Você está na página 1de 8

Conto

https://docs.google.com/document/d/0B8fd9G3qzIQDQmhSS0VJUFNpNWM/edit?
usp=sharing&ouid=113718814215972368636&resourcekey=0-
TIFQyoIIctLXr3yhSo1lsw&rtpof=true&sd=true

Branco e frio. Ao nosso redor, apenas neve. 


Naquele dia, meses atrás, alguém – já não recordo quem – observou que pisávamos
dezenas de metros de gelo sobre o que teriam sido, há mais de meio século, os subúrbios
da capital da Inglaterra – a Londres de hoje pouco mais que o Centro da antiga área
metropolitana, provavelmente limitada às suas fronteiras medievais. Mas quem se
importaria com lições de história e topografia no meio daquele nada? perante aquele frio
impensável, perante aquela fome indescritível? Ansiávamos apenas pela visão das
muralhas ciclópicas surgindo no horizonte, sua promessa de proteção, calor,
suprimentos... 
Ciclópicas, de fato. Hoje sei que naquele exato momento, antes que pudéssemos
ver as muralhas em meio à neve que caía sobre a caravana, já nos viam seus guardiões
de um olho só, a divisão templária especial, os vigilantes-olho, em sua ronda cíclica
sobre os quatro portões que apontam para os pontos cardeais, mais olhos de pedra e aço
do que vias de acesso, como se a Irmandade quisesse dizer aos mundos – a este e aos
mundos psíquicos –, simbolicamente: Londres é o umbigo do universo; todos os
caminhos levam a Londres como outrora levaram a Roma; Londres vigia e dominda
tudo.
Vínhamos do sul, recém chegados de Folkestone, após termos atravessado a chapa 

congelada do Canal da Mancha. Como ameaçadores caninos rasgando gengivas, antigas


