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(()§ PlENSAIDO~§

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NICOLAU MAQUIAVEL

O PRÍNCIPE
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Traduções de Lívm XAVIER

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EDITOR: VICTOR CIVIT A



Títulos originais:

· li Principe.
Dei modo d i trattàre i popoli deli a Vai d ichiana ribellati.
Dalla Legazione al Duca Valentino.
Descrizio.ne dei modo tenuto dal Duca Valentino nello ammazzare Vitellozzo Vitelli, Oliverotto
da Fermo, il Signor Pago lo e il Düca di Gravina Orsini.
Discorso sopra le cose di Alemagna e sopra l'lmperatore.
Rapporto di cose della Magna.
Ritratto deite cose dell'Alemagna.
Delta natura dei francesi.
Ritratto della cose di Francia.
Discorso facto ai Magistrato dei Dieci sopra le cose di Pisa.
Discorso sulla provisione dei danaio.
Sommario deite cose deli~ città di Lucca.

I.ª edição -Janeiro 1973

o Copyright desta edição, 1973,


Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Traduções publicadas sob licença de
Athena Editora, São Paulo.
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SUMÁRIO

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O PRÍNCIPE

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·Nicolau Maquiavel

Ao magnífico Lorenzo, filho de Piero de Médicis

As mais das vezes, costumam aqueles que df!sejam granjear as gra-


ças de um príncipe trazer-lhe os objetos_ que lhes são mais caros, ou
com os quais o vêem deleitar-se; assim, muitas vezes, eles são presen-
teados com cavalos, armas; tecidos de ouro, pedras preciosas e outros
ornamentos dignos de sua grandeza. Desejando eu oferecer a Vossa
Magnificência um testemunho qualquer de minha obrigação, não
achei, entre os meus cabedais, coisa que me seja mais cara ou que
tanto estime quanto o conhecimento das ações dos grandes homens
apreendido por uma longa experiência qas coisas modernas e uma
contínua lição das antigas; as quais, tendo eu, com grande diligência, ·
longamente cogitado, examinando-as, agora mando a Vossa Magnifi-
cência, reduzidas a um pequeno volume.
E conquanto julgue indigna esta obra da presença de Vossa Magni-
ficência, não confio menos em que, por sua humanidade, deva ser
aceita, considerado que não lhe posso fazer maior presente que lhe
dar a faculdade de poder 'em tempo muito breve aprender tudo aquilo
. que, em tantos anos e à 'custa de tantos incômodos e perigos, hei
conhecido. Não' ornei esta obra e nem a enchi de períodos sonoros ou
de palavras ·empoladas e floreios ou de qualquer outra lisonja ou
ornàmento extrín.seco com que muitos costumam ·descrever ou ornar
as próprias obras; porque não quis que coisa alguma seja seu ornato
e a faça agradável senão a variedade da mçi,téria e a gravidade do
assunto. Nem quero que se repute presunção o fato de um homem de
baixo e ínfimo estado discorrer e regular sobre o .governo dos prínci-
pes; pois os que desenham os contornos dos países se colocam na
10 f MAQUIAVEL

planície para considerar a natureza dos montes, e para considerar a


das planícies ascendem aos montes, assim também para conhecer
bem a natureza dos povos é necessário ser príncipe, e para conhecer
a dos príncipes é necessário ser do povo.
\

Tome, pois, Vossa Magnificência este pequeno presente com a


intenção com que eu o màndo. Se esta obrafor diligentemente consi-
derada e lida, Vossa Magnificência conhecerá o meu extremo desejo
que alcance aquela grandeza que a Fortuna e outras qualidades lhe
prometem. E se Vossa Magnificência, do ápice da sua altura, alguma
vez volver as olhos para baixo, saberá quão sem razão suporto uma
grande e contínua má sorte.
CAPITULO I

De quantas espécies são os principados e de quantos


modos se adquirem .

Todos os Estados, todos os bros acrescentados a um Estado


domínios que tem havido e que que um príncipe adquire por
. há sobre os homens foram e são herança, como o reino de Nápo-
repúblicas ou principados. Os les ao rei da Espanha. Estes
principados ou são heredi_tários, domínios assim adquiridos são,
cujo senhor é príncipe pelo san- ou acostumados à sujeição a um
gue, por longo tempo, ou são príncipe, qu são livres, e são
novos. Os novos são totalmente adquiridos com tropas de outrem
novos, como Milão com Fran- ou próprias, pela fortuna ou pelo
cesco Sforza, ou são como mem- mérito.
CAPÍTULO II

Dos principados hereditários

Não tratarei das repúblicas, seja, o readquire, por pior que


pois em outros lugares falei ares- seja o ocupante.
peito . delas 1 • Referir-me-ei so- Temos na Itália, por exemplo,
mente aos principados, e procu- o Duque de Ferrara 2 , o qual
rarei discutir e mostrar como resistiu ao ataque dos venezianos
esses principados hereditários em 1484, e aos do Papa Júlio em
podem ser governados e man~i­ 1510, somente por ser antigo o
dos. Digo, assim, que nesta espé- domínio da sua família. Porque o ·
cie de Estados afeiçoados à famí- príncipe· natural do país tem
lia de seu príncipe, são muito menores ocas1oes e menor neces-
menores as dificuldades de man- sidade de ofender. É claro, pois,
tê-los, pois basta somente que que seja mais qu.erido. Se ex-
não seja abandonada a praxe dos traordinários defeitos nao o
antecessores, e depois se contem- fazem odiado, é razoável que seja
porize com as situações particu- naturalmente benquisto· da sua
lares, de modo que, se tal prín- gente. E na antiguidade e conti-
cipe é de engenho ordinário,· nuação do domínio gastam-se a
sempre se manterá no seu Esta- memória. e as causas das inova-
do, se não houver uma força ções, · pois uma transformação
extraordinária· e exc~siva que o poderá ser sempre acompanhada
prive deste; e, mesmo que assim da edificação qe outra.

Maquiavel refere-se aqui à sua obra "Dis- 2 Ver no índice dos . nomes citados o nome

corsi sopra la prima deca di Tito Livio". D'Este.


CAPÍTULO III

Dos principados mistos

Mas a dificuldade consiste nos aqueles que se sentem ofendidos


principados novos. Primeiro, se pelo fato de ocupares o princi-
não se trata de principado intei- pado; e também não pódes con-
ramente novo, mas sim de mem- servar como amigos aqueles que
bro ajuntado a um Estado heredi- te puseram ali, pois estes não
tário (caso em que este pode podem ser satisfeitos como pen-
chamar-se um principado misto), savam. Não poderás usàr contra
. - . .
as suas vanaçoes nascem pnnc1- eles remédios fortes, obrigado
palmente de uma dificuldade que estás para com ·eles, pois
comum a todos os principados mesmo que sejas fortíssimo nos
novos, a saber,. que os homens exércitos, necessitas do favor dos
mudam de boa vontade de se- habitantes para entrar numa pro- ·
nhor, supondo melhorar, e esta víncia. Por isso, Luís XII, rei de
crença os faz tomar armas contra França, ocupou Milão rapida-
o senhor atual. De fato, enga- ·mente e rapidamente a perdeu, .
nam-se e vêem por experiência bastando para isso as forças de
própria havere{n piorado. Isso Ludovico Sforza, pois a popula-
.depende de outra necessidade ção que havia aberto as portas ao
natural e ordinária que faz com rei da França, caindo em si do
que llffi novo príncipe careça seu engano quanto ao bem que
ofender os novos súditos com a ~sperav daquele príncipe, não o
sua tropa e por meio de infindas pôde suportar. É bem verdade
injúrias, que acarreta uma recen- · que, sertdo conquistados segunda
te conquista. .vez, os países rebelados se per-
Assim, são teus inimigos todos dem com mais dificuldade: o
16 MAQUIAVEL

príncipe, tendo por pretexto a dia 3 , e, ainda que haja alguma


rebelião, he.sita menos no assegu- dessemelhança na língua, os cos-
rar a punição dos revoltosos, tumes são idênticos, de sorte que
esclarecer as suspeitas, prover às esses Estados podem viver juntos
suas próprias fraquezas. Assim, muito facilmente. O conquista-
para que a França perdesse dor,· para mantê-los, deve ter
Milão, foi bastante a primeira duas regras: primeiro, fazer ex-
vez que o duque Ludovico amea- tinguir o sangue do antigo prínci-
çasse as fronteiras, mas a segun- pe; segundo, não alterar as leis
da vez foi necs~ário que toda a nem os impostos. De tal modo,
gente fosse inimiga e que os exér- num prazo muito breve_, ter-se-á
citos franceses fossem aniqui- feito a união ao antigo· Estado.
lados ou expulsos da Itália. De- Mas, quando se conquista uma
corre isso das referidas razões. província de língua, costumes e
Não obstante, foi-lhe to'mada pri- leis diferentes, começam então as
meira e segunda ve_z. As razões dificuldades, sendo necessana
gerais da primeira estão expos- uma grande habilidade e boa
tas: ·resta discorrer sobre as da sorte para poder conservá-la. Um
segunda, e ver que remédios hou- dos meios mais eficazes é ir o
vera a França de empregar para príncipe habitá-la. Se se está.pre-
manter melhor a conquista. sente, vêem-se nascer as desor-
Estes Estados conquistados e dens, e pode-se remediá-las com
anexados a um Estado antigo, se presteza; no caso contrário, só se
são da mesma província e da terá notícia .. delas quando ·não
mesm'1; língua, são facilmente houver mais remédio. Além
sujeitos, máxime quando não disso, a província conquistada
estão acostumados a viver livres. não será espoliada pelos lugar -
Basta, para que se· assegure a tenentes. Os súditos ficarão satis-
posse desses Estados, fazer desa- feitos com o mais fácil recurso ao
parecer a linha do príncipe que
3 A Normandia uniu-se à coroa de França em
os dominava, · pois mantendo-se. 1204; ·a Gasconha em 1453; a Borgonha em
nas outras coisas a condição 1477, pela morte de Carlos, o Temerário; a
Bretanha uniu..:se virtualmente à coroa pelo
antiga, e não havendo dispàri- casamento de Ana da Bretanha com Carlos
dade de costumes, os homens VIII, pois cabia àquela a sucessão, por morte
do último representante masculino da linha di-
vivem calmamente. Assim se viu reta da casa reinante. Oficialmente, porêm, foi
anexada à coroa de França por ocasião do
na França no caso da Borgonha, casamento de Cláudia, filha de Ana e Luís
Bretanha, Gasconha e Norman- XII, com Francisco I.
O PRÍNCIPE 17

príncipe: assim, terão maiores Mas conservando, em vez de


razões de amá-lo, se é o caso, ou colônias, força armada, gasta-se
de temê-lo. Os ataques externos muito mais, e tem de ser despen-
serão mais custosos e o príncipe dida nela tóda a receita da
só muito · dificilmente perderá provínc~a. A conquista torna-se,
essa província. pois, perda, e ofende muito mais,
Outro remédio eficaz é organi- porque prejudica todo o Estado
zar colônias, em um ou dois luga- com as mudanças de alojamento
res, as quais serão uma espécie das tropas. Estes incômodos
de grilhões postos à província, todos os sentem, e todos por fim
pois é necessário fazer isso, ou se tornam inimigos que podem
ter lá muita força armada. Com fazer mal, ainda batidos na pró-
as colônias não se gasta muito, e pria casa. Por todas as razões,
sem grande despesa podem ser pois, é inútil conservar força
feitas e mantidas. Os . únicos armada, ao contrário de manter
prejudicados com elas serão colônias.
aqueles a quem se tomam os Também numa província dife-
campos e as casas, para dá-los rente por sua língua, costumes e
aos novos habitantes. Mas os leis, faça-se o príncipe de chefe e
prejudicados sendo minoria na defensor dos mais fracos, e trate
população do Estado, e dispersos de enfraquecer os poderosos da
e reduzidos à pobreza, não pode- própria província, além de guar-
rão causar dano ao príncipe, e os dar-se de que entre por acaso um
outros que não foram prejudi- estrangeir() tão poderoso quanto
cados deverão por isso aquietar- ele.
se, por medo de que lhes acon- Pois acontecerá sempre que os
teça o mesmo. Enfim, acho que habitantes da província, movidos
essas colônias não custaJ:!l muito· pela ambição ou pelo temor' cha-
e são fiéis; ofendem menos, e mem estrangeiros poders~
também os ofendidos não podem Assim, os etólios chamaram à
ser nocivos ao príncipe, como se Grécia os romanos, que sempre
explicou acima. Deve-se notar foram chamados pelos naturais
que os homens devem ser mima- das ·províncias conquistadas.
dos ou exterminados, pois se se E a ordem das coisas é que
vingam de ofensas leves, das gra- quando um estrangeiro poderoso
ves já não podem fazê-lo. Assim, chegue a uma província, todos
a injúria que se faz deve ser tal, aqueles que se acham enfraque-
que não se tema a vingança. cidos lhe dêem adesão, movidos
18 MAQUIAVEL

pela inveja do que lhes é senhor. conservar domínio algum. Por-


·Por isso mesmo, não custa traba- que os romanos nestes casos fize-
lho algum lhes alcançar o apoio; ram o que tódo príncipe prudente
e de boa vontade farão bloco de- deve fazer: não só remediar o
pois com o Estado conquistado. presente, mas prever os casos
Há o perigo de ficarem eles futuros e preveni-los com toda a
muito fortes e com demasiada perícia, de forma que se lhes
autoridade; facilmente então fica- possa facilmente levar corretivo,
~riam árbitros da província, aba- e não deixar que se aproximem
tendo os poderosos com as pró- os ·acontecimentos, pois deste
prias . forças do conquistador. modo o remédio não chega a
Aquele que não se dirigir bem, a tempo, tendo-se tornado incurá-
este respeito, perderá depressa a vel a moléstia. Da tísica dizem os
sua conquista, e enquanto não a médicos que, a princípio, é fácil
perder terá infindas dificuldades de curar e difícil de conhecer,
e dissabores. mas com o correr dos tempos, se
Os romanos, nas províncias não foi reconhecida e medicada,
que conquistaram, observaram torna-se fácil de conhecer e difícil
boa política a respeito. Fizeram de curar. Assim se dá com as coi-
colônias, fomentaram os menos sas do Estado: conhecendo-se ·os
poderosos sem aumentar a força males com antecedência, o que
destes, abateram os mais podero- não é dado senão aos homens
sos, e não deixaram que os prudentes, rapidamente são cura-
estrangeiros poderosos tomassem dos: mas quando, por se terem
força. Sirva-me de exemplo a ignorado, se têm deixado aumen-
província da · Grécia. Roma sus- tar, a· ponto de serem conhecidos
tento.u os aqueus e os etólios, de todos, não haverá mais remé-
abateu o reino dos macedônios, dio àqueles males.
expulsou Antíoco. Mas nem os Os romanos, vendo de longe as
méritos dos primeiros e dos se- perturbações; sempre as remedia-
gundos permitiram-lhes aumen- ram e nunca as deixaram seguir o
tar os. seus domínios; também .seu curso, para evitar guerras,
Filipe 4 não persuadiu os roma- pois sabiam que a guerra n;ão se
nos de que deviam ser seus ami- evita, mas se é protelada redunda.
gos, nem a Antíoco deixaram sempre em proveito de outros.
Assim, empreenderam a guerra
4
Ver no índice dos nomes citados o nome de
contra Filipe e Aritíoco, na Gré-
Filipe V, rei da Macedonia. cia, para.não ter de fazê-la na Itá-
O PRÍNCIPE 19

