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I - O jovem Fernando de Bulhões

quinta-feira, 4 de março de 2021 18:58

Os primeiros mártires franciscanos, mortos no Marrocos em 1220, foi


um acontecimento decisivo na história da Igreja e ponto de inflexão na
vida de um cônego de Santo Agostinho, então residente no Mosteiro
coimbrense de Santa Cruz: o Pe. Fernando de Bulhões, mais conhecido
como S. Antônio de Lisboa (em referência ao lugar onde nasceu) ou S.
Antônio de Pádua (em referência ao lugar onde está sepultado).

Neste ponto, convém advertir contra a tendência, hoje muito estendida


entre certos historiadores, de reler a história da Igreja e os próprios
Evangelhos de uma perspectiva demasiado cética, quando não
preconceituosa. O resultado disso, entre outras coisas, são hagiografias
que pouco têm de santas. Na mão desses “especialistas”, a vida de
personagens até ontem ilustres, como um S. Francisco de Assis ou o
mesmo S. Antônio, é posta inteiramente abaixo: as virtudes e atos
heróicos que sempre se lhe atribuíram são relativizadas, despidas de
todo “elemento mágico” e apresentadas, se não como invenções
tardias, ao menos como fatos “ordinários”, sem nenhuma
transcendência. O objetivo de uma tal historiografia, dizem, é tornar os
santos do passados mais acessíveis à (poderíamos dizer) mediocridade
dos homens do presente.

O que parecem supor os que assim “reconstroem” a história, conforme


mais às suas preferências do que ao testemunho dos documentos do
passado, é que está totalmente proibido haver dentro da Igreja gênios
espirituais e homens de talento, como foi o caso do pequeno Fernando
de Bulhões. Nele, ao contrário do que querem fazer crer os seus
detratores, a graça divina encontrou uma natureza verdadeiramente
dotada e bem disposta. Foi sua grandeza espiritual, é verdade, que o
elevou à honra dos altares; mas nem por isso suas habilidades
intelectuais, mnemônicas e oratórias deixaram de merecer-lhe o justo
título de Doutor da Igreja, prenda ainda mais admirável em um santo
que não passou dos 36 anos de idade.

S. Antônio é de origem portuguesa. Nascido em Lisboa em 1195, pouco


tempo depois do surgimento do Reino de Portugal, e batizado como
Fernando de Bulhões. O reino de Portugal tinha acabado de nascer,
sido iniciado por Afonso Henriques, que foi o primeiro rei de Portugal;
depois, Sancho I, sucessor de Afonso Henriques; e estamos no terceiro
rei de Portugal: Afonso II, apelidado de "Afonso, o gordo". É durante o
reino de Afonso II que vemos a história de Santo Antônio. Hoje Lisboa
é a capital de Portugal, mas não era assim na época: Portugal se inicia
no norte, porque o Sul da península ibérica estava tomado pelos
Página 1 de Santo Antônio
no norte, porque o Sul da península ibérica estava tomado pelos
Árabes Muçulmanos. Havia um califado que reinava todo o norte da
África e o sul da Península ibérica, onde a Sede do "Reino" estava em
Sevilha. Então, no norte da península ibérica tínhamos vários reinos: O
reino de Portugal, no extremo ocidente; o Reino de Leão; o Reino de
Castela; e, para o lado da França, Navarra e Aragão. Eram esses os
reinos Cristãos que, as vezes, brigando entre si, lutavam para
reconquistar as terras tomadas pelos Muçulmanos. O centro de
Portugal nessa época era a cidade de Coimbra. Mas é na cidade de
Lisboa que nasce Fernando de Bulhões. A tradição nos diz que a casa
de Fernando era praticamente do lado da Igreja de Santa Maria, que
mais tarde seria a Sé de Lisboa e a casa de Santo Antônio depois seria
transformada na Igreja que marca o local onde ele nasceu.

Faz sentido que seus pais não fossem meros plebeus, pois a bibliografia
mais antiga, chamada Legenda Assídua, que Desde o início seus pais
quiseram que eles recebessem uma boa educação. Ele iniciou a vida
com uma verdadeira educação na Igreja de Santa Maria que era
cuidada pelos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho, recebendo o
Trivium e Quadrivium e, Santo Antônio, manifestou desde cedo um
talento singular para os estudos, com uma capacidade de memorização
única, além de uma sensibilidade espiritual promissora; essas são as
duas características mais belas de Santo Antônio: estamos falando de
um homem que tinha uma vida intelectual e tinha uma vida de
piedade. Mais tarde, quando Fernando entrar para a Ordem dos
Franciscanos e se tornar Santo Antônio, ele vai receber uma cartinha de
São Francisco, que era muito avesso ao estudo da Teologia por parte
dos seus Frades, encarregou Santo Antônio a montar um centro de
estudos em Bolonha para ensinar Teologia aos Frades, e diz São
Francisco: "desde que não perca o espírito de oração", a piedade, o
sentido sobrenatural dos estudos. E essa é a grandeza de Santo Antônio
desde o início: inteligência e uma espiritualidade fecunda.

Na Legenda “Assidua” conta-se que, com cerca de 15 anos, em 1210, ao


perceber que sua pureza estava em perigo, o jovem Fernando decidiu
entrar para a Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho, na
qual fora educado. O motivo do seu ingresso na vida religiosa,
portanto, foi o zelo pela pureza de corpo e alma e, por isso mesmo, o
medo de ofender a Deus com pecados tão baixos. Não por acaso,
costuma-se retratar o santo com um lírio nas mãos, símbolo da pureza
intocável em que viveu, por mais que alguma historiografia moderna
queira desacreditar suas virtudes, insinuando sem nenhum
fundamento que Antônio teria, ainda adolescente, cedido às tentações
da carne.

Página 2 de Santo Antônio


da carne.

O jovem Fernando de Bulhões ingressou, assim, no Mosteiro de São


Vicente de Fora, em Lisboa. Passados porém somente dois anos,
percebeu que a vida em Lisboa não lhe permitiria desligar-se como
desejava de sua antiga vida no mundo, dada a frequência com que
amigos e familiares o vinham visitar. Por isso, solicitou aos superiores
que fosse transferido para um lugar mais distante. Foi enviado então
para o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, onde se dará, poucos anos
depois, seu encontro decisivo com os corpos dos mártires franciscanos.

Em Coimbra, com acesso a uma biblioteca riquíssima, Fernando teve


melhores meios de estudar e aprofundar sua formação intelectual.
Aqui, no entanto, é preciso ter em mente que na vida de S. Antônio não
houve nunca uma real dicotomia entre estudo e piedade, entre leitura e
pregação: o mesmo cônego regrante que, na solidão do mosteiro,
compulsava tratados de teologia pregará depois, como frei, as verdades
tão arduamente estudadas e contempladas. Embora, é fato, a vida do
frei Antônio fosse mais abnegada e radical do que a do cônego recluso,
entre uma e outra fase não há solução alguma de continuidade nem,
portanto, a ruptura que alguns querem ver, mas apenas, se se prefere,
uma mudança de ênfase do estudo para a pregação popular. Com
efeito, toda a sua formação intelectual e o seu processo de santificação,
ainda em Coimbra, foram fundamentais para que ele decidisse entrar
na Ordem Franciscana e se tornasse o grande pregador que foi.

Estando, portanto, Santo Antônio no centro de Portugal, não poderia


estar completamente distante dos jogos da corte, das influências da
corte etc. Quando o Rei Sancho I morreu, deixou como seu herdeiro no
reinado o seu filho: Afonso II, apelidado de "Afonso o gordo". Mas o rei
Sancho I tinha vários outros filhos, e ele deixou três de suas filhas com
castelos em títulos de rainhas, somente o título, significava certo poder
sob aqueles castelos e aqueles domínios. Aqui, portanto, começa uma
briga entre Afonso II e suas irmãs, eram elas muito devotas, entraram
para ordem religiosas e foram beatificadas.

O irmão mais novo de Afonso II, o infante D. Pedro —, que


culminaram no exílio no Marrocos do irmão mais novo do rei, que foi
justamente quem se encarregou de transladar os corpos dos mártires
franciscanos para a sede do Reino. Esse acontecimento será decisivo
para que o Pe. Fernando abra mão de tudo para seguir ao pobre e
abnegado Francisco de Assis.

Página 3 de Santo Antônio


Página 4 de Santo Antônio
II - Os mártires de São Francisco de Assis
quarta-feira, 23 de junho de 2021 18:25

Para entendermos como o jovem Pe. Fernando de Bulhões decidiu entrar


para a Ordem Franciscana, tornando-se assim frei Antônio, precisamos
antes ter um panorama sobre a vida de um de seus contemporâneos:
Francisco de Assis.

S. Francisco nasceu na cidade italiana de Assis e, diferentemente de S.


Antônio, nunca foi sacerdote. Depois de uma conversão radical,
Francisco, com seu testemunho, atraiu multidões de homens e mulheres
que desejavam imitá-lo. Assim, numa florescência espiritual milagrosa,
surgiram seguidores de Francisco em toda a Europa, embora sua Ordem
não tivesse ainda reconhecimento pontifício. Desse modo, foi-se
formando um grupo de religiosos que desejavam viver o Evangelho com
radicalidade e que se demonstrou um prodígio sobrenatural na história
da Igreja.

O êxito vocacional de Francisco se devia à sua busca por viver o


Evangelho “sine glosa”, ou seja, sem as notas explicativas que muitas
vezes diluíam e relativizavam o verdadeiro sentido da Palavra de Deus.
Ele queria viver a radicalidade dos Apóstolos de Cristo, sobretudo em
dois aspectos: o abandono de tudo, para viver com Jesus na pobreza, e o
envio em missão, para converter todos os povos.

