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DR. PLINIO COMENTA...

O cavalo de Tróia
e a vigilância
D esconfiar, saber ser vigilante contra os aparentes “agrados” da Revo-
lução, e manter o espírito livre de preguiça a fim de não abandonar a
luta pela Igreja, é um dos deveres do católico militante face à corrente da-
queles para os quais “tudo sempre dá certo”. Precioso ensinamento que Dr.
Plinio nos oferece nestes comentários.

A situação do mundo contemporâneo, não só em


sua globalidade mas também em cada nação,
grupo social e indivíduo, poderia ser compara-
da com Tróia nas vésperas da sua queda, quando o cavalo
No que diz respeito ao episódio de Tróia, seus habi-
tantes tomaram uma atitude má, não querendo esfor-
çar-se em fazer este pequeno raciocínio: “Esse imen-
so cavalo que nos foi dado de presente pelos gregos de-
seria introduzido na cidade e produziria a sua ruína. ve conter alguma coisa para nossa desgraça. Devemos
Dentro de cada uma dessas entidades — humanida- desconfiar dele, simplesmente porque nos foi ofereci-
de, nação, grupos sociais, indivíduos — há um cavalo de do por nossos adversários mortais, que cercam há tan-
Tróia. Ou seja, um inimigo foi infiltrado em nossas almas to tempo nossas muralhas, têm provocado a morte de
ou no grupo a que pertencemos, enquanto dormíamos, nossos melhores heróis, e visivelmente tentam incen-
como aquele gigantesco embuste de madeira foi coloca- diar nossa cidade, espreitando para isso a ocasião pro-
do na cidade adormecida. pícia.
“Nossos inimigos nos brindam com uma obra escultu-
A Revolução, cavalo de Tróia moderno ral gigantesca (e, provavelmente, devido à arte dos gre-
gos, era um bonito cavalo), que até possui rodas debaixo
Que vem a ser este novo cavalo de Tróia? das patas... Claro, eles desejam que o levemos para den-
Como se sabe, a antiga Tróia era uma estratégica lo- tro de Tróia, a fim de destruí-la.”
calidade, situada no noroeste da atual Turquia, próxima
ao Mar Egeu. Mais de mil anos antes de Cristo, fazia ela A atitude que os troianos não tomaram
parte de um conjunto de importantes centros urbanos,
pela cultura, civilização, riqueza comercial, etc. Um troiano que tivesse o espírito atilado, sobretudo
Entretanto, apesar do seu progresso cheio de promes- desconfiaria das rodas. Pois estas obviamente significa-
sas de bem-estar, um cavalo de madeira foi nela introduzi- vam: “por favor, levem o cavalo para dentro da cidade,
do para sua destruição, pois era o próprio adversário, ardi- porque sua missão não se realiza fora das muralhas, mas
losamente escondido, que penetrava nas suas muralhas. em seu interior!” E ele pensaria: “Os gregos só se deram
Assim também em cada um de nós penetrou um cavalo o trabalho de construir esse enorme cavalo na esperan-
de Tróia. Ou seja, o mundo contemporâneo está em pos- ça de que o levemos para dentro de Tróia. Portanto, se há
sante progresso material, mas traz em seu bojo a negação uma coisa que não podemos fazer, é isso. No bojo desse
de muitos princípios ligados ao que é bom, verdadeiro e cavalo não terá soldados escondidos? Se não, por que o
belo, que conferem sentido à vida. É a Revolução. adversário no-lo teria oferecido?”

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Naquele tempo ainda não havia pólvora, porém não
faltavam outros artefatos nocivos que poderiam acabar
com a cidade. Se era presente dos gregos, deveria ser
Pouco vigilantes e acomodados,
prejudicial aos troianos. Se estes, abrindo o cavalo, nada os troianos não se deram
encontrassem, ou se a monumental escultura fosse ma- ao esforço de desconfiar, e
ciça, era o caso de pedirem a paz. Pois uma vez que os
gregos estavam concedendo-lhes tal presente, a inimiza- acabaram por introduzir o
de entre os dois povos havia cessado. Então mais valeria inimigo em sua cidade
a pena acabar a guerra.
Mas, ai! do miserável troiano que pensasse em paz
quando as circunstâncias estavam impondo luta! Esse se-
ria considerado um traidor da pátria. Ilustração da tomada de Tróia pelos gregos

