Severo reve-


renciava-o a par das imagens das santas almas, entre
Orpheu e Abrahão . Plinio depôz illustre testimunho
sobre a innocencia d'esses primitivos christãos que se-
guiam de perto os exemplos do Redemptor . Não ha
ahi philosophia da antiguidade irreprehensivel em vi-
cios ; os proprios patriarchas tiveram fraquezas ; só o
Christo é immaculado ; é a brilhantissima cópia d'esta
soberana belleza que reside sobre o throno dos céos .
Puro e sagrado como o tabernaculo do Senhor, respi-
rando só amor de Deus e dos homens, infinitamente
superior á gloria vã do mundo, proseguia, atravez das
dores , a grande empreza da nossa salvação, forçando
os homens, com a superioridade das suas virtudes, a
abraçar-lhe a doutrina, e a imitar uma vida que força
lhes era admirar .
Era amavel, franco, e terno o caracter, illimitada
a caridade de Jesus . Isto, em duas palavras , nos dá
a conhecer o apostolo. Ia elle praticando o bem . Resi-
gnação na vontade de Deus, luz em todos os momentos
da sua vida . Amava e conhecia a amizade ; e Lazaro ,
que tirou do tumulo, era amigo seu : o maior milagre
fel -o pelo maior sentimento da vida . Foi modelo em
amor de patria : «Jerusalem , Jerusalem ! exclamava elle,
meditando na condemnação que ameaçava esta cidade
criminosaeu quiz ajuntar teus filhos, como a galli-
nha ajunta sob suas azas os pintainhos ; mas tu não
quizeste assim » . Do tôpo de uma collina, lançando a
vista a esta cidade condemnada por seus delictos a uma
destruição horrorosa, não pôde conter as lagrimas : Viu
a cidade, diz o apostolo, e chorou.
Não foi menos de notar a sua indulgencia, quando
seus discipulos lhe rogaram que fizesse baixar fogo
sobre uma cidade de samaritanos que lhe negaram hos-
pitalidade. Respondeu indignado : Vós não sabeis o que
me rogaes !
Se o filho do homem sahira do céo com toda a sua
força, pouco lhe custaria a praticar tantas virtudes, e
a supportar tantas penas ; mas aqui salta a gloria do
mysterio : o Christo sentia a dôr ; partia - se-lhe o cora-
180 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ção como o do homem; nunca deu signal de cólera


senão contra a dureza e a insensibilidade d'alma . Fre-
quentemente repetia : Amae-vos uns aos outros . Meu
pae, exclamava elle sob os ferros dos verdugos-
perdoae-lhes, que não sabem o que fazem. Prestes a
deixar os amantissimos discipulos , debulha- se em
pranto ; sente os terrores do tumulo e as angustias da
cruz ; um suor de sangue lhe desliza pelas faces divi-
nas ; queixa- se de que seu pae o abandonou . Ao apre-
sentar-lhe o anjo o calix, diz : O' meu pae ! faz que este
calix passe longe de mim ! Comtudo, se o devo beber, a
tua vontade se faça. Então sahiu de sua bôca este dizer,
onde se respira a sublimidade da dôr : Minha alma está
triste até á morte . Ah ! se a mais pura moral, e o mais
terno coração, se uma vida passada a combater o erro
e a consolar o mal dos homens são os attributos da
divindade, quem póde negar a de Jesus Christo ? Mo-
delo de todas as virtudes , a amizade o vè adormecido
no seio de S. João, ou legando sua mãe` a seu discipulo :
a caridade o admira no julgamento da mulher adultera :
em tudo a piedade o acha abençoando os prantos do
infeliz ; sua candura e innocencia manifestam-se no
amor ás creanças ; a força de sua alma brilha no meio
dos tormentos da cruz , e o seu derradeiro suspiro é
um suspiro de misericordia.

CAPITULO II

Clero secular

JERARCHIA

O Christo, legando suas doutrinas aos discipulos,


subiu ao Tabor e desappareceu . Desde esse instante,
a Igreja subsiste nos apostolos, e a um tempo se esta-
belece entre os judeus e os gentios . S. Pedro n'um
só sermão converte cinco mil almas em Jerusalem, e
S. Paulo recebe a sua missão para as nações infieis .
Para logo o principe dos apostolos lança no imperio
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 181

romano os cimentos do seu poderio ecclesiastico . ¹ Rei-


navam ainda os primeiros Cesares, e já circulava ao
pé de seu throno, na multidão, o padre incognito que
devia substituil-os no capitolio . Começava a jerarchia .
Lino succede a Pedro, Clemente a Lino ; esta serie de
pontifices, herdeiros da auctoridade apostolica, não se
quebra durante dezoito seculos , e nos une a Christo .
Com a dignidade episcopal , estabelecem -se desde o
principio as duas outras grandes divisões de jerarchia,
o sacerdocio e o diaconato . Santo Ignacio exhorta os
magnesios a procurar alliados ao seu bispo, que re-
presenta Jesus Christo, com seus padres, que repre-
sentam os apostolos, com seus diaconos , que são os
encarregados do cuidado dos altares . 2 Pio, Clemente
de Alexandria, Origenes e Tertulliano confirmam esta
graduação . 3
Posto que só no concilio de Nicea se mencionem
pela primeira vez os metropolitanos ou arcebispos, esse
concilio falla d'esta dignidade como d'um grau jerar-
4 5
chico, estabelecido desde muito . Santo Athanasio ,
Santo Agostinho citam metropolitanos com existencial
anterior á d'esta assembleia. Desde o segundo seculo,
Lyão é qualificada, nos actos civis, cidade metropoli-
tana; e santo Ireneo , que era ahi bispo, governou toda
a Igreja gallicana ..?
Pensaram alguns auctores que os proprios arcebis-
pos são de instituição apostolica; 1 8 de feito, Eusebio
e S. Chrysostomo dizem que Tito, bispo , exercia a

1 Vêde a nota 5.ª no fim.


2 Ignat., Ep . ad Magnes, n.º vi .
3 Pius, ep. 11; Clem. Alex.. Strom., lib. vi , pag. 667 ; Orig., hom.
11, in Num., hom . in Cantic.; Tertul . , de Mong. , cap. x1 , de Fuga,
XLI; de Bapt., cap. xvn .
4 Conc. Nic. , Cant. vi .
5 Athan., de sent. Dionys., t. 1 , pag. 552.
6 Aug., Brevis Collat. test. die, cap. xvi.
7 Euseb., Hist . eccl.. lib. v, cap. xx .
8 Usher., de Oris., Epic. et Metrop. lib. 11 , cap. vi, n.º 12; Hamm.,
Pref. to Titus, Diss. 4 contr. Blondel, cap. v.
182 O GENIO DO CHRISTIANISMO

superintendencia dos bispos de Creta. 1 A'cerca da


origem do patriarchado, variam as opiniões ; Baronius ,
de Marca, e Richerius fazem -o recuar aos apostolos ;
parece, todavia, que elle foi estabelecido na Igreja cerca
do anno 385, quatro annos depois do concilio geral de
Constantinopla .
O nome de cardeal dava- se ao principio indistincta-
mente aos primeiros titulares das igrejas . 2 Como estes
chefes do clero eram por via de regra homens distin-
ctos por sciencia e virtude, os papas consultavam-os
em negocios melindrosos ; d'ahi veio tornarem - se pouco
e pouco o conselho permanente da santa sé, eleitores
do summo pontifice, quando a communhão dos fieis
cresceu de mais para se poder congregar .
As causas d'onde procederam os cardeaes, juntos
aos pontifices, actuaram nos conegos juntos aos bispos :
era um dado numero de padres que formava a côrte
episcopal. Augmentando os negocios da diocese, fôram
os membros do synodo obrigados a repartirem - se nos
trabalhos . Uns chamaram-se vigarios , outros grandes-
vigarios, etc. , segundo a extensão de seu cargo . O con-
selho inteiro denominou-se Capitulo, e os conselheiros
conegos, que quer dizer administradores canonicos.
Tiveram origem os abbades em simples padres, e
até leigos encartados pelos bispos na direcção d'uma
communidade religiosa . Veremos quanto as abbadias
aproveitaram ás lettras, á agricultura, e ao geral da
civilisação europea.
Formaram - se as parochias na época em que as or-
dens principaes do clero se subdividiram . Tornando-se
os bispados extremamente vastos, fundaram- se igrejas
ruraes, por isso que os padres da metropole não podiam
levar os soccorros espirituaes e temporaes ás extremi-
dades da diocese . Os ministros , adherentes a esses tem-
plos campestres, fôram longo tempo depois denomi-
nados curas, talvez do latim cura, que significa cui-

1 Euseb., Hist. eccl . , lib . 111 , cap. iv ; Chrys., Hom . 1 , in Tit.


2 Hericourt, Leis eccl. de França, pag. 203.
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 183

dado, fadiga. O nome nem sequer é orgulhoso , e é bem


que se lhe indulte , pois que elles tão ao justo o cum-
priam. 1
Afóra estas igrejas parochiaes, tambem se edifica-
ram capellas sobre os tumulos dos martyres e dos ana-
choretas . Estes templos particulares denominavam -se
martyrium ou memoria, e, por pensamento mais dôce
e mais philosophico, tambem os chamavam cemite-
2
rios, de uma palavra grega que significa somno .
Finalmente , os beneficios seculares trazem sua ori-
gem dos agapes, ou refeição dos primeiros christãos .
Cada fiel levava a sua esmola para a sustentação do
bispo, do padre, do diacono, e para allivio dos doentes
e dos peregrinos . 3 Homens abastados, principes, ci-
dades inteiras deram ao depois terras á Igreja para sup-
prir as incertas esmolas . Estes bens, repartidos em dif-
ferentes porções, por alvitre dos superiores ecclesias-
ticos , houveram nome de prebenda, canonicato, com-
menda, beneficios curados, beneficios manuaes, sim-
ples, claustraes, consoante a graduação jerarchica do
administrador, a cujo zêlo fôram confiados . 4
No que toca aos fieis em geral, a corporação dos
primitivos christãos distinguia-se em crentes ou fieis,
e catechumenos . 5 Era privilegio dos crentes serem re-
cebidos á santa mesa, assistir ás orações da Igreja, e
6
pronunciar a oração dominical, que Santo Agostinho,
por isso mesmo, denomina oratio fidelium . Os cate-
chumenos não podiam assistir a todas as ceremonias,
e só por parabolas obscuras se tratavam os mysterios.
na presença d'elles . 7

1 Santo Athanasio diz , na segunda Apologia, que haviam então


dez igrejas parochiaes fundadas na Mareotis, que dependia da dio-
cese da Alexandria .
2 Fleury, Hist. eccl.
3 S. Just., Apol.
4 Heric., Leis eccl., pag. 204-13.
5 Euseb. , Demonst. Evang., lib. vii, cap . II.
6 Constit. Apost. , lib . vill , cap. viii e x11 .
7 Theodor., Epit. div. dog. , cap. xxv1 ; Aug., Serm. , ad Neoph.,
in append., tom. x, pag. 845.
184 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Inventou-se o nome do leigo para distinguir o ho-


mem que não estava alligado ás ordens da corporação
geral do clero . O titulo de clero formou- se ao mesmo
tempo : laici lê-se em cada pagina dos auctores antigos .
Serviam- se da denominação de ecclesiastico , umas ve-
zes fallando dos christãos em opposição aos gentios, ¹
outras designando o clero com referencia ao restante
dos fieis . Emfim, o titulo de catholica, ou universal,
teve-o a Igreja desde o seu nascimento . Eusebio, Cle-
mente de Alexandria, e Santo Ignacio, testificam-o . 2
Poleimon, o juiz, perguntando ao martyr Pionos , de
que Igreja era, o confessor respondeu : Da Igreja ca-
tholica; porque Jesus Christo não sabe d'outra. 3
Na exposição d'esta jerarchia , não esqueçamos que
S. Jeronymo a compára á dos anjos ; não esqueçamos
os modos por que a christandade assignalava sua sa-
bedoria e força, os conselhos e as perseguições , que-
remos dizer. « Chamae á vossa memoria, diz La Bruyère,
recordae esse grande e primeiro concilio, cujos padres
eram notaveis por mutilação de membros, ou cicatrizes
que lhes ficaram dos furores da perseguição ; parece
que as chagas lhes outhorgavam o jus de se assenta-
rem n'esta assembleia geral de toda a Igreja » .
Deploravel espirito de facção ! Voltaire, que a miudo
mostra horror do sangue e amor á humanidade , intenta
persuadir que fôram poucos os martyres da primitiva
Igreja ; 4 e, como se nunca houvesse lido os historiado-
res romanos, chega quasi a negar essa primeira perse-
guição, de que Tacito nos faz horrenda pintura. 0
auctor de Zaira, conhecedor do poder da desgraça, re-
ceando que o quadro das angustias dos christãos po-
désse commover, quiz arrancar-lhes a corôa do marty-
rio, que os tornava bemquistos aos corações sensiveis ,
e até das lagrimas lhes quiz deslustrar o merito .

1 Euseb., lib. v, cap. vii e xxvi1; Cyril. , Cathec., xv, n.º 4.


2 Euseb. , liv. IV, cap. xv ; Clem . Alex., Strom., lib. vi ; Ignat. ,
cap. ad Smyrn. , n.º 8.
3 Act. Pion., ap. Bar. an. 254, n.º 9.
4 Volt., Essais sur les mœurs.-Vide a nota 6.ª no fim.
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 185

Temos, pois, esboçado o quadro da jerarchia apos-


tolica : accrescentae-lhe o clero regular, que breve-
mente será o nosso assumpto, e tereis integralmente
a Igreja de Jesus Christo . Ousamos affirmal - o : ne-
nhuma outra religião sobre a terra offerece um simi-
lhante systema de bem-fazer, de prudencia e providen-
cia , força e suavidade, leis moraes e leis religiosas .
Não ha ahi organisação mais de primor que a d'esses
circulos que, a partir do ultimo cura da aldeia , se ele-
vam até ao throno pontifical, que sustentam, e com que
se coroam . Assim a Igreja, com suas diversas gradua-
ções, correspondia ás nossas differentes necessidades ;
artes, lettras, sciencias, legislação , politica , instituições
litterarias , civis e religiosas, estabelecimentos de ca-
ridade, todos esses magnificos beneficios nos advinham .
das ordens superiores da jerarchia , ao passo que os
pormenores da caridade e da moral se derramam dos
graus inferiores para as infimas classes . Se outr'ora
a Igreja foi pobre, desde o ultimo até ao primeiro élo ,
é que a christandade era como ella indigente . Mas
seria muito exigir que o clero se mantivesse pobre ,
quando a opulencia bracejava em redor d'elle . Seria
isso perder toda a consideração, e certas classes da
sociedade , com as quaes elle não poderia viver, sub-
trahir-se-iam á sua auctoridade moral . O cabeça da
Igreja era principe para poder fallar aos principes ; os
bispos , hombreando com os grandes, ousavam ensinar-
lhes os seus deveres ; os padres seculares e regulares ,
superiores ás necessidades da vida, insinuavam-se nos
ricos, cujos costumes lhes iam depurando ; e o simples
cura chegava- se ao pobre, que lhe fôra destinado para
o consolar com o bem-fazer e com o exemplo .
Não quer isto dizer que o mais indigente dos padres
não podésse doutrinar os grandes do mundo, e revo-
cal- os á virtude ; mas é que não podia acompanhal- os
nos habitos da vida como o alto clero, nem fallar-lhes
linguagem que elles perfeitamente comprehendessem .
Até a consideração que elles gosavam provinha em
parte das ordens superiores da Igreja. E demais, im-
porta muito que as grandes populações tenham um
186 O GENIO DO CHRISTIANISMO

culto honroso, e altares onde o desgraçado possa achar


Soccorros .
Além disso, não ha na historia das instituições civis
e religiosas nada mas bello que o tocante á auctoridade ,
e investidura, e aos poderes de prelado entre os chris-
tãos . N'elle se vê a vera imagem do pastor dos povos, e
do ministro dos altares . Nenhuma classe de homens
honrou tanto a humanidade como a dos bispos , e não
sabemos onde se nos deparam mais virtudes, magnifi-
cencia e genio.
O chefe apostolico devia ser perfeito de corpo, e
igual ao padre sem mácula , que Platão descreve nas
suas Leis . Eleito na assembleia do povo , era elle , tal-
vez, o unico magistrado legal que existia nos tempos.
barbaros . Como este encargo impunha immensa res-
ponsabilidade, tanto n'esta como na outra vida , não era
disputado . Os Basilios e os Ambrosios fugiam para o
deserto, com medo de serem elevados a uma dignidade,
cujos deveres assombravam as suas proprias virtudes .
O bispo era obrigado não só a cumprir as suas fun-
cções religiosas, mas tambem a ensinar a moral, admi-
nistrar sacramentos, ordenar padres, mas ainda o pèso
das leis civis, e das controversias politicas estavam a
seu cargo . A's vezes, incumbia-lhe pacificar um prin-
cipe ; declinar uma guerra, defender uma cidade . O
bispo de Paris, no seculo nono, salvando corajosa-
mente a capital de França, obstou talvez a que toda a
França passasse ao jugo dos normandos .
«Tão convictos estavam, diz d'Hericourt, de ser obri-
gatorio ao episcopado receber os estrangeiros, que
S. Gregorio, antes de sagrar Florentinus, bispo de An-
cona, quiz que se declarasse se era por impossibilidade
ou avareza que elle não déra, até então , hospitalidade
aos estrangeiros» . 1
Queria-se que o bispo odiasse o peccado, e não o
peccador, 2 que amparasse o fraco, que tivesse para

1 Leis eccl. de França, pag. 751 .


2 Id., ib. , Can , odio.
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 187

1
os pobres coraçãò paternal . ¹ Comtudo, era de seu dever
ser moderado nas dadivas , e não alimentar profissão
perigosa ou vã, como a de farçantes e caçadores : 2 ver-
dadeira lei politica, que por um lado acatava o vicio
principal dos romanos , e pelo outro a paixão dos bar-
baros .
Se o bispo tivesse parentes necessitados , era-lhe li-
cito antepôl- os aos estranhos, mas enriquecel- os não :
«Pòrque, diz o canon, é o estado de indigencia d'elles,
e não os laços de sangue, que o bispo deve ter em
vista em similhante caso » . 3
E' de espantar que os bispos, com tantas virtudes,
acareassem o acatamento dos povos ? Curvavam a ca-
beça á sua benção ; cantavam diante d'elles o Hosannah ;
denominavam- os santissimos , carissimos a Deus, e taes
titulos eram tão magnificos, quanto justamente adqui-
ridos.
Civilisadas as nações, os bispos, menos apertados
em seus deveres religiosos, saborearam-se dos bens
que haviam feito aos homens, e curaram de augmen-
tal-os, devotando- se com maior affinco á manutenção
da moral, ás obras caridosas , e ao progresso das let-
tras . Os seus palacios constituiram-se o centro da po-
lidez e das artes . Chamados pelos soberanos ao publico
ministerio, e revestidos das precipuas dignidades eccle-
siasticas, luziram ahi em talentos que maravilharam a
Europa. Até nos derradeiros tempos, os bispos de
França hão sido modelos de moderação e saber. Poder-
se-iam citar algumas excepções , de certo ; mas , em
quanto os homens fôrem sensiveis á virtude, lembrar-
se-hão que mais de sessenta bispos catholicos erraram
foragidos entre os protestantes, e que a despeito dos
prejuizos religiosos, e das prevenções inherentes ao
infortunio, attrahiram a veneração e respeito d'esses
povos ; lembrar- se-hão que o discipulo de Luthero e

1 Leis eccl. de França-Can . odio.


2 Id., pag. 751 - Canon Don, qui venatoribus.
3 Id., pag. 742.-Can. Est probanda.
188 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Calvino veio ouvir o prelado romano exilado prégar


em algum obscuro recinto o amor da humanidade e
o perdão das injurias ; lembrar-se-hão , emfim, que tan-
tos novos Cyprianos perseguidos por sua religião , que
tantos Chrysostomos corajosos se despojaram do titulo
que lhes daya a lucta e a gloria, a uma simples palavra
do chefe da Igreja, julgando - se ditosos por sacrificarem
com a sua primeira prosperidade o lustre de doze annos
de desgraças á tranquillidade do seu rebanho .
Respectivamente ao clero inferior, a elle se devia
esse resto de bons costumes que se achavam ainda nas
cidades e nos campos . O camponez sem religião é uma
fera ; não ha freio de educação nem respeito humano
que o sopeie ; uma vida penosa enfureceu-lhe a indole ;
a propriedade arrebatou-lhe a innocencia do selvagem ;
é timido, grosseiro, desconfiado, avaro, e sobretudo
ingrato . Mas, por tocante milagre, este homem, de
natural perverso , faz-se excellente nas mãos da reli-
gião . Tão covarde era, quanto bravo se torna ; a incli-
nação traiçoeira volve-se em extremada fidelidade, a
ingratidão em devotar-se sem limites, a desconfiança
em confiança absoluta . Comparae esses impios aldeãos ,
profanando as igrejas, devastando as propriedades,
queimando a fogo lento as mulheres, as creanças, e os
padres : comparae-os aos vandeanos defendendo o culto
de seus paes, e unicos livres quando a França estava
acurvada sob o jugo do Terror; comparae- os e vêde a
differença com que a religião estrema os homens.
Poder-se - ia censurar aos curas prejuizos d'estado
ou d'ignorancia ; mas, ainda assim, a simpleza de cora-
ção, a santidade de vida , a evangelica pobreza , a cari-
dade em Jesus Christo, tornavam - os uma das mais res-
peitaveis classes da nação . Alguns se viram que mais
pareciam espiritos bemfazejos baixados do céo para
consolar miseraveis . Muitas vezés rejeitaram o pão
para o darem aos famintos, e despiram as vestes para
agasalharem o indigente. Quem ousará reprovar a ho-
mens taes a severidade d'opinião ? Qual de nós , so-
berbos philanthropos , quereria, durante os rigores do
inverno, ser acordado á meia noite, para ir sacramentar
PARTE QUARTA · LIVRO TERCEIRO 189

ao longe o moribundo, expirando sobre a palha ? Qual


de nós quereria ter, contínuo, o coração partido pelo
espectaculo da miseria que se não póde soccorrer , vêr-
se rodeado d'uma familia, cujas faces desfiguradas, e
olhos cavos annunciam o afôgo da fome e de todas as
penurias ? Consentiriamos em seguir os curas de Pa-
ris, esses anjos de humanidade, á mansão do crime e
da dôr, para consolar o vicio sob as mais esqualidas
fórmas, para filtrar a esperança n'um coração deses-
perado ? Qual de nós, emfim, quereria sequestrar- se
do mundo dos ditosos , para viver eternamente cercado
de amarguras , e só receber, expirando, em paga de
tamanhos beneficios, a ingratidão do pobre, e a calum-
nia do rico ?

CAPITULO III

Clero regular

ORIGEM DA VIDA MONASTICA

Se é verdade, como póde crêr- se , que a belleza poe-


tica d'uma coisa assenta na antiguidade da sua origem,
força é conceder que a vida monastica alguns direitos
tem á nossa admiração . Entra nas primeiras idades
do mundo . O propheta Elias, fugindo á corrupção de
Israel, retirou- se ao longo do Jordão, onde viveu de
hervas e raizes com alguns discipulos . Não é preciso
rebuscar na historia mais remota, para que a origem
das ordens religiosas nos maravilhe . O que não diriam
os poetas da Grecia, se achassem como fundador dos
sacros collegios um homem arrebatado ao céo n'um
carro de fogo , e que deve reapparecer na terra no dia
da consummação dos seculos ?
D'ahi, a vida monastica, em admiravel legado, desce
atravez dos prophetas , de S. João Baptista até Jesus
Christo, que muitas vezes se furtava ao mundo para
190 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ir orar nas montanhas. Em seguida, os therapeutas , 1


abraçando as perfeições do ermo , deram, junto ao lago
Moris, no Egypto, os primeiros modelos dos mostei-
ros christãos . Emfim, no tempo de Paulo , Antonio e
Pacomio, apparecem os santos da Thebaida, que enche-
ram o Carmello e o Libano dos primores da penitencia .
Voz de gloria e maravilha sahiu do reconcavo das mais
assombrosas solidões . Musicas divinas se misturavam
ao ruido das cataractas e sussurro das torrentes ; os
seraphins visitavam o anachoreta dos penhascos , ou
trasladavam ás nuvens sua alma fulgida ; os leões ser-
viam de mensageiros aos solitarios, e os corvos lhe
conduziam o maná celestial . Ciumosas cidades viram
cahir a sua antiga nomeada ; chegára o tempo em que
o deserto cobrára fama .
Progredindo asssim, d'excellencia em excellencia,
no estabelecimento da vida monastica, achamos uma
segunda ordem d'origens que denominamos locaes, isto
é, certas fundações d'ordens e conventos : estas origens
não são menos curiosas e agradaveis que as primeiras.
A's portas de Jerusalem está um mosteiro edificado
sobre o terreno da casa de Pilatos ; no monte Sinai o
convento da Transfiguração assignala o logar onde
Jehovah dictou as suas leis aos hebreus, e mais longe
eleva-se outro mosteiro sobre o monte em que Jesus
Christo desappareceu da terra .
E que admiraveis coisas por sua ordem nos revela
o Occidente nas fundações das communidades, monu-
mentos de nossas antigualhas gaulezas, logares consa-
grados por interessantes aventuras, ou acções carita-
tivas ! A historia, as paixões do coração, a beneficen-
cia, pleiteam - se a origem dos nossos mosteiros . Na
garganta dos Pyreneus, ahi está o hospicio de Ronce-

1 Voltaire escarneceu Eusebio, porque tomara os therapeutas por


monges christãos. Eusebio, vivendo proximo da existencia d'aquelles
monges, e sendo profundo conhecedor das antiguidades christas , de-
via saber melhor quem elles foram do que Voltaire vivendo tamanha
cópia de seculos depois. Moutfaucon, Fleury, Hericourt, Helyot, e
muitos outros sabios compartilham da opinião do bispo de Cesarêa,
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 191

valles, que Carlos Magno edificou no logar mesmo em


em que a flor dos cavalleiros, Roland, terminou suas
magnas façanhas : um asylo de paz e refugio marca
dignamente o tumulo do bravo que defendeu o orphão ,
e morreu pela patria . Nos plainos de Bovines, á vista
d'este pequeno templo do Senhor, aprendo a desprezar
os arcos triumphaes dos Marios e dos Cesares ; contem-
plo com orgulho este convento , que viu um rei francez
propôr a coroa ao mais digno . Amaes, porém , remi-
niscencias d'outra natureza ? Uma mulher de Albião,
surprehendida por um somno mysterioso, crê vêr em
sonhos a lua baixar a ella ; em seguida dá á luz uma
filha, casta e triste como o luzeiro da noite , a qual fun-
dando um mosteiro, se torna o astro encantador do
ermo .
Acoimar- nos- iam de alliciar os ouvidos com suaves
sons , se lembrassemos esses mosteiros d'Agua-Bella,
Bel-Monte, Vallombreuse, ou aquelle da Pomba, assim
chamado em attenção ao seu fundador, pomba celes-
tial que vivia nos bosques . A Trappa e o Paracleto
guardavam o nome e a lembrança de Comminges e de
Heloisa . Perguntae a esse camponez da velha Neustria
que mosteiro é esse que se avista no tôpo da sua colli-
na ? Dir-vos -ha : « E ' o priorado dos dois amantes : um
joven gentil-homem apaixonando-se por uma donzella,
filha do castellão de Malmain, obteve d'este senhor o
consentimento de lhe casar com a filha com a condição
imposta de a levar ao tôpo do monte . Aceitou o contra-
cto o pobre gentil-homem, e, carregado com a dama,
galgou a cumiada da collina , mas, ao chegar lá , morreu
de cansaço ; a noiva morreu depois de grande amargor ;
os paes sepultaram -os juntos , e fizeram lá o priorado
que vêdes ».
Nas origens dos nossos mosteiros ha com que satis-
fazer os corações affectuosos, bem como o antiquario
e o poeta. Vêde estes asylos da Caridade, dos Peregri-
nos, da Boa-Morte, dos Enterradores dos mortos, dos
Dementes, dos Orphãos ; averiguae se no longo catalogo
das humanas miserias ha uma só enfermidade d'alma
ou de corpo para a qual a religião não tenha fundado
seu recinto de consôlo, ou seu hospicio !
192 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Muito cooperaram para a povoação dos êrmos as


perseguições dos romanos . Depois que os barbaros,
talando o imperio, romperam todos os liames sociaes,
o que restou ao homem foi Deus como esperança, e os
desertos como refugio . Nas florestas e mais invias gua-
ridas agruparam-se congregações de desgraçados . Os
ferteis plainos eram presa de selvagens que os não
sabiam cultivar, ao passo que sobre as sáfaras cristas
das serranias habitava um outro mundo, que , n'essas
rochas escarpadas. salvára d'um diluvio as reliquias.
das artes e da civilisação . Porém, assim como as fontes
derivam de logares eminentes para fertilisarem os val-
les, por igual modo os primeiros anachoretas desceram
pouco e pouco das suas summidades para trazer aos
barbaros o Verbo de Deus e as doçuras da vida .
Talvez se diga que as causas productoras da vida
monastica não existiam entre nós , e que os conventos
se haviam tornado retiros inuteis . E quando cessaram
essas causas ? Já não ha ahi orphãos , nem doentes ,
nem viajeiros, nem pobres, nem desgraçados ? Ah !
quando os males dos seculos barbaros se dissiparam ,
a sociedade, tão habil em atormentar as almas, e tão
engenhosa na dôr, engendrou mil outros causas de
adversidade que nos impellem para o ermo . Quantas
paixões illudidas, quantas affeições trahidas , quantas
decepções amargas nos chamam cada dia fóra do
mundo ? Era bellissima coisa essas casas religiosas ,
onde se nos deparava um segundo asylo contra
os golpes da fortuna e as tempestades intimas do
coração . A orphã, desamparada da sociedade n'estes
tempos em que a seducção cruel sorri á innocen-
cia e á formosura, sabia ao menos que havia ahi
um refugio, onde a perfidia não tentaria embele-
cal- a . Quão dôce era para esta pobre estrangeira sem
paes escutar o nome d'irmã ? Que numerosa e serena
familia lhe dava a religião ? um Pae celestial lhe abria
suas portas, e nos braços a recebia .
E' barbara e cruelissima a philosophia e a politica
que querem obrigar o infeliz a viver no centro da so-
siedade . Communiquem-se embora os homens, com
menos delicadeza, os seus voluptuosos contentamentos ;
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 193

mas deixem á desgraça o seu nobre egoismo , deixem-a


esconder-se para gosar dos seus prazeres, que são as
lagrimas. Se ha logares para guarecer o corpo, con-
senti á religião que os tenha para curar a alma, muito
mais sujeita a enfermidades, e estas muito mais dolo-
rosas, longas e difficeis de remediar.
Lembrou alguem que se edificassem retiros nacio-
naes para os que choram . Em verdade taes philoso-
phos são profundos no conhecimento da natureza, e
os arcanos do coração humano descobriram -se para
elles ! Querem dizer que se entregue a desgraça á pie-
dade dos homens, e se submettam as amarguras á pro-
tecção d'aquelles que as motivam. Requer- se caridade
mais magnifica do que a nossa para confortar a indi-
gencia d'uma alma desfortunada . Só Deus é bastante
rico para lhe dar a esmola.
Cuidaram prestar um grandioso serviço aos religio-
sos e religiosas, forçando-os a deixarem os seus con-
ventos : que succedeu ? As mulheres que poderam asy-
lar-se em mosteiros estrangeiros refugiaram - se lá ; ou-
tras ajuntaram-se para formar conventos no ámago da
sociedade ; muitas pereceram de tristeza, e os trappis-
tas tão deploraveis , em vez de se aproveitarem dos
jubilos da liberdade e da vida , fôram continuar as suas
macerações nas charnecas da Inglaterra, e nos desertos
da Russia.
Não se pense que todos somos aptos a manejar o
enxadão, ou a espingarda, e que não ha homens tão
peculiarmente delicados que só vivem do lavor da ideia,
bem como outros do trabalho manual. Não se descreia
que temos no intimo da alma mil razões para amarmos
a solidão : alguns são levados lá por um pensar contem-
plativo ; outros por um certo pudor timorato que os faz
amantes de morrerem em sua intimidade ; ha , final-
mente, almas de extremada excellencia, que em vão
procuram, na natureza , outras almas para as quaes
fôram destinadas, e que parecem condemnadas a uma
especie de virgindade moral ou eterna viuvez.
Para essas almas solitarias é que particularmente a
religião instituira essas solidões .
VOL. II 13
194 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO IV

Das constituições monasticas

Entendam que não escrevemos a historia particular


das ordens religiosas, mas unicamente a historia moral
d'ellas .
Pelo que, omittindo Santo Antonio, pae dos ceno-
bitas , S. Paulo, primeiro anachoreta, S. Syncletico ,
fundador dos mosteiros de donzellas ; sem nos determos
na Regra Augustiniana, que abraça os capitulos co-
nhecidos pelo nome de regulares ; na de S. Basilio,
adoptada pelos religiosos e religiosas do Oriente ; na
' de S. Bento, que reune a maior parte dos mosteiros
occidentaes ; na de S. Francisco , observada pelas or-
dens mendicantes confundiremos todos os religiosos
n'um quadro geral, em que pintaremos seus usos ,
costumes, vida activa ou contemplativa, e os innume-
ros serviços prestados por elles á sociedade .
Não nos podemos, comtudo, abster d'uma reflexão.
Ha quem desdenhe, por ignorancia ou prejuizo, essas
constituições, sob as quaes grande numero de ceno-
bitas viveram desde os primeiros seculos . Este desdem
é nada menos que philosophico, mórmente n'uma época
em que reina a jactancia de conhecer e estudar os ho-
mens . O religioso , que armado de sacco e cilicio che-
gou a reunir sob suas leis muitos milhares de disci-
pulos, não é de certo um homem trivial ; e os expedien-
tes que elle exercitou , o espirito predominante d'essas
instituições , merecem bem o trabalho de se exami-
narem .
E ', sem duvida, digno de notar-se que as mais ri-
gidas regras monasticas eram as mais cabalmente ob-
servadas : os cartuxos deram ao mundo o exemplo
unico de uma congregação que existiu setecentos annos
sem carecer reformar-se . Isto prova que quanto mais
o legislador impugna as naturaes tendencias , mais
assegura a duração da sua obra . Os que , pelo contra-
rio, pretendem elevar as sociedades , empregando as
PARTE QUARTA - LIVRO TERCEIRO 195

paixões como materiaes do edificio , são como os archi-


tectos que edificam palacios com uma especie de pedra
que a impressão atmospherica desfaz .
As ordens religiosas, a muitos respeitos , fôram seitas
philosophicas assaz parecidas com as dos gregos . Phi-
losophos se chamavam os monges primitivos ; de phi-
losophos vestiam a tunica, e simulavam os costumes .
D'esses, até alguns adoptaram como regra o Manual
de Epitecto. S. Basilio foi quem primeiro estatuiu vo-
tos de pobreza, castidade e obediencia. Profunda é esta
lei, e de examinal-a infere- se que o genio de Lycurgo
se contém n'esses tres preceitos .
Na Regra de S. Bento tudo se acha prescripto até
ás pequenissimas miudezas da vida : cama, alimento ,
passeio, conversação, e prece . Aos fracos incumbiam-
se os trabalhos mais delicados, aos robustos os , mais
fadigosos ; n'uma palavra, a maior parte d'essas leis
religiosas revelam um conhecimento incrivel da arte
de governar os homens . Platão não foi mais que um
sonhador de republicas, sem poder executar alguma :
Santo Agostinho, S. Basilio , S. Bento, fôram verda-
deiros legisladores , e patriarchas de numerosissimos
povos .
N'estes ultimos tempos, sobem de ponto as decla-
mações contra a perpetuidade dos votos ; mas em seu
favor talvez não seja impossivel adduzir razões hau-
ridas na natureza das coisas, e nas proprias necessi-
dades da nossa alma.
Por inconstante é o homem principalmente desgra-
çado, e tambem pelo uso d'esse livre arbitrio, que faz
a um tempo sua gloria e seus males, e fará sua con-
demnação . Vae fluctuando de pensamento em pensa-
mento, de sensação em sensação ; seus amores são mo-
veis como suas opiniões , e as opiniões evadem - se- lhe
como os amores . Esta inquietação engolfa-o em mi-
seria de que não ha sahir, se uma força superior o não
ata a um objecto só . Vê - se então o homem arrastando
com prazer o seu grilhão , porque, sendo infiel , odeia
todavia a infidelidade . Por exemplo, o artista é mais
feliz que o rico ocioso, porque está submettido ao tra-
196 O GENIO DO CHRISTIANISMO

balho urgente, que lhe cerra em redor todas as aveni-


das do appetite ou da inconstancia . A mesma sub-
missão ao poder faz o bem -estar dos meninos , e a lei
que prohibe o divorcio é menos inconveniente para os
paes de familias, que a lei que o faculta.
Reconheceram os antigos legisladores a necessidade
de impôr um jugo ao homem. As republicas de Ly-
curgo e Minos eram especies de communidades , onde
ao nascer se alligavam com votos perpetuos . Estava
condemnado o cidadão a uma existencia uniforme
e monótona. Sujeitavam-o regras fatigantes que enten-
diam até ao repasto e ás folgas ; não era senhor das
suas horas, nem das estações da vida : obrigavam-o a
um rigoroso holocausto de seus gostos : a lei era -lhe
norma ao amor, ao pensamento e á acção : em summa,
extorquiam lhe a vontade para o felicitarem .
O voto perpetuo, a submissão a uma regra inviola-
vel, longe de nos infelicitar, dispõem-nos favoravel-
mente para a felicidade, sobretudo quando o fim d'este
voto é defender-nos das illusões do mundo , qual nas
ordens monasticas . As paixões não rebentam em nosso
seio antes dos vinte annos ; aos quarenta estão já ex-
tinctas, ou desilludidas ; assim, o juramento dissoluvel
priva -nos , quando muito , de alguns annos de desejos ,
para depois nos tranquillisar a vida, e arrancar aos
pezares e aos remorsos o restante de nossos dias . Se
pesaes os males oriundos das paixões e os poucos mo-
mentos apraziveis que ellas vos dão , vereis que o voto
perpetuo é ainda um maior bem, ainda nos instantes
mais ridentes da mocidade .
E de mais, supponha-se que uma freira póde sahir
livremente de sua clausura, digam-nos se esta mulher
será feliz . Alguns annos de recolhimento lhe teriam
renovado a face da sociedade . No espectaculo do mun-
do, se voltamos um pouco o rosto, mudam as decora-
ções , evaporam- se os palacios , e ao voltarmos á scena
outra vez os olhos , enxergamos apenas desertos e acto-
res incognitos .
A loucura do seculo entraria e sahiria incessante-
mente dos mosteiros por capricho . Corações agitados
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 197

não aturariam muito tempo a convivencia dos corações


serenos, para poderem participar-lhes do repouso : e
as almas tranquillas depressa perderiam a sua paz emi
contacto com as almas alvorotadas . Os desgraçados ,
em vez de guardarem silenciosos as suas passadas
amarguras nos abrigos claustraes, iriam contando os
seus naufragios, e estimulando -se talvez a affrontarem
ainda os escolhos . Mulher da sociedade, mulher do
ermo, esposa infiel de Jesus Christo, seria impropria
para a solidão e para o mundo : este fluxo e refluxo
das paixões , estes votos a revézes rompidos e forma-
dos, baniriam dos mosteiros a paz, a subordinação , a
decencia : estes sacros recolhimentos, longe de nos
darem refugio certo ás inquietações , seriam apenas
logares onde viriamos carpir um momento a incons-
tancia dos outros, e meditar as nossas novas inconstan-
cias.
O que exalça muito sobre o voto politico do spar-
ciata e do cretense o voto religioso é fazermol- o nós
mesmos, ninguem nol-o impõe, e é dar-nos elle ao
coração uma recompensa dos amores terrenos que lhe
immolamos. E' tudo grandioso n'esta alliança de alma
immortal com o eternal principio ; são duas naturezas
que se adaptam e identificam. E' sublime coisa vêr o
homem nascido livre buscar em vão a felicidade nos
desejos, e alfim , cansado de nada aqui achar digno de
si, jurar amor eterno ao Sêr Supremo, e crear, como
Deus, em seu proprio juramento, uma necessidade.

CAPITULO V

Quadro dos costumes e da vida religiosa

MONGES COPHTAS , MARONITAS, ETC.

Vamos agora ao pincel da vida religiosa, mas desde


já assentemos um principio . Onde quer que se nos
deparem muitos mysterios, muita soledade, contem-
198 O GENIO DO CHRISTIANISMO

plação, silencio, pensares em Deus, muilas coisas ve-


neraveis nos habitos, nos usos e nos costumes, ahi deve
achar-se cópia de todas as sortes de bellezas . Se esta
observação é justa, vae vêr- se que ella é maravilhosa-
mente applicavel á materia que vamos tratar .
Voltemos outra vez aos solitarios da Thebaida . Mo-
ravam estes em cellulas chamadas lauras , e vestiam
como Paulo, seu fundador, vestidos de folhas de pal-
meira ; outros trajavam cilicios tecidos do pêllo da
gazella ; alguns, como o solitario Zenão , cobriam ape-
nas as espaduas com os despojos das feras ; e o ana-
choreta Seraphião andava envolvido no lençol que
devia amortalhal-o . Os religiosos maronitas, nas soli-
dões do Libano ; os eremitas nestorianos espalhados ao
longo do Tigre ; os abyssinios nas cataractas do Nilo ,
e sobre as praias do mar Vermelho, todos, emfim, vi-
viam vida tão extraordinaria como os desertos onde se
escondiam. O monge cophta, entrando no seu mosteiro,
renuncía aos prazeres, consome o tempo no trabalho ,
no jejum, nas orações, e no exercicio da hospitalidade .
Deita-se na pedra estreme, dorme apenas alguns instan-
ies, ergue-se, e sob o formoso céo do Egypto faz ouvir
sua voz entre as ruinas de Thebas e de Memphis . Umas
vezes o ecco das pyramides narra ás sombras dos
Pharaós os canticos d'este filho da familia de Joseph ;
outras vezes o piedoso solitario canta de madrugada
os louvores do verdadeiro sol , lá onde as estatuas har-
moniosas suspiram o despertar da aurora . E' ahi que
elle busca o europeu desgarrado em demanda das ce-
lebradas ruinas ; é ahi que, resguardando-o do arabe,
o leva ao seu nicho, e prodigalisa ao desconhecido o
sustento que se nega a si . Os sabios visitam em dema-
sia as ruinas do Egypto ; mas porque é que elles se não
vão a viver n'esses mares de areia, no meio de todas
as privações, á maneira dos monges christãos que des-
prezam, para darem uma escudella d'agua ao viajeiro ,
e arrancal- o á cimitarra do beduino ?
Deus dos christãos ! que maravilhas tu has operado !
Por onde quer que lancemos os olhos, em toda a parte
monumentos dos teus beneficios ! Nas quatro partes do
US RELIGIOSOS DO MONTE DE S. BERNARDO
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 201

mundo a religião distribuiu as suas milicias, e collocou


as suas sentinellas em soccorro da humanidade . O
monge maronita , com o estalido de duas táboas pen-
dentes no tôpo d'uma arvore, chama o estrangeiro que
a noite surprehendeu nos desfiladeiros do Libano; esse
pobre e ignorante artista não sabe outro meio com que
se faça ouvir : o monge abyssinio espera-vos no bosque,
rodeado de tigres ; o missionario americano véla pela
Vossa conservação nas suas immensas florestas . Se
um naufragio vos cospe em ribas ignotas, logo enxer-
gaes uma cruz sobre um penhasco . Ai de vós , se esse
signal de salvação vos não debulha em lagrimas ! Es-
taes em paiz de amigos ; ha ahi christãos . Sois francez ,
e elles são hespanhoes, allemães, inglezes , talvez ! Que
monta ? Não sois vós da grande familia de Jesus Chris-
to ? esses estranhos vão adoptar-vos como irmão, é a
vós que elles convidam com aquella cruz ; nunca vos
viram, e comtudo choram de prazer em vos vendo salvo
do deserto .
O viajeiro dos Alpes está em meio da sua jornada .
Chega a noite, e está nevando . Sósinho , assustado,
perdido, dá alguns passos, e perde-se irremediavel-
mente . E' noite cerrada, emfim. Suspenso á beira
d'um precipicio não ousa avançar nem recuar . O frio
enregela-o ; inteiriçam- se-lhe os membros , pesa-lhe nas
palpebras um somno funesto : os seus ultimos pensa-
mentos são de sua mulher e filhos ! Mas não será o
som d'um sino que lhe chega ao ouvido atravez do
fremir da tempestade, ou é o dobrar a finados que a
sua imaginação apavorada crê ouvir no cruzar dos
ventos ? Não : são sons reaes, mas inuteis ; porque os
pés d'esse viajeiro não podem sustental-o ... Ouve-se um
novo ruido ; um cão gane por sobre a neve, avisinha - se ,
chega, late de contente adiante d'um solitario .
Não seria bastante expôr mil vezes a vida ao salva-
mento dos homens, e morar para sempre no recesso
dos mais pavorosos ermos ? Era ainda preciso que até
os animaes aprendessem a ser instrumentos das subli-
mes obras, que elles se identifiquem, digamol- o assim,
á ardente caridade de seus donos, e que os seus latidos,
202 O GENIO DO CHRISTIANISMO

nas cristas dos Alpes, proclamem aos eccos os milagres


da nossa religião !
E nem se diga que só per si a humanidade possa
conduzir a actos taes . Porque não nos dá feitos simi-
lhantes essa tão bella como sensivel antiguidade ?
Falla- se ahi de philanthropia ! só a religião christã
é philanthropica por excellencia . Immensa e sublime
ideia é a que faz o christão da China, amigo do chris-
tão da França, e o selvagem neophyto, irmão do monge
egypcio ! Já não somos estrangeiros sobre a terra, não
nos poderemos perder n'ella . Jesus Christo restituiu-
nos a herança que o peccado de Adão nos usurpára .
Christão ! já não ha oceanos ou desertos desconhecidos
para ti : em toda a parte acharás a linguagem de teus
avós , e a cabana de teu pae .

CAPITULO VI

Seguimento do precedente

TRAPPISTAS, CARTUXOS , IRMÃS DE SANTA CLARA,


PADRES REDEMPTORISTAS MISSIONARIOS ,
IRMÃS DA CARIDADE

Taes são os usos e costumes de algumas ordens re


ligiosas da vida contemplativa : a belleza d'esses usos
está na alliança d'elles com as meditações e as preces :
tirae de tudo isto o nome e a presença de Deus, e des-
truireis o encanto .
Quereis agora trasladar-vos á Trappa , e contemplar
esses monges , vestidos de sacco, cavando as suas se-
pulturas ? Quereis vêl-os errar como sombras na vasta
floresta de Mortagne, á beira do solitario lago ? O si-
lencio vae com elles, ou, se fallam ao encontrarem-se ,
é para dizerem : Irmãos , é forçoso morrer . Estas aus-
teras ordens do christianismo eram escolas de moral
em acção, instituidas no centro dos prazeres do seculo ;
assiduos ministravam modelos de penitencia, e magni-
PARTE QUARTA · LIVRO TERCEIRO 203

ficos exemplos da miseria humana aos olhos do vicio


e da prosperidade .
Que espectaculo o do trappista agonisante! que al-
tissima philosophia ! que lição para os homens ! Pros-
trado sobre uma pouca de palha e cinza, no santuario
da igreja, rodeado de irmãos silenciosos, convida- os á
virtude, em quanto o funereo sino bate as suas derra-
deiras agonias ! De ordinario são os vivos que animam
o enfermo a deixar corajosamente a vida ; mas isto aqui
é mais sublime, é o moribundo que falla da morte .
A's portas da eternidade deve elle conhecel - a melhor
que os outros , e com uma voz que sôa já d'entre ossa-
das, chama còm auctoridade os companheiros e até os
superiores á penitencia . Quem não estremeceria, vendo
esse religioso , que tão santamente vivera, duvidar
ainda de sua salvação , ao transpôr o terrivel ponto ?
O christianismo exhumou do seio do sepulchro quantas
verdades lá estão encerradas . A moral penetrou na
vida pela morte : se o homem , tal qual é hoje depois do
lapso, ficasse immortal, talvez não conhecesse jámais
a virtude .
D'est'arte , as mais instructivas e affectuosas scenas
a religião nos depara em luto : aqui, santos mudos , como
um povo encantado por um philtro , cumprem em si-
lencio os trabalhos das colheitas e das vindimas : acolá,
as filhas de Clara pisam com os pés descalços as cam-
pas geladas da sua claustra . Não penseis, porém , que
ellas sejam desditosas com taes austeridades : estão
puras de coração , e fitam os olhos no céo em signal
de desejo e esperança . Um vestido de estamenha parda
é preferivel a galas sumptuosas compradas a preço da
virtude : o pão da caridade é mais são que o da liberti-
nagem. De quantas amarguras as não salvam esses véos
cahidos entre ellas e o mundo ?
A' fé que não basta o nosso talento para sahirmos
dignamente dos objectos que se nos apresentam . O
mais grandiloquo elogio que poderiamos tecer á vida.
monastica seria apresentar o catalogo dos trabalhos a
que ella se consagra. A religião, deixando -nos ao co-
ração o cuidado dos nossos gosos , desvelou- se, qual
201 O GENIO DO CHRISTIANISMO

terna mãe, no alliviar-nos as mágoas ; mas para esta


immensa e difficil tarefa todos os seus filhos e filhas
veem em seu auxilio . A uns confiou cuidarem em
nossas molestias : taes são os multiplicados religiosos
e religiosas dedicados ao serviço dos hospitaes ; a outras
delegou os pobres : taes são as irmãs da caridade . O
padre redemptorista embarca em Marselha : onde vae
elle assim sósinho com seu breviario e cajado ? Esse
conquistador vae a libertar a humanidade, e os exerci-
tos que o seguem são invisiveis . Com a bolsa da ca-
ridade em punho , corre a affrontar a peste, o martyrio
e o captiveiro . Acerca -se do bey de Argel, e falla - lhe
em nome do Rei celestial, cujo embaixador elle é . Es-
panta-se o barbaro á vista d'este europeu, que ousa vir
sósinho, atravez de mares e tormentas, a remir capti-
vos ; subjugado por força desconhecida, aceita o ouro
que lhe offerecem ; e o heroico libertador, contente com
haver restituido infelizes á patria, obscuro e ignorado,
retrocede humildemente a pé, caminho de seu mosteiro .
Em toda a parte espectaculos identicos : o missiona-
rio que parte para a China, encontra no porto o missio-
nario que volta, glorioso e mutilado, do Canadá . A
irmã da parda tunica (sœur grise) serve o indigente
na sua choupana ; o padre capuchinho vôa ao incendio ;
o irmão hospitaleiro lava os pés ao peregrino ; o irmão
da Boa-morte consola o agonisante sobre o seu estrado ;
o irmão coveiro transporta o cadaver do pobre ; a irmã
da caridade sóbe ao setimo andar, levando dinheiro,
roupa e esperança . Estas donzellas, tão dignamente
chamadas filhas de Deus, conduzem e reconduzem aqui
e acolá caldos , fios e remedios . A filha do Bom -Pastor
estende os braços á meretriz , e exclama- lhe : Eu não
vim para chamar os justos ; mas sim os peccadores .
O orphão acha um pae, o louco um medico , o ignorante
um mestre . Todos esses operarios de obras celestiaes
confluem , animando -se reciprocamente . Comtudo, a
religião, attentiva, e erguendo uma corôa immortal,
lhes brada : « Coragem, meus filhos, coragem, dae -vos
pressa, sêde mais velozes que o mal na carreira da
vida ! merecei esta corôa que vos preparo ; ella vos
abrigará de todos os maleficios e privações » .
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 205

Rodeados de tantos quadros, qual d'elles mais digno


de volumes de pormenores e louvores, sobre qual scena
particular fixaremos a vista ? Já mencionamos essas
hospedarias que a religião collocou nas solidões das
quatro partes do mundo ; detenḥamo -nos agora em ou-
tros objectos .
Ha individuos para quem só o nome de capuchinho
é incentivo de riso . Seja embora ; um religioso da or-
dem de S. Francisco era muitas vezes um personagem
nobre e simples . Qual de nós não viu um grupo d'esses
venerandos homens viajando pelos campos , ordinaria-
mente na celebração dos fieis -defuntos , ao começar o
inverno, no tempo do peditorio das vinhas ? Iam elles
pedindo gasalhado pelos velhos castellos que margi-
navam o caminho . Ao escurecer, os dois peregrinos
chegavam a casa do solitario castellão ; subiam os ve-
lhos degraus , deixavam atraz da porta os longos ca-
jados e a soccola, batiam ao sonoro portão, e pediam
agasalho . Se o dono do castello recusava aceitar esses
hospedes do Senhor, faziam uma profunda reverencia,
retiravam- se em silencio, tomavam as saccolas e os ca-
jados, e, sacudindo o pó das sandalias, iam atravez do
escuro procurar a cabana do lavrador. Se, ao invez,
eram recolhidos , depois que lhes davam agua para se
lavarem, á maneira dos tempos de Jacob e Homero,
iam assentar- se ao lar hospedeiro . Bem como nos an-
tigos seculos , a fim de grangearem a boa vontade dos
hospedadores (e porque amavam as creanças como
Jesus Christo ) , começavam por animar as da casa,
dando -lhes reliquias e registros . Os meninos , que ao
principio tinham fugido amedrontados, logo attrahidos
pelas maravilhas, familiarisavam-se até se assentarem
nos joelhos dos bons fradinhos . Pae e mãe, risonhos
de meiguice, contemplavam estas singelas scenas, e. o
interessante contraste da graciosa infancia de seus
filhos e da encanecida velhice de seus hospedes .
Ora, a chuva e a rajada dos mortos varejava fóra
os bosques desfolhados, as chaminés, e as ameias do
gothico castello . Lá nas grimpas gritava a coruja.
Junto da ampla lareira, sentava-se á mesa a familia:
206 O GENIO DO CHRISTIANISMO

o repasto era cordial, e as maneiras affectuosas . A


menina da casa interrogava timidamente os hospedes ,
que elogiavam gravemente a sua belleza e modestia.
Os bons padres entretinham a familia com agradaveis
assumptos ; contavam alguma historia bem pathetica,
das que elles sabiam de suas remotas missões aos sel-
vagens da America ou aos tartaros . As longas barbas
d'esses frades , a tunica do antigo Oriente , o modo como
elles pediram hospitalidade, fazia lembrar esses tempos
em que Thales ou Anacharisis viajavam assim na Asia
e na Grecia .
Após ceia do castello, a senhora chamava os cria-
dos, e convidava um dos padres a rezar em commum
a oração habitual ; em seguida, os dois religiosos retira-
vam -se á cama, fazendo votos de todas as prosperi-
dades aos seus hospedeiros . De manhã iam em cata
dos anciãos viajeiros ; mas elles, como essas santas
visões que visitam o justo em sua morada, tinham
desapparecido.
Quando ahi havia objecto que podésse contristar a
alma, alguma commissão ingrata aos homens inimigos
de lagrimas e incompativeis com seus prazeres, era
aos filhos do claustro que a commettiam, e mórmente
aos frades franciscanos ; tinham para si que homens
devotados á miseria deviam ser naturalmente os arau-
tos da desgraça . Um era obrigado a ir levar a uma
familia a noticia da perda de seus bens ; outro , a da
morte d'um filho unico . O grande Bourdaloue cumpriu
este triste dever : apresentava-se silencioso á porta do
pae, cruzava as mãos sobre o peito, inclinava- se pro-
fundamente, e retirava- se mudo como a morte, cujo
interprete elle era.
Cuidarão que seria muito aprazivel (tomamos o
apraživel na accepção mundana), muito suave ao fran-
ciscano, ao carmelita ir ás prisões annunciar a sentença
ao criminoso, ouvil-o, consolal- o, e ter, durante dias
inteiros, a alma traspassada de despedaçadoras scenas ?
N'esses lances de dedicação , era para ver como o suor,
escorregando a grossas vagas da fronte d'esses compa-
decidos religiosos, lhes humedecia o capello , sagrando-
PARTE QUARTA LIVRO TERCEIRO 207

lh'o para sempre, apezar dos sarcasmos da philosophia .