Hoje, infelizmente, por conta da tendência antes mencionada de adaptar


a vida dos santos aos gostos (e pecados) do homem moderno, muitos
tentam transformar a figura de S. Francisco em um líder do diálogo
interrreligioso e do indiferentismo, em torno do qual se teria reunido
uma “fraternidade cósmica e universal”. Essa releitura, porém, não
corresponde em nada ao S. Francisco histórico, que, por seu ardor
missionário, ficava incomodado de saber que havia uma grande porção
da humanidade que rejeitava a Cristo: os muçulmanos.

Francisco viveu no contexto das Cruzadas, uma resposta tardia e


insuficiente dos cristãos às invasões e ataques dos muçulmanos, em seu
empreendimento de expandir o Islã mundo afora. No contexto da
reconquista católica de territórios ocupados pelos infiéis, S. Francisco
preocupou-se com a alma dos muçulmanos, desejoso de levá-los à
conversão. Primeiro, tentou ir para a Sevilha, pregar o Evangelho na
capital da do Califado Almóada, mas ficou doente e impossibilitado.
Mais tarde, ele foi para o Oriente, onde os cruzados fizeram um cerco de
uma cidade no Egito, Damietta, e conseguiu uma permissão para pregar
ao sultão, alertando-o de que, por servir a um falso deus, sua alma
estava destinada ao inferno, mas que ainda era tempo de se converter.
Página 5 de Santo Antônio
estava destinada ao inferno, mas que ainda era tempo de se converter.
Mesmo se negando a deixar o islamismo, o sultão, que havia
simpatizado com Francisco, ofereceu-lhe muitas riquezas para que
permanecesse no reino. Francisco rejeitou a proposta e foi embora,
deixando claro que o único propósito de sua visita era convertê-lo. É
evidente, pois, que o ímpeto missionário de Francisco contraria por
completo as releituras ideológicas que dele se tenta fazer hoje em dia.

Visando a conversão dos muçulmanos, em 1219 Francisco escolhe e


envia seis frades (quatro sacerdotes, Vital, Berardo, Pedro e Otão, e dois
leigos, Acúrsio e Adjuto) que, liderados por frei Vital, deveriam pregar o
Evangelho e converter os muçulmanos da Península Ibérica. Depois de
uma longa viagem, eles chegam ao Reino de Aragão - parte mais da
Espanha mais próxima da França -, onde frei Vital acaba adoecendo,
deixando a liderança nas mãos de frei Berardo.

No entanto, antes de irem para Sevilha, capital do califado, dirigem-se


ao Reino de Portugal, pois em Coimbra tinham as boas-vindas da
Rainha Urraca (esposa de D. Afonso II), que havia autorizado, em 1217,
a instalação de uma pequena comunidade de frades franciscanos —
ainda sem aprovação da Santa Sé —, os quais viviam numa capelinha
dedicada a Santo Antão (forma apocopada de Antônio).

Os cinco frades relataram à Rainha que estavam em missão de pregar o


Evangelho e converter os muçulmanos. Vendo a santidade daqueles
homens, a Rainha pediu-lhes rogassem a Deus que revelasse quando ela
iria morrer, a fim de poder-se preparar bem para o dia da morte.
Relutantes, mas curvados pela insistência da Rainha, eles fizeram suas
orações, e Deus lhes mostrou que os cinco seriam martirizados e que,
quando seus corpos retornassem a Coimbra, seriam recebidos pela
Rainha, cuja morte aconteceria logo em seguida. De fato, os cinco frades
seriam mortos em 16 de janeiro de 1220, e a Rainha viria a falecer no
mesmo ano, no dia 2 de novembro.

Os cinco frades relataram à Rainha que estavam em missão de pregar o


Evangelho e converter os muçulmanos. Vendo a santidade daqueles
homens, a Rainha pediu-lhes rogassem a Deus que revelasse quando ela
iria morrer, a fim de poder-se preparar bem para o dia da morte.
Relutantes, mas curvados pela insistência da Rainha, eles fizeram suas
orações, e Deus lhes mostrou que os cinco seriam martirizados e que,
quando seus corpos retornassem a Coimbra, seriam recebidos pela
Rainha, cuja morte aconteceria logo em seguida. De fato, os cinco frades
seriam mortos em 16 de janeiro de 1220, e a Rainha viria a falecer no
mesmo ano, no dia 2 de novembro.

Página 6 de Santo Antônio


Felizes por saberem que receberiam a coroa do martírio, os frades
seguiram em missão, passando por Alequer, no norte de Lisboa, onde
visitaram a Rainha Sancha, irmã do Rei D. Afonso II. Sancha, que mais
tarde viria a ser beatificada, incentivou os missionários e providenciou
que eles entrassem disfarçados em Sevilha dentro de uma embarcação
comercial. Chegando a Sevilha, ficaram na casa de um cristão e
puseram-se a rezar. Em oração, Deus os impeliu a sair para pregar o
Evangelho, e foi o que fizeram, depois de colocarem novamente o hábito
franciscano. Então, num dia de festa muçulmana, foram pregar no
palácio do califa, advertindo-o de que seria condenado ao inferno se não
abandonasse a falsa religião. Revoltado com tamanha ousadia, o califa
mandou prendê-los e condená-los à morte. Na prisão, porém, frei
Berardo, que estava aprendendo a falar árabe, começou a pregar
também para as pessoas que vinham falar ao carcereiro. Por não se
importarem com a morte, passaram a ser vistos como loucos, e, por
consequência, foram poupados da morte e exilados do outro lado do
mar, em Marrakech, no Marrocos. Na cidade marroquina, mesmo sendo
considerados uma espécie de figuras exóticas, continuaram a anunciar o
Evangelho e a exortar os muçulmanos à conversão, o que lhes valeu
nova perseguição e prisão. O infante D. Pedro (irmão do Rei Afonso II),
exilado naquele país trabalhando como soldado para o emir da região,
encarregou-se de mandá-los embora do Marrocos. Os frades foram
colocados em uma caravana, mas dela fugiram e retornaram a
Marrakech para pregar. Foram novamente capturados e enviados a
outra caravana.

Nessa última viagem, enfrentaram uma tempestade de areia e ficaram


perdidos pelo deserto, prestes a morrer de sede. Na ocasião, Frei
Berardo anunciou aos muçulmanos presentes que lhes mostraria quem
era o Deus verdadeiro e, tocando a areia com uma vara, fez surgir uma
fonte de água. Uma vez saciados todos, fez a fonte desaparecer. Quando
voltaram a Marrakech, após esse grande milagre, os frades começaram a
ser mais respeitados e mantiveram-se firmes no propósito de pregar o
Evangelho. Mas, por sua obstinação missionária, foram condenados à
morte pelo emir, que os decapitou com sua cimitarra.

Após o martírio dos frades, os muçulmanos ainda tentaram, sem


sucesso, queimar os cadáveres. O infante Dom Pedro organizou o
translado dos corpos de volta para Portugal. Eles foram recebidos pela
Rainha Urraca e entraram em Coimbra sob grande exultação popular,
diante de um povo que realmente tinha fé e contemplava com
admiração a entrega total daqueles homens de Deus. Ao final do cortejo,
foram sepultados no Mosteiro de Santa Cruz, onde residia o Pe.
Fernando de Bulhões, que, a partir do encontro com os corpos daqueles
Página 7 de Santo Antônio
Fernando de Bulhões, que, a partir do encontro com os corpos daqueles
mártires, tomou a decisão de entrar para a Ordem dos Franciscanos para
atender os anseios do seu coração, ardente de amor a Deus.

Página 8 de Santo Antônio


III - De cônego Fernando a frei Antônio
quinta-feira, 24 de junho de 2021 00:08

A santidade de Antônio não surgiu de repente, com sua “conversão” ao


franciscanismo, mas foi resultado de um longo processo de
transformação interior e vivência das virtudes já durante seus anos
como cônego regrante no Mosteiro de Santa Cruz.

Prova disso é que, mesmo sendo muito culto e tendo capacidades


intelectuais elevadas, o então Pe. Fernando assumiu com humildade a
missão de ser porteiro do convento. Foi justamente nessa singela função
que ele conheceu os frades franciscanos da igreja de Santo Antão dos
Olivais, em Coimbra, como também, ainda em vida, os cinco frades que
viriam a ser martirizados.

Embora a função de porteiro fosse eminentemente prática e exigisse


certa atenção ao mundo exterior, o cônego Fernando não deixava de
cultivar sua vida espiritual nem de recolher-se em oração. Conta a
tradição que sua piedade eucarística era tamanha que, da portaria, ele se
ajoelhava cada vez que soava o sino da consagração nas diversas Missas
celebradas ao longo do dia no Mosteiro. Esses momentos de oração
certamente lhe possibilitaram verdadeiras experiências místicas, já
que, após as Missas, ele relatava aos irmãos de comunidade
acontecimentos que se haviam passado dentro da igreja, como se ele os
tivesse presenciado.

Para entender o contexto em que o Pe. Fernando de Bulhões viveu no


Mosteiro de Santa Cruz, que estava profundamente vinculado à história
do Reino de Portugal e sujeito à ingerência dos reis, basta observar, por
exemplo, que o primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, tinha
como confessor e diretor espiritual o primeiro prior do Mosteiro e que,
mais tarde, viria a ser o primeiro santo português: São Teotônio.

Essa relação institucional era benéfica quando o rei e o prior eram


virtuosos e piedosos; do contrário, havia uma grande possibilidade de o
mosteiro corromper-se devido aos interesses políticos do monarca então
reinante. Foi isso o que ocorreu no governo de Afonso II, que, ao herdar
o trono, logo entrou em conflito com suas irmãs, Teresa, Mafalda e
Sancha, as quais, mesmo sendo religiosas (posteriormente beatificadas),
haviam herdado o título de rainhas. O conflito na família real, além de
causar uma espécie de guerra civil, gerou uma forte oposição do rei à
Igreja, levando inclusive à perseguição do arcebispo de Braga, primaz de
Portugal, que se refugiou sob a proteção do Papa. O fato valeu ao rei
Afonso II nada menos que a pena de excomunhão.
Página 9 de Santo Antônio
Afonso II nada menos que a pena de excomunhão.