embarcações naufragadas partiam o gelo aqui e ali, dentes de uma titânica boca albina
prestes a nos devorar. Dormimos uma noite sob o abrigo de um monstruoso porta-
aviões, do qual mutantes do gelo nos espreitavam, raptando, oportunamente, membros
indefesos ou meramente azarados da nossa comitiva. No último dia a caravana
quilométrica – a impossível fila indiana se estendia de horizonte a horizonte – foi
atacada por vikings em drakkars montados sobre esquis, bases em cujos espetos e
lâminas centenas deixaram ecorrer suas vidas. Após o combate, em fuga, pudemos ver
um campo de batalha enorme, mistura de destroços, corpos, fogo, fumaça e gelo tingido
de rubro. Nós – eu, Sarah, Aaron e Phil –, meus companheiros, que sobrevivemos
apenas porque estávamos motorizados – muitos tentavam a travessia a pé, os pobres
diabos –, minha moto, o carro de Sarah e todos nós dentro do megatruck de Phil, o
coiote juggernaut que nos transportava e que, depois dessa luta em que somamos forças
para sobreviver e eu lhe salvei a vida, resolveu se juntar a nós e à nossa expedição.
Ante o portão sul de Londres, acampamos na neve: duas longas semanas tendo que
trocar valiosos bens por diesel e outros itens de má qualidade vendidos pelos rom, os
ciganos, esse povo ladrão e maldito. Aguardávamos nossa vez na entrevista com os
templários antes de nosso ingresso no conglomerado, embora também tenha sido graças
aos rom que, no último instante, decidimos não nos submeter à devassa psíquica que
decerto teria revelado, de nossa parte, intenções que seriam julgadas criminosas, o que
resultaria em prisão e no cadastro de Sarah e Aaron como psiônicos, digo, no registro de
sua assinatura psíquica e no seu eventual e certo recrutamento nas fileiras da religião-
estado. 
Em troca de um porta retrato de prata de Sarah – e de lágrimas, mais valiosas,
contidas em seus lindos olhos azuis –, um rom nos alertou desses perigos, por um preço
ainda maior oferecendo-nos entrada clandestina no conglomerado via o Submundo: o
gigantesco reino Morloch que se estende como um sistema circulatório de bens e
atividades clandestinas sob a pele de pedra da cidade, formado pelas ruínas do que um
dia foram os sistemas de metrôs e de esgotos – corredores, estações, pavilhões e novos,
profundos, escuros e fétidos apêndices sem fim...
Eu ficara realmente impressionado com a grandiosidade daquela outra metrópole
em que o megatruck de Phil podia circular sem restrições, fosse por sob as muralhas ou
por baixo do próprio Tâmisa, usando para isso vias não raro tão largas quanto as
avenidas da superfície, atravessando cavernas cheias por milhares de pessoas ocupadas
em todo tipo de comércio e atividades ilegais, dentre as quais o mundialmente famoso e
prolífico circuito de rinhas, ao qual Aaron, meu companheiro mantis steelpunk,
recorreria como parte de seu modo de sobrevivência nas semanas seguintes, nos
momentos em que não explorávamos aquela cidade vibrante ao mesmo tempo de viva e
de morte, em busca das informações e recursos necessários para a nossa busca.
Havía-nos trazido a Londres a visão de um velho áugure em Calais, França. Era a
visão de uma aero-nave de carga em queda, a cidade de Londres, que o ancião
reconhecia, ao fundo. As fortes impressões do velho emprestavam importância à carga
do avião. Tocando a mão de Sarah, o áugure permitiu que ela assistisse à visão, talvez
como os homens assistiam aos filme de outrora, o que dava a ela, uma saltadora
prodigiosa, dados suficientes para que se teleportasse até o local, centenas e centenas de
quilômetros para além do Canal da Mancha, e verificasse, em meio aos andares mais
altos de arranha-céus em ruínas acessíveis apenas devido ao soterramento na neve, os
catastróficos sinais da passagem do grande avião, décadas no passado, possivelmente
ainda na época em que sobreveio a Era de Gelo e Fogo.
Assim estámos ali, eu, Sarah, Aaron e Phill, próximos de nosso destino, e digo isso
em ambos os sentidos – tanto no do avião soterrado e de seus bens como destino de
nossa expedição, como quanto no do fim de nossas vidas, pois faço esta comunicação
estando morto e sem esperanças de um descanço final. 
Mas tudo o que importa agora é o relato, a história verídica de como cheguei a este
estado e do que aconteceu aos meus companheiros. 
Lembro-me com clareza sobrenatural do dia em que notei mentalmente, de mim
para mim, sem compartilhar com os outros para não diminuir a moral do grupo: nossos
problemas começaram. Havíamos alugado uma vaga para o caminhão de Phil no que
antes havia sido um estacionamento e pátio de manobras para os vagões do metrô. Isso
não era no Submundo, mas ao ar livre, próximo a uma entrada para o mundo inferior,
que a Irmandade denominava de “Hades Morloch” em sua propaganda institucional e
tendenciosa contra o reino que se espraiava sob seu próprio nariz, sem que ela pudesse
tomá-lo com a força desmedida com que toma terras e países em todo o globo. Ao nosso
redor, um acampamento rom montado dentro dos antigos vagões: todo um clã furioso
por ter tido um de seus membros gravemente ferido por Phil, nosso gigante de pavio
curto, quando negociava com aqueles trastes o último lote de diesel de que
precisaríamos para a expedição... ninguém, absolutamente ninguém, passa a perna num
coiote nesse tipo de transação... esses caras sentem o cheiro de combustível adulterado à
distância...  
Era o que se dizia. Os rom, por sua vez, diziam que se o seu membro viesse a
morrer, nós teríamos sérios problemas. Olho por olho, dente por dente, a política dessa
gente.
 
