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REVISTA DR.

PLINIO 117, Dezembro 2007


o santo Do mês

São Francisco
Xavier
3 de dezembro

e o autêntico
idealismo
A extraordinária epopéia
apostólica de São Francisco
Xavier, enfrentando toda
sorte de riscos a fim de
conquistar os povos do
Oriente para a Igreja
Católica, oferece a
Dr. Plinio ensejo para nos
fazer compreender o teor
São Francisco Xavier – Igreja São Pedro Apóstolo (Montréal, Canadá) – F. Boulay / G. Kralj

do verdadeiro ideal: mais


do que a realização de uma
grande coisa, é o glorificar
a Deus, submetendo-
se humildemente à sua
superior vontade.

P ode-se dizer que o signifi-


cado de certas palavras so-
frem transformações ao lon-
go dos tempos, de acordo com o en-
tendimento das gerações que se su-
cedem umas às outras. Exemplo ca-
racterístico, a meu ver, são os termos
“ideal” e “idealismo”.

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T. Ring
Luminosidade e
harmonia sonora
A palavra “ideal” possui uma res-
sonância peculiar, luminosidade,
harmonia sonora — quase diria vi-
sual — que lhe dão significado pró-
prio. De algum modo ela impele o
menos poético dos homens a pro-
nunciá-la como um cântico: ideal!
Quando se diz que alguém tem
ideal, entende-se tratar-se de um valor
maior que o simples e vil desejo de lu-
crar vantagem pessoal. Não se aplica,
no sentido literal e plano do termo, a
afirmações como esta: “Fulano cultiva
um ideal, o de tornar-se riquíssimo”.
Isto se refere a uma meta, um objeti-
vo, uma ambição, não a um ideal.
Dizer-se de um indivíduo que ele é
um homem ambicioso, pois deseja fa-
zer coisas grandes, pode ser até um
elogio. Porém, há diferença entre uma
coisa grande e uma grande coisa.

O genuíno idealismo de
São Francisco Xavier
Imaginemos, por outro lado, São
Francisco Xavier dirigindo-se para a
Índia e o Japão, como primeiro pas-
so para alcançar também a China.
Naqueles idos do século XVI, viajar
da Europa para o Extremo Oriente
podia representar tanto ou mais pe-
rigo do que, hoje, uma expedição de
astronautas rumo à Lua.
Imbuído de um anelo superior ao dos mais
O discípulo de Santo Inácio enfren- audaciosos comerciantes de sua época, São
tou riscos e dificuldades impensáveis,
imbuído de um anelo muito superior
Francisco Xavier partiu para o Oriente à
ao dos mais audaciosos comercian- procura de almas para Deus
tes da época: ele ia em busca de almas
para Nosso Senhor Jesus Cristo. Via- São Francisco Xavier se despede dos soberanos espanhóis, antes de
ja com o coração estraçalhado de dor embarcar para o Oriente – Igreja de São Marcelo, Lima (Peru)
diante das devastações que a Pseudo-
Reforma produzia na cristandade eu- Quem procede desta manei- mais alta das finalidades: salvar al-
ropéia, e talvez pensasse: “Vou para a ra não realiza uma coisa grande, mas para a glória de Deus e de Ma-
Índia, Japão, China, convidar novos mas uma grande coisa. Isto se cha- ria Santíssima. Nesse ideal não es-
povos e almas ainda não evangeliza- ma ideal. E todos os reluzimentos tá presente o egoísmo; para alcan-
das a corresponderem à graça, e assim que esta palavra possa ter, fulgu- çá-lo, o homem entrega toda a sua
trazê-las para a fé católica que agora ram com toda a sua beleza quan- vida, disposto a passar pelos maio-
se mostra abalada no Ocidente.” do os esforços são empregados na res riscos, dissabores, perigos, so-

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O Santo do mês
S. Hollmann

frimentos, preocupado unicamente


com o serviço divino.
Eis o verdadeiro ideal, autentica-
mente glorioso. E ao considerarmos
essa disposição de São Francisco Xa-
vier, nós o veneramos e lhe implora-
mos: rogai por nós.

Na aparência, um
ideal fracassado
Contudo, a vida de São Francisco
Xavier pode parecer, até certo pon-
to, frustrada. Como se sabe, seu maior
objetivo era conquistar a China para
Deus. Esteve na Índia e a evangelizou.
Visitou o Japão e ali obteve imensas
vantagens para a fé cristã. Em seguida
partiu em direção à China, sua grande
meta, pois este país de população in-
calculável, riqueza cultural extraordi-
nária e grande prestígio em todo o Ex-
tremo Oriente, seria uma conquista in-
comparável para a Igreja Católica.
Mas, mistérios de Deus... Esse
apóstolo de zelo e fervor invulgares
morre antes de chegar àquela nação.
Seu supremo ideal, a evangelização
do povo chinês, não se realizaria. Do-
ente, sentiu a morte se aproximar en-
quanto se achava na Ilha de Sancian,
de onde já se divisava a China conti-
nental. Quis então expirar no puro
amor de Deus, com seus olhos vol-
tados para aquela China na qual não
conseguiu entrar. Rendeu seu der-
radeiro suspiro em paz, embora não
houvesse atingido seu ideal.

