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AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 9 de janeiro de 2008
Depois das grandes festas de Natal, gostaria de voltar às meditações sobre os Padres da
Igreja e falar hoje do maior Padre da Igreja latina, Santo Agostinho: homem de paixão e
de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral, este grande santo e doutor
da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o
cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou uma marca muito
profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Pelo seu singular relevo,
Santo Agostinho teve uma influência vastíssima, e poder-se-ia afirmar, por um lado, que
todas as estradas da literatura latina cristã levam a Hipona (hoje Annaba, à beira-mar da
Argélia), o lugar onde era Bispo e, por outro, que desta cidade da África romana, da
qual Agostinho foi Bispo de 395 até à morte em 430, se ramificam muitas outras
estradas do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.
Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, que soubesse acolher os
seus valores e exaltar a sua intrínseca riqueza, inventando ideias e formas das quais se
alimentariam as gerações vindouras, como ressaltou também Paulo VI: "Pode-se dizer
que todo o pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam correntes de
pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos séculos sucessivos" (AAS 62,
1970, p. 426). Além disso, Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de
obras. O seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever
tantas coisas durante a vida. Falaremos destas diversas obras num próximo encontro.
Hoje a nossa atenção concentra-se sobre a sua vida, que se reconstrói bem pelos
escritos, e em particular pelas Confissões, a extraordinária autobiografia espiritual,
escrita em louvor a Deus, que é a sua obra mais famosa. E são precisamente as
Confissões agostinianas, com a sua atenção à interioridade e à psicologia, que
constituem um modelo único na literatura ocidental, e não só, também não religiosa, até
à modernidade. Esta atenção à vida espiritual, ao mistério do eu, ao mistério do Deus
que se esconde no eu, é uma coisa extraordinária sem precedentes e permanece para
sempre, por assim dizer, um "vértice" espiritual.
Mas, falando da sua vida, Agostinho nasceu em Tagaste na Província de Numídia, na
África romana a 13 de Novembro de 354, filho de Patrício, um pagão que depois se
tornou catecúmeno, e de Mónica, cristã fervorosa. Esta mulher apaixonada, venerada
como santa, exerceu sobre o filho uma grandíssima influência e educou-o na fé cristã.
Agostinho recebeu também o sal, como sinal de acolhimento no catecumenato. E
permaneceu sempre fascinado pela figura de Jesus Cristo; aliás, ele diz que amou
sempre Jesus, mas que se afastou cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial, como
acontece hoje com muitos jovens.
Agostinho tinha também um irmão, Navígio, e uma irmã, da qual não sabemos o nome e
que, tendo ficado viúva, chefiou depois um mosteiro feminino. O jovem, de inteligência
aguda, recebeu uma boa educação, mesmo se nem sempre foi um estudante exemplar.
Contudo ele estudou bem a gramática, primeiro na sua cidade natal, depois em
Madaura, e a partir de 370 retórica em Cartago, capital da África romana: dominava
perfeitamente a língua latina, mas não conseguiu dominar do mesmo modo o grego nem
aprendeu o púnico, falado pelos seus conterrâneos. Precisamente em Cartago Agostinho
leu pela primeira vez o Hortensius, um escrito de Cícero que depois se perdeu, o qual
está na base do seu caminho rumo à conversão. De facto, o texto de Cícero despertou
nele o amor pela sabedoria, como escreverá, já Bispo, nas Confissões: "Aquele livro
mudou verdadeiramente o meu modo de sentir", a ponto que "de repente perdeu valor
qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor do coração a imortalidade da
sabedoria" (III, 4, 7).