Era uma pesada e escura noite de sexta-feira, embora a neve houvesse
desaparecido. Phil fazia um churrasco de carne bovina – avental encardido e tudo –
como se não tivesse quase matado um homem há poucas horas, como se não estivesse
prestes a enfrentar um duelo até a morte... O fato de estar queimando a preciosa carne
com o precioso carvão que guardava desde a França, contudo, sugerindo preocupação... 
– Você está comendo como se essa fosse sua última refeição, amigo –, observou
Aaron, tomando  num golpe de faca um bife cujas proporções sugeriam uma boca e um
estômago de gigantes... O juggernaut, olhos azul-metálico fechando-se em fúrica
assassina, cerrando o punho para Aaron, as gotículas de suor subitamente formadas na
careca repleta de cicatrizes do musculoso gladiador desmentindo o sorriso amarelo que
lhe acompanhou a brincadeira... – Calma, amigão! Relaxa, tem pra todo mundo. Além
disso, eu estive pensando e acho que devo assumir seu lugar no duelo, por razões
óbvias.
Ao que se seguiu uma trovoada de injúrias da boca do juggernaut, o que, no entanto
e como sempre, terminou com seu convencimento: entendera, para o bem de todos, que
duelos eram especialidade de Aaron e que, em nossa empreitada, infelizmente, Phil,
suas habilidades como coiote e seu caminhão eram mais importantes do que as
habilidades guerreiras do megasobrevivente.
Tendo deixado o grandalhão cuidando da carne – cozinhar era o hobby do gigante e
o acalmava – e estando Sarah entretida em suas leituras – tinha uma estranha coleção de
livros enigmáticos e endecifráveis, porque sem capas e porque ela era a única
alfabetizada entre nós –, Aaron se aproximou de mim, sempre sua última opção de
companhia. 
– Sir Jon – cumprimentou-me com uma mesura exagerada. Chamava-me de “sir”
em referência irônica ao fato de eu ser um cavaleiro errante e sem Ordem. – O que acha
que meu anjo de olhos celestes faz ali – sorriu –, refiro-me a Sarah e não a Phil, é claro.
– Ela está lendo – respondi, seco e óbvio –, mas se você se refere ao que ela está
lendo, bem, eu suponho que histórias de amor, como só podiam existir no mundo de
antes.
– Histórias de amor? A forte e decidida Sarah? De jeito nenhum, amigo, aposto que
ela está é lendo histórias de aventuras nas estradas ou coisa parecida, você a conhece,
sabe como ela poderia arrancar sua cabeça sem pestanejar com uma chave de roda!
Aaron gostava de Sarah desde que a conhecera em Paris; ela, do seu lado, jamais
lhe havia dirigido o olhar por mais do que alguns segundos – ao menos não na minha
frente. Talvez o desprezasse. Talvez o desprezasse por conta de sua raça, de seus três
monstruosos braços...
Comemos e conversamos por mais algum tempo. Interrompeu-nos a chegada de
um ancião rom, o rosto duro banhado em lágrimas. Não era preciso uma palavra sequer,
assim como não era preciso vê-los para saber que se ocultavam nas sombras todo o tipo
de assassinos daquela gente. Digno e direto, Aaron se levantou e seguiu o ancião, nós
três atrás, o steelpunk sem armas nem proteção – não precisava delas –, nós carregados
até o pescoço com medidas de segurança...

