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PAI DA IGREJA PRIMITIVA- POLICARPO

1. O BISPO DE ESMIRNA

Desde seu início, a igreja cristã esteve sob severa perseguição. Ferreira (2006,
p. 23) destaca que “entre o fim do século 1.º e o começo do século 4.º, houve
dez perseguições patrocinadas pelo Império Romano”. O 2.º século
encontrava-se exatamente no centro deste período, e a política adotada na
época para com o cristianismo era a de que “se alguém os acusava, e se
negavam a abandonar sua fé, deviam ser castigados; mas se ninguém os
acusava, o estado não devia empregar seus recursos para persegui-los”
(GONZALES, 2009, p. 65).
Foi em meio a este momento histórico que emergiu a figura de Policarpo (c. 70-
150). Como bem destacou Frangiotti (In QUINTA, 2002, p. 129), “[...] de sua
infância, sua formação, sua família, ignoramos tudo”. Todavia, embora não
tenhamos quaisquer detalhes destes anos de sua vida, temos algumas
informações sobre a sociedade na qual se desenvolveu até chegar ao ofício de
bispo em Esmirna, o que poderá nos ajudar a compreender melhor como foi
formado o caráter deste grande homem.
Esmirna (hoje Izmir), localizada na Ásia Menor (atual Turquia), era uma cidade
portuária a oeste de Éfeso. Sabemos que apesar de enfrentar os mesmos
problemas supracitados, os cristãos possuíam ali uma igreja forte e muito
respeitada. Das cartas endereçadas às sete igrejas no Livro de Apocalipse, a
única a não ser encontrada em falta fora a igreja de Esmirna. Deveras, é
belíssimo o testemunho a respeito desta igreja conforme descrito por João
(Apocalipse 2:8-11), o qual é encerrado com a promessa: “Sê fiel até à morte, e
dar-te-ei a coroa da vida [...] O vencedor de nenhum modo sofrerá dano da
segunda morte”.
Também Inácio de Antioquia, outro a tornar-se mártir, tece grandes elogios na
carta endereçada a ela [1]. Logo no início, ela é saudada como uma igreja “[...]
repleta de fé e amor, à qual não falta nenhum dom”, e que é “caríssima a
Deus”; Inácio ainda descreve aqueles irmãos como “sábios” e “perfeitos na fé
imutável” (InQUINTA, 2002, p. 115).
Foi nessa igreja que, como escreveu Ferreira, “Policarpo foi formado, educado
e feito bispo”. Todas as informações que temos a seu respeito “[...] surgem a
partir de seu serviço pastoral, como bispo, à frente da comunidade” (2006, p.
24).
Frangiotti (In QUINTA, 2002, pp. 129, 130) atesta que é possível reconstruir a
personalidade de Policarpo a partir de alguns testemunhos fidedignos, tais
como “[...] as freqüentes referências de Irineu de Lião, seu discípulo”. Segundo
Frangiotti, na própria “Carta aos Filipenses”, Policarpo “[...] revela toda a sua
alma, seu coração compassivo” e “sua compreensão para com os fracos”. 

É importante destacar ainda uma peculiaridade acerca da ordenação de


Policarpo ao episcopado da igreja em Esmirna. Segundo algumas fontes
históricas, ele teria sido ordenado pelos próprios apóstolos. Ferreira (2006, p.
25) aponta para dois testemunhos importantes acerca deste fato: 1) o de
Tertuliano, o qual declara que “Policarpo teria sido ordenado [...] pelas mãos do
próprio apóstolo João, ‘segundo a tradição daquela igreja, do mesmo modo que
a igreja de Roma afirma que Clemente fora ordenado bispo por Pedro [o
Apóstolo]’”; e 2) o testemunho de Irineu, o qual menciona que Policarpo “não
apenas foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que
tinham visto o Senhor, mas foi estabelecido bispo da Ásia, na igreja de
Esmirna, pelos próprios apóstolos”. A simples declaração de tal fato, ainda de
acordo com Irineu, teria “[...] levado à conversão muitos dos gnósticos” em
Roma, quando Policarpo ali estivera, “na época do bispado de Aniceto”.
As informações mais claras, porém, das quais dispomos concernentes a
Policarpo, não dizem respeito ao modo como viveu, mas, sim, ao modo como
morreu. Uma carta escrita pela igreja de Esmirna, e enviada à igreja de
Filomélio, descreve em “detalhes aterradores”, como expressa Olson (2009, p.
47), o que ficou conhecido como o “Martírio de Policarpo”. Nela, lemos sobre o
modo como o bispo de Esmirna foi perseguido e como, espontaneamente, se
deixou capturar. Está escrito que após ser encontrado, Policarpo mandou servir
uma refeição aos seus captores, solicitando apenas uma hora para orar antes
de ser conduzido às autoridades (In QUINTA, 2002, p. 149).
Diante do procônsul, Policarpo se manteve firme. Quando solicitado que
declarasse “Abaixo os ateus!” (como eram chamados os cristãos por não
adorarem os deuses pagãos), Policarpo olhou “[...] severamente toda a
multidão de pagãos cruéis no estádio” e, apontando para eles, disse: “Abaixo
os ateus!” (In QUINTA, 2002, p. 150). Incitado a amaldiçoar o Cristo, ele
respondeu: “Eu o sirvo há oitenta e seis anos, e ele não me fez nenhum mal.
Como poderia blasfemar o meu rei que me salvou?” (In QUINTA, 2002, pp.
150, 151). Desprezando, assim, a ameaça de ser lançado às feras, foi
sentenciado à fogueira. Antes de ser queimado, orou, bendizendo a Deus por
ter sido “[...] julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os
mártires”, e do cálice de Cristo, “[...] para a ressurreição da vida eterna da alma
e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo” (In QUINTA, 2002, p. 153).
Ferreira (2006, p. 28, 29), citando Curtis, Lang & Peterson, destaca que “nos
150 anos seguinte [...], à medida que centenas de outros mártires caminharam
fielmente para a morte, muitos foram fortalecidos pelos relatos do testemunho
fiel do bispo de Esmirna”.
2 O LEGADO LITERÁRIO DE POLICARPO
De acordo com Frangiotti (In QUINTA, 2002, p. 132), “Policarpo teria escrito
várias cartas destinadas às diversas comunidades”. Todavia, a única
preservada, “parcialmente em grego e inteiramente em latim”, foi a endereçada
aos filipenses. Esta carta, escrita em 110 d.C., embora simples, tem especial
relevância pela proximidade de seu autor com os escritores do Novo
Testamento. Cairns (2008, p. 63) afirma que Policarpo “pôde conhecer de perto
a mente dos discípulos por ter sido discípulo de João”.
  