lia; podiam tê-la evitádo, mas Conquistada pois a Lombardia, o


não o quiseram. Não lhes agra- rei recuperou a reputação que
dava fiar-se no tempo para resol- Carlos perdera; Gênova cedeu,
ver as questões, como aos sábios Os florentinos tornaram-se seus
·da nossa época, .mas só se louva- amigos, o Marquês de Mântua, o
vam na própria virtude e prudên- Duque .de Ferrara, Bentivoglio, a
cia, porque o tempo leva por Senhora de Forll, o Senhor de
diante todas as coisas, e pode Faenza, de Pescara, de Rimini,
mudar o bem em mal e frans-· de Camerino, de Piombino, os
formar o mal em bem. luqueses, os pisões e sieneses,
Mas voltemos à França e exa- todos foram ao encontro da· sua
minemos como procedeu ela em
/
amizade. Os venezianos puderam
situações semelhantes. Falarei de então considerar a temeridade da
Luís 5 e não de Carlos 6 , pois própria resolução, pois para ad-
aquele conservou por mais tempo quirir dois tratos de terra, na
possessões na Itália, e se viu me- Lombardia, fizeram o rei senhor·
lhor a medida dos seus progres- de dois terços da Itália. Veja-se
sos. Vereis que ele fez o contrário agora quanto era fácil ao rei
do que se deve fazer para conser- manter na Itália a sua reputação,
var a conqui_»ta de um Estado se, tendo observado as regras
diferente. O Rei Luís foi levado à referidas, tivesse assegurado a
Itália pela ambição dos venezia- defesa de todos aqueles amigos
nos, que quiseram, por esse meio, seus, os quais, sendo numerosos,
ganhar o Estado· da Lombardia. careciam todos de estar com ele.
Não quero censurar o partido to- Por meio de tais aliados, o Rei'
mado pelo rei. Quando tomou pé Luís poderia facilmente assegu-
na Itália, e não tendo amigos rar-se contra aqueles que se ti-
nesta província, e antes pelo nham conservado ·fortes.
contrário, pelos precedentes do Mas logo que se achou em
Rei Carlos, sendo-lhe trancadas Milão, fez justamente o contrá-
todas as portas, foi ele forçado a rio, ajudando o Papa Alexandre
ter as amizades que podia. E a ocupar a Romanha. Nem pen-
seria bem sucedido na decisão sou que, com essa deliberação, se
tomada, se em outr9s manejas enfraquecia a si pr6prio, pois
não tivesse praticado algum erro. afastava dele os amigos e aqueles
que se lhe tinham lançado ao
5 Luís XII.
seio, e fortificava a Igreja, ajun-
6 Carlos VIII. . tando ao poder espiritual, que já
20 MAQUIAVEL

lhe dá tanta autoridade, uma tão na Itália, a divisãD de Nápoles


grande cópia de poder temporal. · merece censura, porque não t~m
Cometido o primeiro erro, foi a escusa da necessidade. 1

compelido a continuar prati- O Rei Luís cometera estes


cando outros, a ponto de, para cinco erros: tinha abatido os
pôr termo à ambição de Alexan- menos poderosos, aumentado a
dre, e para que este não se tor- potência de um poderoso na Itá-
:h asse senhor da Toscana, ser lia, trazido um estrangeiro pode-
obrigado a vir pessoalmente à rosíssimo, não tirÍha vindo habi-
Itália. Não lhe bastou fazer forte tar a Itália e nao mandou
a Igreja e perder os próprios ami- colônias para aí. Estes erros, em
gos; por querer o reino de Nápo- . vida sua, podiam não prejudicá-
les, dividiu-o com o rei da Espa- lo, se não tivesse cometido o
nha 7 • E de árbitro da Itália como sexto - o de se apoderar de
dantes, para aí levou um sócio ao territórios dos venezianos, pois,
qual os descontentes e ambicio- mesmo que. não houvesse fortifi-
sos recorressem contra ele pró- cado a Igreja e não houvesse
prio. E, em vez de deixar naquele intrometido a Espanha nas coisas
reino um rei que lhe fosse sujeito, da Itália, era razoável diminuí-
tirou-o para colocar um que o los. Mas, tendo tomado essas
podia expulsar dali. deliberações, não devia o rei con-
O desejo de conquistar é coisa sentir na ruína deles, pois manti-
verdadeiramente natural e ordi- nham a distância os que queriam
nária e os homens que podem conquistar a Lombardia. E isso
fazê-lo serão sempre louvados e · porque, enquanto os venezianos
não censurados. Mas se não tivessem força, não teriam con-
podel)l e querem fazê-lo, de qual- sentido em que outros senão eles
quer modo, é que estão em erro, e próprios tivessem o domíniá da
são merecedores de censura. Se a província, e os outros não que-
França tinha forças para assaltar riam tirá-la da França para dá-la
Nápoles, devia fazê-lo; se não aos venezianos. E se alguém dis-
podia, não devia dividi-la. E se a sesse: o Rei Luís cedeu a Roma-
divisão que fez. da Lombardia nh a a Alexandre e um reino à .
com os venezianos mereceu ser Espanha, para evitar uma guerra
desculpada, pois com ela pôs pé - respondo que não se deve cou-
sentir em um mal para evitar
7
Ver no índice dos nomes citados o nome ·
uma guerra, pois não se evita esta
Fernando, o Católico. e sim apen~s se adia, para pró-
O PRÍNCIPE 21

pria desvantagem. Se alguns ale- nome popular· de César Borgia,


gassem a palavra que o rei deu ao filho do Papa Alexandre - ocu-
papa de empreender aquela con- pava a Romanha, dizendo-me ele
quista em troca da dissolução do que os italianos não entendiam
seu matrimônio .e do chapéu de guerra, expliquei-lhe que os
cardinalício ao arcebispo de franceses não entendiam do Esta-
Ruão, respondo mais adiante do, pois se entendessem não te-
cómo, na minha opinião, se deve riam consentido à Igreja tanta
guardar a palavra dos príncipes.· grandeza. E por experiência viu-
Assim pois, o Rei Luís perdeu a se que a grandeza, na Itália, da
Lombardia por não haver obser- Igreja e da.Espanha, foi obra da
vado nenhum dos princípios ob- França. E a ruína desta foi cau-
servados pelos outros que con- sada por ambas.
quistaram províncias e as Conclui-se· daí uma regra
conservaram. Não é milagre isso, geral, que nunca ou muito rara-
mas em Nantes, ao arcebispo de mente falha: quando alguém é
. Ruão 8 , quando Valentino causa do poder de outrem, arruí-
na-se, pois aquele poder vem de
8 Ver no índice dos nomes citados o nome de
astúcia ou força, e qualquer des-
Amboise (d'). tas· é suspeita ao novo poderoso.
CAPÍTULO IV

Por que razão o reino de Dario, ocupado


por Alexandre, não se rebelou
contra os sucessores deste

Consideradas as dificuldades daquele, mas por antiguidade de


com que se há de contar para sangue, têm essa qualidade.
conservar um Estado recém-con- Estes barões possuem o domí-
quistado, poderia parecer razão nio e súdito~ ~tóprios, os quais
de espanto o fato de que, tendo os reconhecem'· como senhores e
Alexandre Magno ficado, em lhes votam natural afeição. Na-
poucos anos~ senhor da Ásia, e queles Estados· que são governa-
morrido logo depois de ocupar dos por um príncipe com seus
aqueles Estados, estes não se te- servidores, o senhor tem mais
nham rebelado como seria razoá- autoridade, porque ei:n toda a sua
vel. Os sucessores de Alexandre, província não há quem seja reco-
contudo, se mantiveram e não nhecido como superior a ele. E se
tiveram para isso outra dificul- obedecem a outrem, fazem-no
dade senão a que entre eles sur- por força dos cargos que exerce e
giu da própria ambição. Replica- não lhe dedicam a menor estima.
rei que os principados cuja Os exemplos destas duas espé-
memória se conserva foram go- cies· de governo são, em nossos
vernados de dois modos diversos: tempos - o grão-turco e o reina-
ou por um príncipe ajudado por do de França. O governo turco é
ministros que no governo não são exercido por um senhor que, divi-
senao servos que o exercem so- dindo o seu reino em sandjaks,
mente por graça . e concessão do dispõe de servidores que muda e
senhor; ou por um príncipe e desloca como bem lhe parece. O
barões, os quais iião por graça rei de França está colocado em
24 MAQUIAVEL

meio de uma multidão de senho- com o sangue do príncipe. Extin-


res cujo domínio é tradicional e to este, não restaria mais a quem
que são, em seus distritos, reco- temer, pois os outros não têm
nhecidos e amados por seus súdi- domínio sobre o povo. E, assim
tos. São poderosos e o rei não como o vencedor, antes da vitó-
pode privá-los de suas regalias, ria, nada podia esperar dele, não
sem grave perigo para ele pró- deve temê-lo depois da conquista.
prio. Quem considera, pois, estas Acontece o contrário nos rei-
duas situações, encontrará difi- nos governados como a França.
culdade em conquistar o Estado É possível entrar-se com Jacili-
turco. Sem embargo, uma vez dade, conseguindo aliança com
vencedor, ser-lhe-á muito fácil algum barão do reino, pois sem-
.conservá-lo. A causa das dificul- pre se encontram descontentes ou
dades de ocupá-lo está em que gente desejosa de fazer inova-
não é possível ser chamado por ções. Tais elementos poderiam,
príncipes daquele reino, nem es- pelos motivos expostos, abrir.,.te
perar que se possa facilitar a caminho naquele reino e facili-
empresa com a rebelião daqueles tar-te a.vitória. Mas, depois, para
que lhes estão ao redor. E isso, . te manteres, aparecem inúmeras
em virtude das razões já aponta- dificuldades criadas não só pelos
das. É que, sendo todos escravos,
que oprimiste, como também
mais dificilmente podem ser cor-
pelos que de início auxiliaram a
rompidos,· e, qu.ando se corrom-
tua empresa. Não é suficiente o
pessem.; poucas vantagens se po-
sangue do príncipe. Permanecem
deriam obter, uma vez que eles
aqueles senhores, barões podero-
não poderiam arrastar a massa
popular, o que se explica também sos, que se tornam ·cabeças de
pelas razões enunciadas. Con- novas rebeliões. E, nã.o sendo
clui-se daí que quem se puser em possível nem contentá-los nem
marcha contra a Turquia precisa fazê-los desaparecer, p.erderás o
preocupar-se com o encontrá-la Estado na primeira oportunidade
unida, convindo-lhe mais confiar que se lhes apresente.
nas próprias ·forças do que nas Agora, se se considerar a natu-
desordens dos outros. Mas, ven- reza do governo de Dario, encon-
cida e desorganizada na luta, de trar-se-á semelhança com a do
modo que ·não lhe fosse possível sultão da Turquia. Se a Alexan-
refazer os exércitos, não seria· dre foi necessário desbaratar o
necessário preocupar-se senao inimigo em bloco, depois da vitó-
O PRÍNCIPE 25

ria, morto Dario, teve o Estado surgiu a segurança completa dos


seguro, de acordo com as consi- possuidores. Conseguiram tam-
derações que anteri~m ex- bém os romanos, quando mais
pendi. E os sucessores de Alexan- tarde lutaram entre si, arrastar
dre, se se houvessem mantido parte daquelas províncias, segun-
unidos, poderiam gozar ociosos do a. au~oride que cada um
aquele reino; não houve aí outros havia . conseguido impor. E as
tumultos senão os que eles pró- províncias, pela razão muito sim-
prios suscitaram. Quanto aos ples de que fora extinto o sangue
Estados organizados como o da de seus antigos senliores, reco-
Franç~ é ·impossível conquistá- nheciam apenas os romanos. ,
los com tanta facilidade. Expli- Consideradas, pois, estas coisas
c~m-se dessa forma as freqüentes todas, não se- espantará ninguém
rebeliões da Espanha, da França da facilidade que Alexandre teve
e da Grécia quando conquistadás em consolidar sua vitória na
pelos romanos. Existiam aí nu- Ásia, e das dificuldades com que
.. merosos principados, e enquanto outros esbarraram para conser- ·
perdurou a lembrança deles os var os reinos conquistados, como
romanos nunca puderam estar aconteceu a Pirro. São contin-
ábsolutamente seguros da posse; gências originadas não do valor
apagada, porém, a memória da- ou do desvalor do vencedor, mas
queles principados, em vista da da diversidade dos povos venci-
potência e duração do império, dos.
CAPÍTULO V

Da maneira de conservar cidades ou principados que,


antes da ocupação, se regiam por leis próprias

Quando se conquistam Esta- ram-nas novamente 9 . Os roma-


dos habituados a reger-se por leis pos, para manter-se na posse de
próprias e em liberdade, há três Cápua, Cartago e Numância,
modos de manter-se a sua posse: destruíram-nas 1 0 • E não as per-
primeiro - arruiná-los; segundo deram. Mas quiseram governar a
- ir habitá-los; terceiro - dei- Grécia como os espartanos, tor-
xá-los viver com suas leis, arreca- nando-a livre e mantendo-lhe as
dando um tributo e criando um. suas leis. Não o conseguiram e
governo de poucos, que se con- foram obrigados a destruir mui-
servem amigos. Tendo sido esse tas cidades para conservé;l.f-se no
governo criado por aquele prínci- poder. É que, em verdade, não há
pe, sabe que não poderá viver garantia de posse mais segura do
sem a sua amizade e o seu poder que a ruína. Quem se torna se-
e, naturalmente, tudo fará para nhor de uma cidade tradicional-
mantê-lo.· Por intermédio dos mente livre e não a destrói será
seus próprios cidadãos, muito
mais facilmente se conservará o 9 Esparta, para assegurar a sua hegemonia

sobre os Estados da Grécia, teve de restaurar


governo duma cidade acostu- as oligarquias, isto é, alimentou as antigas fac-
mada à liberdade, do que de ções conservadoras. Assim, em Atenas (404
a.C.), o partido reacionário conseguiu formar
qualquer outra forma. Sirva-nos um governo provisório composto de trinta
de exemplo a história dos espar- membros, o qual inaugurou o terror e era
garantido ·pela ocupação militar espartana.
tanos e dos romanos. Os primei- Condições análogas aproximaram Tebas de
Atenas, aliaram-se as duas. O exército espar-
ros criaram em Atenas e Tebas tano (378) voltou a Esparta, sem vitória.
um governo oligárquico: perde- 1 0 Episódio das guerras romanas.
28 MAQUIAVEL

destruído por ela. Tais cidades quando as cidades ou as provín-


têm sempre por bandeira, nas cias estão habituadas a viv'er sob
re~liõs, a liberdade e suas anti- o domínio de um príncipe, extinta
gas leis, que nao e~qucm a sua geração!) - como estejam
nunca, ~em com o correr do acostumados a obedecer e, ao
tempo, nem por influência dos faltar-lhes o príncipe antigo, não
benefícios recebidos. Por muito atinem em eleger, entre eles mes-
que se faça, quaisquer que seJam mos, um novo príncipe -·-, não
as precauções tomadas, se não se sabem viver ºlivres. São, assim,
promovem o dissídio e a desagre- pouco afeitos a tomar das armas
gação dos habitantes, não dei- e, nessas .condições, com mais
xam eles de se lembrar daqueles facilidade poder-se-á ganhar a es-·
princípios e, em toda oportuni- tima do povo e assegurar-se sua
dade, em qualquer situação, a fidelidade: Nas repúblicas, há
eles recorrem, como fez Pisa, mais vida, o ódio é mais podero-
cem anos depois de estar sob. o so, maior é o desejo de vingança.
Jugo dos florentinos 1 1 • Mas, Não deixam nem podem deixar
repoµsar a memória. da antiga
11
No mesmo ano em que Carlos VIII inva- liberdade.
dia a penísul<~. (1494), Pisa rebelava-se, os Assim, para conservar uma
pisões lançaram ao Arno o "Marzocco" (o es-
cudo da República). Durou a guerra entre Flo- república conquistada,. o cami-
rença e Pisa quinze anos, sendo por fim esta
obrigada a render-se. Maquiavel teve papel
nho mais seguro é destruí-la ou
importante nas negociações da paz. ' habitá-la pessoalmente.
VI
CAPÍTULO
Dos principados .novos que se conquistam pelas
armas e·nobremente

