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Dentre essas vítimas, merece destaque Inácio, bispo de Antioquia[2], que, tendo sido
acusado de algum crimen laesae maiestatis (ante as autoridades negou-se a adorar os
deuses do império), foi preso e condenado, indo sofrer o martírio em Roma[3], conforme
o testemunho de Policarpo, Orígenes e Eusébio. (Cf. DROBNER, 2003, p. 57).
Assim, a caminho do martírio, Santo Inácio escreveu sete cartas direcionadas para
diferentes comunidades cristãs: quatro foram escritas a partir de Esmirna para as Igrejas
dos Efésios, Magnésios, Tralianos e Romanos; as outras três, escreveu de Trôade à Igreja
da Filadélfia, Erminiotas e ao bispo Policarpo), tanto por sua cronologia como por sua
teologia, os autores o situam bem próximo aos apóstolos.[4]
Tamanha era sua fé e influência que seu testemunho de bispo foi tão preponderante e
intenso que as comunidades cristãs, não só o acompanham em sua peregrinação para o
martírio, como também se aconselhavam e mandavam delegações que se dispunham a
esperá-lo de cidade em cidade: Éfeso, delegou seu bispo Onésimo, o diácono Burrhus e
três outros irmãos; na Magnésia, o bispo Basso, dois padres e um diácono.
Durante sua viagem, sob a vigilância severa dos guardas, que ele chama de ‘dez
leopardos’ (Cf. Carta aos Romanos 5,1)[5], nas cidades por onde passava, ia solidificando
os cristãos com suas admoestações, conselhos, encorajando a viver a unidade, a evitar as
heresias, que na sua época começavam a pulular, a preservarem e não se separar da
Tradição dos apóstolos.
Além disso, as cartas de Inácio destacam o princípio da unidade e, como veremos, é deste
princípio que se desdobra os demais pontos[6]: a unidade eclesial que liga o bispo aos
fieis; a estrutura e unidade hierárquica da comunidade eclesial, representada na pessoa do
bispo, presbíteros e diáconos; o papel e autoridade do bispo em relação à comunidade;
cristologia; a Eucaristia e o martírio.
1. Santo Inácio de Antioquia e o conteúdo das cartas
Santo Inácio é o primeiro escritor da Igreja, pagão converso ao cristianismo, suas cartas
são “cartas de um grego, para quem o grego é a língua de sua alma e de sua sensibilidade,
de sua cultura e de seu pensamento” e nos aspectos literários, adota a forma e categorias
literárias do helenismo (Cf. HAMMAN, 1980, p. 16).[7]
Oriundo de Antioquia e tendo seu nome derivado do latim (igne: fogo e natus: nascido),
o homem nascido do fogo, com o coração ardente. Era um zeloso pastor de almas,
preocupado em conduzir o rebanho que Cristo lhe havia confiado, numa dedicação que
se expressa no conteúdo das cartas que escreveu, enquanto seguia para o martírio.
Ao escrever suas cartas, segue o mesmo esquema em todas elas: saudação, elogio das
qualidades da comunidade, estar unidos à Igreja e ao bispo, fugir das heresias, e, por fim,
uma saudação pedindo orações para a Síria ou o envio de um diácono.
Em seu governo episcopal, administrou uma Igreja de “de origem estritamente helênica.
Ela é um testemunho da primeira expansão da evangelização.” (HAMMAN, 1980, p. 16).
Enxerga-se em Santo Inácio e em suas cartas um homem apaixonado, heroico embora
modesto; com um dom inato de simpatia, como o apóstolo Paulo, possuindo ainda uma
doutrina clara, segura, mais dogmática do que moral, onde se confluem mística e
santidade. (Cf. HAMMAN, 1980, p. 17).
Santo Inácio demonstra em suas epístolas que a unidade entre o bispo e seu presbitério
deságua na preocupação de manter unida a comunidade em torno deles e dos sacramentos,
participando “de uma só Eucaristia. De fato, há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo
e um só cálice na unidade do seu sangue, um único altar, assim como um só bispo com o
presbitério e os diáconos […]” (Carta aos Filadelfienses 4,1).
Desde o primeiro século temos o testemunho de que para os primeiros cristãos, participar
da Eucaristia, não era comungar um simples ‘pão’; eles nunca entenderam as palavras de
Jesus, no discurso do pão da vida[23] e nas palavras da última ceia[24], por exemplo,
como um símbolo, uma representação, mas comungavam verdadeiramente a carne de
Cristo: “Eles se afastam da Eucaristia e da oração, porque não professam que a Eucaristia
é a carne de nosso Salvador Jesus Cristo, que sofreu por nossos pecados e que, na sua
bondade o Pai ressuscitou[25]” (Carta aos Filadelfos 7,1), pois a Eucaristia é “remédio de
imortalidade[26], antídoto para não morrer[27], mas para viver em Jesus Cristo para
sempre[28]” (Carta aos Efésios 20, 2).
O martírio e a unidade da Igreja
O sentimento de Santo Inácio pela unidade é tamanha, que é deste ideal donde promana
outro traço ou marca distintiva de suas cartas: o martírio.[29] É da unidade que tira forças
para alimentar seu desejo e paixão de imitar e unir-se ao Cristo, é para segui-lo
perfeitamente que aspira, anseia pelo martírio e dar a sua vida como ele o fez: “Para mim,
é melhor morrer para Cristo Jesus do que ser rei até os confins da terra. Procuro aquele
que morreu por nós; quero aquele que por nós ressuscitou. […] Deixai que seja imitador
da paixão do meu Deus.” (Carta aos Romanos 6,1.3)[30]
O verdadeiro amor, para o mártir, consiste na renúncia e sacrifício de si mesmo, seguindo
os passos do Filho de Deus, em favor da Igreja. O ato de Cristo sacrificar sua vida
demonstra todo seu amor pela humanidade; assim, o cristão, aceitando o martírio pela
salvação do próximo, se configura, imita e quer alcançar a Cristo[31]: “Estou começando
a me tornar discípulo. Que nada de visível e invisível, por inveja, me impeça de alcançar
Jesus Cristo”, não se preocupando sequer com “fogo e cruz, manadas de feras, lacerações,
desmembramentos, deslocamento de ossos, mutilações de membros, trituração de todo o
corpo” ou que “os piores flagelos do diabo” caiam, contanto que “alcance Jesus Cristo.”