E todavia que honra, que proveito provinha de tantos
sacrificios a esses monges , senão o escarneo do mun-
do, e as injurias dos proprios presos que elles conso-
lavam ! Mas , ao menos, os homens, embora ingratos ,
haviam confessado o seu nada n'esses grandes confli-
ctos da vida, entregando os desgraçados á religião ,
unico soccorro verdadeiro no ultimo escalão do infor-
tunio . O ' apostolo de Jesus Christo, quantas catastro-
phes não presenceastes, vós que, ao pé do algoz, não
temieis que o sangue dos miseraveis, cujo derradeiro
amigo fostes, vos salpicasse ! Eis aqui um dos mais
sublimes espectaculos da terra : nos dois angulos d'este
cadafalso as duas justiças estão em presença uma da
outra, a divina e a humana ; uma implacavel, e apoiada
sobre o cutelo, tem a par' de si o desespêro ; a outra,
com o véo ensopado de lagrimas, mostra- se entre a
piedade e a esperança : uma tem por ministro um
homem de sangue, a outra um homem de paz ; uma
condemna, a outra absolve ; a primeira diz á victima
innocente ou culpada : « Morre » ; a segunda exclama-lhe:
«Filho da innocencia ou do arrependimento , sóbe ao
céo !»
LIVRO QUARTO

MISSÕES

CAPITULO I

Ideia geral das missões

Mais uma d'essas grandes e novas ideias , que só


pertencem á religião christã . Os cultos idólatras igno- .
raram o divino enthusiasmo que anima o apostolo do
Evangelho . Os antigos philosophos nunca deixaram
as delicias de Athenas e os porticos de Academus ,
para irem, impellidos por toque sublime, civilisar o
selvagem , instruir o ignorante, curar o enfermo , vestir
o pobre, e semear a paz e concordia entre nações inimi-
gas : é o que os religiosos christãos fizeram e ainda
fazem quotidianamente . Mares, tormentas , gêlos do
pólo, fogos do tropico , nada os estorva ; vivem com o
esquimó no seu ôdre de pelle de vacca-marinha ; nu-
trem-se de oleo de balêa com o groenlandez ; vagam
na solidão com o iroquez e o tartaro ; sobem ao dro-
medario do arabe, ou seguem o cafre errante nos seus
abrazados desertos : o chim, o japonez e o indio torna-
ram -se seus neophytos ; não ha ilha ou escolho no
oceano, onde o seu zêlo não chegasse ; e assim como
outr'ora os reinos mingoaram á cubiça de Alexandre,
a terra é curta para a caridade d'elles .
Quando a Europa regenerada se converteu em fa-
milia de irmãos, os prégadores da fé aproavam o zelo
para as regiões onde as almas elanguesciam ainda
nas trevas da idolatria . Ao vêrem a degradação do ho-
mem, commoveram- se, e anhelaram derramar seu san-
gue pela salvação d'estes estrangeiros . Importava de-
VOL. II 14
210 O GENIO DO CHRISTIANISMO

vassar amplas florestas, atravessar profundos lagos ,


transpor pantanos insalubres, vadear caudalosos rios,
galgar rochedos inaccessiveis ; importava affrontar na-
ções crueis , supersticiosas e ciumentas ; vencer n'umas.
a ignorancia da barbarie, n'outras os prejuizos da ci-
vilisação : obstaculos tamanhos não lhes empeceram .
Os que renegaram da religião de seus paes hão de
assentir ao menos em que se o missionario tem a firme
crença de que só ha salvação na religião christã, o acto
em que elle se condemna a inauditos males para salvar
um idólatra , está acima dos mais extremados sacrifi-
cios .
Que um homem, em face das multidões , dos paren-
tes e amigos, se exponha á morte em pró da patria, e
troque alguns dias de vida por seculos de gloria, isso
importa lustre, augmento de bens e de honras a sua
familia . Mas o missionario, cuja vida se consome no
imo espesso das florestas, que morre de horrivel morte
sem espectadores, sem applausos, sem vantagens para
os seus, obscuro, desprezado, alcunhado de demente ,
de inepto, de fanatico , e tudo isto por dar eterna fe-
licidade a um selvagem incognito ... que nome se ha de
dar a esta morte, este sacrificio ?
Diversas congregações religiosas se consagravam ás
missões : as dominicanas, as franciscanas, os jesuitas,
os padres das missões estrangeiras .
Havia quatro especies de missões :
As missões do Levante, que comprehendiam o Ar-
chipelago, Constantinopla, Syria, Armenia, Crimea,
Ethiopia, Persia e Egypto .
As missões da America, desde a bahia de Hudson,
ao Canadá, Luisiania, California, Antilhas, e Guiana,
até ás famosas Reducções, ou tribus do Paraguay.
As missões da India, comprehendendo o Indostão,
áquem e além do Ganges, que se prolongavam até Ma-
nilha e ás ilhas Carolinas.
Finalmente , as missões da China, ás quaes se ajun-
tavam as de Tong-King, Cochinchina e Japão.
Contavam-se mais algumas igrejas na Islandia, e
entre os negros d'Africa, mas não seguidas regular-
Parinbopog

AS MISSÕES
1
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 213

mente. Ministros presbyterianos tentaram ultimamente


prégar o Evangelho em Otaiti .
Quando os jesuitas fizeram apparecer a correspon-
dencia intitulada Cartas edificantes, todos os auctores
a consultaram e citaram . Firmaram-se na auctoridade
d'ella, e os factos expostos corriam como indubitaveis .
Depressa, porém, a moda veio desacreditar o que tinha
sido admirado . Estas cartas eram escriptas por padres
christãos : que valor podiam ter ? Não houve pejo de
preferir ou fingir que se preferiam ás viagens dos Du
Tertre e dos Charlevoix, as do ignorante e mentiroso
barão de La Hontan . Sabios que estiveram á frente dos
primeiros tribunaes da China, que passaram trinta e
quarenta annos na côrte dos imperadores, que fallavam
e escreviam a lingua do paiz, que frequentavam os
pequenos e viviam familiarmente com os grandes , que
percorreram , viram e estudaram minuciosamente as
providencias, costumes, religião , e leis d'esse vasto
imperio ; esses doutos , cujos trabalhos numerosos opu-
lentaram as Memorias da Academia das Sciencias, fô-
ram injuriados de impostores por um homem que não
sahira do bairro dos europeus em Cantão , que não
sabia uma palavra da lingua chineza , e cujo unico me-
recimento consistia em contradizer grosseiramente as
narrativas dos missionarios . Isto sabe -se hoje, e faz-se
aos jesuitas tardia justiça . Dispendiosissimas embai-
xadas feitas por poderosas nações ensinaram - nos al-
guma coisa que os Du Halde e os Le Conte nos não
dissessem, ou revelaram-nos alguns embustes dos
nossos padres ?
De feito, um missionario deve ser um viajante excel-
lente . Obrigado a fallar a lingua dos povos aos quaes
préga o Evangelho , a conformar -se com seus usos, a
viver longo tempo com as differentes classes da socie-
dade, a solicitar entrada nos palacios e nas cabanas,
ainda que a natureza o não dotasse de algum engenho,
conseguiria colleccionar abundancia de factos precio-
sos . Pelo contrario, o homem que passa rapidamente
com um interprete, que não tem vontade nem tempo
de expôr-se a mil riscos para conhecer o segredo dos
214 O GENIO DO CHRISTIANISMO

costumes ; tal homem, ainda que tivesse o dom de vêr


bem, e bem examinar, apenas adquiriria ligeirissimo.
conhecimento dos povos que perpassam e desappare-
cem diante d'elle .
A illustrada educação do jesuita era-lhe mais uma
vantagem sobre o viajante ordinario . Os superiores
exigiam muitas distincções aos discipulos que se des-
tinavam ás missões . Para o Levante era preciso saber
grego, cophta, arabe, turco, e possuir alguns conhe-
cimentos em medicina ; para a India e China queriam- se
astronomos, mathematicos, geographos e mechanicos ;
aos naturalistas era reservada a America . ¹ E de que
santos disfarces e piedosas fraudes, mudanças de vida-
e costumes não se valiam para annunciarem a verdade
aos homens ! Em Maduré o missionario envergava o
habito do penitente indiano, sujeitando-se aos usos e
austeridades d'elle, por mais repulsivas e pueris que
fôssem; na China fazia-se mandarim e lettrado ; com o
iroquz era caçador e selvagem.
Quasi todas as missões francezas foram fundadas
por Colbert e Louvois, que avaliaram o proveito pro-
cedente d'ellas para as artes , sciencias e commercio .
Os padres Fontnay, Tachard, Gerbillon, Le Conte,
Bouvet e Visdelou fôram enviados ás Indias por
Luiz XIV : eram mathematicos , e o rei fel - os aceitar á
Academia antes de partirem.
O padre Brédevent, conhecido por a sua dissertação
physico-mathematica, pereceu desgraçadamente cor-
rendo a Ethiopia ; mas d'uma parte do seu trabalho le-
gou-nos proveitosa herança : o padre Sicard visitou o
Egypto com os desenhadores que lhe concedeu M. de
Maurepas, e ultimou uma grande obra intitulada Des-
cripção do antigo e moderno Egypto . Este precioso
manuscripto, deposto na casa professa dos jesuitas,
foi roubado, sem ser possivel encontrar- se mais . De
certo que ninguem poderia fazer-nos conhecer a Persia.

1 Vejam as Cartas edificantes, e a obra do abbade Fleury acerca


das qualidades necessarias a um missionario.
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 215

e o famoso Thamas-Koulikan melhor que o monge


Bazin, primeiro medico d'este conquistador, e seu com-
panheiro nas expedições . O padre Cour-Doux deu- nos
esclarecimentos sobre os tecidos e tinturarias indiaticas .
Foi-nos conhecida a China como a França ; tivemos ma-
nuscriptos originaes e versões da sua historia ; possui-
mos herbarios chins, geographias e mathematicas chi-
nezas ; e, para tudo ser singular n'esta missão , o padre
Ricci escreveu livros de moral na lingua de Confucius ,
e é tido em conta ainda de auctor elegante em Pekin .
Se hoje a China nos é impenetravel, se já não dis-
putamos aos inglezes o imperio das Indias , a falta não
é dos jesuitas, que estiveram a ponto de nos franquea-
rem essas bellas regiões . « Ensinando aos selvagens as
artes necessarias, diz Voltaire, tiveram exito feliz na
America ; na China o mesmo, ensinando as mais emi-
nentes artes a uma nação espirituosa» .
Quão proveitosas eram á patria nas paragens mer-
cantis do Levante , está de sobejo averiguado . Pede - se
uma prova authentica ? Eis aqui um certificado, cujas.
assignaturas são que farte magestosas :

DIPLOMA REGIO

«Hoje, sete de junho de mil e seiscentos e setenta.


« e nove, estando o rei em Saint- Germain- en- Lave, e
«querendo gratificar e favoravelmente tratar os padres
«jesuitas missionarios no Levante, em consideração ao
« seu zelo pela religião , e ás vantagens que seus sub-
«ditos residentes e commerciantes em todas as escalas
«recebem de suas instrucções , Sua Magestade os tomou
«e toma por seus capellães na igreja e capella da cidade
« de Alep na Syria, etc. (Assignado) LUIZ .
2
E mais abaixo « COLBERT » .

1 Ensaio acerca das missões christãs, cap. cxcv.


2 Cartas edif. , tom. 1 , pag. 129, ediç. de 1700,
216 O GENIO DO CHRISTIANISMO

A estes mesmos missionarios devemos o amor que


os selvagens ainda têm ao nome francez nas florestas
americanas . Basta um lenço branco para passar com
segurança atravez das hordas inimigas , e ser acolhido
em toda a parte . Fôram os jesuitas do Canadá e Lui-
siania que dirigiram a industria agricola dos colonos,
e descobriram novos objectos de commercio para tin-
turarias e pharmacia . Accrescentaram riquezas ás
nossas manufacturas, iguarias mimosas ás nossas me-
sas , sombras aos nossos bosques, naturalisando em
1
França os insectos, as aves, e as arvores estrangeiras .
Os annaes singelos ou elegantes das nossas colonias
escreveram- os elles . Que excellente historia a das
Antilhas pelo padre Du Tertre, ou a da Nova-França,
por Charlevoix ! As producções d'estes piedosos homens
estão recheadas de variada sciencia : doutas disserta-
ções, pinturas dos costumes, traços de progresso para
os nossos estabelecimentos, assumptos uteis , reflexões
moraes, aventuras interessantes, tudo abunda ahi . A
historia d'uma acacia ou salgueiro chinez entretece- se
com a historia d'um grande imperador levado ao ex-
tremo de apunhalar- se ; e a narrativa da conversão d'um
pariah , com um tratado ácerca das mathematicas dos
brahmenes . O estylo d'estas narrações, em partes sub-
lime, é muitas vezes admiravel de simplicidade . Final-
mente, as missões subministravam annualmente á as-
tronomia, e sobretudo á geographia, luzes novas . Um
jesuita encontrou na Tartaria uma mulher selvagem
que conhecera no Canadá : d'esta estranha aventura in-
feriu que o continente da America se avisinha pelo
noroeste ao continente da Asia, e adivinhou tambem
a existencia do estreito, que longo tempo depois deu
gloria a Behring e Cook. Grande parte do Canadá e
a Luisiania toda fôram descobertas pelos nossos mis-
sionarios . Chamando ao christinanismo os selvagens

1 Reinando Justiniano, dois monges levaram de Serinde a Cons-


tantinopla bichos da sêda. Os perús, e muitas arvores e arbustos exo-
ticos naturalisados na Europa, devem-se aos missionarios .
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 217

da Acadia, franquearam-nos essas costas, onde o nosso


commercio se enriquecia , e os nossos marinheiros se
formavam : eis uma pequena parte dos serviços que
esses homens, hoje tão desprezados, sabiam prestar ao
seu paiz .

CAPITULO II

Missões do Levante

Cada missão tinha um caracter peculiar, e um ge-


nero particular de soffrimento . O espectaculo das do
Levante era altamente philosophico . Quão poderosa era
a voz christã que soava dos tumulos de Argos , e das
ruinas de Sparta e Athenas ! Nas ilhas de Naxos e Sa-
lamina, d'onde surdiam as brilhantes theorias que en-
cantavam e embriagavam a Grecia , um pobre padre
catholico, disfarçado em turco, entrą n'um batel , aporta
a algum mau refugio formado debaixo de pedaços de
columnas, consola sobre a palha os descendentes dos
vencedores de Xerxes , distribue esmolas em nome de
Jesus Christo, e, praticando o bem como se pratica o
mal, no segredo da sombra, volta secretamente ao de-
serto .
O sabio que vae compassar os restos da antiguidade
nas solidões da Africa e Asia tem de certo jus á nossa
admiração ; mas ha ahi feito mais grandioso e admira-
vel: é algum desconhecido Bossuet explicando a palavra
dos prophetas sobre as ruinas de Tyro e Babylonia .
Permittia Deus que as messes fôssem abundosas em
torrão tão rico ; tal solo não podia ser esteril . « Sahimos
de Serpho, diz o padre Xavier, mais consolados do que
eu posso exprimir-vol-o, cheios de bençãos do povo, e
agradecendo mil vezes a Deus ter-nos inspirado o de-
1
signio de os virmos procurar entre os seus penhascos » .

1 Cartas edif., tom. 1 , pag. 15 .


218 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Os montes do Libano, e os desertos da Thebaida


testimunharam a dedicação dos missionarios . E' in-
finita a graça com que elles dão relevo a insignificantes
miudezas. Se descrevem os cedros do Libano, fallam-
vos de quatro altares de pedra que se vêem ao pé d'essas
arvores, nos quaes os monges maronitas celebram uma
solemne missa em dia da Transfiguração ; como que se
estão ouvindo as religiosas melodias que se misturam
ao murmurar d'esses bosques cantados por Salomão
e Jeremias, e ao estridor das terrentes que se despe-
nham dos algares . Se mencionam o valle onde mana
o santo rio, dizem : « Estes rochedos encerram profun-
das cavernas, que outr'ora fôram outras tantas cellas
de grande numero de solitarios, que tinham escolhido
estas acolheitas para serem unicas testemunhas do rigor
da sua penitencia . As lagrimas d'estes santos peniten-
tes deram ao rio de que fallamos o epitheto de santo .
Nasce nas serranias do Libano . A vista d'estas grutas
e d'este rio, n'este medonho deserto, inspira compun-
cção, amor de penitencia, e compaixão pelas almas
sensuaes e mundanas que preferem alguns dias de gôso
e prazer a uma bemaventurada eternidade » . ¹
Ha aqui, a nosso ver, perfeição de estylo e senti-
mento . Era maravilhoso o instincto d'estes missionarios
em seguirem as pégadas do infortunio, e forçal- o , di-
gamol- o assim, até ao derradeiro reducto . As calcetas
e galés pestiferas não esqueciam á caridade d'elles .
Ouçamos o padre Tarillon na sua carta a M. de Pont-
chartrain :
«Os serviços que prestamos a esta pobre gente
(escravos christãos na calceta de Constantinopla) con-
sistem em mantel -os no temor de Deus e na fé , em
consolal- os com a caridade dos fieis , em assistir -lhes
nas suas doenças, e em ajudal- os a bem morrer. Se
tudo isto requer harta sujeição e trabalho, posso asse-
gurar que Deus nos dá a recompensa de grandes con-
solações ..

1 Cartas edif. , tom. 1, pag . 285.


PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 219

«Em tempo de peste, como é preciso estar de sobre-


aviso para soccorrer os atacados, e nós apenas aqui
temos quatro ou cinco missionarios, é nosso costume
entrar um só padre nas galés , e deter-se lá em quanto
o contagio dura . O que obtem esta permissão do su-
perior, dispõe-se n'alguns dias de recolhimento, e des-
pede - se de seus irmãos como se fosse certa uma breve
morte . Umas vezes lá consumma o seu sacrificio , ou-
1
tras escapa ao perigo» .
O padre Jacques Cachod escreve ao padre Tarillon :
«Agora posso já vencer o mêdo da contagião ; e , se
aprouver a Deus , não morrerei d'este mal, depois dos
perigos em que me vi . Venho das galés, onde ministrei
a extrema-uncção a oitenta e seis pessoas... No decurso
do dia, nada me assombrava ; mas á noite , durante o
breve dormir que me consentiam , ideias aterradoras
me assaltavam o espirito . O maior perigo em que me
vi , e o maior talvez da minha vida, foi no porão d'uma
sultana (navio ) de oitenta e duas peças . Os escravos ,
concertados com os guardas, fizeram-me lá entrar ao
anoitecer para confessal - os de noite, e dizer-lhes missa
de madrugada . Como é de uso , dobraram - nos os fer-
rolhos . De cincoenta e dois escravos que confessei ,
doze estavam doentes , etres morreram antes da minha
sahida. Julgae que ar eu respiraria n'este logar aba-
fado, sem o menor ventilador. Deus, que por sua bon-
dade me salvou d'este perigo, ha de salvar-me de muitos
outros» . 2
Um homem que se encarcera voluntariamente n'uma
prisão em tempo de peste , que ingenuamente confessa
o seu terror, e que todavia o subjuga com a caridade ;
que depois se introduz , a preço d'ouro, como quem vae
gosar illicitos prazeres, no fundo do porão d'uma nau
de guerra para assistir aos escravos pestiferos : con-
fessemos que tal homem não obedece a um impulso
natural : aqui ha mais que humanidade; n'isto concor-

1 Cartas edif., tom. 1, pag. 19 e 21 .


2 lbid., tom. 1 , pag. 23.
220 O GENIO DO CHRISTIANISMO

dam os missionarios, não attribuindo a si o merito


d'essas sublimes obras : «De Deus nos vem esta força,
repetem elles a cada passo ; não temos parte alguma
n'isto ».
Um joven missionario, ainda não aguerrido contra
os perigos como os velhos chefes alquebrados de fa-
digas e palmas evangelicas , espanta-se de ter escapado.
ao primeiro perigo , receia que fôsse falta sua , e isto
humilha- o . Narrando ao seu superior a historia d'uma
epidemia em que elle muitas vezes fôra obrigado a
collar o ouvido nos beiços dos doentes , para escutar-
lhes as palavras expirantes, accrescenta : « Não mereci ,
reverendo padre, que Deus quizesse acceitar o sacri-
ficio da minha vida que eu lhe offerecera. Supplíco ,
pois, as vossas orações para obter de Deus o esqueci-
mento de meus peccados , e a graça de morrer por elle » .
Assim escreve das Indias o padre Buchet : « A nossa
missão floresce mais que nunca : tivemos quatro gran-
des perseguições este anno » .
Este mesmo padre enviou á Europa as taboadas dos
brahmenes, das quaes M. Bailly se aproveitou na sua
Historia da Astronomia. A sociedade ingleza de Cal-
cuttá não revelou até hoje monumento scientifico que
os nossos missionarios não descobrissem ou indigi-
tassem; e comtudo, os sabios inglezes, soberanos de
grandissimos reinos, favorecidos por todos os soccorros
das artes e da força, deveriam conseguir maiores re-
sultados que um pobre jesuita, só, vagabundo, e per-
seguido . « Ainda que pouco apparecessemos em publico,
escreve o padre Royer, seria facil conhecerem-nos pelo
ar e côr do rosto . Pelo que , para evitar maior perse-
guição á religião, devemo - nos conformar com o maior
recolhimento . Eu passo os dias inteiros encerrado
n'um batel, d'onde saio de noite para visitar as aldeias
proximas do rio, ou então escondido n'alguma casa
erma» . 1

1 Cartas edif. , tom. 1 , pag. 8.


PARTE QUARTA · LIVRO QUARTO 221

O batel d'este religioso era todo o seu observatorio ;


mas ahi mesmo, quando ha caridade, se é mui rico e
habil.

CAPITULO III

Missões da China

Dois religiosos da ordem de S. Francisco, um po-


laco, e outro francez, fôram os primeiros europeus que
penetraram na China no meiado do seculo doze . Marco
Paulo, veneziano, e Nicolau e Matheus Paulo, da mes-
ma familia, fizeram para lá duas viagens . Os portu-
guezes, descobrindo o roteiro das Indias, estabelece-
ram -se em Macau, e o padre Ricci, da companhia de
Jesus, resolveu franquear-se o imperio de Cattay, do
qual tamanhas maravilhas se diziam . Deu- se primeiro
ao estudo da lingua chineza, uma das mais difficeis
do mundo . Venceu os obstaculos com a energia, e ,
após muitos perigos e recusas, conseguiu dos magis-
trados chinezes, em 1682, a licença para residir em
Chouachen .
Ricci, discipulo de Cluvius, e per si mesmo habi-
lissimo em mathematica, obteve, por intermedio d'esta
sciencia, protectores entre os mandarins . Deixou o
traje dos bonzos , e tomou o dos lettrados . Deu lições
de geometria , onde por arte introduzia as mais precio-
sas lições de moral christã . Estanciou successivamente
em Chouachen, Nemchem, Pekin, Nankin, agora mal-
tratado, logo bemvindo, oppondo aos revézes uma in-
vencivel paciencia, e nunca arrefecendo na esperança
de fazer fructificar a palavra de Jesus Christo . Por
fim, o proprio imperador, maravilhado das virtudes e
sciencias do missionario , concedeu-lhe residencia na
capital, e muitos privilegios, extensivos aos seus com-
panheiros de trabalhos . Os jesuitas regularam discre-
tamente o seu porte, e mostraram profundo conheci-
mento do coração humano . Respeitaram o costume dos
chinezes, e uniformisaram-se com elles em tudo que
222 O GENIO DO CHRISTIANISMO

não lesava as leis evangelicas . Occorreram os contra-


tempos . «Depressa a emulação corrompeu os fructos da
sua sabedoria, diz Voltaire ; e este espirito contencioso
e agitado, alliado aos talentos e ao saber na Europa,
destruiu os mais relevantes designios » . ¹
Ricci era para tudo . Respondia ás accusações dos
seus inimigos na Europa, e velava as christandades
nascentes na China . Dava lições de mathematica, es-
crevia em chinez os livros de controversia contra os
lettrados que o atacavam, cultivava a amizade do im-
perador, e privava na côrte, onde a sua urbanidade
o bemquistava com os grandes . Tamanhas fadigas
abreviaram -lhe os dias . Finalisou em Pekin uma vida
de cincoenta e sete annos, metade da qual fòra con-
sumida nos trabalhos do apostolo .
Morto o padre Ricci, foi a missão interrompida pelas
revoluções occorridas na China. Enthronisado, porém.
o imperador tartaro Cun-chi, o padre Adam Schall foi
nomeado presidente do tribunal das mathematicas .
Morreu Cun- chi, e durante a menoridade de seu filho
Cang-hi, a religião christã andou exposta a novas per-
seguições .
Emancipado o imperador, foram chamados os mis-
sionarios para expurgar as confusões do calendario .
O joven principe affeiçoou- se ao padre Verbiest, suc-
cessor do padre Schall . Fez examinar o christianismo
pelo tribunal dos estados do imperio, e minutou de seu
proprio punho a memoria dos jesuitas. Os juizes .
após maduro exame , declararam que a religião christã
era boa, e nada continha contrario á pureza dos cos-
tumes, e prosperidade dos imperios.
Similhante sentença em favor da lei de Jesus Christo
era digna dos discipulos de Confucius . Pouco tempo.
depois d'este decreto, o padre Verbiest chamou de Paris
os doutos jesuitas, que levaram a honra do nome fran-
cez ao centro da Asia.
O jesuita que partia para a China armava - se de te-

1 Essai sur les mœurs, cap. CXCV.


PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 223

lescopio e compasso . Apparecia na corte de Pekin com


a polidez da côrte de Luiz XIV, rodeado do cortejo das
artes e siencias . Desenrolando mappas, girando globos ,
traçando espheras, ensinava aos mandarins espantados
o verdadeiro curso dos astros, e o verdadeiro nome de
quem os dirige nas suas orbitas . Dissipando os erros
da physica, atacava os erros da moral ; repunha no
coração, como sua legitima séde, a simplicidade que
deslocava do espirito . Com seu proceder e sciencia,
` o missionario inspirava a um tempo profunda venera-
ção a seu Deus , e alta estima de sua patria .
Era bello para a França vêr os seus simples reli-
giosos regular na China os fastos de um grande im-
perio. Propunham-se questões de Pekin para Paris :
a chronologia, a astronomia, a historia natural, pres-
tavam assumptos de doutas curiosas discussões . Os
livros chinezes eram traduzidos para francez, e os
francezes para chinez . O padre Parennin , na sua carta
endereçada a Fontenelle, escrevia á Academia das
Sciencias:
« Senhores : Ha de, talvez , susprehender-vos a re-
messa, que eu de tão longe vos faço, d'um tratado de
anatomia, um curso de medicina, e questões de phy-
sica, escriptas em uma lingua que de certo vos é des-
conhecida ; mas vossa surpreza cessará , quando virdes
que são as vossas proprias obras que vos eu envio, tra-
jadas á tartara » . ¹
Deve lèr- se de principio a fim esta carta em que
respiram o tom de urbanidade, e a linguagem das pes-
soas honestas , quasi esquecidas n'estes nossos dias.
« jesuita chamado Parennin , diz Voltaire, homem
celebre por seus conhecimentos e sensatez de caracter,
fallava optimamente o chinez e o tartaro ... O que o faz
mais conhecido entre nós são as sabias e luminosas
respostas sobre as sciencias da China, ás doutas diffi-
culdades postas por um dos nossos melhores philoso-
phos» 2

1 Cartas edif., tom. xix, pag. 257.


2 Seculo de Luiz XIV, cap. XXXIX.
224 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Em 1711 , o imperador da China deu aos jesuitas tres


inscripções, que elle mesmo compozera para uma igreja
que elles edificavam em Pekin . A do frontispicio re-
sava :
" Ao vero principio de tudo. „

Sobre uma das duas columnas do peristylo lia- se :

" Elle é infinitamente bom, infinitamente


justo, illumina, ampara, rege tudo com su-
prema auctoridade e soberana justiça. „

Estas palavras cobriam a ultima columna :

" Elle não teve principio, nem terá fim ;


desde o começo gerou tudo, tudo governa,
é de tudo o verdadeiro Senhor. ,

Quem se interessar na gloria do seu paiz não deixa


#
de vivamente se commover, vendo os pobres missio-
narios francezes dar similhantes ideias de Deus ao
chefe de muitos milhões de homens . Que nobre em-
prego da religião !
Povo, mandarins, lettrados abraçavam em chusma
a nova doutrina ; as ceremonias do culto sobretudo,
davam um prodigioso resultado . Diz o padre Prémare,
citado pelo padre Fouquet : «Antes da communhão pro-
feria eu em voz alta os actos que se recommendam aos
que chegam ao divino sacramento.. Com quanto a lin-
gua chineza não seja fecunda em affectos do coração,
o exito foi grande . Notei na physionomia d'esses bons.
christãos devoção que eu ainda não tinha presen-
ciado». 1
«Loukang, accrescenta o mesmo missionario, des-
pertára-me o appetite das missões no campo . Sahi da
aldeia, e encontrei esta pobre gente, labutando por am-
bos os lados : fui a um d'elles, que me pareceu bem
encarado , e fallei -lhe de Deus . Pareceu- me contente

1 Cartas edif., tom. xvii, pag. 149.


PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 225

do que me ouvia, e convidou-me á honraria de entrar


no salão dos antepassados. E ' a melhor casa da aldeia :
pertence a todos os habitantes , porque, estatuido desde
muito o costume de se não casarem fóra da sua terra,
são elles todos parentes hoje , e os avós os mesmos .
Foi ahi onde muitos concorreram , depondo o trabalho ,
2
para ouvirem a doutrina santa» .
Não será isto uma scena da Odyssea, senão antes da
Biblia ?
Um imperio, cujos costumes inalteraveis, atravez
de dois mil annos, zombavam do tempo, das revolu-
ções e das conquistas, tal imperio muda á voz de um
monge christão, que sahiu sósinho do fundo da Eu-
ropa . Os mais inveterados prejuizos , as mais anti-
quadas usanças, uma crença religiosa consagrada pelos
seculos , tudo isto cahe e se dissipa ao nome só do Dens
do Evangelho . N'este mesmo momento em que escry-
vemos , no momento em que é perseguido na Europa
o christianismo, propaga- se na China . Reanima- se o
fogo que julgavam extincto, como succede sempre.
depois das perseguições . Quando se assassinava o clero
em França, e o despojavam de haveres e honras, as
ordenações clandestinas eram innumeraveis ; os bispos
proscriptos fôram muitas vezes obrigados a negar o
sacerdocio a mancebos que queriam voar ao martyrio .
Isto prova , pela millesima vez, quanto desconheceram
o espirito do christianismo aquelles que julgaram ex-
tinguil-o , accendendo fogueiras . Ao invez das coisas
humanas, cuja natureza é morrerem nos tormentos , a
verdadeira religião cresce na adversidade : assellou-a
Deus com o mesmo cunho da virtude .

1 Cartas edif. , tom. XVI , pag. 152 e seg.


VOL. II 15
226 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO IV

Missões do Paraguay

CONVERSÃO DOS SELVAGENS 1

Em quanto o christianismo brilhava entre os ado-


radores de Fo-hi, outros missionarios o annunciavam
aos nobres japonezes, ou o levavam á côrte dos sul-
dões, ou o insinuavam, digamol -o assim, até aos ninhos
das florestas do Paraguay , a fim de domesticarem essas
nações indiaticas , que viviam á laia de passaros nas
frondes das arvores . E' por ventura singularissimo o
culto que reune, quando lhe apraz, as forças politicas
ás forças moraes, e cria, por excedente de meios, go-
vernos tão sabios como os de Minos e Lycurgo . A Eu-
ropa possuia então apenas constituições barbaras, obra
do tempo e do acaso ; e a religião christã revivia no
Novo-mundo os milagres das legislações antigas . As
hordas errantes dos selvagens do Paraguay apagavam-
se, e uma republica evangelica surgia, á voz de Deus ,
do mais fundo dos desertos .
E que grandes genios eram esses que taes maravi-
lhas produziam ? Simples jesuitas, muitas vezes em-
pecidos em suas traças pela avareza de seus compa-
triotas .
Era costume geralmente adoptado na America hes-
panhola reduzir os indios em commandancia, e sacri-
fical-os aos trabalhos das minas . Em vão o clero se-
cular e regular tinham reclamado contra este uso por
igual barbaro e impolitico . Nos tribunaes do Mexico,
do Perú e na côrte de Madrid soavam os queixumes
dos missionarios . «Não pretendemos, diziam elles aos

1 Vê te para os dois e pit dos seguintes o 9º 9. U vol. ' as Car-


tas edificantes : a Historia do Paraguay, por Charlevoix, în- 4.", ed¹ç.
de 1^41 : Lozano, Historia de la Compañia de Jesus en la provincia
del Paraguay, in-fol.. ? vol . Ma rid. 1753 : Muratori. Il Christianis-
simo felice ; Montesquieu, Espirito das leis.
2 Rbertson. Historia da America.
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 227

colonos, oppôrmo-nos ao proveito que podeis tirar dos


indios por meios licitos ; mas vós sabeis que a intenção
do rei nunca foi que os tivesseis como escravos , e a
lei de Deus vol-o veda ... Não crêmos que seja licito
attentar contra a liberdade d'elles , á qual têm um di-
1
reito natural, que nada auctorisa a impugnar-lh'o » .
Havia ainda ao pé das Cordilheiras, para o lado que
olha o atlantico, entre o Orenoque e o rio da Prata,
um paiz de selvagens, que os hespanhoes não tinham
assolado . N'essas florestas emprehenderam os missio-
narios formar uma republica christã , e dar sequer a
um pequeno numero de indios a felicidade que elles
não tinham podido insinuar a todos .
Começaram por obter da côrte de Hespanha a liber-
dade dos selvagens que elles podéssem ajuntar. A esta
nova amotinaram-se os colonos . A' custa de espirito
e destreza é que os jesuitas, para assim dizer, sur-
prehenderam a permissão de derramar seu sangue nos
desertos do Novo -mundo . Triumphantes a final da cu-
pidez e malicia humana, meditaram um dos mais no-
bres designios que ainda concebeu o coração do ho-
mem, e embarcaram para o rio da Prata .
N'este rio perde-se outro que deu seu nome ao paiz
e ás missões , cuja historia bosquejamos . Paraguay,
na lingua dos selvagens, significa o rio coroado, porque
elle nasce no lago Xarayes , que lhe serve como de
coroa . Antes de ir engrossar o rio da Prata, recolhe
as aguas do Parama e do Uraguay . Florestas que en-
cerram outras florestas cahidas de velhice, lagôas e
esplanadas inteiramente inundadas na sazão das chu-
vas, montanhas que levantam desertos sobre desertos ,
formam uma parte da região banhada pelo Paraguay.
Caça de toda a especie, bem como tigres e ursos,
abundam por lá. Os bosques estão enxameados de
abelhas que fazem candidissima cêra, e mel muito odo-
rifero . Vêm-se passaros , de brilhante plumagem, si-
milhantes a enormes flôres encarnadas e azues , sobre

1 Charlevoix, Historia do Paraguay, tom . 11 , pag. 26 e 27.


228 O GENIO DO CHRISTIANISMO

a verdura dos arvoredos . Um missionario francez, que


se havia transviado n'essas solidões, descreve -as assim :
« Fui andando sem saber onde ia dar, nem se encon-
traria quem me guiasse . A espaços, por entre essas
florestas, topava sitios encantadores . O melhor que o
estudo e industria humana inventou para enfeitiçar
um logar, não se iguala com as bellezas que a natureza
simples accumulára ahi .
«Estes magicos sitios espertavam -me as ideias que
eu tinha outr'ora quando lia as vidas dos antigos soli-
tarios da Thebaida : veio-me ao pensamento passar o
restante de meus dias n'essas florestas, onde Provi-
dencia me conduzira, para todo me entregar ahi á mi-
nha salvação, longe do commercio humano ; porém,
não sendo eu senhor do meu destino, e tendo como
do Senhor as ordens que me davam os meus superio-
res, rejeitei este pensamento como uma chimera». 1
Os indios, que por ahi se encontram n'esses ermos ,
só com elles se pareciam confrontados pelo lado horri-
vel. Raça indolente , estupida e feroz, mostrava no auge
da fealdade o homem primitivo degredado pela quéda .
O que mais prova a degeneração da natureza humana
é a pequenez do selvagem na magnitude do deserto .
Chegados a Buenos -Ayres, os missionarios subiram
o rio da Prata, e , entrando nas aguas do Paraguay,
dispersaram-se nos bosques . Antigas relações nol- os
figuram com o breviario debaixo do braço esquerdo ,
uma grande cruz na mão direita , e sem outra provisão
além da confiança em Deus . Pintam -nol-os abrindo
caminho atravez das florestas, pisando terras alagadi-
ças, onde a agua lhes dava pela cintura, trepando por
penhascos escarpados, espreitando cavernas e precipi-
cios, com risco de lá encontrarem serpentes e alima-
rias, em vez de homens que procuravam .
Muitos d'elles ahi pereceram de cansaço e fome ;
outros foram mortos e comidos pelos selvagens . O
padre Lisardi encontraram - o varado de frechas sobre

1 Cartas edif., tom. viii. pag. 381.


PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 229

uma fraga ; meio corpo tinham-lh'o lacerado as aves de


rapina ; o seu breviario estava ao pé d'elle , aberto na
pagina do officio dos defuntos . Quando um missiona-
rio assim topava os restos d'um companheiro, dava-se
pressa em lhes fazer honras funebres , e , cheio de gran-
de jubilo , cantava um solitario Te-Deum sobre tu-
mulo do martyr .
Scenas d'estas, repetidas a cada instante, assom-
bravam as hordas barbaras . Algumas vezes affluiam
em redor do padre desconhecido que lhes fallava de
Deus, e fitavam o céo que o apostolo lhes apontava ;
outras vezes , fugiam d'elle como de um encantador,
e sentiam-se tranzidas de terror estranho ; o religioso
seguia-as, estendendo-lhes as mãos em nome de Jesus
Christo . Se não podia retel -as, plantava a sua cruz em
logar descoberto, e ia esconder-se nos bosques . Os
selvagens avisinhavam-se vagarosamente para exami-
narem o estandarte da paz elevado no ermo : um iman
secreto parecia attrahil-os para este signal da sua sal-
vação . O missionario então sahindo subito do seu es-
conderijo, e aproveitando a surpreza dos barbaros, con-
vidava-os a deixarem uma vida miseravel , para gosa-
rem das doçuras da sociedade .
Quando os jesuitas conciliaram alguns indianos,
recorreram a outro expediente para ganhar almas . Ha-
viam notado que os selvagens d'essas regiões eram
muito sensiveis á musica : até se diz que as aguas do
Paraguay purificam os timbres da voz . Embarcavam
em pangaios com os novos catechumenos , e subiam
os rios cantando canticos . Os neophytos repetiam as
arias como os passaros presos cantam para attrahir ás
abuizes do passarinheiro as aves selvagens . Os in-
dianos lá vinham cahindo no suave laço . Desciam das
montanhas, e corriam á beira do rio para melhor ou-
virem as cantilenas ; muitos arrojavam-se ás ondas, e
seguiam a nado a encantada canôa . Arco e frecha
cahiam da mão do selvagem : o antegosto das virtudes
sociaes, e as primeiras doçuras da humanidade entra-
vam em sua alma confusa ; ao pé d'elle chorava de
nunca sentido gosto a mulher e o filho ; prestes subju-
230 O GENIO DO CHRISTIANISMO

gado por fascinação irresistivel, cahia aos pés da cruz ,


e misturava torrentes de lagrimas ás aguas regenera-
doras que lhe fluiam sobre a cabeça .
D'est'arte a religião christã realisava nas florestas
da America o que a fabula conta de Amphião e Orpheu :
reflexão tão natural que aos mesmos missionarios se
apresentou : tão certo é que só a verdade aqui se diz,
sob apparencia d'uma narrativa ficticia ..

CAPITULO V

Continuação das missões do Paraguay

REPUBLICA CHRISTÃ. FELICIDADE DOS INDIOS

Os primeiros selvagens que se reuniram á voz dos


jesuitas foram os guaranis, povos dispersos nas mar-
gens do Paranapané, do Pirapé, e do Uraguay . For-
maram elles uma povoação dirigida pelos padres Ma-
cela e Cataldino, nomes estes que é justo memorar en-
tre os dos bemfeitores do genero humano . Esta povoa-
ção foi chamada Loretto, e ao diante, á medida que as
igrejas indianas se erigiram, houveram nome geral de
Reducções . Em poucos annos subiram a trinta, e jun-
tas constituiram a Republica christã, que simulava
uma reliquia da antiguidade descoberta no Novo-
Mundo . A verdade tão conhecida em Roma como na
Grecia, de que é com a religião , e jámais com prin-
cipios abstractos de philosophia, que os homens se ci-
vilisam e os imperios se fundam, esta verdade confir-
maram-nol-a as Reducções .
Cada povoação era regida por dois missionarios que
dirigiam os negocios espirituaes e temporaes das pe-
quenas republicas . Nenhum estrangeiro podia ahi ficar
além de tres dias ; e para afastar intimidade que po-
désse empeçonhar os costumes dos christãos noviços,
era defeso aprender a fallar a lingua hespanhola ; mas
os neophytos sabiam lêl- a, e escrevêl -a correctamente .
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 231

Havia duas escólas para cada Reducção ; uma para


as lettras rudimentares, a outra para dança e musica .
Esta ultima arte, que tambem servia de fundamento ás
leis das republicas antigas, era particularmente culti-
vada pelos guaranis : elles mesmos faziam orgãos , har-
pas, flautas, guitarras e instrumentos bellicos .
A indole do menino, logo que tocava os sete annos ,
era estudada por dois religiosos . Se parecia azado para
empregos mechanicos, mettiam-o em uma das officinas
da Reducção, para onde a inclinação o chamava . Fazia-
se ourives, dourador, relojoeiro, serralheiro, carpintei-
ro, tecelão, marceneiro , fundidor. Os instituidores d'es-
tas officinas tinham sido os mesmos jesuitas, que apren-
deram de proposito as artes uteis para ensinal-as aos
seus indios, sem serem obrigados a recorrer a estran-
geiros.
Os moços que preferiam a agricultura eram arro-
lados na tribu dos lavradores, e os que ainda tinham
resquicios da vida errante que d'antes levavam , pasciam
os rebanhos .
As mulheres trabalhavam, separadas dos homens ,
no interior de suas casas . No principio de cada semana
distribuiam-lhes uma certa porção de lã e algodão que
ellas deviam restituir no sabbado á tarde, apta para
entrar em obra ; tambem se davam aos trabalhos do
campo, occupando n'elles os ocios, sem ultrapassar as
forças .
Não havia mercados publicos nas povoações ; em
certos dias dava-se ás familias o necessario á vida .
Um dos dois missionarios fiscalisava que os quinhões
estivessem em proporção com o numero d'individuos
reunidos em cada cabana .
Os trabalhos começavam e terminavam ao toque do
sino . Ao nascer da aurora era o primeiro . Logo os
meninos se ajuntavam na igreja, onde o seu concerto
matinal durava, como o dos passarinhos, até que o sol
nascia. Homens e mulheres assistiam depois á missa .
e d'ahi debandavam para o trabalho . Ao entardecer, o
sino invocava os novos cidadãos ao altar, e entoava - se
a oração da tarde em duas partes e com grande musicą ,
232 O GENIO DO CHRISTIANISMO

A terra estava dividida em muitas geiras, e cada fa-


milia cultivava a sua, para o necessario . Havia ahi um
campo commum chamado a Possessão de Deus . 1 Os
fructos d'estas terras communs eram destinados a sup-
prir as colheitas deficientes, e a sustentar viuvas,
orphãos, e doentes : além d'isso, sahiam d'ahi reservas
para a guerra . Se crescia alguma coisa no thesouro
publico, ao cabo do anno, applicava- se esse superfluo
ás despezas do culto, e ao pagamento do tributo d'um
escudo d'ouro que cada familia pagava ao rei de Hes-
panha. 2
Um cacique, ou cabo de guerra, um corregedor para
administrar justiça, regedores e alcaides para o poli-
ciamento e direcção dos trabalhos publicos, compu-
nham a corporação militar, civil e politica das Redu-
cções . Estes magistrados eram nomeados em assem-
bleia geral dos cidadãos ; parece, porém, que só podiam
ser eleitos d'entre individuos propostos pelos missio-
narios : era uma lei imitada do senado e povo romano.
Havia mais um chefe chamado fiscal, especie de censor
publico, eleito pelos anciãos . Registrava os homens
capazes de tomarem armas . Um tenente superintendia
nas creanças, conduzia-as á igreja á escola, com uma
longa varinha na mão : este relatava aos missionarios
as observações que fizera sobre os costumes , indole,
qualidades e defeitos de seus discipulos .
A povoação, emfim, estava dividida em muitos bair- .
ros e cada bairro tinha um vigia . Como os indios são
de seu natural preguiçosos e imprevidentes , um chefe
agricola era encarregado d'examinar as charruas , e
obrigar os cabeças de familias a semear as suas terras .
No caso d'infracção de lei, a primeira falta era cas-
tigada com uma censura secreta dos missionarios ; a
segunda com penitencia publica á porta da igreja, como

1 Montesquieu illudiu- se quando acreditou que havia communi-


dade de bens no Paraguay : aqui se vê o que o induziu a erro.
2 Charlevoix, Hist. do Parag. Montesquieu computou este tri-
buto no quinto dos bens .
PARTE QUARTA --- LIVRO QUARTO 233

entre os primitivos fieis ; a terceira com a pena d'açou-


tes . Porém , durante seculo e meio que durou esta re-
publica, acha- se apenas o exemplo d'um indiano que
merecesse o ultimo castigo . « Todas as suas faltas são
faltas de creanças, diz o padre Charlevoix ; são - o toda
a vida em muitas coisas ; mas tambem têm de creanças
as boas qualidades » .
Os preguiçosos eram condemnados a cultivarem
uma porção maior do campo commum ; d'est'arte uma
sabia economia converteu os proprios defeitos d'esses
homens innocentes em lucro da prosperidade publica .
Cuidava-se em casar os moços mui cedo para evitar
a libertinagem. As mulheres, que não tinham filhos,
retiravam- se, ausentes os maridos, a uma casa parti-
cular denominada Casa de Refugio . Os dois sexos es-
tavam quasi separados como nas republicas gregas ;
tinham bancos distinctos nas igrejas, e differentes por-
tas por onde sahiam sem se misturarem .
Tudo era regrado, até o vestido que convinha á mo-
destia, sem lesar as graças . As mulheres traziam uma
tunica branca, apertada por um cinto ; pernas e braços
nús ; os cabellos fluctuantes serviam-lhes de véo .
Os homens trajavam como os antigos castelhanos .
Quando pegavam ao trabalho cobriam este airoso ves-
tido com uma camisola de tecido branco . Os distinctos
por lances de bravura ou de virtude traziam uma ca-
misola escarlate .
Os hespanhoes , e mórmente os portuguezes do Bra-
zil, faziam correrias sobre os dominios da republica
christã, e arrebatavam muitas vezes os desgraçados que
reduziam á escravidão . Resolvidos a dar mate a estes
salteadores , os jesuitas, á força de sagacidade , obtive-
ram da côrte de Madrid permissão de armarem os seus
neophytos . Curaram de arranjar materia prima, esta-
beleceram fundições de peças , manufacturas de pol-
vora, e adestraram para a guerra aquelles outros que
não queriam deixar em paz . Uma milicia regular se
ajuntava em cada segunda feira para manobrar e ser
revistada por um cacique ; davam-se premios aos ar-
cheiros, lanceiros, fundibularios, artilheiros e mos-
234 O GENIO DO CHRISTIANISMO

queteiros . Os portuguezes, quando voltaram , em vez


de lavradores timidos e dispersos, encontraram bata-
lhões que os desbataram , e repelliram até ás portas
das suas fortalezas . Observou - se que a nova milicia
jamais recuava, e se ordenava, sem confusão , debaixo
do fogo inimigo . Era tal o seu ardor e enthusiasmo nos
exercicios militares, que muitas vezes foi forçoso ata-
lhal- os por medo d'algum desastre .
Assim se via no Paraguay um estado sem os in-
convenientes d'uma constituição exclusivamente belli-
cosa como a dos lacedemonios, nem os d'uma sociedade
exclusivamente pacifica como a fraternidade dos qua-
kers . Resolvera- se ahi o problema politico : a agricul-
tura, que funda, e as armas, que conservam, achavam-
se alliadas . Os guaranis eram cultivadores sem terem
escravos, e guerreiros sem serem ferozes : immensas
e sublimes vantagens que deviam á religião christã .
as quaes não poderam gosar, sob o polytheismo, gregos
e romanos.
Esta discreta combinação entrava em tudo : a Repu-
blica christã não era absolutamente agricola, nem guer-
reira, nem de todo alheia ás lettras e ao commercio :
havia de tudo um pouco, e mórmente abundantes di-
vertimentos . Não era tristonha como Sparta, nem fri-
vola como Athenas : o cidadão podia bem com o tra-
balho, e andava solto das cadeias do prazer. Os missio-
narios, restringindo o povo ás primeiras necessidades.
da vida, souberam estremar no rebanho os meninos
que a natureza assignalára para mais altos destinos .
Segundo o conselho de Platão, apartaram os que re-
velavam engenho , para inicial-os nas sciencias e let-
tras . Estes meninos escolhidos , chamados a congre-
gação, eram educados n'uma especie de seminario, e
submettidos á austeridade do silencio, do retiro, e dos
estudos dos discipulos de Pythagoras . Tão grande emu-
lação reinava entre elles , que a simples ameaça de
o reenviarem ás escolas communs punha em desespe-
ração um discipulo . D'esta excellente fileira é que de-
viam sahir um dia os padres, os magistrados , e os
heroes da patria,
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 235

As aldeias das Reducções occupavam vasto territo-


rio, geralmente ás margens d'um rio, em sitio ameno .
As casas eram uniformes, d'um só andar, e de pedra :
as ruas eram largas e alinhadas . No centro da aldeia
estava a praça publica, entre a igreja , a casa dos pa-
dres, o arsenal, o celleiro commum, o asylo, e o hos-
pital dos estrangeiros . As igrejas eram vistosas, e or-
nadissimas ; as paredes eram decoradas de paineis , in-
tercalados de festões de verdura natural . Em dias fes-
tivos borrifavam-se as naves com aguas olorosas, e
o santuario era juncado de flores de enrediças desfo-
lhadas .
O cemiterio, contiguo ao templo, formava um qua-
drilongo cercado de muros que davam pelo peito : cir-
cumvalava- o uma ala de palmeiras e cyprestes , e era
cortado por outras alas de limoeiros e laranjeiras : a
central conduzia a uma capella onde todas as segundas-
feiras se celebrava missa dos defuntos .
As extremidades das ruas pegavam a avenidas de
bellissimos e enormes arvoredos , as quaes conduziam
a capellas edificadas nos arrabaldes que se viam em
perspectiva : estes padrões religiosos serviam de para-
gem ás procissões nos dias de grandes solemnidades .
Ao domingo , depois da missa, faziam-se os despo-
sorios e os casamentos , e á tarde baptisavam - se os
catechumenos e os recem -nascidos .
Estes baptismos faziam-se como na Igreja primitiva,
com tres immersões , canticos , e as vestimentas de
linho.
Annunciavam -se com extraordinaria pompa as prin-
cipaes festividades da religião . De vespera, havia fo-
gueiras, illuminações nas ruas, e os moços dançavam
na praça publica . No dia seguinte , ao amanhecer, a
milicia apparecia armada . O cacique de guerra, que
a precedia, cavalgava um soberbo cavallo, e dois ca-
valleiros , que o ladeavam, cobriam-o com um docel .
Ao meio dia, depois do officio divino, dava - se banquete
aos estrangeiros, se alguns estavam na republica, e era
licito beber algum pouco de vinho . A' tarde, faziam- se
jogos de argolinha, em que assistiam os dois padres
236 O GENIO DO CHRISTIANISMO

para distribuirem os premios aos vencedores . A' en-


trada da noite soava o signal de recolher, e as familias,
felizes e tranquillas, iam saborear as doçuras do somno .
No centro das florestas selvagens , no meio d'essa
pequena população á antiga, a festa do Santissimo Sa-
cramento era extraordinariamente vistosa . Os jesuitas
adoptaram as danças, á guisa dos gregos , porque não
havia que recear contra os costumes entre christãos
tão innocentes . Daremos textual a descripção que fez
o padre Charlevoix :
«Disse eu que n'esta festa não se viam preciosidades :
todas as bellezas da natureza simples são apresentadas
com a variedade que a representa em seu luzimento ;
ella, se assim posso exprimir-me, alli estava toda viva ,
porque sobre as flôres e ramos d'arvores que tecem os
arcos de triumpho , sob os quaes o Sacramento passa,
vêem-se remoinhar os passaros de todas as côres, pre-
sos pelas pernas a fios tão longos , que parecem gosar
plena liberdade, e virem ahi espontaneamente misturar
seu gorgeio ao canto dos musicos e do povo , e aben-
çoar, a seu modo, Aquelle cuja providencia jámais
os desampara...