Mas estando convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou
efetivamente a verdade, e dado que neste livro apaixonante lhe faltava aquele nome,
logo após tê-lo lido começou a ler a Escritura, a Bíblia. Mas ficou desiludido. Não só
porque o estilo latino da tradução da Sagrada Escritura era insuficiente, mas também
porque o próprio conteúdo lhe pareceu insatisfatório. Nas narrações da Escritura sobre
guerras e outras vicissitudes humanas não encontrava a altura da filosofia, o esplendor
de busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e assim
procurava uma religião que correspondesse ao seu desejo de verdade e também ao seu
desejo de se aproximar de Jesus. Caiu assim na rede dos maniqueus, que se
apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional. Afirmavam
que o mundo está dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria toda
a complexidade da história humana. Agostinho apreciava também a moral dualista,
porque implicava uma moral muito alta para os eleitos: e para quem, como ele, a ela
aderia, era possível uma vida muito mais adequada à situação do tempo, sobretudo para
um homem jovem. Portanto, tornou-se maniqueu, convencido naquele momento de ter
encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e amor a Jesus Cristo. E teve
também uma vantagem concreta para a sua vida: de facto, a adesão aos maniqueus abria
perspectivas fáceis para fazer carreira. Aderir àquela religião que contava muitas
personalidades influentes permitia-lhe prosseguir a relação estabelecida com uma
mulher e continuar a sua carreira. Desta mulher teve um filho, Adeodato, por ele muito
querido, muito inteligente, que estará depois presente na preparação para o baptismo
junto do lago de Como, participando naqueles "Diálogos" que Santo Agostinho nos
transmitiu. Infelizmente o jovem faleceu prematuramente. Professor de gramática aos
vinte anos na sua cidade natal, regressou cedo a Cartago, onde foi um brilhante e
celebrado mestre de retórica. Todavia, com o tempo, Agostinho começou a afastar-se da
fé dos maniqueus, que o desiludiram precisamente sob o ponto de vista intelectual
porque não esclareceram as suas dúvidas, e transferiu-se para Roma, e depois para
Milão, onde na época residia a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio
graças ao interesse e às recomendações do prefeito de Roma, o pagão Símaco, hostil ao
Bispo de Milão, Santo Ambrósio.
Em Milão Agostinho adquiriu o costume de ouvir inicialmente para enriquecer a sua
bagagem retórica as lindíssimas pregações do Bispo Ambrósio, que tinha sido
representante do imperador para a Itália setentrional, e pela palavra do grande prelado
milanês o retórico africano sentiu-se fascinado; e não só pela sua retórica, sobretudo o
conteúdo atingiu cada vez mais o seu coração. O grande problema do Antigo
Testamento, da falta de beleza retórica, de elevação filosófica resolveu-se, nas
pregações de Santo Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento:
Agostinho compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus
Cristo. Encontrou assim a chave para compreender a beleza, a profundidade também
filosófica do Antigo Testamento e percebeu toda a unidade do mistério de Cristo na
história e também a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo Verbo
eterno que se fez carne.
À dos escritos dos filósofos Agostinho fez seguir-se a leitura renovada da Escritura e
sobretudo das Cartas paulinas. A conversão ao cristianismo, a 15 de Agosto de 386,
colocou-se no ápice de um longo e atormentado percurso interior, do qual falaremos
noutra catequese, e o africano transferiu-se para o campo a norte de Milão, nas
proximidades do lago de Como com a mãe Mónica, o filho Adeodato e um pequeno
grupo de amigos a fim de se preparar para o baptismo. Assim, aos trinta e dois anos,
Agostinho foi batizado por Ambrósio a 24 de abril de 387, durante a vigília pascal, na
Catedral de Milão.