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Importa não
DR. PLINIO COMENTA... esmorecermos na
virtude da vigi-
Não me recordo, da leitura que fiz da história da guer-
ra de Tróia, se Homero se refere ao estado de espírito lância, sob pena
de seus habitantes. Porém, é plausível que tenha havido de repetirmos,
em Tróia duas correntes de opinião: uma a favor do ca-
valo, e outra, contrária. A primeira era dos otimistas, de- face à Revolução,
sejosos de ver tudo pelo lado bom, mais simples e cômo- o lamentável
do. Estes deviam achar que os gregos estavam inclina-
dos a se entregar aos troianos, ou ao menos a propor o entreguismo dos
fim do conflito, dando início às negociações por meio de
um presente.
troianos
— Não, cuidado! — diziam os da outra corrente.
— Desconfiar do quê, depois deste presente? — obje-
tavam os otimistas.
— É presente de grego! Timeo danaos et dona ferentes:
tenho medo dos gregos até quando trazem presentes —
respondiam os segundos.
E entretanto, teria sido tão simples resolver o caso: Ruínas de Tróia
bastava encostarem o ouvido junto ao bojo do cavalo pa-
ra saber se havia barulho no interior dele, algum sussur-
ro ou som de respiração, etc. Os gregos estavam há horas
naquela prisão tremenda, à espera do momento em que são heróicos nesta como na de avançar. Este é o verda-
pudessem abrir algum alçapão, pular para fora e atacar a deiro homem.
cidade. Alguma manifestação de cansaço, qualquer mí- Voltando ao nosso paralelo, face ao mundo atual os
nimo ruído de corpos se acomodando no amontoado de homens se dividem igualmente em duas correntes. Uma,
homens seria percebido por uma escuta atenta. a dos defensores da opinião de que tudo, no fundo, dá
Uma vez descoberto o ardil, era preciso traçar um rá- certo, as coisas se compensam, se compõem, se ajeitam,
pido plano de contra-ataque. Por exemplo, constituírem sem a necessidade de fazer esforço nem correr riscos. Es-
três círculos concêntricos em torno do cavalo. O primei- sas são as grandes preocupações, as idéias fixas daque-
ro, formado pelos vigias e alguns poucos troianos com les que, se estivessem em Tróia, seriam a favor do cavalo.
tochas acesas; o segundo, por várias fogueiras, e o ter- Os que tomariam o partido contrário, os desconfiados,
ceiro, composto de guerreiros com lanças e espadas. Em considerando o desabamento do mundo de hoje, diante
dado momento, ateariam fogo na mole de madeira e se- de tudo quanto tem laivos de Revolução, sabem suspei-
ria a debandada dos gregos. Os que escapassem ao pri- tar e ser vigilantes, compreendendo que dentro daquilo,
meiro círculo, cairiam nas chamas do segundo ou, final- na aparência bonito, há um veneno, do mesmo modo co-
mente, nas espadas e lanças do terceiro. Assim, tudo es- mo no bojo do cavalo de Tróia — realmente belo — es-
taria disposto para a derrota do inimigo e a vitória dos condia-se o inimigo, na espreita do momento azado para
troianos. atear fogo na cidade.
Assim devemos ser nós, imbuídos da noção de que
A história se repete em todas as coisas revolucionárias há fatores nocivos os
quais se desencadearão contra nós. Portanto, cumpre vi-
Contudo, o partido do otimismo prevaleceu. O ca- vermos na desconfiança, na vigilância, a fim de não ser-
valo foi conduzido para dentro da cidade, propiciando mos surpreendidos por esses adversários de nossa alma.
o incêndio de Tróia. Enéas, príncipe e genro de Príamo,
rei de Tróia, consegue fugir, carregando aos ombros seu A necessidade de exercitar
velho pai, juntamente com outros habitantes da cidade o espírito pela ascese
que lograram escapar, provavelmente os do partido dos
desconfiados. Tomaram barcos ancorados no Mar Egeu Para um homem robusto, uma das atitudes agradáveis
e partiram, dando início a uma nova epopéia chamada a seu corpo é o exercício físico, que o leva a se esforçar e
Eneida. Estes são os vigilantes, que entram a tempo na a sentir circular nos músculos, nas suas artérias, uma po-
luta e, quando derrotados, sabem ser os primeiros na fu- tência nova, uma capacidade de ir para frente. Ele respi-
ga, tendo já seus planos elaborados e traçados os cami- ra fundo, fita ao longe, deita involuntariamente um olhar
nhos que devem seguir. Conhecem a arte da retirada, e de desafio para todas as coisas.