 De fato, Policarpo aponta para questões basilares do cristianismo, das quais a
maioria dos Pais se desviaram naqueles dias, como é o caso de sua
soteriologia fortemente marcada pela graça e não pelas obras, embora a
caridade não houvesse perdido seu devido valor. Logo no início de sua carta
ele escreve: “E vós sabeis que é pela graça que fostes salvos, não pelas obras,
mas pela vontade de Deus, por meio de Jesus Cristo” (In QUINTA, 2002, p.
139).
Policarpo faz grande uso do Novo Testamento, tendo-o em posição igual ao
Antigo, apontando freqüentemente para as epístolas paulinas. Cairns alista 60
citações do N. T. na Carta do bispo de Esmirna aos filipenses, sendo 34 destas
dos escritos de Paulo (2008, p. 34). Segundo Ferreira (2006, p. 26), ele
também “estava familiarizado com [...] o evangelho de Mateus, além de citar 1
Pedro, 1 João e Atos”.
Policarpo se preocupa em defender a encarnação, morte e ressurreição de
Cristo, provavelmente refutando algum perigo das heresias docetistas e
gnósticas (In QUINTA, 2002, p. 143, 144, 151). Para ele, o sacrifício de Jesus
foi substitutivo (vicário). “Cristo Jesus [...] carregou nossos pecados em seu
próprio corpo sobre o madeiro” (In QUINTA., 2002, p. 143, 144).
Ainda tratando da carta aos Filipenses, Granconato (2010, p. 87), em
concordância com o pensamento de Héber Carlos de Campos, atesta que
“pode-se facilmente detectar o embrião de uma doutrina que [...] desenvolveu-
se ao longo dos séculos”, sendo incluída “em versões posteriores do Credo
Apostólico (a partir do século IV)”, figurando no “[...] Credo de Atanásio
(séculos V e VI)”, chegando mesmo a tornar-se “[...] afirmação credal comum
nos diversos documentos da igreja, especialmente a partir do século VII”, a
saber, “a doutrina de que, entre seu sepultamento e ressurreição, Cristo
desceu a um lugar chamado Hades a fim de completar ali sua obra de
salvação”. Todavia, não poderia deixar-se de mencionar que, em sua carta, ele
não chega a desenvolver “[...] os contornos exatos do seu pensamento sobre a
descida de Cristo ao Hades” (GRANCONATO, 2010, p. 88).
Voltando olhos agora para a narrativa de seu suplício, parece ser possível
inferir uma firme concepção da doutrina da Trindade; isto é evidenciado em sua
oração final diante da sentença à fogueira, onde confere glória ao Pai, com
Jesus Cristo [o Filho] e o Espírito, “[...] agora e pelos séculos futuros. Amém”
(In QUINTA, 2002, p. 153).
A intenção principal, entretanto, de sua carta é fortalecer os irmãos em meio às
perseguições, exortando-os a que vivam vidas santas, castas e que glorifiquem
a Deus; instruindo-os a respeitarem as autoridades constituídas, tais como os
presbíteros e os diáconos, na realidade eclesiástica, e “[...] os reis, autoridades
e príncipes”, na esfera civil, pelos quais deveriam orar sempre (In QUINTA,
2002, p. 146).
Policarpo não nos deixou um legado literário muito extenso, mas seu exemplo
de fé e ortodoxia continua a fortalecer cristãos, incentivando-os a andar com o
Senhor até os dias de hoje, lembrando sempre que “se sofrermos por causa do
seu nome, o glorificaremos” (In QUINTA, 2002, p. 144).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAIRNS, E. E. O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja
cristã. São Paulo: Vida Nova, 2ª Edição, 2008.
FERREIRA, F. Gigantes da Fé. São Paulo: Editora Vida, 2006.
GRANCONATO, M. Eles Falaram Sobre O Inferno: a doutrina da perdição
eterna nos primeiros escritos cristãos. São Paulo: Arte Editorial, 2010.
QUINTA, M. (Org.). Padres Apostólicos. Coleção Patrística. São Paulo:
Paulus, 3ª Edição, 2002.
GONZALES, J. Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos mártires.
São Paulo: Vida Nova, 2009.
OLSON, R. História Da Teologia Cristã: 2.000 anos de tradição e reformas.
São Paulo: Vida, 2009.

[1] “Inácio escreveu às igrejas a maioria das suas cartas” (OLSON, 2009, p.
47), todavia, uma foi também dirigida ao próprio Policarpo, quando aquele era
ainda jovem.

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