Depois do batismo, Agostinho decidiu regressar à África com os amigos, com a ideia de
praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de Deus. Mas em Óstia, à
espera de partir, a mãe improvisamente adoeceu e pouco mais tarde faleceu, dilacerando
o coração do filho. Regressando finalmente à pátria, o convertido estabeleceu-se em
Hipona para ali fundar um mosteiro. Nesta cidade da beira-mar africana, apesar das suas
resistências, foi ordenado presbítero em 391 e iniciou com alguns companheiros a vida
monástica na qual pensava há tempos, dividindo os seus dias entre a oração, o estudo e a
pregação. Ele desejava estar só ao serviço da verdade, não se sentia chamado à vida
pastoral, mas depois compreendeu que a chamada de Deus era para ser pastor entre os
outros, e oferecer assim o dom da verdade aos demais. Em Hipona, quatro anos mais
tarde, em 395, foi consagrado Bispo. Continuando a aprofundar o estudo das Escrituras
e dos textos da tradição cristã, Agostinho foi um Bispo exemplar no seu incansável
compromisso pastoral: pregava várias vezes por semana aos seus fiéis, apoiava os
pobres e os órfãos, cuidava da formação do clero e da organização de mosteiros
femininos e masculinos. Em pouco tempo o antigo retórico afirmou-se como um dos
representantes mais importantes do cristianismo daquele tempo: muito ativo no governo
da sua diocese com notáveis influências também civis nos mais de 35 anos de
episcopado, o Bispo de Hipona exerceu grande influência na guia da Igreja católica da
África romana e mais em geral no cristianismo do seu tempo, enfrentando tendências
religiosas e heresias tenazes e desagregadoras como o maniqueísmo, o donatismo e o
pelagianismo, que punham em perigo a fé cristã no Deus único e rico em misericórdia.
E a Deus se confiou Agostinho todos os dias, até ao extremo da sua vida: atingido por
febre, quando havia três meses que Hipona estava assediada pelos vândalos invasores, o
Bispo narra o amigo Possídio na Vita Augustini pediu para transcrever em letras grandes
os salmos penitenciais "e fez pregar as folhas na parede, de modo que estando de cama
durante a sua doença os podia ver e ler, e chorava ininterruptamente lágrimas quentes"
(31, 2). Transcorreram assim os últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu a 28 de
Agosto de 430, quando ainda não tinha completado 76 anos. Dedicaremos os próximos
encontros às suas obras, à sua mensagem e à sua vicissitude interior.
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 16 de janeiro de 2008
Hoje, como na passada quarta-feira, gostaria de falar do grande Bispo de Hipona, Santo
Agostinho. Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear o sucessor. Por isso, a 26 de
setembro de 426, reuniu o povo na Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis
aquele que tinha designado para tal tarefa. Disse: "Nesta vida somos todos mortais, mas
o último dia desta vida é para cada indivíduo sempre incerto. Contudo, na infância
espera-se chegar à adolescência; na adolescência à juventude; na juventude à idade
adulta; na idade adulta à maturidade; na idade madura à velhice. Não se tem a certeza de
a alcançar, mas espera-se. A velhice, ao contrário, não tem diante de si outro período no
qual esperar; a sua própria duração é incerta... Eu por vontade de Deus cheguei a esta
cidade no vigor da minha vida; mas agora a minha juventude passou e eu já sou velho"
(Ep 213, 1). Nesta altura Agostinho pronunciou o nome do sucessor designado, o
sacerdote Heráclito. A assembleia explodiu num aplauso de aprovação repetindo vinte e
três vezes: "Deus seja louvado! Deus seja louvado!". Com outras aclamações os fiéis
aprovaram, além disso, quanto Agostinho disse depois sobre os propósitos para o seu
futuro: queria dedicar os anos que lhe restavam a um estudo mais intenso das Sagradas
Escrituras (cf. Ep 213, 6).
Na cidade tinha procurado refúgio, o qual, tendo-se reconciliado demasiado tarde com a
corte, procurava agora em vão impedir o caminho aos invasores. O biógrafo Possídio
descreve o sofrimento de Agostinho: "As lágrimas eram, mais do que o habitual, o seu
pão noite e dia e, tendo já chegado ao extremo da sua vida, mais que os outros arrastava
à amargura e ao luto a sua velhice (Vida, 28, 6). E explica: "De facto, aquele homem de
Deus via os massacres e as destruições das cidades; destruídas as casas no campo e os
habitantes mortos pelos inimigos ou afugentados e desorientados; as igrejas privadas
dos sacerdotes e dos ministros, as virgens sagradas e os religiosos dispersos por toda a
parte; entre eles, outros mortos sob as torturas, outros assassinados pela espada, outros
feitos prisioneiros, perdida a integridade da alma e do corpo e também a fé, reduzidos
em dolorosa e longa escravidão pelos inimigos" (ibid., 28, 8).