Nesse conflito entre o rei e a Igreja, o prior do Mosteiro de Santa Cruz


posicionou-se a favor do rei e, por esses e outros motivos, também foi
excomungado. A comunidade em que vivia o cônego Fernando,
destarte, encontrava-se dividida entre os que, com o prior
excomungado, apoiavam o rei e aqueles que, fiéis à hierarquia
eclesiástica, se mantinham ao lado do arcebispo e do Papa.

Um contexto, como se vê, totalmente desfavorável aos anseios do


cônego Fernando. Ele, apesar disso, continuará buscando uma vida de
intimidade com Nosso Senhor. Anos depois, baseado decerto no que viu
e viveu em Coimbra, o então frei Antônio, em um de seus sermões do 2.º
Domingo da Quaresma, viria a criticar com veemência as contendas
efêmeras em que se envolviam muitos religiosos:

Dizei-me, ó insensatos religiosos, se nos Profetas e nos Evangelhos de


Cristo ou nas Cartas de Paulo, na Regra de São Bento ou de Santo
Agostinho, encontraste estes debates, estas distrações, estes clamores, estas
declarações nos processos por coisas efêmeras e caducas. Ou antes, não diz
o Senhor aos Apóstolos, aos monges, a todos os religiosos, não a título de
conselho, mas exatamente como mandamento, já que escolheram o caminho
da perfeição: “Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos
que vos odeiam; bendizei os que vos maldizem e orai pelos que vos caluniam
[...]” (Lc 6, 27-33).

Esta é a regra de Jesus Cristo que deve ser preferida a todas as regras, as
instituições, as tradições, os expedientes, “porque o servo não é maior que o
seu senhor, nem o enviado maior do que quem o enviou” (Jo 13, 16).

Observai, ouvi e vede, ó povos todos, se existe insensatez, se existe


presunção igual a deles. [...] Vê com quanto escrúpulo observam uma
regra, ou uma prescrição que se refere ao corpo; mas a regra de Jesus Cristo,
sem a qual não podem salvar-se, observam-na pouco ou nada [1].

É justamente no contexto de uma comunidade religiosa em constantes


tensões, por conta de ambições terrenas, que o cônego Fernando
procurava uma vida de intimidade com Cristo. Quando, já porteiro da
Santa Cruz, ele depara com os corpos dos mártires de Marrocos, percebe
que, fora dali, poderia buscar com maior ímpeto uma vida de santidade.
É assim que decide entrar para a Ordem Franciscana — ainda
desprovida, naquela ocasião, de reconhecimento pontifício —, adotando
o nome de Antônio, em alusão a Santo Antão.

Desejando também ser mártir, frei Antônio, então com cerca de 24 anos,
parte como missionário para o Marrocos. Como, porém, os anseios
Página 10 de Santo Antônio
parte como missionário para o Marrocos. Como, porém, os anseios
humanos nem sempre correspondem aos desígnios de Deus, ao chegar a
terras marroquinas, frei Antônio adoece, provavelmente de malária —
doença que deixaria sua saúde debilitada pelos próximos dez anos até
sua morte. Por causa disso, convencem-no a partir para outras terras. As
crônicas mais antigas como a Vida Assídua, nos falam que ele pegou um
navio em Marrocos e uma tempestade os levou para a Sicília na Itália.

Embora haja dúvidas sobre o que realmente ocorreu quando Antônio


saiu de Marrocos, é fato que ele acabou chegando a Messina, na região
da Sicília. Lá, soube que o haviam convocado para o Capítulo da Ordem
Franciscana em Assis. Antônio parte, assim, para uma viagem de 600
quilômetros, animado por poder ver, até que enfim, de quem só ouvira
falar: Francisco de Assis, o homem que, como Cristo, se fez pobre para
salvar as almas. A pobreza não é um valor em si mesma, em si mesma é
um desgraça; a pobreza de Deus que se fez homem para nos salvar, i.e.,
no presépio enquanto menino, é a realidade que São Francisco quis
viver, essa realidade de se fazer pobre na direção da salvação.

Ao final do Capítulo, os provinciais redistribuíram os frades entre os


diversos lugares de atuação dos franciscanos. Como não havia sido
designado para nenhum deles, o frei Antônio, então um desconhecido,
foi enviado por frei Graciano, provincial do norte da Itália, para a região
da Romagna, a Monte Paolo, onde necessitavam de “um padre para
celebrar Missa”. Em Monte Paolo, Antônio encontrou uma gruta, em um
lugar ermo onde, com autorização do superior, se recolhia em oração e
penitência, vivendo como um eremita durante o dia e retornando à
comunidade ao final da tarde:

[...] todos os dias, terminado o primeiro ato comunitário da manhã,


Antônio, o servo de Deus, retirava-se para a dita cela e com um cibo de pão
levava consigo uma bilha de água. E assim, obrigando a carne a servir o
espírito, passava o dia na solidão; todavia, conforme aos princípios da
sagrada observância, regressava sempre à hora da colação [2].

Desse modo, o douto cônego Fernando tornou-se um simples frade que


“celebrava Missa” e servia humildemente os irmãos. Logo, porém, se
manifestaria a grandeza do frade, cuja formação intelectual em Coimbra
e vida espiritual em Monte Paolo fizeram dele não apenas um notável
pregador, mas também um grande santo.

Notas de rodapé:

Página 11 de Santo Antônio


Notas de rodapé:

1. Santo Antônio. Sermões. Petrópolis: Vozes, 2019. p. 104-105.


2. Legenda “Assidua”. In: Fontes Franciscanas III. Vol. I. Tomo II.
Braga: Editorial Franciscana, 1996. p. 41.

Página 12 de Santo Antônio


IV - O martelo dos hereges
quinta-feira, 24 de junho de 2021 08:18

Apesar de Antônio ser um exímio pregador e saber de memória as SS.


Escrituras e os Santos Padres, narra a Legenda Assidua que, na
comunidade de Monte Paolo, “o conheciam os frades mais por um
perito em lavar a louça da cozinha do que na exposição dos mistérios da
Escritura” [1]. Com essa atitude de profunda humildade, vivendo o
preceito evangélico da renúncia de si para abandonar-se em Deus, frei
Antônio era um desconhecido para os seus confrades, um tesouro que
até então estava escondido.

Isso mudou quando os franciscanos de Monte Paolo foram a uma


ordenação em Forli, onde também estavam presentes frades
dominicanos. Durante a refeição, os franciscanos lhes pediram que um
deles fizesse uma pregação ou um colóquio sobre as Escrituras.
Recusando o convite, alegaram que não tinham se preparado para
pregar e não o fariam de improviso.

O superior pediu a frei Antônio que pregasse aos irmãos ali reunidos,
não porque o tivesse em conta, mas porque presumiu que, sendo
sacerdote, possuía ao menos conhecimentos básicos de latim - e, naquela
época, os requisitos para ser ordenado era saber o Latim suficientemente
para que se rezasse a missa. Embora relutante no início, por obediência
Antônio se pôs a pregar. A partir de palavras simples e acanhadas
manifestaram-se aos poucos a eloquência e a intrepidez de um gigante.
De uma fagulha da Palavra de Deus desencadeou-se imediatamente um
incêndio que fazia arder o coração de todos os presentes. Ninguém ficou
indiferente às palavras daquele pregador, cujo talento até então se
desconhecia:

[...] tendo a sua língua ou antes, pena (cf. Sl 44, 2) do Espírito Santo,
mostrado no decorrer do sermão a mais rara eloquência, e o dom de
dissertar muito em pouco, os Frades, pasmados em extremo,
ouviam mui atentos, todos sem excepção a pregação do servo de
Deus. Se a inesperada elevação das suas sentenças assombrava os
ouvintes, não menos o espírito com que falava e a sua ardentíssima
caridade os edificava [2].

Tendo-se mostrado um exímio pregador, S. Antônio foi enviado para a


Romagna, a fim de combater as heresias, sobretudo a dos cátaros ou
albigenses. Segundo essa heresia, de mentalidade pagã, tudo o que está
relacionado à matéria é fundamentalmente mau e provém de uma
espécie de demiurgo, enquanto aquilo que é de natureza espiritual é
Página 13 de Santo Antônio
espécie de demiurgo, enquanto aquilo que é de natureza espiritual é
substancialmente bom e, portanto, criado por Deus. Tal dicotomia, ainda
que fosse um absurdo teológico, ganhava cada vez mais adeptos entre os
cristãos, que se deixavam convencer pela vida aparentemente virtuosa
dos pregadores cátaros, uma vez que estes, odiando a matéria, viviam o
celibato -pois a união conjugal aprisionava as almas do mundo espiritual
aqui, no mundo material-, o jejum e a ascese, ainda que pelas razões
erradas. Tais hereges ganhavam a fama justamente por conta do clero
corrompido com as riquezas materiais, opulento e que quebrava o
celibato.

Nesse contexto, Francisco de Assis constituiu uma resposta viva à


heresia, porque, diferentemente dos cátaros, ele louvava a Criação e via
nas criaturas físicas sinais da bondade divina. Em seus ensinamentos, o
poverello de Assis demonstrava o dom de ciência, que é uma
capacidade da alma de, movida pelo Espírito Santo, ver a criação sob o
prisma do Criador, compreendendo as criaturas dentro da ordem
estabelecida por Deus.

