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REVISTA DR.

PLINIO 139, Outubro de 2009


o santo Do mês

6 de Outubro
O fundador
dos cartuxos
Com profundo senso
histórico, ao analisar
a vida de São Bruno,
Dr. Plinio extrai
valiosos ensinamentos
acerca do espírito
medieval, contrastando
a Fé e os costumes
daqueles tempos com
os dos dias atuais.

N o dia 6 de outubro, a
Igreja celebra a memó-
ria de São Bruno, fun-
dador da Grande Chartreuse. Nas-
ceu ele na cidade de Colônia, jun-
to ao Reno, na Alemanha1.
Assim narra uma ficha com
dert

sua história:
H. Goe

“Manassés, Arcebispo de
Reims, o nomeou seu chanceler.
rados /

Mas Manassés se deixava arras-


s / H. G

tar pela simonia. Bruno o acu-


sou, o que lhe atraiu as perse-
Lecaro

guições do Arcebispo, que o


privou de seus benefícios.”
F.
Fotos:

Chama-se simonia a
venda de bens ou cargos
eclesiásticos, a qual é puni-

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da pela Igreja com as maiores pe- É cena tipicamente medieval, momento no qual fosse lido aquele
nalidades. São Bruno, sendo já clé- pois a Idade Média foi a era dos mi- mesmo texto litúrgico.
rigo e chanceler do Arcebispo, veri- lagres. Estes vão atrás dos que crê- Em nossos dias, a cena seria per-
ficando que este praticava tal peca- em e não dos incréus, embora pare- turbada pela presença de rádio, tele-
do, imediatamente o denunciou. Por ça um paradoxo, pois se diria que visão, repórteres, etc. Ou talvez se fi-
causa disso, foi perseguido e privado milagre é para quem não tem Fé. zesse N-A-N-E4 e algum jornal noti-
de todos os benefícios. Nas épocas de muita Fé, o milagre é ciaria o fato com o título: “Estranhos
abundante; nas de ceticismo, ele se episódios de auto-sugestão na Igreja
Idade Média, a era torna raro. O único desmentido a is- do Coração de Maria”.
dos milagres so ocorreu nos séculos XIX e XX, “Durante o ofício, no dia seguinte,
com os milagres quase contínuos de quando foi cantada a mesma lição, o
“Entre os doutores da Universidade Lourdes. cadáver exclamou com uma voz ainda
de Paris, Bruno tinha um grande ami- Precisamos tomar em considera- mais horrível:
go, muito estimado e tido como vir- ção que o medieval era homem co- — Eu estou julgado por um justo
tuoso e sábio. O amigo morreu e to- mo nós; realidade sobre a qual, às julgamento de Deus.”
dos os membros da Universidade as- vezes, não se tem inteira noção, da-
sistiram seus funerais. Durante o ser- da a distância que as pessoas de hoje Aparente virtude
viço fúnebre, enquanto um dos peque- sentem em relação aos tempos anti- desmascarada por Deus
nos coroinhas começava a lição de Jó: gos. Então, para compreendermos o
‘Responde mihi, quantas iniquitates realce desse fato na vida de São Bru- Isso significava uma bênção para
habes?’...” no, devemos imaginar aqui perto, na aquele povo, pois equivale a um ver-
Fazia parte da liturgia esta per- Igreja do Coração de Maria2, um ho- dadeiro retiro espiritual. Deus vai
gunta: “Responde-me, quantas mem deitado no esquife e nós assis- obrigar o cadáver de um condenado
iniqüidades tu tens?” tindo a cena. Em certo momento, o a declarar que ele estava julgado por
“...o corpo do defunto, que coro canta: um justo juízo de Deus! Mais terrí-
estava deitado no esquife, no — Responde mihi quantas iniqui- vel, é que era um homem tido como
meio da igreja, levantou a tates habes? bom. E mais ainda, tinha entre seus
cabeça e disse com um O homem senta-se e diz: amigos São Bruno.
tom de voz assustador: — Eu estou punido por um justo “O povo ficou mais assustado ain-
— Sou acusado castigo de Deus. da e decidiu enterrá-lo no outro dia.
por um justo julga- E de olhos fechados, com cara de No terceiro dia, o cadáver levantou-se
mento de Deus. cadáver, deita-se novamente. mais uma vez, exclamando com uma
“E se deitou Já imaginaram o efeito disso nu- voz de estrondo terrível:
novamente no ma igreja? E sobre cada um de nós — Eu estou condenado por um jus-
esquife.” concretamente? Creio que a respei- to juízo de Deus.”
to disso haveria comentários duran- Por que Deus quis, por essa for-
te, pelo menos, quinze dias, ocasio- ma, desmascarar a falta de virtude
nando ruptura de silêncio, falta de de um homem tido por todos como
distância psíquica3, etc. Pois bem, bom? Porque na Idade Média a vir-
São Bruno teve a felicidade de assis- tude era incomparavelmente mais
tir a esse episódio. frequente do que em nossos dias. E
“O terror causado por um aconteci- os maus, muitas vezes, não ousavam
mento tão pouco comum fez com que apresentar-se na sua maldade, para
se adiasse o enterro para o dia seguin- terem livre trânsito entre os bons.
te, para ver o que sucederia.” Então, era preciso desmascarar a
Hoje se enterraria na hora, para maldade e mostrar quantos homens
encerrar a história. Naquele tempo, falsos poderia haver sob aspecto
havia Fé e as pessoas queriam veri- virtuoso. Hoje é quase o contrário:
ficar se aconteceria mais alguma coi- é preciso desmascarar os bons, que
São Bruno. Cartuxa da
sa. Durante toda a noite, a igreja fi- se escondem tanto quanto possí-
Serra São Bruno. cou cheia de povo, desejoso de ver vel, e os maus se mostram. Na Idade
o cadáver que falou, e esperando o Média era necessário fazer com que