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nossa confiança aquele que nunca se entrega, não desa-
nima, não tem preguiça, nem se lamenta face às dificul-
dades e provações, e sim exclama: “Oh! beleza! Lutarei e
vencerei, ou sofrerei, em qualquer dos casos terei servido
a Deus como Ele quis!”

Vencer o instinto de
sociabilidade decaído
Qual o atrativo da vida contemporânea que nos faz to-
mar essa atitude de moleza?
O principal deles está ligado a uma deformação do
instinto de sociabilidade. Os homens tendem a viver em
sociedade, são gregários, e isso os leva a ter existências
parecidas, pois se fossem diferentes e se entrechocassem,
a civilização seria impossível.
Então eles têm a inclinação de imitar uns aos outros,
e de todos serem segundo o mesmo modelo. Entretan-
to, quando este último é revolucionário, não devemos
segui-lo. Do contrário, haveria a mencionada distorção
De maneira análoga, o homem ascético, de espírito de do instinto de sociabilidade. E é preciso vencer esta má
sacrifício, tem alegria em exercitar a força moral que ele disposição, no que ela tem de mais profundo, para po-
recebeu de Deus, aplicando-a na luta contra seus defei- dermos dizer ao homem sem fé nem ideal: “Sou cató-
tos, contra os inimigos internos e externos da sua santi- lico militante, e quando ouço alguém declarar que es-
ficação. Donde o gosto de se entregar às lides apostóli- tou errado, encontro nisso uma razão ainda maior para
cas, à prática da virtude, como verdadeiro combatente de me convencer de que sigo a verdade. Sigo em frente! E
Nosso Senhor Jesus Cristo, disposto a dar a própria vida você, homem da moleza, é o paradigma dos que não se
pela causa d’Ele. deve imitar. Se alguém quiser andar sempre bem, olhe
Para o homem assim, uma só coisa não lhe é motivo para você e faça o contrário. Assim, alcançará a vitó-
de alegria: a vida mole, displicente, dorminhoca, sem uti- ria.”
lidade, sentado numa cadeira, deixando o tempo passar. É o que podemos e devemos saber dizer aos moles.
Isto é o contrário da existência do verdadeiro católico. Ora, é desagradável agir dessa forma, porque os en-
Ora, infelizmente, o que se observa com não pouca treguistas procurarão nos caluniar, causando discussão.
freqüência em muitos filhos da Igreja é esse vício do ho- E esta incomoda, causa cansaço e amolação, exige de nós
mem ocidental contemporâneo, pelo qual tem cometido, esforço para encontrarmos as palavras certas com que
face à Revolução, todos os equívocos possíveis. respondermos e refutarmos as difamações, etc. Por es-
Poder-se-ia fazer um catálogo de todos os erros passí- sa razão, muitos preferem se eximir do confronto, e repe-
veis de ocorrer desde a decadência da Idade Média até tem o chavão: “ceder para não perder”, sabendo embo-
hoje, e veríamos que aconteceram. Por quê? Por indo- ra que acabarão derrotados. Estes estão acometidos de
lência, é certo. Mas os homens se deixaram levar pelos uma espécie de morféia, uma lepra moral muito pior do
indolentes porque estes recomendaram a atitude fácil, que aquela que apodrece o corpo.
mole, sem esforço nem previsão, entregando-se vergo- Portanto, se desejamos de fato crescer na vida espiri-
nhosamente ao sono diante dos riscos do amanhã. Essa tual e nos aperfeiçoar na condição de autênticos católi-
atitude psicológica de entreguismo é comum se apresen- cos, filhos e servos da Santíssima Virgem, compreenda-
tar em nosso caminho. mos a necessidade de sermos sempre vigilantes, zelosos,
De fato, até mesmo entre aqueles que procuram ser dispostos a nos esforçar contra nossas preguiças, molezas
bons católicos encontramos esse estado de espírito. Em- e imprevidências, bem como no fazer face às más suges-
bora nos empenhemos em ser o contrário disso, não é tões que de todos os lados nos tentam para o desvio no
o bastante para nos consolar, pois quem, sob alguns as- caminho da santidade.
pectos, é um zeloso filho da Santa Igreja, mas sob ou- Compreendamos, outrossim, que sem essa disposição
tros é um relaxado que abandona a luta por Deus dian- de ascese e de luta por Deus, nossa existência neste mun-
te de qualquer ilusão, neste não se pode confiar. Merece do não tem razão de ser. 

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