«A intervallos vêem-se tigres e leões bem agrilhoa-


dos para que não perturbem a festa, e formosissimos
peixes que se retouçam em grandes tanques ; em
summa, todas as especies de creaturas viventes assis-
tem como em deputação á festa, para prestarem ho-
menagem a Deus no seu augusto Sacramento .
«Entram , outro sim, n'este ornato tudo que é regalo
nas grandes folgas, as primicias de todas as colheitas.
para se offerecerem ao Senhor, e o grão que ha de
semear-se, a fim de que elle o abençôe . O canto dos
passaros, o rugido dos leões , o bramir dos tigres , tudo
se ouve sem confusão , e produz um concerto sin-
gular...

« Desde que o Santissimo Sacramento se recolhe á


igreja, levam- se aos missionarios todos os comestiveis
expostos no transito da procissão . O melhor vae para
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 237

os enfermos, o restante é repartido por todos os mora-


dores da aldeia. A' noite ha fogo preso , folguedo pro-
prio de todas as solemnidades grandes e regosijos pu-
blicos» .
Com um governo assim paternal e analogo á indole
ingenua e pomposa do selvagem, não admira que os
novos christãos fôssem os mais puros e felizes dos
homens . A mudança de costumes era um milagre feito
á vista do Novo-mundo . O espirito de crueza e vin-
gança , o relaxamento aos mais grosseiros vicios , cara-
cteristico das hordas indiaticas, mudaram-se em espi-
rito de brandura, paciencia e castidade . Avaliem- se-lhes
as virtudes pela expressão chã do bispo de Buenos-
Ayres : «Senhor, escrevia elle a Filippe V, n'estas nu-
merosas povoações , compostas d'indios, naturalmente
propensos a toda a casta de vicio, reina tamanha inno-
' cencia, que eu não creio que lá se commetta um só
peccado mortal » .
Entre os selvagens christãos não se viam processos
nem querelas : não se sabia lá distinguir entre o meu
e o teu, porque, pondera Charlevoix, é nada ter de seu
estar sempre disposto a repartir o pouco que se tem
com os necessitados . Abundosamente fornidos do pre-
ciso á vida ; regidos por esses mesmos que os tinham
tirado á barbarie, e que elles , com justiça, encaravam
como porções da divindade ; gosando os dulcissimos
sentimentos da natureza na patria e na familia; co-
nhecendo as vantagens da vida civil sem abandonarem
o deserto, os encantos da sociedade sem perderem os
da solidão ; esses indios podiam gabar-se de gosar uma
dita sem exemplo na terra. A hospitalidade, a amizade ,
a rectidão e as ternas virtudes promanavam natural-
mente de seus corações á palavra da religião, assim ,
e do mesmo modo que as oliveiras deixam cahir seus
fructos maduros ao assoprar da aragem . Muratori, d'um
traço , debuxou esta republica christã , intitulando a
descripção que fez - Il Christianissimo felice.
O principal desejo que deve sentir-se ao lêr esta
historia é transpôr os mares , e ir, longe dos tumulos
e revoltas, procurar uma vida obscura nas cabanas dos
238 O GENIO DO CHRISTIANISMO

selvagens, e uma campa tranquilla sob as palmeiras


dos seus cemiterios . Mas nem os desertos são assaz
profundos nem os mares assaz vastos, para furtarem
o homem ás dôres que o perseguem. Sempre que se
pinta o quadro da felicidade d'um povo, é forçoso re-
matar na catastrophe : no mais rico das pinturas, o
coração do escriptor contrahe-se a esta reflexão que
incessantemente o inquieta : Tudo isto acabou . As
missões do Paraguay estão extinctas ; os selvagens re-
unidos com tantas canceiras erram de novo nos sertões,
ou abafam vivos nas entranhas da terra . Applaudiram
ahi a aniquilação d'uma das melhores obras da mão
do homem. Era uma creação do christianismo , uma
seara adubada com sangue dos apostolos : odio e des-
prezo foi a sua recompensa ! Todavia, no momento
em que triumphavamos, vendo os indios recahirem no
Novo-mundo na escravidão, a Europa proclamava a
nossa philanthropia e amor da liberdade . Estas vergo-
nhosas alternativas do coração humano , consoante as
contrarias paixões que o assoberbam, esterilisam a alma,
e perveteriam quem se detivesse longo tempo a medi-
tal-as . Confessemos antes que somos fracos , e profun-
dos os designios de Deus, a quem apraz experimentar
os que o servem . Ao passo que nós aqui gememos,
os innocentes christãos do Paraguay, enterrados nas
minas de Potosi , de certo acatam a mão que os feriu ;
e, com soffrimentos resignadamente supportados , ad-
quirem um logar n'aquella republica dos santos, que
está abrigada da perseguição dos homens .

CAPITULO VI

Missões da Cuiana

Se aquellas missões espantam com sua grandeza,


ha outras, posto que mais ignoradas, igualmente admi-
raveis . Na obscura cabana e sobre a campa do pobre
é que muitas vezes o Rei dos reis se apraz manifestar
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 239

a riqueza das suas graças e dos seus milagres . Subindo


para o norte, desde o Paraguay até ao centro do Ca-
nadá, encontravam -se numerosas missões somenos , em
que o neophyto se não civilisára para alliar- se ao apos-
tolo , mas em que o apostolo se fizera selvagem para
seguir o neophyto . Os religiosos francezes regiam
essas christandades vagabundas, cujos perigos e im-
persistencias pareciam adaptados ao nosso genio e co-
ragem.
O padre Creuilli , jesuita, fundou as missões de
Cayenna. Parece sobrehumano o que elle praticou para
consolação dos negros e selvagens . Os padres Lom-
bard e Ramette, caminhando pelas pégadas d'aquelle
santo varão , internaram-se nas lagoas da Guiana . Ca-
ptivaram a affeição dos indios galibis, á custa d'amor
e allivios, e conseguiram d'elles o cederem-lhes al-
guns meninos que educaram na religião christã . Esses
meninos civilisados, voltando ás suas florestas , pré-
garam o Evangelho a seus velhos paes selvagens , que
se deixaram facilmente persuadir por esses novos mis-
sionarios . Os catechumenos reuniram-se em um logar
chamado Kourou, onde o padre Lombard e mais dois
negros edificaram uma casa . Crescendo cada vez mais
a aldeia, resolveram erigir igreja . Mas com que pagar
ao architecto, ao carpinteiro de Cayenna, que pedia mil
e quinhentos francos (270$000 réis aproximadamente)
para gastos da empreitada ? O missionario e seus neo-
phytos , ricos de virtudes, eram no mais pobrissimas
pessoas . São engenhosas a fé e a caridade : os galibis
sujeitaram-se a escavar sete pangaios, que o carpin-
leiro aceitou no valor de duzentas libras cada um.
Para completar a quantia, as mulheres fiaram o algo-
dão necessario para fazer oito redes . Vinte selvagens
deram-se voluntariamente como escravos a um colono,
em quanto dois negros , que elle emprestou, fôram em-
pregados em serrar madeira para o tecto do edificio .
Tudo se arranjou assim, e Deus teve um templo no
deserto .
Aquelle que desde toda a eternidade traçou o anda-
mento das coisas, manifestou, ha pouco, n'essas re-
240 O GENIO DO CHRISTIANISMO

giões um designio dos que, no seu principio, fogem á


sagacidade humana, e cuja profundeza só se penetra
no momento em que se completam. Quando, ha mais
de seculo, o padre Lombard lançava os cimentos da
sua missão entre os galibis , mal diria elle que dispunha
os selvagens a receberem os martyres da fé , e que
preparava n'esse deserto uma nova Thebaida para a
religião perseguida . Vasto assumpto para pensar ! Bil-
laud de Varennes e Pichegru , o tyranno e a victima
na mesma choça em Sinnamary, dois corações desuni-
dos apezar de se tocarem pelos extremos da miseria !
odios immortaes entre companheiros dos mesmos fer-
ros ! os gritos d'alguns infelizes prestes a despedaça-
rem-se misturados com os bramidos dos tigres nas
florestas do Novo-mundo !
Vêde no tropel das paixões tumultuarias a paz e
serenidade evangelicas dos confessores de Jesus Christo
entre os neophytos da Guiana, encontrando entre os
christãos barbaros a piedade que os francezes lhes ne-
garam ; vêde essas pobres religiosas hospitaleiras, que
pareciam exilar- se em clima mortifero só para espe-
rarem um Collot d'Herbois em seu leito de morte , e
prodigalisar-lhe os cuidados da caridade christă ; vêde
essas santas mulheres confundindo o innocente e o cri-
minoso em seu amor á humanidade, chorando por
todos, pedindo a Deus soccorro para os perseguidores
do seu nome, e para os martyres do seu culto . Que
lição ! que quadro ! quão desgraçados os homens , e
quão sublime a religião !

CAPITULO VII

Missões nas Antilhas

O estabelecimento das nossas colonias nas Antilhas ,


ou Ant'Ilhas, assim chamadas, porque são as primeiras
que se encontram á entrada do golfo mexicano , não
vae além de 1627, época na qual M. d'Enambuc ergueu
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 241

uma fortaleza, e deixou algumas familias na ilha de


S. Christovam .
Era então costume pôr nos estabelecimentos remo-
tos os missionarios como curas, para que a religião
participasse, até certo ponto , d'aquelle espirito intre-
pido e aventuroso que estremava os primeiros cubi-
çosos no Novo-mundo. Os irmãos prégadores da con-
gregação de S. Luiz, os padres carmelitas, os capuchos,
e os jesuitas, devotaram-se ao ensinamento dos caraï-
bas negros , e a todos os trabalhos que requeriam
nossas colonias nascentes de S. Christovam , de Guade-
lupe, de Martinica e S. Domingos .
Ainda se não escreveu coisa mais satisfatoria e
completa ácerca das Antilhas, que a historia do padre
Du Tertre , missionario da congregação de S. Luiz .
«Os caraïbas, diz, são muito contemplativos ; ha na
physionomia d'elles uma tintura melancolica e som-
bria : passam longas horas assentados na crista d'uma
rocha, ou sobre a praia postos os olhos na terra ou
mar, sem dizerem uma palavra……
.São de natural
benigno e brando , affavel, e compassivo , até ás lagri-
mas, para as desventuras dos nossos, e só contra os
inimigos implacaveis são crueis .
«As mães amam extremamente os filhos , e estão
sempre alerta para afastar tudo o que possa acontecer-
lhes funesto ; tem-os quasi sempre ao seio , até de noite ;
e é para pasmar que, dormindo em leitos suspensos
muito desaconchegados , não abafem os filhos ... Por
todas as viagens que fazem por mar e por terra, le-
vam-os comsigo , sobraçados n'um berçozinho d'algo-
dão , que trazem a tiracollo , para terem sempre debaixo
da vista o objecto dos seus desvelos » ¹
Como que se está lendo um fragmento de Plutarcho ,
traduzido por Amiot.
O padre Du Tertre, de seu natural propenso a ver
as coisas pela face terna e simples, não póde deixar de

1 Hist. das Antil., tom. 11 , pag. 375.


VOL. II 16
242 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ser pathetico, tratando dos negros . Todavia não nol - os


apresenta á guisa de philantropos, como os mais vir-
tuosos dos homens ; mas ha ahi sensibilidade, candura,
e admiravel discernimento na pintura que faz de seus
sentimentos .
Diz elle : « Havia em Guadelupe uma negra moça, tão
convencida da miseria de sua condição , que seu senhor
jámais obteve d'ella o casar-se com o negro que lhe
offerecia....………. Esperou ella que
o padre ( no altar) lhe perguntasse se queria um tal para
seu marido : respondeu com espantosa firmeza : « Não ,
padre, não quero este nem outro : contento -me de ser
miseravel por mim só, sem dar ao mundo creanças
que serão talvez mais miseraveis que eu, e cujas penas
me seriam muito mais sensiveis que as minhas pro-
prias » ' Assim permaneceu solteira, e d'ahi lhe vinha
o chamarem-lhe a donzella das ilhas » .
O lhano padre prosegue na pintura dos costumes .
dos negros , descreve o arranjo do seu interno viver e
move a amal- os pelo seu amor aos filhos : entrança
no seu discurso sentenças de Seneca, a respeito da
simplicidade das cabanas em que viviam os povos da
idade aurea ; tambem cita Platão , ou antes Homero ,
quando diz que os deuses tiram á escravidão metade
da sua virtude . Dimidium mentis Jupiter illis aufert :
compára o caraïba selvagem em liberdade ao negro
selvagem em servidão , e mostra quanto o christianismo
ajuda ao ultimo a supportar os seus males .
E' moda do seculo accusar os padres de amarem a
escravidão , e favorecerem a oppressão entre os ho-
mens; é todavia certo que ninguem bradou em favor
dos escravos, dos fracos e dos pobres , com mais cora-
gem e força que os escriptores ecclesiasticos . Que a
liberdade é um direito imprescriptivel do christão, sus-
tentaram - o elles constantemente . O colono protestante ,
convicto d'esta verdade, para conciliar a cubiça com a
consciencia, só baptisava os seus negros em artigo.
de morte ; e até algumas vezes, receando que elles con-
valescessem , e reclamassem depois como christãos sua
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 243

liberdade, deixavam-os morrer idólatras.¹ A religião


é tão bella n'isto, quanto a avareza é hedionda .
O tom sensivel religioso com que os missionarios
fallavam dos negros das nossas colonias, era o que
mais se harmonisava com a razão e humanidade : sen-
siblisava os senhores e morigerava os escravos ; favo-
neava a causa do genero humano, sem prejudicar a
da patria, e sem transtornar a ordem e a propriedade .
Tudo se perdeu com as grandes palavras ; até a piedade
se dessecou ; por quanto, quem se afoutaria agora a
advogar a causa dos negros tornados tão criminosos ?
Que mal avisados temos andado ! que bellas causas
e bellas coisas perdemos !
No tocante á historia natural, o padre Du Tertre
mostra-vos d'um só traço , por vezes, um animal in-
teiro ; o passaro -mosca denomina-o uma flôr celeste:
é o verso do padre Commire sobre a borboleta :

Florem putares nare per liquidum æthera

«As pennas do Flammejante, ou Flammante , diz elle


algures, são encarnadas ; e quando elle vôa contra o
sol parece chammejante como as labaredas d'um
facho» . 2
Buffon não pintou mais primorosamente que o his-
toriador das Antilhas, o vôo d'uma ave : « Este passaro
(a fragata) custa -lhe muito a sahir das arvores ; mas ,
se uma vez desfere o vôo , é vêl -o fender o ar d'um
sereno adejo, librando -se nas tendidas azas folgada-
mente quasi sem as agitar . Se alguma vez o peso da
chuva ou os impetos dos ventos o importunam, então
enfia ás nuvens, guinda-se á região média do ar, e não
ha mais vêl- o » . 3
Se nos conta como fabríca o ninho a femea do pica-
flôr:.. « Carda, se assim posso exprimir-me,

1 Hist. das Antil., tom. 11, pag. 503.


2 Idem, tom. 11 , pag. 268.
3 Hist. das Antil., pag. 269.
244 O GENIO DO CHRISTIANISMO

todo o algodão que lhe traz o macho, riça- o todo, fio


a fio, com o bico e pézinhos ; depois faz o seu ninho,
que não é maior que meia casca de ovo de pomba. A'
medida que vae crescendo o edificiozinho , faz mil gi-
ros, aperfeiçoando com o pescoço o rebordo do ninho,
e o interior com a cauda .
(( .
Nunca pude conhecer o que era o cibato
que a mãe trazia aos filhos ; pareceu-me que lhe dava
a sugar a lingua, que, a meu vêr, trazia melada com
o succo extrahido das flores » .
Se a perfeição em pintura está no dar ideia clara
dos objectos , pondo-os a uma luz graciosa, o missio-
nario das Antilhas attingiu esta perfeição .

CAPITULO VIII

Missões da Nova- França

Não nos deteremos nas missões da California , por-


que não ha singularidade n'ellas, nem nas da Luisiania,
que são analogas ás terriveis missões do Canadá, em
que a intrepidez dos apostolos de Jesus Christo brilhou
em todo o seu esplendor.
Quando os francezes, capitaneados por Champlain,
subiram o rio de S. Lourenço, acharam os sertões do
Canadá habitados por selvagens mui differentes dos que
até então se haviam encontrado no Novo - Mundo . Eram
homens robustos, corajosos , soberbos de sua indepen-
dencia, capazes de raciocinio e calculo, superiores ao
1
espanto dos costumes europeus e suas armas , ¹ e que,
longe de nos admirarem como os innocentes caraïbas,
desprezavam e aborreciam os nossos usos .

1 No primeiro combate de Champlain contra os iroquezes, sof-


freram estes com denodo o fogo dos francezes sem darem mostras de
mêdo ou espanto .
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 245

Em tres nações se dividia aquelle imperio selvatico :


a Algonquina, mais antiga e primaz, mais odiosa por
seu poder, estava em transes de morrer ás mãos das
outras ; a Huronna, alliada nossa, e a Iroqueza, nossa
inimiga .
Não eram vagabundos estes povos : tinham estabe-
lecimentos fixos , governos regulares . Tivemos occa-
sião de observar pessoalmente nos indios do Novo-
mundo todas as fórmas constitucionaes dos povos cul-
tos : assim que os natchez, na Luisiania, mostram o
despotismo no estado da natureza ; os creekes da Flo-
rida, a monarchia ; e os iroquezes, no Canadá, o go-
verno republicano .
Estes derradeiros e os huroens representavam ainda
os espartanos e os athenienses em condição selvagem ;
os huroens, espertos , vivos , frivolos, dissimulados ,
bravos, eloquentes, governados por mulheres, abusando
da fortuna, e affrontando a mêdo os revézes, mais hon-
rados que amantes da patria; os iroquezes, separados
em cantões, governados por anciãos ambiciosos , po-
liticos, taciturnos, severos , devorados do desejo de
dominar, capazes dos maiores vicios e maiores virtu-
des, sacrificando tudo á patria, os mais ferozes e in-
trepidos dos homens.
Apenas os francezes e inglezes saltaram n'essas
praias, os huroens, por natural instincto, uniram - se
aos primeiros ; os iroquezes entregaram-se aos segun-
dos , mas sem amal - os : serviam-se sómente d'elles para
haverem armas . Quando os seus novos alliados cres-
ciam em forças, abandonavam-os, e colligavam- se no-
vamente quando os francezes iam de cima . Assim
andou uma pequena chusma de selvagens contempo-
risando entre duas nações civilisadas, curando de ani-
quilar uma com a outra, muitas vezes perto de conse-
guir seu fim, e ser a um tempo senhora e libertadora
d'esta parte do Novo-mundo.
Taes foram os povos que os nossos missionarios
emprehenderam conciliar comnosco por intervenção
religiosa . Se a França alongou na America o seu im-
perio além das margens do Meschacebé, se conservou
246 O GENIO DO CHRISTIANISMO

longo tempo o Canadá contra os iroquezes e inglezes


alliados , aos jesuitas se devem esses feitos . Quem sal-
vou a colonia nascente dando -lhe como baluarte um
povo de iroquezes e huroens christianisados , preve-
nindo as coallisões geraes dos indios, negociando tra-
tados de paz , expondo - se sósinhos aos furores dos iro-
quezes para impecer as traças dos inglezes ? — - fôram
os jesuitas . Os governadores da Nova- Inglaterra, em
seus despachos , pintavam sempre os nossos missiona-
rios como os seus mais poderosos inimigos , dizendo :
«Desconcertam os projectos do poder britannico, des-
cobrem-lhe os segredos , e roubam-lhe o animo e as
armas dos selvagens » .
A má administração do Canadá, o mau porte dos
commandantes, uma politica mesquinha e oppressiva,
tolhiam as boas intenções dos jesuitas mais vezes que
a opposição do inimigo . Se estes offereciam os mais
engenhosos planos para a prosperidade da colonia,
louvavam- lhes o zêlo, e faziam outra coisa . Se, porém ,
os negocios se difficultavam, recorriam aos mesmos
homens , tão desdenhosamente repellidos . Nenhuma
consideração de perigo fazia hesitar aquelles que in-
cumbiam aos jesuitas negociações arriscadas : a histo-
ria da Nova-França exemplifica isto sobejamente .
Recrudescera a guerra entre os francezes e iroque-
zes : estes levavam a melhor, avançando até aos muros
de Quebec , matando e devorando os habitantes do
campo . O padre Lamberville estava então missionando
aos iroquezes . Com quanto estivesse, a cada momento,
exposto a ser queimado vivo pelos vencedores, não
quizera retirar- se, esperançado em reconduzil - os á paz ,
e salvar o resto da colonia ; era amado dos velhos e
protegido dos guerreiros .
N'este entrementes recebe uma carta do governador
do Canadá, supplicando-lhe que mova os selvagens a
mandarem embaixadores á fortaleza Catarocuy para
negociarem a paz . O missionario vae ter com os an-
ciãos , e tanto fez com rogos e instancias , que os moveu
a aceitarem trégoas e a deputarem os principaes cau-
dilhos . Estes, chegando á entrevista, fôram presos ,
encarcerados , e mandados á França para as galés .
PARTE QUARTA - LIVRO QUARTO 247

O padre Lamberville ignorára a trama secreta do


commandante, e andára de tão boa fé , que se deixou
ficar entre os selvagens . Quando soube o successo ,
julgou-se perdido . Os anciãos mandaram-o chamar ;
achou-os reunidos em conselho , severos de rosto e
aspecto ameaçador . Um d'elles contou-lhe indignado.
a traição do governador, e accrescentou :
«Não ha ahi quem negue que todas as razões nos
auctorisam a tratar-te como inimigo ; mas não podemos
fazel-o . De sobra te conhecemos, para nos podermos.
persuadir de que o teu animo é cumplice na traição
que nos fizeram , e não somos tão injustos , que te cas-
tiguemos por crime de que te julgamos innocente, e
que tu de certo abominas tanto como nós ... Não é to-
davia certo que permaneças aqui ; nem toda a gente
le faria igual justiça ; e , quando a nossa juventude
pegar em armas, verá em ti um perfido que entregou
os nossos chefes um duro e acervo captiveiro, ouvirá
sómente o seu furor, que em vão tentaremos abran-
dar». ¹
Dito isto , obrigaram o missionario a sahir, dando-
The guias que o conduzissem por caminhos travessos
além das fronteiras . Luiz XIV mandou soltar os indios
logo que soube o modo como os captivaram . O ancião
que falára ao padre Lamberville converteu- se pouco
depois, e retirou-se a Quebec . O seu proceder n'este
ensejo foi já o primeiro fructo do christianismo, que
principiava a germinar-lhe no coração .
Que diremos de homens da tempera de Brébeuf.
de Lallemant, de Jogue, que aqueceram com seu sangue
os sulcos glaciaes da Nova - França ! Eu mesmo encon-
trei um d'esses apostolos nas solidões americanas !
Caminhava eu lentamente nos sertões, uma madru-
gada , e enxerguei vindo ao meu encontro um velho de
barbas brancas, vestido com um longo habito, lendo
attentivamente em um livro , e caminhando encostado
ao seu cajado . Illuminava-o um raio da aurora, que

1 Charlevoix, Hist. da Nova- França , tom. 1 , liv. XI. pag. 511 .


248 O GENIO DO CHRISTIANISMO

se coava por entre a folhagem: julgal- o-iam Thermo-


siris sahindo do sacro bosque das musas, nos desertos
do alto Egypto . Era um missionario da Luisiania ; vol-
tava da Nova-Orleans aos illanezes, onde pastoreava
um pequeno rebanho de francezes e selvagens chris-
tãos . Foi commigo durante alguns dias . Por mais ma-
drugador que eu fôsse, achava-o sempre a pé, rezando
no seu breviario , e passeando na floresta . Este santo
varão havia soffrido muito ; contava fartas amarguras
da sua vida ; contava-as sem azedume, e ainda mais
sem prazer, mas com serenidade ; nunca vi sorriso mais
sereno que o d'elle . Citava muitas vezes com prazer
os versos de Virgilio, e até de Homero com applicação
ás formosas scenas que se succediam á nossa vista, e
ás ideias que nos entretinham . Parece -me que elle
tinha conhecimentos em todos os ramos, mas apenas
transpiravam da simplicidade evangelica ; á maneira
dos apostolos , seus antecessores, sabendo de tudo, pa-
recia tudo ignorar. Fallamos uma vez da revolução
franceza, e saboreamos conversar das desordens hu-
manas nos mais socegados logares . Estavamos senta-
dos n'um valle, á margem d'um rio , cujo nome igno-
ravamos, e que desde muitos seculos refrigerava com
suas aguas aquellas ignotas margens . Notei isto ao
ancião, que se enterneceu : chamára -lhe lagrimas aos
olhos a imagem d'uma vida obscura, sacrificada no
deserto a obscuros beneficios .
O padre Charlevoix descreve - nos assim um dos
missionarios do Canadá :
« padre Daniel não podia deixar d'ir a Quebec,
estando tão visinho, antes d'ir á missão do seu des-
tino ...... aportou n'uma canôa, governando a pá, com
tres ou quatro selvagens, já descalço , exhaurido de
forças, com a camisa a pedaços, e uma sotaina esfarra-
pada sobre o corpo macerado , mas prazenteiro no sem-
blante e folgazão da vida que levava, inspirando com
o seu ar e palavras cubiça d'ir com elle quinhoar das
cruzes em que o Senhor punha tanta unção » . ¹

1 Charlevoix. Hist . da Nova - França , tom. 1 , liv. v, pag. 200.


PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 249

Eis-ahi jubilos e lagrimas como Jesus Christo ve-


ramente os promette aos seus eleitos .
Escutemos ainda o historiador da Nova-França :
«Não havia nada mais apostolico que o seu viver
(o dos missionarios entre os huroens) . Todos os seus
momentos eram assignalados por alguma acção heroi-
ca, por conversões ou padecimentos que elles tinham
em conta de verdadeiras indemnisações , quando os seus
trabalhos não fructificavam á vontade d'elles . Desde
que se erguiam, ás quatro horas da manhã , se não
andavam de missão , encerravam- se até ás oito , em
oração, porque não tinham livre outro tempo para
exercicios de piedade . A's oito , ia cada qual onde o
chamava o dever; uns visitavam os enfermos ; outros
andavam nos campos com os trabalhadores ; outros
trasladavam-se ás aldeias visinhas destituidas de pas-
tores . Estes cuidados e trabalhos produziam optimos
effeitos , porque em primeiro logar não morriam ou
morriam pouquissimas creanças sem baptismo ; aquel-
les adultos , que recusaram christianisar-se emquanto
estavam de saude, rendiam-se na molestia : não podiam
evadir- se á industriosa e constante caridade de seus
medicos » . ¹
Se taes descripções viessem no Telemacho tudo se-
riam encomios á simplicidade e ao pathetico, e á ficção
do poeta : á verdade , porém, desenhada com traços
identicos, fica -se insensivel .
Eram esses os menores trabalhos d'esses varões
apostolicos : uma vezes acompanhavam os selvagens
ás caçadas, que duravam annos, e no decurso das quaes
eram forçados a comer até a roupa ; outras vezes ex-
punham-se aos caprichos d'esses indios, que, á guisa
de creanças, não podiam resistir ao impulso da sua
phantasia, ou dos seus appetites . Os missionarios,
porém, davam- se por bem pagos de suas penas, se
tinham, durante longos soffrimentos, grangeado uma
alma para Deus, franqueado o céo a uma creança,

1 Charlevoix , Hist. da Nova- França, tom. 1 , liv. v, pag. 217.


250 O GENIO DO CHRISTIANISMO

consolado um doente, enxugado o pranto do infortunio .


Já vimos que a patria não tinha cidadãos mais leaes ;
a honra de serem francezes , acareava-lhes muitas vezes
a perseguição e a morte : os selvagens qualificavam-os
de carne branca de Quebec, pela intrepidez com que
elles aguentavam atrocissimos martyrios .
O céo, commovido de suas virtudes, outorgou a
muitos a palma que elles tanto anhelavam, e que os
elevou á ordem dos primitivos apostolos . A povoação
1
huroneza, onde o padre Daniel ¹ missionava, foi levada
de assalto pelos iroquezes na madrugada de 4 de julho
de 1648 , na ausencia dos moços guerreiros . A este
tempo estava o jesuita celebrando missa aos neophytos.
Apenas acabou a consagração, correu ao sitio d'onde
partiam os gritos . Viu uma scena lastimosa ; mulheres,
creanças e velhos jaziam moribundos misturadamente .
Os que ainda estavam vivos cahem- lhe aos pés , pedindo
o baptismo . O padre ensopa um panno em agua, e
espargindo a multidão ajoelhada, dá a vida celestial
aos que não podia arrancar á morte temporal . Lem-
bra- se elle então de ter deixado nas choças alguns
doentes que não tinham recebido ainda o sêllo do chris-
tianismo ; corre lá, inscreve- os no numero dos resga-
tados, volta á capella, esconde os vasos sagrados, dá
uma absolvição geral aos huronezes que se haviam
acolhido ao altar; urge-lhes a fuga, e para dar-lhes
tempo vae ao encontro dos inimigos . A' vista d'este
padre, que sahia sósinho a um exercito, os barbaros
param espantados, e recuam alguns passos ; não ou-
sando avisinhar-se do santo, cravam -o de longe com
as flechas : « Estava todo crivado d'ellas , diz Charlevoix ,
e fallava ainda com pasmosa energia, ora a Deus, a
quem offerecia seu sangue pelo rebanho , ora aos ma-
tadores, que ameaçava com a cólera divina, affirmando-
lhes, todavia, que elles achariam sempre o Senhor
disposto a recebel - os em graça se elles recorressem á
sua clemencia» . 2 Morre, e salva uma porção de neo-
phytos, retendo contra si os iroquezes .

1 O mesmo, cujo retrato nos fez Charlevoix.


2 Hist. da Nova-França, tom. 1, liv. vii, pag. 286,
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 251

Similhante heroismo praticou o padre Garnier n'uma


outra povoação . Era ainda muito moço, e fugira ás
lagrimas de sua familia para salvar almas nos sertões
do Canadá . Ferido por duas balas no campo da ma-
tança, cahiu desacordado ; um iroquez , julgando-o
morto, espoliou -o . Algum tempo depois torna a si o
padre, ergue a cabeça, e vê a distancia um huronez que
expedia o espirito . O apostolo esforça-se por ir absol-
ver o catechumeno, arrasta- se , e recahe : avista -o um
barbaro, corre a elle, e enterra-lhe nas entranhas duas
vezes um machado : « Espirou , diz Charlevoix, no exer-
cicio, e, digamol- o assim, no regaço da caridade . »>
Finalmente, o padre Brébeuf, tio do poeta d'este
nome, foi queimado com esses horriveis flagicios que
os iroquezes inflingiam aos seus prisioneiros .
«Este padre endurecido por vinte annos d'esses
trabalhos capazes de abafar todos os sentimentos natu-
raes, com um caracter de espirito provado para tudo ,
e uma virtude nutrida no espectaculo sempre presente
de uma cruel morte, que elle anciava ardentemente, e
além disso prevenido por mais d'um aviso celestial
de que os seus votos seriam deferidos - este padre
tanto sorria ás ameaças como ás torturas ; o quadro ,
porém, dos seus amados neophytos, cruentamente
flagellados na sua presença, turvava com immensa
amargura o jubilo que elle sentia ao vêr realisadas suas
esperanças...
«Os iroquezes logo conheceram que estavam a bra- .
ços com um homem que lhes não daria o prazer d'um
gemido ; e, como se previssem que elle communicaria
aos demais a sua coragem , apartaram -o, passado tem-
po, dos captivos , e fizeram- no subir sósinho a um cada-
falso , e tanto contra elle se encarniçaram, que pare-
ciam freneticos de raiva e desesperação .
«Nada, porém, impedia o servo de Deus de fallar
com voz forte, ora aos huronezes, que o não viam, mas
que podiam ouvil-o ainda, ora aos algozes, que exhor-

1 Charlevoix, Hist. da Nova- França, tom. 1 , liv. v11 , pag. 298.


252 O GENIO DO CHRISTIANISMO

tava a temerem a cólera do céo , se continuassem a


perseguir os adoradores do verdadeiro Deus . Esta li-
berdade espantou os barbaros : quizeram impôr-lhe
silencio, e não o conseguiram, amputaram-lhe o beiço
inferior e o nariz, chegaram -lhe a todo o corpo fachos
1
accesos, queimaram-lhe as gengivas, etc . >>
Perto do padre Brébeuf, martyrisavam outro missio-
nario, chamado o padre Lallemant, que entrára de
fresco na carreira evangelica . A dôr arrancava-lhe al-
gumas vezes gritos involuntarios ; pedia força ao velho
apostolo que , não podendo já fallar , fazia gestos ani-
madores com a cabeça, e sorria com os labios mutila-
dos para animar o joven martyr : a fumaça das duas
fogueiras subia junta ao céo, e contristava e regosijava
os anjos . Ao padre Brébeuf pozeram um collar de
ferros candentes ; cortavam-lhe pedaços de carne , e co-
miam-os diante d'elle, dizendo que era saborosa a carne
dos francezes ; 2 depois , continuando a chacoteal- o,
diziam : « Ha pouco affirmaste-nos que quanto mais se
soffre na terra, mais feliz se é no céo ; por isso que te
queremos muito é que te vamos augmentando os soffri-
mentos » . 3
Quando em Paris se levavam espetados nas chuças
os corações dos sacerdotes, cantavam : Ah ! festa onde
o coração não entra, não é festa.
Em summa, depois de haver soffrido tormentos que
não ousamos transcrever, o padre Brébeuf expirou, e
sua alma voou á região d'Aquelle que guarece todas
as chagas dos seus servos .
Era em 1649 que taes scenas decorriam no Canadá,
isto é, no momento da maxima prosperidade da França,
e durante as festas de Luiz XIV : tudo então trium-
phava, o missionario e o soldado .
Aquelles que odeiam e escarnecem o padre , exul-
tarão com os tormentos dos confessores da fé . Os

1 Charlevoix, Historia da Nova - França, pag. 292.


2 Historia da Nova- França, pag. 293 e 294.
3 Ibid., pag. 294.
PARTE QUARTA LIVRO QUARTO 253

sabedores, dotados de prudencia e moderação , dirão


que, a final de contas, os missionarios eram victimas
do seu fanatismo , e perguntarão com soberba piedade :
o que iam fazer esses monges aos desertos d'America ?
Em verdade, confessamos que elles não iam , com um
traçado scientifico, tentar grandes descobrimentos phi-
losophicos ; obedeciam unicamente ao Mestre, que lhes
dissera : « Ide e ensinae» . Docete omnes gentes; e na
fé d'esse mandato , com simplicidade extrema, deixavam
delicias patrias para irem, a preço de sangue, revelar
a um barbaro que não conheciam... - O quê ? Nada,
segundo o mundo , quasi nada : a existencia de Deus
e a immortalidade da alma: DOCETE OMNES GENTES !

CAPITULO IX

Conclusão das missões

Apontamos , pois, as veredas que seguiam as diffe-


rentes missões : eram as da simplicidade, da sciencia,
da legislação, do heroismo . Afigura-se-nos que havia
ahi legitimo motivo de orgulho para a Europa, mor-
mente para a França, que mandava o maior numero
de missionarios , em vêr todos os annos sahir do seu
seio sujeitos que iam fazer luzir os milagres das artes ,
das leis, da humanidade e da coragem nas quatro par-
tes da terra . D'isso provinha o alto conceito em que
os estrangeiros tinham a nossa nação, e o Deus ado-
rado n'ella . Os mais afastados povos queriam alliar- se
comnosco : o embaixador do selvagem occidental en-
contrava na nossa còrte o embaixador das nações da
aurora. Não nos empavezamos de dom prophetico,
mas podem ter como certo, e a experiencia o mostrará,
que os sabios, idos a longes terras, com instrumentos
e traças das academias, não conseguirão jámais o que
um pobre monge , sahido a pé do seu mosteiro , execu-
tava sósinho com o seu breviario .
LIVRO QUINTO

Ordens militares ou cavallaria

CAPITULO I

Cavalleiros de Malta

São do christianismo as mais bellas reminiscencias ,


as mais bellas instituições dos seculos modernos . Os
unicos tempos poeticos da nossa historia , os tempos
cavalleirosos tambem lhe pertencem: a verdadeira re-
ligião tem o singular merecimento de haver creado a
idade da magia e dos encantos .
Parece que M. de Sainte-Palaye quiz estremar a
cavallaria militar da religiosa, e tudo, pelo contrario ,
nos induz a confundil-as . Não crê elle que possa anti-
1
quar-se a instituição da primeira além do seculo xi ;
ora, foi justamente a época dos cruzadas que originou
os hospitalarios, os templarios, e a ordem teutonica.
A lei formal em que a cavallaria militar se compro-
mettia á defensão da fé, a analogia de suas ceremonias
com as dos sacramentos da Igreja, os seus jejuns ,
abluções, confissões, orações, votos monasticos , 3 mos-
tram sufficientemente que ha uma só origem religiosa
para todos os cavalleiros . E demais , o voto de celibato ,
que parece essencial differença entre os heroes castos
e os guerreiros que só fallam amores, não é coisa que
suscite embaraços, porque tal voto não era geral nas.

1 Mem. sobre a ant. cav ., tom. 1, parte 11, pag. 66.


2 Hen., Hist. de França, tom. 1 , pag. 167 ; Fleury, Hist. eccles..
tom. iv, pag. 378 ; tom. x, pag. 604. Helyot, Hist. das ordens religio-
sas, tom. 111, pag. 74, 143.
3 Sainte-Palaye, loc. cit.
256 O GENIO DO CHRISTIANISMO

ordens militares christãs ; os cavalleiros de S. Thiago


1
da Espada, em Hespanha, podiam casar-se , e na or-
dem de Malta não é obrigatoria a renuncia do laço
conjugal senão depois que se attingem dignidades da
ordem, ou se entra na posse dos beneficios d'ella .
Segundo o padre Giustiniani , ou segundo o testi-
munho mais certo, mas menos agradavel do freire He-
lyot, são trinta as ordens religiosas militares : nove sob
a regra de S. Basilio ; quatorze sob a de Santo Agosti-
nho, e sete alligadas ao instituto de S. Bento . Falla-
remos das principaes, a saber : os hospitalarios ou ca-
valleiros de Malta no Oriente ; os teutonicos no Occi-
dente e ao norte ; e os cavalleiros da Calatrava (com-
prehendendo os de Alcantara e de S. Thiago da Es-
pada) ao meio-dia da Europa .
Se são exactos os historiadores, podem-se ainda
contar mais vinte e oito ordens militares, que, sem
obediencia a regras particulares, só se consideram
illustres confrarias religiosas : taes são os cavalleiros
do Leão, do Crescente, do Dragão, da Aguia-branca,
do Liz, do Ferro -d'ouro, e os cavalleiros da Clava , cujos
nomes recordam os Rolandos , os Rogeros , os Renauds ,
os Clorindos , os Bradamantes , e os prodigios da Tavola-
redonda.
Alguns mercadores de Amalfi, da nação napolitana.
obtiveram de Romensor, califa do Egypto , licença de
edificarem uma igreja latina em Jerusalem . Ajuntaram
á igreja um hospital para estrangeiros e peregrinos .
Gérard de Provença toma o governo . Começam as cru-
zadas. Chega Godofredo de Bouillon, e dá algumas
terras aos novos hospitalarios . Royant-Roger succede.
a Gérard, Raymond Dupuy a Roger. Dupuy intitula- se
gran-mestre, divide os hospitalarios em cavalleiros para
protegerem as estradas aos peregrinos e combaterem
os infieis ; em capellães consagrados ao serviço dos
altares, e irmãos serventes , obrigados tambem á milicia .
Italia, Hespanha , França, Inglaterra, Allemanha e

1 Fleury, Hist. eccles., tom. xv, lib. LXXII , pag. 466, ediç. 1719.
PARTE QUARTA ·---- - LIVRO QUINTO 257

Grecia, que alternadas ou juntamente vieram abordar


as praias da Syria, fôram sustentadas pelos bravos
hospitalarios . A fortuna, porém, varía sem variar o
valor : Saladino retomou Jerusalem . Acre ou Ptolomeida
é já sómente o porto unico dos cruzados na Palestina.
Ahi confluem o rei de Jerusalem e de Chypre, o de
Napoles e Sicilia, o da Armenia, o principe de Antio-
chia, o conde de Jaffa, o patriarcha de Jerusalem, os
cavalleiros do Santo Sepulchro , o legado do Papa, o
conde de Tripoli, o principe de Galilea, os templarios ,
os hospitalarios , teutonicos, os de S. Lazaro, venezia-
nos, genovezes, pizanenses, florentinos, o principe de
Tarento, e o duque de Athenas . Todos esses principes ,
povos, e ordens, têm bairro distincto, e vivem em
separado . « De theor, diz Fleury, que havia cincoenta
1
e oito tribunaes que sentenciavam á morte » .
Entre tantos homens varios em usos e interesses ,
não tardou a desordem . Vieram ás do cabo na cidade .
Carlos d'Anjou e Hugo III, rei de Chypre, pretendentes
ao reino de Jerusalem, redobram a confusão . O soldão
Mélec - Messor aproveita estas desavenças intestinas, e
marcha com poderoso exercito, planisando arrancar
aos cruzados o ultimo refugio . Ao sahir do Egypto é
envenenado por um dos seus emirs ; antes , porém, de
expirar, obriga seu filho por juramento de não dar
sepultura ás cinzas paternas em quanto não arrazar
Ptolomeida.
Mélec- Séraph cumpre a derradeira vontade do pae :
Acre é sitiada, e levada de assalto aos 18 de maio de
1291. As religiosas deram então um exemplo assom-
broso de castidade christã : mutilaram-se no rosto , e
os infieis, vendo -as em tal estado, horrorisaram- se, e
mataram -as .
Tomada Ptolomeida, os hospitalarios acolheram-se á
ilha de Chypre, onde se demoraram dezoito annos . Rho-
des, revoltada contra Andronico, imperador do Oriente,
chama os sarracenos ás suas muralhas . Villaret, gran-

1 Hist. eccles.
VOL . II 17
258 O GENIO DO CHRISTIANISMO

mestre dos hospitalarios, obtem de Andronico a inves-


tidura da ilha, caso elle possa subtrahil-a aos maho-
metanos . Cobrem-se de pelles os cavalleiros , e cami-
nhando de gatinhas entre os rebanhos de carneiros ,
penetram na cidade, favorecidos pela nevoa espessa,
tomam uma das portas, degolam a sentinella, e intro-
duzem o restante do exercito christão .
Quatro vezes os turcos tentaram recobrar ilha de
Rhodes, quatro vezes fôram rechaçados . Na terceira
tentativa, o assedio da cidade durou cinco annos , e,
na quarta, Mahomet bombardeou as muralhas com
dezeseis peças de calibre não visto ainda na Europa .
Esses mesmos cavalleiros, desprezados do poder
ottomano volveram-se seus protectores . Um principe
Zizima, filho d'esse Mahomet II, que pouco antes bom-
bardeára os baluartes de Rhodes, implora o soccorro
dos cavalleiros contra Bajazeto , seu irmão , que o des-
pojára da herança . Bajazeto, temendo uma guerra ci-
vil, deu-se pressa em fazer a paz com a ordem, e con-
veio em pagar uma determinada quantia todos os
annos, como pensão de Zizima . Então se viu , graças
aos communs revézes da fortuna, um poderoso impe-
rador dos turcos tributario de alguns hospitalarios
christãos .
Sendo, finalmente, gran-mestre Villiers de l'Ile-
Adam , Solimão senhoreou-se de Rhodes, depois de
perder cem mil homens defronte dos muros . Os caval-
leiros retiraram a Malta, que Carlos V lhes deu . Fôram
Povamente assaltados pelos turcos ; mas, salvos por sua
bravura, permaneceram tranquillos possessores da ilha ,
sob cujo nome ainda hoje são conhecidos . ¹

1 Vert.. Hist. dos caval. de Malta ; Fleury, Hist. eccles.; Gius--


tiniani, Ist. cron , dell'ord . degli ord . milit.; Helyot, Hist. dos ord.
relig . tom. III .
PARTE QUARTA LIVRO QUINTO 259

CAPITULO II

Ordem Teutonica

Na outra extremidade da Europa, a cavallaria reli-


giosa lançava os alicerces d'esses estados , que se fize-
ram reinos poderosos.
A ordem teutonica nascera durante o primeiro cêrco
de Acre, posto pelos christãos em 1190. Ao diante,
o duque de Massovia e Polonia chamou-a á defensão
dos seus estados contra as correrias dos prussianos .
Estes eram povos barbaros , que sahiam de vez em
quando das suas florestas para devastarem as regiões
visinhas . De pouco a pouco haviam reduzido a me-
donha solidão a provincia de Culm , e só deixaram em
pé sobre o Vistula o castello de Plotzko . Os cavalleiros
teutonicos, entrando lentamente nos bosques da Prus-
sia, bateram as fortalezas . Os warmienos, os barthos,
os natangos soffreram alternadamente o jugo , e a na-
vegação dos mares do norte fez- se sem risco .
Os cavalleiros do Porta-Gladio, que trabalharam na
conquista dos paizes septentrionaes, reunindo- se aos
cavalleiros teutonicos, deram-lhes um adjutorio verda-
deiramente real . Fôram , sem embargo, retardados os
progressos da ordem pela scisão que reinou longo
tempo entre cavalleiros e bispos da Livonia ; mas, sub-
jugado alfim todo o norte da Europa, Alberto , marquez
de Brandebourg, abraçou a doutrina de Luthero, ex-
pulsou os cavalleiros dos seus dominios , e ficou abso-
luto senhor da Prussia, que foi chamada então Prussia
ducal . Este novo ducado passou a reino em 1701 , rei-
nando o avô do grande Frederico .
Os restos da ordem teutonica ainda subsistem em
Allemanha, e o gran-mestre actualmente é o principe.
Carlos . 1

1 Shoonbeck, Ord. milit.; Giustiniani, Ist. cron . dell'ord. degli


ord. milit.; Helyot, Hist. das ord. relig., tom. 111 ; Fleury, Hist. eccles.
260 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO III

Cavalleiros da Calatrava e de S. Thiago da Espada,


em Hespanha

A cavallaria progredia por igual no centro e nas


duas extremidades da Europa.
Pelo anno 1147, Affonso, o Lidador, rei de Castella,
tomou aos mouros a praça de Calatrava em Andaluzia .
Oito annos depois, os mouros tentaram reconquistal-a
de Sancho, successor de Affonso . D. Sancho, amedron-
tado por tal projecto, fez annunciar que elle daria a
praça a quem quizesse defendel-a. Ninguem ousou
apresentar-se, excepto um benedictino da ordem de
Cister, D. Diego Velasques, e Raymundo , seu abbade .
Entram em Calatrava com os camponezes e familias
dependentes do seu mosteiro de Fitero , armam os ir-
mãos conversos , e fortificam a cidade ameaçada . Os
mouros, informados d'estes preparativos , renunciam
a empreza; a praça fica sendo do abbade Raymundo ,
e os irmãos conversos transformam -se em cavalleiros
denominados de Calatrava.
Estes novos cavalleiros fizeram em seguida muitas
presas aos mouros de Valencia e Iaen . Favera, Maella ,
Macallon, Veldeformo, Fresueda , Valderobbes, Calen-
da, Aqua-viva e Ozpipa, cahiram successivamente em
seu poder . Mas a ordem soffreu uma derrota irrepa-
ravel na batalha de Alarcos , que os mouros d'Africa
venceram em 1195 contra o rei de Castella. Os caval-
leiros de Calatrava morreram quasi todos ahi , com os
de Alcantara, e de S. Thiago da Espada .
Não amiudaremos a historia d'estes ultimos, cujo
moto era tambem combater com os mouros , e proteger
os viajantes contra as incursões dos infieis . ¹
Basta vêr de relance a historia na época da institui-

1 Shoonbeck, Giustiniani , Helyot, Fleury e Mariana.


PARTE QUARTA LIVRO QUINTO 261

ção da cavallaria religiosa , para reconhecer os serviços


valiosos que ella prestou á sociedade . A ordem de
Malta, no Oriente, protegeu o commercio e a navegação
restaurada, e foi, por mais de um seculo, o unico
baluarte que obstou aos turcos o precipitarem-se sobre
a Italia; ao norte, a ordem teutonica, subjugando os
povos errantes nas orlas do Baltico, extinguiu o fóco
d'essas terriveis irrupções que tantas vezes assolaram
a Europa, favoreceu o adiantamento da civilisação, e
o aperfeiçoamento das novas armas, que nos pozeram
para sempre ao abrigo dos Alaricos e dos Atilas .
Não parecerá vã conjectura isto, se advertirem que
as correrias dos normandos só pararam no decimo
seculo, e que os cavalleiros teutonicos , entrados no
norte, acharam uma população afortalezada, e innu-
meraveis barbaros, que trasbordavam em roda d'elles .
Os turcos provindos do Oriente, os livonios , os prussia-
nos, os pomeranios, confluindo do Occidente e do Se-
ptentrião, renovariam na Europa, ainda mal refeita , as
scenas dos hunos e dos godos .
Os cavalleiros teutonicos prestaram á humanidade
um serviço até duplicado ; por quanto, domando os
selvagens, forçaram-os a serem agricultores, e abra-
çarem a vida social. Chrisbourg, Bartenstein, Wissem-
bourg, Wezel, Brumberg, Thorn, a maior parte das
cidades da Prussia, da Curlandia , e da Semigalia fôram
fundadas por aquella ordem militar religiosa; e ao
passo que ella podia jactar-se de firmar a existencia
dos povos da França e Inglaterra, podia tambem glo-
riar-se de ter civilisado o norte da Germania .
Havia um outro inimigo mais poderoso, talvez, que
os turcos e prussianos , porque estava no centro mesmo
da Europa : os mouros estiveram muitas vezes a ponto
de subjugar a christandade . E com quanto pareça mais
elegante que os outros barbaros em seus costumes
aquelle povo , a sua religião, que permittia a poligamia
e a escravidão, o seu temperamento despotico e cioso
era um invencivel obstaculo ás luzes e á felicidade do
genero humano .
As ordens militares de Hespanha, guerreando os
262 O GENIO DO CHRISTIANISMO

infieis, como a teutonica e a de S. João de Jerusalem ,


afastaram grandes desgraças . Os cavalleiros christãos
substituiram na Europa o exercito assalariado , e for-
maram uma especie de milicia regular que se transpor-
tava ao mais arriscado da refrega . Os reis e os barões,
obrigados a licenciarem seus vassallos ao cabo de al-
guns mezes de serviço, haviam sido muitas vezes sur-
prehendidos pelos barbaros . Fez a religião o que a
experiencia e indole dos tempos não conseguiu fazer:
associou os homens ajuramentados em nome de Deus
a verterem seu sangue pela patria : limparam - se as es-
tradas, expurgaram-se as provincias dos salteadores
que as infestavam, e os inimigos externos acharam
um dique ás suas devastações .
Censuram-se os cavalleiros por terem ido buscar os
infieis aos seus lares : não reparam, porém, que era
isso uma justa reprezalia contra povos que primeiro
atacaram os christãos : os mouros, que Carlos Martel
exterminou, justificam as cruzadas . Ficaram os dis-
cipulos do Coran quietos nos desertos da Arabia, e
não levaram a sua lei e devastações até aos muros de
Delhi, e até ás trincheiras de Vienna ? Seria bom
talvez esperar que o covil d'estas feras trasbordasse
novamente ? Porém , como a guerra os foi procurar,
hasteando o estandarte da religião , segue-se que não
era justa nem necessaria . Teutates, Odin , Allah , tudo
seria bom, com tanto que não fôsse Jesus Christo !