Inserido nesse movimento espiritual de S. Francisco, frei Antônio


exerceu sua missão de pregador demonstrando, tanto por suas ações
quanto por argumentos bíblicos e teológicos, que a Criação é uma
dádiva de Deus e que todo aquele que disser o contrário está no erro.
Assim, Antônio percorreu a maior parte das cidades da Romagna,
obtendo grande sucesso com suas pregações, até chegar a Rimini, onde
havia uma multidão de hereges que, “assim como pedras pela
obstinação e endurecimento, não davam crédito às suas palavras e nem
sequer acudiam a ouvi-las” [3]. Conforme narra o Liber Miraculorum,
frei Antônio, sob inspiração divina, dirigiu-se à foz do rio e começou a
pregar, então, aos peixes: “Ó peixes, meus irmãos, vinde vós ouvir a
palavra do Senhor, já que os infiéis menosprezam de ouvi-la” [4].
Milagrosamente, “naquela hora se ajuntaram diante de S. Antônio tantos
peixes, grandes e pequenos, como nunca por ali fora vista tamanha
multidão. E todos eles atiravam a cabeça ao cimo da água” [5],
organizando-se para ouvir o frade.

Reunida a inusitada assembleia, frei Antônio iniciou sua pregação


deixando claro que até mesmo os peixes tinham o dever de louvar a
Criação divina: “Peixes, meus irmãos, muita obrigação tendes de, à
vossa maneira, cantar louvores e render graças a Deus nosso Criador”.
Recorrendo, pois, tanto a fenômenos naturais observáveis quanto a
acontecimentos bíblicos, como a salvação do dilúvio e os sucessos do
profeta Jonas, Antônio argumentava que os peixes deviam louvar e
bendizer o Senhor, pois dEle receberam “benefícios tantos e tão
singulares como nenhuma outra criatura os recebeu” [6]. Como que
Página 14 de Santo Antônio
singulares como nenhuma outra criatura os recebeu” [6]. Como que
respondendo às exortações do frade, os peixes se agitavam na água,
grunhiam ou simplesmente abriam a boca. Vendo a reverência daquelas
criaturas, Antônio exclamou com alegria: “Bendito seja Deus para
sempre, pois mais honra Lhe dão os peixes da água que não os homens
hereges; e melhor ouvem a Sua palavra os animais sem entendimento,
que não os infiéis dotados de razão” [7].

O milagre atraiu a população da cidade, sobretudo os hereges, que, ao


depararem com cena tão inacreditável, passaram a ouvir atentamente as
palavras de Antônio, que, por sua vez, refutou com maestria os
argumentos distorcidos dos hereges. Diz a Legenda Assidua que, nessa
ocasião, ele “enraizou de tal modo a palavra da virtude e a salutar
doutrina nos corações dos ouvintes que, eliminada a impureza do erro,
grande multidão de crentes aderiu fielmente ao Senhor”; e destaca
que, dentre os convertidos, estava um “heresiarca, de nome Bononillo,
desorientado pelo erro da infidelidade havia já trinta anos. Este,
havendo recebido a penitência, obedeceu devotamente e até ao fim, às
recomendações da Santa Igreja Romana” [8].

Posteriormente, ao ser enviado a Roma para tratar de questões


referentes à Ordem, frei Antônio pregou ao Sumo Pontífice e à
assembleia de cardeais, que o escutavam encantados. Pregara com tanta
profundidade e eloquência sobre as Escrituras, que o próprio Papa
Gregório IX lhe atribuiu o epíteto de “Arca do Testamento”.

Todos esses feitos de Santo Antônio constituíram um marco


significativo na história da Igreja, pois graças a esse erudito pregador a
Ordem dos Franciscanos passou a ser vista com maior reconhecimento,
e aos poucos se foi esvaindo a ideia de que a adesão à pobreza
estivesse vinculada à ignorância.

O próprio S. Francisco de Assis — que antes ficava receoso de que seus


frades estudassem teologia, pelo fato de muitos estudiosos se tornarem
soberbos e presunçosos —, ao saber que frei Antônio era um profundo
conhecedor de teologia e, ao mesmo tempo, tinha uma vida de
humildade e oração, confiou-lhe a missão de iniciar um centro de
estudos em Bolonha, a fim de ensinar teologia aos frades. Em uma breve
carta a frei Antônio, a quem chama de “meu bispo” — já que uma das
missões episcopais é ensinar a doutrina da salvação ao povo fiel —,
Francisco condicionou o estudo da teologia ao cultivo da vida de oração:
“A Frei Antônio, meu bispo, saudações. Agrada-me que tu ensines a
Sagrada Teologia aos frades, desde que, nesta ocupação, não extingas o
espírito de oração e de devoção, como está contido na Regra”. Vemos
que, inclusive para Francisco, S. Antônio foi um exemplo de quem

Página 15 de Santo Antônio


que, inclusive para Francisco, S. Antônio foi um exemplo de quem
soube conciliar o estudo e a oração, o conhecimento e a piedade, pois
sabia que não estudava para si mesmo, mas para servir a Deus pela
pregação do Evangelho, a fim de tirar do erro os hereges e instruir no
caminho da verdade os fiéis.

Notas de rodapé:

1. Legenda “Assidua”. In: Fontes Franciscanas III. Vol. I. Tomo II.


Braga: Editorial Franciscana, 1996. p. 42.
2. Id., ibid.
3. Frei Arnaldo de Sarrano. Liber Miraculorum Sancti Antonii. In:
Fontes Franciscanas III. Vol. III. Tomo IX. Braga: Editorial
Franciscana, 1996. p. 73.
4. Id., p. 74.
5. Id., ibid.
6. Id., p. 75.
7. Id., ibid.
8. Legenda “Assidua”. In: Fontes Franciscanas III. Vol. I. Tomo II.
Braga: Editorial Franciscana, 1996. p. 43.

Página 16 de Santo Antônio


V - Referências
quinta-feira, 24 de junho de 2021 09:31

Estudada já a parte mais desconhecida da vida de Santo Antônio,


queremos apresentar agora, antes de continuar com a narrativa
biográfica, as principais fontes sobre o grande Doutor da Igreja, a fim de
que os nossos alunos possam aprofundar-se na matéria segundo os
próprios interesses ou necessidades.

Sobre os protomártires franciscanos, a principal fonte é a Passio, ou


narrativa da paixão dos cinco frades martirizados em Marrocos, à qual,
infelizmente, não temos acesso em português, mas que está disponível
em latim e italiano.

Quanto às informações biográficas, nossa principal fonte é a Vida


primeira de Santo Antônio, também conhecida como Legenda Assídua
(alusão à palavra com que se inicia a obra em latim), escrita por um
frade anônimo e publicada em 1232, um ano após a morte do santo. Por
ser a biografia mais antiga do santo, baseia-se em relatos
contemporâneos, como os do bispo de Lisboa, Dom Soeiro II Viegas
(morto em 1232), que forneceu as informações sobre o tempo em que o
frade vivera em Portugal.

Em língua portuguesa, a obra foi publicada pela editora Franciscana, de


Braga — em comemoração pelo aniversário de 800 anos do nascimento
de Santo Antônio —, e consiste em um dos nove tomos que compõem as
chamadas Fontes Antonianas ou, como denominadas na referida edição,
“Fontes Franciscanas III”.

Os nove tomos das Fontes Antonianas, que nesta edição portuguesa


contam com uma introdução do renomado estudioso frei Henrique
Pinto Rema, OFM, são constituídos pelas seguintes obras:

Tomo I: Bula da Canonização (1232), promulgada pelo Papa Gregório


IX.
Tomo II: Vida primeira de Santo Antônio ou Legenda Assidua (1232),
escrita por um frade anônimo.
Tomo III: Ofício rítmico de Santo Antônio (1235), composto por frei
Juliano de Espira.
Tomo IV: Vida de Santo Antônio Confessor ou Vida Segunda (1235),
também escrita por frei Juliano de Espira.
Tomo V: Diálogo sobre as gestas de Santo Antônio (1246), de um frade
anônimo.
Tomo VI: Legenda Benignitas (1280), do frei João Peckham.
Página 17 de Santo Antônio
Tomo VI: Legenda Benignitas (1280), do frei João Peckham.
Tomo VII: Legenda Raimondina (1295), atribuída ao frei Pedro
Raymond de Saint Romain.
Tomo VIII: Legenda Rigaldina (1300), do frei João Rigauld.
Tomo IX: Livro dos milagres ou Liber Miraculorum Sancti Antonii
(1369-1374), atribuída ao frei Arnaldo de Sarrano.

Para aqueles que desejarem ter acesso ao original latino das Fontes
Antonianas, existe uma edição bilíngue, em latim e italiano, com grande
aparato crítico, introdução histórica e notas comparativas entre
manuscritos. Essa edição foi organizada pelo frei Vergilio Gamboso e
publicada pelas edições Messaggero Padova. Das Obras completas de
Santo Antônio, com todos os seus sermões, havia uma edição bilíngue,
latim e português, organizada pelo frei Henrique Pinto Rema na década
de 1970, mas que infelizmente se encontra esgotada e à qual é difícil ter
acesso hoje em dia. Mais recentemente, em 2019, os Sermões de Santo
Antônio foram publicados em português pela editora Vozes.

Além de indicarmos as fontes de estudo, precisamos também


recomendar o modo de lê-las, sobretudo os textos hagiográficos
medievais, denominados legenda. Antes de tudo, não podemos fazer
uma leitura anacrônica, projetando sobre textos do século XIII critérios
históricos e científicos do século XXI, e a partir deles desacreditar o que é
exposto no texto. Para que isso não ocorra, devemos nos situar no
contexto em que tais textos foram escritos e compreender que os
hagiógrafos, ao redigi-los, não estavam preocupados com a precisão de
detalhes históricos, mas, sim, com o registro do fato ocorrido para a
posteridade. E a existência desses fatos pode ser demonstrada, por
exemplo, pelo princípio da múltipla atestação, visto que muitos deles
são descritos por diversas fontes independentes.