Todos os reluzimentos
da palavra “ideal”
fulguram de modo
particular quando se
trata de dar a maior
glória a Deus
São Francisco Xavier – Igreja
dos jesuítas, Paris

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Diante dessa situação, vem-nos a

S. Hollmann
perplexidade: “Por que Deus permite
tal frustração? Por que o herói desejo-
so de conquistar para Ele algo tão ex-
celente como toda a China não atingiu
seu objetivo? Como entender esse (ao
menos na aparência) fracasso?”

Encontro com um Bispo


chinês do século XX
Estas questões me trazem à lem-
brança a figura de um Bispo que co-
nheci em minha viagem a Roma, no
início da década de 60. Embora não
proviesse de ordem religiosa, acha-
va-se hospedado num convento, ocu-
pando uma espécie de quarto-escri-
tório, sem luxo mas dignamente ar-
ranjado. Homem alto, esguio, longilí-
neo, flexível em todas as partes do cor-
po, possuía o porte de um descenden-
te dos mandarins. Conversou comigo
em francês, com uma voz muito afá-
vel e amável, tratando-me de Monsieur
le Professeur, enquanto eu me dirigia a
ele chamando-o de Monseigneur.
Dotado de um charme próprio,
gesticulava e alterava a fisionomia de
acordo com seu modo de ser. Sobre a
cabeça, um tanto pequena em relação
ao resto do corpo, portava um chapéu
preto, ornado de uma pena de pavão
que oscilava conforme seus movimen-
tos. Ao vê-lo, pensei: “Este homem é
um porta-penas de pavão perfeito!”
Numa palavra, esse Bispo trazia con-
sigo toda a graça daquela antiga e mis-
teriosa China que fascinou São Fran- Ao considerarmos o genuíno idealismo de
cisco Xavier. E no meu interior ecoou São Francisco Xavier, nós o veneramos e lhe
algo do imenso desejo que este santo
missionário alimentou de conquistar o imploramos: rogai por nós!
povo chinês para a Igreja Católica. São Francisco Xavier batiza novos filhos da Igreja, nas
terras por ele evangelizadas – Manresa, Espanha
Hipótese entusiasmadora
ções simbólicas dos dogmas da Igreja feita de porcelana, e cuja torre, seme-
Pode-se supor que se o grande ide- conforme as circunstâncias locais, um lhante a um pagode, ostentasse no al-
al de São Francisco Xavier fosse rea- canto sacro próprio, edifícios sagra- to uma imagem da Imaculada Con-
lizado e tivéssemos uma China católi- dos inspirados nos estilos arquitetô- ceição! As estalas do presbitério ta-
ca, a Santa Sé provavelmente consen- nicos chineses e segundo o talento de lhadas em marfim, os bancos da nave
tiria em estabelecer uma liturgia pe- seus artistas. Imaginemos, por exem- central feitos de algum lindo bambu,
culiar àquele povo, com manifesta- plo, a mirífica beleza de uma catedral encerado e perfumado...

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O Santo do mês

Se, diante dessa hipótese, nossa voltada para o ideal. Por isso mor-
alma se entusiasma, não será difícil reu em paz na Terra, glorificando a
calcular a intensidade do entusiasmo Deus. E talvez o Criador tenha rece-
ainda maior que latejava no coração bido mais louvor pela conformida-
de São Francisco Xavier. de desta grande alma com os desíg-
nios d’Ele, do que na conversão da
Dar glória a Deus, o China. Desse modo ensinou a todos
mais elevado ideal os homens de boa vontade a cumpri-
rem esse supremo ideal que é dar-
Ora, no momento em que mara- lhe a devida glória acima de tudo.
vilhas semelhantes começariam a se Nisso se assemelham a Nosso Se-
produzir, Deus, em cujas mãos es- nhor Jesus Cristo, que padeceu e
tão as vidas dos homens, diz ao santo morreu proclamando sua conformi-
missionário jesuíta: “Cessa a tua lu- dade com a vontade do Pai Eterno.
ta, venha para o Céu!” No Horto das Oliveiras, bradou: “Pai
E Francisco, olhando para a China meu, se for possível, afaste-se de Mim
e por esta nação rezando, expira doce- este cálice, mas seja feita a vossa von-
mente no Senhor, dizendo sem ressen- tade e não a minha”. Como se asse-
timento algum: “Deus que me insu- melham, igualmente, à Santíssima
flou esse ideal, não permitiu sua reali- Virgem que, quando da Anunciação
zação. Senhor, seja feita a vossa vonta- do anjo, diante do excelso convite pa-
de assim na Terra como no Céu!” ra a maternidade divina, respondeu:
Algum companheiro de São Fran-
cisco Xavier, vendo-o morrer assim,
quiçá se tomasse de desânimo: “Então,
não se dará a conversão do povo chi-
nês? Dir-se-ia que as orações de São
lo
ion
To

Francisco não foram atendidas, e seu


V.

ideal foi posto de lado”. Por essas dúvi-


das percebemos quanto é sutil o tema
do idealismo, e de quantos aspectos
se reveste, a serem considerados para
compreendermos a obra de Deus.
Claro está, o ideal de São Fran-
cisco Xavier era a evangelização da
China, porém não era seu fim su-
premo, que consistia em dar glória
a Deus. Desde que o Altíssimo, por
insondáveis desígnios, dele quisesse,
não a China, mas um ato de submis-
são à vontade divina, São Francis-
co o aceitava como seu mais eleva-
do ideal. O ideal que os anjos procla-
maram na noite de Natal, em Belém:
“Glória a Deus nas alturas, e paz na
Terra aos homens de boa vontade”.