CAPITULO IV

Vida e costumes dos cavalleiros

Os assumptos que mais fallam á imaginação , não


são os que mais facilmente se pintam, ou porque elles
têm no seu complexo um certo vago mais encantador
que as descripções que se possam fazer d'elles , ou
porque o espirito do leitor vae sempre além dos qua-
dros que se fizeram . A só palavra cavallaria, o só
PARTE QUARTA LIVRO QUINTO 263

nome d'um illustre cavalleiro, é já de si uma mara-


vilha, que os mais interessantes pormenores não pódem
ultrapassar; tudo se compendia n'isso, desde as fabulas.
de Ariosto até ás emprezas dos verdadeiros paladinos,
desde os paços de Alcino e Armida até ás torrinhas
de Cœuvres e d'Anet .
Não pode fallar- se, mesmo historicamente, da ca-
vallaria, sem recorrer aos trovadores que a cantaram,
assim como se recorre á auctoridade de Homero no
concernente aos antigos heroes : é o que os mais severos
criticos reconheceram . Mas assim apparenta- se histo-
riar com ficções ! E ' porque nós tão afeitos estavamos
á verdade esteril, que tudo o que não tem a mesma
sequidão afigura-se-nos mentira : á maneira dos povos
nascidos nos gêlos polares, preferimos os nossos tristes
desertos a esses campos em que

A terra branda, alegre e deleitosa,


A si os seus naturaes assimilhava. ¹

A educação do cavalleiro principiava aos sete annos


de idade . 2 Du Guesclin, ainda menino, divertia- se nas
avenidas do castello de seu pae, a representar cercos
e combates com rapazitos aldeãos da sua idade . Viam- o
correr pelas selvas, luctar com os ventos , saltar largos
fossos, escalar olmos e carvalhos , e já revelar nas char-
3
necas da Bretanha o heroe que devia salvar a França .
Em seguida passava o educando ao mister de pagem
ou donzel no castello d'algum barão . Ahi recebia as
primeiras lições de fé guardada a Deus e ás damas . 4
Muitas vezes o pagem novel encetava com a filha do
castellão uma d'essas duradouras ternuras , que os mi-
lagres da valentia deviam immortalisar. Vastas archi-
tecturas gothicas, velhas florestas, grandes lagos soli-

1 Tass., cant. 1 , out. 62.


2 Sainte- Palaye, tom. 1 , parte 11 .
3 Vida de Du Guesclin.
4 Sainte-Palaye, tom. i, parte vii.
264 O GENIO DO CHRISTIANISMO

tarios, nutriam com seu aspecto romanesco essas pai-


xões, que nada podia destruir, e que se tornavam como
um encanto .
Excitado pelo amor á bravura , o pagem continuava
nos varonis exercicios que lhe arroteavam a estrada da
honra. Sobre um bravo corcel desencovava das espes-
sas mattas as féras , ou chamando o falcão das alturas
do céo, obrigava o tyranno dos ares a vir, tímido e sub-
misso, pousar em sua mão segura . Outras vezes, como
Achilles ainda juvenil, fazia voar cavallos nas espla-
nadas, pulando d'um para outro, salvando d'um salto a
garupa, ou sentando -se-lhe no dorso ; outras vezes arma-
do, subia até ao tôpo d'uma escada vacillante , e jul-
gava-se já á brecha, exclamando : Montjoie e S. Diniz! 1
Na côrte do seu barão recebia as instrucções e exem-
plos proprios para lhe formarem o viver . Ahi, concor-
riam a miudo cavalleiros conhecidos , devotados ás
aventuras perigosas, vindos dos reinos do Cattay, dos
confins da Asia, e de todos esses logares incriveis ,
onde elles corrigiam as iniquidades e guerreavam os
infieis .
«Era para vêr-se, diz Froissart, fallando da casa do
duque de Froix , era para vêr- se por salões, recamaras,
e galerias , cavalleiros e escudeiros de honra irem e
virem, e tratarem armas e amores : tudo que era honra
ahi se achava, e qualquer nova , por de mais longes
reinos que fosse, lá dentro era sabida ; que de todos os
paizes ahi vinham como preito á grã bravura do se-
nhor » .
O pagem passava a escudeiro, e a religião presidia
sempre a essas transições . Poderosos padrinhos ou
formosas madrinhas promettiam no altar, em nome do
futuro heroe, religião , fidelidade e amor. O encargo
do escudeiro era , na paz , trinchar á mesa, servir as
viandas, como os guerreiros de Homero , e dar agua ás
mãos dos convivas . Os maiores senhores não se peja-
vam de preencher esses encargos . « Em uma mesa fron-

1 Sainte-Palaye, tom. 1, parte 11.


PARTE QUARTA LIVRO QUINTO 265

teira ao rei, diz o senhor de Joinville, comia o rei de


Navarra, que mui guapo e loução estava de vestes dou-
radas, e assim mesmo de ouro fino era a cota, manto ,
cinto, fivela e gorro , e eu trinchava diante d'elle » .
O escudeiro seguia o cavalleiro á guerra, levava- lhe
a lança e o elmo no arção , e os cavallos á dextra .
«Quando entrou na floresta, encontrou quatro escudei-
ros , que levavam pela dextra quatro brancos corceis » .
Era dever d'elles em duellos e batalhas ministrar armas
ao seu cavalleiro, levantal -o quando cahia, dar-lhe um
cavallo folgado, rebater os talhos que lhe dirigiam ,
mas era-lhes defeso o pelejar .
Quando, alfim, se completavam os attributos do
aspirante ás armas, admittiam-o ás honras da cavalla-
ria. A liça d'um torneio, um campo de batalha , o fosso
d'um castello , a brecha d'uma torre, eram, por via de
regra, o honroso theatro onde se conferia a ordem dos
bravos e esforçados . No travamento da refrega, os va-
lorosos escudeiros ajoelhavam ao rei ou ao general que
os fazia cavalleiros, assentando-lhes na espádoa tres
pranchadas com a lamina da espada . Quando Bayard
conferiu o grau de cavalleiro a Francisco I, disse á
sua espada : «Ditosissima és por dar hoje a ordem da
cavallaria a tão galhardo e poderoso rei . A' fé, minha
boa espada, que sereis guardada como reliquia, e mais
que todas honorificada» . E depois , ajunta o historiador :
« deu dois saltos, e embainhou a espada » .
Apenas o novo cavalleiro era senhor das suas armas
todas, anhelava distinguir- se em alguma façanha . En-
tão se ia por montes e valles, em cata de perigos e
aventuras ; atravessava seculares florestas , vastos matta-
gaes, e solidões profundas . Ao entardecer, acercava -se
d'algum castello , cujas torres solitarias enxergava ; ahi
se lhe afigurava achar azo de sahir a cabo com algum
famoso feito . Já, descida a viseira, se ia encommen-
dando á dama dos seus pensamentos, quando estrugia
o som de busina . Nos adarves do castello estava ao
alto um morrião, refulgente insignia da morada d'um
castellão hospedeiro . Baixavam as pontes levadiças, e
o aventuroso viajante entrava n'aquelle ermo recinto .
266 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Se queria não ser conhecido , acobertava com uma


gualdrapa o escudo, ou com um verde -véo, ou um
tecido mais fino que a flôr do liz . Matronas e donzellas
eram todas afan em desarmal- o , em dar-lhe ricas ves-
tes , em servir -lhe generosos vinhos em taças de crystal .
Algumas vezes encontrava o hospede jubiloso : « O se-
nhor Amanieu dos Escas, erguendo-se da mesa, e sen-
tado ao pé d'um fogão, como quer que fosse inverno ,
em sala bem atapetada e forrada de esteiras, rodeado
de seus escudeiros , praticava com elles ácerca de ar-
mas e amores ; por quanto , em seu solar, até os infimos
varletes andavam enamorados » . ¹
As festanças castellãs eram sempre um tanto eni-
gmaticas, como o festim do licorne, o voto do pavão,
ou do faisão . Concorriam lá convivas não menos mys-
teriosos, como os cavalleiros do Cysne, do Escudo-
branco, da Lança d'ouro, do Silencio, guerreiros só
conhecidos pelos emblemas dos escudos , e pelas pe-
nitencias a que se haviam sujeitado . 2
Trovadores exornados com pennas de pavão , finda
a festa, entravam na sala e cantavam trovas de amor :

Armas, amores , e gôso,


Ardimento, e mocidade,
Desejo, saudade, e esp'rança,
Continencia, e modo honroso,
Olhar terno, e amoroso
Tudo vem n'esta folgança ;
Vesti galas, venham todos
N'este bom dia de maio
Celebrar grande festança,
Em S. Diniz pelo rei ,
Que do rei as festas são ;
I-vos lá a batalhar,
Tereis honra e galardão.

O estatuto das armas cavalleirosas era

" Ruido no campo e em casa alegria. "


Bruit es chants, et joie à l'ostel.

1 Sainte-Palaye.
2 Hist. do Marechal de Boucicault.
PARTE QUARTA LIVRO QUINTO 267

O cavalleiro, porém, nem sempre topava festanças


no castello : algumas vezes achava uma dolorida dama
gemente em ferros d'algum ciumento : O galhardo
moço, nobre, cortez, e ardido, a quem se negára hos-
pedagem, tresnoitava ao pé da barbacan, d'onde ouvia
o suspirar d'alguma Gabriella, que appellidava em vão
o valoroso Coucy. O cavalleiro, tão terno como bravo,
jurava pela sua « durandal » e seu aquilão, fiel espada
e rapido corcel, reptar a singular combate o reféce que
punha a tractos a formosura contra as leis da honra e
cavallaria . Se o recebiam n'esses sombrios solares,
todo o esforço de animo lhe era necessario . Silenciosos
varletes , de olhares ferozes, o introduziam atravez de
longas arcadas quasi escuras na solitaria camara que
The destinavam . Era algum torreão , onde se guardava
tradição d'alguma famosa lenda, chamado camara do
rei Ricardo, ou da dama das sete torres . O tecto estava
pintado de velhos brazões , e os muros cobertos de
tapeçarias com grandes personagens, que pareciam
seguir com os olhos o cavalleiro , e que serviam de
esconder as portas falsas . A meia noite ouvia- se um
leve rumor , moviam- se os razes , apagava- se a lampada
do paladino , um esquife apparecia ao pé do seu leito .
Lança e clava eram inuteis contra os mortos ; o ca-
valleiro recorria aos votos da peregrinação . Salvo por
divino favor, lá se ia consultar o eremita do rochedo
que lhe dizia : « Ainda que tivesses tantos dominios
como o rei Alexandre, e sabedoria como Salomão , e
bravura como o intrepido Heitor de Troya, bastaria o
1
orgulho, se elle imperasse em ti, para tudo aniquilar » . ¹
O bom cavalleiro por esta resposta comprehendia
que as suas visões eram castigo d'algum peccado , e
cuidava em tornar-se sem temor nem mancha .
Depois, cavalgando , levava a cabo com cem botes
de lança todas essas aventuras cantadas por nossos
poetas e recordadas em nossas chronicas . Livrava
princezas encerradas em cavernas, punia descridos ,

1 Sainte-Palaye. ·
268 O GENIO DO CHRISTIANISMO

soccorria orphãos e viuvas , e defendia - se, a um tempo ,


das perfidias dos anãos e da força dos gigantes . Con-
servador dos costumes , como protector dos fracos,
quando passava diante do castello d'alguma dama de
má nomeada, traçava no portão uma nota de infamia. 1
Se, pelo contrario , a castellã era senhora de boa feição
e virtudes, dizia-lhe : « Minha boa amiga, ou minha boa
dama, ou donzella , rogo a Deus que por tal bem e
por tal honra elle se aprasa conservar-vos no numero
das boas, pelo que muito deveis ser honorificada e lou-
vada» .
A excesso de virtude , admiravel e detestavel nos
primeiros romanos, chegava algumas vezes a honra
d'estes cavalleiros . Quando a rainha Margarida, mu-
lher de S. Luiz , soube em Damietta, onde estava a
ponto de parto, a derrota do exercito christão e capti-
veiro de seu esposo, « fez vasiar a sua camara, ( diz
Joinville) excepto o cavalleiro (um cavalleiro de oitenta
annos de idade) , e ajoelhando - se ante elle, lhe requereu
uma graça, e o cavalleiro por juramento lhe deferiu .
Disse-lhe ella : Eu vos rogo pela fé com que me heis
edificado, que se os sarracenos apresarem esta cidade,
vós me decapitareis antes que elles me captivem . E o
cavalleiro respondeu : Ficae segura de que eu vol-o
farei mui de vontade, porque de mim para mim era
tenção feita matar- vos, antes que elles nos captivas-
sem » . 2
As façanhas particulares eram a escala por onde
o cavalleiro subia ao fastigio da gloria. Avisado pelos
menestreis dos torneios que se preparavam no gentil
paiz da França, para logo confluia ao congresso dos
valentes . Já as liças estão dispostas ; já as damas, pos-
tas em tablados á guisa de torreões , procuram com
seus olhares os guerreiros adornados de suas côres .
Os trovadores entram cantando :

1 Du Gange, Gloss.
2 Joinville, ediç . de Capperonnier, pag. 84.
PARTE QUARTA LIVRO QUINTO 269

D'amor paladinos, olhae meigamente,


Vereis nas tribunas os anjos do eden ,
Lidae com bravura, o rosto risonho ,
Honrados sereis, e queridos tambem.

Subito se ergue um brado : Gloria aos filhos dos


valentes ! Sôam as trombetas, arrasam -se as barreiras .
Cem cavalleiros rompem das extremas da liça , e se
embatem no centro . Vôam em rachas as lanças ; fronte
a fronte, travam-se os cavallos , e vão a terra . Ditoso
o heroe, que, poupando os golpes, como leal cavalleiro ,
sómente feriu o adversario da cintura até á espádoa,
e o derrubou sem feril-o . Todos os corações são d'elle ,
todas as damas querem enviar-lhe novos timbres para
adornar as armas . Entretanto , os arautos clamam ao
cavalleiro : Lembra- te cujo filho és, e não degeneres.
Lides, luctas, esgrimas, batalhas em grande, realçam
a revézes o esforço , a valentia e dexteridade dos ca-
valleiros . Mil gritos em assonancia com o estridor das
armas sobem aos céos . Cada dama incita o seu ca-
valleiro, e lhe atira um bracelete, um annel das ma-
deixas, uma charpa . Um Sargine , até então arredado
da scena da gloria, mas transformado pelo amor em
heroe ; um bravo desconhecido, que combateu desar-
mado e sem adornos, e que só por camisa sangrenta
se distingue, são proclamados vencedores do torneio,
e recebem beijos de suas damas . Uma voz exclama :
«Amor das damas, morte dos heroes, louvor e galardão
aos cavalleiros !»
N'essas festas brilhava a bravura e cortezania de La
Trémouille, de Boucicault, de Bayard , cujas sublima-
das façanhas tornam provaveis as emprezas dos Perce-
forest, Lancelot e Gandifer. Caro ficava o ousío dos
cavalleiros estrangeiros que se atreviam aos francezes .
Durante as guerras do reinado de Carlos VI, Sampi e
Boucicault sustentaram sósinhos os desafios a que os
vencedores os reptavam de toda a parte ; e, alliando ao

1 Sainte-Palaye, Hist. dos tres cavalleiros e da camisa.


270 O GENIO DO CHRISTIANISMO

valor a generosidade, restituiam armas e cavallos aos


temerarios que os haviam provocado a campo cerrado .
O rei queria estorvar que os seus cavalleiros ergues-
sem a luva, e despicassem insultos particulares . Elles ,
porém, disseram : « Senhor, a honra de França é tão
naturalmente cara a seus filhos , que, se o proprio diabo
sahisse do inferno para um desafio de esforço , haveria
ahi quem lhe sahisse».
«E tambem por esse tempo , diz um historiador, es-
tavam ahi cavalleiros de Hespanha e Portugal, e tres
dos portuguezes, de grande renome em cavallaria, por
não sei que desatinada empreza, entraram em campo
contra tres cavalleiros da França ; porém, em santa ver-
dade, estes iriam menos rapidos cavalgando da porta
de S. Martinho á porta de Santo Antonio, do que o
fôram em desbaratar os portuguezes » . 1
Os unicos campeões azados para se affrontarem com
os cavalleiros da França eram os de Inglaterra . E estes
tinham de seu lado a boa fortuna, porque nós nos'
espedaçavamos então uns aos outros . A batalha de
Poitiers, tão funesta á França, ainda foi decorosa á
cavallaria. O principe Negro, que não quiz jámais, por
acatamento, assentar- se á mesa do rei João , seu prisio-
neiro, lhe diz : « De mim vos digo que haveis gran mo-
tivo de aprazimento, posto que a jornada vos não désse
pela vontade, porque hoje grangeastes alto renome por
façanhas, que nem os mais esforçados arcaram ahi
comvosco ; senhor caro, não vol - o digo por louvami-
nhas, porque todos os de nossa parte, que uns e outros
viram , são em boa consciencia conformes em vos dar
o'premio e a coroa» .
O cavalleiro de Ribaumont, n'uma refrega travada
á porta de Calais , duas vezes humilhou a seus pés
Eduardo III, rei de Inglaterra ; mas o monarcha , le-
vantando- se sempre, obrigou alfim Ribaumont a resti-
tuir-the a espada. Os inglezes , vencedores , entraram
na cidade com seus prisioneiros . Eduardo , e mais o

1 Jornal de Paris em tempo de Carlos vi e vii,


PARTE QUARTA www.dom.com LIVRO QUINTO 271

principe de Galles, deu um lauto banquete aos cavallei-


ros francezes , e voltando- se para Ribaumont lhe disse :
«Vós sois o mais esforçado cavalleiro que eu vi no
mundo atacar seus inimigos » . E o rei , tirando a corôa
(a qual era boa e rica) da cabeça , a pôz na de mon-
senhor Eustaquio, e disse : « Monsenhor Eustaquio ,
dou-vos esta coroa como ao melhor pelejador da jor-
nada. Eu sei que sois galan e folgazão , e que de bom .
grado vos ides entre damas e donzellas : onde quer que
vades, dizei que vol-a dei eu . Estaes livre ; ide -vos
1
ámanhã , se assim vos apraz» .
Joanna d'Arc reanimou o espírito cavalleiroso em
França : presume-se que o braço d'ella andava armado
com a celebrada Joyeuse (titulo de espada) ´de Carlos
Magno, que ella achára na Igreja de Santa Catharina
de Fierbois, em Touraine .
Se a fortuna por vezes nos desamparou , a coragem
nunca. Henrique IV . na batalha d'Ivry bradava aos
seus que fraqueavam: « Voltae o rosto, senão para pe-
lejar, ao menos para me verdes morrer» . Os nossos
guerreiros poderam sempre dizer na derrota o que
pelo genio da nação foi inspirado ao ultimo cavalleiro
francez em Pavia : Perdeu-se tudo excepto a honra.
Mereciam assaz serem honradas tantas virtudes e
proezas . Se o heroe expirava no chão da patria , a ca-
vallaria lutuosa celebrava -lhe pomposos funeraes ; se ,
pelo contrario, succumbia em longes terras, e não lhe
ficava irmão d'armas ou escudeiro que lhe cuidasse na
sepultura, o céo lhe enviava para sepultal -o alguns dos
solitarios que habitavam então no deserto, e que ,

S'ul Libano spesso , e su'l Carmelo.


In æria magion fan dimoranza.

Isto inspirou ao Tasso o episodio de Suenon . Quo-


tidianamente um anachoreta da Thebaida , ou um ere-
mita do Libano recolhia os restos d'algum cavalleiro
espostejado pelos infieis : o cantor de Solyma não faz
mais que emprestar á verdade a linguagem das musas.

1 Froissart.
272 O GENIO DO CHRISTIANISMO

«De repente, d'esse formoso globo , ou d'esse sol da


noite, vi descer um raio que, estirando- se como um fio
d'ouro, veio tocar corpo do heroe …………..
«Não estava o guerreiro prostrado em terra, que
assim como outr'ora todos os seus anhelos tendiam
para as regiões celestiaes, agora tem posto no céo o
rosto, como logar de sua unica esperança . Tinha cer-
rada a mão direita, e o braço retrahido ; empunhava
ò ferro, na postura de quem vae ferir ; a outra mão , com
piedoso e humilde geito, jazia sobre o seio , e parecia
pedir a Deus perdão......
« Para logo milagre novo me enleva as vistas .
«No sitio em que meu senhor jazia, ergueu - se subito
um grande sepulchro, que, surgindo do seio da terra,
abraçou o corpo do moço principe, è se fechou sobre
elle ... Uma curta inscripção relembra ao viajeiro o
nome e virtudes do heroe . Eu não podia desfitar os
olhos d'este moimento, contemplando alternadamente
as lettras e o marmore funeral .
« Aqui, diz o ancião, repousará o corpo de teu chefe
a par de seus fieis amigos, emquanto suas ditosas al-
mas gosarão amando-se no céo, uma gloria e felicidade
eternal» . 1
O cavalleiro, porém, que déra na mocidade esses
nós heroicos , que nem a morte desata, não temia mor-
rer sósinho nos desertos : á mingoa de milagres do céo ,
lá o seguiam os da amizade . Constantemente acompa-
nhado de seu irmão de armas , tinha n'elle mãos guer-
reiras, que lhe cavassem a cova, e braço vingador.
Confirmavam - se allianças com tremendos juramentos :
ás vezes os dois amigos se extrahiam sangue e o mis-
turavam na mesma taça , e caucionavam a sua mutua
fé com um coração de ouro , uma cadêa , ou annel .
Todavia, o amor, tão caro aos cavalleiros , n'essas
occasiões , era secundario em suas almas, e soccorria- se
o amigo primeiro que a enamorada.
N'um caso, porém, se desdavam estes nós : era em
inimizade de nações . Dois irmãos d'armas de nações

1 Gerusal. liber., canto vili,


PARTE QUARTA LIVRO QUINTO 273

diversas deixavam de o ser, logo que as nações o não


fòssem. Hue de Carvalay, cavalleiro inglez, fôra amigo.
de Bertrand Du Guesclin : logo que o principe Negro
declarou guerra a Henrique, rei de Castella, Hue foi
obrigado a separar-se de Bertrand; veio dizer-lhe adeus,
e fallou d'est'arte :
« Gentil senhor, força nos é separarmo-nos . Boa
companhia nos fizemos , e nunca entre nós houve meu
e teu; por certo tenho que mais hei despendido que
vós, e por isso façamos contas . Sim, lhe redargue
Bertrand, isso é por fallar ; nunca em taes contas pen-
sei ... Justo é o que praticaes : a razão vos manda seguir
vosso senhor . Cumpre que assim o faça um homem
de porte: boa amizade nos fez amigos, e amigos fica-
remos n'este adeus, que assaz me peza» . Então Ber-
trand o beijou , e o mesmo os companheiros ; foi de
gran dôr aquelle apartarem- se . 1
Tal desinteresse dos cavalleiros, tal elevação d'alma,
que mereceu a alguns o glorioso epitheto de sem man-
cha, coroará o quadro das suas christãs virtudes . Este
mesmo Du Guesclin, honra e flor da cavallaria, sendo
prisioneiro do principe Negro, igualou a magnanimi-
dade de Porus, entre as mãos de Alexandre . Conce-
dera-lhe o principe que elle alvitrasse o preço do seu
resgate : Bertrand deu-lhe um valor excessivo . « Onde
ireis buscar tanto dinheiro ?» diz o espantado heroe
inglez . « A casa dos meus amigos, respondeu o bravo
condestavel ; não ha fiadeira em França que não fie uma
rocada para me tirar de vosso poder » .
A rainha de Inglaterra, abalada pelas virtudes de
Du Guesclin, foi a primeira a dar uma grande quantia
para apressar a liberdade do mais temivel inimigo da
sua patria. « Ah, senhora, exclama o cavalleiro bretão,
lançando - se-lhe aos pés, até aqui me tinha em conta
do mais feio homem da França ; mas agora entro a
ajuizar melhor de mim, pois que taes donativos me
fazem as damas !»

1 Vida de Bertrand Du Guesclin.


VOL . II 18
LIVRO SEXTO

Serviços prestados á sociedade pelo clero


e religião christã em geral

CAPITULO I

Immenso bemfazer do christianismo ¹

Conhecer vagamente os beneficios do christianismo,


seria nada conhecer. A circumstanciada narração d'es-
ses beneficios, o engenho com que a religião varía os
seus dons, derrama seus soccorros, e distribue os seus
thesouros , remedios e luzes , isto é que muito importa
saber. A religião provê a tudo, tudo consola, sentimen-
tos melindrosos , máguas do amor proprio, e fraquezas
até. Tamanhos lances de caridade, tantas fundações
admiraveis, tão inconcebiveis sacrificios temos visto ,
desde alguns annos que nos damos a este exame, que
para nós é como certo que, para expiar todos os crimes
dos homens, basta este só merecimento do christianis-
mo. Celestial culto, que nos obriga a amar a triste hu-
manidade que o calumnía .
O que vamos citar pouco é , e muitos volumes po-
déramos encher com a materia que rejeitamos ; nem
seguros estamos de haver preferido o melhor; mas,
sendo impossivel dizer tudo , e julgar o mais relevante
em virtude entre tantas obras caritativas, fomos reco-
lhendo quasi á ventura o que damos aqui .
Para formar-se ideia do immenso bemfazer da reli-

1 Vejam , a este respeito. Helyot, Hist. das ord. milit. e relig.;


Hermant, Estab. das ord . relig.; Bonnani, Catal. omn. ord. relig.;
Saint- Foix, Vida de S. V. de Paula ; Vida dos Padres do deserto ;
S. Basilio, oper.; Lobineau, Hist. da Bretanha.
276 O GENIO DO CHRISTIANISMO

gião, deve representar- se a christandade como uma


vasta republica, em que tudo o que referimos d'uma
extremidade se faz simultaneamente . na outra . Pelo
que fallando de hospitaes, missões, collegios de França,
deve-se entender o mesmo dos hospitaes, missões e
collegios de Italia, Hespanha, Allemanha, Russia, In-
glaterra, America, Africa e Asia; figurem - se duzentos
milhões , pelo menos, praticando as mesmas virtudes
e sacrificios ; e observe -se que ha mil e oitocentos annos
que estas virtudes existem, e que os mesmos actos de
caridade, se repetem : agora calculae, se podeis , o nu-
mero de individuos soccorridos e illuminados pelo
christianismo, em tantas nações, e por espaço de tão
longa serie de seculos !

CAPITULO II

Hospitaes

A caridade, virtude absolutamente christã e desco-


nhecida dos antigos , nasceu com Jesus Christo ; com
esta virtude se distinguiu elle do restante dos mortaes ;
foi-lhe como o sello renovador da natureza humana.
Pela caridade, com o exemplo do Divino Mestre, foi que
os apostolos tão de prompto ganharam os corações,
e santamente seduziram os homens.
Os primitivos fieis, instruidos n'esta grande virtude,
punham em commum alguns valores para soccorrerem
necessitados, enfermos e viajantes ; d'est'arte principia-
ram os hospitaes . A Igreja, já opulenta, fundou esta-
belecimentos dignos d'ella para nosso remedio . Desde
então não houve raias para as obras misericordiosas ;
parece que se déra um derramamento de caridade por
sobre os miseraveis, desamparados até então pelos fe-
lizes do mundo . E ' de crêr que perguntem como se
haviam os antigos sem hospitaes . Esses, para se des-
affrontarem dos pobres e dos infelizes, tinham dois
expedientes, que os christãos não têm : o infanticidio
e a escravidão .
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 277

As enfermarias ou leprosarias de S. Lazaro presu-


me-se que fôram no Oriente os primeiros asylos . N'estes
entravam os leprosos, que repellidos dos seus, depe-
reciam horrorosos a toda a gente, pelos bêcos immun-
dos das cidades . Serviam esses hospitaes os religiosos
da regra de S. Basilio .
Já dissemos alguma coisa ácerca dos trinitarios ou
padres da Redempção dos captivos . S. Pedro Nolasco,
em Hespanha, imitou S. João da Matta , em França .
Não podem lèr-se friamente as austeras regras d'essas
ordens. Segundo o seu primeiro instituto, os trinitarios.
só podiam comer legumes, e lacticinios ! E tamanhos
rigores para quê ? Porque d'essas privações maiores,
maiores bens ficavam para prodigalisar aos barbaros ;
porque, se era forçoso um holocausto á cólera divina,
esperavam que o Omnipotente aceitasse as expiações
dos religiosos a troco das dôres de que elles livravam
os captivos .
A ordem da Mercê deu muitos santos . S. Pedro Pas-
cal, bispo de Jaen, depois de consumir os seus rendi-
mentos em resgate de captivos e esmolas aos indigen-
tes, passou aos turcos, onde foi posto a ferros . O clero
e povo da sua igreja enviaram-lhe uma quantia para
seu resgate . O santo, diz Helyot, recebeu-a com muito
agradecimento , e resgatou com ella algumas mulheres
e meninos, cuja fraqueza lhe fazia temer que aban-
donassem a religião christã , e ficou sempre em poder
d'esses barbaros, que lhe deram a corôa do martyrio
em 1300.
Uma congregação de mulheres se formou tambem
n'esta ordem, as quaes se dedicavam a soccorrer mu-
lheres estrangeiras . Uma das fundadoras d'esta ordem-
terceira foi uma illustre senhora de Barcelona, que deu
aos desgraçados os seus haveres : perdeu - se o seu ap-
pellido : hoje apenas é conhecida por Maria do SOCCORRO,
nome que os pobres lhe tinham dado .
A ordem das religiosas penitentes, em Allemanha
e França, tirava do crime deploraveis moças expostas
a morrerem na indigencia, depois de viverem na liber-
tinagem . Era divino vêr a religião, vencendo com ex-
278 O GENIO DO CHRISTIANISMO

cesso de caridade os seus dissabores , exigir até provas


do vicio, com o receio de que as suas instituições
fôssem illudidas, e que a innocencia, sob capa d'arre-
pendimento, usurpasse um refugio que não fôra fun-
dado para ella . «Vós sabeis, diz Jehan Simon , bispo
de Paris, nas constituições d'esta ordem, que algumas
nos buscaram ainda virgens ... instigadas pelos seus,
que se queriam desfazer d'ellas ; ordenamos que, se
alguma quizer entrar em vossa congregação , seja in-
terrogada ... etc. »
Os mais suaves e misericordiosos nomes serviam
de cobrir os passados erros d'essas peccadoras . Cha-
mavam-as filhas do bom pastor, e filhas de Magdalena,
cóm allusão á sua volta ao aprisco , e ao perdão que
as esperava. Faziam apenas votos simples : havia até
solicitude em casal-as, quando ellas o desejavam, com
um dotezinho . Trajavam de branco, para que tudo lhe
suggerisse ideias de candura . Em algumas cidades,
coroavam-as, cantando : Veni, sponsa Christi . « Vem ,
esposa de Christo » . Eram patheticos estes contrastes,
e delicadeza dignissima d'uma religião que sabe soc-
correr sem humilhar, e corrigir as fraquezas do cora-
ção humano, arrancando-o aos vicios . No hospital do
Espirito Santo, em Romá, é defeso seguir as pessoas
que depõem os orphãos á porta do « Pae commum » .
Ha ahi na sociedade infelizes inapercebidos, porque,
oriundos de paes honestos , mas indigentes , são obri-
gados a guardar o exterior de remediados nas priva-
ções da penuria : é a mais cruel das situações essa ;
coração é por todos os lados alanceado , e por pouco
briosa que a alma seja, a vida deve ser um contínuo
flagello . O que será das desgraçadas meninas de fa-
milia assim ? Irão sujeitar-se aos desprezos de paren-
tes abastados , ou abraçarão officios que répugnam
aos prejuizos sociaes e á sua natural delicadeza ? A
religião remediou isto. Nossa Senhora da Misericordia
franqueia a estas sensiveis mulheres o seu piedoso e
venerando recolhimento . Aqui ha annos não ousaria-
mos fallar de S. Cyro, porque então era corrente que
donzellas nobres e pobres não mereciam asylo nem
piedade .
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 279

Por differentes vezes chama Deus a si os que o


servem. O capitão Caraffa solicitava em Napoles a re-
compensa dos serviços militares que fizera á corôa de
Hespanha . Um dia , indo elle ao paço, entrou casual-
mente na igreja d'um mosteiro . Cantava uma joven
religiosa; a doçura da sua voz commoveu - o até ás la-
grimas . O serviço de Deus pareceu-lhe que deveria
ser delicioso , pois que dava taes harmonias aos que
The consagravam seus dias . Volta logo a sua casa ,
lança ao lume os seus attestados de serviços , corta os
cabellos, abraça a vida monastica, e funda a ordem
dos operarios piedosos, que particularmente se occupa
do allivio das enfermidades humanas . Esta ordem au-
gmentou pouco no principio, porque morreram todos
os religiosos que assistiram aos pestiferos na epidemia.
de Napoles , excepto dois frades e tres clerigos .
Pedro de Betancourt, irmão da ordem seraphica,
estando em Guatemala, cidade e provincia da America
hespanhola, condoeu-se da sorte dos escravos que não
tinham refugio algum durante as suas enfermidades .
Obtendo de esmola a dadiva d'uma mesquinha casa,
onde elle d'antes abrira escola para os pobres , estabe-
leceu elle mesmo uma especie d'enfermaria, que co-
briu de colmo , com o intento de lá recolher os escra-
vos desabrigados . Logo depois encontrou uma negra
aleijada e desamparada do senhor . O santo frade tomou
ás costas a escrava, e todo ovante do seu fardo , levou - o
a esta má cabana, que elle denominava o seu hospital .
Andou pela cidade pedindo esmola para a negra . Pouco
tempo sobreviveu ellá a tamanha caridade ; mas, ao
verter as derradeiras lagrimas, prometteu ao seu en-
fermeiro as recompensas celestes, que elle por certo
alcançou .
Muitos abastados, enternecidos por suas virtudes ,
deram dinheiro a Betancourt , que viu a choça da negra
transformar-se em hospital magnifico . Este religioso
morreu novo ; o amor da humanidade consumira-lhe
o coração . Logo que a nova do seu passamento se
espalhou, pobres e escravos precipitaram-se no hospi-
tal para vêrem ainda uma vez o seu bemfeitor . Beija-
280 O GENIO DO CHRISTIANISMO ン

vam -lhe os pés , e cortavam bocadinhos do seu habito ;


laceral-o- iam para levarem reliquias, se não fôsse guar-
dado o seu esquife por sentinellas : julgar- se-ia que era
o cadaver d'um tyranno que se defendia do rancor das
turbas, e era úm pobre monge que se guardava do seu
amor.
A ordem de frei Betancourt propagou depois d'elle ;
toda a America se cobriu de seus hospitaes , servidos
por frades , que houveram nome de Bethlemitas . Era
esta a formula dos seus votos : « Eu , irmão ...... faço voto
de pobreza, castidade e hospitalidade, e obrigo- me a
servir os pobres convalescentes, ainda que elles sejam
1
infieis, e atacados de contagião» . ¹
Se a religião nos ha esperado no tôpo das serranias ,
tambem ha descido ás entranhas da terra, ' longe da
luz do dia, para ahi buscar os desgraçados . Os irmãos
bethlemitas têm especies de hospitaes até na profun-
deza das minas do Perú e do Mexico . Esforçou-se o
christianismo por concertar no Novo-mundo os ma-
leficios que lá fizeram os homens, e dos quaes tão
injustamente lhe attribuiram a elle a causa. O doutor
Robertson, inglez protestante , e até ministro presby-
teriano, justificou n'este ponto completamente a Igreja
romana, dizendo : « Com maior injustiça ainda muitos
escriptores assacaram ao espirito d'intolerancia da re-
ligião romana a destruição dos americanos, e arguiram
os ecclesiasticos hespanhoes d'excitarem seus compa-
triotas a matarem esses povos innocentes como idóla-
tras e inimigos de Deus . Os primeiros missionarios ,
com quanto simples e illitteratos, eram homens piedo-
sos ; esposaram de bom animo a causa dos indios, e
defenderam este povo contra as calumnias com que
os conquistadores o ennegreciam, afigurando- o incapaz
de adaptar- se jámais á vida social, e comprehender os
principios da religião, por ser uma especie imperfeita
de homens que a natureza marcára com o sêllo da ser-
vidão . O que eu disse do constante zêlo dos missiona-

1 Helyot, tom. I. pag. 366.


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 281

rios hespanhoes em defeza e guarda do rebanho entre-


gue aos seus cuidados, mostra- os em perspectiva digna
de suas funcções : fôram ministros de paz para os
indios, e forcejaram sempre em arrancar a virga ferrea
das mãos dos seus oppressores . Os americanos devem
á poderosa intervenção dos missionarios os regimens
que tendiam a suavisar a sua dura condição . Ainda
agora os indios consideram os ecclesiasticos, seculares
ou regulares , os seus naturaes defensores, e a elles re-
correm sempre para repellirem os vexames e violen-
1
cias a que estão sujeitos ainda » . ¹
O trecho é formal e sobejamente decisivo , porque,
antes d'assim concluir, o ministro protestante allega as
provas que auctorisam à sua opinião . Cita os arrazoa-
dos dominicanos em pró dos caraïbas, porque não era
só Las Casas que os defendia : era toda a ordem, e o
restante dos ecclesiasticos hespanhoes . O doutor inglez
addiciona a isto as bullas pontificias, as ordenanças dos
reis concedidas a pedido do clero, para adoçar a sorte.
dos americanos, e enfrear a crueza dos colonos .
Por derradeiro, o silencio que a philosophia ha
guardado a respeito d'esta passagem de Robertson é
muito para notar-se . Cita- se tudo d'este auctor, menos
o facto que elucida a conquista da America, e que
desfaz uma das atrocissimas calumnias, que pesam na
responsabilidade da historia . Os sophistas quizeram
pòr a cargo da religião um crime que não só a religião
não perpetrou , mas que lhe foi objecto de horror :
assim é que os tyrannos têm accusado muitas vezes
as suas victimas . 2

1 Hist. da America, tom. 1v, liv. vii , pag 142 e 143.


2 Em Robertson, Hist. da America, liv. 11 e v. póde vêr o lei-
tor extensamente como se estremou o clero hespanhol na defeza dos
americanos, contra os maus tratos e tyrannia dos colonos hespanhoes:
e. nas Investigações sobre a Irlanda , por Milton , e Viagem de A.
Young à Irlanda, as causas occasionaes que motivaram as carnifici-
nas da Irlanda em 1641 , falsamente attribuidas á religião catholica,
282 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO III

Hospital-geral (Hotel -dieu), irmãs do habito


pardo (Sœurs grises)

Chegados somos ao ponto em que a religião por


um só feito e sob um só aspecto nos quiz mostrar que
não ha soffrimentos humanos que ella não arroste ,
nem miseria invencivel ao seu amor.
A fundação do Hospital-geral data de S. Landry,
oitavo bispo de Paris . A edificação foi successivamente
accrescentada pelo cabido de Nossa Senhora, proprie-
tario do hospital, por S. Luiz, pelo chanceller Duprat
e Henrique IV; de theor que póde dizer- se que este
refugio de todos os males se ia ampliando á maneira
que os males se multiplicavam, e que a caridade crescia
por igual com as dôres .
O hospital, no principio, era servido por frades e
freiras da ordem de Santo Agostinho ; mas ha muito
que só ficaram as freiras . « O cardeal de Vitry, diz
Helyot, quiz sem duvida fallar das religiosas do Hos-
pital-geral, quando disse que as havia soffrendo com
prazer e sem repugnancia o aspecto esqualido de todas
as miserias humanas, e que, no seu entender, nenhuma
penitencia podia equiparar-se a esta especie de mar-
tyrio » .
Continúa o citado auctor : «Ninguem ha que, vendo
as religiosas do hospital, não só curando, lavando os
enfermos , e fazendo -lhes as camas, mas ainda, no co-
ração do inverno, quebrar o gêlo do regato que afflue
pelo meio do hospital, e entrar n'elle até á cintura
para lavar os pannos cheios de immundicias, ninguem
ha que as não considere santas victimas, que, dema-
siando -se em caridade e amor do proximo , correm
voluntarias á morte, que, para assim dizer, affrontam
no fóco de fedor e pestilencia , causado pelo grande
numero de doentes » .
Não duvidamos das virtudes que a philosophia ins-
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 283

pira ; mas o povo ha de entendel-as melhor quando a


philosophia nos provar dedicações analogas . E todavia
a singeleza na pintura de Helyot longe está de dar uma
completa ideia dos sacrificios d'essas mulheres christãs ;
este historiador não menciona a desistencia dos pra-
zeres da vida, nem a perda da mocidade e formosura,
nem a renuncia d'uma familia e esposo, e esperança
de posteridade ; não falla dos sacrificios do coração,
dos mais dôces sentimentos d'alma abafados , excepto
a piedade, que, no acervo de tantas dôres , é mais um
tormento .
Ainda assim , nós vimos doentes , nos derradeiros
transes , solevantarem-se nas camas, e, com expirante
vigor, injuriarem essas angelicas mulheres que os ser-
viam . E porque ? porque eram christãs . Desgraçados !
quem vos serviria, se não fossem as christãs ! Outras,
á maneira d'estas, merecedoras d'altares, foram publi-
camente açoutadas ( não dissimularemos a palavra) .
Depois de similhante recompensa , quem quereria voltar
ao pé dos miseraveis ? Quem ? ellas ! essas mulheres !
as mesmas ! Correram ao primeiro appello, ou antes,
nunca abandonaram o seu posto . Eis aqui reunidas
natureza humana religiosa, e natureza humana impia :
julgae-as .
A irmã do habito pardo (sœur grise) não restringia
exclusivamente suas virtudes, como as religiosas do
Hospital-geral , ao interior d'um logar pestilencial :
derramava-as no exterior como um perfume nos cam-
pos, inda em cata do agricultor enfermo na sua choça .
Quão sensibilisador era vêr uma mulher nova , bella
é piedosa, exercer, em nome de Deus , junto do homem
rustico, a profissão do medico ! Ultimamente nos mos-
traram ao pé d'um moinho debaixo dos salgueiros , em
um prado, uma casinha, onde tres d'estas religiosas
tinham morado . D'este asylo campestre é que ellas
sahiam a todas as horas , quer de dia, quer de noite,
em soccorro dos lavradores . Observava-se n'estas ,
como em todas as religiosas, um ar de limpeza e con-
tentamento , que denotavam corpo e alma igualmente
puros de mácula : eram todas meiguice, mas com bas-
284 O GENIO DO CHRISTIANISMO

tante firmeza para encarar os males e se fazerem obe-


decer . Primavam em endireitar as fracturas proce-
dentes, de quédas , ou d'outros accidentes ordinarios
na lavoura. O que porém excedia todo o preço era
ter sempre a religiosa uma palavra de Deus que dizer
ao ouvido do alimentador da patria : mais divinas fór-
mas para insinuar- se no coração humano jámais as
tomará a moral .
Ao passo que estas hospitalarias assombravam com
sua caridade aquelles mesmos que estavam afeitos a
tão sublimes actos, outras maravilhas se davam em
Paris : senhoras distinctas se desterram da cidade e da
côrte para o Canadá. Iriam grangear riquezas, reparar
haveres arruinados, cimentar uma vasta propriedade ?
Outro fito era o d'ellas : iam ao seio dos sertões e das
guerras sangrentas fundar hospitaes para selvagens
inimigos .
Na Europa, salvamos com a artilheria em signal
de jubilo para annunciar a destruição de muitos mi-
lhares de homens : mas nos estabelecimentos novos e
longinquos, onde se está mais perto da desgraça e da
natureza, exulta- se unicamente com o que de feito
merece as bençãos , isto é, com actos de bemfazer e
humanidade . Tres pobres hospitalarias, conduzidas
por madame de La Peltrie, saltam nas praias cana-
dezas, e eis ahi toda a colonia alvoroçada de alegria .
«O dia da chegada de pessoas tão ardentemente dese-
jadas , diz Charlevoix, foi para toda a cidade um dia
de festa ; cessaram os trabalhos, e fecharam -se as lojas .
O governador recebeu as heroinas na praia á frente da
tropa em armas, e ao ribombo da artilheria ; feitos os
primeiros cumprimentos, conduziu-as, entre acclama-
ções populares, á igreja , onde foi cantado um Te-
Deum ...
«Estas santas donzellas, e a conductora, quizera,
transportadas de prazer, beijar uma terra pela qual
ha tanto tempo suspiravam , para a regarem com seu
suor, e com seu sangue talvez . Os francezes mistura-
dos com os selvagens, os infieis embaralhados com os
christãos, fôram incansaveis por muitos dias em mos-
Pilarinhopb gy

AS IRMÃS DA CARIDADE
PARTE QUARTA · LIVRO SEXTO 287

tras de alegria , e bemdisseram mil vezes Aquelle que


póde só inspirar tanta força e animo ás mais fracas
pessoas. No dia seguinte, as religiosas foram levadas
ás cabanas dos selvagens : sentiram novo transporte
d'alegria : a pobreza e a immundicia não as intimidou ;
espectaculo tão para lhes arrefecer o zêlo, aferventou-o
mais : logo alli se mostraram impacientissimas por en-
trarem no exercicio de suas funcções .
« Madame de La Peltrie, que nunca desejára ser
rica, e que de tão bom coração se empobrecera por
Jesus Christo, nada poupava na salvação das almas .
Levada de seu zêlo , cultivava a terra com as proprias
mãos para ter com que soccorrer os pobres neophytos .
Em poucos dias gastou o que tinha para seu uso , até
ficar reduzida a não ter com que vestir as creanças
que se lhe apresentavam, e toda a sua vida, que foi
assaz longa, resume-se n'um complexo das mais heroi-
cas acções da caridade » . 1
Ha, na historia antiga, alguma coisa tão pathetica,
e que faça verter lagrimas de ternura tão puras e
suaves ?