"Para a deposição do seu corpo informa Possídio foi oferecido a Deus o sacrifício, ao
qual nós assistimos, e depois foi sepultado" (Vita, 31, 5). O seu corpo, em data incerta,
foi transferido para a Sardenha e dali, por volta de 725, para Pavia, na Basílica de São
Pedro "in Ciel d'oro", onde repousa ainda hoje. O seu primeiro biógrafo tem sobre ele
este juízo conclusivo: "Deixou à Igreja um clero muito numeroso, assim como
mosteiros de homens e de mulheres cheios de pessoas dedicadas à continência sob a
obediência dos seus superiores, juntamente com as bibliotecas que contêm livros e
discursos seus e de outros santos, dos quais se conhece qual foi por graça de Deus o seu
mérito e a sua grandeza na Igreja, e nos quais os fiéis sempre o encontram vivo"
(Possídio, Vita, 31, 8). Trata-se de uma afirmação à qual nos podemos associar: nos seus
escritos também nós o "encontramos vivo". Quando leio os escritos de Santo Agostinho
não tenho a impressão que é um homem morto mais ou menos há mil e seiscentos anos,
mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que
fala a nós com a sua fé vigorosa e atual. Em Santo Agostinho que nos fala, fala a mim
nos seus escritos, vemos a atualidade permanente da sua fé; da fé que vem de Cristo,
Verbo Eterno Encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que esta fé
não é de ontem, mesmo tendo sido pregada ontem; é sempre de hoje, porque Cristo é
realmente ontem, hoje e para sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Assim nos
encoraja Santo Agostinho a confiar-nos a este Cristo sempre vivo e a encontrar assim o
caminho da vida.
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
Depois da Semana de oração pela unidade dos cristãos voltamos hoje à grande figura de
Santo Agostinho. O meu querido Predecessor João Paulo II dedicou em 1986, isto é, no
décimo sexto centenário da sua conversão, um longo e denso documento, a Carta
apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto "um
agradecimento a Deus pelo dom feito à Igreja, e através dela à humanidade inteira, com
aquela admirável conversão". Sobre o tema da conversão gostaria de voltar a refletir
numa próxima Audiência. É um tema fundamental não só para a sua vida pessoal, mas
também para a nossa. No Evangelho de domingo passado o próprio Senhor resumiu a
sua pregação com a palavra: "Convertei-vos". Seguindo o caminho de Santo Agostinho,
poderíamos meditar sobre o que foi esta conversão: uma coisa definitiva, decisiva, mas
a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda a nossa vida.
O ser humano ressalta depois Agostinho no De civitate Dei (XII, 27) é social por
natureza mas antissocial por vício, e é salvo por Cristo, único mediador entre Deus e a
humanidade e "caminho universal da liberdade e da salvação", como repetiu o meu
predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21): fora deste caminho, que
nunca faltou ao género humano afirma ainda Santo Agostinho na mesma obra "ninguém
jamais foi libertado, ninguém é libertado e ninguém será libertado" (De civitate Dei, X,
32, 2). Enquanto único mediador da salvação, Cristo é a cabeça da Igreja e a ela está
misticamente unido a ponto que Agostinho pode afirmar: "Tornamo-nos Cristo. De
facto, se ele é a cabeça, nós somos os seus membros, o homem total é Ele e nós" (In
Iohannis evangelium tractatus, 2 1, 8).
Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana está portanto estreitamente
relacionada com o conceito de Corpo de Cristo, fundada na releitura cristológica do
Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos
dá o seu Corpo e nos transforma em seu Corpo. Então, é fundamental que a Igreja, povo
de Deus em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja verdadeiramente
inserida em Cristo, o qual afirma Agostinho numa lindíssima página "reza por nós, reza
em nós, é rezado por nós; reza por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nossa
cabeça, é rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos portanto nele a nossa voz e
em nós a sua" (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).
Eis que Agostinho encontrou Deus e durante toda a sua vida fez experiência dele a
ponto que esta realidade que é antes de tudo encontro com uma Pessoa, Jesus mudou a
sua vida, assim como muda a de quantos, mulheres e homens, em todos os tempos têm a
graça de o encontrar. Rezemos para que o Senhor nos conceda esta graça e nos faça
encontrar assim a sua paz.
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
Depois da pausa dos exercícios espirituais da semana passada voltamos hoje à grande
figura de Santo Agostinho, sobre o qual já falei repetidamente nas catequeses da
quarta-feira. É o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras, e hoje pretendo
falar delas brevemente. Alguns dos escritos agostinianos são de importância
fundamental, e não só para a história do cristianismo mas para a formação de toda a
cultura ocidental: o exemplo mais claro são as Confissõess, sem dúvida um dos livros da
antiguidade cristã ainda hoje muito lido. Como diversos Padres da Igreja dos primeiros
séculos, mas em medida incomparavelmente mais ampla, também o Bispo de Hipona
exerceu de facto uma influência alargada e persistente, como é demonstrado pela
superabundante tradição manuscrita das suas obras, que deveras são numerosíssimas.
Ele mesmo as passou em revista alguns anos antes de morrer nas Retractationes e pouco
depois da sua morte elas foram cuidadosamente registradas no Indiculus ("elenco")
acrescentado pelo amigo fiel Possídio à biografia de Santo Agostinho, Vita Augustini. O
elenco das obras de Agostinho foi realizado com a intenção explícita de salvaguardar a
sua memória enquanto a invasão vândala se expandia em toda a África romana e conta
mil e trinta escritos enumerados pelo seu Autor, com outros "que não podem ser
numerados, porque não os enumerou". Bispo de uma cidade próxima, Possídio ditava
estas palavras precisamente a Hipona onde se tinha refugiado e assistira à morte do
amigo e quase certamente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho.
Hoje, são mais de trezentas as cartas do Bispo de Hipona que sobreviveram e quase
seiscentas as homilias, mas elas eram muitas mais, talvez até entre as três mil e as
quatro mil, fruto de quarenta anos de pregações do antigo reitor que tinha decidido
seguir Jesus e falar já não aos grandes da corte imperial, mas à simples população de
Hipona.
Apesar de toda a sua humildade, Agostinho certamente estava consciente da sua estatura
intelectual. Mas para ele, mais importante do que realizar grandes obras de elevado
significado teológico, era transmitir a mensagem aos simples. Esta sua intenção mais
profunda, que orientou toda a sua vida, manifesta-se numa carta escrita ao colega
Evódio, na qual comunica a decisão de suspender momentaneamente o ditado dos livros
do De Trinitate, " porque são demasiado cansativos e na minha opinião podem ser
entendidos por poucos; por isso, são mais urgentes os textos que, esperamos, venham a
ser mais úteis para muitos" (Epistulae, 169, 1, 1). Portanto, para ele era mais útil
comunicar a fé de modo compreensível para todos, do que escrever grandes obras
teológicas. A responsabilidade profundamente sentida em relação à divulgação da
mensagem cristã é sentida também na origem de escritos, como De catechizandis
rudibus, u ma teoria e também uma prática da catequese, ou o Psalmus contra partem
Donati. Os donatistas eram o grande problema da África de Santo Agostinho, um cisma
intencionalmente africano. Eles afirmavam: a verdadeira cristandade é africana.
Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o grande Bispo lutou durante toda a
sua vida, procurando convencer os donatistas que somente na unidade também a
africanidade pode ser verdadeira. E para se fazer compreender pelos mais simples, que
não conseguiam entender o latim erudito do reitor, disse: devo escrever também com
erros gramaticais, num latim muito simplificado. E fê-lo sobretudo neste Psalmus, uma
espécie de poesia simples contra os donatistas, para ajudar todas as pessoas a
compreenderem que unicamente na unidade da Igreja se realiza para todos realmente a
nossa relação com Deus e aumenta a paz no mundo.
Nesta produção destinada a um público mais vasto reveste uma importância particular o
número de homilias, muitas vezes pronunciadas "de modo improvisado", transcritas
pelos taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre elas,
sobressaem as lindas Enarrationes in Psalmos, m uito lidas na Idade Média.
Precisamente a prática de publicação dos milhares de homilias de Agostinho muitas
vezes sem o controle do autor explica a sua difusão e sucessiva dispersão, mas também
a sua vitalidade. Com efeito, imediatamente as pregações do Bispo de Hipona
tornavam-se, pela fama do seu autor, textos muito procurados e serviam também para
outros Bispos e sacerdotes como modelos, adequados a contextos sempre novos.
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
O retórico africano chegou a esta etapa fundamental do seu longo caminho graças à sua
paixão pelo homem e pela verdade, paixão que o levou a procurar Deus, grande e
inacessível. A fé em Cristo fez-lhe compreender que Deus, aparentemente tão distante,
na realidade não o era. Ele, de facto, tinha-se feito próximo de nós, tornando-se um de
nós. Neste sentido a fé em Cristo levou a cumprimento a longa pesquisa de Agostinho
sobre o caminho da verdade. Só um Deus que se fez "próximo", um de nós, era
finalmente um Deus ao qual se podia rezar, pelo qual e com o qual se podia viver. Este é
um caminho a percorrer com coragem e ao mesmo tempo com humildade, na abertura a
uma purificação permanente da qual cada um de nós tem sempre necessidade. Mas com
aquela Vigília pascal de 387, como dissemos, o caminho de Agostinho não estava
concluído. Tendo regressado à África e fundado um pequeno mosteiro retirou-se aí com
poucos amigos para se dedicar à vida contemplativa e de estudo. Este era o sonho da sua
vida. Agora era chamado a viver totalmente pela verdade, com a verdade, na amizade de
Cristo que é a verdade. Um sonho agradável que durou três anos, até quando foi
consagrado sacerdote, a seu mau grado, em Hipona e destinado a servir os fiéis,
continuando a viver com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de todos. Isto era para ele
muito difícil, mas compreendeu desde o início que só vivendo para os outros, e não
simplesmente para a sua contemplação particular, podia realmente viver com Cristo e
por Cristo. Assim, renunciando a uma vida apenas de meditação, Agostinho aprendeu,
muitas vezes com dificuldade, a pôr à disposição o fruto da sua inteligência em
benefício do próximo. Aprendeu a comunicar a sua fé ao povo simples e a viver assim
para ela naquela que se tornou a sua cidade, desempenhando incansavelmente uma
atividade generosa e difícil que descreve do seguinte modo num dos seus belos sermões:
"Continuamente pregar, discutir, repreender, edificar, estar à disposição de todos é uma
grande tarefa, um grande peso, uma enorme fadiga" (Serm. 339, 4). Mas ele assumiu
sobre si este peso, compreendendo que precisamente assim podia estar mais próximo de
Cristo. Compreender que se chega aos outros com simplicidade e humildade, foi esta a
sua verdadeira e segunda conversão.