(Carta aos Romanos 3,1).[32]
Como assegura o papa Bento XVI, “nenhum padre da Igreja expressou com a intensidade
de Inácio o anseio pela união com Cristo e pela vida n’Ele” (2012, p. 13). No bispo de
Antioquia, afluem duas correntes espirituais: a de Paulo, que tende ao tema da união com
Cristo[33], e a de João, convergindo na vida n’Ele.[34]
Tais correntes, por sua vez, desembocam na imitação de Cristo, assim, suplica aos
cristãos de Roma que não impeçam seu martírio, pois quer unir-se a Jesus Cristo: “Deixai
que eu seja pasto das feras, por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou trigo
de Deus, e serei moído pelos dentes das feras, para que me apresente como trigo puro de
Cristo.” (Carta aos Romanos 4,1).
O bispo de Antioquia, propendendo para a união com Cristo, funda aquilo que o papa
Bento XVI chama de “mística da unidade” (2012, p. 13), e Inácio se definia como
“homem que age pela unidade” (Carta aos Filadelfienses 8,1). É evidente a
responsabilidade da hierarquia na edificação da comunidade, exortando-a à unidade[35]:
“Pelo contrário, reunidos em comum, haja uma só oração, uma só súplica, um só
espírito, uma só esperança no amor, na alegria imaculada, que é Jesus Cristo: nada é
melhor do que ele.” (Carta aos Magnésios 7,1, grifo nosso).[36]
Santo Inácio em defesa da unidade[37]
Bento XVI chama Santo Inácio de “o doutor da unidade” (2012, p. 15): unidade de Deus
e de Cristo (mesmo com as diversas heresias que pululavam, circulavam e dividiam o
homem os cristãos), unidade da Igreja da hierarquia com os fieis, ou seja, o princípio da
unidade é o que permite participar da inseparável unidade de Deus, tornando-se: “um só
coro, a fim de que, na harmonia de vosso acordo, tomando na unidade o tom de Deus,
canteis a uma só voz, por meio de Jesus Cristo, um hino ao Pai […].” (Carta aos Efésios
4, 2, grifo nosso).
Santo Inácio enfrentou as heresias[38] que surgiam para desorientar a doutrina e os
fieis,[39] assim, manifestando o ardoroso trabalho conservar a unidade da Igreja[40], pois
esta unidade foi estabelecida com Deus e com Jesus Cristo: “Preocupa-te com a unidade,
acima da qual nada existe de melhor” (Carta a Policarpo 1,2). Seu desejo era “a união na
fé e no amor, ao qual nada é preferível, e, o que é mais importante, união com Jesus
Cristo e o Pai[41]” (Carta aos Magnésios 1, 2, grifo nosso).
Exortou aos seus ao arrependimento em vista da reconstrução da unidade[42]: “[…] a
todos que se arrependem, o Senhor perdoa, se se arrependem para a unidade de Deus e o
sinédrio dos bispos” (Carta aos Filadelfienses 8,1). Sua constante preocupação era para
que os cristãos levassem uma vida segundo o ensinamento de Jesus Cristo, manifestando
sua pertença real a Deus, por meio da unidade à verdadeira Igreja: “Aqueles que,
arrependendo-se, vierem para a unidade da Igreja, serão também de Deus, para que sejam
vivos segundo Jesus Cristo”, pois, aquele que segue um cismático “não herdará o Reino
de Deus. Se alguém caminha em conhecimentos estranhos, esse não participa da Paixão.”
(Carta aos Filadelfienses 3, 2-3).
Conclusão
Conhecemos Santo Inácio de Antioquia por meio das 7 cartas que escreveu às
comunidades por onde passava, sua vida tinha um propósito: ser imitador da paixão de
Jesus Cristo, estando disposto a enfrentar a morte e através dela chegar a ser outro Cristo.
Almejava o encontro com Cristo, desprendendo-se das coisas desta vida e como zeloso
pastor defendeu o rebanho e despertou a consciência dos cristãos para os perigos que
ameaçam a fé e a doutrina.
Alguns temas estão como prioridade em suas cartas, isto é, sintonizados mantendo um
mesmo perfil: a unidade da teologia do monoteísmo trinitário, da eclesiologia e do
episcopado. Estes temas estão estreitamente unidos: a Igreja possui, estruturalmente
falando, uma hierarquia conforme o modelo trinitário sob a direção do bispo, tem a seu
lado os presbíteros e diáconos numa subordinação gradual, ou seja, a comunidade está
submetida ao bispo, que é sua cabeça, assim como a Igreja se submente a Cristo como
seu Corpo, e Cristo, por sua vez, se subordina ao Pai.
Assim, o bispo é o modelo supremo da união e harmonia de todos, e por força de seu
ministério, preside o batismo, a Eucaristia, garante a ortodoxia; obrigando-o a levar uma
vida exemplar, apesar de que dela não depende a validade do exercício do seu ministério.
Referências
ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina dos Padres
da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1972.
BENTO XVI. Padres e Doutores da Igreja. São Paulo: Paulus, 2012.