CAPITULO IV

Expostos, irmãs da caridade

RASGOS DE BENEFICENCIA

Bom é ouvir por um instante S. Justino, o philoso-


pho . Assim diz elle, na sua primeira Apologia ende-
reçada ao imperador :
« Reinando vós, engeitam- se as creancinhas . Alguem
toma conta d'esses meninos para os prostituir depois.
Por todas as nações se deparam creanças destinadas
aos misteres mais abominados, alimentadas como re-
banhos de gado , das quaes recebeis um tributo ; e to-

1 Hist. da Nova- França, liv. v, pag. 207, tom . 1 , in-folio,


288 O GENIO DO CHRISTIANISMO

davia os que abusam d'esses innocentinhos , além do


crime, que commettem contra Deus, podem casual-
mente abusar de seus proprios filhos ... Nós, os chris-
tãos , aversos a taes horrores, casamo-nos para crear
nossa prole, ou renunciamos ao casamento para viver-
mos castos» . 1
Ora ahi estão os hospitaes que o polytheismo fun- -
dava para orphãos ! O' veneravel Vicente de Paula.
onde estavas ? onde estavas , para dizer ás matronas
romanas o que disseste ás piedosas francezas que te
coadjuvaram : « Ora sus, senhoras , vêde se tambem que-
reis abandonar esses innocentinhos, dos quaes sois
mães, segundo a graça, depois que as mães , segundo
a natureza, os engeitaram» . Em vão, porém, buscamos
nos cultos idólatras o homem misericordioso .
O seculo perdoou a S. Vicente de Paula o christia-
nismo : viu - se chorar a philosophia com a sua historia .
E ' sabido que, primeiro pastor, depois escravo em Tu-
nes, veio a ser alfim padre illustre por saber e obras :
sabe-se que foi elle quem fundou o hospital dos ex-
postos, o dos velhos indigentes, o hospital dos forçados
em Marseille, o collegio dos padres da Missão , as con-
frarias de caridade nas parochias, as companhias de
senhoras para o serviço do Hospital-geral, as Irmãs da
Caridade, serventes d'enfermos , e por ultimo os reco-
lhimentos para aquelles que desejam adoptar um tra-
fico de vida, e não o poderam escolher ainda . Onde
vae a caridade buscar todas as suas instituições , toda
a sua previdencia ?
S. Vicente de Paula foi efficazmente coadjuvado por
M.eelle Legras, que , de harmonia com elle , estabeleceu
as Irmãs da Caridade . A ella incumbiu tambem a di-
recção do hospital do nome de Jesus, que, primeira-
mente fundado para quarenta pobres, foi depois a base
do Hospital-geral de Paris . Como emblema e recom-
pensa de uma vida toda dedicada aos mais duros ´tra-
elle Legras pediu que se hasteasse sobre a
balhos , M.el

1 S.Justino, Oper. 1742, pag. 60 e 61 .


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 289

sua campa, uma pequena cruz, com estas palavras :


Spes mea . Fez -se a sua vontade .
D'este modo, piedosas familias competiam , em nome
de Christo, no prazer da beneficencia . A consorte do
chanceller de França e M.me Fouquet eram da congre-
gação das Damas de Caridade . Cabia a cada uma
d'ellas um dia de instruir e exhortar doentes , e dizer-
lhes coisas necessarias á salvação d'um modo affectuoso
e familiar. Outras damas recebiam esmolas, outras
cuidavam da roupa, da mobilia dos pobres , etc. Diz
um auctor que mais de setecentos calvinistas entraram
no gremio da igreja romana, porque reconheceram a
verdade da doutrina nas producções d'uma caridade
tão ardente e amplificada . Santas damas de Miramion ,
de Chantal, de La Peltrie, de Lamoignon, pacificas fô-
ram as vossas obras ! Os pobres acompanharam - vos
os esquifes , arrancaram -os aos que os levavam, para
os pôrem a seus hombros ; eccoavam os gemidos d'elles
em vossos funeraes ; e mais parecia que todos os cora-
ções beneficos se tinham ido comvosco d'este mundo .
Rematemos com uma reflexão essencial este artigo
das instituições do christianismo em favor da huma-
1
nidade soffredora . ¹ Diz- se que sobre o monte de S.
Bernardo um ar fortissimo gasta o apparelho respira-
torio, e que a vida ahi não excede a dez annos ; pelo
que, o frade que se encerra no hospicio póde aproxi-
madamente calcular o numero de dias que viverá : todo
o seu lucro no ingrato serviço dos homens é conhecer
o instante da morte, occulto aos restantes homens .
Assegura-se que quasi todas as religiosas do Hospital-
geral têm habitualmente uma lenta febre que as con-
some, proveniente da corrompida atmosphera que res-
piram ; os religiosos que habitam as minas do Novo-
mundo, nas profundezas das quaes elles estabeleceram
hospicios em eterna noite para os desgraçados indios ,
esses religiosos abreviam tambem a sua existencia,
esses são envenenados pelas exhalações metallicas ;

1 Vêde no fim a nota 7.a


VOL. II 19
290 O GENIO DO CHRISTIANISMO

emfim os padres que se encerram nas galés pestiferas


de Constantinopla devotam- se ao mais prompto mar-
tyrio.
Desculpe-nos o leitor se restringimos n'isto as re-
flexões : confessamos nossa incapacidade em achar
encomios dignos de obras taes ; lagrimas e admiração
é o que mais temos . Quão lastimaveis são os que mi-
nam o aniquilamento da religião, e não saboream
a doçura dos fructos evangelicos ! O stoicismo só pro-
duziu um Epicteto, diz Voltaire, e a philosophia christà
forma milhares de Epictetos que não sabem o que são.
e cuja virtude é tamanha, que chegam a ignorar a sua
1
propria virtude .

CAPITULO V

Educação

ESCOLAS, COLLEGIOS , UNIVERSIDADES ; BENEDICTINOS


E JESUITAS

Consagrar a vida á consolação das dores é a ma-


xima beneficencia ; a segunda é o ensinamento . Lá vem
ainda os padres supersticiosos curar-nos de nossa igno-
rancia, e, sepultados, ha dez seculos, no pó das escolas.
trabalham por nos policiar . Não se arreceavam elles
da luz. porque nos patentearam os mananciaes ; o saber
que poderam, com risco da vida, grangear nas ruinas
de Roma e Grecia, partilharam-o comnosco .
O benedictino, sabedor de tudo, o jesuita, conhece-
dor da sciencia e do mundo, o congregado, o doutor
da universidade, merecem-nos talvez menos gratidão
que esses humildes monges, que se dedicavam ao en-
sino gratuito dos pobres . « Os clerigos regulares das
escolas pias obrigam-se a ensinar caritativamente a
lêr, e escrever ao povo miudo, a começar do a, b, c,

| Corresp. geral, tom. 1. pag. 222.


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 291

a contar, calcular; e até a escripturar livros de merca-


dores, e das repartições publicas . Ensinam mais não
só a rhetorica e as linguas grega e latina, mas ainda ,
nas cidades , abrem escolas de philosophia, theologia
escolastica e moral, mathematica, fortificações e geo-
metria... Quando os alumnos sahem da escola , vão
em turmas para suas casas, vigiados por um religioso ,
1
que os não deixa brincar e perder tempo na rua » .
A simplicidade do estylo é sempre aprazivel ; quan-
do ella, porém, se allia á simplicidade do bemfazer.
torna-se tão admiravel, quanto affectuosa .
Depois d'estas primeiras escolas fundadas pela ca-
ridade christã, vem as doutas congregações, dedicadas
ás lettras e educação da mocidade, por expressos ar-
tigos de seus estatutos . Taes são os religiosos de S.
Bazilio em Hespanha, que não têm menos de quatro
collegios em cada provincia . Tinham um em Soissons ,
na França, e outro em Paris ; era o collegio de Beau-
vais , fundado pelo cardeal Jean de Dorman . Pelo se-
culo nono eram afamadas escolas Tours , Corbeil, Fon-
tenelle, Fuldes, Saint- Gall, Saint-Denis, Saint- Germain
d'Auxerre, Ferrière, Aniane , e na Italia o monte Cas-
sino . Os clerigos da vida commum, nos Paizes - Baixos,
tinham a seu cargo o confronto dos originaes nas biblio-
thecas e o restabelecimento dos textos nos manuscri-
ptos .
Todas as universidades da Europa fôram estabele-
cidas por principes religiosos , ou por bispos, ou pa-
dres , e dirigidas por ordens christãs . Esta famosa uni-
versidade de Paris , cuja luz se derramou pela moderna
Europa, era composta de quatro faculdades . Data de
Carlos Magno a sua origem, época em que o monge
Alcuino, pelejando a sós contra a barbaria, quiz fazer
da França uma Athenas christã. ³ Ahi exerceram o
magisterio Budée , Casaubon, Grenan, Rollin, Coffin ,

1 Helyot , tom. iv, pag. 307.


2 Fleury, Hist. eccles. , tom . x, liv. XLVI , pag. 34.
3 Fleury, Hist. eccles., tom. x, liv. XLV, pag. 32.
292 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Lebeau, ahi se formaram Abeilard, Amyot, de Thou,


Boileau . Na Inglaterra Cambridge viu sahir Newton
de seu seio, e Oxford apresenta com os nomes de Bacon
e Thomaz Morus , a sua bibliotheca persiana, os seus
manuscriptos de Homero, os seus marmores d'Arundel
e as suas edições classicas ; Glascow, e Edimbourg, na
Escocia; Leipsick, Jena , Tubingue, em Allemanha ;
Leyde, Utrecht e Luvaina, nos Paizes -Baixos ; Gandia,
Alcalá e Salamanca, na Hespanha ; todos esses fócos lu-
minares attestam os immensos trabalhos do christia-
nismo. Mas duas ordens cultivaram particularmente .
as lettras, os benedictinos e os jesuitas .
No anno 540 da nossa éra, S. Bento architectou no
monte Cassino, em Italia, os cimentos da celebre ordem
que devia, tres vezes gloriosa, converter a Europa,
arrotear- lhe os maninhos , e reaccender em seu seio o
facho do saber . 1
Os benedictinos, mórmente os da congregação de
S. Mauro , estabelecida em França no anno de 543,
deram-nos essés homens , cuja sabedoria passa em pro-
verbio, e que descobriram com immensa canceira os
antigos manuscriptos enterrados no pó dos mosteiros .
A sua mais pasmosa empreza litteraria ( que assim póde
dizer-se) é a edição completa dos Padres da Igreja . Se
é difficil fazer um só volume correctamente em sua
propria lingua, julgue-se o que seria uma revisão com-
pleta dos padres gregos e latinos, que avultam para
mais de cento e cincoenta volumes in -folio. Difficil-
mente abrange a imaginação esses enormes trabalhos !
Recordar Ruinart, Lobineau, Calmet, Tassin, Lamy,
d'Achery, Martène, Mabillon, Montfaucon , é recordar
os prodigios das sciencias .
Não podemos lembrar sem saudade essas corpora-
ções docentes, unicamente dadas a investigações litte-
rarias e ao ensino da mocidade . Após uma revolução ,
que relaxou os vinculos da moral e interceptou a car-

1 A Inglaterra, a Friza e Allemanha reconheceram como seus


apostolos Santo Agostinho de Cantorbery, S. Willibord e S. Bonifa-
cio, todos tres do instituto de S. Bento.
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 293

reira dos estudos, uma sociedade religiosa e sapiente


applicaria o cauterio á chaga originaria dos nossos
padecimentos . Nas outras fórmas d'instituto, mal póde
dar-se esse afan regular, esse laborioso afêrro ao mes-
mo assumpto , que reinam entre solitarios, e que, con-
tinuados sem interrupção por estadío de muitos seculos,
acabam por produzir milagres .
Os benedictinos eram eruditos , e os jesuitas lettra-
dos : uns e outros fôram para a sociedade religiosa o
que eram para o mundo duas illustres academias .
A ordem dos jesuitas tinha tres graduações , escola-
res approvados, coadjutores formados e professos . O
postulante era primeiro experimentado com dez annos
de noviciado, durante os quaes se exercia sua memoria ,
sem lhe consentirem apêgo a algum estudo particular :
assim denotavam o alcance do seu engenho . Findo
este praso, servia os doentes durante um mez em al-
gum hospital, e peregrinava a pé , pedindo esmola .
Assim o afaziam ao espectaculo das dôres humanas ,
e o fortaleciam para as fadigas das missões .
Completava então os seus substanciaes ou brilhan-
tes estudos . Se primava em graças da sociedade e vida
elegante, que apraz ao mundo, ostentavam-o na capital,
ingerindo-o na côrte e nos palacios . Se o dominava
a indole da solidão , conservavam -o nas bibliothecas e
no interior da companhia . Se denotava propensões
oratorias, franqueavam -lhe o pulpito ; se tinha espirito
claro, justo e paciente, exercia o professorado nos colle-
gios ; se era ardente, intrepido, cheio de zelo e fé, ia
expirar sob o ferro do mahometano ou do selvagem ; se,
finalmente , revelava talentos idoneos para reger os
homens, chamavam-o os sertões do Paraguay, ou o
governo das suas casas professas .
O geral da companhia residia em Roma . Os padres
provinciaes, na Europa, eram obrigados uma vez por
mez a corresponderem-se com elle. Os directores das
missões no estrangeiro escreviam-lhe sempre que os
navios ou as caravanas atravessavam as solidões do
mundo . Havia ainda, nos casos urgentes, missionarios
que se transportavam de Pekin a Roma, de Roma á
294 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Persia, á Turquia, á Ethiopia, Paraguay, ou qualquer


parte da terra .
A Europa illustrada soffreu uma perda irreparavel
com a expulsão dos jesuitas . Depois da sua quéda
nunca mais houve completo ensino . A mocidade que-
ria-lhe extraordinariamente : as suas maneiras cortezes
tiravam ás suas lições o tom pedantesco que assusta
a infancia . Sendo a maior parte dos seus professores
homens lettrados que a sociedade reverenciava, os edu-
candos julgavam-se em illustrada academia com elles .
Entre escolares de differentes haveres tinham estabe-
lecido uma especie de patronato, que redundava em
proveito das sciencias . Estas allianças , formadas n’uma
idade em que o coração se abre aos sentimentos gene-
rosos, não quebravam depois, e travavam entre o prin-
cipe e o litterato essas antigas e nobres amizades que
existiam entre os Scipiões e os Lelios .
Os jesuitas mantinham essas veneraveis relações de
discipulos e mestre, tão caras ás escolas de Platão e
Pythagoras . Gloriavam-se do homem illustre , cujo en-
genho haviam fertilisado, e reclamavam quinhão da
sua gloria . Voltaire, dedicando a sua Mérope ao padre
Porée, e denominando -o o seu caro mestre, é um feito
amavel, que a moderna educação não apresenta. Na-
turalistas, chimicos, botanicos , mathematicos, mecha-
nicos , astronomos, poetas, historiadores, traductores,
antiquarios, jornalistas, não ha ramo scientifico que
os jesuitas não cultivassem com luzimento . Bourdaloue
recordava a eloquencia romana ; Brumoy introduziu
na França o theatro dos gregos ; Gresset caminhava
sobre as pégadas de Molière ; Lecomte, Parennin, Char-
levoix, Ducerceau, Sanadon, Duhalde, Noel, Bouhours,
Daniel, Tournemine, Maimbourg, Larue, Jouvency.
Rapin, Vanière , Commire, Sirmond , Bougeant, Petau ,
deixaram nomes não menos honrosos . Que podem
censurar aos jesuitas ? alguma ambição tão natural ao
genio . Montesquieu, fallando d'estes padres, diz : « Será
sempre grande coisa governar os homens , tornado - os
felizes » . Avaliae o cumulo de bens, que os jesuitas
fizeram ; recordae-vos dos escriptores celebres que a
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 295

sua corporação deu á França, ou d'aquelles que se for-


maram nas suas escolas ; lembrae -vos dos reinos in-
teiros que elles conquistaram habilmente para o nosso
commercio, á custa de seu suor e sangue ; trazei á me-
moria os milagres das suas missões no Canadá, no
Paraguay e na China, e vós vereis que os pequenos
males , de que são inculpados , não contrabalançam nem
por sombra os serviços que elles prestaram á sociedade .

CAPITULO VI

Papas e côrte de Roma, descobrimentos modernos , etc.

Antes de fallarmos nos serviços, que a Igreja pres-


tou á agricultura, recordemos o que os papas fizeram
em pró das sciencias e bellas - artes . Ao passo que as
ordens religiosas trabalhavam em toda a Europa no
ensinamento da mocidade, no descobrimento dos ma-
nuscriptos, e na explicação da antiguidade, os ponti-
fices romanos, prodigalisando aos sabios recompensas
e até dignidades sacerdotaes, eram o impulso d'esse
movimento geral para a illustração .
Realmente é uma grande gloria para a Igreja, que
um papa assignalasse com o seu nome o seculo , que
principia a era da Europa civilisada, e que, surgindo
d'entre as ruinas da Grecia, radiava o fulgor do seculo
d'Alexandre sobre o seculo de Luiz.
Os que representam o christianismo como obstaculo
ao progresso das luzes, contradizem manifestamente os
testimunhos historicos . A civilisação trilhou por toda
a parte os vestigios do Evangelho, ao invéz das reli-
giões de Mahomet, Brama, e Confucio, que limitaram
os progressos da sociedade , e forçaram o homem a
envelhecer na infancia .
A Roma christã era como um grande porto, que
recolhia todos os despojos dos naufragios das artes.
Constantinopla é subjugada pelos turcos : immediata-
mente a Igreja franquêa mil asylos honrosos aos illus
296 O GENIO DO CHRISTIANISMO

tres fugitivos de Byzancio e d'Athenas . A imprensa ,


expulsa de França, acha guarida na Italia.
Os cardeaes consomem os seus haveres escavando
as ruinas de Grecia e adquirindo manuscriptos .
O seculo de Leão X tão grandioso parecia ao sabio
abbade de Barthélemy, que o preferira ao de Pericles ,
como assumpto da sua grande obra : á magnifica Italia
christã é que elle pretendia conduzir um moderno
Anacharsis .
« Em Roma, diz elle , o meu viajeiro vê Miguel An-
gelo guindando a cupula de S. Pedro ; Raphael pintando
as galerias do Vaticano ; Sadolet e Bembe, depois car-
deaes, exercendo ao lado de Leão X o logar de secre-
tarios ; o Trissino dando a primeira representação de
Sophonisba, primeira tragedia composta por um mo-
derno ; Beroald, bibliothecario do Vaticano, occupando-
se em publicar os Annaes de Tacito descobertos na
Westphalia, os quaes Leão X tinha comprado por
quinhentos ducados d'ouro ; o mesmo papa propondo
empregos aos sabios de todas as nações , que quizessem
residir nos seus Estados , e distinctas recompensas aos
que lhe trouxessem manuscriptos desconhecidos ... Por
toda a parte se organisaram universidades, collegios,
imprensas para todas as linguas e sciencias, bibliothe-
cas constantemente eriquecidas d'obras, que lá se pu-
blicavam , e manuscriptos recentemente trazidos dos
paizes em que a ignorancia dominava ainda .
«De tal sorte se multiplicaram as academias, que
em Ferrara haviam dez ou doze , em Bolonha cerca de
quatorze, em Sienna dezeseis . O seu objecto eram as
sciencias, bellas-lettras, linguas, historia, e artes . Em
duas d'estas academias, uma das quaes era dedicada
simplesmente a Platão, e a outra ao seu discipulo Aris-
toteles, discutiam - se as opiniões da antiga philosophia,
e presagiavam - se as da philosophia moderna .
«Tanto em Bolonha como em Veneza estava a cargo
d'uma d'estas sociedades a imprensa, a belleza do pa-
pel, a fundição das lettras , a correcção das provas, e
tudo o que podia contribuir para a perfeição das novas
edições ... Em cada Estado as capitaes e ainda as ci-
PARTE QUARTA · LIVRO SEXTO 297

dades menos consideraveis eram extremamente ávidas


d'instrucção, e gloria : quasi todas offereciam aos as-
tronomos , observatorios ; aos anatomicos , amphithea-
tros ; aos naturalistas, jardins botanicos ; a todas as
pessoas de lettras, collecções de livros, medalhas e
monumentos antigos ; a todos os ramos de conhecimen-
tos, signaes distinctos de consideração, reconhecimento
e respeito ... O progresso das artes favoneava o gosto
dos espectaculos e da magnificencia . O estudo da his-
toria e dos monumentos gregos e romanos inspirava
ideias de decencia, harmonia e perfeição que nunca
haviam existido . Juliano de Medicis , irmão de Leão X,
tendo sido proclamado cidadão romano, foi causa de
se darem festejos publicos ; e sobre um vasto palco,
edificado de proposito na praça do Capitolio, represen-
tou-se durante dois dias uma comedia de Plauto , cuja
musica e machinismo extraordinario excitaram geral
admiração » .
Os successores de Leão X não deixaram esfriar este
nobre ardor dos trabalhos do genio . Os pacificos bispos
de Roma ajuntaram nas suas villas as preciosas reli-
quias dos seculos . Nos palacios dos Borghèse e dos
Pharnesios, o viajante admirava as obras primas de
Praxiteles e Phidias ; a peso d'ouro compraram os papas
as estatuas de Hercules e Apollo ; para conservar as
ruinas da antiguidade, já em demasia maltratadas, co-
briam-as os papas com o manto da religião . Quem
não admirará a piedosa industria d'este pontifice, que
collocava imagens christãs sobre as esplendidas ruinas
das Thermas de Dioclesiano ? O Pantheon não existiria
já, se não fosse consagrado ao culto dos apostolos ; a
་ columna Trajana já
não existiria de pé , se não a co-
roasse a estatua de S. Pedro .
Salta aos olhos este espirito conservador em todas
as ordens da Igreja . Ao passo que os despojos, que
decoravam o Vaticano, ultrapassavam as riquezas dos
antigos templos, os pobres frades protegiam no recinto
de seus mosteiros as ruinas das casas de Tibur e de
Tusculo e passeavam com o estrangeiro nos jardins
de Cicero e Horacio . Um capuchinho nos mostrava o
298 O GENIO DO CHRISTIANISMO

loureiro que cresce sobre o tumulo de Virgilio , e um


papa coroava o Tasso no Capitolio.
D'est'arte havia mil e quinhentos annos que a Igreja
protegia as sciencias e as artes sem deixar arrefecer
o seu zelo em alguma época . Se no oitavo seculo o
monge Alcuino ensina a grammatica a Carlos Magno,
1
no decimo oitavo outro monge industrioso e paciente
acha azo de decifrar os manuscriptos de Herculanum ;
se em 740 Gregorio de Tours descreve as antiguidades
das Gallias, em 1754 o conego Mazzochi descreve as
taboas legislativas de Heraclea . A maior parte dos des-
cobrimentos que mudaram o systema do mundo ci-
vilisado foram feitos por membros da Igreja . A in-
venção da polvora e talvez a do telescopio devem-se
ao monge Roger Bacon ; outros attribuem o descobri-
mento da polvora ao monge allemão Berthold Schwartz ;
as bombas foram inventadas por Galen , bispo de Muns-
ter ; o diacono Flavio de Gioia , napolitano , descobriu
a bussola ; o monge Despina os oculos ; e Pacificus ,
arcediago de Verona, ou o papa Silvestre II , os relogios
de cylindro . Quantos sabios, em grande parte dos
quaes temos já fallado no decurso d'esta obra, illustra-
ram os claustros e accrescentaram a consideração das
eminentes sédes da Igreja ! Quantos escriptores cele-
bres ! Quantos distinctos litteratos ! Quantos illustres
viajantes ! Quantos mathematicos, naturalistas, chimi-
cos, astronomos , antiquarios, oradores famosos , e es-
tadistas celebres ! Fallar de Suger, de Ximenes , de
Alberoni, de Richelieu, de Mazarin, de Fleury, não será
recordar a um tempo os maiores ministros e as maiores
coisas da Europa moderna ?
Agora mesmo que vamos esboçando este rapido
quadro dos beneficios da Igreja, a Italia lutuosa presta
um sentido testimunho d'amor e gratidão ao despojo
mortal de Pio VI ( 1800 ) . A capital do mundo christão
espera o féretro do infeliz pontifice , que com trabalhos
dignos de Augusto e Marco Aurelio dessecou lagoas

1 Barthélemy, Voyages en Italie,


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 299

infectas, descobriu a estrada dos consules romanos ,


e reparou os aqueductos dos primitivos reis de Roma.
Por derradeiro traço d'este amor das artes tão natural
aos chefes da Igreja, o successor de Pio VI , ao mesmo
tempo que restaura a paz dos fieis , acha ainda na sua
nobre indigencia meios com que substituir por novas
estatuas as obras primas, que Roma, tutora das bellas-
artes, cedeu á herdeira d'Athenas .
Os progressos das lettras eram inseparaveis dos
progressos da religião, por quanto na lingua de Ho-
mero e de Virgilio é que os padres explicaram os prin-
cipios da fé : o sangue dos martyres , que foi a semen-
teira dos christãos , tambem fez crescer o louro do
orador e do poeta .
A Roma christã foi para o mundo moderno o que
a Roma pagã tinha sido para o mundo antigo , um
nucleo universal ; esta capital das nações cumpriu todas
as condições do seu destino, e bem póde chamar-se a
cidade eterna.
Tempo virá em que se confesse que era uma grande
ideia, uma instituição magnifica, a do throno pontificio .
O pae espiritual, collocado no centro dos povos , con-
junctava as diversas partes da christandade . Que bella
missão não era a d'um papa verdadeiramente animado
do espirito apostolico ! Pastor geral do rebanho, póde
conter os fieis nos deveres , ou defendel - os da oppressão .
Os seus Estados , sufficientes para lhe darem a inde-
pendencia , e pequenos de mais para serem temidos ,
só lhe facultavam a força da opinião ; admiravel força,
quando sómente abraça em seu imperio obras de paz ,
de bem-fazer e de caridade .
O mal transitorio, que alguns maus papas fizeram ,
desappareceu com elles ; porém ainda hoje sentimos.
a influencia dos bens immensos e inestimaveis que o
orbe inteiro deve á côrte de Roma. Esta côrte mostrou-
se quasi sempre superior ao seu seculo , porque tinha
ideias de legislação e direito publico ; conhecia as
bellas-artes, as sciencias , e policiamento, quando tudo
estava submerso nas trevas das instituições gothicas :
a luz não a reservava só para si , era para todos ; as
300 O GENIO DO CHRISTIANISMO

barreiras, que os prejuizos levantavam entre as na-


ções, derrubava-as : quem amenisou os nossos costu-
mes, tirando-nos da ignorancia, e arrancando - nos a
nossos habitos grosseiros e ferozes, foi ella . Os papas ,
entre os nossos maiores, fôram missionarios das artes
enviados aos barbaros, e legisladores entre os selvagens.
«Apenas o reinado de Carlos Magno, diz Voltaire, teve
um clarão de polidez, que foi provavelmente o fructo
d'estanciar em Roma» .
E' pois geralmente reconhecido que a Europa deve
á santa Sé a sua civilisação, uma parte das suas me-
lhores leis , e quasi todas as sciencias e artes . Os so-
beranos pontifices vão agora procurar outros meios de
serem uteis á humanidade , espera-os uma nova car-
reira, e nós vaticinamos que elles a trilharão com
gloria. Roma attingiu aquella pobreza evangelica, que
foi toda a sua opulencia, nos antigos dias . Por notavel
conformidade, ha gentios que converter, povos que
chamar á unidade, odios que extinguir, lagrimas que
enxugar, chagas que cicatrizar e que reclamam todos
os balsamos da religião .
Se Roma comprehender bem a sua posição, nunca
ella teve ante si maiores esperanças e mais brilhantes
destinos . Esperanças, dizemos, porque contamos as
tribulações entre os desejos da Igreja de Jesus Christo .
A sociedade degenerada reclama uma segunda préga-
ção do Evangelho : o christianismo restabelece - se
sahe ovante do mais terrïvel dos assaltos que ainda lhe
deu o inferno .
Quem sabe se o que nos parece a quéda da Igreja
não é antes a sua reedificação ? Na riqueza e no re-
pouso parecia ella esquecida da cruz ; agora será salva ,
porque a cruz reapparece .
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 301

CAPITULO VII

Agricultura

Ao clero regular e secular é que nós tambem de-


vemos a renovação da agricultura na Europa, bem
como lhe devemos a fundação de collegios e hospitaes .
Arroteamento de terras , estradas , augmento d'aldeias
e cidades , estabelecimentos de correios e pousadas ,
artes e misteres, manufacturas, commercio externo e
interno, leis civis e politicas, tudo, emfim, nos vem
originariamente da Igreja.
Nossos paes eram barbaros, a que o christianismo
precisou até d'ensinar a arte de se alimentar.
A maior parte das concessões feitas aos mosteiros
nos primeiros seculos da Igreja eram terras baldias,
que os monges cultivavam com suas proprias mãos .
Mattas selvagens, pantanos insalubres, vastas charne-
cas foram a origem d'essas riquezas do clero, que nós
tanto reprovamos .
Ao passo que os monges bernardos lavraram as
solidões da Polonia e uma porção da floresta do Coucy
em França, os benedictinos fertilisavam os nossos ma-
tagaes . Molesme, Colan e Citeaux, hoje cobertos de
vinhas e searas eram logares semeados de tojos e sil-
vas, em que os primitivos religiosos habitavam em
grutas de ramagem á maneira dos americanos nas suas
roças .
S. Bernardo e seus discipulos fecundaram os valles
estereis, que lhes doou Thibaut, conde de Champagne .
Fontevrault foi uma verdadeira colonia fundada por
Robert d'Arbrissel, em paiz deserto , sobre os confis do
Anjou e Bretagne . Familias completas se acolheram
á direcção d'esses benedictinos : ahi se formaram mos-
teiros de viuvas, de donzellas , de leigos , enfermos e de
soldados veteranos . A' maneira dos padres que por si
mesmos derrubavam as arvores , lavravam os campos ,
semeavam os grãos , e coroavam de bellas messes
302 O GENIO DO CHRISTIANISMO

aquella parte da França que nunca as produzira, fize-


ram-se todos cultivadores .
Logo depois a colonia foi forçada a transferir uma
parte de seus moradores, e ceder a outras solidões o
superfluo das suas mãos laboriosas . Raoul de la Fu-
taye, companheiro de Roberto , estabeleceu -se na flo-
resta do Nid du Merle; e Vital, tambem benedictino ,
nos bosques de Savigny.
A floresta de l'Orges, na diocese d'Angers : Chante-
nois e Bellay, na Touraine ; a Puie no Poitou ; Encloître
na floresta da Gironda ; Gaisne a poucas leguas de
Loudun ; Luçon nos bosques d'este nome ; Lande nas
charnecas de Garnache ; Magdalena no Loire ; Bourbon
no Limousin : Cadouin no Perigord ; e , finalmente,
Haute-Bruyère proximo de Paris, fôram outras tantas
colonias de Fontevrault, tornadas em feracissimos cam-
pos, de sáfaros que eram .
Cansariamos o leitor se lhe enumerassemos as terras
desbravadas pelos sulcos da charrua dos benedictinos,
nas Gallias selvagens . S. Colombano tornou o deserto
de Vauge em verdejantes prados ; e as proprias freiras
benedictinas, a exemplo dos padres de sua ordem, não
desdenhavam empregar-se na cultura ; « as de Mon-
treuil-les -Dames occupavam-se, diz Hermann, além da
costura, e fiação , em sorribar as florestas, á imitação
de Laon e de todos os religiosos de Clareval » . ¹
A mesma actividade exercitaram os benedictinos na
Hespanha . Compraram terras bravias nas margens do
Tejo, junto de Toledo, e fundaram o convento de Ven-
ghalia, depois de haverem plantado vinhas e larangei-
ras no terrenos limitrophes .
O monte Cassino , na Italia, era uma profunda so-
lidão ; quando S. Bento para lá se retirou, o paiz mudou
d'aspecto em pouco tempo, e a nova abbadia opulentou-
se tanto pelo trabalho, que pôde defender- se, em 1057,
contra os normandos que a guerrearam .
S. Bonifacio, com os religiosos da sua ordem ,

1 De Miracul., lib. 111 , cap. XVII.


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 303

principiou todas as culturas nos quatro bispados da


Baviera . Os benedictinos de Fulda desbravaram entre
Hesse, Franconia, e Thuringia, um terreno de diame-
tro de oito mil passos geometricos, que orçava por
vinte e quatro mil passos , ou dezeseis leguas de cir-
cumferencia ; logo subiram a dezoito mil casaes tanto
em Baviera como em Suabia. Os monges de S. Bento-
Polironne, ao pé de Mantua, empregavam na lavoura
mais de tres mil juntas de bois .
Notemos mais que a regra quasi geral, que prohibia
o uso da carne ás ordens monasticas, proveio de certo,
em primeiro logar, d'um principio de economia rural.
Haviam-se então multiplicado muito as sociedades re-
ligiosas ; e tanta gente vivendo só de peixe, ovos, leite,
e legumes, devia favorecer singularmente a propaga-
ção dos gados . Pelo que os nossos terrenos , tão ferteis
hoje, são em parte devedores de suas messes e rebanhos
ao trabalho frugalidade dos monges .
Além de que, o exemplo , de ordinario pouco valioso
em moral, porque as paixões lhe encontram os bons
effeitos , exerce grande predominio sobre o lado ma-
terial da vida. O espectaculo de muitos mil religiosos
grangeando a terra, minou lentamente esses prejuizos
barbaros que tinham em desprezo a arte que alimenta
os homens . O aldeão aprendeu nos mosteiros a remover
a terra e a fetilisar o sulco ; o barão entrou a procurar
no seu campo thesouros mais infalliveis que aquelles
que obtinha pelas armas . Fôram , pois , realmente os
monges os paes da agricultura , já como lavradores, já
como primeiros mestres dos nossos lavradores .
Ainda em nossos tempos conservavam essa util dis-
posição . As mais graciosas culturas, os camponezes
mais ricos, os mais bem nutridos e menos vexados, os
mais perfeitos utensilios campestres, os mais gordos
rebanhos, as quintas mais bem grangeadas, eram as
dos seus terrenos . Parece- nos que não ha n'isso mo-
tivo de censura ao clero .
304 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO VIII

Cidades e villas, pontes, estradas reaes, etc.

Mas, se o clero desmoitou a Europa selvagem, tam-


bem multiplicou nossas aldeias augmentou e aformo-
seou as nossas cidades . Diversos bairros de Paris, taes
como o de Santa Genoveva e S. Germano l'Auxerrois,
fôram em parte edificados á custa das abbadias do
mesmo nome. 1
Por via de regra , ao pé d'um mosteiro formava-se
uma povoação; a Chaise-Dieu, Abbeville, e muitos ou-
tros logares, têm ainda em seus nomes o cunho da
origem . A cidade de S. Salvador, nas fraldas do monte
Cassino, na Italia, e os burgos circumstantes , são obra
dos monges de S. Bento . Em Fulda , em Moguncia, em
todos os circulos ecclesiasticos da Allemanha, Prussia,
Polonia, Suissa, Hespanha, Inglaterra, numerosas ci-
dades foram fundadas por ordens monasticas ou mili-
tares . As cidades que mais depressa se desbarbarisa-
ram , foram as que primeiro se submetteram a prin-
cipes ecclesiasticos . A Europa deve metade de seus
monumentos e fundações uteis á munificencia dos car-
deaes, abbades , e bispos .
Dir- se-ha, porém, talvez que esses trabalhos apenas
attestam a riqueza immensa da Igreja .
Sabemos que se intenta sempre attenuar os serviços :
o homem odeia a gratidão . O clero encontrou terras
bravias, e fel- as brotar searas . Opulentado pelo traba-
Iho, applicou os rendimentos a edificações publicas .
Quando lhe arguís tão nobres haveres, já na origem,
já no destino que lhes deu , vós a um tempo o accusaes
do crime de dois beneficios .
A Europa não tinha estradas nem estalagens ; as
florestas trasbordavam de salteadores e assassinos ; as
leis eram impotentes , ou , antes , não existiam leis : ape-

1 Histoire de la ville de Paris.


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 305

nas a religião , como alta columna, erguida em meio


das ruinas gothicas offerecia abrigo e ponto de commu-
nicação aos homens .
A França, em tempo da segunda raça dos nossos
reis, cahiu na mais profunda anarchia ; os viajantes
eram agarrados, roubados , e assassinados no transito
dos rios . Corajosos e habeis monges emprehenderam
remediar estes males . Formaram entre si uma com-
panhia, sob o nome de hospitalarios constructores de
pontes. Obrigavam-se por seu instituto a assistirem
aos caminhantes , a concertar as estradas, a construir
pontes, e a albergar os estrangeiros em hospicios que
elles edificavam á beira dos rios . Estabeleceram - se
nas margens do Durance, n'um logar perigoso cha-
mado Mau-passo (Maupas, ou Mauvaispas ), o qual.
graças a esses generosos monges, houve logo nome de
Bom passo (Bonpas), que ainda hoje tem . A ponte do
Rhodano, em Avinhão, construiu-a esta companhia . E
sabido que as recovagens e correios, aperfeiçoados
por Luiz XI, fôram de principio estabelecidos pela
universidade de Paris .
Sobre uma penhascosa e empinada serra de Rouer-
gue, coberta de neve e nevoeiros por espaço de oito
mezes no anno, divisa-se um mosteiro edificado em
1120 por Alard, visconde de Flandres . Este senhor,
voltando d'uma romagem, foi n'esse local atacado por
ladrões fez elle voto, se lhes escapasse, de fundar n'esse
deserto um hospicio para os viajeiros, e expulsar os
salteadores da serra . Escapo do perigo, cumpriu fiel-
mente o promettido, e o hospicio d'Abrac ou d'Aubrac
foi erecto in loco horroris et vastæ solitudinis, como
reza a acta da fundação . Alard estabeleceu ahi padres
para serviço da Igreja, cavalleiros hospitalarios para
acompanharem os viajantes, e damas qualificadas para
lavarem os pés aos peregrinos , fazerem -lhes as camas.
e cuidarem- lhes dos vestidos .
Nos seculos barbaros as peregrinações eram utilissi-
mas : este impulso religioso , que lançava os homens
fóra de seus lares, coadjuvava poderosamente a pro-
gressão do policiamento e das luzes . No anno do
VOL. II 20
306 O GENIO DO CHRISTIANISMO

grande jubileu ( 1600), no hospital de S. Filippe Nery,


em Roma, fôram acolhidos nada menos de quatrocen-
tos e quarenta mil e quinhentos estrangeiros : cada um
teve tres dias de casa, sustentação e recreio .
Não havia peregrino que não voltasse á aldeia com
algum prejuizo de menos ou alguma ideia de mais .
Tudo se equilibra nos seculos : certas classes ricas da
sociedade viajam presentemente talvez mais que ou-
tr'ora ; mas, por outra parte, o camponez é muito mais
sedentario . A guerra chamava -o a alistar-se sob as
bandeiras do senhor feudal, e a religião a longes terras .
Se podéssemos vêr agora um d'esses antigos vassallos
que hoje se nos afiguram especie d'estupidos escravos ,
talvez ficassemos surprehendidos , achando n'elle mais
sizo e saber que no camponez livre de hoje.
Antes de partir para reinos estrangeiros , o viajeiro
dirigia-se ao seu bispo, que lhe dava uma carta apos-
tolica, com a qual elle transitava seguro por toda a
christandade . A fórma d'estas cartas variava consoante
a ordem e profissão do portador, e d'ahi vinha cha-
marem-se formatæ. D'est'arte, a religião curava sempre
de reatar os liames sociaes que a barbaria rompia
constantemente .
Em geral, os mosteiros eram hospedarias, onde os
estrangeiros achavam, passando, alimento e gasalho .
Esta hospitalidade, que se admira nos antigos, e cujos
restos subsistem ainda no Oriente, prezavam -a sobre
modo os frades : d'elles muitos, nomeados hospitalarios,
se devotaram particularmente a esta affectuosa virtude .
Como em tempos de Abrahão, manifestava- se em todo
o seu antigo esplendor, pelo lavatorio de pés, fogueira
do lar, doçuras de refeição e de boa cama . Se o via-
jeiro era pobre, vestiam-o , ministravam-lhe vitualhas ,
e algum dinheiro com que trasladar-se a outro con-
vento, onde recebia igual soccorro . As damas, caval-
gando seus palafrens, os esforçados em cata d'aventu-
ras, os reis desgarrados na caça, alta noite, batiam a
porta das velhas abbadias, e aquinhoavam da hospita-
lidade que lá se dava ao obscuro peregrino . Algumas
vezes se encontravam ahi dois cavalleiros inimigos,
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 307

e se davam alegre acolhimento até ao raiar do dia , em


que, espada em punho , cada qual defendia a superio-
ridade de sua dama e patria . Boucicault, voltando da
cruzada da Prussia, alojou-se n'um mosteiro com mui-
tos cavalleiros inglezes , sustentando contra todos que
um cavalleiro escocez , atacado por elles n'um bosque,
fôra traiçoeiramente assassinado .
N'essas hospedarias da religião era como grande
honraria propôr a um principe que beneficiasse os
pobres que se achassem alli casualmente com elle .
O cardeal de Bourbon , voltando de conduzir a infeliz
Izabel a Hespanha, estanceou no hospital de Ronce-
valles nos Pyreneus, e serviu á mesa trezentos pere-
grinos, e deu tres reales a cada um para continuarem
em sua jornada . Le Poussin é um dos ultimos viajeiros
que se aproveitaram d'esta usança christã ; foi a Roma
de mosteiro em mosteiro, pintando retabulos para os
altares em paga da hospitalidade que recebia , e re-
novando d'esta arte entre os pintores a aventura de
Homero .

CAPITULO IX

Artes e mesteres, commercio

E' summamente contrario á verdade historica pre-


sumir que os primitivos frades, á laia d'ociosos , viviam
na abundancia a expensas das superstições humanas .
Esta abundancia é suppositicia . A ordem, com seus
trabalhos, poderia haver-se enriquecido, mas o certo
é que os religiosos viviam mui duramente . Todos os
mimos do claustro, tão exagerados, reduziam-se até
já em nossos dias a um estreito cubiculo, exercicios
penosos e mesa parca, para não dizer outra coisa . Além
d'isso , é falsissimo que os monges fôssem sómente
piedosos e inertes : quando numerosos hospitaes , colle-
gios, bibliothecas, cultivos, e demais serviços relatados
não fossem bastante tarefa para lhes entreter os ocios ,
muitos outros modos de serem prestadios haviam elles
308 O GENIO DO CHRISTIANISMO

inventado : davam -se ás artes mechanicas, e dilatavam


o commercio dentro e fóra da Europa .
A congregação da ordem terceira de S. Francisco
fazia pannos e fitas, ao mesmo tempo que ensinava a
lêr os filhos dos pobres e cuidava dos enfermos . A con-
fraria dos pobres irmãos sapateiros e alfaiates era ins-
tituida para o mesmo fim . O convento dos Jeronymos
na Hespanha contava muitas fabricas . A maioria dos
primeiros religiosos eram pedreiros e lavradores . Os
benedictinos eram os obreiros das proprias casas, como
se vê da historia dos conventos do monte Cassino , dos
de Fontevrault e de outros .
Quanto ao commercio interior, muitas feiras e mer-
cados pertenciam a abbadias, e lhes deviam a creação .
A celebre feira de Landyt, em Saint-Denis, devia a
sua origem á universidade de Paris . As religiosas
fiavam uma grande parte das telas da Europa . As
cervejas de Flandres, e a maior parte dos vinhos finos
do Archipelago, da Hungria, da Italia, de França e de
Hespanha, eram feitos pelas congregações religiosas ;
a exportação e importação dos cereaes, ou fôsse para
o estrangeiro, ou para o exercito, dependiam ainda,
em parte, dos grandes proprietarios ecclesiasticos . As
igrejas faziam valer o pergaminho, a cêra , o linho , a
sêda, os marmores, a ourivesaria , as manufacturas de
lãs, as tapeçarias, e as materias primas d'ouro e prata ;
ellas só, nos tempos barbaros, davam trabalho aos ar-
listas que faziam vir expressamente da Italia e dos
confins da Grecia. Os proprios religiosos cultivavam
as bellas-artes , e fôram os pintores, os esculptores e
os architectos da idade gothica . Se as suas obras nos
parecem hoje grosseiras, nem por isso devemos esque-
cer que ellas formam o élo que liga os tempos antigos
aos modernos ; que, sem elles, ter -se -ia totalmente in-
terrompido a cadeia da tradição das lettras e das artes .
E' preciso que a delicadeza do nosso gosto nos não
torne ingratos.
Exceptuando aquella pequena parte do Norte, com-
prehendida na linha das cidades anseaticas, todo o
commercio externo se fazia outr'ora pelo Mediterraneo .
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 309

Os gregos e os arabes traziam -nos as mercadorias do


Oriente, que carregavam em Alexandria ; mas as cru-
zadas fizeram passar esta fonte de riquezas para as
mãos dos francos . « As conquistas dos cruzados, diz
o abbade Fleury, asseguraram -lhes a liberdade do com-
mercio para as mercadorias da Grecia, da Syria e do
Egypto, e por consequencia para as das Indias, que
1
não vinham ainda para a Europa por outra via » .
O doutor Robertson , na sua excellente obra sobre
o commercio dos antigos e dos modernos nas Indias
orientaes, confirma, pelas mais curiosas particulari-
dades, o que aventára o abbade Fleury, Genova, Ve-
neza, Pisa, Florença e Marselha deveram as suas ri-
quezas e poderio a esses commettimentos d'um zêlo
exaggerado, condemnado ha muito tempo pelo verda-
deiro espirito do christianismo . 2 Mas , apezar d'isso ,
não se póde negar que a marinha e o commercio mo-
dernos nascessem d'essas famosas expedições . O que
n'ellas houve de bom pertence á religião ; o resto ás
paixões humanas . Mas, se os cruzados fizeram mal em
querer arrancar o Egypto a Syria aos sarracenos , não
nos custa mais vêr agora essas bellas regiões entregues
aos turcos, que são o flagello da patria de Phidias e
Euripedes ? Que mal haveria em que, de S. Luiz para
cá, o Egypto fôsse uma colónia da França, e os descen-
dentes dos cavalleiros francezes reinassem em Cons-
tantinopla, em Athenas, em Damasco, em Tripoli, em
Carthago, em Tyro, em Jerusalem ?
De resto, logo que o christianismo foi só ás mais
longinquas expedições, reconheceu-se que o mal das
cruzadas não proviera d'elle, mas do arrebatamento
dos homens . Os nossos missionarios abriram-nos as
fontes do commercio sem mais derramamento de san-
gue que o seu , de que, em verdade, fôram prodigos .
Lembramos ao leitor o que dissemos a este respeito
no livro das Missões .

1 Hist. eccles., tom. xviii , dic. 6.


2 Fleury, loc. cit.
310 O GENIO DO CHRISTIANISMO

CAPITULO X

Das leis civis e criminaes

Investigar qual tem sido a influencia do christia-


nismo nas leis e nos governos, como o fizemos relati-
vamente á moral e á poesia, seria assumpto para uma
obra volumosa . Mostral-a-hemos em globo, apontando
alguns resultados com o fim d'augmentar o rol dos
beneficios da religião .
Basta abrir ao acaso os concilios, o direito canonico ,
as bulas e os escriptos da côrte de Roma , para reco-
nhecer que as antigas leis colligidas nos capitularios
de Carlos Magno, nos formularios de Marculfo, nas
ordenações dos reis de França, devem grande quanti-
dade de disposições á Igreja , ou , antes , fôram em parte
redigidas por sabios sacerdotes ou assembleias d'eccle-
siasticos .
Os bispos e os metropolitanos tiveram, desde tempos
muito remotos , direitos bastante consideraveis em ma-
teria civil . Eram encarregados da promulgação das
leis imperiaes concernentes á tranquillidade publica ;
tomavam- os por arbitros nos processos ; eram uma
especie de juizes de paz naturaes, que a religião tinha
dado aos homens . Os imperadores christãos, achando
1
estabelecido este costume, julgaram-o tão salutar, ¹
que o confirmaram por disposições dos seus codigos .
Cada ecclesiastico, desde o subdiacono ao soberano
pontifice, exercia uma pequena jurisdicção ; de maneira
que o espirito religioso influia de mil diversos modos
nas leis . Mas era esta influencia favoravel ou preju-
dicial aos povos ? Cremos que favoravel .
Primeiro que tudo, no que é administração , os es-
2
criptores, ainda os mais contrarios ao christianismo,

1 Euseb., de Vit. Const., lib. 1v, cap. xxvп ; Sozom, cap. 1X, Cod
Justin., lib. 1 , t. Iv, leg. 7.
2 Vêde Voltaire, no Ensaio sobre os costumes.
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 311

têm constantemente reconhecido a pericia do clero .


Quando um Estado está tranquillo, os homens não fa-
zem mal só pelo prazer de o fazerem . Que interesse
poderia ter um concilio em formular uma lei iniqua
sobre a ordem das successões , ou relativa ás condições
d'um casamento ? ou porque havia de prevaricar um
official ou simples clerigo, quando chamado a julgar
um ponto de direito ? Se é verdade que a educação
e as maximas que bebemos na infancia influem sobre
o nosso caracter, os ministros do Evangelho deviam ,
em geral, ser guiados por um espirito de doçura e im-
parcialidade ; ou , se não querem tanta amplidão á phra-
se, no que sobre tudo não respeitava á sua classe ou
pessoas. Demais, o espirito de classe, que póde ser
mau no todo, é sempre bom na parte . E ' de suppôr que
o membro d'uma grande sociedade religiosa se distin-
guirá mais n'um cargo civil pela sua rectidão , do que
pelas prevaricações, ainda que não seja senão para a
gloria da sua ordem, ou em virtude do jugo que essa
ordem lhe impõe .
Além de que, os concilios eram compostos de pre-
lados de todos os paizes, que por isso tinham a grande
vantagem de serem em toda a parte estranhos aos po-
vos para quem legislavam . Os odios, as sympathias ,
os preconceitos feudatarios que acompanham ordina-
riamente o legislador, eram alheios aos padres dos con-
cilios . Um bispo francez tinha bastante conhecimento
da sua patria para impugnar um canon que fosse d'en-
contro aos seus costumes ; mas não tinha poder para
obrigar os prelados italianos, hespanhoes e inglezes a
subscreverem a uma deliberação injusta : livre para o
bem, a sua posição era circumscripta para o mal . E '
Machiavel, se me não engano , que lembra fazer redigir
a constituição d'um Estado por um estrangeiro ; mas
este estrangeiro podia ser levado por interesse, ou igno-
rante do genio da nação para a qual codificava : dois
grandes inconvenientes que não tinha o concilio, pois
que era, ao mesmo tempo, superior á corrupção pelas
suas riquezas, e instruido do caracter peculiar dos rei-
nos pelos diversos membros que o compunham.
312 O GENIO DO CHRISTIANISMO

As leis da Igreja, que tomou sempre por base a


moral, de preferencia á politica, como se vê nas ques-
tões de rapto, divorcio e adulterio, deviam ter um
fundo natural de rectidão e universalidade . Effectiva-
mente a maior parte dos canons não são relativos a tal
ou tal religião; comprehendem toda a christandade .
Sendo a caridade, e o perdão das injurias a base do
christianismo, especialmente recommendadas no
sacerdocio, a acção d'este caracter sagrado sobre os
costumes deve participar d'aquellas virtudes . A histo-
ria apresenta- nos incessantemente o padre orando pelo
desgraçado , pedindo graça para o culpado , e interce-
dendo pelo innocente . O direito d'asylo nas igrejas.
por mais abusivo que podésse ser, é todavia uma gran-
de prova da tolerancia que o espirito religioso tinha
introduzido na justiça criminal . Os dominicos fôram
animados por esta evangelica piedade quando denun-
ciaram tão energicamente as atrocidades dos hespa-
Phoes no Novo -mundo . Finalmente como o nosso co-
digo foi formado nos tempos . de barbaria, o padre , que
era então o unico homem que tinha algum saber, não
podia deixar d'exercer nas leis uma influencia provei-
tosa, e de dar-lhes luzes que os demais homens não
possuiam .
Ha um bello exemplo do espirito de justiça que o
christianismo tendia a introduzir nos tribunaes . Santo
Ambrosio observa que , se em materia criminal os bis-
pos são obrigados pelo seu caracter a implorar a cle-
mencia do magistrado, não devem intervir nunca em
coisas civis que não são da sua jurisdicção : « Porque,
diz elle, não podereis solicitar justiça por uma das
partes sem prejudicar a outra, e sem talvez vos tor-
nardes culpado d'uma grande injustiça » . ¹
Admiravel espirito da religião !
A moderação de S. Chrysostomo não é menos no-
lavel : « Deus, diz este grande santo, permittiu a um
homem repudiar sua mulher por causa d'adulterio ;

1 Ambros., de Offic., lib . 11, cap. m .


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 313

1 Segundo o direito
mas não por causa de idolatria» .
romano, os infames não podiam ser juizes . Santo Am-
brosio e S. Gregorio levam ainda mais longe esta bella
lei, porque não querem que aquelles que commetteram
grandes faltas sejam juizes, para que não succeda con-
demnarem-se a si proprios , condemnando os outros. 2
Em materia criminal, o prelado abstinha- se, porque
a religião tem horror ao sangue. Santo Agostinho
obteve pelas suas supplicas a vida dos Circumcellions ,
convencidos d'assassinos de padres catholicos . O con-
cilio de Sardica impôz como lei aos bispos a sua me-
diação nas sentenças d'exilio e degredo . 3 D'este modo,
o desgraçado devia a esta caridade christã, não só a
vida, mas, o que é mais precioso ainda, a felicidade de
respirar o ar natal .
Estas disposições da nossa jurisprudencia criminal
são tiradas do direito canonico : « 1. ° Não se deve con-
demnar um ausente que póde ter meios legitimos de
defeza . 2.º O accusador e o juiz não podem servir de
testimunhas . 3.º Os grandes criminosos não podem
ser accusadores . 4 4. ° Não basta para condemnar um
accusado o simples depoimento d'uma pessoa, qualquer
que seja a dignidade a que esteja elevada» . 5
Póde vêr - se em Hericourt a porção de leis que con-
firmam o que acabamos de dizer ; isto é : que devemos
as melhores disposições do nosso codigo civil e crimi-
nal ao direito canonico . Este direito é em geral mais
dôce do que as nossas leis ; e nós recusamos em muitos
pontos a sua indulgencia christã . Por exemplo : o se-
timo concilio de Carthago determina que, quando ha
muitos pontos d'accusação , se o accusador não póde
provar o primeiro, não seja admittido á prova dos ou-
tros : os nossos costumes alteraram isto .