À semelhança do Divino
Mestre e Nossa Senhora
Francisco era um desses homens
de vontade boa, santa, reta, nobre,

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“Eis aqui a escrava do Senhor; faça- Mais do que a

T. Ring
se em mim segundo a tua palavra”. China convertida
“Faça-se”, Fiat, termo que aqui sig-
nifica obediência, disciplina, confian- Certamente, ao perceber a morte
ça, bondade, ideal, glória a Deus. se aproximar, São Francisco Xavier
olhava para aquela nação tão ama-
Um mérito maior que da e desejada, e pensou: “Meu Deus,
o das conquistas esta China virá quando quiserdes.
Ela vale muito, mas o Céu tem maior
Alguém poderia apresentar a se- valor. Contemplando vosso Sagrado
guinte dificuldade: Dr. Plinio, eu esta- Coração e o Coração Imaculado de
va certo de que avançar rumo ao ideal sig- Maria, rogo-vos a graça de sempre ir
nificava subir, subir, para finalmente para frente e para cima”.
atingi-lo. No momento em que a idéia Aos olhos de Deus, essa atitude se
de conquista mais me entusiasma, o reveste de um alcance incalculável.
senhor fala de renúncia. Isto quebra Nosso santo não conquistou a China,
as energias de minha alma.” porém, sem o saber, obteve inúme-
Respondo: Meu caro, quebra os ras outras vitórias. Somente no Juízo
fracos. Tais considerações são feitas Final saberemos quantas glórias fo-
para que não seja pusilânime. Co- ram dadas a Deus, muito maiores do
mo se viu, o verdadeiro ideal é aque- que a China, simplesmente pela obe-
le que se prende ao fim supremo, is- diência animosa, intrépida e heróica
to é, fazer a vontade de Deus infini- de São Francisco Xavier!
tamente sábio e santo. As cintilações Podemos imaginar que, ao expi-
de minha inteligência pseudo-lumi- rar, ele tenha elevado a Deus uma
nosa são inferiores à de um vaga-lu- prece semelhante a esta:
me diante do sol que é a santidade “Senhor, meu Deus, meu Cria-
e a sabedoria do Criador. Portanto, dor, meu Redentor. Senhora, Ma-
não há para o homem, nem autênti- ria Santíssima, Mãe de Deus e mi-
co ideal nem bom desejo que não se- nha. Vim até aqui para vos obter a
jam realizar a vontade divina. China. Porém, quereis de mim uma
“Faça-se em mim segundo a tua viagem maior, que eu transponha
palavra”. Pronunciemos a frase da os sombrios umbrais da morte e
Santíssima Virgem, unamo-nos a Ela vá para a eternidade. Quereis que-
na mesma obediência e assim cum- brar-me, separando minha alma do
priremos nosso ideal. Pode ser que meu corpo, o qual em breve não se-
num primeiro momento Deus espe- rá senão um cadáver. Rogo-vos que
re de nós que desejemos nossas “Chi- minha alma, julgada por Vós em
nas”. Num segundo passo, teremos a espírito de benignidade, seja con-
impressão de que não as conquista- duzida ao Paraíso.
mos, elas nos escaparam das mãos e “Senhor, não pude conquistar
Na aparência um ideal
nada conseguimos. Nesta hora, recor- a China, mas bem sei que de tudo
frustrado; na verdade, demo-nos de São Francisco Xavier e, quanto alcancei na vida, algo que-
uma suprema realização: pelos rogos de Maria, digamos: “Meu ríeis mais do que todo o resto: de
Deus, aconteceu como quisestes; que- Francisco, queríeis Francisco!
Francisco se submeteu em
ro o que quereis. Fez-se a vossa von- “Minha Mãe, aqui está Francisco.
tudo à vontade divina tade e não a minha. Morro em paz.” Oferecei-me a Deus, pois não nasci
Dessa forma nossa vida terá atin- senão para isto! Salve Rainha, Mãe
Acima, Morte de São Francisco
gido sua finalidade, e de algum mo- de misericórdia...”  v
Xavier – Igreja de São Marcelo
(Lima); à esquerda, relicário do que não sabemos explicar, o mé-
contendo o braço de São Francisco rito de nossa submissão será maior (Extraído de conferência em
Xavier - Igreja do Gesù, Roma que o de todas as nossas conquistas. 20/10/1984)

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