Mas há uma última etapa do caminho agostiniano, uma terceira conversão: a que o
levou todos os dias da sua vida a pedir perdão a Deus. Inicialmente tinha pensado que
quando fosse batizado, na vida de comunhão com Cristo, nos Sacramentos, na
celebração da Eucaristia, teria alcançado a vida proposta pelo Sermão da montanha: a
perfeição doada no baptismo e reconfirmada na Eucaristia. Na última parte da sua vida
compreendeu que o que tinha dito nas suas primeiras pregações sobre o Sermão da
Montanha, isto é, que agora nós como cristãos vivemos este ideal permanentemente era
errado. Só Cristo realiza verdadeira e completamente o Sermão da montanha. Nós temos
sempre necessidade de ser lavados por Cristo, que nos lava os pés, e por Ele renovados.
Temos necessidade de uma conversão permanente. Até ao fim temos necessidade desta
humildade que reconhece que somos pecadores a caminho, enquanto o Senhor nos dá a
mão definitivamente e nos introduz na vida eterna. Agostinho faleceu com esta última
atitude de humildade, vivida dia após dia.
Convertido a Cristo, que é verdade e amor, Agostinho seguiu-o toda a vida e tornou-se
um modelo para cada ser humano, para nós todos em busca de Deus. Por isto quis
concluir a minha peregrinação a Pavia recomendando idealmente à Igreja e ao mundo,
diante do túmulo deste grande apaixonado de Deus, a minha primeira Encíclica,
intitulada Deus caritas est. De facto, ela deve muito, sobretudo na sua primeira parte, ao
pensamento de Santo Agostinho. Também hoje, como no seu tempo, a humanidade
precisa de conhecer e sobretudo viver esta realidade fundamental: Deus é amor e o
encontro com ele é a única resposta às inquietações do coração humano. Um coração
habitado pela esperança, talvez ainda obscura e inconsciente em muitos dos nossos
contemporâneos, mas que para nós cristãos abre já hoje ao futuro, a ponto que São
Paulo escreveu que "na esperança somos salvos" (Rm 8, 24). Quis dedicar à esperança a
minha segunda Encíclica, Spe salvi, e também ela é amplamente devedora a Agostinho
e ao seu encontro com Deus.
Num bonito texto Santo Agostinho define a oração como expressão do desejo e afirma
que Deus responde alargando a Ele o nosso coração. Por nosso lado, devemos purificar
os nossos desejos e as nossas esperanças para acolher a doçura de Deus (cf. In I Ioannis,
4, 6). De facto, só ela, abrindo-nos também aos outros, nos salva. Rezemos, portanto,
para que na nossa vida nos seja concedido todos os dias seguir o exemplo deste grande
convertido, encontrando como ele em cada momento da nossa vida o Senhor Jesus, o
único que nos salva, purifica e concede a verdadeira alegria, a verdadeira vida.
Na vida de cada um de nós existem pessoas muito queridas, das quais nos sentimos
particularmente próximos, algumas já estão nos braços de Deus, outros ainda partilham
conosco o caminho da vida: são os nossos pais, os parentes, os educadores; são pessoas
às quais fizemos bem ou das quais recebemos o bem; são pessoas com as quais sabemos
que podemos contar. É importante, então, também ter alguns "companheiros de viagem"
no caminho da nossa vida cristã: penso no Diretor Espiritual, no Confessor, em pessoas
com as quais se pode compartilhar a própria experiência de fé, mas penso também na
Virgem Maria e nos Santos. Todo mundo deveria ter algum Santo que lhe fosse
familiar, para senti-lo próximo com a oração e a intercessão, mas também para imitá-lo.
Desejo convidar-vos, portanto, a conhecer mais profundamente os Santos, começando
por aqueles de que levais o nome, lendo-lhes a vida, os escritos. Tenhais certeza de que
se tornarão bons guias para amar ainda mais o Senhor e válidos auxílios para o vosso
crescimento humano e cristão.