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O Santo do mês

os bons fossem vigilantes e não se- dos serão jogados dentro do inferno, “Eles venderam todos os seus bens,
guissem os maus que se fingiam de porque é a lata de lixo do Universo, depois foram à cidade de Grenoble.
bons. É uma admirável lição de vi- para onde vão todas as almas e ma- Lá havia um santo Bispo chama-
gilância. térias que não prestam. do Hugo. A visita de Deus precedeu
“O corpo do morto foi...” de um modo admirável os sete com-
Muitos estarão pensando “enter- Fundação da Chartreuse panheiros, junto do santo Bispo. Este
rado”. Porém, o texto assim conti- teve um sonho, no qual viu um imen-
nua: A ficha apresenta outros fatos iso- so deserto onde Deus Padre construía
“...jogado no lixo.” lados da vida de nosso santo. para Si próprio uma casa para morar.
Conforme São Tomás de Aqui- “São Bruno se associou a seis com- Sete estrelas brilhantes, em forma de
no, quando vier o fim do mundo, to- panheiros.” uma coroa elevada sobre a Terra —
da matéria sórdida, lixo e outros de- Trata-se da fundação da Char- diferentes das estrelas do céu em situ-
tritos que não tenham sido queima- treuse. ação, movimento e claridade — anda-
vam diante dele como para lhe mos-
trar o caminho.”
Através desse sonho poético e bo-
nito, vemos como a Idade Média era
cheia de contrastes. Acabamos de
recordar uma cena terrível: um con-
denado ao inferno obrigado a mani-
festar a justiça de Deus. Agora é o
contrário.
Imaginemos o paço episcopal, on-
de um Bispo respeitável, venerável,
santo, dorme tranquilamente o sono
do justo, do homem sagrado e ungi-
do por Deus. Consideremos a beleza
do quadro: um deserto e o Pai Eter-
no. É digno ambiente para se mani-
festar o Pai Eterno um deserto onde

São Bruno - Wurzburgo,


Alemanha. Ao fundo, fachada
da “Grande Chartreuse”.