Não deve causar estranheza a com segurança o lugar designado


ninguém o fato de eu citar longos muito mais abaixo.
exemplos, muitas vezes a respeito Nos principados novos, gover-
dos príncipes e dos Estados, nados por príncipes novos, na
durante a exposição que passo a luta pela conservação da posse,
fazer dos principados absoluta- as dificuldades estão na razão di-
mente novos. Os homens trilham reta da capacidade de quem os
quase sempre estradas já percor- conquistou. E porque o fato de
ridas. Um homem prudente deve elevar-se alguém a príncipe pres-
assim escolher os caminhos já supõe valor ou boa sorte, eviden-
percorridos pelos grandes ho- temente qualquer destas razões
mens e imitá-los; assim, mesmo· tem a propriedade de mitigar
que não seja possível seguir fiel- muitas dificuldades. Todavia, é
mente esse caminho, nem pela comum observar que muitos que
imitação alcançar totalmente as foram menos afortunados se
virtudes dos grandes, sempre se mantiveram mais tempo no
aproveita muita cois.a. Deve pro- poder. Traz muitas facilidades,
ceder como os seteiros prudentes ainda, o fato de o príncipe novo
que, querendo atingir um ponto ser obrigado a habitar o Estado
muito distante, e conhecendo a conquistado por não ter outros"
capacidade do arco, fazem a domínios. E para exemplo dos -
mira em altura superior à do que ~oram príncipes pelo seu
ponto visado. Não o fazem, evi-· valor e não por boa sorte,. cito
dentemente, para que a flecha como maiores Moisés, Ciro, Rô-
atinja tal altura: valem-se da mulo; Teseu. E se bem que Moi-
mira elevada apenas para ferir sés não deva ser mencionado por
30 MAQUIAVEL

ter sido um mero executor das or- nienses dispersos. Tais oportuni-
dens de Deus, deve, contudo, ser dades, portanto, tornaram felizes
admirado unicamente pela graça a esses homens; e foram as' suas
que o fazia digno de falar ao virtudes que lhes deram o conhe-
Criador. Consideremos, porém, cimento daquelas oportunidades.
Ciro e outros que adquiriram e Graças a isso, a sua pátria se
fundaram reinos. Haveis de honrou e se tornou feliz.
achá-los todos admiráveis. E se Aqueles que, por suas virtudes,
se considerarem os seus atos e or- semelhantemente a estes, se tor-
dens particulares, eles não são nam príncipes, conquistam o
discrepantes daqueles de Moisés, principado com dificuldade, mas
que teve tão alto preceptor. E se mantêm facilmente. As dificul-
examinando-lhes a vida e as dades que encontram na ccm-
ações, conclui"'."se que eles não quista do principado nascem, em
receberam da fortuna mais do parte, da nova ordem legal e cos-
que a ocasião de poder amoldar tumes que são forçados a intro-
as · coisas como melhor lhes duzir para a fundação do seu Es-
aprouve. Sem aquela ocasião, tado e da sua própria segurança.
suas qualidades pessoais se te- Deve-se considerar aqui que não
riam apagado, e sem essas virtu- há coisa mais difícil, nem de
des a ocasião lhes teria sido vã. êxito mais duvidoso, nem mais
Portanto, era necessário a Moisés perigosa, do que · o estabeleci- .·
encontrar o povo de Israel, no
mento de novas leis. O novo/
Egito, escravizado e oprimido
legislador terá por inimigos todos
pelos egípcios, a fim de que, para
aqueles a quem as leis antigas
se libertar da escravidão, se
dispusesse a segui-lo. Convinha '
I
beneficiavam, e terá tímidos de-
4 ue Rômulo não encontrasse re- fensores nos q~e forem benefi-
fúgio em · Alba e tivesse sido ciados pelo novo ·estado de coi-
exposto ao nascer, para que se sas. Essa fraqueza nasce parte do
tomasse rei de Roma e fundador medo · dos adversários, parte da
de uma pátria. incredulidade dos homens, que
Era necessário que Ciro en- não acreditam na verdade das
contrasse os persas descontentes coisas novas senão depois de
do império dos medas e os medas uma firme expriênca~ Daí resul-
muito efeminados e amolecidos ta que os 4dversários, quando
por uma longa paz. Teseu ·não têm ocasião de assaltar, o fazem
teria podido revelar suas virtudes fervorosamente, como sectários,
se não tivesse encontrado os ate- e os outros o defendem sem entu-
O PRÍNCIPE 31

siasmo e periclita a defesa do incrédulos acreditassem. Pessoas


príncipe. nessas condições lutam com
É necessário, pois, querendo grandes dificuldades para condu-
expor bem claramente esta parte, zir-se, estando no seu caminho
examinar se esses inovadores todos os perigos que só pela
agem por si próprios, firme- coragem podem ser superados.
mente, ou se dependem de ou- Vencidas as dificuldades, come-
trem, isto é, se para conduzir sua çam a ser venerados, e, extermi-
obra precisam de rogar ou se, nados os que invejavam suas
verdadeiramente, podem forçar. qualidades, torn~m-se potentes,
No primeiro caso, são sempre seguros, honrados, felizes. A tão
mal sucedidos e não conse$uem altos exemplos quero juntar
coisa alguma. Mas, quando não outro menor, mas que tem rela-
dependem de ninguém, contam
ção com aqueles e bastará para
apenas consigo mesmos e podem todos os semelhantes. É o de Hie-
forçar, raramente deixam d_e ~1-
.rão de · Siracusa. Tornando-se
cançar êxito. Destarte todos os
príncipe de Siracusa, está entre
profetas armados venceram e os
os que, da sorte, não tiveram
desarmados fracassaram. Por-
que, além do que já se disse, a mais do que a ocasião. Estando
natureza dos povos é vária, sendo os siracusanos oprimidos, elege-
fácil persuadi-los de uma coisa, ram-no para seu capitão. Nesse
mas sendo difícil firmá-los na posto_ mereceu tornar-se príncipe.
persuasão. Convém, pois, provi- E foi de tanta virtude, mesmo na
denciar para que, quando não vida privada, que dele se disse:
acreditarem mais, se possa fazê- "quod nihil illi deerat regnandum
los crer à força. Moisés, Ciro, praeter regnum 1 2 " .
Teseu e Rómulo não teriam con- Extinguiu a antiga milícia, or-
seguido fazer observar por muito ganizou a nova, deixou as amiza-
tempo suas constituições se esti- des antigas, conquistou outras, e,
vessem desarmados. É o que, nos como tivesse amizades e solda-
tempos que correm, aconteceu a dos seus, pôde, sobre tais alicer-
Frei Girolamo Savonarola, o ces, edificar as obras que quis,
qual fracassou na. sua tentativa tanto que teve muito trabalho
de reforma quando o povo come- para conquistar, mas pouco para
çou. a não lhe dar crédito. E ele manter-se.
não tinha meios para manter fir-
mes aqueles que haviam acredi- 1 2 "Que não lhe faltava para ser rei senão um

tado, nem para fazer com que os reino."


. CAPÍTULO VII

Dos principados novos que se conquistam com armas


e virtudes de outrem

Aqueles que somente por for- podem manter o principado: não


tuna se tornam príncipes pouco sabem porque~' se não são ho-
trabalho têm para isso, é claro, mens de grande engenho e virtu-
mas se mantêm muito penosa- de~ não é razoável que, tendo vi-
mente. Não têm nenhuma dificul- vido sempre em condições
d ade em alcançar o posto, porque diferentes, saibam comandar;
para aí voam; surge, porém, toda não podem, porque não contam
sorte de dificuldades depois da com forças que lhes sejam ami-
chegada. É o que acontece quan-- · gas e fiéis. Além disso, os Esta-
do o Estado foi concedido ao dos que surgem de súbito, como
príncipe, ou por dinheiro, ou por todas as outras coisas da natu-
graça de quem o concede. Assim reza que se desenvolvem muito
foi na Grécia, nas cidades da depressa, não podem ter raízes
Iônia e do Heiesponto, onde ou membros proporcionados, e,
houve príncipes feitos por Dario ao primeiro golpe da adversi-
para manterem sua glória e segu- dade, aniquilam-se; a não ser que
rança. É ainda como se faziam aqueles príncipes, como já se
aqueles· imperadores que, de sim-. disse, saibam preparar-se para
ples cidadãos, .subiam ao trono conservar aquilo que a sorte lhes
pela corrupção _ dos soldados. pôs no regaço, e estabeleçam
Tais príncipes estão na depen- solidamente as bases fundadas
dência exclusiva da vontade e anteriormente por outros.
boa fortuna de quem lhes conce- Destes dois meios de se tornar
deu o Estado, isto é, de duas coi- príncipe - pelo valor ou pela
sas extrman~ volúveis e ins- fortuna - quero apresentar dois
tiweis. E n.ão s_abem -ou não exemplos atuais: Francesco Sfor-

- ~ - - - - -- --
34 MAQUIAVEL

za e César. Bórgia. Francesco, para o engrandecimento do filho.


pelos meios devidos, e por grande Primeiro, não encontrava meio
valor, de ,simples particular se de poder torná-lo senhor de
tornou duque de Milão e pôde algum Estado que não fosse Esta-
manter facilmente aquilo que do da Igreja, e sabia que, se ten-
havia conquistado à custa de afa- tasse apoderar-se de um destes, o
nosos trabalhos. Por outro lado, duque de Milão e os venezianos
César Bórgia, chamado pelo não lho consentiriam, uma vez
povo Duque Valentino, adquiriu que Faenza e Rimini estavam já
o Estado com a fortuna do pai e sob a proteção dos venezianos.
sem esta o perdeu, não obstante Via, além disso, as tropas da Itá-
houvesse feito tudo quanto devia lia e especialmente aquelas de
fazer um homem prudente e valo- que se teria podido servir estarem
roso a fim de que criasse raízes em mãos de quem devia temer a
nos Estados que as armas e a for- grandeza do papa; e nelas não
tuna de outrem lhe haviam con- podia fiar-se, pertencendo todas
cedido. aos Orsini e Colonna e seus
É que, como já disse acima, partidários. Era necessário, por-
quem não prepara as bases antes, tanto, que se perturbasse aquela
poderá fazer depois esse traba- ordem e fossem desorganizados
lho, se te!Il grande capacidade, os Estados destes para se tornar
ainda que com aborrecimento possível a conquista de um deles.
para o arquiteto e perigo para o Isto não lhe foi difícil, pois os
edifício. Se se considerarem, venezianos, movidos por outras
então, todos os progressos do razões, se decidiram a facilitar a
duque, ver-se-á que ele traçou volta dos franceses à Itália, a que
grandes alicerces para a sua futu- não fez oposição, e até tornou
ra potência. Não julgo que seja mais fácil com a dissolução do
supérfluo discorrer a respeito, primeiro matrimônio do Rei
porque eu nãp saberia regras Luís. O rei entrou, portanto, na.
melhores para oferecer a um Itália com o auxílio dos venezia-
príncipe novo do que o exemplo nos e consentimento de Alexan-
das ações ·do duque. E se seu dre. Logo que o rei chegou a
modo de agir não lhe aproveitou Milão, o papa teve tropa para a
não foi sua culpa e. sim por força conquista da Romanha, empresa
de extremos reveses da sorte. tornada possível só pela fama do
Alexandre VI encontrou grandes rei. Tendo o duque conquistado a
dificuldades imediatas e remotas Romanha e batido os Colonna,
O-PRÍNCIPE 35

querendo manter aquela e prosse- fes dos Orsini, estando já disper-


guir, encontrava dois impedimen- sos os da casa de Colonna. Não
tos: um, as suas tropas que não tardou a se apresentar tal oportu-
lhe pareciam fiéis, e o outro, ·a nidade e o duque soube bem
vontade da França. Temia o aproveitar-se dela. Com efeito, os
duque lhe faltassem as tropas dos Orsini, tendo-se apercebido tarde
Orsini, das quais se valera, e não demais que o poder do duque e o
só o impedissem de conquistar da Igreja trariam a sua ruína,
como lhe arrancassem a terra já realizaram um conselho em Ma-
conquistada, e, além disso, que o gione, no Perugino. Daí surgiram
rei não lhe fizesse o mesmo. Dos a rebelião de Urbino e os tumul-
Orsini confirmaram-se as suas tos da Romanha, com inúmeros
suspeitas quando, depois de ter perigos para o duque, que a todos
entrado em Faenza, assaltou Bo.:. superou com o auxílio dQs fran-
lonha, e notou a sua frieza naque- ceses. Tendo readquirido com
le assalto. Relativamente às in- isso sua reputação, e não se fian-
tenções do rei, conheceu-as do mais da França nem de outros
quando, conquistado o ducado de agentes externos, para não ter de
Urbino, assaltou a Toscana: o rei acrescer-lhes as forças, recorreu
fez com que desistisse dessa à astúcia. E tão bem soube dissi-
empresa. Por isso o duque delibe- mular as suas intenções que os
rou não depender mais das armas Orsini se reconciliaram com ele,
e fortuna de outrem. E a primeira por intermédio do Signor Pago-
coisa que fez foi enfraquecer as lo 1 3·• Para assegurar-se melhor
facções dos Orsini e Colonna em deste, o duque não omitiu nenhu-
Roma. De todos os aderentes ma prova de amizade, dando-lhe
destes, que fossem gentis-ho- dinheiro, roupas e cavalos; ·tanto
mens, procurou o apoio, tornan_: a.ssim que a ~genuida dqs Or-
do-os gentis-homens seus e_ lhes sini lev.ou-os a shi!gaglia, à dis-
dando grandes pensões em di· crição do· duque. Extintos, pois
nheiro, e honrou-os, · segundo esses chefes, e reduzidos os seus
suas qualidades, com postos de correligionárfos a amigos do
comando e de governo, de modo duque, havia este conseguido
que, em poucos meses, a afeição muito bons alicerces para o seu
que· nutriam pelos partidos se poder, conquistando toda a Ro-
extinguiu totalmente, passando
toda para o duque. Depois, espe- 1 3 Ver no índice dos nomes citados o nome
rou a ocasião de extinguir os che- Orsini.
1 .