1 In cap. Isaic , 3.
2 Hericourt, Lois eccl., quest . vill .
3 Conc. Sard., can. xvII.
4 Este admiravel canon não era seguido nas nossas leis.
5 Her., loc. cit. et seq.
314 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Esta grande obrigação , que o nosso systema civil


deve ás doutrinas do christianismo, é uma coisa muito
grave, muito pouco observada, e , todavia, muito di-
1
gna de o ser .
Finalmente, as jurisdicções senhoreaes, no feudalis-
mo , fôram necessariamente menos vexatorias na depen-
dencia das abbadias e prelaturas do que sob a alçada
d'um conde ou d'um barão . O senhor ecclesiastico tinha
certas virtudes, que o guerreiro se não cria obrigado
a praticar. Os abbades cessaram depressa de marchar
para o exercito, e os seus vassallos tornaram- se paci-
ficos lavradores . S. Bento d'Aniane, reformador dos
benedictinos em França , recebia as terras que lhe offe-
reciam, mas não aceitava os servos : dava -lhes logo a
2
liberdade . Este exemplo de magnanimidade , no meio
do decimo seculo, é admiravel ; e foi um monge que
o deu !

CAPITULO XI

Politica e governação

O costume, que concedia ao clero o primeiro logar


nas assembleias das nações modernas, derivava do
grande principio religioso, que a antiguidade inteira
considerava como fundamento da existencia politica.
« Eu não sei, diz Cicero, se aniquilar a devoção para
com os deuses não será destruir a boa fé, a sociedade
do genero humano , e a mais excellente das virtudes,
a justiça». 3
Uma vez , pois, que até hoje se pensou sempre que
a religião é a base da sociedade civil, não criminemos
1 os nossos paes por haverem pensado como Platão, Aris-
toteles, Cicero, e Plutarco, e terem collocado o altar e

1 Montesquieu e o doutor Robertson disseram alguma coisa a


esse respeito.
2 Helyot.
3 De Natura Deor., 1, 11 ,
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 315

os seus ministros no mais eminente grau da ordem


social .
Ninguem contesta n'este ponto a influencia da Igreja
no corpo politico ; mas contestarão , talvez, que tal in-
fluencia foi funesta á felicidade publica e á liberdade .
Faremos uma unica observação sobre este vasto e pro-
fundo assumpto ; remontemos por um instante aos prin-
cipios geraes, d'onde se deve partir sempre que se quer
chegar a alguma verdade .
A natureza, assim no moral como no physico , pa-
rece empregar um só meio de creação : é mesclar, para
produzir a força com a doçura . A sua energia parece
residir na lei geral dos contrastes . Se junta a violencia
á violencia, ou a fraqueza á fraqueza, longe de formar
alguma coisa, destroe por excesso ou por defeito . To-
das as legislações da antiguidade offerecem este syste-
ma de oposição que fórma o corpo politico .
Reconhecida uma vez esta verdade, convem procu-
rar os pontos d'opposição : crêmos que os dois princi-
paes residem, um , nos costumes do povo , outro , nas
instituições que devem dar- se a esse povo . Se elle é
de caracter timido e fraco, que a sua constituição seja
ousada ou robusta ; se é altivo, impetuoso, inconstante,
que o seu governo seja dôce, moderado, invariavel . A
theocracia não foi boa para os egypcios : escravisou - os
sem lhes dar as virtudes que lhes faltavam . Era uma na-
ção pacifica : necessitava de instituições militares .
A influencia sacerdotal, pelo contrario, produziu
em Roma admiraveis resultados . Esta rainha do mundo
deve a sua grandeza a Numa, que soube collocar a re-
ligião no logar mais distincto entre um povo de guer-
reiros : quem não teme os homens deve temer os deuses .
O que acabamos de dizer dos romanos , é applicavel
aos francezes : não precisam ser excitados , mas conti-
dos . Fala-se dos inconvenientes da theocracia ; mas
em que nação bellicosa levou jámais um padre o
homem á escravidão ?
E' , portanto, d'este grande principio geral que se
deve partir para considerar a influencia do clero na
nossa antiga constituição, e não d'algumas particulari-
316 O GENIO DO CHRISTIANISMO

dades locaes e accidentaes . Todas essas invectivas


'contra a riqueza da Igreja, contra a sua ambição , são
apenas mesquinhos reflexos sobre um assumpto im-
menso : é considerar apenas a superficie dos objectos
sem lançar vistas prescrutadoras á sua profundeza . O
christianismo era no nosso corpo politico o mesmo que
aquelles instrumentos religiosos de que os espartanos
se serviam nas batalhas, menos para animar os solda-
dos, do que para lhes moderar os impetos .
Consultando-se a historia dos nossos Estados geraes ,
vê- se que o clero exerceu sempre esta bella missão de
moderador. Acalmava, aplacava os espiritos, e preve-
nia as resoluções precipitadas . Só a Igreja tinha ins-
trucção e experiencia, ao passo que os altivos barões
e as communas ignorantes apenas conheciam as facções
e uma obediencia absoluta ; só ella , pelo habito dos
synodos e dos concilios, sabia fallar e deliberar, só ella
tinha dignidade, quando ninguem mais a tinha . Vê-
mol-a alternativamente oppôr-se aos excessos do povo,
fazer francas admoestações aos reis , e affrontar a có-
lera dos nobres . A superioridade dos seus conheci-
mentos, o seu caracter conciliador, a sua missão de
paz, a mesma natureza dos seus interesses, deviam
dar-lhe em politica ideias generosas que faltavam ás
duas outras ordens : collocada entre ellas, tinha tudo
a receiar dos grandes , e nada das communas, das
quaes, por esta mesma razão, se tornára defensor na-
tural . Vêmol - a, d'este modo, nos momentos da sedição,
votar de preferencia com as ultimas . A coisa mais ve-
neravel que offereciam os nossos antigos Estados ge-
raes era aquelle banco de bispos anciãos, de mitra na
cabeça e baculo na mão , advogando alternativamente
a causa do povo contra os grandes , e a do soberano
contra senhores sediciosos.
Estes prelados fôram muitas vezes victimas da sua
dedicação . O odio dos nobres contra o clero foi tal nos
principios do decimo terceiro seculo, que S. Domingos
se viu na necessidade de prégar uma especie de cru-
zada contra os barões, para lhes tirar os bens da Igreja
que tinham usurpado . Muitos bispos fôram assassi-
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 317

nados pelos nobres, ou encarcerados pela côrte . Sof-


friam alternativamente as vinganças monarchicas, aris-
tocraticas e populares .
Se quizerdes examinar d'um modo mais especial a
influencia do christianismo na existencia politica dos
povos da Europa, vereis que elle prevenia as fomes e
salvava os nossos antepassados dos seus proprios fu-
rores , proclamando aquellas pazes chamadas pazes de
Deus, durante as quaes se faziam as colheitas e as vin-
dimas . Muitas vezes, nas commoções publicas os papas
se houveram como grandes principes . Fôram elles que ,
instigando os reis , chamando alarma, e formando ligas,
livraram o Occidente de ser presa dos turcos . Só este
serviço feito ao mundo pela Igreja lhe valia altares .
Homens indignos do nome de christãos assassina-
vam os povos do Novo-mundo, e a côrte de Roma ful-
minava bullas para prevenir taes atrocidades . ¹ A escra-
vidão era reconhecida como legitima, e a Igreja não
reconhecia escravos 2 entre os seus filhos . Os proprios
excessos da curia romana serviram para derramar os
principios geraes do direito das gentes . Quando os
papas lançavam interdictos aos reinos, quando força-
vam os soberanos a irem dar conta do seu procedimen-
to á santa Sé, arrogavam - se de certo um poder que não
tinham ; mas, ferindo a magestade do throno, faziam
talvez bem á humanidade . Os reis tornavam -se mais
circumspectos ; sentiam que tinham um freio e o povo
uma égide . Os rescriptos dos pontifices não deixavam
nunca de casar a voz das nações e o interesse geral dos
homens ás queixas particulares : « Veio ao nosso conhe-
cimento que Philippe, Fernando , Henrique, opprimia
seu povo, etc. » Tal era pouco mais ou menos o começo
de todos esses decretos da côrte de Roma.
Se houvesse no meio da Europa um tribunal que,
em nome de Deus , julgasse as nações e os monarchas.
e que prevenisse as guerras e as revoluções, esse tri-

1 A famosa bulla de Paulo 111.


2 O decreto de Constantino, que declara livre todo o escravo
que abraçasse o christianismo,
318 O GENIO DO CHRISTIANISMO

bunal seria uma obra prima de politica, a ultima ex-


pressão da perfeição social. Pois os papas, pela in-
fluencia que exerciam no mundo christão , tiveram
quasi realisado este bello sonho .
Montesquieu provou exhuberantemente que o chris-
tianismo é opposto no seu espirito e doutrinas ao poder
arbitrario, e que os seus principios fazem mais do que
a honra nas monarchias , mais do que a virtude nas
republicas, e de que o temor nos Estados despoticos.
Não ha, por ventura , republicas christãs que parecem
mais affeiçoadas á sua religião do que as monarchias ?
Não foi ainda sob a lei evangelica que se formou esse`
governo, cuja excellencia parecia tal ao mais grave dos
historiadores, que o julgava impraticavel ?" «Em todas
´as nações , diz Tacito, é o povo , ou os nobres, ou um
só quem governa ; uma fórma de governo que se com-
pozesse ao mesmo tempo de tres classes é uma bri-
lhante chimera, etc .»> ¹
Tacito não podia adivinhar que esta especie de mi-
lagre se realisaria um dia entre os selvagens de que
nos deixou a historia . 2 As paixões, no tempo do poly-
theismo, teriam derrubado depressa um governo que
se não conserva senão pela justeza da igualdade . O
phenomeno da sua existencia estava reservado para
uma religião, que, sustentando o mais perfeito equili-
brio moral, permitte estabelecer a mais perfeita ba-
lança politica .
Montesquieu viu o principio do governo inglez nas
florestas da Germania : era talvez mais simples desco-
bril-o na divisão das tres ordens, divisão conhecida
de todas as grandes monarchias da Europa moderna.
A Inglaterra começou, como a França e a Hespanha,
pelos seus Estados geraes ; a Hespanha passou a uma
monarchia absoluta , a França a uma monarchia mo-
derada, e a Inglaterra a uma monarchia mixta. O que
ha n'isso de notavel é que as côrtes da primeira go-

1 Tac. , Ann., lib. iv, num . xxxiii ,


2 In Vit. Agric.
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 319

savam muitos privilegios , que não tinham os Estados


geraes da segunda, nem os parlamentos da terceira,
e que o povo mais livre cahiu no governo mais abso-
luto . Por outro lado, os inglezes, que estavam quasi
reduzidos á escravidão , caminharam para a indepen-
dencia, e os francezes , que nem eram muito livres
nem muito avassallados , ficaram quasi no mesmo es-
tado .
Finalmente, foi uma grande e fecunda ideia politica
esta divisão das tres ordens . Totalmente ignorada dos
antigos, produziu entre os modernos o systema repre-
sentativo, que se póde collocar no numero d'essas tres
ou quatro descobertas que crearam um outro universo .
E diga se , tambem , para gloria da nossa religião , que
o systema representativo deriva em parte das institui-
ções ecclesiasticas : em primeiro logar, porque a Igreja.
lhe deu o modo nos seus concilios compostos do sobe-
rano pontifice, dos prelados , e dos deputados do baixo-
clero; e em segundo logar, porque os padres christãos ,
por isso que se não separavam do Estado , deram ori-
gem a uma nova ordem de cidadãos , que , reunida ás
duas outras , causou a representação do corpo politico.
Não devemos esquecer uma observação que vem em
apoio dos factos precedentes, e prova que o genio
evangelico é eminentemente favoravel á liberdade. A
religião christã estabeleceu como dogma a igualdade
moral, a unica que se póde prégar sem perturbar o
mundo. O polytheismo tratava em Roma de persuadir
ao patricio que não provinha d'um barro mais nobre
do que o do plebeu ? Que pontifice ousaria dirigir
taes palavras a Nero ou a Tiberio ? Veriam logo o
corpo do imprudente levita exposto ás gemonias . E
todavia são estas as lições que os potentados christãos
recebem todos os dias n'essa cadeira, tão justamente
chamada cadeira da verdade .
O christianismo é sobretudo admiravel por ter con-
vertido o homem physico no homem moral. Todos os
grandes principios de Roma e da Grecia, a igualdade,
a liberdade , se encontram na nossa religião, mas appli-
cados á alma e ao genio, e considerados sob aspectos
sublimes.
320 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Os conselhos do Evangelho formam o verdadeiro


philosopho, e os seus preceitos o verdadeiro cidadão.
Não ha um pequeno povo christão entre o qual não seja
mais agradavel viver do que entre o mais famoso dos
povos antigos , á excepção de Athenas, que foi encan-
tadora, mas horrorosamente injusta . Ha nas nações
modernas uma paz interior, um exercicio contínuo das
mais tranquillas virtudes, que se não viram reinar nas
margens do Illisus e do Tibre . Se a republica de Bruto
ou a monarchia de Augusto resuscitasse de repente,
teriamos horror á vida romana. Basta recordar as
festas da deusa Flora , e esse matadouro contínuo de
gladiadores, para reconhecer a enorme differença que
o Evangelho estabeleceu entre nós e os pagãos . O mais
infimo dos christãos , homem honesto , é mais moral do
que o primeiro dos philosophos da antiguidade .
<«<Finalmente, diz Montesquieu , nós devemos ao
christianismo, no governo, um certo direito politico.
e na guerra, um certo direito das gentes, que a natu-
reza humana nunca avaliará sufficientemente .
« E ' este direito que faz que entre nós a victoria deixe
aos povos vencidos a vida , a liberdade, as leis, os bens ,
1
e sempre a religião , quando os povos não desvairam » .
Accrescentemos , para coroar tantos beneficios, um ,
que devia ser inscripto em letras d'ouro nos annaes da
philosophia :

A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

CAPITULO XII

Recapitulação geral

Não é sem uma especie de receio que chegamos ao


fim da nossa obra . As graves ideias que nol -a fizeram
emprehender, a arriscada ambição que tivemos de ter-
minar, quanto em nós estava, a questão sobre o chris-

1 Espirito das leis, liv. xxiv, cap. 111 .


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 321

tianismo, são considerações que nos inquietam . E' dif-


ficil conhecer até que ponto Deus approva que os ho-
mens tomem nas suas debeis mãos a causa da sua eter-
nidade, se arvorem em advogados do Creador no tri-
bunal da creatura, e busquem justificar com razões
humanas as causas que deram origem ao universo . E ' ,
pois, com extremo receio sobejamente motivado pela
insufficiencia das nossas forças, que offerecemos a re-
capitulação geral da obra .
Toda a religião tem mysterios ; toda a natureza é
um segredo .
Os mysterios christãos são os mais bellos possiveis :
são o archetypo do systema do homem e do mundo .
Os sacramentos são uma legislação moral , e quadros
cheios de poesia.
A fé é uma força, a caridade um amor, a esperança
uma felicidade, ou , como lhe chama a religião , uma
virtude .
As leis de Deus são o codigo mais perfeito da jus-
tiça natural.
A quéda do nosso primeiro pae é uma tradição
universal . Póde achar-se uma nova prova d'isso na
constituição do homem moral, que contradiz a consti-
tuição geral dos sêres .
A prohibição de tocar no fructo da sciencia é uma
ordem sublime, à unica digna de Deus .
Todas as suppostas provas da antiguidade da terra
podem ser contestadas .
Dogma da existencia de Deus demonstrado pelas
maravilhas do universo ; designio visivel da Providen-
cia no instincto dos animaes ; prodigios da natureza.
Só a moral de per si prova a immortalidade da alma .
O homem deseja a felicidade, e é o unico ente que
não póde obtel -a : ha, pois , uma felicidade além da
vida, porque ninguem deseja o que não existe .
O systema do atheismo é fundado em excepções :
não é o corpo que influe na alma, mas a alma que obra
sobre o corpo . O homem não segue as regras geraes da
materia; diminue onde o animal augmenta .
O atheismo não é bom para ninguem, nem para o
VOL. II 21
322 O GENIO DO CHRISTIANISMO

desgraçado , a quem tira a esperança , nem para o ven-


turoso, a quem tolhe a felicidade, nem para o soldado ,
que torna timido, nem para a mulher, a quem desbota
a belleza e mata a ternura, nem para a mãe , que póde
perder o filho , nem para os governos, que só na reli-
gião têm segura garantia da felicidade dos povos .
As penas e as recompensas que o christianismo pro-
mette na outra vida estão d'accordo com a razão e a
natureza da alma .
Em poesia, os caracteres são mais bellos e as pai-
xões mais energicas sob o dominio do christianismo
do que o eram sob o imperio do polytheismo . Este não
tinha a parte dramatica , o combate das tendencias na-
turaes com as virtudes .
A mythologia acanhava a natureza ; e os antigos,
por esta razão, não tinham poesia descriptiva . O chris-
tianismo dá aos desertos as suas paisagens e solidões .
O maravilhoso christão póde soffrer parallelo com
o maravilhoso da Fabula . Os antigos fundam a sua
poesia em Homero , e os christãos na Biblia ; e as belle-
zas da Biblia excedem as bellezas de Homero .
E' ao christianismo que as bellas -artes devem a sua
restauração e aperfeiçoamento .
Em philosophia não se oppõe a nenhuma verdade
natural . Se alguma vez combateu as sciencias , seguiu
n'isso o espirito do seu seculo e a opinião dos maiores.
legisladores da antiguidade .
Em historia teriamos ficado inferiores aos antigos
sem o novo caracter de imagens , de reflexões e pensa-
mentos a que deu origem a religião christã : a eloquen-
cia moderna fornece- nos a mesma observação .
Restos das bellas-artes , solidões dos mosteiros, en-
canto das ruinas, graciosas devoções do povo, harmo-
nias do coração , da religião e dos desertos , é o que
conduz ao exame do culto .
Por toda a parte, no culto christão , a pompa e a
magestade andam unidas ás intenções moraes , ás pre-
ces affectuosas ou sublimes . O sepulchro vive e anima-
se na nossa religião ; desde o camponez que repousa
no cemiterio da aldeia até ao rei depositado em S. Di-
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 323

niz, tudo dorme envolto n'um pó poetico . Job e David,


recostados no tumulo do christão, cantam alternativa-
mente a morte ás portas da eternidade .
Acabamos de vêr o que os homens devem ao clero
secular e regular, ás instituições, á indole do christia-
nismo .
Se Shoonbeck, Bonnani, Giustiniani e Helyot tives-
sem dado mais ordem ás suas laboriosas investigações ,
poderiamos dar agora o catalogo completo dos serviços
prestados pela religião á humanidade . Começariamos
por fazer a lista das calamidades que affligem a alma
e o corpo do homem, e juntariamos a cada dôr a ordem
christã que se dedica ao allivio d'essa dôr . Não é exa-
geração : um homem póde imaginar a miseria que qui-
zer, e apostam - se mil contra um em como a religião
adivinhou já o seu pensamento , e preparou o remedio
para tal desgraça . Eis-ahi o que concluimos d'um cal-
culo o mais exacto que podemos fazer :
Ha pouco mais ou menos, na superficie da Europa
christã, quatro mil e trezentas cidades e villas .
N'este numero, tres mil duzentas e noventa e quatro
são d'uma grandeza de primeira, de segunda , terceira
e quarta ordem.
Concedendo um hospital a cada uma d'estas tres
mil duzentas e noventa e quatro cidades (calculo infe-
rior á verdade) , tereis tres mil duzentos e noventa e
quatro hospitaes, quasi todos instituidos pelo genio
do christianismo, dotados com os bens da Igreja e
administrados por ordens religiosas .
Tomando um termo proporcional e dando sómente
cem leitos a cada hospital, ou, antes, cincoenta leitos
para dous doentes , vereis que a religião, independen-
temente de pobres que nutre, soccorre e sustenta dia-
riamente, ha mais de mil annos, quasi trezentos vinte
e nove mil e quatrocentos homens .
Feito o orçamento dos collegios e universidades ,
colhe-se quasi o mesmo resultado , e póde dizer - se afou-
tamente que ella educa, pelo menos, trezentos mil jo-
vens nos diversos Estados da christandade .
Não mettemos aqui em linha de conta os hospitaes
324 O GENIO DO CHRISTIANISMO

e collegios christãos nas tres outras partes do mundo,


nem a educação de meninas pelas religiosas.
Convem agora juntar a estes resultados o dicciona-
rio dos homens celebres sahidos do seio da Igreja, e
que formam quasi dois terços dos grandes homens dos
seculos modernos , não esquecendo que, como já mos-
tramos, a restauração das sciencias, das artes e das
lettras se deve á Igreja : que a maior parte das grandes
descobertas modernas, taes como a polvora, os relogios,
os oculos , a bussola, e em politica o systema represen-
tativo, lhe pertencem; que a agricultura, o commercio,
as leis e o governo lhe devem obrigações immensas ;
que as suas missões levaram as sciencias e as artes a
povos civilisados, e as leis a povos barbaros ; que a
sua cavallaria contribuiu poderosamente para salvar
a Europa d'uma invasão de novos barbaros ; que o ge-
nero humano lhe deve :
O culto d'um só Deus ;
O dogma mais fixo da existencia d'este Sêr Supremo ;
A doutrina menos vaga e mais certa da immortali-
dade da alma, bem como a das penas e das recompen-
sas na outra vida ;
Mais humanidade entre os homens ;
Uma virtude, que vale todas as outras, a caridade ;
Um direito politico e um direito das gentes , desco-
nhecidos dos povos antigos ; e, mais que tudo , a aboli-
ção da escravatura.
Quem não ficará convencido da belleza e excellencia
do christianismo ? Quem não se admirará d'esta mara-
vilhosa multidão de beneficios ?
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 325

CAPITULO XIII , E ULTIMO

Qual seria hoje o estado da sociedade se não tivesse


apparecido o christianismo ?

CONJECTURAS- -CONCLUSÃO

Terminaremos esta obra pelo exame da importante


pergunta que serve de titulo a este ultimo capitulo .
Investigando o que seriamos provavelmente hoje se o
christianismo não tivesse apparecido, ensinaremos a
apreciar melhor o que devemos a esta religião divina .
Augusto chegou ao imperio por crimes e reinou
com a apparencia de virtude . Succedeu a um conquis-
tador, e, para se distinguir, foi pacifico . Não podendo
ser um grande homem, quiz ser um principe feliz . Deu
muita tranquilidade aos seus subditos ; sopitou um
immenso fóco de corrupção . A este socego chamou-se
prosperidade . Augusto teve o genio das circumstancias :
foi elle que colheu os fructos que o verdadeiro genio
preparou; seguiu-o , mas não o acompanhou sempre.
Tiberio desprezou muito os homens, e fez-lhes , so-
bretudo, notar esse desprezo . O unico sentimento em
que teve franqueza era o unico em que devia dissi-
mular ; mas é que não podia soffocar um grito de jubilo
quando via o povo e o senado romano inferiores á bai-
xeza do seu proprio coração .
Ao vêr o povo-rei prostrar- se ante Claudio, e adorar
o filho de Enobarbo, crê -se facilmente que muita honra
se lhe tem dado em o ter em alguma conta . Roma
amou Nero . Muito tempo depois da morte d'este ty-
ranno, as suas imagens faziam exultar o imperio de
jubilo e d'esperança . E ' aqui que devemos demorar-nos.
para contemplar os costumes romanos . Nem Tito, nem
Antonino, nem Marco Aurelio poderam mudar -lhe a
essencia : só a um Deus era isso possivel .
O povo romano foi sempre um povo horrivel : nunca
se cahe nos vicios em que elle se tornou notavel sob
o dominio dos seus senhores , sem uma certa perversi-
326 O GENIO DO CHRISTIANISMO

dade natural e algum defeito de nascença no coração .


Athenas corrompida nunca foi execravel : escravisada ,
nunca tratou senão de gosar . Achava que os seus ven-
cedores não lhe tinham tirado tudo , pois que lhe ha-
viam deixado o templo das musas .
As virtudes de Roma, quando as teve , fôram contra
a natureza . O primeiro Bruto degolou os seus filhos,
o segundo assassinou seu pae . Ha virtudes de posição
que se tomam facilmente por virtudes geraes , e que
apenas são accidentes locaes. Roma livre foi primeiro
frugal, porque era pobre ; corajosa, porque as suas ins-
tituições lhe mettiam as armas na mão, e porque sahia
d'uma caverna de salteadores . Fóra d'isso , era feroz ,
injusta, avara, luxuriosa : só teve bom o seu genio : o
seu caracter foi odioso .
Os decemviros calcam-a aos pés . Mario derrama a
seu bel-prazer o sangue dos nobres, e Sylla o do povo.
Para cumulo do insulto, este abjurou publicamente
a dictadura . Os conjurados de Catilina compromettem-
se a assassinar os proprios paes , 1 e divertem -se em
derrubar essa magestade romana que Jugurtha se pro-
põe a comprar. 2 Vem os triumviros e as suas proscri-
pções ; Augusto ordena ao pae e ao filho que se matem
mutuamente ; 3 e o pae e o filho matam - se . O senado
mostra-se demasiado vil mesmo para Tiberio . O deus
Nero teve templos . Não fallando d'esses delatores sahi-
dos das principaes familias patricias ; não mostrando
os chefes d'uma mesma conjuração denunciando - se e
assassinando- se uns aos outros ; 5 não representando
os philosophos discursando ácerca da virtude no meio.
das dissoluções de Nero ; Seneca desculpando um parri-
6
cidio ; Burrho louvando-o e chorando- o ao mesmo

1 Sallust. , In Catil ., XLIV.


2 Ibid. , In bell. Jugurth .
3 Suet. , In Aug.; Amm . Alex.
4 Tacit. Ann.
5 Ibid., Ann. , lib. xv, num. 56 e 57.
6 Tacit., Ann. , lib. xiv, num. 15. A Papiniano, jurisconsulto e
perfeito do pretorio, que não se jactava de philosopho, ordenando-lhe
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 327

tempo ; sem mesmo mencionar, no, tempo de Galba,


Vitellio, Domiciano e Commodo, esses actos de covar-
dia cem vezes lidos e que espantam sempre, um unico
facto bastará para pintar a infamia romana : Plautiano ,
ministro de Severo, casando sua filha com o primoge-
nito do imperador, fez mutilar cem romanos livres, e
alguns casados e chefes de familia, — « a fim, diz o his-
toriador, de que sua filha tivesse no seu sequito eunu-
cos dignos d'uma rainha do Oriente» . 1
A esta villeza de caracter juntae uma espantosa cor-
rupção de costumes . O grave Catão assistia ás prosti-
tuições dos jogos de Flora . Sua mulher Marcia estava
gravida, e elle cedeu-a a Hortensio : tempo depois mor-
reu Hortensio , deixando Marcia herdeira de todos os
seus bens ; Catão tomou-a outra vez com prejuizo do
filho de Hortensio . , Cicero separou-se de Terencia para
casar com Publilia, sua pupilla . Seneca diz que havia
mulheres que não contavam os annos por consulados ,
mas pelo numero de maridos . 2 Tiberio inventou os
scellarii e as spintriæ. Nero esposou publicamente o
3
liberto Pythagoras, e Heliogabalo celebrou as suas
nupcias com Hierocles . 4
Foi este mesmo Nero tantas vezes citado que insti-
tuiu as festas Juvenaes . Os cavalleiros, os senadores
e as damas da primeira jerarchia eram obrigadas a
subir ao palco, a exemplo do imperador, e cantar can-
tigas obscenas, imitando os gestos dos histriões . 5 Para
o banquete de Tigellino, no lago Agrippa, construiram-
se casas onde as mais nobres romanas eram collocadas
em frente de meretrizes núas . Ao cahir da noite, illu-
minou-se tudo, 6 para que a crápula tivesse um sentido
de mais e um véo de menos .

Caracala que se justificasse do assassinato de seu irmão Geta , res-


pondeu : E' mais facil commetter um parricidio do que justificar d'elle .
1 Dion. , lib. LXXVI , pag. 12, 71 .
2 De Benefic. , 111 , 16.
3 Tacit., Ann., xv. 37.
4 Dion., lib. xxxx ; Hist., Aug. , 10 .
5 Tacit., Ann ., xiv, 15,
6 Tacit. , Ann., xv, 37.
328 O GENIO DO CHRISTIANISMO

A morte tomava uma parte essencial n'estes diver-


timentos antigos . Entrava para contraste e realce dos
prazeres da vida. Para ajudar a digestão , vinham os
gladiadores com rameiras e tocadores de flauta . Sahin-
do dos braços d'uma infame, ia-se vêr uma besta-fera
beber sangue humano : da vista d'um lupanar passava-
se ao espectaculo das convulsões d'um homem agoni-
sando . Que povo aquelle, que tornára opprobrioso o
nascimento e a morte, e apresentára n'um theatro os
dois grandes mysterios da natureza, para deshonrar
d'uma vez a obra de Deus !
Os escravos que trabalhavam na terra traziam cons-
tantemente ferros aos pés : dava- se-lhes por unico sus-
tento um pouco de pão , agua e sal ; á noite encerra-
vam-os em subterraneos que apenas recebiam ar por
uma trapeira aberta na abobada d'essas masmorras .
Havia uma lei que prohibia que se matassem os leões
d'Africa, que eram reservados para os espectaculos de
Roma . Aquelle que disputasse a vida contra um d'estes
1
animaes seria severamente punido . Quando um des-
graçado morria na arena despedaçado por uma pan-
thera ou atravessado pelas pontas d'um veado, certos
doentes corriam a banhar- se-lhe no sangue ou bebel-o
com labios sôfregos . 2 Caligula desejava que o povo
romano só tivesse uma cabeça para lh'a decepar d'um
só golpe . 3 Este mesmo imperador nutria os leões de
carne humana em quanto não havia jogos no circo ;
e Nero esteve para fazer comer homens vivos a um
egypcio conhecido pela sua voracidade . 4. Tito , para
celebrar os annos de seu pae Vespasiano, entregou ás
feras, para que os devorassem, tres mil judeus . 5 Acon-
selhavam Tiberio que mandasse matar um dos seus
antigos amigos que definhava na prisão : « Ainda me

1 Cod. Theod . , tom. vi , 92.


2 Tert. , Apolog.
3 Suet., In Vit.
4 Id.. In Callig. et Ner.
5 Joseph. , de Bell. Jud.
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 329

não reconciliei com elle» - respondeu o tyranno n'estas


palavras que revelam o genio de Roma.
Era uma coisa vulgar degolar cinco , seis, dez, vinte
mil pessoas de todas as classes , de todos os sexos e
idades por uma suspeita do imperador ; ¹ e os parentes
das victimas adornavam as casas de grinaldas, beija-
vam as mãos do deus , e assistiam ás suas funcções .
A filha de Sejano, na idade de nove annos , que dizia
que que nunca tal faria, e , quando a levavam para a
prisão, pedia que a açoutassem, 2 foi violada pelo algoz
antes de ser estrangulada por elle : assim esses vir-
tuosos romanos respeitavam as leis ! Viram-se no tempo
3
de Claudio, e Tacito cita -o como um bello espectaculo,
dezenove mil homens matar-se mutuamente no lago
Fucino para recrear a populaça romana . Antes de co-
meçar a carnificina, os combatentes saudaram o im-
perador: « Ave, imperator; murituri te salutant » . - Ce-
sar, os que vão morrer te saúdam expressão tão
covarde como pathetica.
Era a extincção absoluta do senso moral que dava
aos romanos esta felicidade de morrer, que tanto se tem
admirado . Os suicidios são sempre vulgares entre os
povos corrompidos . O homem reduzido ao instincto.
do bruto morre indifferentemente como elle . Não falla-
remos dos outros vicios dos romanos , como do infan-
ticidio auctorisado por uma lei de Romulo, confirmada
pela das Doze Taboas , e da sordida avareza d'este povo
famoso. Scaptio tinha emprestado alguns fundos ao
senado da Salamina : e, como o senado não podésse re-
embolsal - o no praso determinado , Scaptio teve- o tanto
tempo sitiado por cavalleiros, que alguns senadores
morreram de fome . O estoico Bruto, em virtude de
negocios communs com este concussionario, interessou-
se por elle para com Cicero, que não pôde conter a
4
sua indignação .

1 Tacit. , Ann. , xv.


2 Id., Ibid., v.
3 Id., Ibid., x11 , 56.
4 O juro era de 4 por cento ao mez ! Cicer. , Epist. ad Attic.,
ilb.. vi, epist. 11.
330 O GENIO DO CHRISTIANISMO

Se, pois, os romanos cahiram na escravidão , a si


só devem criminar-se . Foi o aviltamento o que pri-
meiro lhe produziu a tyrannia : e , por uma justa reacção ,
a tyrannia prolongou depois a abjecção . Não defende-
mos o estado actual da sociedade ; o povo moderno
mais corrupto é um povo de homens discretos compa-
rados ás nações pagãs .
Ainda quando se suppozesse que o systema politico
dos antigos fosse melhor do que o nosso, o seu systema
moral não assimilhou nunca o que o christianismo fez
nascer entre nós . E como, finalmente , a moral é , em
ultimo caso, a base de todas as instituições sociaes ,
nunca chegaremos á depravação da antiguidade em-
quanto que formos christãos .
Que freio ficou aos homens depois de espedaçados
ós vinculos politicos em Roma e na Grecia ? O culto
de tantas divindades indignas podia conservar costu-
mes que as leis já não sustentavam ? Longe de reme-
diar a corrupção , tornou-se um dos mais poderosos
agentes d'ella . Por um excesso de miseria, que faz tre-
mer, a ideia da existencia dos deuses, que nutre a
virtude entre os homens , alimentava os vicios entre
os pagãos, e parecia eternisar o crime, dando-lhe um
principio d'eterna duração .
Restam-nos tradições da perversidade dos homens.
e das terriveis catastrophes que não deixaram nunca.
de acompanhar a corrupção de costumes . Não seria
possivel que Deus combinasse a ordem physica e a
moral do universo , de modo que um transtorno n'esta
produzisse alterações notaveis na outra, e que os gran-
des crimes promovessem naturalmente as grandes rẻ-
voluções ? O pensamento opéra sobre o corpo d'uma
maneira inexplicavel ; o homem é talvez o pensamento
do grande corpo do universo . Isto simplificaria muito
a natureza e engrandeceria prodigiosamente a esphera
do homem : seria uma chave para a explicação dos mi-
lagres, que entrariam no curso ordinario das coisas .
Se os diluvios , os incendios, o aniquilamento dos Es-
tados tivessem as suas causas secretas nos vicios dos
homens ; se o crime e o castigo fôssem os dois pesos
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 331

motores collocados nas cuias da balança moral e phy-


sica do mundo, a harmonia seria bella , e formaria o
todo d'uma creação que parece duplicada ao primeiro
lance de vista .
Póde portanto ser que a corrupção do imperio ro-
mano attrahisse do fundo dos seus desertos os barbaros
que, sem conhecerem a sua missão destruidora , se ti-
nham , como que por instincto, appellidado flagello de
Deus.¹ Que seria do mundo se a grande arca do chris-
tianismo não houvesse salvado d'este novo diluvio os
restos do genero humano ? Que sorte esperaria a pos-
teridade ? Onde se teriam conservado as luzes ?
Os sacerdotes do polytheismo não constituiam um
corpo de homens lettrados, excepto na Persia e no
Egypto ; mas os magos e os padres egypcios , que ainda
assim não communicavam ao vulgo a sua sciencia, já
não existiam em corporação no tempo da invasão dos
barbaros . Quanto ás seitas philosophicas d'Athenas e
Alexandria, essas circumscreviam-se a estas duas ci-
dades, e consistiam, quando muito, em algumas cen-
tenas de sophistas, que seriam degolados com os demais.
cidadãos .
Entre os antigos não havia espirito de proselytismo,
nem ardor pelo ensino, nem amor pela solidão , para
ahi viver com Deus e salvar as sciencias . Que pontifice
de Jupiter caminharia para Attila a fim de o suster ?
que levita persuadiria a Alarico que retirasse de Roma
as suas tropas ? Os barbaros que entravam no imperio
eram já meio- christãos ; mas vejamol-os marchar de-
baixo da bandeira sangrenta do deus da Scandinavia.
ou dos tartaros : se não encontrassem na sua passagem
uma força de opinião religiosa que os obrigasse a res-
peitar alguma coisa, e um conjuncto de costumes que
o christianismo começava a renovar entre os romanos ,
não ha duvida que teriam destruido tudo . E era esse
o plano de Alarico : « Sinto em mim, dizia este rei
barbaro , alguma coisa que me leva a incendiar Roma» .

1 Vêde no fim a nota 8.a


332 O GENIO DO CHRISTIANISMO

E' um homem elevado sobre ruinas e que parece gi-


gante.
De todos os povos que invadiram o imperio, os
godos parece terem tido o genio menos devastador.
Theodorico , vencedor de Odoacro, foi um grande prin-
cipe ; mas Theodorico era christão, mas Boecio , seu
ministro , era um homem de lettras christão ; e isso illude
todas as conjecturas . Que teriam feito os godos ido-
latras ? Teriam , sem duvida, destruido tudo como os
outros barbaros . Além d'isso, corromperam -se muito
depressa ; e se em logar de venerarem a Jesus Christo,
adorassem Priapo, Venus e Baccho, que horrivel mis-
cellanea não resultaria da religião sanguinolenta de
Odin, e das dissolutas fabulas da Grecia !
O polytheismo era tão pouco proprio para conservar
alguma coisa, que elle mesmo se desfazia em ruinas
por todos os lados, e que Maximino lhe quiz fazer to-
mar as fórmas christãs para o sustentar. Este Cesar
estabeleceu em cada provincia um levita, que corres-
pondia ao bispo, e um summo- sacerdote , que repre-
sentava o metropolitano . Julião fundou conventos
de pagãos , e fez prégar nos seus templos os ministros
de Baal . Este systema, imitado do christianismo, cahiu
em breve, porque não era sustido por espirito de vir-
tude, nem se apoiava nos costumes .
A unica classe dos vencidos respeitada pelos bar-
baros, foi a dos padres e religiosos . Os mosteiros tor-
naram -se outros tantos centros onde o fogo sagrado
das artes se conservou com a lingua grega e latina .
Os principaes cidadãos de Roma e Athenas, refu-
giando-se no sacerdocio christão , evitaram a morte ou
a escravidão a que teriam sido condemnados com o
resto do povo .
Póde julgar-se o abysmo em que estariamos hoje
submersos se os barbaros encontrassem o mundo do-
minado pelo polytheismo, attentando no estado actual
das nações onde se extinguiu o christianismo . Esta-

1 Euseb., VII , cap. xiv ; 1x, cap, n -vin .


PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 333

riamos todos escravos turcos , ou peior ainda, porque ,


ao menos , o mahometismo tem um fundo de moral
similhante alguma coisa ao christianismo, do qual,
no fim de tudo, não é mais que uma seita remota . Mas
assim como o primeiro Ismael foi inimigo do antigo Ja-
cob, o segundo é o perseguidor do novo .
E ' , pois, muito provavel que, se não fosse o chris-
tianismo, a perda da sociedade e das sciencias teria sido
total ; e não póde calcular- se de quantos seculos ne-
cessitaria o genero humano para sahir da ignorancia
e corrupta barbarie em que se achou sepultado . Foi
necessario que um corpo immenso de solitarios , espa-
lhados pelas tres partes do mundo, e trabalhando de
concerto para o mesmo fim, conservassem o fogo que
reaccendeu, entre os modernos , o facho das sciencias .
Repito, que nenhuma ordem politica, philosopica ou
religiosa do paganismo teria podido prestar este in-
apreciavel serviço, na falta da religião christã . Os es-
criptos dos antigos existiam espalhados pelos mostei-
ros, e d'este modo escaparam, em parte, á devastação
dos godos . Finalmente, o polytheismo não era, como
o christianismo, uma especie de religião, por assim
dizer, lettrada, porque não reunia, como este, a me-
taphysica e a moral aos dogmas religiosos . A necessi-
dade que tinham os sacerdotes christãos de publicarem
obras, ou fôsse para propagar a fé , ou para combater
a heresia, contribuiu poderosamente para a conserva-
ção e restauração das luzes .
Em todas as hypotheses imaginaveis se reconhece
sempre que o Evangelho preveniu a destruição da so-
ciedade; porque, ainda suppondo que não houvesse
apparecido na terra e que os barbaros tivessem per-
manecido nas suas selvas, é certo que o mundo ro-
mano , esphacelando- se pela corrupção dos costumes ,
estava ameaçado d'uma dissolução espantosa.
E se os escravos se sublevassem ? Eram tão per-
versos como os seus senhores ; participavam dos mes-
mos prazeres e vergonha ; tinham a mesma religião,
e esta religião das paixões destruia toda a esperança
de mudança nos principios moraes . A illustração ,
334 O GENIO DO CHRISTIANISMO

longe de fazer progressos , retrocedia ; as artes cahiam


em decadencia ; e a philosophia apenas servia para
diffundir uma especie de impiedade, que, sem causar
a destruição dos idolos, produzia nos grandes os crimes
e as desgraças do atheismo , deixando aos pequenos
os da superstição . Tinha feito progressos o genero
humano, porque Nero não cria nos deuses do Capito-
lio e profanava por vaidade as suas estatuas ?
Tacito diz que ainda havia costumes no interior
das provincias ; 2 estas , porém , começavam já a ser
3
christãs, e eu fallo na hypothese de que o christianis-
mo não tivesse sido conhecido, e de que os barbaros
não houvessem sahido dos seus desertos . Quanto aos
exercitos romanos, que, naturalmente, teriam desmem-
brado o imperio , os soldados estavam tão corrompidos
como os demais cidadãos , e sêl-o -iam mais se não
tivessem sido alistados entre os godos e germanos .
O que, de tudo, se póde conjecturar é que , depois de
longas guerras civis, e d'uma sublevação geral que
durasse muitos seculos , a raça humana ficaria redu-
zida a uns quantos homens divagando entre ruinas .
Mas quantos annos não seriam mister para que a nova
arvore dos povos estendesse os seus ramos sobre tantos
destroços ? Quanto tempo não gastariam a renascer
as sciencias, esquecidas ou perdidas, e em que estado
d'infancia não estaria ainda hoje a sociedade ?
Assim como salvou a sociedade d'uma destruição
total, convertendo os barbaros e colhendo os restos da
civilisação e das artes, o christianismo teria salvado
o mundo romano da sua propria corrupção , se elle
não houvesse succumbido debaixo das hostes estran-
geiras . Uma religião só póde renovar um povo desde

1 Tacit., Ann., liv. xiv ; Suet., In Ner.


2 Tacit., Ann . , liv. xv , 5.
3 Dionys. et Ignat., Ep. ap. Eus. , 1v, 23 ; Chrys ., Op., t. vii , pag.
658 e 810, edit. Savil ; Plin.. Ep., x ; Luciano, In Alexandro, cap. xxv.
Plinio, na sua famosa carta aqui citada , lamenta que os templos es-
tejam desertos, e que já se não encontrem compradores para as victi-
mas sagradas, etc.
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 335

a raiz ; e a de Christo começava já a restabelecer todos


os fundamentos moraes . Os antigos admittiam o in-
fanticidio e a dissolução do laço conjugal, que é, effe-
ctivamente, o primeiro laço social ; a sua prohibidade
e justiça eram relativas á patria, e não passavam os
limites dos seus paizes . Os povos, em conjuncto, ti-
nham principios distinctos dos do cidadão em parti-
cular. O pudor e a humanidade não eram tidos por
virtudes . A classe mais numerosa era escrava ; as so-
ciedades fluctuavam constantemente entre a anarchia
popular e o despotismo . Eis os males aos quaes o
christianismo applicava um remedio efficaz, como de-
monstrou claramente, livrando d'aquelles males as so-
ciedades modernas . A propria rigidez das suas pri-
meiras austeridades era necessaria : era preciso que
houvessem martyres da castidade, quando haviam
prostituições publicas ; penitentes cobertos de cilicio
e cinza, quando a lei auctorisava os maiores crimes
contra a moral : heroes de caridade, quando havia mons-
tros de barbaridade ; emfim, para arrancar dos espe-
ctaculos selvagens do circo e da arena um povo inteiro
corrupto, era necessario que a religião tivesse, por
assim dizer, os seus athletas e espectaculos nos desertos
da Thebaida .
Póde, pois, com toda a verdade , chamar-se a Jesus
Christo o Salvador do mundo , no sentido material,
assim como o é no sentido espiritual . A sua passagem
na terra é, humanamente fallando , o maior aconteci-
mento que se tem dado entre os homens, pois que é
desde a prégação do Evangelho que o mundo inteiro
mudou de face . E' admiravel o momento da vinda
do Filho do Homem ; pouco antes , a sua moral não era
de todo necessaria, porque os povos se sustinham ainda
pelas suas antigas leis : um pouco depois , este divino
Messias teria encontrado a sociedade completamente
destruida .
Actualmente todos nos prezamos de philosophos ;
mas não tem, de certo, nada de philosophica a leveza
com que tratamos as instituições christãs . O Evange-
lho, considerado em todos os sentidos, mudou comple-
336 O GENIO DO CHRISTIANISMO

tamente os homens ; fez-lhes dar um passo immenso


para a perfeição . Consideremol -o como uma grande
instituição religiosa, que regenerou toda a raça hu-
mana : todas essas insignificantes objecções , todos
esses frivolos sophismas da impiedade desapparecerão .
As nações pagas estavam ainda, é verdade, n'uma
especie d'infancia moral, relativamente ao que somos
hoje: alguns admiraveis rasgos de justiça praticados
em certos povos antigos não destroem esta verdade ,
nem alteram o fundo das coisas . O christianismo trou-
xe-nos, indubitavelmente, novas luzes : é o culto que
convem a um povo amadurecido pelo tempo, é, por
assim dizer, a religião natural na idade actual do
mundo, como o reinado dos idolos convinha ao berço
d'Israel . Não collocou mais que um Deus no céo ; e
aboliu na terra a escravidão . Além d'isso , se conside-
rardes, como nós fizemos , os seus mysterios como o
archetypo das leis da natureza, vereis que nada têm
de penoso para um grande espirito : as verdades do
christianismo, longe d'exigirem uma cega submissão,
reclamam , pelo contrario, o mais sublime exercicio da
razão.
Esta observação é tão justa, a religião christã, que
quizeram qualificar de religião dos barbaros, tanto é
um culto proprio do philosopho, que quasi póde dizer-
se que Platão a advinhou ; e não sómente a moral, senão
tambem a doutrina do discipulo de Socrates tem admi-
raveis analogias com a do Evangelho . Dacier resume- a
assim :
« Platão prova que o Verbo creou e fez visivel o uni-
verso : que o conhecimento d'este Verbo dá a felicidade
na vida, e procura a felicidade além da morte ;
«Que a alma é immortal ; que os mortos resuscita-
rão ; que haverá um juizo final dos bons e dos maus,
onde só apparecerão com suas virtudes e com os seus
vicios , que serão a causa da felicidade ou da desgraça
eterna.
«Finalmente , accrescenta o sabio traductor, Platão
fazia uma ideia tão grande e verdadeira da soberana
justiça, e conhecia tão perfeitamente a corrupção dos
PARTE QUARTA - LIVRO SEXTO 337

homens, que fez vêr, que, se um homem soberanamente.


justo apparecesse sobre a terra, acharia tanta opposi-
ção no mundo , que seria preso , escarnecido , açoutado ,
e por ultimo CRUCIFICADO por aquelles , que, embora
cheios de injustiça, se tivessem por justos » .
Os detractores do christianismo estão n'uma posição ,
cuja falsidade lhes é impossivel deixar de conhecer .
Se pretendem que a religião de Christo é um culto for-
mado pelos godos e pelos vandalos, prova- se-lhes facil-
mente que as escolas da Grecia tiveram noções assaz
distinctas dos dogmas christãos ; se, pelo contrario,
sustentam que a doutrina evangelica não é mais que
a doutrina philosophica dos antigos, perguntar- se-
Ihes-ha porque a rejeitam . Aquelles mesmos que não
vêm no christianismo senão antigas allegorias do céo,
dos planetas, dos signos, etc. , não destroem a grandeza
d'esta religião, pois sempre resultará que ella é pro-
funda e magnifica nos seus mysterios, antiga e sagrada
nas suas tradições , as quaes , por este novo raciocinio ,
irão perder-se no berço do mundo . E' , realmente, es-
tranho que nenhumas das grandes interpretações da
incredulidade consigam rebaixar ou tornar mediocre
a grandeza do christianismo !
Quanto á moral evangelica, todo o mundo confessa
a sua belleza : quanto mais conhecida e praticada fôr,
mais os homens comprehenderão a sua felicidade e os
seus verdadeiros interesses . A sciencia politica é extre-
mamente limitada : o ultimo grau de perfeição , a que
póde chegar, é o systema representativo, dimanado do
christianismo, como já mostramos ; mas uma religião,
cujos preceitos são um codigo de moral e de virtude ,
é uma instituição que póde supprir tudo , e tornar - se ,
nas mãos dos santos e dos sabios , um instrumento
universal de felicidade . Talvez um dia as diversas
fórmas de governo, exceptuando o despotismo, pare-
çam indifferentes, e se atenham simplesmente ás leis