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ninguém vai e somente a majestade Lutavam contra a
de Deus paira, como antes de criar hostilidade da
todas as outras coisas Seu Espírito natureza cantando e
pairava sobre as águas (cf. Gn 1, 2). Do encontro de
É uma solidão digna de Deus. glorificando a Deus
Depois o Bispo, no seu sonho, se vê almas santas, nasce Esses montes horríveis, posterior-
caminhando rumo ao deserto com um uma harmonia mente, pela presença de São Bru-
bordão de peregrino, orientado por no e seus filhos, tornaram-se famo-
mais bela
sete estrelas do céu, que formam uma sos. Realmente, depois de serem cul-
coroa. Faz lembrar os reis magos se- do que cada alma tivadas e adaptadas pelos cartuxos,
guindo a direção indicada pela estre- na sua aquelas montanhas formaram um
la e indo para o Presépio de Belém. É panorama lindo.
uma coisa linda! Podemos imaginar
individualidade. Pode parecer estranho que o Bis-
a elevada expressão de fisionomia do po encaminhasse para um deserto
santo, enquanto dorme, vendo essas horroroso almas tão eleitas. Mas fa-
estrelas que lhe aparecem. zia parte da vida monástica na Ida-
Tudo isso nos introduz no am- de Média fixar os monges em pân-
biente da Idade Média, tão cheio de refletindo-se em outra e ambas se tanos, florestas, etc., porque ali eles
contrastes e coloridos. Antes o ter- multiplicando. Daí nasce uma har- lutavam contra os aspectos hostis da
ror e agora o admirável. Nessa época monia entre diversos seres, mais bo- natureza pelo seu trabalho, enquan-
histórica encontramos pouco o ba- nita do que um só ser. Uma nota do to cantavam e davam glória a Deus
nal, do qual estamos repletos atual- mais perfeito órgão tem menos pul- pela sua virtude. E as populações
mente. critude do que duas notas, ou três, iam residir junto a eles, que constitu-
Continua a ficha: formando um acorde. Assim esses íam a fina ponta do progresso. Épo-
“Santo Hugo não sabia o que sig- santos formavam um acorde, uma ca feliz, em que os povos devastavam
nificava essa visão quando, no dia se- harmonia de almas. os matos e entravam pelos desertos,
guinte, sete peregrinos vieram se pros- O santo Bispo, embevecido, ven- não em busca do ouro mas da virtu-
ternar a seus pés, comunicando sua re- do aqueles jovens, os quais, levados de. Como tudo mudou!
solução e pedindo-lhe que os ajudas- por alguma comunicação celeste, sa- Era uma espécie de bandeirismo
se. Santo Hugo julgou que os sete pe- biam que lhes mostraria para onde de oração. Não se iam procurar es-
regrinos seriam, na sua diocese, estre- deveriam ir. Então, de joelhos, pedi- meraldas e sim virtudes. Que beleza!
las resplandecentes por suas virtudes e ram que lhes indicasse o caminho. Não censuro a busca de esmeraldas,
sua doutrina.” Essa cena daria para um vitral, mas admiro a das virtudes.
uma iluminura, uma tapeçaria. Po- “Eles construíram, no flanco da
Não há nada mais belo deríamos julgar que essas formas ar- montanha, em honra da Santíssima
que o encontro tísticas medievais marcam fatos ex- Virgem, um oratório existente ainda
cepcionais da vida. Na verdade, elas hoje e que tem o nome de Santa Ma-
de almas santas reproduzem aspectos correntes da ria de Casalibus. É lá que São Bruno
Voltemos a imaginar, no palá- existência na Idade Média. Porém, e seus companheiros iniciaram a vida
cio episcopal, o santo sentado nu- tais aspectos tinham uma alta dig- de São João Batista.”
ma espécie de trono de madeira la- nidade e mereceriam, portanto, ser “Vida de São João Batista”, quer
vrada — numa sala com um repos- retratados em matérias tão excelen- dizer aqui, recolhidos completamen-
teiro, uns vitrais, chão de pedra, um tes como a tapeçaria, o vitral, a ilu- te.
tapete, constituindo um ambiente de minura.
recolhimento — e os sete jovens que “O Bispo os recebeu com alegria, Respeito à tradição
chegam. São pessoas resplandecen- pois esses homens poderiam dar gló-
tes de saúde, de Fé, de vontade de ria a Jesus Cristo. Ele os estimulou e Outra coisa linda da Europa é
servir a Deus. Ainda cobertos pela confirmou nas suas santas resoluções. o respeito à tradição. Quer os mais
poeira do caminho, eles se ajoelham E deu-lhes como lugar para se fixa- antigos e imponentes monumentos,
diante de Santo Hugo. rem uns montes horrendos, perto de que iniciaram as grandes obras, quer
Não há coisa mais bonita do que Grenoble, montes esses chamados La os pequeninos, sem importância, são
o encontro de almas santas: uma luz Grande Chartreuse.” guardados com cuidado.