36 MAQUIAVEL

manha com o ducado de Urbino,. próprio, para apagá-los do ânimo


parecendo-lhe, alé"m disso, ter daqueles povos e conquistá-los a
ganho a amizade da Romanha e todos, definitivamente, em tudo,
todos aqueles povós, que haviam quis demonstrar que, se haviam
começado a gozar de prosperi- sido cometidas crueldades, não
dade. procediam dele e sim da dureza
Como esta parte da ação ·do .de caráter do ministro. E, em
· duque é digna de registro e de vista disso, tendo ocasião, man-
imitação, não quero silenciar a dou exibi-lo certa manhã, em·
respeito. Logo que se apoderou Cesena, em praça pública, corta-
da Romanha, tendo-a encon- do em dois pedaços, tendo ao
trado, em geral, sujeita a fracos lado um pe~aço de pau e uma
senhores, que mais espoliavam faca ensangüentada. A feroci-
do que governavam os seus súdi- dade desse espetáculo fez com
tos, dando-lhes apenas motivo de que o povo ficasse a um tempo
desunião (tanto que aquela pro- satisfeito e espantado.
víncia estava cheia de latrocínios, Voltemos, 'porém, ~o ponto de
de tumultos e. de toda sorte de partida. Encontrando-se o duque
violências), julgou o duque que bastante poderoso e a coberto,
era necessário, para torná-la pa- em parte, de perigos presentes,
cífica e obediente ao braço régio, por já terem tropas suas extin-
dar-lhe bom governo. E ali colo- guido em grande parte as forças
cou, então, Ramiro de Orco, vizinhas que o poderiam inc9mo-
homem cruel e expedito, ao qual dar, restava-lhe, querendo prosse-
outorgou plenos poderesi Este, guir nas conquistas, o temor ao
erp. pouco tempo, conseguiu fazer rei da França. Sabia que os seus
com que a Romanha se tornasse progressos não seriam suporta-
pacífica e unida, tendo alcànçado dos pelo rei, o qual se apercb~
ele mesmo grande reputação. O tarde do seu erro. Começou, por
duque julgou depois que já não isso, a procurar amizades novas· e
era necessária tanta autoridade, a tergiversar com a França_, na
pois temia que se tornas~ odio- incursão que os franceses leva-
sa. E constituiu um juízo civil no ram a efeito no reino de Nápol~s
_. centro da província, com um pre- contra os espanh~i. que assedia-
sidente ilustre e benquisto, e onde vam Gaeta. Queria ·assegurar-se
cada cidade estava representada. contra a França, o que lhe teria
Sabendo que os rigores passados sido fácil conseguir se Alexandre
haviam criado ódios co~tra ele vivesse. Esta foi a sua política
O PRÍNCIPE 37 .

quanto às coisas presentes. Mas, _Nápoles pelos espanhóis, de
· com relação ao futuro, tinha · a modo que a ambos era necessário
temer, primeiro, que o povo papa procurar sua amizade), o duque
lhe fosse hostil · e procurasse se -precipitaria sobre Pisa. Depois
tirar-lhe o que . Alexandre lhe disso, Luca e Siena cederiam
dera. Pensou agir de quatro logo, em parte movidas pelo ódio
modos: primeiro - extinguir a aos florentinos, em parte pelo
linha de todos aqueles senhores medo. Os florentinos, então, não
que despojara, para evitar protes- teriam recurso algum. Se tivesse
tos de intervenção do papa; se- conseguido isso (o que se daria
gundo - conquistar todos os no ano mesmo em que Alexandre
gentis-homens de Roma, como morreu), conquistava o duque
foi dito, para poder, com seu tanta força e reputação que por si
auxílio, enfrentar o papa; terceiro mesmo se teria mantido e não
·_ aumentar o mais possível a dependeria mais da fortuna e da
própria influência no. Sacro Colé- . força de outrem e sim da sua pró-
gio; quarto - conquistar· a pria força e capacidade. Mas
. maior soma de poder antes . da Alexandr.e morreu cinco anos de-
morte do papa, a fim de poder pois que César desembainhara a
resistir por si mesmo a um pri- espada. Deixou-o apenas com o
meiro ataque. Dessas quatro coi- Estado" da Romanha consoli-
sas, já realizara três, por ocasião dado, e todos os outros no ar, sob
da morte de Alexandre. A· quarta a pressão de dois poderosíssimos
estava quase terminada. Dos se- exércitos inimigos, e doente de
nhores espoliados matou quantos morte. Havia, porém, no duque
pôde alcançar, e foram pouquís- tão grande energia e valor·, bem
simos os que se salvaram; havia sabendo ele que os homens se
alcançado o apoio do~ gentis-ho- conquistam ou se exterminam, e
mens romanos e, no .Sacro .Colé- er.am tão sólidos os alicerces
gio, tinha formado um grande construídos para o seu poderio,
partido. Quanto à nova conquis-· que, se não fora a pressão daque-
ta, havia designado tornar-se se- les exércitos, ou se ele estivesse
nhor da Toscana e já possuía são, teria vencido qualquer difi-
Perúgia e Piombino e tomara a si culdade. De que as bases que pre-
a proteção de Pisa. E logo que parara eram boas teve as provas:
não o preocupasse mais o temor a Romanha esperou-o fielmente
da Fr·a nça (por terem . sido já mais ' de um mês; em Roma,
expulsos os franceses do reino de ainda que meio morto, . esteve a
38 MAQUIAVEL

salvo; e se bem que os Baglioni,. devem ofender, renovar as anti-


os Vitelli e os. Orsini para aí· gas instituições por novas leis,
tivessem acorrido, não puderam ser severo e grato, magnânimo e
organizar partido contra ele; e se liberal, dissolver a milícia infiel,
não pôde fa~er com que fosse criar uma nova, manter amizades
eleito papa· um partidário seu, dos reis e dos príncipes, de modo
pôde pelo menos impedir que o que te sejam solícitos no benefí-
fosse um inimigo. Se não esti- cio e tementes de ofender-te, repi-
vesse doente quando Alexandre to que não encontrarás melhores
morreu, tudo lhe teria sido fácil. exemplos que . nas ações do
Disse-me ele, quando da eleição duque. Só é possível acusá-lo
de Júlio II, que pensara em tudo. quanto à criação de Júlio pontí-
que podia acontecer com a morte fice, a qual escolha foi má, pois,
do pai e para tudo encontrara como se disse, não podendo fazer
remédio. Só não previra, naqúela papa a quem queria, podia evitar
ocasião, que ele próprio estivesse que o fosse quem não quisesse.
para morrer. Não deveria ele ter consentido j a-
Nas ·ações do duque, das quais mais no papado de um dos car-
escolhi as que expus acima, não deais a quem tivesse ofendido ou
encontro motivo de censura; pa- que, feito pontífice, tivesse de
rece-me, pelo contrário, que se temê-lo. Pois os homens ofendem
deve propô-lo como exemplo a ou por medo ou por ódio. Aque-
todos os que por fortuna e com les a quem ele ofendera eram,
as armas de outrem ascenderem entre outros, os cardeais de San
ao pode~. Pois, sendo ele de Pietro ad Vincula, Colonna, San
ânimo forte e de alta ambição, Giorgio, Ascânio 1 4 . Todos os
não podia governar de outra outros, se se tornassem papas, ti-
forma. Aos seus desígnios se nham por que temê-lo, exceto o
opuseram apenas a brevidade da de Ruão e os espanhóis;- estes por
vida de Alexandre e a sua própria força de aliança e obrigação,
moléstia. Portanto, se julgas ne- aquele pela força do rei de Fran-
cessário, num principado novo, ça. O duque devia, portanto,
assegurar-te contra os inimigos, fazer com que fosse eleito papa
conquistar · amigos, vencer ou um espanhol; não o podendo,
pela força ou pela astúcia, fazer- devia consentir em que o papa
te amado e temido do povo, ser
1 4 Ver no índice dos nomes citados os nomes
seguido e respeitado pelos solda- Júlio II, Colonna (Giovanni), Riario di Savona
dos, extinguir os que podem ou (Raffaele) e Sforza (Ascânio).
O PRÍNCIPE 39

fosse o cardeal de Ruão e não de fazem esquecer as antigas injú-


San Pietro ad Vincula. Engana-se rias. O duque errou, pois, nessa
quem acreditar que nas grandes eleição, e foi ele mesmo o causa-
personagens os novos benefícios dor de sua ruína definitiva.
CAPÍTULO VIII

Dos que alcançaram o principado pelo crime

Há duas maneiras de tornar-se maldades de tanto vigor de


príncipe e que não se podem atri- ânimo e de corpo que, ingres-
buir totalmente à fortuna ou ao sando na milícia, chegou a ser
mérito. Não me parece bem, por- pretor de Siracusa, por força
tanto, deixar de falar nestes daquela maldade. Neste posto,
casos, se bem que deles se pudes- deliberou tornar-se príncipe . e
se falar mais detidamente onde se manter, pela violência e sem
trata das repúblicas. Estas ma- favor de outros, aquele poder que
neiras são: chegar ao principado lhe fora concedido por acordo
pela maldade, por vias celeradas, entre todos.
co~tráias a todas as leis huma- Acerca deste seu desígnio, en-
nas e divinas; e tornar-se príncipe tendeu-se com Amílcar, cartagi-
por mercê do favor de seus nês, que estava com seus exérci-
conterrâneos. Para nos referir- tos na Sicília, e, certa manhã,
mos ao primeiro destes modos, reuniu o povo e o Senado de Sira-
apresentarei dois exemplos, um cusa, como se ele tivesse de
antigo e oufro moderno, sem consultá-lo sobre os negócios pú-
entrar, contudo, no mérito desta blicos. E a um sinal combinado
parte, pois julgo que bastaria a fez que seus soldados matassem
alguém imitá-los se estivesse em todos os senadores e os homens
condição de devê-lo fazer. mais ricos da cidade. Mortos
Agátocles Siciliano tornou.:.se estes, apoderou-se do governo
rei de Siracusa, sendo não só de daquefa cidade e o conservou
impura mas também de condição sem nenhuma hostilidade por
abjeta. Filho de um oleiro, teve parte dos cidadãos. E apesar de
sempre vida criminosa _na sua os cartagineses haverem rompido
mocidade. Acompanhava as suas com ele duas vezes e, por fim,
42 MAQUIAVEL

assediado a cidade, pôde não só e


nidade os seus inúmeros crimes
defendê-la, como, deixando parte não permitem seja celebrado
de sua gente para garanti-la con- entre os mais ilustres homens da
tra os inimigos, com outra parte História. Não se pode, pois, 'atri-
assaltou a África; em breve buir à fortuna ou ao valor aquilo
tempo libertou Siracusa do assé- que ele conseguiu sem uma e sem
dio e reduziu os cartagineses a outro.
uma condição miserável. F9ram Em nossos tempos, sob o rei-
estes coagidos a entrar em acor- nado de Alexandre VI, Oliverotto
do com Agátocles, deixando-lhe da Fermo, que ficara órfão al-
a Sicília e contentando-se com a guns artos antes, fora criadq por
posse da África. Consideradas, um tio materno, chamado :Gio-
pois, suas ações e méritos, não se vanni Fogliani. Nos primeiros
encontrará coisa, ou~ senão, tempos de sua juventude, dedi-
muito pouca, que se possa atri- cou-se à vida militar, sob a dire-
buir à fortuna. Como acima se ção de Paulo Vitelli, a fim de que,
disse, não por favor de quem afeito àquela disciplina, alcan-
quer que fosse, mas passando por çasse algum alto posto na milí-
todos os postos conquistados na cia. Morto Paulo, esteve sob o
milícia através de inúmeros dis- comando de Vitellozzo, seu
sabores e perigos é que alcançou irmão. E dentro de pouco tempo,
o principado que manteve depois, como fosse engenhoso, forte e
à força de tantas decisões auda- valoroso, tornou-se o primeiro
zes e cheias· de perigo. Ainda que homem de sua corporação. Pare-
não. se possa considerar ação ceu-lhe, porém, coisa abjeta con-
meritória a IJ?.atança de seus tinuar a servir com outros, e,
concidadãos,
X .
trair os amigos, não auxiliado por alguns cidadãos de
ter fé, não ter piedade nem reli- Fermo, que preferiram a servidão
gião, com isso pode-se conqµistar à liberdade de sua pátria, e com a
o mando, mas não a glória~ Mas, ajuda de Vitellozzo, quis ocupar
considerada a habilidade de Ag,á- ~quela cidade. E escreveu a Gio-
tocles no entrar e sair dos peri- V..anni Fogliani dizendo que,·
gos, e sua fortaleza de ânimo no como estivera .muitos anos fora
suportar e superar as coisas ad- de casa, desejava ir visitfl-lo. e à
versas, não há por que se deva sua cidade para conhecer o seu
julgá-lo inferior a qualquer dos patrimônio; e como não traba-
mais ilustres capitães. Todavia, a lhara. senão para conseguir hon-
sua bárbara crueldade e desuma- ras, a fim de que seus concida-
O PRÍNCIPE 43

dãos vissem que não perdera o asse11.taram, saíram de esconde-


tempo em vão, queria ir em gran- rijos soldados que mataram Gio-
de pompa e acompanhado de vanni e todos os outros. Depois
cem cavaleiros seus amigos e desse homicídio coletivo, Olive- ·
servidores. Rogava ao tio que se rotto montou a cavalo e percor-
servisse de ordenar aos cidadãos reu a cidade e assediou o supre-
de Fermo que o recebessem com mo magistrado em seu palácio.
homenagens; isso representaria Aterrorizados, foram o brigados a
uma honra para o tio que o tinha obedecê-lo e a formar um gover-
educado. Giovanni não deixou de no do qual ele era o chefe. E,
atender na menor coisa ao seu mortos todos os que por descon-
sobrinh~ Pê-lo receber com tentes poderiam prejudicá-lo, re-
grandes festas, alojou-o e à sua forçou-se por novas leis civis e
comitiva na própria casa. Passa- militares, de modo que, durante o
dos alguns dias, estando tudo ano em que governou a provín-
pronto para que ordenasse o cia, não só conseguira assegu-
necessário à sua futura perfidia, rar-se da cidade de Fermo, mas
organizou um banquete solenís- também tornar-se temido por
simo, para o qual convidou Gio- todos os seus vizinhos. E séria
vanni Fogliani e todos os homens dificil tomar-lhe a cidade, como
de maior destaque da cidade de aconteceu com Agátocles, se não
Fermo. Terminadq o banquete e se tivesse deixado enganar por
os divertimentos da praxe, Olive- César Bórgia, quando este, em
rotto, propositadamente, encetou Sinigaglia, como- se disse antes,
uma conversa a respeito de as- aprisionou os Orsini e os Vitelli.
suntos graves, da grandeza do Assim, um ano depois de haver
Papa ·Alexandre e de César, seu cometido o parricídio, foi estran-
.filho, e dos seus empreendi- gulado juntamente com Vitel-
mentos. lozzo, que fora o mestre de suas
Tendo Giovanni e os outros virtudes e ignomínias.
expendido também considerações Poderia alguém surpreender-se
a respeito, ele, a um dado mo- pelo fato de que Agátocles e
mento, levantou-se e disse que semelhantes, depa"is de tantas
aquilo era coisa que se devia dis- traições e crueldades, pudessem
cutir em lugar mais reservado, viver tranqüilamente e a salvo em
dirigindo-se a seguir para um sua pátria, e defender-se dos ini-
aposento ao lado. Todos os ou- migds externos e de que os cida-
tros o seguiram. Logo que se dãos: não conspirassem contra
44 MAQUIAVEL

· eles considerando-se tanto levar a efeito, e executá-las todas


mais que muitos outros não pu-' de uma ~ó vez, para não ter que
deram, por. sua crueldade, con- renová-las dia a dia. Deste modo,
servar o mando, nem nos tempos poderá incutir confiança nos ho-
de paz, nem nos tempos duvido- , mens e conquistar-lhes o apoio
sos de guerra. Creio que isto seja beneficiando-os. Quem age por
conseqüência de serem as cruel- out~a forma, ou por timidez ou
dades mal ou bem praticadas. por força de maus conselhos, tem
Bem usadas se podem chamar sempre rte\cessidade de estar com
aquelas (se é que se pode dizer a faca na mão e não· poderá
bem do mal) que são feitas, de · nunca confiar em seus súditos,
uma só vez, pela necessidade de porque estes, por sua vez, não se
prover alguém à própria seguran- podem fiar nele, mercê das suas
ça, e depois são postas à mar- recentes e. contínuas injúrias. As
gem, transformando-se o mais injúrias devem ser feitas todas de
possível em vantagem para os sú- uma vez, a fim de que, tomando-
ditos. Mal usªdas são as que, se-lhes meno.s o gosto, ofendam
ainda que a princípio sejam pou:_ menos. E os benefícios devem ser
cas, em vez de extinguirem-se, realizados pouco a pouco, para
crescem com o tempo. Os que que sejam mais bem saboreados.
observam a primeira destas li- Sobretudo, um príncipe deve
nhas de conduta podem, com a. viver com seus súditos de modo
ajuda de Deus\. e dos homens, que nenhum acidente, bom ou
encontrar remédio às suas conse- mau; o faça variar, porque,
qüências, cómo aconteceu· ·com vindo, com tempos adversos, as
Agátocles. Aos outros é impos- necessidades, não terás tempo de
sível manter-se. É de notar-se, fa.Zer o mal; e o bem que fazes
aqui, que, ao · apoderar-se dum não.te beneficia, pois julga-se for-
Estado, o conquistador deve de- çado, e ninguém te agradecerá a
termü1ar as injúrias que precisa sua prática.
CAPÍTULO IX