1 Dacier, Discours sur Platon, pag. 22.


VOL . II 22
338 O GENIO DO CHRISTIANISMO

moraes e religiosas, que são o fundo permanente das


sociedades e o verdadeiro governo dos homens .
Os que discursam sobre a antiguidade, e queriam .
reduzir-nos ás suas instituições, esquecem que a ordem
social já não é, nem póde ser a mesma . Na falta d'uma
grande potencia moral, necessita -se, pelo menos , d'uma
grande força coercitiva entre os homens. Nas republi-
cas da antiguidade, como é sabido , a multidão era
escrava : o homem que cultivava a terra pertencia a
outro homem ; havia povos , mas não havia nações .
O polytheismo, religião, em todos os sentidos , im-
perfeita, poderia convir então áquelle estado imperfeito
da sociedade, por que cada senhor era uma especie
de magistrado absoluto , cujo terrivel despotismo con-
tinha o escravo nos seus deveres , e suppria com ferros
o que faltava á força moral religiosa : o paganismo , á
falta de excellencia necessaria para tornar o pobre
virtuoso, via- se na precisão de o deixar tratar como um
malfeitor.
Mas , na ordem presente das coisas, poderia alguem
reprimir uma multidão immensa de gente livre e dis-
tante da vista do magistrado ? poder- se-iam, nos obscu-
ros bairros d'uma grande capital, prevenir os crimes
d'uma população independente , sem uma religião que
prégasse os deveres e a virtude a todas as classes da
sociedade, e em todas as condições da vida ? Destrui
o culto evangelico, e necessitareis em cada aldeia d'uma
policia, prisões e algozes . Se succedesse que, por um
acontecimento inaudito , tornassem a levantar- se, em
algum tempo, os altares do paganismo entre os povos
modernos ; se n'uma ordem de sociedade, em que a
servidão está abolida, se adorasse o ladrão Mercurio,
ou a prostituta Venus, o genero humano perder- se-ial
sem remedio .
E este é o grande erro dos que louvam o polytheis-
mo por haver separado as forças moraes das forças
religiosas , e censuram, ao mesmo passo , o christianis- .
mo por ter seguido o systema opposto . Não vêem que
o paganismo se dirigia a um immenso rebanho d'escra-
vos , e que , temendo esclarecer a raça humana, devia
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO > 339

mantel-a n'um culto que falla unicamente aos sentidos


sem esclarecer o espirito ; ao passo que o christianismo ,
querendo destruir a escravidão, devia revelar ao ho-
mem a dignidade da sua natureza, e ensinar-lhe os
dogmas da razão e da virtude . Póde dizer- se que o
culto evangelico é o culto d'um povo livre, por isso
que reune a moral á religião .
Tempo é, finalmente, de que olhemos com horror
o estado em que temos vivido ha annos . Cuidemos
d'essa nova geração que se levanta nas nossas cidades
e nos campos, de todos esses jovens que, nascidos
durante a revolução, não ouviram nem têm ouvido
nunca fallar de Deus, nem da immortalidade da alma ,
nem das penas e recompensas que nos esperam na
outra vida ; lembremo-nos do que póde vir um dia a
ser similhante geração , se nos não apressarmos em
applicar o balsamo á chaga que a corroe . Já se vão
manifestando symptomas terriveis , e a idade da inno-
cencia já tem sido manchada de crimes . ¹ Já que não
póde penetrar na choupana do pobre, que se contente
a philosophia em habitar os salões dos ricos , e deixe
as cabanas á religião ; ou então , melhor dirigida e mais
digna do seu nome, que derribe ella mesmo as barrei-
ras que quiz levantar entre o homem e o seu Creador .
Apoiemos as nossas ultimas conclusões com auctori-
dades insuspeitas para os philosophos :
"A pouca philosophia, diz Bacon, aparta da religião,
e a muita philosophia conduz a ella : ninguem nega que
haja Deus, senão aquelle a quem interessa que o não
haja » .
Na opinião de Montesquieu « dizer que a religião
não é uma força repressiva , porque não reprime sem-
pre , é dizer que as leis o não são igualmente ... Não se
trata de saber se valeria mais que certo homem ou
povo não tivesse religião , do que tel-a e abusar d'ella ;

1 Os papeis publicos repetem a narração de crimes commettidos


por desgraçados d'onze ou doze annos . E' preciso que o perigo seja
muito grave, pois que os proprios camponezes se lamentam dos vi-
cios de seus filhos.
340 O GENIO DO CHRISTIANISMO

mas, sim, de saber qual é o menor mal, se abusar al-


gumas vezes da religião, ou não haver nenhuma entre
os homens » . 1
«A historia de Sabbacon, diz o illustre escriptor, é
admiravel . O deus de Thebas appareceu-lhe em sonhos
e ordenou-lhe que fizesse matar todos os sacerdotes do
Egypto . Julgou, por isto, que não era da vontade dos
deuses que elle reinasse, pois que lhe ordenavam coisas
tão contrarias á sua vontade ordinaria ; e retirou - se para
Ethiopia». 2
«Emfim, exclama J. J. Rousseau, fugi d'aquelles
que, com o pretexto d'explicar a natureza, vertem no
coração dos homens doutrinas desconsoladoras , e cujo
scepticismo apparente é cem vezes mais affirmativo e
dogmatico do que o tom imperativo dos seus adver-
sarios . Com a altiva presumpção de que só elles são
illustrados, veridicos e de boa fé, submettem-nos im-
periosamente ás suas terminantes decisões , e preten-
dem dar-nos, como verdadeiros principios das coisas,
inintelligiveis systemas que forjaram na sua imagina-
ção . Além de que, derribando, destruindo , e calcando
aos pés tudo que os homens respeitam, privam os
afflictos da ultima consolação da sua miseria ; tiram
aos poderosos e aos ricos o unico freio das suas pai-
xões ; arrancam do coração os remorsos do crime , a
esperança da virtude ; e vangloriam- se ainda de serem
os bemfeitores do genero humano . A verdade , dizem
elles, nunca é prejudicial aos homens ; assim o creio
eu tambem ; e é isso , na minha opinião , uma grande
prova de que não ensinam a verdade .
«Um dos sophismas mais familiares ao partido phi-
losophista é oppôr um povo supposto de bons philo-
sophos a um povo de maus christãos : como se um
povo de verdadeiros philosophos fosse mais facil de
formar do que um povo de verdadeiros christãos . Não
sei se entre os homens seria mais facil achar um do

1 Montesq., Espirito das Leis, liv. xxiv, cap. 11 .


2 Ibid , Id. , liv. xxiv, cap . IV.
PARTE QUARTA LIVRO SEXTO 341

que outro ; mas o que sei perfeitamente é que , tratando


d'um povo, é preciso suppôr que abusaria da philo-
sophia sem a religião , como os nossos abusam da re-
ligião sem a philosophia ; e isto me parece mudar muito
o estado da questão .
«Demais , é facil ostentar bellas maximas nos livros ;
mas o que importa saber é se ellas correspondem bem
á doutrina, se derivam d'ella necesariamente ; e isto é
o que até hoje se não tem feito . Resta saber se a philo-
sophia em plena liberdade e sobre o throno , sujeitaria
bem o orgulho, o interesse, a ambição, as mesquinhas
paixões dos homens, e se praticaria aquella tão doce
humanidade de que se vangloria com a penna na mão .
«PELOS PRINCIPIOS , A PHILOSOPHIA NÃO PÓDE FAZER
NENHUM BEM QUE A RELIGIÃO NÃO FAÇA AINDA MELHOR,
E A RELIGIÃO FAZ MUITOS QUE a philosOPHIA NÃO PODERIA
FAZER» .
«Os nossos governos modernos devem incontesta-
velmente ao christianismo a solidez da sua auctoridade
e a menor frequencia das suas revoluções ; e tornou-os
menos sanguinarios , como provam os factos, compa-
rando-os aos governos antigos . A religião, melhor co-
nhecida, afastando o fanatismo deu mais doçura aos
christãos . Esta mudança não é obra das lettras; pois
que, onde quer que floresceram, nem por isso fizeram
que a humanidade fôsse mais respeitada, como o pro-
vam exuberantemente as crueldades dos athenienses,
dos egypcios, dos imperadores de Roma e dos chins .
Quantas obras de misericordia são obra do Evangelho !»
Quanto a nós, estamos convencidos de que o chris-
tianismo sahirá triumphante da terrivel prova que
acaba de o purificar ; e o que a isso nos persuade é que
elle sustenta perfeitamente o exame da razão , e que ,
quanto mais se aprofunda, mais grandeza se lhe des-
cobre . Os seus mysterios explicam o homem e a na-
tureza ; as suas obras confirmam os seus preceitos ; a
sua caridade, debaixo de mil fórmas , substituiu a cruel-
dade dos antigos ; não perdeu nada das antigas pompas,
o seu culto satisfaz muito mais o coração e o espirito ;
devemos-lhe tudo, lettras, sciencias, agricultura e
342 O GENIO DO CHRISTIANISMO

bellas -artes ; une a moral á religião e o homem a Deus ;


Jesus -Christo, salvador do homem moral, é-o tambem
do homem physico : veio ao mundo como um grande
e feliz acontecimento para contrabalançar a inundação
dos barbaros e a corrupção geral dos costumes . Ainda
mesmo quando se negassem ao christianismo as suas
provas sobrenaturaes, seriam a sublimidade da sua
moral, a immensidade dos seus beneficios, a belleza
das suas pompas, sufficientes para provar que é o culto
mais divino e mais puro que jamais os homens prati-
caram .
«A'quelles que olham com repugnancia a religião,
diz Pascal, é preciso mostrar, primeiro que tudo, que
não é contraria á razão ; em seguida, que é veneravel ,
e fazel- a respeitar ; depois, tornal-a amavel e fazer de-
sejar que fosse verdadeira ; e por ultimo mostrar com
provas indisputaveis que é realmente verdadeira.
fazer vêr a sua antiguidade e santidade pela sua gran-
deza e elevação » .
Tal é o caminho que este grande homem traçou, e
que nós tratamos de seguir . Não empregamos os ar-
gumentos dos apologistas do christianismo, mas uma
diversa ordem de provas que nos leva a igual conclusão ,
que será o resultado d'esta obra.
O christianismo é perfeito; os homens são imper-
feitos .
Uma consequencia perfeita não póde deduzir- se
d'um principio imperfeito;
Logo, o christianismo não procedeu dos homens ;
Se não procedeu dos homens, só podia vir de Deus ;
Se veio de Deus , os homens não podiam conhecel-o
senão pela revelação ;
Por consequencia, o christianismo é uma religião
revelada .

FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME


ANNOTAÇÕES

NOTA 1.ª

Pagina 16 - A' religião tambem devemos Claude de


Lorrain, bem como Delille e Saint- Lambert.
O catalogo dos quadros antigos, que Plinio nos deixou ,
exceptuando as pinturas a fresco, não offerece sequer um
quadro de paisagem. E' possivel que alguns dos quadros
dos grandes mestres tivesse uma arvore, um rochedo, o
reconcavo d'um valle ou d'uma floresta, e uma lympha no
segundo ou terceiro plano ; mas não é isto o que constitue
a paisagem propriamente dita ; e tal como nol-a pintaram
os Lorrain e os Berghem.
Nas antiguidades de Herculanum não se encontrou coisa
alguma que faça crêr que na antiga escola houve pintores
de paisagens. Apenas se vê no Tělèpho , uma mulher sen-
tada, tendo uma grinalda na cabeça e na mão um açafate
cheio de espigas, de fructos e de flores. Em pé, defronte
d'ella, vê-se Hercules pelas costas, e uma corça amamenta
uma creança a seus pés. Ao longe, um Fauno toca na sua
flauta, e uma mulher alada enche o fundo da figura de
Hercules. Esta composição, posto que graciosa, ainda não
constitue a verdadeira paisagem, a paisagem núa e repre-
sentando um só accidente da natureza .
Vitruvio pretende que Anaxagoras e Democrito tinham
fallado da perspectiva, tratando da scena grega; póde, com-
tudo, duvidar-se que os antigos conhecessem este lado da
arte, sem o qual não póde haver paisagem . O desenho dos
assumptos de Herculanum é sêcco, e resente-se muito da
esculptura e dos baixos relevos. As sombras, d'um vermelho
misturado de negro, são igualmente espessas em toda a
figura, e por isso não destacam os objectos . A's fructas,
ás flores e aos vasos faltam-lhes tambem a perspectiva,
344 ANNOTAÇÕES

e o contorno superior dos ultimos não corresponde ao mesmo


horizonte da base . Emfim, todos estes assumptos, tirados
da Fabula, que se encontram nas ruinas de Herculanum,
provam que a mythologia occultava aos pintores a verda-
deira paisagem, do mesmo modo que escondia aos poetas
a verdadeira natureza.
As abobadas dos banhos thermaes de Tito , cujas pin-
furas Raphael estudou, só representavam personagens.
Alguns imperadores iconoclastas permittiram que se
desenhassem flores e passaros nas paredes das igrejas de
Constantinopla. Os egypcios, que tinham a mythologia
grega e latina, com muitas outras divindades, não souberam
representar a natureza. Algumas das suas pinturas, que
ainda se vêem nas paredes dos seus templos, pela compo-
sição, quasi se não elevam além da execução dos chinezes .
O padre Sicard, fallando d'um pequeno templo situado
no meio das grutas da Thebaida, diz : « A abobada, as pa-
redes, o interior e o exterior, tudo é pintado, mas com
cores tão brilhantes e tão suaves, que é preciso vêl -as para
acreditar...
«Do lado direito vê-se um homem , de pé, com um bordão
em cada mão, apoiado sobre um crocodilo , e uma moça
junto d'elle, empunhando tambem o seu bordão.
«A' esquerda da porta vê-se um homem igualmente de
pé, e apoiado sobre outro crocodilo , empunhando com a
dextra uma espada, e com a sinistra uma tocha accêsa.
Dentro do templo ha pinturas de flores variadas, d'instru-
mentos de diversas artes , e de outras figuras grotescas e
emblematicas . Vê-se tambem d'um lado a pintura d'uma
caçada, onde todas as aves que amam o Nilo cahem n'um
só laço; e do outro lado , uma pesca, onde todos os peixes
d'aquelle rio são colhidos n'uma só rêde, etc. » (Lett . edif. ,
1. v, pag. 144) .
Para encontrar paisagens entre os antigos, é preciso
recorrer aos mosaicos, e ainda assim, essas paisagens são
fodas historiadas. O famoso mosaico dos principes Barbe-
rinos, na Palestina, representa na parte superior um paiz
montanhoso, com animaes e caçadores ; na parte inferior
serpêa o Nilo em torno de muitas ilhotas. Os egypcios
perseguem os crocodilos , e suas mulheres estão deitadas
debaixo de caramanchões. Uma d'ellas offerece uma palma
a um guerreiro, etc.
Tudo isto está bem longe das paisagens de Claude de
Lorrain.
NOTA 2.ª

Pag. 48 são os PENSAMENTOS de Páscal, commen-


tados pelos editores.
Quasi se recusa a acreditar que sejam de Voltaire al-
gumas d'essas notas tanto estas estão abaixo d'elle. Mas
ANNOTAÇÕES 345

ninguem póde deixar d'insurgir-se contra a má fé dos edi-


tores , e contra os encomios que elles fazem uns aos outros.
Quem acreditaria, se o não visse impresso, que em uma
nota ácerca d'uma annotação, se chama ao commendador
o Secretario de Marco Aurelio, e a Pascal o Secretario de
Port-Royal ? N'outros muitos logares, torcem as ideias de
Pascal, para o fazerem passar por aiheu . Por exemplo ,
quando elle diz que a razão do homem, só , não póde chegar
á uma demonstração perfeita da existencia de Deus , excla-
mou triumphantemente que é bello vêr Voltaire tomar o
partido de Deus contra Pascal» . Com effeito , é muito zombar
do senso commum, contando com a bondade dos leitores.
Não é evidente que Pascal raciocinou como christão ,
querendo provar a necessidade de uma revelação ? Além
d'isto , ha alguma coisa ainda peior n'esta edição commen-
tada. Não se nos demonstrou que os Pensamentos novos,
que se lhe accrescentaram, não sejam, pelo menos, desfi-
gurados, para não dizer peior coisa. E o que nos auctorisa
a crêl-o, é que se cortaram muitos dos antigos, e que re-
petidas vezes se dividiram os outros, sob o pretexto de
que a primeira ordem era arbitraria, de modo que não fazem
c mesmo sentido. Concebe-se a facilidade com que se póde
alterar uma passagem, quebrando o fio das ideias, e sepa-
rando dois membros da phrase, para dar dois sentidos per-
feitos . N'essa edição ha uma destreza, uma astucia, uma
intenção occulta , que a tornariam perigosa, se, felizmente ,
as annotações não tivessem destruido o fructo que se es-
perava colher.
NOTA 3.ª

Pag. 158 -...a religião coroou as coisas da outra vida


com uma ceremonia geral, em que reune a memoria dos
innumeraveis moradores dos sepulchros.
Os Feralia dos antigos romanos differiam do nosso Dia
de Finados em celebrarem-se aquelles em memoria dos ci-
dadãos mortos durante o anno. Começavam a 18 de feve-
reiro , e duravam onze dias consecutivos. No decurso d'este
tempo, os casamentos eram interdictos , os sacrificios sus-
pensos, as estatuas dos deuses veladas, e os templos fe-
chados. Os nossos officios anniversarios, os do setimo,
do nono, e do quadragesimo dia provieram-nos dos romanos ,
que tambem os tinham recebido dos gregos . Estes tinham
as exequias e as oblações que se faziam pelas almas aos
deuses infernaes : os funeraes, os enterros, e a novena; de-
pois , as Triacadas , e Triacontadas, e a Trintena.
Os latinos tinham Justa, Exequiæ, Inferiæ, Parentatio-
nes, Novendiolia, Denicalia, Februa, Feralia.
Quando o moribundo estava prestes a expirar, o seu
amigo, ou o parente mais proximo, collava a boca á d'elle ,
para lhe recolher o derradeiro suspiro; depois o corpo era
346 ANNOTAÇÕES

entregue aos Pollincteurs , aos Libitinaires, aos Vespilles ,


aos Designatores, encarregados de o lavar, embalsamar e
levar ao sepulchro, ou á fogueira, com as costumadas ce-
remonias. Os pontifices e os sacerdotes iam adiante do
prestito, e conduziam quadros dos antepassados do morto,
coroas e trophéos . Dois córos, um cantando arias vivas
e alegres, o outro arias lentas e tristes, precediam o cortejo .
Aos Antigos philosophos figurava-se que a alma (a qual elles
diziam ser uma harmonia) subia ao Olympo ao som d'estes
concertos funebres , para ahi gosar da melodia dos céos ,
cuja emanação era. (Veja-se Macrobio, no Sonho de Sci-
pião) . O corpo era deposto no sepulchro, ou n'uma urna
funeraria, e pronunciava-se sobre elle o derradeiro adeus :
Vale, vale, vale ! Nos te ordine quo natura permiserit se-
quemur !
NOTA 4.ª

Pag. 169 Na Suissa ha cemiterios edificados sobre pe-


nhascos, imminentes aos lagos, precipicios, e valles.
«Acima de Brig, o valle transforma-se em um estreito
e inabordavel precipicio, cujo fundo o Rhodano occupa e
desola. A estrada eleva-se sobre as montanhas septentrio-
naes, e enterra- se na mais selvagem das solidões ; ôs Alpes
nada offerecem mais lugubre. Caminha- se duas horas sem
encontrar o menor vestigio de habitação, ao longo d'uma
senda perigosa, sombreada por florestas, e suspensa sobre
um precipicio, cuja obscura profundidade a vista não póde
penetrar. Esta passagem é celebre pelos assassinios que
alli se commettiam; muitas cabeças espetadas em lanças
eram, quando por alli passei, a digna decoração de tão hor-
rorosa paisagem. Chega-se emfim á aldea de Lax, situada
no logar mais deserto e mais afastado d'este paiz . O ter-
reno sobre que está edificada declina rapidamente para o
precipicio, do fundo do qual se eleva o surdo rugido do Rho-
dano. Na outra borda d'este abysmo vê-se um logarejo
em igual situação ; as duas igrejas estão oppostas uma á
outra, e do cemiterio d'uma , ouvia- se successivamente o
canto das duas parochias, que pareciam responder uma á
outra. Aquelles que conhecem a triste e grave harmonia
dos canticos allemães, imaginem-os cantados n'este logar,
acompanhados pelo murmurio afastado da torrente , e pelo
fremir dos abetos». (Lettres sur la Suisse , de Williams Coxe,
1. II, nota de M. Ramond) .
NOTA 5.ª

Pag. 180 Para logo o principe dos apostolos lança no


imperio romano os cimentos do seu poderio ecclesiastico.
O doutor Robertson fez justiça a Voltaire, dizendo que
este homem universal não foi um historiador tão fiel como
ANNOTAÇÕES 347

geralmente se pensa. Acreditamos, como elle , que Voltaire


nem sempre citou falso ; porém é certo que muito omittiu ,
pois não ousamos dizer que ignorou muito. Torceu , além
d'isso, as passagens originaes, para que dissessem uma
coisa diversa do que com effeito diziam. E' este o meio
de ser ao mesmo tempo exacto, e maravilhosamente infiel.
Nas suas duas admiraveis historias de Luiz XIV , e de
Carlos XII, Voltaire não careceu de recorrer a tal meio ;
porém na sua Historia geral, que não é mais que uma longa
injuria ao christianismo, julgou licito empregar toda a
especie de armas contra o inimigo. Tão depressa nega for-
malmente, como affirma em tom positivo ; depois, mutila,
e desfigura os factos. Avança sem hesitar «que não houve
nenhuma hierarchia, durante cem annos, entre os chris-
tãos»; mas não dá abonador a tão extranha asserção ; con-
tenta-se com dizer : Está reconhecido; hoje ri-se d'isso.
Segundo este auctor, não ha a respeito da successão de
S. Pedro, senão a lista fraudulenta d'um_livro apocrypho,
intitulado o «Pontificado de Damaso» . 1 Ora resta-nos um
tratado de Santo Ireneu, sobre as heresias, onde o Padre
da igreja gallicana dá completa a successão dos papas,
desde os apostolos. 2 Conta doze até ao seu tempo . Colloca- se
o anno do nascimento de Santo Ireneu, cerca de cento e
vinte annos depois de Jesus Christo . Fora discipulo de Pa-
pias e de S. Polycarpo , que eram discipulos de S. João
Evangelista. Era portanto testimunha quasi ocular dos pri-
meiros papas. Nomeia S. Lino depois de S. Pedro , e nos
diz que é d'este mesmo Lino que falla S. Paulo na sua epis-
tola a Timotheo. 3 Como foi que Voltaire , ou aquelles que
o ajudavam no seu trabalho, não temeram (se não igno-
ravam) esta fulminante auctoridade ? A dar-se credito ao
Ensaio sobre os costumes, nunca se ouviu fallar de Lino ; e
eis que este primeiro successor do chefe da Igreja é nomeado
pelos proprios apostolos !

NOTA 6.ª

Pag. 184 Voltaire...... intenta persuadir que foram


poucos os martyres da primitiva Igreja.
Chega até a negar as perseguições no tempo de Nero.
Avança que nenhum dos Cesares, até Dominiciano, inquietou
os christãos. «E' tão justo , diz elle, imputar este accidente
(o incendio de Roma) ao christianismo, como ao imperador
(Nero); nem elle, nem os judeus, tinham interesse algum

1 Ensaios sobre os costumes das nações. cap. vin .


2 Liv. 111, cap. 111 .
3 Epist. Ix, cap. iv, v. 21 .
348 ANNOTAÇÕES

em incendiar Roma ; mas era preciso apasiguar o povo, que


se sublevava contra os estrangeiros, igualmente aborrecidos
dos romanos e dos judeus. Abandonaram-se alguns des-
graçados á vingança publica. ( Que vingança, se elles não
eram culpaveis ?) Parece que não se deveria contar entre
as perseguições feitas á sua fé esta violencia passageira,
que nada tinha de commum com a sua religião, que não se
conhecia (vamos ouvir Tacito) , e que os romanos confun-
diam com o judaismo , tão desprezado como protegido pelas
leis » . 1 Eis talvez uma das passagens historicas mais es-
tranhas, que jamais escaparam á pena d'um auctor.
Voltaire não tinha lido Suetonio nem Tacito ? Nega a
existencia ou a auctoridade das inscripções encontradas em
Hespanha, onde se agradece a Nero, por ter abolido na
provincia uma nova superstição . Quanto á existencia d'estas
inscripções, vê- se uma em Oxford : Neroni Claud. Cais. Aug.
Max. ob provinc. latronib.. et his qui novam generi hum.
superstition. inculcab. puroat. E pelo que respeita á mesma
inscripção, não se vê por que motivo Voltaire duvida que
esta nova superstição seja a religião christã . São as pro-
prias palavras de Suetonio : Afflicti suppliciis christiani,
2
genus hominum superstitionis novæ ac maleficæ,
A passagem de Tacito vae mostrar-nos agora qual foi
esta violencia passageira, exercida scientemente, não sobre
os judeus , mas sobre os christãos.
«Para desvanecer os boatos, Nero procurou os culpados,
e fez soffrer as mais horriveis torturas a estes desgra-
çados , aborrecidos pelas suas infamias, a quem vulgarmente
se chamava christãos. O Christo, que lhes deu o nome,
fôra condemnado ao supplicio, no tempo de Tiberio, pelo
procurador Poncio Pilatos, o que reprimiu por um momento
esta execravel superstição. Mas bem depressa a torrente
trasbordou de novo, não sómente na Judéa, onde tomára
origem, mas até mesmo em Roma, onde emfim vem parar
todos os desaguadouros do universo. Principiou- se por
lançar mão d'aquelles que se confessaram christãos ; e de-
pois, pelos seus depoimentos, d'uma multidão immensa que
foi menos convencida de ter incendiado Roma, que de abor-
recer o genero humano ; e ao seu supplicio se ajuntou o
escarneo: envolveram-os em pelles de animaes, para serem
devorados pelos cães ; pregavam-os em cruzes, untando-lhes
os corpos com resina, para de noite alumiar a cidade.
Nero cedeu os seus proprios jardins para este espectaculo,
e ao mesmo tempo, dava jogos no circo , misturando -se
entre o povo, vestido de cocheiro, ou conduzindo os carros .

1 Ensaio sobre os costurnes, cap. 111 .


2 Suet., In Nero.
ANNOTAÇÕES 349

Ainda que culpados e dignos d'estes supplicios, sentia- se


compaixão para com estas victimas, que pareciam immo-
ladas, menos ao bem publico, do que ao passatempo d'um
barbaro». 1
Os sentimentos de compaixão de que Tacito parece pos-
suido no fim d'este quadro , contrastam bem tristemente
com os d'um auctor christão que trata de enfraquecer a
piedade pelas victimas . Vê-se que Tacito designa claramente
os christãos ; não os confunde com os judeus, porque refere
a origem d'aquelles, e, além d'isso, fallando do cerco de Je-
rusalem, faz n'outra parte a historia dos hebreus , e da re-
ligião de Moysés. Adivinha- se, portanto, o que fez avançar
a Voltaire que os romanos julgavam perseguir os judeus ,
perseguindo os fieis . Foi sem duvida esta phrase : Menos
convencidos de terem incendiado Roma, que de aborrecer
o genero humano, que o auctor do Ensaio interpretou dos
judeus e não dos christãos. Ora não notou que fazia o
elogio d'estes ultimos, querendo-os privar da piedade do
leitor. «E' uma grande gloria para os christãos, diz Bossuet,
terem tido por primeiro perseguidor o perseguidor do ge-
nero humano». O artigo de Voltaire fez-me meditar triste-
mente sobre esse espirito faccioso que divide todos os ho-
mens, e suffoca n'elles os sentimentos naturaes. Que o céo
nos preserve d'esses horriveis odios de facção, pois tão in-
justos nos tornam !
NOTA 7ª

Pag. 289 Rematemos com uma reflexão essencial


este artigo das instituições do christianismo em favor da
humanidade soffredora.
«O cume de S. Gotard é uma plata-fórma de granito,
núa, cercada de alguns rochedos mediocremente elevados ,
de fórmas mui irregulares, que interceptam a vista em
todos os sentidos, e a limitam á mais horrorosa solidão .
Tres pequenos lagos , e o triste hospicio dos capuchinhos
são os que interrompem a uniformidade d'este deserto , onde
não se encontra o menor vestigio de vegetação : é uma coisa
nova e surprehendente , para um habitante da planicie, o
silencio absoluto que reina sobre esta plata-fórma : não se
ouve o menor murmurio ; o vento que atravessa os céos
não encontra alli uma folhagem: unicamente, quando é im-
petuoso, geme lugubremente contra as pontas dos roche-
dos que o dividem. Trepando aos cumes accessiveis que
cercam este deserto , debalde se esperaria avistar paizes
habitaveis : lá em baixo não se vê mais que um cháos de

Tacito, Ann . , lib . xv, 44.


350 ANNOTAÇÕES

rochedos e torrentes : não se distinguem ao longe senão


pontas áridas e cobertas de neves eternas, atravessando a
nuvem que fluctua sobre os valles, e que os cobre d'um véo
muitas vezes impenetravel : nada do que existe além se
enxerga com a vista, excepto um céo de azul-escuro, que
descendo abaixo do horizonte, termina de todos os lados
o quadro, e parece ser um immenso mar que cerca este
acervo de montanhas.
«Os infelizes capuchinhos, que habitam o hospicio, estão,
durante nove mezes do anno, sepultados no gêlo, que mui-
tas vezes, no espaço d'uma noite, se eleva até á altura do
seu tecto, e tapa todas as entradas do convento . Então é
preciso abrir passagem pelas janellas superiores, que ser-
vem de portas. Julgue-se que o frio e a fome são flagellos
aos quaes frequentemente estão expostos , e que se existem
cenobitas que tenham direito a esmolas, são de certo estes» .
(Nota da traducção das Cartas de Coxe sobre a Suissa, por
M. Ramond ) .
Os hospitaes militares tiram a sua origem dos bene-
dictinos . Cada convento d'esta ordem nutria um velho sol-
dado The dava asylo para o resto dos seus dias. Luiz XIV ,
reunindo estas diversas fundações em uma só, formou o
Hospital dos Invalidos . Assim , foi ainda a religião de paz
que fundou o asylo dos nossos velhos guerreiros.

NOTA 8.a

Pag. 331 - Póde portanto ser que a corrupção do imperio


romano attrahisse do fundo dos seus desertos os barbaros,
que sem conhecerem a sua missão destruidora , se tinham ,
como que por instincto, appellidado flagello de Deus.
Salviano, padre de Marselha, 1 a quem chamaram o
Jeremias do quinto seculo , escreveu os seus livros da Pro-
videncia para provar aos seus contemporaneos que eram
injustos em accusar o céo , e que mereciam todas as des-
graças com que se viam acabrunhados.
«Que castigo, diz elle , não merece todo o imperio, parte
« do qual ultraja a Deus pelo desregramento de seus cos-
«tumes, e a outra parte junta o erro aos mais vergonhosos
«<excessos ?
«Pelo que respeita a costumes, poderemos disputal-os

1 Parece certo, segundo as cartas que nos restam de Salviano ,


que elle era d'uma das principaes familias de Treves . Na época da
invasão dos barbaros foi estabelecer - se na outra extremidade das Gal-
lias, com sua mulher Palladia , e sua filha Auspiciola : fixou-se em
Marselha , onde perdeu sua esposa, e se fez padre. Santo Hilario de
Arles, seu contemporaneo, o qualifica de homem excellente, e muito
feliz servo de Jesus Christo.
ANNOTAÇÕES 351

"aos godos e aos vandalos ? E para principiar pela rainha


«das virtudes , a caridade, todos os barbaros, ao menos da
«mesma nação , se amam reciprocamente; ao passo que os 、
«romanos se despedaçam... Por isso todos os dias se vê
«que os vassallos do imperio vão procurar entre os barba-
«ros um asylo contra a deshumanidade dos romanos . Ape-
«zar da differença dos costumes, da diversidade de lingua-
«gem, e direi mesmo apezar do odor infecto que exhalam
«o corpo e os vestidos d'esses povos estranhos, antes que-
«rem viver com elles, e sujeitar- se ao seu dominio, do que
«vêr-se continuamente expostos ás injustas e tyrannicas
«violencias de seus compatriotas.
«... Não guardamos as leis da equidade , e estranhamos
«que Deus nos faça justiça. Em que paiz se vêem desordens
similhantes ás que reinam hoje entre os romanos ? Os
«francos não cahem n'estes excessos ; os hunos ignoram-lhes
a prática; nada se passa de similhante entre os vandalos ,
ou entre os godos ... Que mais se deverá dizer ? As ri-
«quezas d'outro tempo escaparam-nos das mãos, e reduzidos
«á ultima miseria, só pensamos em vãos entretenimentos .
"A pobreza reconduz emfim os prodigos á razão , e corrige
"as devassidões ; mas nós somos prodigos e devassos d'uma
"especie differente; a fome não impede o nosso desregra-
«mento.
((... Quem o acreditaria ? Carthago está cercada : já os
«barbaros atacam as muralhas ; não se ouve em roda d'esta
« desgraçada cidade senão o ruido das armas, e durante este
«tempo, os habitantes de Carthago estão no circo occupados
«em gosar o prazer insensato de vêrem degolar-se os athle-
«tas enfurecidos ; outros estão no theatro , e ahi se saciam
«de infamias. Em quanto seus concidadãos são degolados
fóra da cidade, entregam-se dentro á dissolução ... O ruído
«dos combatentes e os applausos do circo, as tristes vozes
«dos moribundos, e os clamores insensatos dos espectado-
«dores, confundem- se ; n'esta estranha confusão , apenas se
"podem destinguir os gritos lugubres das infelizes victimas
que se immolam no campo da batalha, dos alaridos que
o resto do povo faz nos amphitheatros. Não será tentar
«a Deus, e constrangel-o a punir ? Talvez este Deus de
«bondade quizesse suspender o effeito da sua justa indi-
«gnação, mas Carthago violentou-o a deixal-a perder sem
«remedio.
«Mas para que vamos buscar exemplos tão longe ? Não
«vimos nós nas Gallias quasi todos os homens, de mais
«elevada dignidade, tornarem-se pela adversidade peiores
«do que eram antes ? Não vi eu mesmo a nobreza mais
"distincta de Treves, ainda que completamente arruinada,
"no estado mais deploravel, ainda em relação aos costumes
«do que aos bens da vida, porque ainda lhe restavam alguns
«sobėjos de sua fortuna, e nada dos costumes christãos ?
352 ANNOTAÇÕES

« ... Não é destino dos povos , submettidos ao imperio


«romano, antes perecer do que corrigir-se ? E' preciso que
«deixem d'existir para deixarem de ser viciosos . E será
"precisa outra prova além dos exemplos da capital das
«Gallias ? 1 Arruinada tres vezes completamente, não se
«tem ella desmandado mais do que nunca ? Eu mesmo vi,
«cheio de horror, a terra juncada de cadaveres. Vi-os nús ,
"despedaçados, expostos ás aves e aos cães ; o ar estava
«infecto e a morte exhalava-se, por assim dizer , da propria
«morte. Que succedeu, todavia ? O' prodigio de loucura !
«e quem o poderia imaginar ! Uma parte da nobreza, salva .
«das ruinas de Treves, para remediar o mal, pediu aos
«imperadores restabelecessem ahi os jogos do circo ...
... Pensa-se no circo, quando se está ameaçado da ser-
«vidão ? não se pensa senão em rir, quando se está amea-
«çado da morte ? ... Não se dirá que todos os vassallos do
«imperio tragaram esta especie de veneno, que faz rir e
«que mata ? Vão entregar a alma e riem ! Por isso o nosso
«riso é por toda a parte seguido de lagrimas, e desde já
asentimos a verdade d'estas palavras do Salvador : Desgra-
«çados dos que riem , porque elles chorarão » ! (Luc. , vi, 25) .
Da Providencia, liv. v, vi e vii) .

O cardeal Bellarmin nota que o zêlo de Salviano, pela


reforma dos costumes , lhe fez generalisar demasiadamente
a pintura que fizera dos vicios do seculo. Tillemont faz igual
observação: diz que a corrupção não podia ser tão universal
n'um tempo em que havia ainda tão santos bispos. O livro
de Salviano appareceu em 439. Doze annos antes, Santo
Agostinho havia publicado , sobre o mesmo objecto, a sua
grande obra A Cidade de Deus, que começára em 413, depois
que Alarico tomou Roma. Pela profundidade dos pensa-
mentos, pela certeza das vistas , reconhece- se n'este livro
o mais bello genio da antiguidade christã .
Os pagãos attribuiam as desgraças do imperio ao aban-
dono do culto dos deuses , e os christãos , fracos ou corrom-
pidos, tiravam d'ahi motivo para accusarem a Providencia.
Santo Agostinho preencheu o duplo objecto de responder ás
reprehensões d'uns, esclarecer e consolar os outros. Mostra
aos pagãos, percorrendo a historia desde a ruina de Troya,
que os antigos imperios, como o dos egypcios, tinham fene-
cido, apezar de não terem cessado de ser fieis ao culto
dos deuses : recorda particularmente aos romanos o que
seus paes tinham soffrido na occasião do incendio de Roma

1 Treves. Esta cidade era residencia do perfeito das Gallias, e


os imperadores ordinariamente ahi residiam quando paravam nas
provincias áquem do Rheno e dos Alpes.
ANNOTAÇÕES 353

pelos gaulezes , durante a segunda guerra punica, e especial-


mente no tempo das proscripções de Mario e Sylla. Faz
notar que este ultimo fóra muito mais cruel do que os godos :
que estes, ao menos, tinham poupado os que se refugiaram
nas basilicas dos apostolos e nos tumulos dos martyres,
protecção que nunca se tinha visto em toda a antiguidade,
procurada nos templos dos deuses ; e que assim, accusando
a religião christã, ainda se tornavam mais culpados de
ingratidão. Diz-lhes depois que a sua perda tinha por prin-
cipio a corrupção de seus costumes, cuja origem faz re-
montar á época da construcção do primeiro amphitheatro ,
que Scipião Nasica debalde quiz impedir; corrupção que
Sallustio pintou com tanta força, e que fez dizer a Cicero,
no seu Tratado da Republica, escripto sessenta annos antes
de Jesus Christo, que elle contava o Estado de Roma como
já arruinado, pela quéda dos antigos costumes.
Santo Agostinho diz aos christãos que os homens de
bem commettem sempre muitas faltas cá na terra , que me-
recem castigos temporaes ; mas que os verdadeiros discipulos
de Jesus Christo não olham como males as perdas de bens,
o exilio, o captiveiro, nem a propria morte , e que não es-
peram a felicidade senão no céo, que é a sua verdadeira
patria.
Esta obra não é mais que o desenvolvimento da famosa
carta que o santo doutor tinha escripto, por occasião da
tomada de Roma, ao tribuno Marcellino, secretario imperial
em Africa. Pouco tempo depois, este mesmo Marcellino foi
calumniosamente accusado de ter entrado n'uma conspira-
ção contra o imperador, e condemnado á morte, bem como
seu irmão Aprigio. Como estivessem juntos na prisão,
Aprigio disse um dia a Marcellino : «Se eu soffro isto pelos
meus peccados , vós, cuja vida tão christã eu conheço, como
o merecestes ?» — «‹ Quando a minha vida, disse Marcellino,
fosse tal como dizeis, acreditaes que Deus me faça pequena
mercê em punir aqui os meus peccados, não os reservando
para o juizo futuro ?»
(Nota do editor francez).

FIM DAS ANNOTAÇÕES DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME

1 Fragmento conservado na Cidade de Deus, liv. 11 , cap. XXI .


23
DEFEZA

DO

GENIO DO CHRISTIANISMO
1
DEFEZA

DO

GENIO DO CHRISTIANISMO

PELO AUCTOR¹

Para um auctor criticado , talvez não haja senão uma


resposta nobre — o silencio : é o meio mais seguro de se
honrar na opinião publica .
Se o livro é bom, a critica cahe ; se é mau , a apologia
não o justifica.
Convencido d'estas verdades , o auctor do Genio do
Christianismo jurára não responder aos criticos , e , até
ao presente, havia mantido a sua resolução .
Supportára sem orgulho e sem desanimo os elogios.
e os insultos : os primeiros são muitas vezes prodiga-
lisados á mediocridade; os segundos, ao merito .
Vira, com indifferença, certos criticos passarem
da injuria á calumnia, ou porque tinham tomado como
desprezo o silencio do auctor, ou porque não podiam
perdoar-lhe a offensa, que debalde lhe tinham feito .
Perguntarão, pois, os homens de bem qual o motivo
por que o auctor quebra hoje o silencio qual a razão
por que se afasta da regra, que a si mesmo tinha pres-
cripto ?
E' porque, visivelmente, sob o pretexto d'atacar o

1 Vê-se bem que os criticos, de que se trata na Defesa, não são


os criticos decentes e de boa fé ; estes só merecem os nossos agrade-
cimentos..
358 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

auctor, querem agora aniquilar o pouco bem, que a


obra pôde fazer .
E' porque o auctor não vae defender a sua pessoa
ou o seu talento , verdadeiro ou supposto, mas sim o
livro ; e a este não o defenderá como obra litteraria,
senão como obra religiosa.
O Genio do Christianismo foi recebido pelo publico
com alguma indulgencia . Este symptoma d'uma mu-
dança na opinião fez alarmar o espirito de sophisma,
que julgou vêr aproximar-se o termo do favor, com
que, por tão longo tempo , fôra recebido . Então mane-
jou todas as armas, recorreu a todos os disfarces, che-
gando a cobrir- se com a capa da religião para acom-
metter um livro escripto em defeza d'ella .
Ao auctor, pois, não é permittido conservar o si-
lencio. O mesmo espirito, que lhe inspirou o seu livro,
o fórça hoje a defendel-o . E' bem claro que os criticos ,
de que se trata n'esta defeza, não usaram de boa fé :
gritaram « profanação ! » fingindo enganar-se sobre o
fim da obra, e acautelaram-se de vêr que o auctor não
fallava da grandeza, da belleza, e até da poesia do
christianismo , senão porque, ha cincoenta annos , só
se fallava da pequenez, do ridiculo, e da barbaridade
d'esta religião . Quando elle tiver desenvolvido as ra-
zões que o fizeram emprehender a sua obra quando
tiver designado a especie de leitores a que particular-
mente a destinava , espera que deixarão de desconhecer
as suas intenções e o objecto do seu trabalho . O auctor
julga que não póde dar maior prova da sua dedicação
á causa que tem defendido, do que responder hoje á
critica , apezar da repugnancia que sempre sentiu para
estas controversias .
Elle vae considerar o motivo, o plano, e as miudezas
do Genio do Christianismo .

MOTIVO DA OBRA

Em primeiro logar perguntaram se o auctor tinha


o direito de fazer esta obra.
Ou esta pergunta é séria ou irrisoria. Sendo séria,
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 359

o critico não se mostra muito instruido do seu mo-


tivo .
Quem não sabe que nos tempos calamitosos, todos
os christãos são padres e confessores de Jesus Chris-
1
to ? ¹ Pela maior parte, as apologias da religião christã
têm sido escriptas por seculares . Aristides , S. Jus-
tino, Minucio Felix, Arnobe e Lactancio eram por ven-
tura padres ? E' provavel que S. Prospero nunca per-
tencesse ao estado ecclesiastico, e, não obstante, de-
fendeu a fé contra os erros dos semi- pelagianos : em
apoio da sua doutrina, a Igreja cita diariamente as
obras d'elle . Quando Nestorio propagou a sua heresia,
foi combatido por Eusebio , depois bispo de Doryléa,
mas que, então , não era mais que simples advogado .
Origenes ainda não tinha ordens, quando explicou a
Escriptura na Palestina, a pedido dos prelados d'esta
provincia . Demétrio, bispo d'Alexandria , que era ri-
val de Origenes, lamentava esses discursos como in-
novação . Alexandre, bispo de Jerusalém, e Theoctisto ,
de Cesaréa, responderam a que era um costume an-
tigo e geral na Igreja servirem-se os bispos indiffe-
rentemente d'aquelles que tinham a piedade e o dom
da palavra . » Todos os seculos offerecem os mesmos
exemplos . Quando Pascal emprehendeu a sua sublime .
apologia do christianismo ; quando La Bruyère escre-
veu tão eloquentemente contra os Espiritos fortes;
quando Leibnitz tomou a defeza dos principaes dogmas
da fé; quando Newton deu a sua explicação d'um livro
santo ; quando Montesquieu traçou os bellos capitu-
los do Espirito das Leis em favor do culto evangelico ,
perguntou- se, por ventura, se esses auctores eram
padres ? Os proprios poetas têm unido sua voz á de
tão poderosos apologistas ; o filho de Racine defendeu,
em versos harmoniosos , a religião que a seu pae tinha
inspirado a Athalia.
E se um simples secular devia tomar a peito esta
sagrada causa, era, sem duvida, na especie d'apologia

1 S. Hieron., Dial. c. Lucif.


360 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

encetada pelo auctor do Genio do Christianismo; ge-


nero de defeza imperiosamente recommendado pelo ge-
nero d'ataque, e que (á vista do espirito dos tempos )
era talvez o unico de que podia esperar- se resultado .
Com effeito, similhante apologia não devia ser empre-
hendida senão por um secular. Um ecclesiastico não po-
dia, sem ir de encontro a todas as conveniencias , con-
siderar a religião em suas relações puramente humanas ,
e lêr, para as refutar, satyras calumniosas, libellos im-
pios e romances obscenos .
Diga- se a verdade : os criticos que fizeram esta objec-
ção, conhecem perfeitamente quanto ella é frivola; mas
com esse rodeio esperavam oppôr-se aos bons effeitos ,
que podiam resultar do livro . Queriam que nascessem
duvidas sobre a competencia do auctor, para dividir
a opinião e atemorisar as pessoas simples, que podiam
deixar -se enganar pela boa fé apparente d'um critico .
Soceguem as consciencias timidas, ou antes, exami-
nem bem se esses censores escrupulosos , que accu-
sam o auctor de lançar mão dos thuribulos, - que,
por amor da religião, se mostram tão ternos e tão in-
quietos , não serão homens conhecidos pelo seu des-
prèzo ou sua indifferença por ella . Que irrisão ! Tales
sunt hominum mentes.
A segunda objecção que se faz ao Genio do Chris-
tianismo tem o mesmo fim da primeira ; mas é mais
perigosa, porque tende a confundir todas as ideias,
a obscurecer uma coisa muitissimo clara, e, sobretudo,
a desviar o leitor sobre o verdadeiro objecto do livro .
Os mesmos criticos , sempre zelosos pela prosperi-
dade da religião, dizem :
«Não se deve fallar da religião em suas relações
puramente humanas, nem considerar as suas bellezas
litterarias e poeticas. E ' causar damno á propria re-
ligião, é profanar a arca santa, etc., etc. Porque se
não contentou o auctor com empregar os raciocinios
da theologia ? porque se não serviu d'essa logica se-
vera, que só infunde sãs ideias nas creanças , confirma
na fé o christão , dá saudaveis exemplos ao padre, e
satisfaz o doutor ?»
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 361

Esta objecção é, para assim dizer, a unica que fa-


zem os criticos ; é a base de todas as suas censuras,
quer ellas fallem do motivo, quer do plano, ou das
miudezas da obra . Jámais querem entrar no espirito
do auctor; de modo que póde dizer- se- lhes como Mon-
tesquieu, na sua Defeza do Espirito das Leis: «Póde
acreditar- se que o critico jurou que nunca penetraria
no estado da questão , nem entenderia sequer uma das
passagens que impugna» .
Toda a força do argumento, pelo que respeita á
ultima parte da objecção , reduz - se a isto :
« O auctor quiz considerar o christianismo em suas
relações com a poesia, com as bellas-artes , com a elo-
quencia e com a litteratura ; quiz , por outra parte , mos-
trar o que os homens devem a essa religião considerada
moral, civil e politicamente . Assim, não escreveu um
livro de theologia ; não defendeu o que não queria de-
fender ; não se dirigiu aos leitores a que não queria
dirigir- se : é, portanto, culpado por ter feito precisa-
mente o que queria fazer» .
Mas, suppondo que o auctor acertou com o seu alvo,
deveria procurar esse alvo ?
Isto leva-nos á primeira parte da objecção , tantas
vezes repetida, de que se não deve encarar a religião
debaixo do ponto de vista de suas simples bellezas
humanas, moraes, e poeticas, pois isso é rebaixar- lhe
a dignidade, etc.
O auctor vae, nos seguintes paragraphos, esclarecer
este ponto principal da questão .
I - Antes de tudo , o auctor não ataca ; defende : não
procurou o alvo ; o alvo foi-lhe offerecido . Isto muda
d'um só golpe o estado da questão , e faz baquear a
critica . O auctor não vem com o proposito deliberado
de exaltar uma religião querida , admirada e respeitada
de todos , mas uma religião odiada, desprezada e co-
berta de ridiculo pelos sophistas . Não ha duvida que
o Genio do Christianismo teria sido uma obra muito
fóra de proposito no seculo de Luiz XIV; o critico que
observa que Massillon não teria publicado uma apolo-
gia similhante, disse uma grande verdade . E' certo
362 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

que o auctor jámais pensára em escrever o seu livro,


se não existissem poemas , romances e livros de toda a
especie, onde o christianismo é exposto á irrisão dos
leitores . Mas como existem esses poemas, esses ro-
mances e esses livros , é preciso arrancar a religião
aos sarcasmos da impiedade ; como em toda a parte
se disse e se escreveu que o christianismo é barbaro,
ridiculo, inimigo das artes e do talento, é essencial
provar que não é barbaro, nem ridiculo, nem inimigo
das artes e do talento, e que o que parece pequeno,
ignobil, de mau gosto, sem attractivos e sem ternura
sob a penna do escandalo , póde ser grande, nobre, sim-
ples, dramatico e divino sob a penna do homem reli-
gioso .
II- Se não é permittido defender a religião sob
o aspecto de sua belleza, para assim dizer, humana;
se não devem fazer-se esforços para obstar a que o
ridiculo se associe ás suas instituições sublimes, não
haverá sempre n'ella um lado por onde possam gla-
dial-a ? Sobre esse lado serão dirigidos todos os golpes ;
por esse lado surprehender-vos-hão sem defeza ; pere-
cereis ahi . Não é isto o que esteve para acontecer ?
Não foi com o ridiculo e com a galhofa que Voltaire
chegou a abalar as proprias bases da fé ? Respondereis
á loucura e aos contos licenciosos com a theologia e
com os syllogismos ? A argumentação em fórma im-
pedirá que um mundo frivolo se deixe seduzir por
versos mordazes , ou se afaste dos altares pelo temor
do ridiculo ? Ignoraes que uma agudeza, uma elegancia
impia, felix culpa, vale mais para a nação franceza
do que alguns volumes de raciocinios e de metaphy-
sica ? Fazei com que a mocidade se persuada de que
um homem de bem póde ser christão sem ser tolo ;
despersuadi -a de que só os capuchinhos e imbecis pó-
dem crêr na religião , e a vossa causa será depressa
ganha : então , para completar a victoria, será tempo
de vos apresentardes com as razões theologicas ; mas
começae por fazer com que vos leiam. Do que preci-
saes, pois, antes de tudo, é d'uma obra religiosa, que
seja, para assim dizer, popular. Quereis, com um só
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 363

impulso, conduzir o doente ao alto d'uma montanha


escarpada, quando elle apenas póde andar ! Mostrae-
lhe, a cada passo, objectos variados e agradaveis ; deixae
que elle se detenha para colher as flôres , que se lhe
offerecem no caminho, e, de repouso em repouso , che-
gará ao cume .
III O auctor não escreveu a sua apologia sómente
para os estudantes, para os christãos, para os padres,
e para doutores: i escreveu-a especialmente para os
homens de lettras e para o mundo; é isto o que já
disse ; é isto o que se comprehende nos dois ultimos
paragraphos . Se não partem d'este principio, se fin-
gem sempre desconhecer a classe de leitores a que o
Genio do Christianismo é particularmente dedicado, é
clarissimo que da obra não podem comprehender coisa.
alguma . Esta obra foi escripta para ser lida pelo ho-
mem de letras mais incredulo, e pelo moço mais le-
viano, com a mesma facilidade com que o primeiro
folheia um livro impio, e o segundo um romance pe-
rigoso . « Então exclamam os rigoristas tão bem in-
tencionados pela religião christãquereis fazer da
religião uma coisa da moda ? » Oh ! prouvera a Deus
que esta divina religião fôsse da moda, no sentido de
que a moda é a opinião do mundo ! E ' verdade que
falvez isso favorecesse algumas hypocrisias particula-
res ; mas, por outra parte, quanto não ganharia a moral
publica ? Orico não tornaria a empenhar o seu amor
proprio para corromper o pobre ; o amo para perverter
o criado ; o pae , para dar lições de atheismo a seus
filhos : a prática do culto conduziria á crença do dogma ,
e, com a piedade , vêr- se-ia renascer o seculo dos cos-
tumes e das virtudes .
IV Voltaire, atacando o christianismo, conhecia
muito bem os homens , para que não tentasse apoderar-

1 E portanto , não são os verdadeiros christãos, nem os doutores


da Sorbonna, mas sim os philosophos, como já dissemos, que se mos-
tram tão escrupulosos acerca da obra ; è isto o que se não deve es-
quecer.
364 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

se d'essa opinião, que se chama a opinião do mundo;


por isso, empregava todo o seu talento para fazer da
impiedade uma especie de bom tom . E conseguiu-0,
tornando a religião ridicula aos olhos da gente frivola .
E' esse ridiculo que o auctor do Genio do Christianismo
tratou de apagar; é esse o fim de todo o seu trabalho ,
o fim que é preciso não perder de vista, se querem
julgar da obra com imparcialidade . Mas conseguiria
o auctor esse fim ? Essa não é a questão . E ' preciso
perguntar : Faria elle todos os esforços para o conse-
guir ? Agradecei -lhe a boa vontade do que emprehen-
deu, não do que executou . Permitte divis cætera. O
auctor não defende do seu livro senão a ideia em que
o baseou . Considerar o christianismo em suas relações
as sociedades humanas ; mostrar que mudança
elle operou na razão e nas paixões do homem ; como
civilisou os povos gothicos ; como modificou o genio
das artes e das lettras ; como dirigiu os espiritos e os
costumes das nações modernas ; n'uma palavra, desco-
brir tudo o que essa religião tem de maravilhoso em
suas relações poeticas, moraes , politicas, historicas ,
etc. , isso parecerá sempre ao auctor o mais bello mo-
tivo que imaginar-se possa para a composição da obra.
Pelo que respeita ao modo por que essa obra foi exe-
cutada, póde a critica avalial - o .
V — Mas não cabe aqui affectar uma modestia sem-
pre suspeita entre os auctores modernos, e que não
engana pessoa alguma . A causa é muito grande, o in-
teresse muito urgente, para se não elevar acima de
todas as considerações de conveniencia e de respeito
humano . Ora, se o auctor conta o numero dos suffra-
gios e a auctoridade que elles trazem, não póde per-
suadir-se de que, até certo ponto, não conseguiu o fim
do seu livro . Ponham um quadro impio junto d'um
quadro religioso composto sobre o mesmo objecto , e
tirado do Genio do Christianismo ; ousamos affirmar
que este ultimo quadro, por muito imperfeito que ser
possa, enfraquecerá o perigoso effeito do primeiro ;
tanta é a força da simples verdade proxima da mais
brilhante mentira ! Voltaire, por exemplo, mofava mui-
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 365

tas vezes dos religiosos ; pois bem; junto de suas bur-


lescas pinturas, collocae o trecho das Missões ; aquelle
onde se pintam as ordens dos hospitalarios soccorrendo
o viajante nos desertos ; o capitulo onde se vêem os
monges, consagrados aos hospitaes, assistirem aos
cholericos nas prisões de forçados, ou acompanharem
o criminoso ao cadafalso . Que ironia não será desar-
mada ? que sorriso se não converterá em lagrimas ?
A's exprobrações d'ignorancia, que se tem dirigido ao
culto dos christãos, respondei com os immensos tra-
balhos d'esses religiosos, que salvaram os manuscriptos
da antiguidade ; ás accusações de mau gosto , e de bar-
baridade, opponham-se as obras de Bossuet e de Fé-
nélon; ás caricaturas dos anjos e dos santos respondam
os sublimes effeitos do christianismo na parte drama-
tica da poesia, na eloquencia e nas bellas-artes, e vêr-
se-ha se a impressão do ridiculo póde subsistir longo
tempo . Ainda que o auctor não tivesse feito mais do
que lisongear o amor proprio dos homens do mundo ;
ainda que só tivesse conseguido desenrolar uma serie
de quadros religiosos aos olhos d'um seculo incredulo,
sem com isso o desgostar, julgaria não ter sido inutil
á causa da religião .
VI - Apertados por esta verdade, que, bastante sa-
gazes, não querem confessar, e que é talvez o motivo
secreto dos seus temores , recorreram os criticos a outro
subterfugio . « Oh ! — dizem elles- quem nega que o
christianismo ou qualquer outra religião não tem belle-
zas poeticas e moraes , e que não ha pompa nas cere-
monias, etc. ?» Quem o nega ? sois vós mesmos , que
ainda ha pouco mofaveis das coisas santas ; vós , que ,
não podendo furtar-vos á evidencia das provas, não
tendes outro recurso senão o de dizer que ninguem
ataca o que o auctor defende . Agora confessaes que ha
coisas excellentes nas instituições monasticas , e en-
terneceis-vos á vista dos monges de S. Bernardo , dos
missionarios do Paraguay e das irmãs da caridade ;
agora confessaes que as ideias religiosas são necessa-
rias aos effeitos dramaticos , e que a moral do Evange-
lho, oppondo uma barreira ás paixões , lhe deparou
366 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

ao mesmo tempo a flamma e lhe redobrou a energia ;


agora reconheceis que o christianismo salvou as lettras
e as artes das invasões dos barbaros, e que só elle pôde
transmittir-vos a lingua e os escriptos de Roma e da
Grecia; que fundou os vossos collegios ; edificou ou
aformoseou as vossas cidades ; moderou o despotismo
dos vossos governos ; redigiu as vossas leis civis , e
adoçou as criminaes ; policiou , e desbravou até, a Eu-
ropa moderna . Concordaveis, por ventura, em tudo
isto antes da publicação d'uma obra, sem duvida muito
imperfeita, mas que, não obstante, reuniu debaixo
d'um só ponto de vista todas estas importantes ver-
dades ?
VIIJá se fez notar a terna solicitude dos criticos
pela pureza da religião ; devia, pois, esperar- se que se
offendessem com os dois episodios, que o auctor intro-
duziu no seu livro . Esta delicadeza dos criticos leva-
nos outra vez á grande objecção que elles empregaram
contra toda a obra, e destroe- se pela resposta geral,
que se acabou de dar a essa objecção . Diga- se de novo :
o auctor quiz combater os poemas e os romances im-
pios com os poemas e os romances pios ; lançou mão
das mesmas armas que o inimigo empunhára : era
uma consequencia natural e necessaria do genero
d'apologia que elle tinha escolhido . Procurou dar o
exemplo junto com o preceito : na parte theorica de
sua obra, tinha dito que a religião aformosêa a nossa
existencia, corrige as paixões sem as extinguir, e torna
singularmente interessantes todos os objectos em que
é empregada que a sua doutrina e o seu culto se mis-
turam maravilhosamente com as emoções do coração
e com as scenas da natureza ; e finalmente, que é ella o
unico recurso nas grandes tribulações da vida . Não
bastava affirmar tudo isto : era mister proval - o . Foi o
que o auctor tentou fazer nos dois episodios do seu
livro . Por outro lado, esses episodios eram uma rede
para certos leitores a quem a obra especialmente se
destinára . Tinha, pois , o auctor, pouco conhecimento
do coração humano, quando estendeu á incredulidade
esse innocente laço ? Não será provavel que alguns
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 367

leitores jámais abririam o Genio do Christianismo, se


ahi não apparecessem Attala e Renato ? ¹

Sa che la corre il mondo , ove piú versi


Delle sue dolcezze il lusinghier Parnaso,
E che ' l vero, condito in molli versi,
I più schivi allettando , ha persuaso.