Além disso, precisamos abandonar o ceticismo moderno, que, ao utilizar


a dúvida como método, impede que acreditemos em realidades
sobrenaturais e acontecimentos milagrosos. Tal ceticismo é uma tentação
constante no estudo da vida de santos mais antigos, principalmente dos
que viveram na Idade Média; pois, ironicamente, sem nenhum
embasamento histórico ou científico, olhamos para a vida deles com a
ideia preconcebida de que tudo o que se escreveu a seu respeito é
ficcional, lendário ou inventado.

Essa postura cética acerca dos milagres cai por terra quando vemos, por
exemplo, em pleno século XX, sob as barbas do cientificismo, os
extraordinários feitos de São Padre Pio, que ressuscitou mortos, curou
enfermos e apareceu a muitas pessoas por bilocação. Se tais milagres
aconteceram tão próximos de nós com o Padre Pio, por que não teriam
Página 18 de Santo Antônio
aconteceram tão próximos de nós com o Padre Pio, por que não teriam
ocorrido com o Doutor Evangélico, que pregou aos peixes em Rimini,
que fez uma mula adorar o Santíssimo Sacramento e realizou tantos
outros feitos portentosos que levaram à conversão dos hereges?

Portanto, neste nosso estudo, devemos nos despojar do ceticismo e


alimentar cada vez mais a nossa fé, a fim de que, crendo na ação de
Deus, possamos compreender como um simples e humilde frade tornou-
se um gigante de santidade.

Página 19 de Santo Antônio


VI - Pregador e taumaturgo
quinta-feira, 24 de junho de 2021 11:30

Do período em que Santo Antônio esteve no sul da França, combatendo


com sua eloquência as heresias, há inúmeros testemunhos de milagres
operados por suas mãos, tendo em vista a conversão de muitos e a
edificação de todos.

Incentivado por São Francisco a ensinar Teologia aos frades em Bolonha,


frei Antônio por lá permaneceu durante o ano de 1223.
No ano seguinte, foi para Vercelli, onde se encontrou com o abade
Tomás Gallo, um famoso teólogo ligado à escola de Hugo de São Vítor e
autor de uma importante obra sobre Dionísio Areopagita. Por terem se
edificado mutuamente na amizade e nos colóquios teológicos, assim o
abade escreveu elogiosamente sobre o frade: “Frei Antônio, da Ordem
dos Frades Menores, iluminado da divina graça, plenissimamente
bebeu o sentido místico da Sagrada Teologia” [1]. Também em Vercelli,
fez inúmeras pregações e durante uma delas, em um funeral na igreja de
Santo Eusébio, ressuscitou um jovem que ali velavam, dizendo: "Em
nome daquele que ressuscitou o filho da viúva de Naim, eu te ordeno: levanta-
te!".

Partiu de Vercelli no final de 1224 e se dirigiu para o sul da França,


donde se originava de fato a heresia dos cátaros e onde também se
concentrava o movimento dos valdenses. Para combatê-los, já pregavam
naquela região os frades dominicanos. Com o mesmo intuito de
converter os hereges, frei Antônio foi à região, dedicando-se não
somente a pregar, mas também a instruir os franciscanos na arte da
pregação.

Nesta época, em virtude da formação teológica que dava aos frades,


Santo Antônio começou a redigir os seus Sermões, que, além de serem
fruto de sua oração e meditação, serviam como uma espécie de manual
temático para pregações, no qual os frades poderiam encontrar uma
referência segura.

Do período em que esteve no sul da França (outono de 1124 até final de


1226, com a morte de São Francisco, onde foi convocado pro capítulo
geral de pentecostes em início de 1227) há inúmeros testemunhos de
milagres por ele realizados em diversos lugares.

Na cidade de Montpellier, quando estava a pregar numa solene


festividade, diante do clero e da população, frei Antônio recordou-se de
que naquele momento deveria estar no convento, onde tinha sido
escalado para cantar o Aleluia da Missa conventual junto com outro
Página 20 de Santo Antônio
escalado para cantar o Aleluia da Missa conventual junto com outro
frade. Então, narra a Legenda Benignitas (cap. XV, n. 5) que, naquele
instante, Antônio realizou um portentoso milagre de bilocação,
testemunhado por todos os presentes:

Muito penalizado com tal esquecimento, inclinou-se sobre o púlpito e


cobriu rapidamente a cabeça com o capuz, como se pretendesse dormitar
um pouco. Nesse momento exato apareceu ele no coro do convento de
Montpellier a entoar o Aleluia de parceria com o irmão com quem lhe
competia cantar. Entretanto o corpo de Santo António continuou no
púlpito durante bastante tempo, pelo espaço de uma longa caminhada, à
vista de enorme multidão [2].

Outro grande acontecimento é o milagre da mula, atestado por múltiplas


fontes — embora com divergência de detalhes, pois, segundo a Legenda
Benignitas, ocorreu em Toulouse e, de acordo com Bartolomeu de Pisa,
teria sido em Rimini. O fato é que, estando Santo Antônio a pregar sobre
a Eucaristia, um cátaro, à semelhança dos judeus (cf. 1Cor 1, 22), pediu-
lhe um sinal milagroso, capaz de o convencer da doutrina católica.
Consentindo, o frade respondeu-lhe: “Tenho plena confiança no meu
Salvador Jesus Cristo: pela sua misericórdia alcançarei dele o que
pretendes, para conversão tua e de outros” [3].

Assim, combinaram que o herege deixaria sua mula três dias presa sem
alimento, e que a soltaria no meio do povo, estando o cátaro com uma
boa ração e o frei com o Santíssimo Sacramento, para verem a quem o
animal se dirigiria. Chegado o dia, ao término da Missa, Santo Antônio
dirigiu-se para o meio do povo, conduzindo com reverência o
Santíssimo Sacramento, enquanto um apetitoso alimento era
apresentado ao animal. Então, pedindo silêncio, o frade com muita fé
exortou aquela criatura a servir de instrumento ao seu divino Criador:

“Pelo poder e em nome do teu Criador, a quem eu, embora indigno, tenho
verdadeiramente em minhas mãos, ordeno-te que sem demora te aproximes
com humildade e lhe prestes a devida reverência. A ver se dessa forma os
malvados hereges se capacitam definitivamente de que toda a criatura está
sujeita ao Criador, a quem a dignidade sacerdotal tem entre as mãos sobre o
altar” [4].

Narra a Benignitas que o santo apenas terminara de falar, quando a


mula, sem dar importância à ração, “se aproximou do sacramento
vivificante do Corpo de Cristo e diante dele se inclinou, baixando a
cabeça até aos joelhos, e genuflectiu” [5]. Os fiéis católicos exultaram de
alegria, enquanto os cátaros ficaram perplexos e confusos. O dono da
mula, porém, abjurou publicamente de sua heresia e professou a fé

Página 21 de Santo Antônio


mula, porém, abjurou publicamente de sua heresia e professou a fé
católica.

Ainda no sul da França, agora na cidade de Arles, durante o Capítulo


dos frades de Provença, frei Antônio estava pregando sobre o titulus
crucis “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”, quando um frei muito
virtuoso, de nome Monaldo, olhou para o alto e viu São Francisco, ainda
vivo naquela época, a flutuar sobre eles, como descreve a Vida primeira
de São Francisco (n. 48): “Frei Monaldo olhou para a porta da casa em
que os frades estavam reunidos e viu com seus próprios olhos o bem-
aventurado Francisco elevado no ar, com as mãos abertas em cruz,
abençoando os frades” [6].

O mesmo fato, descrito com mais detalhes, foi visto pelo frei Juliano de
Espira, na Vida Segunda (cap. V, n. 10–12), como uma atestação
sobrenatural da louvável eloquência de Santo Antônio:

Mas não podemos omitir, nesta altura, um episódio que redunda em seu
louvor. Uma vez, estando os irmãos reunidos em Capítulo na Provença, o
nosso Santo pregou docemente sobre o tema da cruz e sobre os tormentos
infligidos a Jesus durante a Paixão. E eis que aparece, suspenso no ar, por
estupendo e incrível milagre, o glorioso Pai S. Francisco, ainda vivo
naquela altura, mas habitando noutra longínqua região. Em sinal de
aprovação das palavras do homem de Deus e a mostrar quão digno era da
imitação dos ouvintes, manifesta-se aos olhos dos presentes com os braços
abertos como no patíbulo da cruz e, abençoando os seus filhos presentes,
traçou sobre eles o sinal da cruz [7].

Depois desse Capítulo, frei Antônio foi nomeado guardião do convento


de Le-Puy-en-Velay. Nesta cidade, aconteceu mais um feito
extraordinário, que, embora não conste nas Fontes Antonianas, está
presente em um Fioretto de Santo Antônio, escrito por frei Bartolomeu
de Pisa no século XIV, compilado com outros textos do mesmo gênero
pelo frei Vergilio Gamboso.

Segundo o relato, havia em Le-Puy um notário que vivia em situação de


pecado, mas diante do qual Santo Antônio tirava o capuz e se prostrava
sempre que o encontrava. Depois de constranger-se muitas vezes com o
gesto do frade, o homem, irritado, disse-lhe que só não o matava porque
temia a Deus. O santo então respondeu: “Tentei me oferecer a Deus
como mártir, mas isso não lhe agradou. Tu, ao contrário, como o Senhor
me revelou, serás um mártir glorioso. Então, eu te peço: quando
estiveres sofrendo o martírio, lembra-te de mim”. Na hora, o notário
escarneceu da profecia de Antônio. Porém, tempos depois, quando o
bispo de Le-Puy convocou os varões da região para as Cruzadas, o

Página 22 de Santo Antônio


bispo de Le-Puy convocou os varões da região para as Cruzadas, o
notário prontamente se alistou e partiu como cruzado para Jerusalém,
onde se converteu, pediu perdão dos seus pecados e anunciou o
Evangelho aos muçulmanos com tamanho ímpeto e coragem que acabou
martirizado.