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O Santo do mês

Trata-se aqui de uma Em São Paulo há


capelinha em honra de também nesse sentido
Nossa Senhora, que foi algo interessante, no
o ponto de partida des- Parque do Ipiranga on-
sa instituição de fama de se proclamou a In-
mundial hoje em dia, dependência nacional.
uma ordem religiosa No quadro de Pedro
com uma longa tradi- Américo — pintura
ção na Igreja: os cartu- princeps, que represen-
xos. Segundo o espíri- ta essa cena — figura
to moderno, essa cape- uma casinha de caipi-
linha poderia ser des- ra, a qual existe até ho-
truída porque está en- je no meio do Parque,
velhecida e foram ali porque parece que na-
construídas igrejas mui- quele local se deu o ato
to mais bonitas. Não! famoso. É feita de tai-
Ela foi o início daque- pa, sem nenhum valor
las edificações, e to- arquitetônico, velhíssi-
da origem é respeitada ma; está disfarçada na
e venerada. Por causa vegetação porque ela
disso a capelinha é cui- não tem beleza, e pode
dadosamente preserva- ser visitada. Isso indica
da, como manifestação o respeito à coisa pri-
do espírito de tradição. meira, inicial. E assim,
Na Rússia dos cza- há outras coisas que se
res, havia uma coisa poderiam mostrar no
muito bonita. Em geral, Brasil e no mundo in-
as czarinas tinham seus teiro.
filhos no Kremlin que, “Santo Hugo não ti-
como se sabe, é um nha consolação mais
conjunto de palácios e sensível do que ir muitas
fortalezas, num recinto vezes à Chartreuse, pa-
fortificado. Em seu nú- Dr. Plinio em uma fazenda na cidade de Amparo, onde ra se edificar com a vida
cleo existia uma igreji- costumava recolher-se para elaboração de algum trabalho. santa que levavam esses
nha com um sininho. valentes solitários.
Segundo a tradição, quando nas- “Urbano II foi discípulo de São
cia o primogênito do czar, toca- Bruno.”
va-se primeiro esse sininho, depois Os monges É outra glória de São Bruno: ter
os sinos do Kremlin, e por fim, os sido o mestre do Papa bem-aventu-
combatiam os aspectos
de todos os campanários da Rús- rado que deu o primeiro toque de si-
sia. De proche en proche, iam assim hostis da natureza no das Cruzadas.
espalhando a notícia do nascimen- trabalhando,
to do herdeiro do czar. Quando soa-
cantando e dando Aparente contradição
va aquele sininho velhinho, rachadi-
nho, mas carregado de história, era glória a Deus “Na solitude da Calábria, São Bru-
o sinal para os outros sinos tocarem. pela sua virtude. no escrevia a seu amigo Raul, para en-
Este respeito à coisa veneranda, corajá-lo a renunciar ao mundo: ‘Não
originária, primeira, empobrecida, me é possível vos pintar a agradável
encarquilhada pelo tempo — a qual, de Média. Assim são as grandes ins- perspectiva que formam as colinas
por isso mesmo, adquiria uma forma tituições, como a dos cartuxos, cujo que se elevam sensivelmente, e o pro-
de beleza toda especial — caracte- exemplo nos proporciona tais ensi- fundo dos vales e das fontes, dos ria-
rizava o espírito tradicional da Ida- namentos. chos e dos rios que regam essa região,

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Relíquias de São Bruno na capela da “Cartuxa da Serra São Bruno”.

e apresentam aos olhos os espetáculos Evidentemente, deve-se enten-


mais encantadores.” dê-la no contexto, como quem diz 1) São Bruno nasceu em Colônia, no
Refere-se aqui a uma outra Car- a uma alma piedosa, que quer iso- ano de 1030, e faleceu na Calábria,
tuxa, fundada na Calábria, no Sul lar-se: “Vem, porque aqui há muitas em 1101.
da Itália, a qual, por exceção, ti- criaturas belas que nos servem para 2) Situada em São Paulo, na Rua Jagua-
nha um panorama atraente. Pode- dar glória a Deus. O lugar é propício ribe, bairro de Santa Cecília.
se perguntar por que São Bruno da- para a oração.” 3) Cf. “Dr. Plinio”, n. 106, janeiro de
va esse argumento a fim de chamar Ou seja, devemos nos elevar a 2007, p. 25.
alguém para ser cartuxo. Não pare- Deus procurando nas coisas analo-
4) “Nada aprenderam, nada esquece-
ce uma coisa inteiramente extrava- gias com Ele, para glorificá-Lo.
ram” – Frase de Talleyrand, empre-
gante dizer: “Venha observar silên- Vivendo numa cidade de asfalto e gada por Dr. Plinio para designar a
cio perpétuo, castidade, pobreza, cimento armado, não se tem essas mentalidade daqueles que julgam os
obediência, porque aqui há uns rio- coisas senão raramente. De qual- fatos de hoje, exatamente com os cri-
zinhos bonitos e umas fontes agra- quer forma, há sempre algo para se térios errôneos em voga há décadas
dáveis para você ver”? dar glória a Deus, por exemplo, um atrás. Por exemplo, os N-A-N-E con-
O argumento parece completa- bonito slide ou filme, um belo pano- sideram todas as coisas sob o ângu-
mente desproporcionado com o sa- rama.   v lo dos velhos princípios laicos, e não
crifício e refere-se ao mais estranho compreendem que o campo decisivo
e disparatado dos turismos. Como dos acontecimentos mundiais é a vida
explicar que São Bruno fizesse essa (Extraído de conferência interna da Igreja (cf. “Folha de São
sugestão? de 17/8/1973) Paulo”, 5/4/70 e 12/4/70).

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