VIII Tudo o que um critico imparcial, que queira


entrar no espirito da obra, póde exigir do auctor , é que
os episodios d'esta obra tenham uma tendencia visivel
para fazer amar a religião , demonstrando a sua utili-
dade . Ora, a necesidade dos claustros para certas tri-
bulações, ainda para as maiores tribulações da vida ; o
poder d'uma religião, a unica que pôde fechar feridas.
que todos os balsamos da terra não poderiam curar,
não estarão invencivelmente provados na historia de
Renato ? Além d'isso , o auctor ahi combate o desvario
particular dos mancebos do seculo o desvario que
os leva directamente ao suicidio . Foi J. J. Rousseau
o primeiro que fez nascer entre nós esses delirios tão
desastrosos e tão culpaveis . Sequestrando- se dos ho-
mens, entregando-se aos seus sonhos, fez acreditar a
uma multidão de moços que seria bello lançarem - se
assim no vago da vida. O romance de Werther fez
depois germinar este veneno . O auctor do Genio do
Christianismo, obrigado a fazer entrar na sua apologia
alguns quadros para a imaginação , não quiz denunciar
essa especie de vicio novo , e pintar as funestas conse-
quencias do excessivo amor da solidão . Os conventos
offereciam outr'ora um retiro a essas almas contempla-
tivas, que a natureza chama imperiosamente para a
meditação . Junto de Deus , encontravam alli com que
encher o vacuo que sentiam em si mesmas, e muitas
vezes, occasião d'exercer raras e sublimes virtudes .
Mas, depois da destruição dos mosteiros , e dos pro-

1 Veja-se, no moderno prefacio do Genio do Christianismo, qual


o motivo que determinou o auctor a collocar esses episodios n'um
volume separado.
368 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

gressos da incredulidade, deve esperar- se que, no meio


da sociedade, se multipliquem (como aconteceu em
Inglaterra) essas especies de solitarios, ao mesmo tempo
apaixonados e philosophos , que, não podendo amar o
seculo, nem aborrecer-lhe os vicios, tomarão o odio
aos homens como uma elevação do talento , renunciarão
a todos os deveres divinos e humanos, e apartados, se
nutrirão de vãs chimeras , abysmando -se cada vez mais
n'uma misanthropia orgulhosa, que os levará á loucura
ou á morte.
A fim d'inspirar mais repugnancia a esses delirios
criminosos , pensou o auctor que devia collocar a puni-
ção de Renato no circulo d'essas espantosas desgraças,
que pertencem menos ao individuo que á familia hu-
mana, e que os antigos attribuiam á fatalidade . O auctor
escolheria o assumpto da Phedra , se não o tivera tra-
tado Racine : restava-lhe só o d'Erope e de Thiestes ¹
entre os gregos, ou o d'Amnon e de Thamar entre os
hebreus ; 2 e com quanto este assumpto tenha sido
transportado para a nossa scena, 3 é todavia menos
conhecido que o primeiro, e talvez se adapte melhor
ao caracter que o auctor quiz pintar. Com effeito , os
loucos devaneios de Renato começam o mal, e suas
extravagancias o acabam; pelos primeiros, desvaira a
imaginação d'uma fraca mulher; pelas segundas , que-
rendo attentar contra seus dias, obriga essa infeliz a
reunir- se a elle : assim, a desgraça nasce do objecto ,
e a punição provém da falta.
Restava sómente santificar, pelo christianismo , essa
catastrophe apropriada ao mesmo tempo á antiguidade
sagrada . O auctor, mesmo então, não precisou de fazer
tudo, pois encontrou esta historia quasi naturalisada
christã n'uma velha balada de peregrino, que , em mui-

1 Sen., In Atr. et Th. Vêde tambem Canacé e Macareus, e Can-


ne e Byblis nas Metamorphoses e nos Heroides de Ovidio.
2 Reg., XIII, 14.
3 No Abufar, de M. Ducis,
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 369

las provincias, os camponezes ainda cantam . Não é


pelas maximas espalhadas n'uma obra, mas pela im-
pressão que essa obra deixa no fundo d'alma, que se
deve julgar da sua moralidade . Ora, a especie d'espanto
e mysterio, que reina no episodio de Renato, fecha e
contrista o coração , sem excitar n'elle emoções crimi-
nosas . E' preciso não perder de vista que Amelia morre
feliz e curada, e que Renato acaba miseravelmente .
Assim, o verdadeiro culpado é punido, emquanto a
sua fragil victima, entregando sua alma ferida nas
mãos d'aquelle que volve o enfermo no seu leito , sente
renascer uma alegria ineffavel, mesmo no fundo das
tristezas de seu coração . Por fim, o discurso do padre
Souel não deixa duvida alguma sobre o fim e sobre a
moralidade da historia de Renato .
IX Ácerca d'Attala , têm -se feito tantos commen-
tarios, que seria superfluo determo- nos sobre esse
ponto . Bastará observar que os criticos, que mais se-
veramente julgaram esta historia, reconheceram , to-
davia, que ella fazia amar a religião christa, e isso
basta ao auctor . Debalde se amofinariam sobre alguns
quadros ; não é menos verdade que o publico viu n'elles.
sem grande custo , o velho missionario, apezar de ser
padre, e que, n'esse episodio indiano, amou a descri-
pção das ceremonias do nosso culto . Foi a Attala que
annunciou e que talvez fez lêr o Genio do Christianis-
mo; essa selvagem despertou entre certa gente as ideias
christãs , e dos desertos onde estava exilada trouxe
para essa gente a religião do padre Aubry.
X Emfim, não é nova esta ideia de chamar a ima-
ginação em soccorro dos principios religiosos . Não
vimos , em nossos dias , o Conde de Valmont, ou os
Desvarios da razão ? O padre Marin, da ordem dos
minimos, não procurou introduzir as verdades christãs
nos corações incredulos , fazendo -as ahi entrar disfar-

1 O cavalleiro das Landes


Desgraçado cavalleiro, etc.
24
370 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

çadas sob o véo da ficção ? Mais antigamente ainda,


Pedro Camus, bispo de Belley, prelado conhecido pela
austeridade de seus costumes, escreveu muitos roman-
2
ces pios para combater a influencia dos romances
d'Urfeu. Ainda mais : foi proprio S. Francisco de
Salles que lhe aconselhou esse genero d'apologia, por
piedade para com os mundanos , e para os chamar á
religião, apresentando-lh'a sob os ornamentos que elles
conhecem. Assim Paulo se tornava fraco com os fra-
cos, para ganhar os fracos . 3 Aquelles, pois, que con-
demnam o auctor, quereriam que elle fôsse mais es-
crupuloso que o auctor do Conde de Valmont, o padre
Marin, Pedro Camus, S. Francisco de Salles, Helio-
4 5
doro, bispo de Tricca, Amyot, esmoler-mór de Fran-
ça, ou que um outro famoso prelado, que, para dar
lições de virtude a um principe christão, não temeu
representar a perturbação das paixões com tanta ver-
dade como energia ? E' verdade que os Faydit e os
Gueudeville exprobraram tambem a Fénélon a pintura
dos amores de Eucharis ; mas as suas criticas estão hoje
esquecidas : o Telemaco tornou- se um livro classico nas
mãos da mocidade, e já ninguem pensa em criminar
o arcebispo de Cambray, por ter querido curar as pai-
xões com a pintura da desordem das paixões ; assim
como ninguem exprobra a Santo Agostinho e S. Je-
ronymo o terem pintado tão vivamente suas proprias
fraquezas e os encantos do amor.
XI - Mas os censores, que , sem duvida, sabem tudo ,

1 Temos d'elle dez romances pios, que estão muito espalhados ;


Adelaide de Vitsbury, ou a Peninsula piedosa ; Virginia, ou a Vir-
gem christa ; O Barão de Van- Hesden, ou a Republica dos Incredų–
los ; Farfalla, ou a Comica convertida ; etc.
2 Dorothea, Alcina, Daphnid, Jacintha, etc.
3 I Cor., 9, 22.
4 Auctor de Theagène et Chariclea. Sabe- se que a historia ri-
dicula , trazida por Nicephoro. a proposito d'este romance. é inteira-
mente destituida de verdade. Socrates. Phocius. e os outros aucto-
res, não dizem coisa alguma da pretendida deposição do bispo de
Tricca.
5 Traductor de Theagène et Chariclea e de Daphnis et Chloë,
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 371

pois que de tão alto julgam o auctor, terão realmente


acreditado que esta maneira de defender a religião, tor-
nando-a suave e sensivel para o coração , adornando -a
mesmo com os encantos da poesia, fôsse uma coisa
tão inaudita e tão extraordinaria ? « Quem ousaria dizer
exclama Santo Agostinho - que a verdade deve per-
manecer desarmada contra a mentira , e que aos inimi-
gos da fé será permittido atemorisar os fieis com frieza
d'estylo, que adormeça os leitores ?» Foi um severo
discipulo de Port-Royal quem traduziu esta passagem
de Santo Agostinho ; foi o proprio Pascal ; a este respeito
accrescenta 1 «que ha duas coisas nas verdades da
nossa religião : uma belleza divina, que as faz amaveis,
e uma santa magestade, que as torna veneraveis » .
Além disso , para demonstrar que, em materia de reli-
gião, nem sempre se devem empregar as provas ri-
gorosas, diz (nos seus Pensamentos ) que o coração tem
suas razões, que a razão não conhece . 2 O grande Ar-
nauld, 3 chefe d'essa escola austera do christianismo ,
combate por seu turno o academico Du Bois , que pre-
tendia tambem que a eloquencia humana não devia
empregar-se para provar as verdades da religião . Ram-
say, na sua Vida de Fénélon, fallando do Tratado da
Existencia de Deus, escripto por esse illustre prelado,
observa que M. de Cambray sabia que a afflicção da
maior parte d'aquelles que duvidam, provém , não do
seu espirito, mas do seu coração , e que, portanto, é
preciso espalhar por toda a parte os sentimentos para
enternecer, para interessar, e para sequestrar o cora-
4
ção» . Raymundo de Sebonde deixou uma obra es-
cripta quasi no mesmo sentido do Genio do Christia-
nismo, e Montaigne tomou a defeza d'este auctor contra
os que pretendem que os christãos erram em querer

1 Cartas provinciaes, xì .
2 Pensamentos de Pascal, cap. xxvIII .
3 N'um pequeno tratado sob o titulo de Reflexões sobre a Elo-
quencia dos prégadores.
4 Histoire de la Vie de Fénelon,
372 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

apoiar a sua crença com razões humanas . 1 « E' só-


mente a fé , accrescenta Montaigne, que abraça com
força e certeza os altos mysterios da nossa religião .
Não quer isto dizer que não seja uma bellissima e
muito louvavel empreza accommodar ainda ao serviço
da nossa fé os instrumentos naturaes e humanos que
Deus nos deu ... Não ha occupação nem designios mais
proprios de um christão do que empregar todos os seus
pensamentos e estudos em aformosear, estender e am-
2
pliar a verdade da sua crença » .
O auctor não terminaria, se quizesse citar todos os
escriptores que têm sido da sua opinião sobre a necessi-
dade de tornar a religião amavel, e todos os livros em
que a imaginação, as bellas -artes e a poesia fôram em-
pregados como um meio para chegar a este fim . Uma
ordem inteira de religiosos, conhecida pela sua pie-
dade, pela amenidade de seus costumes e pela sua
sciencia do mundo, occupou - se por espaço de muitos
seculos com esta unica ideia . Ah ! sem duvida , ne-
nhum genero de eloquencia póde ser interdicto a essa
sabedoria, que descerra a bocca dos mudos 3 e torna
eloquentes as linguas infantis. Resta-nos uma carta de
S. Jeronymo, em que este Padre se justifica de ter
empregado a erudição pagã em defeza da doutrina dos
christãos . 4 Santo Ambrosio teria dado á Igreja um
Santo Agostinho , se não usasse de todos os attractivos
da elocução ? «Agostinho , ainda completamente fas-
-
cinado pela eloquencia profana - diz Rollin -- procu-

1 Essais de Montaigne. t . 1v. lib. 11 , cap. XII .


2 Idem, idem.
3 Sapientia aperuit os mutuorum, et linguas infantium fecit
disertas.
4 Epist. ad Magnum. Nomeia com a costumada erudição os
auctores que defenderam a religião e os mysterios pelas ideias philo-
sophicas, começando em S. Paulo. que cita os versos de Menandro
(I Cor. , xv, 33) e de Epimenides ( Tit.. 1 , 12) até ao padre Juvencus .
que, no reinado de Constantino, escreveu em verso a historia de Je-
sus Christo sem temer, accrescenta S. Jeronymo, que a poesia di-
minuisse coisa alguma da magestade do Evangelho." (Epist. ad Magn.,
loc. cit.)
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 373

rava nas prédicas de Santo Ambrosio sómente as galas


do discurso, e não a solidez das coisas : mas não podia
fazer esta separação» . E não foi nas azas da imaginação
que Santo Agostinho subiu , por seu turno, até á Cidade
de Deus ? Este Padre não duvidava dizer que se devia
arrebatar aos pagãos a sua eloquencia, deixando -lhes
os seus embustes, a fim de a applicar á predicação do
Evangelho, do mesmo modo que Israel arrebatára o
ouro dos egypcios , sem tocar nos seus idolos , para
1
aformosear a arca santa . A utilidade de chamar a
imaginação em soccorro das ideias religiosas era tão
unanimemente reconhecida pelos Padres , que elles che-
garam a pensar que Deus se tinha servido da poetica
philosophia de Platão para levar o espirito humano á
crença dos dogmas do christianismo .
XII --- Ha porém um facto historico que prova inven-
civelmente o estranho erro em que os criticos cahiram,
quando julgaram o auctor culpado d'innovação na ma-
neira por que defendeu o christianismo . Quando Julia-
no, cercado dos seus sophistas, atacou a religião com
as armas da zombaria, como se tem feito em nossos
2
dias ; quando prohibiu aos galileus que ensinassem
e até aprendessem as bellas- lettras ; quando despojou
os altares de Christo , na esperança de abalar a fé dos
Padres, ou de os reduzir ao aviltamento da pobreza,
muitos fieis levantaram a voz para repellir os sarcasmos
da impiedade, e para defender a belleza da religião
christã . Apolinario (o pae) , segundo o historiador So-
crates, pôz em versos heroicos todos os livros de Moy-
sés, e compôz tragedias e comedias sobre os outros
livros da Escriptura . Apolinario (o filho) escreveu
dialogos, á imitação de Platão, nos quaes se continham
a moral do Evangelho e os preceitos dos apostolos . "

1 De Doctr. chr. , lib. 11 , n.º 7.


2 Temos ainda o edito de Juliano (Jul., pag. 42) . Vêde Greg.
Naz., Or. 111 , cap. iv ; Amm. , lib. xx11 .
3 A passagem grega é formal (como se vê em Socrates, liv . 111,
cap. XVI, pag. 154. edit. Valesii ; Paris, anno de 1686) . Sozomeno , que
attribue tudo ao filho , diz que elle escreveu a historia dos judeus atė
Saul, em vinte e quatro poemas, que marcou com as vinte e quatro
374 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

Emfim, Gregorio Nazianzeno, esse Padre da Igreja


chamado o theologo por excellencia, combateu tambem
os sophistas com as armas do poeta . Temos ainda a
tragedia, que elle fez, da morte de Jesus Christo, e a
moral, os dogmas e até os mysterios da religião christã
foram por elle postos em verso . O historiador da sua
vida affirma positivamente que este illustre santo não
cultivou o seu talento poetico senão para defender o
christianismo contra a irrisão da impiedade ; 2 é esta
tambem a opinião do sabio Fleury . « S. Gregorio diz
elle quiz dar aos que amam a poesia e a musica uteis
assumptos para se divertirem, sem deixar aos pagãos
a vantagem de julgar que eram os unicos que podiam
3
brilhar nas bellas-lettras » .
Esta especie d'apologia poetica da religião tem con-
tinuado quasi ininterrompida desde Juliano até nossos
dias, tomando nova força com o renascimento das
lettras . Sannazar escreveu o seu poema De partu Vir-
ginis, e Vida, o seu poema da Vida de Jesus Christo
4
(Christiade); Buchanan compôz as suas tragedias de
Japhet e de S. João Baptista . A Jerusalem libertada, o
Paraizo perdido, Polyuto, Esther, Athalia, tornaram-se.

lettras do alphabeto, como Homero ; que imitou Menandro nas come-


dias, Euripedes nas tragedias, e Pindaro nas odes, tirando da Escri-
ptura Sagrada o assumpto das suas obras. Os christãos cantavam
muitas vezes os seus versos em logar dos sacros hymnos, porque elle
tinha composto canções piedosas de toda a especie para os dias de
festa, ou de trabalho. Dirigiu ao proprio Juliano e aos philosophos
d'aquelle tempo, um discurso intitulado - Da verdade , no qual de-
fendeu o christianismo com razões puramente humanas.
Um leigo, chamado Origenes, publicou tambem alguns tratados
em favor da religião ; e Santo Amphiloco escreveu em verso a Seleu-
co, para o induzir a estudar as bellas-lettras e os mysterios da reli-
gião. (S. Basilio, ep. 384, pag. 377 ; S. João Damasc., pag. 180.)
10 abbade de Bily colleccionou cento e quarenta e sete poemas
d'este Padre, a quem S. Jeronymo e Suidas attribuem mais de cento
e trinta mil versos pios .
2 Nas. Vit., pag. 12.
3 Vêde a nota 9.ª no fim .
4 Do qual se reteve este verso sobre o derradeiro suspiro de
Christo :
Supremamque auram, ponens caput, expiravit.
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 375

verdadeiras apologias em favor da belleza da religião .


Emfim, Bossuet, no segundo capitulo do seu prefacio
intitulado De grandiloquentia et suavitate Psalmorum;
Fleury, no seu Tratado das Poesias Sagradas ; Rollin ,
no seu capitulo da Eloquencia da Escriptura; Lowth,
no seu excellente livro De Sacra Poesi Hebræorum
todos se conformaram em fazer admirar a graça e a
magnificencia da religião . Além disso , que necessi-
dade ha d'apoiar com tantos exemplos o que o simples
bom senso basta para demonstrar ? Desde que quize-
ram tornar a religião ridicula, é muito natural mostrar
as suas bellezas . Pois què ! O proprio Deus far-nos -ia
annunciar a sua Igreja por poetas inspirados ; servir- se-
ia dos mais bellos accordes da harpa do Rei-propheta,
para nos pintar as graça da Esposa e nós não pode-
riamos cantar os encantos d'essa que vem do Libano, ¹
que olha do alto das montanhas de Sanir e de Her-
2 3
mon, que se mostra como a aurora, que é bella como
a lua, e cuja estatura é similhante á da palmeira ! 4
A nova Jerusalem, que S. João viu elevar -se do deserto .
era toda brilhante de claridade.

Cantae, povos da terra !


Mais bella e encantadora
Jerusalem renasce. 5

Sim, cantemos , sem temor, essa religião sublime :


defendamol-a contra a irrisão ; façamos valer todas as
suas bellezas, como no tempo de Juliano ; e, pois que
seculos similhantes reproduziram iguaes insultos aos
nossos altares, empreguemos contra os modernos so-
phistas o mesmo genero d'apologia que os Gregorios e
os Apolinarios empregaram contra os Maximos e os
Libanios .

1 Veni de Libano, sponsa mea. (Cant., c . IV. 8) .


2 De Vertice Sanir et Hermon. (Idem , idem)
3 Quasi aurora consurgens , pulchrant luna. ( Idem, c . vi , 9).
4 Statura tua assimilatæ est palmæ. (Cant , c . vi , 7).
5 Athalia.
376 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

PLANO DA OBRA

O auctor não póde julgar-se sufficientemente au-


ctorisado para fallar do plano da sua obra como fallou
do essencial do seu assumpto ; porque um plano é uma
coisa da arte que tem suas leis, as quaes obrigam a
acatar a decisão dos mestres . Assim, fallando dos cri-
ticos que desapprovam o plano do seu livro, o auctor
será forçado a contar tambem as opiniões que lhe são
favoraveis .
Ora, se elle se illude sobre o seu plano , e o não julga
completamente defeituoso, não deverá desculpar- se-lhe
d'algum modo esta illusão, visto ser partilhada por al-
guns escriptores, cuja superioridade na critica jámais
alguem contestou ? Esses escriptores deram de bom
grado a sua approvação publica á obra ; M. de La- Harpe
julgára-a com igual indulgencia . O auctor aprecia
muito uma tal auctoridade, para que deixe d'apoiar-se
n'ella, ainda que o accusem de vaidoso . Esse grande
critico voltára, pois , de novo para o Genio do Chris-
tianismo, ao projecto que longo tempo tivera para a
1
Attala; quiz compôr a Defeza que o proprio auctor
se vê hoje obrigado a escrever ; este teria a certeza do
triumpho, se fôra secundado por um homem tão habil ;
mas a Providencia quiz prival -o d'esse poderoso soc-
corro e d'esse glorioso suffragio .
Se o auctor passa dos criticos que parecem appro-
val-o, aos criticos que o condemnam , lendo e relendo
as suas censuras, não encontra ahi coisa alguma que o
possa esclarecer; nada preciso, nada determinado ; em
toda a parte expressões vagas ou ironicas . Mas , em
vez de julgar o auctor com tanta altivez , não deveriam
os criticos ter piedade da fraqueza d'elle, mostrando-

1 N'esse tempo. conhecia eu apenas M. de La- Harpe ; mas, tendo


ouvido fallar do seu designio, fiz com que os seus amigos lhe pedis-
sem que não respondesse á critica do senhor abbade Morellet. Por
muito gloriosa que fosse para mim uma defeza da Attala por M. de
La-Harpe, julguei com razão que era muito pouco o que eu valia
para excitar uma controversia entre dois escriptores celebres.
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 377

lhe os vicios do seu plano, e ensinando -lhe a reme-


dial-os ? « O que se conclue de tantas criticas mordazes
-diz M. de Montesquieu, na sua Defeza — é que o
auctor não fez uma obra segundo o plano e as vistas
dos seus criticos , e que, se esses criticos tivessem
feito uma obra sobre o mesmo objecto , teriam mettido
n'ella um grande numero de coisas que elles sabem » . ¹
Já que esses criticos recusam (sem duvida porque
não vale a pena ) demonstrar o inconveniente ligado
ao plano, ou antes, ao objecto do Genio do Christia-
nismo, o proprio auctor vae tentar descobril-o .
Quando se quer considerar a religião christã ou o
genio do christianismo sob todas as suas faces , vê- se
que este assumpto offerece duas partes muito dis-
tinctas .
O christianismo propriamente dito, isto é, os
seus dogmas, a sua doutrina e o seu culto ; e sob esta
ultima correlação se contam tambem os seus bene-
ficios e as suas instituições moraes e politicas .
2. A poetica do christianismo, ou a influencia da
religião sobre a poesia, as bellas-artes, a eloquencia,
a historia, a philosophia, a litteratura em geral ; o que
leva tambem a considerar as mudanças que o christia-
nismo operou nas paixões do homem e no desenvolvi-
mento do espirito humano.
( inconveniente do objecto é pois a falta de uni-
dade, e este inconveniente é inevitavel . Para fazel - o
desapparecer, debalde tentou o auctor outra combi-
nação de capitulos ou de partes nas duas edições sup-
primidas . Depois de se obstinar longo tempo em pro-
curar o plano mais regular, pareceu-lhe, em ultimo
resultado, que , para o fim que se propunha , se tratava
menos de fazer uma obra extremamente methodica,
que de descarregar um grande golpe sobre o coração ,
e de ferir profundamente a imaginação . Assim , em
vez de seguir a ordem dos objectos, como primeiro
tinha feito, preferiu a ordem das provas. As de senti-

1 Defesa do Espirito das Leis.


378 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

mento estão encerradas na primeira parte, onde se


trata do attractivo e da grandeza dos mysterios , da
existencia de Deus, etc .; as que se destinam ao espi-
rito e á imaginação preenchem a segunda e a terceira
parte, consagradas á poetica; emfim, essas mesmas.
provas para o coração , para o espirito e para a ima-
ginação, reunidas ás provas para a razão, isto é, ás
provas de facto, occupam a quarta parte, e terminam
a obra. Esta gradação de provas parece que promette
estabelecer uma progressão de interesse no Genio do
Christianismo, e dir-se-ha que o juizo do publico con-
firmou esta esperança do auctor. Ora , se o interesse
vae crescendo de parte a parte, o plano do livro não
póde ser completamente vicioso .
Permitta- se que o auctor faça notar mais uma coisa .
Apezar dos desvios de sua imaginação, perde elle de
vista frequentes vezes o seu asumpto ? Appellemos a
este respeito para a critica imparcial : qual é o capitulo,
qual é, para assim dizer, a pagina onde o objecto do
1
livro não seja reproduzido ? Ora, n'uma apologia do
christianismo, onde se não quer mostrar ao leitor senão
a belleza d'esta religião, poderá dizer-se que o plano
d'essa apologia é essencialmente defeituoso , se, tanto
nas coisas mais directas como nas mais afastadas, se
faz apparecer por toda a parte a grandeza de Deus , as
maravilhas da Providencia, a influencia, os attractivos,
e os beneficos dos dogmas, da doutrina, e do culto de
Jesus Christo ?
Em geral, apressam-se demasiado em ajuizar do
plano d'um livro . Se esse plano se não desenvolve
desde logo aos olhos dos criticos como elles o concebe-
ram pelo titulo da obra, condemnam-o desapiedada-
mente . Mas esses criticos não vêem, ou não se dão ao
trabalho de vêr, que se o plano, que elles imaginam,
se executára, haveria talvez uma multidão de inconve-
nientes, que tornariam ainda peior do que o adoptado
pelo auctor.

1 Esta verdade foi reconhecida pelo proprio critico que mais se


sublevou contra a obra.
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 379

Quando um escriptor não compôz a sua obra com


precipitação ; quando consumiu n'ella muitos annos ,
consultou os livros e os homens, não rejeitando nenhum
conselho e nenhuma critica ; quando acabou e recome-
çou muitas vezes o seu trabalho ; quando entregou duas
vezes ás chammas a sua obra, já impressa - será só-
mente justiça suppôr que talvez encarasse o assumpto
tão bem como o critico , que, depois d'uma leitura ra-
pida, condemna com uma palavra um plano que levou
annos a meditar . Dêem ao Genio do Christianismo
uma fórma inteiramente diversa , e ousamos assegurar
que o conjuncto das bellezas da religião, a accumulação
das provas nos ultimos capitulos, a força da conclusão
geral, terão muito menos brilhantismo e serão muito
menos surprehendentes que na ordem por que o livro
está actualmente disposto . Ousamos ainda affirmar que
na lingua franceza (exceptuando o Telemaco e as obras
historicas) não ha grande monumento em prosa, cujo
plano não esteja exposto a tantas objecções como tem
podido fazer-se ao plano do auctor. Que arbitrariedade
na disposição das partes e dos objectos dos nossos.
mais bellos e uteis livros ! E sem duvida ( se uma obra
prima póde comparar-se a uma obra imperfeitissima) o
admiravel Espirito das Leis é uma composição que
talvez não tenha mais regularidade que a obra, cujo
plano se tenta justificar n'esta defeza . Todavia, o me-
thodo era ainda mais necessario ao assumpto tratado
por Montesquieu do que a esse de que o auctor do Genio
do Christianismo tentou um tão fraco esboço .

MIUDEZAS DA OBRA

Vamos agora ás criticas minuciosas.


Em primeiro logar, não póde deixar de observar-se
que a maior parte d'estas criticas cahem sobre a pri-
meira e sobre a segunda parte . Os censores mostraram
um desgosto singular pela terceira e quarta . Passam-as
quasi sempre em silencio . Deve o auctor entristecer-se
ou regosijar-se com isso ? Não haverá que dizer sobre
estas duas partes, ou não deixarão ellas dizer coisa
alguma ?
380 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

Trataram , pois, quasi unanimemente de combater


algumas opiniões litterarias, exclusivas do auctor, e
derramadas na segunda parte ; 1 opiniões que, por fim,
são de escassa importancia, e podem ser acceites ou
rejeitadas, sem que d'ahi se possa concluir coisa alguma
contra o fundo da obra . E ' preciso accrescentar á lista
d'estas graves exprobrações uma duzia de termos ver-
dadeiramente reprehensiveis, e que se fizeram desappa-
recer nas novas edições .
Pelo que respeita a algumas phrases, cujo sentido
torceram ( por uma arte tão maravilhosa e tão nova)
para ahi encontrarem allusões indecentes, como se ha
de evitar tal desgraça, e que remedio se lhes dará ?
«Um auctor (é La Bruyère que o diz ) não tem obrigação
d'occupar o seu espirito com todas as estravagancias,
obscenidades e más palavras que podem dizer- se, e
com todas as applicações ineptas que podem fazer-se
ácerca de alguns logares da sua obra, nem tão pouco
tratar de supprimil-os; pois está convencido de que ,
por mais escrupuloso que seja no seu modo d'escrever,
a fria mofa dos maus gracejadores é um mal inevitavel,
e que as melhores coisas não lhes servem, muitas vezes,
2
senão para lhes fazer encontrar uma loucura» .
O auctor tem citado muito no seu livro, mas parece
que devia citar ainda mais . Por uma singular fatali-
dade, acontece quasi sempre que os criticos , querendo
censurar o auctor, se denunciam falhos de memoria .
Elles não querem que o auctor diga rasgar a cortina
dos mundos, e deixar vêr os abysmos da eternidade ---
quando estas expressões são de Tertuliano ; 3 sublinham
o poço do abysmo e o cavallo pallido da morte, na
apparencia como uma visão do auctor, e esqueceram

1 Ainda não fizeram mais do que repetir as polidas e judiciosas


observações que, sobre este assumpto, appareceram em alguns acre-
ditados diarios .
2 Caracteres, de La Bruyère.
3 Cum ergo finis et limes medius, qui interhiat, adfuerit, ut
etiam mundi ipsius species transferatur æque temporalis, quæ illi
dispositioni æternitatis aulæi vice oppansa est. ( Apolog., c. XLVIII .)
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO 381

1 riem-se das
que isso são imagens do Apocalypse;
torres gothicas toucadas de nuvens , e não vêem que o
auctor traduziu litteralmente um verso de Shakespea-
re; julgam que os ursos embriagados d'uvas são uma
circumstancia inventada pelo auctor , e o auctor, n'este
ponto, não foi mais que um historiador fiel ; o esquimó ,
que se embarca sobre um monte de neve , parece-lhes
uma imagem atrevida, e é um facto relatado por Char-
3
levoix ; o crocodilo que põe um ovo é uma expressão
d'Herodoto ; astucias da sabedoria é da Biblia ; 5 etc.
Pretende um critico que o epitheto dado por Homero
a Nestor se deve traduzir por Nestor de doce lingua-
gem; mas a phrase grega jámais póde entender- se d'esse
modo . Rollin traduziu quasi como o auctor do Genio
do Christianismo « Nestor, essa boca eloquente» , 4 se-
gundo o texto grego, e não segundo a lição do com-
mentador latino, suaviloquus, que o critico visivelmente
seguiu .
Por fim, o auctor já disse que não pretendia defen-
der talentos que, sem duvida, não possue ; mas é-lhe
forçoso observar que tantos pequenos reparos sobre
uma longa obra, só servem para desgostar o auctor,
sem o esclarecer : é a mesma reflexão que o proprio
Montesquieu fez, n'esta passagem da sua Defeza:
«Aquelles que sempre querem ensinar, impedem
muitas vezes d'aprender : não ha genio que se não aca-

1 Equus pallidus (c . vi , v. 8) ; Puteus abyssi (c . 1x. v. 2).


2 The clouds - capt towers, the gorgeous palaces, etc. ( In the Temp.)
Dellile, fallando dos rochedos, tinha dito, nos Jardins :
J'aime à voir leur front chauve et leur tête sauvage
Se coiffer de verdure, et s'entourer d'ombrage
Não obstante , nas ultimas edições, escrevi — coroadas por um
capitel de nuvens.
3 Dir-se-ia que sobre esses gêlos enormes se encontram homens,
que alli se embarcam expressamente ? Assegura- se, comtudo, que
por mais d'uma vez, alli se tem visto esquimós , etc. (Histoire de la
Nouvelle-France. t. 11 , lib . x , pag. 293, ediç. de Paris, 1744).
4 Lib. 11 , cap. LXVIII .
5 Astutias sapientiæ . (Eccl. , cap. 1 , v. 6.)
6 Traité des Estudes, t. 1 , De la lecture d'Homère.
882 DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO

nhe, quando o envolvem n'um milhão d'escrupulos


vãos : tendes as melhores intenções do mundo, e sereis
forçado a duvidar d'ellas . Não podeis tornar a occupar-
vos em obra séria, quando vos perturba o temor de não
a desempenhar, e quando, em vez de seguir o pensa-
mento, vos preoccupam os termos que poderão escapar
á subtileza dos criticos . Põem-vos uma venda nos olhos,
para vos dizerem a cada passo : - Acautelae-vos de
cahir : podeis fallar como vos parecer, mas eu quero
que falleis como me parece . Se tentaes um vôo, deter-
vos -hão pelo vestido . Se tendes vida e força, tirar-
vol- a- hão a picadelas . Se vos elevaes um pouco , eil-os
a pegarem na toeza, a erguerem a cabeça e a gritarem-
vos que desçaes para vos medirem... Não ha sciencia
nem litteratura que possa resistir a um pedantismo si-
milhante» . ¹
E' muito peior ainda, quando a isto se juntam de-
nuncias e calumnias . Mas o auctor perdôa-as aos cri-
ticos, pois conhece que isso , póde fazer parte do seu
plano, e elles têm o direito de reclamar para os seus
escriptos a indulgencia que o auctor pede para a sua
obra. Comtudo, que resulta de tantas censuras mul-
tiplicadas, onde só transluz o desejo de prejudicar a
obra e o auctor, e jámais um gosto imparcial pela
critica ? Que se provocam homens, que, forçados a des-
cer á arena, podem ahi apparecer algumas vezes com
armas que se lhes não suppunham .

FIM DA DEFEZA

1 Defesa do Espirito das Leis, terceira parte.


NOTA

Pag. 372 — «S. Gregorio quiz dar, aos que amam a poesia
e a musica, uteis assumptos para se divertirem , sem dei-
xarem aos pagãos a vantagem de julgar que eram os unicos
que podiam brilhar nas_bellas -lettras » . (Fleury, Hist. eccl. ,
tom. Iv, liv. xix , pag . 557) .
A philosophia escandalisou-se do modo philosophico ,
moral e até poetico, porque o auctor fallou dos mysterios ,
sem attender a que muitos padres da Igreja tambem assim
fallaram , e a que o auctor não fez mais que repetir os
raciocinios d'estes grandes homens. Origenes, escrevera nove
livros, de Stromatas , onde confirma, diz S. Jeronymo, todos
os dogmas da nossa religião com a auctoridade de Platão,
Aristoteles, Numesius e Cornutus. (Epist. ad Magn) . S. Gre-
gorio de Nysse mistura a philosophia com a theologia, e
serve-se das razões dos philosophos na explicação dos mys-
terios; segue Platão e Aristoteles pelos principios, e Origenes
pela allegoria. Que não teriam, portanto, dito os criticos,
se o auctor fizera, como S. Gregorio Nazianzeno , algumas
estancias sobre a graça, o livre arbitrio, a invocação dos
santos, a Trindade, o Espirito Santo, a presença real, etc. ?
O poema 70.º composto em versos hexametros, e intitulado
Os segredos de S. Gregorio, contém, em cito capitulos, tudo
o que a theologia tem de mais sublime e importante. S. Gre-
gorio cantou até a primazia da Igreja de Roma :
Fides vetustæ recta erat jam antiquitus
Et recta perstat nunc item , nexu pio,
Quodcumque labens sol videt, devinciens :
Ut universi præsidem mundi ducet,
Totam colit quæ Numinis concordiam .

«Desde a mais remota antiguidade, a fé romana tem


sido recta, e essa Roma -que liga, pela palavra da salva-
ção, tudo o que alumia o sol no seu occaso, como convinha
á sua Igreja, que occupa o primeiro logar entre as igrejas
do mundo, e que reverenceia a perfeita união que existe em
Deus persiste na sua rectidão» . Eis, certamente, assum-
ptos bastante serios postos em verso por um bispo. O au-
ctor do Genio do Christianismo fallou unicamente dos bellos
384 NOTA

effeitos da religião empregada na poesia. S. Gregorio Na-


zianzeno vae mais longe, porque faz verdadeiras allegorias
sobre asumptos piedosos. Rollin dá-nos assim o summario
d'um poema d'este padre : «Um sonho que S. Gregorio teve,
sendo ainda muito moço, e do qual nos deixou em verso
uma elegante descripção , contribuiu muito para inspirar-lhe
taes sentimentos (os sentimentos d'innocencia) . Em quanto
dormia, julgou vêr duas virgens da mesma idade, e de bel-
leza igual, vestidas modestamente, e sem nenhum d'esses
ornatos que o seculo procura. Tinham os olhos fitos na
terra, e o rosto coberto com um véo , atravez do qual se
divisava o rubor que por suas faces espalhava um pudor
virginal. A vista d'ellas , accrescenta o santo, encheu-me
de alegria; pois me parecia que tinham alguma coisa de
sobre-humano. Abraçaram-me, e acariciaram-me como a
uma creança que ternamente amassem ; e quando lhes per-
guntei quem eram, uma me disse que era a Pureza, e a
outra a Continencia, ambas companheiras de Jesus Christo,
e amigas d'aquelles que renunciam ao casamento, para vi-
verem uma vida celeste ; exhortavam-me a unir ao d'ellas
o meu coração e o meu espirito, para que, enchendo-me do
esplendor da virgindade, podéssem apresentar-se ante a luz
da Trindade immortal. Depois d'estas palavras voaram para
o céo, e os meus olhos seguiram -as quanto lhes foi possivel» .
(Tratado dos Estudos , tom. Iv, pag. 674) . A exemplo d'este
grande santo, o proprio Fénélon, na sua Education des
Filles, fez encantadoras descripções dos sacramentos. Quer
elle que, na instrucção das creanças, se escolha, nas his-
torias ( da religião ) «tudo que dê imagens as mais risonhas
e mais magnificas, por ser preciso empregar tudo isso para
fazer com que as creanças achem a religião bella, amavel
e augusta, em vez de a representarem, como de ordinario
succede, uma coisa triste e languida» . Tantos exemplos,
tantas auctoridades famosas, seriam ignoradas dos criticos ?

FIM DA NOTA
INDICE DO SEGUNDO VOLUME

Parte terceira Bellas-artes e litteratura

LIVRO PRIMEIRO BELLAS-ARTES


PAG.
CAP. I. - Musica ― Da influencia do christianismo na

799
musica
II. - - O canto Gregoriano
III. - Parte historica da pintura dos modernos 11
IV . - Assumpto de quadros. 14
V. - Esculptura . 16
VI. -- Architectura Quartel dos Invalidos • 17
VII. ---- Versailles 19
VIII. Das igrejas gothicas • 20

LIVRO SEGUNDO - PHILOSOPHIA

CAP. I. - Astronomia e Mathematica . 25


++++

II. -- Chimica e Historia Natural . 36


III. - - Dos philosophos christãos ― Metaphysico 41
s.
IV . " "9 --- Publicistas. · 43
V. ---- Moralistas - La Bruyère 45
VI. Continuação dos Moralistas . 47

LIVRO TERCEIRO HISTORIA

CAP. I. - - Da influencia do christianismo no theor de


escrever a historia . 55
II. ― - Causas geraes que empeceram aos auctores
modernos o bom exito na historia :
Causa primeira ·- Excellencias dos assum-
ptos antigos . 57
VOL. II
386 INDICE

PAG.
CAP. III. - Seguimento do anterior :
Segunda causa - Os antigos exhauriram
todos os generos de Historia, excepto o
genero Christão . 60
IV . -- Porque teem os francezes memorias sómente ? 63
V. - O bom da historia moderna . 66
VI. - Voltaire, como historiador 68
VII. ―― Philippe de Commines e Rolin . 70
VIII. - Bossuet, como historiador • 71

LIVRO QUARTO - ELOQUENCIA

2785
CAP. I. Influxo do christianismo na eloquencia • 75
II. Dos oradores - - Dos padres da Igreja 77
III. - Massillon. · 83
IV. -- Bossuet, como orador. 87
V. www - Que a incredulidade é a causa principal da
decadencia do gosto e do engenho . 91

LIVRO QUINTO HARMONIA DA RELIGIÃO CHRISTÃ COM


AS SCENAS DA NATUREZA
E AS PAIXÕES DO CORAÇÃO HUMANO

CAP. I. - - Divisão das harmonias 99


II. - Harmonias physicas - Localidades dos mo-
numentos religiosos, conventos maronitas,
cophtas, etc.. 99
III. Ruinas em geral- Que as ha de duas especies. 108
IV. - Effeito pittoresco das ruinas - Ruinas de
Palmyra, do Egypto, etc. • 110
V. - - Ruinas dos monumentos christãos · 112
VI. Harmonias moraes Devoções populares 114
INDICE 387

Parte quarta - Culto

LIVRO PRIMEIRO IGREJAS, ORNAMENTOS , CANTICOS,


ORAÇÕES, SOLEMNIDADES, ETC.
PAG.
CAP. I. - Dos sinos. 125
II. - Da vestimenta dos padres, e ornamentos da
Igreja . 127
III. ― Canticos e orações . 129
IV. - Das solemnidades da Igreja - Do Domingo 136
V. - Explicação da missa . 138
VI. - - Ceremonias e orações da missa . 140
VII. ― - Festividade de Corpus Christi . 143
VIII. - Das Ladainhas . 146
IX . D'algumas festividades christãs -Natal,
Reis, etc. • · • 148
X. - Funeraes - Pompas funebres dos grandes . 151
XI. -- Funeraes do guerreiro, sahimentos dos ricos,
costumes, etc. • 153
XII. - - Das orações pelos defuntos . • 155

LIVRO SEGUNDO TUMULOS

CAP. I. - - Tumulos antigos - Egypto . 161


II. " - - Gregos e romanos · 162
III. modernos - China e Turquia . 163
IV. " · Caledonia ou antiga Es-
cocia 164
V. - Tumulos modernos Otaiti 164
VI. - christãos. - 166
VII. - - Cemiterios ruraes . 168
VIII. Sepulturas nas Igrejas 170
IX . - S. Diniz . • 172

LIVRO TERCEIRO ANALYSE GERAL DO CLERO

CAP. I. - Jesus Christo e sua vida . · · 175


II. Clero secular — Jerarchia · • • 180
III. " -- Origem da vida monastica.
regular — 189
338 INDICE

PAG.
CAP. IV . Das constituições monasticas 194
V. -- Quadro dos costumes e da vida religiosa -
Monges cophtas, maronitas, etc. 197
VI. - Seguimento do precedente - Trappistas,
cartuxos, irmãs de Santa Clara, padres
redemptoristas, missionarios, irmãs da ca-
ridade . · 202

LIVRO QUARTO MISSÕES

CAP. I. - Ideia geral das missões · 209


II. Missões do Levante 217
III. D da China . 221
IV . " do Paraguay - Conversão dos sel-
vagens • 226
མ. Continuação das missões do Paraguay - Re-
publica christã. -Felicidade dos indios . 230
VI. Missões da Guiana . 238
· VII. " das Antilhas 240
VIII. " da Nova-França . 244
IX . - · Conclusão das missões 253

LIVRO QUINTO ORDENS MILITARES OU CAVALLARIA

CAP. I. - Cavalleiros de Malta 255


II. - Ordem Teutonica . 259
III. Cavalleiros de Calatrava e S. Thiago da Es-
pada, em Hespanha. 260
IV. - Vida e costumes dos cavalleiros 262

LIVRO SEXTO SERVIÇOS PRESTADOS Á SOCIEDADE


PELO CLERO, E RELIGIÃO CHRISTÃ EM GERAL

CAP. I. - Immenso bemfazer do christianismo 275


II. - Hospitaes 276
III. Hospital-geral (Hotel- Dieu), irmãs do habito
pardo (Sœurs grises) • • 282
IV. -- Expostos, irmãs da caridade Rasgos de be-
.neficencia . 287
INDICE 389

PAG.
CAP. V. Educação Escolas, collegios, universida-
des; benedictinos e jesuitas . 290
VI. -- Papas e côrte de Roma, descobrimentos mo-
dernos, etc. 295
VII. - Agricultura . • 301
VIII. - Cidades e villas, pontes, estradas reaes , etc, 304
IX . - - Artes e mesteres ; commercio · 307
X. - - Das leis civis e criminaes 310
XI. - Politica e governação. 314
XII. Recapitulação geral · 320
XIII e ultimo Qual seria hoje o estado da socieda-
de se não tivesse apparecido o christianis-
mo ? - Conjecturas — Conclusão 325

ANNOTAÇÕES . 343
DEFEZA DO GENIO DO CHRISTIANISMO PELO AUCTOR. 357
Motivo da obra . 358
Plano da obra 376
Miudezas da obra · 379
Nota • • 383

FIM DO INDICE DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME

Collocação das estampas do segundo volume

RETRATO DO TRADUCTOR (Camillo Castello Branco) frontispicio


Regresso do peregrino . • pag. 115
Os religiosos do monte de S. Bernardo " 199
As Missões . " 211
As irmãs da Caridade " 285
230
f
This book should be returned to
the Library on or before the last date
stamped below.
A fine of five cents a day is incurred
by retaining it beyond the specified
time .
Please return promptly .

DUE NOV 19 1928

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