Do principado civil

Mas, analisando outro caso, grandes que não podem resistir


quando um cidadão, não por ao povo, começam a dar reputa-
suas crueldades ou outra qual- ção a um dos seus elementos e o
quer intolerável violência, e sim fazem príncipe, para poder, sob
pelo favor dos concidadãos, se sua sombra, satisfazer seus apeti-
torna príncipe de sua pátria - o tes. O povo também, vendo que
que se pode chamar principado não pode resistir aos grandes, dá
civil (e para chegar a isso não é reputação a um cidadão e o elege
necessário grandes méritos nem príncipe para estar defendido
muita sorte, mas antes uma astú- com a sua autoridade. O que
cia feliz), digo que se chega a esse ascende ao principado com a
principado ou pelo favor do povo ajuda dos poderosos se mantém
ou pelo favor dos poderosos. É com mais dificuldade do que
que em todas as cidades se aquele que é eleito pelo próprio
encontram estas duas tendências povo; encontra-se aquele. com
diversas e isto nasce do fato de muita gente ao redor, que lhe pa-
que o povo não deseja ser gover- rece sua igual, e por isso não a
nado nem oprimido pelos gran- pode comandar nem manejar
des, e estes desejam governar e como entender. Mas o que alcan-
oprimir o povo. Destes dois ape- ça o principado pelo favor popu-
tites diferentes nasce nas cidades lar encontra-se sozinho e, ao
um destes três efeitos: princi- redor, ou não tem ninguém, ou
pado, liberdade, desordem. muito poucos que não estejam
O principado é estabelecido preparados para obedecê-lo.
1?elo 1?0VO ou pelos grandes, se- Além disso, não se pode honesta-
gundo a oportunidade que tiver mente satisfazer aos grandes sem
uma destas partes; percebendo os injúria para os outros, mas o
46 MAQUIAVEL

povo pode ser satisfeito. Porque tos; se agem assim por pusilani-
o objetivo do povo é mais hones- . midade e defeito natural de cará-
to do que o dos poderosos; estes ter' deverás servir-te deles,
querem oprimir e aquele não ser especialmente se podem d·ar-te
oprimido. Contra a hostilidade bons conselhos, .porque em tem-
do povo o príncipe não se pode pos felizes .isso te honrará e nos
assegurar nunca, porque sao- mm-. adversos nada terás que temer.
tos; com relação aos grandes, é Mas, quando não se o brigam
possível porque são poucos. O para contigo, deliberadamente e
pior que um príncipe pode espe- pôr ambição, é sinal de que pen-
rar do povo hostil é ser abando- sam mais em si próprios do que
1
nado por ele. Mas, da inimizade em ti. O príncipe deve, e:ntão,
dos grandes, não deve temer só manter-se em guarda e temê-los
que o abandonem, como também como se fossem inimigos desco-
que o ataquem, pois têm· estes bertos, porque sempre, na adver,...
maior alcance de vistas 'e maior sidade, ajudarão a arruinar-te.
astúcia, e têm sempre tempo de Quem se torna príncipe me-
salvar-se, procurando aproxi- diante o favor do povo deve man-
mar-se dos prováveis vitoriosos. ter-se seu amigo, o que é muito
Precisa ainda o príncipe de viver fácil, uma vez que este deseja
sempre com o povo, mas pode apenas não ser oprimido. Mas
prescindir perfeitamente dos quem se tornar príncipe contra a
grandes, pois pode fazer e desfa- opinião popular, por favor dos
zer, cada dia, e dar-lhes ou . grandes, deve, antes de mais
fazer-lhes perder influência, à sua nada, procurar conquistar o
vontade. povo.
E, para esclarecer melhor esta Ser-lhe-á fácil isso, uma vez
parte, direi 'dos dois grupos prin- que se tenha ocupado em prote-
cipais em que se podem classi- gê-lo. E como os homens, quando
ficar o"s grandes: os que proce- recebem benefícios d~ quem só
dem de tal modo que se ligam em esperavam mal, se obrigam mais
tudo à tua fortuna, ou os que para com o benfeitor, torna-se o
agem diversamente. Aqueles que povo logo mais seu amigo do que
se obrigam para contigo e não se o príncipe houvesse sido leva-
são rapaces devem ser· respei- do ao poder por favor seu. Isso
tados e amados. Os que não se pode ser conseguido pelo prín-
obrigam daquela forma devem cipe de muitas maneiras, das
ser examinados sob dois aspec- , quais não se pode traçar uma
o PRÍNCIPE 47

regra certa porque eJas variam povo, jamais será enganado ·por
conforme as circunstâncias. Dei- este e verá que reforçou os seus
- xá-la-ei de parte, por isso. Con- alicerces.
cluirei somente que é necessário Principados dessa espécie cor-
a um príncipe que o povo lhe rem perigo quando estão a pique
vote amizade; do contrário, fra- de mudar de um . governo civil
cassará nas adversidades. Nábis, para um absoluto; porque esses
príncipe dos espartanos, supor- príncipes ou governam por si
tou o longo assédio de toda a próprios ou por intermédio de
Grécia e de um exército. romano magistrados.
poderosíssimo, e contra eles de-.· Neste último caso, a sua esta-
fendeu a pátria e o Estado. Bas- · bilidade é precária e incerta, por-
tou-lhe apenas, quando o perigo . que dependem completamente 1
da
sobreveio, assegurar-se de: pou- vontade dos cidadãos prepostos.
cos; não lhe bastaria isso;· se· o nas magistraturas, os quais, má-
povo fosse seu inimigo. E a quem xime em tempos adversos, podem
estiver contra esta minha opi- lhe arebt~ o Estado com gran-
nião, baseado naquele velho pro- de facilidade, movendo-lhe guer-
vérbio que diz que quem se apóia ra ou não lhe prestando obediên-
no povo tem alicerces de barro, cia. E o príncipe já não poderá,
direi que isso é verdade quando nos perigos, reconquistar a auto-
um cidadão acredita que o povo ridade absoluta, porque os cida-
·o liberte quando estiver, por dãos e os súditos, habituados a
acaso, oprimido pelos inimigos ' seguir as ordens dos magistrados,
ou pelos magistrados. Nesse não estão, naquela emergência,
caso, são freqüentes os enganos, para obedecer à sua. E o prínci-
como os Gracos em Roma e pe, :nos tempos incertos, quase
Messer 1 5 Giorgio Scali em Flo- não~ terá gente em que .se possa
rença. Tratando-se, porém, dum fiar, não podendo basear-se no-
príncipe que saiba comandar e que observa em ocasiões nor-
seja homem de coragem, que não mais, quando os cidadãos têm
se abata nas adversidades, não se necessidade do Estado. Então,
esqueça das outras precauções e todos . correm ao seu encontro,
tenha co"m seu próprio valor -e todos prometem, e não há quem
conduta incutido confiança ·no não queira morrer por ele, quan-
do a morte, está longe; mas na
1 5 Título que se dava a senhores, prelados e
adversidade,, quando o Estado
juristas até o século XVI. (N. do E.) necessita dos cidadãos, encon-
48 MAQUIAVEL

tram-se poucos. E essa expe- deve cogitar da maneira de fa-


riência é tanto mais perigosa zer-se sempre necessário aos srus
quando é certo que não é possível súditos e d~ precisarem estes· do
fazê-la senão uma vez. Conclui- Estado; depois, ser-lhe-ão sempre
se daí que um príncipe prudente fiéis. i
CAPÍTULO X

C-omo s~ devem medir as forças


de todos os principados·

Convém fazer, ao se examina- pno Estado sem se preocupar


rem as qualidades destes princi- com o res~o. E qu.em estiver bem
pados, uma outra consideração: fortificado e se tenha conduzido
·se um príncipe possui tanta força com· relação aos governados
em seu Estado que se possa man- como acima . se expôs - e se
ter por si mesmo · em caso de falará ainda - sempre será ata-
necessidade, ou se precisa do cado com hesitação. Os homens
auxílio de terceiros. Para bem são sempre contrários· aos em-
esclarecer esta . parte, direi que preendimentos onde exista difi-
julgo capazes de se manter por. si culdade; e não se pode ver facili-
os príncipes que podem, em vista dade no assalto a quem possui
de ter abundância de homens ou um Estado forte e não é odiado
de dinheiro, formar um exército pelo povo.
forte e fazer frente a qualquer As cidades da Alemanha são
· assaltante, e que também julgo. extremamente livres, têm pouco
terem sempre necessidade de ou- território e obedecem ao impera-
trem os que não podem enfrentar dor quando querem, e não temem
o inm~go em campo aberto, pre- nem a ele nem a qualquer outro
cisando de refugia~-s por detrás poderoso que lhes esteja - ao
dos muros da cidade para poder redor, po~s estão fortificadas de
defendê-:-la. 1á se falou do pri- forma que o briga a refletir que
meiro caso, e mais adiante ajun- expugná-las deve ser tarefa abor-
taremos o que é necessário. No recida e difícil. Todas possuem
segundo caso, não se pode fazer ao r.edor valas e muros adequa-
mais do que exortar esses prínci- dos, possuem boa artilharia e têm .
pes a fortificar e municiar o· pró- sempre nos celeiros públicos o
50 MAQUIAVEL

que comer e beber e combustível esperança de que o mal não se


para um ano. Além disso, para prolongará, ora incutdo-Jhe~ o
que a plebe nunca sofra fome, temor da crueldade do inimigq, e
têm sempre, em comum, por um assegurando-se com destreza dos
ano, trabalho para lhe dar naque- que lhe parecessem muito teme-
las atividades que sejam o nervo rários. Além disso, é razoável
e a vida da cidade e indústrias considerar que o inimigo dev~rá
das quais a plebe se sustente. incendiar e arruinar o país logo
Mais ainda: estimam grande- depois de sua chegada, quando o
mente os exercícios militares que ânimo do povo está ainda aque-
são regidos por boas leis. cido e decidido à defesa; por isso,
Assim, um príncipe que tenha o príncipe deve ter tanto ~enos
uma cidade forte e não se torne dúvida, porque depois de alguns
odiado não pode ser atcdo~ e, dias os ânimos se arrefecem,· os
mesmo· que o fosse, o atacante danos já são uma realid'ade e~ não
regressaria de cabeça baixa. Por- há mais remédio; então o povo
que ,as coisas do mundo são vem unir-se mais ao príncipe,
assim. tão variadas que seria parecendo-lhe que· este lhe deve
impossível que alguém permane- uma obrigação, pois arderam as
. .
cesse ociosamente um ano a asse- casas e arrumaram-se as propne-
diá-lo. A quem replicasse que, se dades· ein benefício dele. E a
ó povo tem suas propriedades natureza dos homens faz com
fora da cidade e as visse arder, que se obriguem tanto ·pelos
não haveria paciência capaz de benefícios feitos como pelos rece-
resistir, e. que o longo assédio e o bidos. Em conclusão, consideran-
próprio egoísmo ·dos súditos f a- do-se bem tudo, não será difícil a
riam com· que se esquecessem do um príncipe prudente assegurar-
príncipe, responderia eu que um se do seu povo; durante um
príncipe corajoso· e forte superará cerco, quer antes, quer depois
sempre todas aquelas dificulda- deste, uma vez que não lhe faltem
des, ora dando aos súditos a víveres nem meios de defesa.
CAPÍTULO XI

Os principados eclesiásticos

Resta-nos somente, agora, xarei de falar a respeito; estabele-


falar dos principados eclesiás- cidos e mantidos por Deus tais
ticos. Diante destes, surge toda Estados, seria de homem presun-
sorte de dificuldades, antes de çoso e temerário agir de outra
que se possuam, porque são forma. Contudo, se alguém me
conquistados ou pelo mérito ou perguntasse dos motivos por que
por fortuna. Mantêm-se, porém, a Igreja alcançou tanta grandeza
sem qualquer das duas, porque no poder temporal, diria que,
são sustentados pela rotina da antes de Alexandre, os potenta-
religião. As suas instituições tor- dos italianos (e não somente
nam-se tão fortes e de tal natu- potentados, mas qualquer barão
reza que sustentam os seus prín- ou senhor, apesar de insignifi-
cipes no poder; vivam e cante) pouca importância davam
procedam eles como bem enten- ao poder temporal da Igreja. E
derem. Só estes possuem Estados agora até um rei de França o re-
e não os defendem; só estes pos- ceia e foi expulso da Itália pelo
suem súditos que não governam. papa, que conseguiu ainda arrui-
E os seus Estados, apesar de nar os venezianos, o que apesar
indefesos, não lhes são arrebata- de co_n4ecid9 não é inoportuno
dos; os súditos, -embora não relembrar;
sejam governados, não cuidam Antes que Carlos, rei da Fran-
de alijar o príncipe nem o podem .ç~, invadisse a Itália, esta provín-
fazer. Somente esses principados, cia estava sob o impé~o do·papa,
portanto, são, por natureza, segu- venezianos, rei de Nápoles,
ros e felizes. E sendo eles regidos duque de Milão e florentinos.
por poderes superiores, aos quais Estes governos deviam ter dois
a razão humana não atinge, dei- cui_dados principais: um - que o
52 MAQUIAVEL

estrangeiro não entrasse na Itália já existiram, demonstrou como


com tropas; outro - que ne- um papa se podia fazer valer,
nhum deles estendesse o~ seus pelo · dinheiro e pela forçai, e,
1

domínios. Aqueles· que mais se valendo-se do Duque Valentino


deviam vigiar eram o papa e os como instrumento, e quando da
venezianos. E para deter a estes vinda dos franceses, fez tudo
era necessária a união de todos quanto já referi acima, a respeito
os outros, como aconteceu na de- da ação do duque. E apesar de o
fesa de Ferrara; e para pôr em seu intento não ser o de tornar a
xeque o poder do papa, haveriam Igreja ·poderosa, tudo quanto o
de servir os barões de Roma, os duque realizou foi pela grandeza
quais, por estarem divididos em desta, a qual, depois da morte de
duas facções - Orsini e Colon- Alexandre e morto também o
na - , viviam e.m constante duque, foi a herdeira dos traba-
disputa. E estando sempre de lhos que este realizara. Veio de-
armas na mão, aos olhos do pró- pois o Papa Júlio e encontrou a
prio pontífice, tornavam o papa- Igreja forte, na posse de toda a
do fraco e inseguro. E se bem que Romanha, sendo que, pelas in-
às vezes surgisse um papa animo- vestidas de Alexandre, haviam
so, como foi Xisto, a sua fortuna
sido extintos os barões de Roma
e o seu saber não bastavam para
e anuladas as facções referidas.
livrá-lo dessa dificuldade. A bre-
Encontrou ainda o.caminho aber-
vidade dos pontificados é a razão
to para acumular dinheiro, o que
disso, pois nos dez anos que, em
média, um papa reinava, conse- nunca fora feito antes de Alexan-
güia; embora à custa de grande dre. Julio não s6 prosseguiu em
trabalho, rebaixar uma das fac- tais trabalhos, como ainda os
ções .. Não obstante, se um deles acresceu. E pensou em conquis-
havia conseguido quase que ex- tar Bol~ha, liquidar os venezia-
tinguir os Colonna, por exemplo, nos e expulsar o~ franceses da
seguia-se um outro papa, inimigo Itália. Alcançou ,êxito em todas
dos Orsini, que favorecia a volta essas. empresas, e é tão mais
dos Colonna, e não tinha tempo digno de louvor quanto se sabe
também de destruir os Orsini. que fez tudo -isso. com a preocu-
Por isso o poder temporal do pação de engrandecer a· Igreja e
papa foi pouco estimado na Itá- não um determinado indivíduo.
lia. Surgiu depois Alexandre VI, Manteve ·ainda os dois partidos
o qual, de todos os pontífices que dos Orsini e dos Colonna, nas
O PRÍNCIPE 53

mesmas condições em que os cidade, fomentam os partidos e


encontrou; e apesar de que entre os barões são forçados a defen-
eles houvesse. alguns chefes capa- dê~los. Assim, da ambição dos
zes de provocar àlterações;- nada prelados, nascem as discórdias e
fizeram; duas coisas os maptive- os tumultos entre os barões. Sua
ram inativos: o poder da Igreja, Santidade, o .Papa Leão, encon-
que os abatia, e o fato de não trou, pois, o pontificado podero-
terem eles partidários no Sacro · síssimo. E espera-se que, se al-
Colégio, pois os cardeais são ori- guns tomaram o papado
gem dos tu:111ultos entre as fac- poderoso pelas armas, o atual
ções. Não haverá paz entre estas pontífice, pela sua bondade e inú-
se tiverem cardeais, pqrque estes, meras outras virtudes, o torne
tanto em Roma como fora da ainda mais forte e venerando.
CAPÍTULO XII