Descemos ao Submundo e caminhamos por túneis escuros até desembocarmos num


salão amplo cujo cheiro e canos no alto das paredes indicavam se tratar de um antigo
local de despejo. Assim que entramos, o ruído que ganhava vulto nos túneis se revelou o
rumor de uma multidão de pelo menos uma centena de rons, morlochs e membros de
outras raças, aglomerados todos ao redor de uma arena redonda cavada no chão.
Aaron já se encontrava posicionado num dos lados da arena, seu oponente, um rom
de aparência comum armado apenas com facas, posicionado no lado oposto.
Aproximamo-nos do steelpunk a tempo de sentir a onda de calor, escutar o som de
descargas de energia e nos maravilharmos, como sempre, com o acionamento de seu
poder, com o qual controlava a energia psíquica pura, os psions, materlizando-os agora
na forma de duas cimitarras, um escudo e uma armadura que lhe cobria partes do corpo
– a cabeça, num elmo com a expressão de um demônio, a parte direita do tronco,
incluindo os dois braços direitos, e a perna esquerda –, tudo composto pela energia azul
resplandecente, raios saindo das armas e armadura para todos os lados, especialmente
rumo às paredes e ao chão enquanto o steelpunk começava sua movimentação na arena.
Mas no momento em que o duelo se iniciava, houve uma comoção na plateia, que
debandava desesperada ao som de combate corpo-a-corpo próximo a nós. Alguém
gritou “templários”, e antes que pudéssemos nos juntar à massa em fuga, encontrávamo-
nos cercados, eu e Phil – Sarah já havia se teleportado –, por um ciclope dos vigilantes-
olho em sua armadura de placas sagrada e cinco zumbis portando lanças... Um belo
duelo de montantes com o ciclope, pensei, se Phil e Sarah derem conta dos zumbis...
Mas eu sabia que não devia pensar: devia apenas agir, confiando cegamente em
meus companheiros – algo que o ciclope, decerto e apesar de sua clarividência, não
poderia fazer...
Levante as mãos, ordenou-me telepaticamente. Foi o que fiz, na mão direita a besta
de repetição engatilhada. Poderia prever isto? Cinco tiros para cima, o desaparecimento
súbito dos virotes em plena trajetória e seu reaparecimento – não menos repentino – nas
cavidades oculares de seus subalternos... Sarah teleportara os virotes – a complexidade e
o fator institivo da manobra em grupo tanto treinada dando conta da precognição do
vigilante-olho, que agora investia contra mim ao mesmo tempo em que mais zumbis e
templários adentravam a arena. 
O que se seguiu se estendeu mais do que o previsto. Enquanto Sarah usava seu
teleporte de combate para desaparecer e reaparecer, degolando e desmembrando zumbis
por toda parte; enquanto Phil tornava sumpérfluas as armaduras templárias com seu
enorme martelo de guerra; enquanto Aaron terminava o duelo com seu oponente rom,
decapitando-o; eu era vítima da precognição do ciclope, que, a despeito da rapidez das
minhas primeiras sequências de golpes – com as quais eu pretendia surpreendê-lo sob o
peso da armadura –, defendia-se como se soubesse onde eu golpearia... Às vezes, como
que adivinhando a inutilidade de golpes rápidos mas fracos contra determinados pontos
da couraça metálica, ele se deixava acertar, pedaços de psi-aço e faíscas celebrando o
espetáculo, abrindo alas para a atração principal – membros decepados, cabeças
decapitadas, pedaços de corpos e chuvas de sangue... O que não tardou a acontecer...
Antes que eu pudesse alterar minha tática, num contragolpe súbito, o templário decepou
minha mão esquerda – esguichos de sangue sobre a platéia –, o que respondi com uma
estocada que encontrou apenas o vazio, sendo respondida por um segundo e poderoso
contragolpe que atingiu em cheio meu capacete, partindo-o em dois e resultando numa
queda... visão turva: escuridão.