Como sabeis, também eu sou ligado de uma forma especial a algumas figuras dos
Santos: entre essas, assim como a de São José e São Bento, do qual levo o nome, estão
outros, como Santo Agostinho, que tive o grande dom de conhecer, por assim dizer,
proximamente através do estudo e da oração e que se tornou um com "companheiro de
viagem" na minha vida e no meu ministério. Gostaria de sublinhar uma vez mais um
aspecto importante da sua experiência humana e cristã, atual também na nossa época em
que o relativismo parece ser, paradoxalmente, a "verdade" que deve guiar o pensamento,
as escolhas, os comportamentos.
Santo Agostinho é um homem que nunca viveu com superficialidade; a sede, a busca
inquieta e constante da Verdade é uma das características básicas de sua existência; não,
porém, das "pseudoverdades", incapazes de dar paz duradoura ao coração, mas daquela
Verdade que dá sentido à existência e é "a casa" em que o coração encontra serenidade e
alegria. O dele, nós sabemos, não foi um caminho fácil: pensou encontrar a Verdade no
prestígio, na carreira, no possuir das coisas, nas vozes que lhe prometiam felicidade
imediata; cometeu erros, passou por sofrimentos, enfrentou reveses, mas nunca se deu
por vencido, por satisfeito com aquilo que lhe dava somente um vislumbre de luz; soube
olhar no íntimo de si mesmo e percebeu, como escreve nas Confissões, que aquela
Verdade, aquele Deus que procurava com as suas forças era mais íntimo a si do que ele
mesmo, sempre estava ao seu lado, nunca o havia abandonado, estava na expectativa de
poder entrar definitivamente em sua vida (cf. III, 6, 11, X, 27, 38) . Como disse em
comentário sobre o recente filme acerca de sua vida, Santo Agostinho compreendeu, em
sua incansável busca, que não é ele que havia encontrado a Verdade, mas a Verdade
mesma, que é Deus, perseguiu-o e o encontrou (cf. L'Osservatore Romano, quinta-feira,
4 de setembro de 2009, p. 8). Romano Guardini, comentando um trecho do terceiro
capítulo das Confissões, afirma: Santo Agostinho compreendeu que Deus é "a glória que
nos coloca de joelhos, a bebida que sacia a sede, tesouro que nos torna felizes, […ele
tinha] a pacificadora certeza de quem finalmente entendeu, mas também a felicidade do
amor que sabe: Isso é tudo e me basta" (Pensatori religiosi, Brescia, 2001, p. 177).
Também nas Confissões, no Livro nono, o nosso Santo relata uma conversa com a mãe,
Santa Mônica – cuja memória é celebrada na próxima sexta-feira, um dia depois de
amanhã. É uma cena muito bela: ele e a mãe estão em Ostia, em um albergue, e da
janela veem o céu e o mar, e transcendem céu e mar, e por um momento tocam o
coração de Deus no silêncio das criaturas. E aqui aparece uma ideia fundamental no
caminho rumo à verdade: as criaturas devem ficar em silêncio quando se deve dar lugar
ao silêncio em que Deus pode falar. Isso é sempre verdadeiro também em nosso tempo:
por vezes, tem-se uma espécie de medo do silêncio, do recolhimento, do pensar nas
próprias ações, no sentido profundo da própria vida, frequentemente prefere-se viver
somente o momento presente, iludindo-se que traga felicidade duradoura; prefere-se
viver, porque parece mais fácil, com superficialidade, sem pensar; tem-se medo de
buscar a Verdade, ou talvez tenha-se medo de que a Verdade nos encontre, nos apanhe e
mude a vida, como fez com Santo Agostinho.
Queridos irmãos e irmãs, desejo dizer a todos, também àqueles que estão em um
momento difícil em sua caminhada de fé, a quem participa pouco na vida da Igreja ou a
quem vive "como se Deus não existisse", que não tenham medo da Verdade, não
interrompam nunca o caminho rumo a ela, não deixem de procurar a verdade profunda
sobre si mesmos e sobre as coisas com o olho interior do coração. Deus não deixará de
dar Luz para fazer ver e Calor para fazer sentir no coração que nos ama e que deseja ser
amado.