Dos gêneros de milícia e dos soldados mercenários

Tendo eu falado com porme- seu Estado apoiado em tal classe


nor de todas as causas da boa ou de forças, não estará nunca segu-
má sorte dos principados, e con- ro; não são unidas aos príncipes,
siderado as causas da sua ·boa ou são ambiciosas, indisciplinadas,
má sorte, demonstrando os meios infiéis, insolentes para com os
por que se puderam conquistar e amigos, mas covardes perante os
manter, resta-me agora falar a inimigos, não temem a Deus,
respeito dos meios ofensivos e nem dão fé aos homens, e o prín-
defensivos que neles se podem cipe só adia a própria ruína na
achar necessários. Dissemos medida em que adia o ataque.
acima que é necessário a um Assim, o Estado é espoliado por
príncipe estabelecer sólidos fun- elas na paz, e, na guerra, pelos
damentos; sem isso, é certa a sua inimigos. A razão disso é que
ruína. E as principais bases que não têm outro amor nem outra
os Estados têm, sejam novos, ve- força que as mantenha em
lhos ou mistos, são boas leis e campo, senão uma pequena paga,
boas armas. E como não podem o que não basta para fazer com
existir boas leis onde não há que queiram morrer por ti. Que-
armas boas, e onde há boas rem muito ser teus soldados
armas convém que existam boas enquanto não fazes a guerra,
leis, referir-me-ei apenas às mas, se esta vier, fogem ou se
armas. Direi, pois, que as forças despedem. Não me será muito
com que um príncipe mantém o difícil explicá-lo, pois a atual
seu Estado são próprias ou mer- ruína da Itália não é causada por
cenárias, auxiliares ou mistas. As outra coisa senão porque durante
mercenárias e auxiliares são inú- muitos anos esteve apoiada em
teis e perigosas. Se alguém tiver o armas mercenárias. Estas chega-
56 MAQUIAVEL

ram a fazer algo em beneficio de príncipe em pessoa é quem deve


alguns e pareciam valorosas constituir-se capitão, a· república
quando combatiam· umas às ou- deve mandar para esse postQ um
tras, mas, chegado o estrangeiro, de seus cidadãos e, quando for
logo ·mostraram · o que eram. infeliz na escolha, deve logo
Facílimo foi, por isso, a Carlos, substituí-lo. E, se se revelar um
rei de França, conquistar a giz a homem de valor no seu posto,
Itália inteira 1 6 ; dizia a verdade deve a república assegurar-se,
quem dizia que a culpa toda era mediante leis·, contra o capitão,
nossa, mas nao a que pensava e. para que não exorbite ele das
sim a de que foram causa os suas funções. A experiência ensi-
erros expostos acima. E como na que os príncipes, agindo por si
eram culpados os príncipes, mesmos, e as repúblicas armadas
foram eles que sofreram a pena. alcançam grandes progressos, ao
Quero, contudo, demonstrar pa.sso que as armas mercenárias
mais claramente a má qualidade só causam danos. Mais dificil-
destas tropas. Os capitães merce- mente um cidadão de uma repú-
nários ou são. grandes militares blica que tenha tropa própria
ou não são nada; se o forem, não alcança o poder absoluto do que
te poderás fiar neles, porque aspi- nó caso da república apoiada em
rarão sempre à própria glória, ou tropa mercenária. Roma e Espar-
abatendo a ti, que és o seu ta estiveram durante muitos sécu-
patrão, ou oprimindo a outrerr los · armadas e livres. Os suíços 1

contra a tua vontade. Se não são armadíssimos e libérrimos.


forem grandes capitães, arrui- Exemplo das forças mercenárias
nar-te-ão pÓr isso mesmo. E se antigas são os cartagineses, que
alguém respotd~ que, merce- quase foram abatidos pelos mer-
nário ou não, quem estiver com a cenários, quando terminou a pri-
força agirá sempre da mesma meira guerra com os, romanos,
forma, replicarei que as tropas conquanto os exércitos cartagi-
devem ser usadas por um prín- neses tivessem por chefes cida-
cipe ou por uma república. O dãos de Cartago. Filipe da Mace-
dônia foi feito pelos tebanos
.
1 6
Commines, cronista francês, refere que ao capitão da sua gente, depois da
Papa Alexandre VI se atribuía o dito segundo morte de Epaminondas; e depois
o qual "os franceses ao invadir a Itália toma-
ram do giz para marcar OS· seus acampamen- da vitória tirou-lhes a liberdade.
tbs, e não de espadas para combater", que- . Os milaneses, morto o Duque
rendo significar a falta de resistência dos
Estados italianos. Filipe, assalariaram Francesco
O PRÍNCIPE 57

Sforza para que atacasse os vene- Vejamos, porém, o que aconte-


zianos; e, vencido o inimigo em ceu há pouco tempo. Os floren-
Caravaggio, Sforza juntou-se aos tinos fizeram Paulo Vitelli seu
inimigos para oprimir os milane- capitão, homem.muito prudente e
ses, seus patrões. Já :Muzio Sfor- que, ~e simples particular, alcan-
za, seu pai, servindo à Rainha çara altíssima reputação. Se este
Joana de Nápoles, deixou-a, em conquistasse Pis~, não haverá
certo momento, sem exército. quem negue que ele teria opri-
Para não perder o reino, foi ela mido os florentinos; porque, se
obrigada a lançar-se aos braços tivesse ficado servin.do aos seus
do rei de Aragão. E se os vene- inimigos, aqueles não teriam re-
zianos e florentinos, pelo contrá- médio contra isso; e, se o manti-
rio, al~gri:n seu império com vessem, teriam de obedecer-lhe.
tropas mercenárias, seus capitãe~ Se consiàerarmos os progressos
não se tornaram príncipes e os · dos venezianos, ver-se-á que ope-
defenderam sempre, tem-se que raram segura e gloriosamente,
os florentinos, neste caso, foram ·enquanto eles mesmos fizeram a
favorecidos pela sorte, pois dos guerra, o que se deu antes de a
capitães de valor a quem podiam sua atenção voltar-se para as
temer, alguns não venceram, ou- conquistas em terra firme. Aí,
tros tiveram de lutar contra ri- com o auxílio. dos gentis-homens
vais, o.utros ainda dirigiram e com a plebe armada, operaram
a ambição em outros rumos. O valorosamente, mas, quando co- ·
que não venceu foi Giovanni meçaram a combater em terra,
Aucut 1 7 , do qual, por não ter deixaram essa excelente regra e
vencido, não se pôde conhecer a seguiram os costumes de guerra
fidelidade, mas ninguém deixará da Itália. E no princípio de sua
de reconhecer que, se vencesse, ação em terra, . por não t.erem ·
os florentinos estariam à sua muito Estado e por terem grande
mercê. Sforza teve sempre contra reputação, não tinham muito que
si os partidários de Braceio, temer de seus capitães. Am-
vigiando-se eles · mutuamente. pliando os seus domínios sob a
Francesco voltou sua ambição direção de Carmignola, tiveram a
para a Lombardia; Braceio, con- prova desse erro. Pois que, ten-
tra a Igreja e o reino de Nápoles. do-o como grande capitão, quan-
do venceram sob o seu comando
1 7 Ver no índice dos nomes citados o nome
o duque de Milão, e vendo depois
Hawkwood (Sir John). que estava arrefecendo nas coisas
58 MAQUIAVEL

de guerra, julgaram que sob o seu nobreza que as tinha subjugado,


comando não mais poderiam ter ajudada pelo imperador. Ao
vitórias, pois lhe faltava a vonta- passo que a Igreja favorecia as
1

de de vencer; e como não pudes- cidades para aumentar 6 seu


sem pô-lo em disponibilidade, poder temporal. Assim, em mui-
para não perder o que haviam tas cidades, simples particulares
conquis.tado, tiveram de matá-lo se tornaram príncipes. O resul-
para assegurar-se contra ele. Ti- · tado é que, tendo a Itália ficado,
veram depois, por capitães, Bar- · quase toda, em poder da Igreja e
tolomeu de Bérgamo; Roberto de de algumas repúblicas, e os pa-
São Severino, Conde de Piti- dres e os cidadãos destas não
gliano e outros que tais; quanto a estando habituados a manejar
estes, só tinham que temer as armas, começaram a aliciar mer-
suas derrotas, não suas conquis- cenários estrangeiros para o ser-
tas, como aconteceu depois em viço militar. O primeiro que
V ailá, onde, em. um só dia, perde- granjeou fama no comando dessa
. ram o que, em oitocentos anos, à espec1e de tropa foi Alberico da
custa de tantos trabalhos, haviam Conio, romanholo. Braceio e
conquistado. Essas tropas dão Sforza, que, em seus tempos,
apenas lentas, tardias e precárias foram árbitros da Itália, foram
conquista~ mas rápidas e espan- saídos, como muitos, da escola
tosas perdas. E corho citei estes daquele. Depois vieram todos os
exemplos da Itália, que foi gover- outros que têm comandado estas
nada muitos anos com armas milícias até nossos tempos. E
mercenárias, continuarei a discu- como conseqüência disso, a Itália
tir o assunto sob um aspecto foi invadida por Carlos, depre-
mais geral, a fim de que, conhe- dada pór Luís, atacada por Fer-
cendo-se as suas origens e o seu nando e infamada pelos suíços. A
desenvolvimento, seja possível primeira coisa que fizeram os
corrigir melhor o erro de usar çondottieri foi procurar anular a
essas tropas. Deveis saber então importância da infantaria, para
que, começándo . nestes últimos realçar a importância própria.
tempos o império a ser repelido Agiram assim porque, não tendo
da Itália, e tendo o papa maior Estado próprio e dependendo
autoridade no poder temporal, o sempre da sua profissão, se tives-
país foi retalhado em mais Esta- sem pouca infantaria, não conse-
dos; porque muitas das maiores guiriam fama, e se muita, não
cidades tomaram armas contra a poderiam sustentá-la. Reduzi-
O PRÍNCIPE 59

ram-se portanto quase ·exclusiva- combates e fazendo-se prender


mente à cavalaria, pois, com uns aos outros sem resgate. Não
pequeno número de cavaleiros, atacavam as cidades de noite e os
achavam apoio e honras,. sem que defendiam as cidades não
grandes encargos. Isso chegou a atacavam os sitiantes, e nem que-
tal ponto que, nutn exército de riam combater no inverno. Tudo
vinte mil homens, não havia dois isso lhes era permitido pelo seu
mil infantes. código militar, que, como se
Empregavam, ademais, os .ca- disse, tinha o objetivo de evitar
pitães todos os meios para afas- trabalhos e perigos. E assim
tar, de si e dos soldados, o medo escravizaram e infamaram a Itá-
e o trabalho, poupando-se nos lia.
CAPÍTULO XIII

Das tropas auxiliares, mistas e nativas

As tropas auxiliares, que não. Mas a boa fortuna do papa origi-


são mais do que armas inúteis, nou um terceiro acontecimento, a
são as que manda em teu auxílio fim de que ele nã9 colhesse os
algum poderoso, como fez em frutos da sua má escolha; é que
tempos não muito remotos o tendo ·sido as forças auxiliares
Papa Júlio; tendo ele tido, na desbaratadas em Ravena, e .sur-
expedição contra Ferrara, triste gindo os suíços, que expulsaram
prova dos exércitos mercenários, os vencedores, ·excedendo qual-
voltou-se para as tropas auxilia- quer., e4pectatiya do papa e de
res, combinando com Fernando, outros, não ficou ele preso pelos
rei de Espanha, que os infantes e inimigos, que haviam fugido,
cavaleiros deste fossem ajudá-lo. nem pelos seus aliados, tendo
Tais tropas podem ser úteis e vep.cido com outras forças que
boas por si próprias, mas quase não as próprias. Os florentinos,
sempre acarretam prejuízos ao que estavam desarmados, leva-
que as solicita, pois, se perderem, ram dez mil franceses a Pisa,
estará anulado, se vencerem, es- para expugná-la: e nisso encon-
tará seu prisioneiro. E, muito em- traram mais perigo do que em
bora a história antiga esteja cheia quaisquer de seus próprios traba-
destes exemplos, eu não quero lhos, e!ll todos os tempos. O
sair deste, ainda recente, do Papa imperador de Const~ipla,
Júlio II, cuja decisão de abando- para opor-se aos seus vizinhos,
nar-se nas mãos de um estran- pôs dez mil turcos na Grécia, os
geiro, só pela vontade de con- quais, terminada a guerra, não
quistar Ferrara, não se pode mais quiseram partir, o que foi o
considerar uma boa deliberação. começo da servidão da Grécia
62 MAQUIAVEL

aos infiéis 1 8 • Valha-se, portanto, Fo~li. Depois, como essas tropas


destas tropas quem não quiser não lhe inspirassem confi~ça,
vencer, porque são muito mais voltou-se às mercenárias, que,
perigosas do que as mercenárias. julgou, eram menos perigosas. E
Com aquelas, a ruína é certa; tomou a seu serviço os Orsini e
são unidas e votadas inteira- Vitelli. Quando, tendo usado as
mente à obediência a outros. destes últimos, julgou-as dúbias e
Quanto às forças mercenárias, infiéis, extinguiu-as, dedicando-se
depois da vitória, precisam de às que eram verdadeiramente
mais tempo e de melhor oportu- su~. Pode-se daí concluir facil-
nidade de prejudicar-te, pois não mente a diferença entre umas e
constituem um corpo perfeita- outras, considerada a transfor-
mente unido e, além disso, foram mação na fama do duque, de
organizadas e são pagas por ti; quando tinba apenas os france-
nestas, se constituíres chefe a um ses, para quando empregava os
terceiro, não poderá este ter Orsini e Vitelli, e quando afinal
desde logo tanta autoridade que ficou com soldados seus e. sob
te possa ofender gravemente. Em seu próprio comando. Ver-se-á
resumo, nas tropas mercenárias, que sua fama foi aumentando
o que é perigoso é a covardia; sempre e nunca foi tão estimado
nas auxiliares, o valor. ' como quando se viu que ele era
Os príncipes prudentes repeli- senhor absoluto de suas tropas.
ram sempre tais forças, para Eu não queria senão citar exem-
valer-se das suas próprias, prefe- plos italianos ou recentes; apesar
rindo antes perder com estas a disso, não quero deixar de falar
vencer com auxílio das outras, de Hierão Siracusano, já acima
considerando falsa a vitória con- referido. Este, como disse, inves-
quistada com forças alheias. Não tido das funções de chefe dos
deixarei nunca d~ ter em mente o exércitos siracusanos, percebeu
exemplo de César Bórgia e suas logo que a milícia mercenária
ações. Este duque entrou na -não era boa, por serem os chefes
Romanha à custa de armas auxi- semelhantes aos nossos, italia-
liares, conduzindo tropas france- nos.Parecendo-lhe que não podia
sas, com as quais tomou Ímola e mantê-los nem desfazer-se deles,
fê-los cortar em pedaços. Assim,
18
O Imperador João Cantacuzene, em guerra pôde fazer guerra, depois, com
contra a facção dos Paleólogos, aliou-se, em
1346, com o Sultão Orchan. Finda a guerra, os
tropas próprias. Quero ainda re-
turcos estabeleceram-se em Gallipoli. cordar uma passagem do Antigo
O PRÍNCIPE 63