Mas eu ainda não havia morrido. Estava vivo e despertara dentro do megatruck de
Phil, solavancos indicando movimento: estávamos em fuga, presumi. Mas e os outros?
Olhei ao redor e encontrei Sarah – como sempre – lendo. “Você... me salvou?”,
perguntei, ao que ela balançou a cabeça – linda, a pele branca cheia de sardas, os
cabelhos ruivos soltos sobre o rosto –, negando e esclarecendo, para meu desgoto, que
fora Aaron que me salvara, disparando, de longe, um fulminante raio psion contra a
placa peitoral do ciclope, que morrera instantaneamente, carbonizado. Mas o esforço do
steelpunk havia sido demais: quase caíra exausto e sofrera por dois dias de crises de
esquizofrenia, sem contar o surgimento de uma mutação definitiva – seus olhos haviam
ficado totalmente brancos, como que repletos de neve. Eu teria que agradecê-lo, e lhe
ficara devendo minha vida. Quanto à minha mão – no lugar e intacta, como se eu não a
tivesse perdido –, Sarah e Phil haviam pago para que um curandeiro a regenerasse.
Esses eram os meus amigos.
Durante a refeição que se seguiu fui informado de que estávamos a caminho do
avião sob a neve. Mas tínhamos todos os recursos necessários? Bem, talvez não
tivéssemos todo os diesel necessário, mas contávamos em encontrar o que faltava no
caminho ou no próprio avião, e de qualquer forma não tínhamos mais como permanecer
em Londres, sendo caçados pela Irmandade e pelos rom.
A viagem era monótona; ao que se somava uma dor dilacerante no local onde a
espada templária havia-me partido o crânio – nós megasobreviventes somos osso duro
de roer, o corpo como que insistindo em sobreviver, às vezes à revelia da própria
vontade da psicoforma que o habita. 
De tempos em tempos Sarah desaparecia, teleportando-se para o local da queda do
avião – assim podia sentir o quão próximo o megatruck estava do nosso destino, podia
corrigir a rota, se preciso – e nossa preocupação com ela quebrava a monotonia,
preenchia nosso silêncio com ansiedade e apreensão... 
Seu último salto havia ocorrido na noite anterior à chegada ao avião. Uma
tempestade de neve castigava-nos severamente, e Phil, não tendo como prosseguir, fora
obrigado a parar o caminhão simplesmente no meio do nada. Quando Sarah retornou –
eu aprendera a sentir sua chegada instantes antes com o arrepio dos pêlos, ao que se
seguia o deslocamento de ar e, neste caso, o surgimento de um redemoinho de flocos de
neve que a acompanhava, solidário, de onde ela viera –, estava enregelada e tremia
convulsivamente, mais de pânico do que de frio. 
– Uma... criatura fez do avião seu covil –, relatou, com dificuldade – talvez um
mutante, talvez um planar. Eu não a vi, mas ela me expulsou de lá como se eu não fosse
nada, a mesma facilidade, a mesma repulsa com que expulsamos um roedor de nosso
lar. Já não podemos dar meia-volta, eu sei, mas gostaria que tivéssemos essa alternativa.