Por fim, podemos mencionar como outro grande feito de Santo Antônio
a conversão do arcebispo de Bourges, Dom Simon de Sully, em
novembro de 1225, o qual mais tarde viria a ser nomeado cardeal pelo
Papa Gregório IX, em 18 de setembro de 1227. Narra a Legenda
Rigaldina (cap. VIII, n. 21–23) que isso ocorrera graças a uma pregação
do frade durante o Sínodo de Bourges:

[...] enquanto António pregava um dia em Bourges durante um Sínodo,


dirigiu a palavra ao arcebispo e disse-lhe com fervor de espírito: “É para ti
que falo, cornudo!” E começou a detestar certos vícios, dos quais o
arcebispo tinha a consciência carregada, com tal ardor e com tão claros e
sólidos argumentos da Escritura que subitamente o arcebispo foi movido ao
arrependimento e às lágrimas, como também a uma devoção jamais
experimentada. Terminado o Sínodo, tomou-o à parte e humildemente
mostrou-lhe as chagas da consciência. Desde então, mais afeiçoado a Deus e
aos irmãos, empenhou-se mais seriamente no serviço de Deus [8].

Depois disso, em 1226, frei Antônio foi nomeado custódio dos frades de
Limoges. Nessa região, fundou um convento na cidade de Brive-la-
Gaillarde próximo de uma gruta, o que fazia o santo recordar-se de sua
vida eremítica em Monte Paolo. Foi nessa época que faleceu São
Francisco de Assis, em 3 de outubro de 1226. Isso levará à convocação do
Capítulo Geral de Pentecostes, em 6 de junho de 1227, do qual frei
Antônio participará como custódio.

Notas de rodapé:

1. Frei Arnaldo de Sarrano. Liber Miraculorum Sancti Antonii. In:


Fontes Franciscanas III. Vol. III. Tomo IX. Braga: Editorial
Franciscana, 1996. p. 109.
2. João Peckham. Legenda Benignitas. In: Fontes Franciscanas III. Vol.
II. Tomo VI. Braga: Editorial Franciscana, 1996. p. 28.
3. Id., p. 25.
4. Id., p. 26.
5. Id., ibid.
6. Tomás de Celano. Vida primeira. In: Fontes Franciscanas I:
Biografias. Braga: Editorial Franciscana, 1996. p. 49.
7. Frei Juliano de Espira. Vida de Santo Antônio Confessor ou Vida

Página 23 de Santo Antônio


7. Frei Juliano de Espira. Vida de Santo Antônio Confessor ou Vida
Segunda. In: Fontes Franciscanas III. Vol. I. Tomo IV. Braga:
Editorial Franciscana, 1996. p. 131-132.
8. Frei João Rigauld. Legenda Rigaldina. In: Fontes Franciscanas III.
Vol. III. Tomo VIII. Braga: Editorial Franciscana, 1996. p. 40.

Página 24 de Santo Antônio


VII - Superior no ofício e na virtude
quinta-feira, 24 de junho de 2021 14:10

Eleito, após a morte de São Francisco de Assis, superior da Ordem no


norte da Itália, nem por isso o frei Antônio deixou de guardar “as
marcas de sua humildade”.

Com a morte de São Francisco de Assis, em 3 de outubro de 1226 [1], é


convocado para o Pentecostes do ano seguinte um Capítulo geral da
Ordem, realizado em 6 de junho de 1227. Na ocasião, frei Antônio é
eleito Ministro Provincial da Romagna-Emília e Lombardia, ou seja,
torna-se o Superior da região norte do atual território italiano.

Como Superior, exercia sua autoridade não pelo poder, mas pela
virtude, sobretudo a humildade. A Legenda Rigaldina (cap. V, n. 10)
destaca que “o Santo guardou as marcas da sua humildade de quatro
modos, a saber: escondendo a sua ciência, ocupando-se assiduamente
nos ofícios humildes, em viagem mostrando-se inferior ao
companheiro, nos cargos humilhando-se em tudo” [2]. Assim, frei
Antônio vivia o espírito franciscano de fazer-se pobre, obediente e
humilde por amor a Cristo e para se configurar a Ele.

Nesse período como provincial, em 1227, redigiu a versão definitiva dos


seus sermões dominicais, então compilados sob o título Opus
Evangeliorum ou Sermones Dominicales, posteriormente escreveria os
sermões festivos.

Também é provável que tenha sido nessa época, mais precisamente na


Páscoa de 1228, que ele tenha pregado ao Papa na Cúria Romana,
embora, como vimos anteriormente, a Legenda Assídua narre o fato,
sem precisar a data, logo após a pregação de Santo Antônio aos peixes
em Rimini. Essa divergência, porém, é compreensível pelo fato de que a
Assídua foi escrita com certa urgência para a iminente canonização do
santo, e justamente por isso não relata acontecimentos que demandavam
mais tempo para serem conhecidos, como os eventos ocorridos no sul da
França, anteriores à sua pregação em Roma.

Segundo a Legenda Benignitas (cap. XV, n. 2), encontrava-se em Roma,


por ocasião da Páscoa, uma multidão de pessoas de diversos lugares e
línguas. Estando, pois, frei Antônio a pregar sob o encargo do Papa,
realizou-se um grande milagre como em Pentecostes:

Por incumbência do Sumo Pontífice, estava ele a pregar solenemente a esses


Página 25 de Santo Antônio
Por incumbência do Sumo Pontífice, estava ele a pregar solenemente a esses
peregrinos, e eis que a graça do Espírito Santo, tal como acontecera aos
Apóstolos no dia do Pentecostes, realizou a maravilha de lhe tornar as
palavras tão sublimes e encantadoras, que cada um dos ouvintes o escutou
perfeitamente e compreendeu com toda a clareza na linguagem da terra
onde nascera e aprendera a falar. Assim o confirmaram mais tarde como
absolutamente certo muitos desses ouvintes [3].

Nesse relato, como em tantos outros, observamos o quanto a graça de


Deus superabundou na vida deste grande pregador. Mas, obviamente,
tal efusão de graça seria vã se não houvesse uma correspondência por
parte de Santo Antônio, que se dedicava assiduamente à oração e à
meditação da Palavra de Deus, donde provieram os inumeráveis frutos
de suas pregações.

Em outra ocasião, em 1230, frei Antônio esteve novamente em Roma,


convocado por Gregório IX, que, antes de ser eleito Papa, fora cardeal
protetor dos franciscanos e, portanto, preocupava-se com o
desenvolvimento da Ordem, sobretudo após a morte do fundador.
Como havia certas divergências internas quanto à vivência da
pobreza — pois alguns frades a continuavam vivendo de acordo com a
Regra (e estes são chamados ou de zelantes ou de rigoristas), enquanto
outros defendiam uma pobreza ainda mais extrema, conforme São
Francisco pedira em seu Testamento [4] —, sete frades escolhidos no
Capítulo Geral de 1230, entre os quais estava Antônio, reuniram-se com
o Papa a fim de resolver a controvérsia. Consultados os frades, o Papa
Gregório IX, por meio da Bula Quo elongati (1230), resolveu a questão
jurídica determinando que a Regra da Ordem devia ser seguida
impreterivelmente e que o testamento de Francisco, apesar de sua
relevância, não possuía poder normativo vinculante.

Embora não se saiba a opinião de Santo Antônio sobre a controvérsia, é


certo que ele obedeceu à bula papal sem polemizar. Alguns biógrafos
tentam fazer conjecturas sobre o que ele teria pensado, principalmente
porque, ao voltar de Roma, solicitou deixar o cargo de superior a fim de
se dedicar a uma vida de oração e penitência. O pedido baseava-se,
fundamentalmente, na sua condição de saúde já debilitada; há, contudo,
quem interprete a decisão como uma forma de se opor às diretrizes
papais.

Como as intenções humanas são insondáveis, só podemos considerar o


que ele mesmo manifestou a respeito. Se observamos, por exemplo, os
sermões por ele escritos após a Bula Quo elongati (1230), percebemos
que frei Antônio prega convictamente sobre a necessidade de viver a
pobreza e o despojamento, sem com isso tocar em questões

Página 26 de Santo Antônio


pobreza e o despojamento, sem com isso tocar em questões
institucionais ou estruturais. No Sermão da Festa dos Santos Apóstolos
Filipe e Tiago, ao refletir sobre o trecho do Sermão da Montanha: “Bem-
aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt
5, 3), Antônio tece duras críticas à falta de vivência da pobreza:

Oh, quantos viveriam também hoje, por muito tempo, em estreitíssima


pobreza, se soubessem, com absoluta certeza, que poderiam possuir o reino
da França ou da Espanha! Ao contrário, hoje não existe mais ninguém que
queira viver na pobreza de Cristo para poder, depois, conseguir o Reino dos
Céus: o Reino dos Céus, o amor de Deus [5].

Já no Sermão do Natal do Senhor, ao comentar a passagem: “E


envolveu-o em faixas e reclinou-o numa manjedoura” (Lc 2, 7), o Doutor
Evangélico argumenta que o verdadeiro sentido da pobreza está em
configurar-se a Cristo:

Ó pobreza! Ó humildade! O Senhor de todas as coisas é envolvido em


faixas; o Rei dos anjos é reclinado num estábulo. Envergonha-te, insaciável
avareza! Desaba, ó humana soberba! Envolveu-o em faixas. Observa que
Cristo no início e no fim da vida é envolto em faixas. José de Arimatéia, diz
São Marcos, tendo comprado um lençol, tirou Jesus da cruz e o envolveu
nele (Mc 15, 46). Bem-aventurado aquele que terminar sua vida envolto no
Sudário, isto é, na inocência batismal [6].