Testamento, referente a este as- vencer. Os exércitos de França,


sunto. Oferecendo-se Davi a pois, têm sido mistos, compostos
Saul, para ir combater contra de mercenários e soldados pró-
Golias, grande provocador filis- prios. São eles muito melhores
teu, Saul, para animá-lo, quis que que as simples tropas auxiliares
ele fosse com a armadura real. ou mercenárias e muito inferiores
Davi, logo que a pôs sobre si, aos exércitos próprios.
repeliu-a, dizendo que n·ão pode- Basta o exemplo dado, porque
ria usar bem da sua própria o reino de França seria inven-
força, pois queria encontrar-se cível se ·se tivesse desenvolvido
com o inimigo valendo-se apenas ou pelo menos conservado o
da funda e da faca para comba- regulamento militar de Carlos.
tê-lo. Enfim, as armas de outrem Mas a pouca prudência dos ho-
ou te caem pelas costas, ou mens não descobre o veneno que
pesam sobre ti, ou ainda -te sufo- está escondido nas coisas que
cam. Carlos VII, pai do Rei Luís bem lhes parecem ao princípio,
XI, tendo, com a sua boa sort~ e conforme disse acima, a respeito
valor, livrado a França do jugo das febres éticas.
dos ingleses, conheceu a necessi- Portanto, aquele que, num
dade de se armar com forças que principado, não conhecer os
fossem suas, realmente, e tornou males na sua origem não é verda-
obrigatório, no seu reino, o servi- deiramente sábio, o qµe é dado a
ço militar. O Rei Luís extinguiu, poucos. Se se considerar o come-
depois, a arma de infantaria e ço da decadência do Império
começou a ter suíços a soldo. Romano, ach_~r-seá que foi moti-
Esse erro, seguido de outros, foi, vada somente por ter eomeçado a
como se vê agora, o motivo dos ter a soldo mercenários godos.
perigos daquele reino. Tendo Desde então começaram a decli-
dado reputação aos suíços, avil- nar as forças do império e todo o·
tou as pró~as tropas, porque valor dele lhes era levado à
desapareceu a infantaria e a sua conta. Concluo, pois, que, sem
cavalaria foi subordinada à tropa possuir armas próprias, nenhum
estrangeira, e, acostumando-se principado está seguro, · antes,
elà a militar com suíços, não lhe está à mercê da sorte, não exis-
parece possível vencer sem eles.) tindo virtude que o defenda nas
,
D01 não bastarem os franceses. adversidades. Foi sempre opinião
contra os suíços, e sem os suíços, e sentença dos_ homens sábios -
contra outros, não conseguiram "quod nihil sit tam infirmu1?2 aut
64 MAQUIAVEL

instabile quam fama potential modo de regulamentar os exérci-


non sua vi nixa 1 9 ". E as forças tos próprios será fácil de e~con­
próprias são aquelas compostas trar-se se se analisarem os regula-
i
de súditos ou de cidadãos, ou de mentos dos quatro a quem me
servos teus; todas as outras são referi, e se se considerar ~orn
mercenárias ou auxiliares. E o Filipe, pai de Alexandi;e Magno,
e muitas repúblicas e príncipes se
armaram e regeram: e é a essas
1 9 "Nada é tão instável quanto a fama de

poderio de um príncipe quando não apoiada


ordens que me reporto inteira-
na própria força." ment~ durante esta exposição.
CAPÍTULO XIV

Dos deveres do príncipe para '.com as suas tropas

Deve, pois, um príncipe não as outras razões que te acarretam


ter outro objetivo nem outro males; o estar desarmado te o bri-
pensamento, nem ter qualquer ga a ser submisso, e isso é uma
outra coisa como prática a não das infâmias de que um príncipe
ser a guerra, o seu regul~nto e se deve guardar, como adiante se
SlJ.a disciplina, porque essa é a dirà. Não há proporção alguma
única arte que se espera de quem entre um príncipe armado e um
comanda. É ela de tanto poder desarmado, e não é razoável que
que não só mantém aqueles que quem está armado obedeça com
nasceram príncipes, mas muitas gosto a quem não está, e que o
vezes faz com que cidadãos de príncipe desarmado viva seguro
condição particular ascend~m entre servidores em armas. Ha-
àquela qualidade. Ao contrário, vendo desdém, por parte de um, e.
vê-se que perderam os seus Esta- suspeita, de· outro lado, não é
dos os príncipes. que se preocu- possível que ajam de acordo. Um
param m~üs com os 1uxos da vida príncipe que não ent_enda de milí-
do que com as armas. A primeira cia, além de outras infelicidades,
causa que te fará perder o gover- como se disse, não pode ser esti-
no é descur ár desta arte e a razão ~ mado pelos seus soldados nem
de poderes conquistá-lo é o pro- ter confiança neles.
fessá-la. ·Francesco Sforza, de Um príncie~ deve, p9is, não
simples particular tornou-se deixar nunca de se preocupar
duque de Milão, pelo fato de ter- com· a arte da guerra e praticá-la
se armado; ao passo que os seus- na paz aindà mais mesmo que ria
filhos, por fugir aos deveres das guerra, e · ~sto pode ser conse~
armas, de duques passar_am a guido por dµas formas: pela ação
simples cidadãos. Porque, entre ou apenas pelo pensamento.
·'
66 MAQUIAVEL

Quanto à ação, além de manter assediar ou acampar com vanta-


os soldados disciplinados e cons- gem. Filopêmenes, príncipe dos
tantemente em exercício, deve · aqueus, entre as outras qualida-
estar sempre em grandes caça- des que lhe deram os escritores,
das, onde deverá habituar o tinha esta de, nos tempos de paz,
corpo aos incômodos naturais da não deixar de pensar nunca em
vida em campanha e aprender a coisas de guerra. Quando pas-
natureza dos lugares, saber como seava no campo, com os amigos,
surgem os montes, como afun- parava às vezes e os interrogava:
dam os vales, como jazem as "Se os inimigos estivessem sobre
planícies, e saber da natureza dos aquele monte, e nós estivéssemos
rios e dos pântanos, empregando aqui, com nossos exércitos, quem
nesse trabalho os melhores cuida- teria maiores vantagens? Como
dos. Esses conhecimentos são se poderia ir ao seu encontro,
úteis sob dois aspectos princi- observando a nossa formação?
pais: primeiro, aprende o prín- Se nós quiséssemos retirar, como
cipe a conhecer bem o seu país e deveríamos fazer? Se eles se reti-
ficará conhecendo melhor os seus rassem, como faríamos para se-
meios de defesa; segundo, pelo gui-los?" Enfim, formulava todas
conhecimento e prática daqueles as hipóteses que podem ocorrer
sítios, conhecerá facilmente qual- em campanha, ouvia-lhes a opi-
quer outro, novo, que lhe seja nião, dava a sua, corroborava-as
necessário especular, pois que os com razões e exemplos, de modo
montes, os vales, as planícies, os que, mercê dessas contínuas cogi-
rios e os pântanos que existem na tações, quando estava à frente
Toscana, por exemplo, apresen- dos exércitos, nunca surgia um
tam certas semelhanças com os acidente que ele já não tivesse
de outras províncias. Assim, pelo previsto e para o qual, portanto,
conh~imet ·da geografia de não tivesse remédio.
uma província, pode-se facil- Agora, quanto ao exercício do
mente chegar ao conhecimento pensamento, o príncipe deve ler
de outra. E o príncipe que falha histórias de países e considerar
nesse particular falha na primeira as ações dos grandes homens,
qualidade que deve ter um capi- · observar como se conduziram
tão, porque é esta que ensina a nas guerras, examinar as razões
entrar em contato com p inimigo, de suas vitórias e derrotas, para
acampar, conduzir os exércitos, poder fugir destas e imitár aque-
traçar os plano$ de batalha, e las; sobretudo, deve fazer como
O PRÍNCIPE 67

teriam feito em tempos idos cer- quanto se assemelhava ele, na


tos grandes homens, que imta~ abstinência, afabilidade, humani-
vam os que antes deles haviam dade, liberalidade, ao que Xeno-
sido glorificados por suas ações, fonte disse de Ciro. Um príncipe
como consta que Alexandre sábio deve observar estas coisas e
Magno imitava a Aquiles, César nunca ficar ocioso nos tempos de
a Alexandre, Cipião a Ciro. E paz; deve, sim, inteligentemente,
quem ler a vida de Ciro, escrita ir formando cabedal de que se
por Xenofonte, reconhecerá, de- possa valer nas adversidades,
pois, na vida de Cipião, quanto para estar sempre preparado a
lhe foi valiosa aquela imitação e resistir-lhes.
CAPÍTULO XV

Das razões por que os homens e, especialmente,


os príncipes são louvados ou vituperados

Resta examinar agora como ruína própria, do que o modo de


deve um príncipe comportar-se se preservar; e um. homem que
com os seus súditos e seus ami- quiser fazer profissão de bondade
gos. Como· sei que muita gente já é·natural que se arruíne entre tan-
escreveu a respeito desta matéria, tos que são maus.
duvido que não seja considerado Assim, é necessário a um prín-
presunçoso propondo-me exami..- cipe, para se manter, que ·aprenda
. ná-la também, tanto mais quanto, a poder ser mau e que se valha ou
ao tratar deste assunto, não me deixe de valer-se disso segundo a
afastarei grandemente dos ptincí.., necessidade.
pios estabelecidos pelos outro_s. Deixando de parte, pois, as
. Tod.avia, como é meu intento coisas ignoradas relativamente
escrever coisa útil para os que se aos prínCipes e falando a respeito
interessarem, pareceu-me mais das que são reais, digo que todos
conveaiente procurar a verdade os homen.s, máxime os príncipes,
pelo efeito das coisas, do que ·por . estarem mais no alto, se
pelo que delas se possa imaginar. fazem n~tar através das qualida-
E muita gente imaginou repú- des que lhes acarretam reprova-_
blicas e principados que nunca se ção ou louvor. Isto é, alguns são
viram nem jamais foram reco- · tidos .como liberais, outros como
nhecidos como verdadeiros. Vai miseráveis (usando o termo to~­
· tanta diferença entre o. como se cano misero, porque avaro, em
vive e o modo por que se deveria nossa língua, .é ainda aquele que
viver, que quem se preocupar deseja possuir· pela rapinagem, e·
. com o que se deveria fazer em miseri chamamos aos que se abs-
vez do que se faz aprende antes a têm m.uito de usar o que pos-
70 MAQUIAVEL

suem); alguns são tidos como tão prudente que saiba evitar os
pródigos, -outros como rapaces; defeitos que lhe arrebatariam o
alguns são cruéis e outros piedo- governo e praticar as qualidades
1

sos; perjuras ou leais; efemina- próprias para lhe assegur ar a


dos e pusilânimes ou truculentos posse deste, se lhe é possível;
e animosos; humanitários ou so- mas, não podendo, com menor
berbos; lascivos ou castos; estú- preocupação, pode-se deixar que
as coisas sigam seu curso natu-
pidos ou astutos; enérgicos ou
ral. E ainda não lhe importe
indecisos; graves ou levianos;
incorrer na fama de ter certos
religiosos ou incrédulos, e assim defeitos, defeitos estes sem os
por diante. E eu sei que cada qual quais dificilmente poderia salvar
reconhecerá que seria muito de o governo, pois que, se se consi-
louvar que um príncipe pos- derar bem tudo, encontrar-se-ão
suísse, entre todas as qualidades coisas que parecem virtudes e
;eferidas, as que são tidas como que, se fossem praticadas, lhe
boas; mas a condição humana é acarretariam a ruína, e outras
tal, que não consente a posse que poderão parecer vícios e que,
completa de todas elas, nem ao sendo seguidas, trazem a segu-
menos a sua prática consistente; rança e o bem-estar do gover-
é :q._ecessário que o príncipe seja nante.
CAPÍTULQ XVI

Da liberalidade e da parcimônia

Começando, portanto, pela que, tendo a sua liberalidade


primeira das qualidades enume- acarretado prejuízo a muitos e
radas, direi em que condições o beneficiado a outros, começa o
ser julgado liberal é um bem. A príncipe a sentir os primeiros
liberalidade usada para que reveses e periga em qualquer
gozes da fama de liberal nã:o é circunstância que ocorra. Perce-
uma virtude; se é ela praticada bendo isso, e querendo retrair-se,
virtuosamente e como devido, o - príncipe é ·1ogo tachado de
será ignorada e não te livrarás da avaro. Assim, pois, não podendo
má fama do seu contrário. usar dessa virtude sem dano pró-
Assim, se se quiser manter entre prio, de modo que seja conheci-
os homens a fama de liberal, é da, deve ele, se é prudente, des-
necessário não omitir nenhuma
,/
prezar a pecha de avarento,
demonstr'1:ç..ãer_.-de suntuosidade, porque, c?m o tempo, poderá
de taL---modo que, nessas condi- demonstrar que é cada vez mais
ções, consumirá sempre um prín- liberal, pois o povo verá que a
cipe, em semelhantes obras,
1
parcimônia do príncipe faz com
todas as suas. rendas. E, no fim, que a sua receita. lhe baste,
se quiser manter aquela fama, podendo ele defender-se de quem
precisará de gravar o povo ex- lhe move guerra, e também lan-
traordinariamente, proceder çar-se em empreendimentos sem
cruelmente no fisco e fazer tudo o gravar o povo, e assim está sendo·
que se pode fazer para ter dinhei- liberal para todos aqueles de
ro. Isso começará a tomá-lo quem nada tira, os quais são inú-
odioso aos olhos dos súditos, e meros, e miserável para aqueles a
uma vez empobrecido cairá na quem não dá nada, que são muito
desestima dos outros; de forma poucos. Em nossos tempos, não
72 MAQUIAVEL

vimos que fizessem grandes coi- ral. E César .era um dos que que-
sas senão os que foram conside- r.iam alcançar o poder em Roma,
rados miseráveis; os outros arrui- mas se, depois que o alcançou,
naram-se. O Papa Júlio II, como tivesse vivido mais tempo e pros-
se houvesse servido da fama de seguido naquelas despesas e não
liberal para chegar ao papado, as tivesse reduzido, teria des-
não pensou depois em mantê-la, e truído o império. Se alguém repli-
isso para poder fazer guerra con- casse que houve muitos príncipes
tra o rei de França; entrou em que fizeram grandes coisas com
muitas campanhas sem onerar os os seus exércitos e têm fama .de
seus com qualquer tcµca extraor- liberais, responderia eu que ou 'o
dinária, porque, para atender à~ príncipe gasta o que é seu, ou dos
despesas supérfluas, bastou-lhe a seus súditos,. ou o que é de
sua grande parcimônia. O atual outrem. No primeiro caso deve
rei da Espanha, se fosse conside- ser sóbrio, no outro, não deve ·
rado liberal, não teria começado esquecer nenhuma liberalidade. E
nem vencido tantos empreendi- ao príncipe que marcha com seus
mentos. exércitos e que vive à custa de
Portanto, um ·príncipe deve presas de guerra, de saques e de
gastar pouco para não ser obri.,. reféns, e maneja o que é dos
gado a roubar seus súditos; para outros, é necessária essa liberali-
poder defnr~s; para não se dade, porque de outra forma não
empobrecer, tornando-se despre- seria seguido pelos seus soldados.
zível; para não ser forçado ator- E é possível seres muito mais
nar-se. rapace; e pouco cuidado pródigo com aquilo que te não
lhe dê a pecha de miserável; pois pertence nem aos teus súaitos,
esse é um dos defeitos que lhe como fizeram Ciro, César e Ale-
dão a possibilidade de bem rei- xandre, pois gastar o qu.e é de ou-
nar. E se alguém disser que . trem não rebaixa, pelo contrário,
César, com sua liberalidade, as- eleva a r·eputação. Gastar o que é
cendeu ao · impêrio, e muitos seu mesmo, isso sim, é nocivo. E
out:r~s, por serem considerados não há coisa que se destrua por si
liberais, alcançaram altos postos, própria como a liberad~, pois
..résponderei que ou já és príncipe com seu uso continuado vais per-
ou estás no caminho de o ser. No dendo a faculdade de usá-la e te
primeiro caso, esta liberalidade é tornas ou pobre e necessitado;
prejudicial; no segundo caso, é · ou, para fugir d;i pobreza, rapace
necessário ser considerado. libe- e odioso. E dentre as· coisas de
O PRÍNCIPE

que um príncipe se deve guardar'. · que acarreta má fama sem ódio,


estão o ser necessitado ou odioso. do que, para conseguir afama de
E a liberalidade conduz a uma ou liberal, ser obrigado a incorrer
a outra coisa. Assim, pois, é mais também na de rapace, o que
prudente ter fama de miserável, o constitui uma infâmia odiosa.·
1