Na manhã seguinte, após desenterrarmos o caminhão com pás e uma enorme


quantidade de sal, tornamos a partir. A neve havia parado de se formar. Conforme
avançávamos, podíamos ver que a auto-estrada pouco a pouco adentrava uma antiga
área urbana. Com frequência crescente, sentíamos os trancos do limpa-trilhos tirando do
seu caminho entulho e outros veículos há muito abandonados ao gelo.
Entre eu e Aaron jazia um silêncio incômodo quando o caminhão parou e Sarah
veio nos informar que havíamos chegado. Eu não podia encarar os olhos brancos do
steelpunk. Ele dissera, tipicamente: “você teria feito o mesmo, amigão”, mas ainda
assim, não sei exatamente porque, eu me sentia sufocado por culpa.
Descemos. À nossa frente uma montanha de neve formava-se entre os prédios, que
antes teriam flanqueado os lados de uma larga avenida, agora grandes lápides no
cemitério branco de toda uma civilização. Conforme instruções de Sarah, carregamos
nossas armas e equipamento de escavação, do qual talvez não precisaríamos, ela tendo
encontrado por dentro dos prédios um caminho que levava até a aero-nave soterrada.
Assim, após termos subido, a custo, a montanha de gelo, penetramos um arranha-
céu comercial pelos andares superiores. Bastões fluorescentes e lanternas iluminavam
nosso caminho – Phil na frente, seguido de Sarah, Aaron e eu.
Descemos. 
Descemos uma escadaria sem fim, por todo lado corpos – às dezenas, às centenas –
congelados. Pensei em Sarah explorando esta masmorra sozinha. Admirei sua coragem. 
– A maior parte das pessoas morreram abraçadas – sussurrei, sem que ninguém me
desse resposta. Resposta que eu esperava de Sarah.
No terceiro andar – teríamos descido mais de 30 andares, na minha conta – o ar
outrora fresco, embora permanecesse frio, já tinha se tornado sufocante e fétido, como
se uma grande quantidade de... carniça... nos esperasse. Antes que terminássemos de
vestir nossas máscaras de gás, eu não pude conter e vomitei descontroladamente até não
restar nada em meu estômago, sequer bíle, e ainda assim continuava a ter ânsias
conforme saíamos do prédio por uma janela e adentrávamos um túnel escavado no gelo,
um túnel excessivamente largo e de paredes excessivamente lisas... Sarah sussurando
ser aquela a entrada para o avião, e ser a perfeição daquele túnel alienígena o primeiro
sinal que descobriu da criatura que ali morava... ou apodrecia...
Algumas dezenas de metros à frente chegamos ao porão da aero-nave. Apesar do
perigo iminente e da tensão e atenção redobradas, não pudemos deixar de ficar
animados com as pilhas de tesouro que encontramos: tratava-se, numa primeira e
apressada inspeção, de um carregamento de toda sorte de equipamento militar: baterias
dos mais variados tipos, equipamento de sobrevivência, toneladas de alimentos
preservados pelo frio, armas de fogo, munição... como se aquela aero-nave estivesse
transportando itens essenciais à sobrevivência de soldados nos tempos do primeiro
Apocalipse. 
Num átimo, porém, a luz do ambiente e a luz do nosso ânimo, ambas, diminuíram.
Uma sombra e uma presença maligna estava entre nós. Quando dei por mim, vi Sarah
como que congelada – literalmente paralizada em desconexos gestos de manequim.
Gritos e horrendos sons de carne e ossos se partindo chamaram minha atenção para o
local onde estivera Phil, agora contorcendo-se em meio a tentáculos que o prendiam e
esmagavam, na base dos tentáculos uma massa de carne repleta de... olhos... humanos...
Sarah jazia paralizada e Phil jazia morto quando Aaron, acionando suas armas e
armadura de psíons com grande alarde, o que iluminou o ambiente de azul, investiu
numa carga, carga que terminou num salto, desta vez três cimitarras de luz em pleno ar
prestes a descerem em fúria psíquica sobre os olhos e o que talvez fosse a cabeça do
monstro, o qual – no entanto e para nosso terror –, revelou-se de uma velocidade e
forças atrozes ao agarrar o steelpunk em pleno ar, um tentáculo para cada membro,
retorcendo-o e jogando-o contra o chão de aço como a um boneco de pano, esmagando-
o como o fariam diversas serpentes constritoras se o tivessem atacado num bando feroz,
selvagem... 
Aaron já mal gritava quando seus olhos brancos – brancos por terem salvo minha
vida – fitaram os meus, repletos de dor e medo, momento no qual eu soube que a morte
nas mãos daquela... coisa... condenaria nossas psicoformas a uma eternidade de perversa
servidão no psicoreino sombrio onde se originara... 
Nesse instante mirei os tentáculos com a besta de repetição e, pensando em mim,
Aaron e Sarah – Phil afinal já havia sucumbido –, disparei uma saraivada de três virotes.
Disparei-os, contudo e no último momento, contra Aaron. Sarah, se eu ainda a pudesse
salvar, seria minha. 
E no entanto, inacreditavelmente, algo me atingira: como havia feito no combate
contra o ciclope dos vigilantes-olho, Sarah, ao longe, teleportara os virotes, desta vez
para as minhas costas, perfurando meus pulmões.
Ela... teria escolhido Aaron ou teria apenas salvo um amigo leal de um traidor?
Antes que a treva sobreviesse, ainda pude olhá-la com ternura e ser digno da dádiva
de sentir, pela última vez, minha pele se arrepiando ao vê-la desaparecer numa lufada de
ar, para algum local – era minha esperança, meu consolo – distante de todo aquele
horror.

Você também pode gostar