Nota de rodapé:

1. Se tomarmos como referência o parâmetro cronológico atual, que


considera o início do dia a partir da meia-noite. No século XIII,
porém, o dia era contado a partir das vésperas do dia anterior, pelo
que, em alguns escritos antigos, fala-se que São Francisco faleceu no
dia 4 de outubro de 1226.
2. Frei João Rigauld. Legenda Rigaldina. In: Fontes Franciscanas III.
Vol. III. Tomo VIII. Braga: Editorial Franciscana, 1996, p. 26.
3. João Peckham. Legenda Benignitas. In: Fontes Franciscanas III. Vol.
II. Tomo VI.Braga: Editorial Franciscana, 1996, p. 28.
4. Cf. São Francisco de Assis. Testamento. In: Fontes Franciscanas I:
Escritos. Braga: Editorial Franciscana, 1996, p. 158–161.
5. Santo Antônio. Sermões. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 984.
6. Ibidem, p. 785.

Página 27 de Santo Antônio


VIII - De Pádua ao Céu
sexta-feira, 25 de junho de 2021 16:32

Por ter contraído malária quando esteve no Marrocos, frei Antônio


experimentou por cerca de dez anos, até sua morte, as sequelas físicas da
doença. Um dos sintomas que mais lhe causava sofrimento era a
hidropisia, isto é, a acumulação de líquidos corporais, o que gerava
inchaços e deformações.

É nesta condição, já bastante debilitado pela malária, que em 1230 Santo


Antônio decide renunciar ao cargo de Ministro Provincial para ir morar
em Pádua, num pequeno convento junto da igreja de Santa Maria. Nessa
cidade, além de fazer grandes pregações, ele escreveu seus sermões
festivos, que ficaram incompletos por causa de sua morte prematura.

Em Pádua, Santo Antônio pregou de forma contundente contra o pecado


da avareza, que crescia de modo expressivo com o aumento do poderio
econômico da burguesia e gerava inúmeras injustiças contra os mais
pobres. Com suas pregações, ele chegou a influenciar o munícipio de
Pádua a decretar, em 15 de março de 1231, a libertação dos presos por
dívidas. Um dia em Florença, quando ainda era superior, vê o funeral de
um homem rico e diz para todos: "este homem está no inferno, pois
colocou seu coração nas riquezas".

Na Quaresma de 1231, frei Antônio pregou e atendeu confissões


diariamente, de tal modo que levou inúmeras pessoas à conversão. Mas
isso também lhe provocou muito cansaço e agravou seu estado de
saúde, de modo que, em maio de 1231, teve de se retirar para um
período de descanso em Camposampiero, onde morava o Conde Tiso,
seu amigo, e havia um convento de frades onde ele foi acolhido. Neste
lugar, deu-se o acontecimento místico e sobrenatural que serviu de
inspiração às imagens do santo com o Menino Jesus nos braços. Segundo
o relato do Conde Tiso, uma noite, ao ver uma imensa luz no quarto de
frei Antônio e imaginando que fosse um incêndio, ele entreabriu a porta
e viu Antônio em êxtase a conversar com o Menino Jesus. Avisado pelo
Infante de que alguém os observava, Antônio pediu ao Conde Tiso que
não contasse a ninguém o que vira até que o santo morresse.

Mesmo debilitado, Santo Antônio realizou um último ato heroico em


favor dos que sofriam injustiças na região. À época, o norte da Itália
vivia assolado pelo conflito político entre guelfos, defensores do Papa, e
gibelinos, partidários do imperador. A cidade de Pádua e os
franciscanos eram favoráveis ao Papa, mas em Verona havia um déspota
gibelino chamado Ezzelino III da Romano, que espalhava o terror pelo
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gibelino chamado Ezzelino III da Romano, que espalhava o terror pelo
norte da Itália, aprisionando e torturando até a morte os seus inimigos.
Santo Antônio dirigiu-se então a Verona para pedir ao tirano a libertação
dos prisioneiros guelfos. Narra o Liber Miraculorum (cap. XXX) que ele
condenou de forma veemente as ações de Ezzelino: “Ó inimigo de
Deus, tirano mui cruel e perro raivoso, quando deixarás tu de verter o
sangue indefeso dos cristãos? Fica certo de que sobre ti vai cair
sentença de Deus dura e espantosa” [1]. Para espanto dos que
presenciaram a cena, o tirano reconheceu seu erro e prometeu ao santo
que iria mudar de vida:

Às palavras de Santo António, o tirano compungiu-se. Domada a


crueldade do seu coração e feito assim como borrego manso, lançou o cinto
ao pescoço, rojou-se em terra diante do servo de Deus com grande pasmo
dos circunstantes, e conheceu e humildemente confessou a sua culpa,
prometendo em tudo emendar a vida segundo ao Santo mais aprouvesse
[2].

Depois de ter saído o santo, Ezzelino explicou maravilhado aos seus


comparsas: “Não vos admireis do que vistes, pois, eu vo-lo afirmo de
verdade, vi sair do rosto daquele Padre um resplendor divinal que de
todo o ponto me aterrou. Ao vê-lo, pensei que, de súbito, ia ser atirado
ao profundo dos infernos” [3]. O problema que Ezzelino não se
converteu; enviou um cálice de ouro a Santo Antônio, buscando
comprar o Santo, mas este rejeitou.

De volta a Camposampiero, narra a Legenda “Assídua” (cap. XIII) que


ele “soube, com muita antecedência, o dia da sua morte; mas, sobretudo,
para que não deixasse os frades desolados, ocultava com cautela
dissimulada, a ruína iminente do seu corpo” [4]. Quinze dias antes de
sua morte, ao contemplar do alto de uma colina a cidade de Pádua,
arrebatado em espírito, começou a exaltar com admiráveis louvores
aquele lugar onde exercera seu ministério e, “voltando-se para o frade,
seu companheiro de viagem, predisse que esta iria ser decorada, dentro
em breve, com uma grande honra” [5].

No dia 13 de junho de 1231, após almoçar com os frades de


Camposampiero, Santo Antônio começou a passar mal. Percebendo que
a morte se aproximava, pediu aos irmãos que o levassem a Pádua.
Embora estivesse agonizando, colocaram-no num carro de boi e o
conduziram à cidade em que desejava morrer. Antes de chegar,
encontraram-se com Vinoto, que, diante do estado de Antônio, orientou-
os a permanecer em Arcella, na residência dos frades, para onde foram
com a anuência do santo. No leito de morte, tendo-se confessado e
vendo que se encerrava sua peregrinação terrena, Frei Antônio começou

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vendo que se encerrava sua peregrinação terrena, Frei Antônio começou
a cantar o hino mariano O Gloriosa domina, composto no século VI por
Venanzio Fortunato:

Senhora gloriosa,
bem mais que o sol brilhais.
O Deus que vos criou
ao seio amamentais.

O que Eva destruiu,


no Filho recriais;
do céu abris as portas
e os tristes abrigais.

Da luz brilhante porta,


sois pórtico do Rei.
Da Virgem veio a vida.
Remidos, bendizei!

Ao Pai e ao Espírito,
poder, louvor, vitória,
e ao Filho, que gerastes
e vos vestiu de glória [6].

Terminado o hino, “erguidos de imediato os olhos ao Céu, estupefactos


com o resplendor, olhava atentamente para a frente, para muito longe.
Como o irmão que o amparava lhe tivesse perguntado que estaria a ver,
respondeu: Vide dominum meum” [7]. Logo em seguida, quando um
dos irmãos lhe foi conferir a Extrema-unção, Antônio disse com uma
sinceridade própria dos santos: “Irmão, não é necessário que me faças
isso; eu já tenho esta unção dentro de mim; em todo o caso é para mim
um bem e agrada-me” [8].

Relata a Legenda “Assídua” que, no momento derradeiro, o santo, “de


mãos estendidas e as palmas juntas, cantando com os irmãos os salmos
penitenciais, finou-se. E tendo-se aquela santíssima alma mantido
suspensa quase meia hora, uma vez desembaraçada do cárcere da carne,
foi absorvida no abismo da claridade” [9]. Encerrou-se, assim, a vida do
insigne pregador franciscano que, a partir daquele momento, se tornou
um grandioso intercessor junto de Deus.

Milagrosamente, em Pádua, sem que ninguém soubesse de nada, as


crianças começaram a percorrer a cidade aos brados: “Morreu o padre
santo! Morreu santo António!” [10]. Ao ouvirem a notícia, as pessoas
deixaram seus afazeres e correram a Arcella, a fim de trazer a Pádua o

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deixaram seus afazeres e correram a Arcella, a fim de trazer a Pádua o
corpo do santo. Santo Antônio, que nascera em Lisboa, encerrava assim
os seus dias em Pádua, a fim de retornar à pátria definitiva no Céu.

Notas de rodapé:

1. Frei Arnaldo de Sarrano. Liber Miraculorum Sancti Antonii. In:


Fontes Franciscanas III. Vol. III. Tomo IX. Braga: Editorial
Franciscana, 1996, p. 100.
2. Id., ibid.
3. Id., ibid.
4. Legenda “Assidua”. In: Fontes Franciscanas III. Vol. I. Tomo II.
Braga: Editorial Franciscana, 1996, p. 48.
5. Id., ibid.
6. O Gloriosa domina,/ excelsa super sidera,/ qui te creavit provide,/
lactas sacrato ubere. Quod Eva tristis abstulit,/ tu reddis almo
germine;/ intrent ut astra flebiles,/ sternis benigna semitam. Tu
regis alti ianua/ et porta lucis fulgida;/ vitam datam per
Virginem,/ gentes redemptae, plaudite. Patri sit Paraclito/ tuoque
Nato gloria,/ qui veste te mirabili/ circumdederunt gratiae. Amen.
7. Legenda “Assidua”. In: Fontes Franciscanas III. Vol. I. Tomo II.
Braga: Editorial Franciscana, 1996, p. 55.
8. Id., pp. 55–56.
9. Id., p. 56.
10. Id., ibid.

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IX - Santo Antônio, Doutor da Igreja
sábado, 26 de junho de 2021 08:49

A fama de Santo Antônio como taumaturgo é inversamente


proporcional ao conhecimento que se tem da sua doutrina, tão relevante
que o Papa Pio XII, por meio da Carta Apostólica Exulta Lusitania Felix,
de 16 de janeiro de 1946, o proclamou Doutor da Igreja.

Embora o título oficial só lhe tenha sido atribuído há menos de um


século, desde a sua canonização em 1232 já se tinha certeza implícita da
singularidade do seu magistério. Isso porque, ao cabo da cerimônia de
canonização, o Papa Gregório IX, que poucos anos antes, ao ouvir o
santo pregar, lhe atribuíra o epíteto de “Arca do Testamento”, entoou
em honra do recém-canonizado a antífona própria dos Doutores da
Igreja: O doctor optime, Ecclesiae Sanctae lumen, beate Antoni,
divinae legis amator, deprecare pro nobis Filium Dei — “Ó grande
doutor, luz da Santa Igreja, Santo Antônio, amante da lei divina, rogai
por nós ao Filho de Deus”.

E como explica o Papa Pio XII: “Foi este precisamente o motivo por que
desde o primeiro momento se começou a tributar na sagrada Liturgia a
Santo Antônio o culto próprio dos Doutores da Igreja” [1], culto este que
foi oficialmente reconhecido pelo referido Pontífice, justamente porque,
nos ensinamentos de Santo Antônio, a Igreja reconheceu um legado
doutrinal próprio dos grandes mestres espirituais. Por isso, nesta aula,
vamos buscar conhecer a doutrina deste santo que recebeu o título de
Doutor Evangélico.

De início, convém recordar que ele começou a vida religiosa entre os


Cônegos Regrantes de Santo Agostinho, dos quais recebeu sua formação
intelectual. Aqui, é relevante destacar que, duas décadas antes de ser
inaugurado o Mosteiro da Santa Cruz em Coimbra, Guilherme de
Champeaux fundou em Paris o Mosteiro de São Vítor. O Mosteiro,
regido pela mesma Regra de Santo Agostinho, se tornaria uma escola
espiritual extraordinária que, no decurso da história, legaria à Igreja
inúmeras contribuições teológicas e místicas.

A principal característica da escola vitorina, como destaca o Pe. Royo


Marín em sua obra Grandes mestres da vida espiritual, consistia no fato
de que, sem se reduzir à “ciência prática, que se dirige ao coração sem
especulações racionais” nem à “ciência especulativa, que se entrega à
razão sem se preocupar com o coração”, ela buscava a postura
unificadora de uma ciência especulativa e prática que tenta “raciocinar e
mover o coração ao mesmo tempo” [2]. Essa espécie de ciência
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mover o coração ao mesmo tempo” [2]. Essa espécie de ciência
sapiencial, que busca o conhecimento com o fim de amá-lo, era a nota
distintiva dos vitorinos, entre os quais se contavam grandes teólogos
como Pedro Lombardo e Hugo de São Vítor, assim como o místico
Ricardo de São Vitor. Este último foi, provavelmente, o grande mestre
espiritual de Santo Antônio. Com efeito, na época em que viveu no
Mosteiro da Santa Cruz, o então cônego Fernando de Bulhões foi
formado por um religioso que, sob o patrocínio do Rei Sancho I, havia
estudado em Paris com Ricardo de São Vítor. Trata-se de D. Raimundo,
que ensinou o caminho da sabedoria ao futuro frei Antônio.

Se analisarmos os Sermões de Santo Antônio, perceberemos um


núcleo espiritual herdado da escola vitorina, especificamente a
intuição de que o conhecimento e a busca amorosa da verdade
promovem o crescimento espiritual. Outra semelhança entre os
sermões do Doutor Evangélico e os escritos vitorinos são as recorrentes
citações bíblicas, que parecem emergir de almas habituadas à
meditação da Palavra de Deus.

Nos escritos da escola de São Vítor observa-se também, na forma de


ler a Sagrada Escritura, a já mencionada atitude sapiencial de união
entre conhecimento e piedade. Essa tendência unificadora dos
vitorinos está presente nos sermões de Santo Antônio, com a diferença
de que o santo refletia sobre a palavra de Deus a partir do Evangelho de
cada domingo ou festividade. O resultado disso foram inúmeros
sermões dominicais e de grandes festas de santos, conquanto o volume
destes últimos ficou inacabado, contemplando somente as festividades
que iam do início do calendário litúrgico até a Festa de São Pedro e São
Paulo.

Uma característica peculiar dos sermões de Santo Antônio é o modo


como ele os esquadrinha e estrutura, numa espécie de “quadriga”
(como ele mesmo o define) puxada por quatro frentes: o Evangelho do
dia; a leitura própria da Liturgia das Horas, normalmente do Antigo
Testamento; a leitura da Missa, que na época era apenas uma; e a
antífona de entrada do Missal, comumente retirada de um salmo. Ou
seja, estes sermões são justamente Santo Antônio fazendo o que os
vitorinos faziam, mas baseando-se nos evangelhos dominicais.

Vê-se com isto que os Sermões de Santo Antônio não são, propriamente
falando, sermões, no sentido de pregações orais a serem feitas na Missa;
mas, sim, peças literárias e meditativas que, mais do que pregadas de
viva voz, precisam ser lidas e meditadas em silêncio, contemplando
tanto na beleza da forma quanto na profundidade do conteúdo a ação
sobrenatural do Verbo de Deus, fonte de toda beleza e verdade. Esta é,
portanto, a finalidade destes sermões: unir-nos mais a Nosso Senhor
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portanto, a finalidade destes sermões: unir-nos mais a Nosso Senhor
Jesus Cristo.

Notas de rodapé:
1. Pio XII, Carta Apostólica “Exulta Lusitania Felix”, de 16 jan. 1946.
2. Antonio Royo Marín, Grandes mestres da vida espiritual.
Campinas: Ecclesiae, 2019, p. 239.

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X - Um sermão do Doutor Evangélico
segunda-feira, 28 de junho de 2021 11:43

S. Antônio de Pádua, como vimos ao longo do curso, foi não apenas um


santo de primeira grandeza, desde a sua estadia em Coimbra até sua
“conversão” ao franciscanismo em meados de 1220, mas também uma
inteligência de dotes singulares, forjada no estudo do que de mais
avançado tinham a oferecer as ciências medievais e, sobretudo, na
meditação frequente das SS. Escrituras e seus comentadores. Nesta aula
de encerramento, queremos oferecer aos alunos um pequeno tira-gosto
da brilhante pregação de S. Antônio, na qual a erudição científica e
escriturística se une, em matrimônio perfeito, a uma espiritualidade de
riquezas inesgotáveis.

Não sabemos com exatidão qual missal Santo Antônio usava; não bate
perfeitamente com o Missal da Cúria Romana, nem com o Missal
Seráfico, nem com os do Norte da Itália e também não é o Missal dos
Agostinianos de Coimbra. Existe a hipótese de que ele usava um missal
do Sul da França, mas é possível que ele usava todos ao mesmo tempo.

Para isso, tomaremos como exemplo o Sermão do III Domingo depois da


Páscoa, cujo Evangelho, extraído do relato da Paixão, apresenta o
discurso de despedida de Nosso Senhor: “Ainda um pouco de tempo, e
já me não vereis” (Jo 16, 16). Nele, S. Antônio faz quatro coisas em único
discurso: a) comenta o intróito ou cântico de entrada, tirado do Salmo 65;
b) comenta a primeira leitura, tirada da Segunda Epístola de São Pedro; c)
comenta o Evangelho do dia; d) e comenta a leitura própria do breviário,
tirada do Apocalipse.

O sermão se divide em quatro partes principais, em função das quatro


cláusulas em que se pode dividir a passagem escolhida como tema. Na
primeira, fala S. Antônio da brevidade da vida a partir do trecho: “Ainda
um pouco de tempo, e já me não vereis”. Na segunda, expõe a vã alegria
dos mundanos a partir de: “Haveis de lamentar e chorar, mas o mundo
se há de alegrar”. Na terceira, prega sobre a glória da vida eterna com
base no versículo: “Hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se
alegrará”. Na última, glosando a passagem: “Quando a mulher está para
dar à luz, sofre porque veio a sua hora”, explica o processo formativo do
embrião segundo os conhecimentos da época, para daí estabelecer
algumas interessantes analogias com o processo evolutivo da vida
espiritual cristã, em seus estágios fundamentais de formação.

As três primeiras partes se destacam, de modo particular, pelo diálogo


inteligente em que as põe o Doutor Evangélico com o livro do Apocalipse:
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inteligente em que as põe o Doutor Evangélico com o livro do Apocalipse:
a primeira, fá-la concordar com a alusão aos sete anjos e com as setes
taças cheias da ira divina; a segunda é lida à luz da condenação da
grande prostituta, identificada por ele com as vaidades do mundo; a
terceira, relaciona-a com a imagem do rio de água viva, símbolo da
perenidade da vida eterna. A quarta, por sua vez, resplandece pela
riqueza de ensinamentos morais que o santo, a partir de conhecimentos
rudimentares de embriologia, é capaz de extrair e propor à nossa
meditação, sem em nada perder de interesse e atualidade, ao menos
espiritualmente.

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