1
l
CAPÍTULO XVII

Da crueldade e da piedade - se é melhor


ser amado ou temido

Continuando na exposição das piedoso do que áqueles que por


qualidades acima referidas, tenho muita clemência deixam aconte-
a dizer que cada príncipe deve cer ·desordens, das quais podem
desejar ser tido como piedoso .e nascer assassínios ou rapinagem.
não como cruel: apesar disso, É que estas conseqüências preju-
deve cuidar de empregar conve- dicam todo um povo, e as execu-
nientemente essa piedade. César ções que provêm do príncipe
Bórgia era considerado cruel, e, ofendem apenas um indivíduo. E,
contudo, sua crueldade havia entre todos os príncipes; os novos
reerguido a Romanha e conse- são os que menos podem fugir à
guido uni-la e conduzi-la à paz e fama de cruéis, pois os Estados
à fé. O que, bem considerado, novos são cheios de perigo. Diz
mostrará que ele foi muito mais Virgílio, pela boca de Dido:
piedoso do que o povo florentino, Res dura, et regni novitas me
o qual, para evitar a pecha de talia cogunt Moliri, et late fines
cruel, deixou que Pistóia fosse custode tueri 2 1 •
destruída 2 0 • Não deve, portanto, Não deve ser, portanto, cré-
importar ao príncipe a qualifica- dulo o príncipe, nem precipitado,
ção de cruel para manter os seus e não deve amedrontar-se a si
súditos unidos e com fé, porque, próprio, e proceder equilibrada-
com raras exceções, é ele mais mente, com prudência e humani-
d~e, de mod0 que a confiança
2
õ Florença fomentava a discórdia entre as
facções rivais de Pistóia (Panciatichi e Cancel-
lieri). Em 1502, uma série de motins determi- 2 1
"A dura condição das qoisas e o fato
nou a ocupação da cidade pelo governo mesmo de ser recente o meu reinado obrigam-
florentino. me ao rigor e a fortificar as fronteiras."
76 MAQUIAVEL

demasiada não o tome incauto e que o temor que se infunde é ali-


a desconfiança excessiva não o mentado pelo receio de castigo,
faça intolerável. que é um sentimento que não se
Nasce daí esta questão debati- abandona nunca. Deve, portanto,
1

da: se será melhor ser amado que. o príncipe fazer-se temer de ma-
temido ou vice-versa. Respon- neira que, se não se fizer amado,
der-se-á que se desejaria ser uma pelo menos evite o ódio, pois é
e outra coisa; mas como é difieil fácil ser ao mesmo te pipo temido
reunir ao mesmo tempo as quali- e não odiado, o que sucederá
dades que dão aqueles Tesultados, um~ vez que se abstenha de se
é muito mais seguro ser temido apoâ.erar dos bens e das mulheres
que amado, quando se tenha que dos seus cidadãos e dos seus sú-
falhá.r numa das duas. É que os ditos, e, mesmo sendo obrigado a
homens geralmente são ingratos, derramar o sangue de alguém,
volúveis, simuladores, covardes e poderá fazê-lo quando houver
anibjciosos de dinheiro,. e, en- justificativa co~venit e causa
quanto lhes fizeres bem, todos manifesta. Deve, sobretudo, abs-
estão contigo, oferecem-te san- ter-se de se aproveitar dos bens
gue, bens, vida, filhos, como dos outros, porque os _homens
disse acima, desde que a necessi- esquecem mais depressa a morte
dade esteja longe de ti. Mas, do pai do que a perda de. seu
quando ela se avizinha, voltam-se patrimônio. Além disso, ·não fal-
para outra parte. E o príncipe, se tam nunca ocasiões p.ara pilhar o
confiou ~enamt em palavras que é dos outros, e aquele que co-
e não tomou outras precauções, meça a viver de rapinagem sem-
está arrumado. Pois as amizades pre as encontra, o que já não su-
conquistadas por interesse, e. não cede quanto às ocasiões de
por grandeza e nobreza de ca.rá- derramar sangue.
ter, são compradas, mas nãó se Mas quando o príncipe está
pode contar com elas no momen- em campanha e tem sob seu
to necessário. E os homens hesi- comando grande cópia de solda-
tam menos em ofender aos que se dos, então é absolutamente J?.e-
fazem amar do que aos que se cessário não se importar com a
fazem temer, porque o amor é fama de cruel, porque, sem ela,
· mantido por um vínculo de obri- não se conseguirá nunca mante~
gaÇão, o qual, devido a serem os um exército unido e disposto a
homens pérfidos, é rompido sem- qualquer ação. Entre as admirá-
pre que lhes aprouver, ao passo veis ações de Aníbal, enumera-se
O PRÍNCIPE 77

esta: tendo um exército muito do que a que convinha à disci-


numeroso, composto de homens plina militar. Foi, por isso, ad-
de todas as idades e nacionali- moestado severamente no Senado .
, - ',- -.::-'"/ ~- • ..-' .... - - ... -~ - ~ .. ' .-., "'.. '."-~ '-~ ~-',
, ., ,t.

dades, e militando em terras por F:.ªNQ~_Maximo, que o cha- ~, ·


alheias, não surgiu nunca desin- mou o t p u r ü ê - ~ · e a ' " da milícia
teligência alguma no seu seio, romana. Os locrenses, tendo sido
nem com relação ao príncipe, barbaramente abatido-s por um
tanto nos bons como nos tempos legado de Cipião, não foram vin-
adversos. Isso não se pode atri- gados pelo chefe romano, nem a
buir senão à sua desumana cruel- insolência daquele legado foi cas-
dade, a qual, juntamente com tigada, fatos esses que nasciam
infinitas virtudes, o tornou sem- do caráter bondoso de Cipião. E,
pre venerando e te~riv.l oo con- querendo alguém desculpá-lo no
ceito de seus. soldados. E estas Senado, disse haver muitos ho-
virtudes, por si sós, não basta- mens que sabiam mais não errar
riam para produzir aquele efeito, do que corrigir os erros dos
se não fora aquela desumana . outros. Esse traço de caráter
crueldade. E . entre escritores teria,. cóm o tempo, destruído a
pouco comedidos, alguns se con- fama e a glória de Cipião se ele
tentam com admirar e louvar esta tivesse continuado no comando,
sua qualidade, outros atribuem a mas, vivendo sob a direção do
ela todos os triunfos que conquis- Senado, esta sua qualidade preju-
tou. E para provar que as outras dicial não isomente foi anulada,
virtudes, por si sós, não basta- mas se lhe tornou benéfica.
riam, pode-se tomar como exem- Concluo, pois (vofrando ao
plo Cipião, homem excepcional, assunto sobre se é melhor ser te-
não somente nos seus tempos, mido ou amado), que um prín-
mas também na memória dos cipe sábio, amando os homens
fatos que a história conserva, como eles querem e sendo por
çujos exércitos se revoltaram eles temido como ele quer, deve
quando na Espanha; e este fato basear-se sobre o que é seu e não
tem a explicação na sua dema- sobre o que é dos outros. Enfim,
siada bondade, que havia conce- deve somente ·procurar evitar ser
dido aos soldados mais liberdade odiado, como foi dito.
CAPÍTULO XVIII

De que forma os príncipes devem


guardar afé

Quanto seja louvável a um relatam o que aconteceu com


príncipe. manter a fé e viver com · Aquiles e outros .príncipes anti-
integridade, não com astúcia, gos, entregues aos cuidados do
todos o compreendem; contudo, centauro Quiron, que os educou.
observa-se, pela experiência, em É que .isso (ter um preceptor me-
nossos tempos, que houve prínci- tade animal e metade homem)
pes que fizeram grandes coisas, significa que o príncipe sabe
mas em pouca conta tiveram a empregar uma e outra natureza.
palavra dada, e souberam, pela E uma sem a outra é a origem da
astúcia, transtornar a cabeça dos instabilidade. Sendo, portanto,
homens, superando, enfim, os um príncipe o brigado a bem ser-
que foram leais. vir-se da natureza da besta, deve
Deveis saber, portanto, que dela tirar as qualidades da raposa
existem duas formas de se com- e do leão, pois este não tem defe-
bater: uma, pelas leis, outra, pela sa alguma contra os laços, e a
força. A primeira é própria do raposa, contra os lobos. Precisa,
homem; a segunda, dos animais. pois, ser raposa para conhecer os
Como, porém, muitas vezes a pri- laços e le-ão para aterrorizar os
meira não seja suficiente, é preci- lobos. Os que se fizerem unica-
so recorrer à segunda. Ao prín- mente de leões não serão bem
cipe torna-se necessário, porém, sucedidos. Por isso, um príncipe
saber empregar conveniente- prudente não pode nem deve
mente o animal e o homem. Isto guardar a palavra dada quando
foi ensinado à socapa aos prínci- isso se lhe torne prejudicial e
pes, pelos antigos escritores, que quando as causas que o determi-
80 MAQUIAVEL

naram cessem de existir. Se os pois ele conhecia muito bem este 1

homens todos fossem bons, este lado da natureza humana 2 2 • 1

preceito seria mau. Mas, dado Contudo, o príncipe não· preci-


que são pérfidos e que não a sa possuir todas as qualidades
observariam a teu respeito, tam- acima citadas, bastando que apa-
bém não és obrigado a cumpri-la rente possuí-las. Antes, teria eu a
.para com eles. J amai&, faltaram audácia de afirmar que, possuin-
aos príncipes razões para dissi- do-as e usando-as todas, essas
mular quebra da fé jurada. Disto qualidades seriam prejudidais,
poder-se-iam dar inúmeros exem- ao passo que, aparentando pos-
plos m.odeinos, mostrando quan- suí-las,_ são benéficas; por exem-
tas convenções e quantas pro- plo: de um lado, parecer ~er efeti-
messas se tornaram írritas e vãs vamente piedoso, fiel, humano,
pela infidelidade dos príncipes. E, íntegro, religioso, e de outro, ter
dentre estes, o que melhor soube o ânimo de, sendo obrigado pelas
valer-se das qualidades da raposa circunstâncias a não o ser, tor-
saiu-se melhor. Mas é necessário nar-se o contrário. E há de se
disfarçar muito bem esta quali- entender "o seguinte: que um prín-
dade e ser bom simulador e dissi- cipe, e especialmente um príncipe
mulador. E tão simples são os novo, não pode observar todas as
homens, e obedecem tanto às . coisas a que são obrigados os ho-
necessidades presentes, que aque- mens considerados bons, sendo
le que engana sempre encontrará freqüentemente forçado, para
quem se deixe enganar. Não manter o governo, a agir contra a
quero deixar de falar pelo menos caridade, a fé, a humanidade, a
de um dos exemplos novos. Ale- religião. É necsário~ por isso,
xandre VI não pensou e não fez que possua ânimo disposto a vol-
outra coisa senão enganar os tar-se para a direção a que os
/
homens, tendo sempre encon- ventos e as variações da sorte o
trado ocasião para assim proce- impelirem, e, como disse mais
der. Jamais existiu homem que acima, ,não partir do bem, mas,
possuísse maior segurança em podendo, saber entrar para o
asseverar, e que afirmasse com mal, se a isso estiver obrigado. O
juramentos mais solenes o que,
depois, não observaria. No en-
tanto, os enganos sempre lhe cor- faziaDizia-se de Alexandre VI que ele nunca
22

o que dizia, ao passo que César Bói-gia


reram à medida dos seus desejos, nunca dizia o que ia fazer.
O PRÍNCIPE 81

príncipe deve, no entan!o, ter que importa é o êxito bom ou


muito cuidado em n.ão deixar mau. Procure, pois, um príncipe,
escapar da boca expressões que vencer e conservar o Estado. Os
não revelem as cinco qualidades meios que· empregar serão sem-
acima mencionadas, devendo pre julgados honrosos e louvados
aparentar, à vista e ao ouvido, ser por todos, porque o vulgo é leva-
todo piedade, fé, integridade, .hu~ do pelas aparências e pelos resul-
manidade, religião. Não há quali- tados dos fatos consumados, e o
dade de que mais se careça do mundo é constituído pelo vulgo, e
que esta última. É que os ho- não haverá lugar para a minoria
mens, em geral, julgam mais se a. maioria. não tem onde se
pelos olhos do que pelas mãos, apoiar. Um príncipe de nossos
pois todos podem ver, mas pou- tempos, cujo nome não convém
cos são os que sabem sentir. declar-ar, prega incessantemente a
Todos vêem o que tu pareces, paz e a fé, sendo, no entanto, ini-
mas poucos o que és realmente, e migo acérrimo de uma e de
estes poucos não têm a audácia ·outra 2 3 E qualquer delas, se ele
de contrariar a opinião dos que efetivamente a observasse, ter-
têm por si a majestade do Estado. lhe-ia arrebatado, mais de uma
Nas ações de todos os homens, vez, a reputação ou o Estado.
máxime dos príncipes, onde não
há tribunal. para que recorrer, o 23 Alusão a Fernando, o Católico.
CAP°íTULO, XIX

De como se deve evitar o ser


desprezado e odiado

Uma vez que me referi às mai-s nauta evita um rochedo. Deve ele
importantes das qualidades procurar que em suas ações se
acima mencionadas, das outras reconheça grandeza, coragem,
quero falar ligeiramente, de um gravidade e fortaleza, e quanto às
modo geral. O príncipe procure ações privadas de seus súditos
evitar, como foi dito anterior- deve fazer com que a sua sen-
mente, o que o· torne odioso ou tença seja irrevogável, conduzin-
desprezível e, sempre que assim do-se de tal forma que a ninguém
agir, terá cumprido o seu dever e passe pela mente enganá-lo ou
não encontrará nenhum perigo fazê-lo rri.udar de idéia.
nos outros defeitos. O que princi- O príncipe que conseguir for-
palmente o toma odioso, como mar tal opinião de si · adquire
disse acima, é o ser rapace e grande reputação; e contra quem
usurpador dos bens e das .m ulhe- é reputado dificilmente se cons-
res dos seus . súditos. Desde que pira e dificilmente é atacado
não se tirem aos homens os bens enquanto for tido como excelente
e a honra, vivem estes satisfeitos e reverenciado pelos seu~ Um
e só se deverá combater a ambi- príncipe deve ter duas razões de
ção de poucos, a qual se pode receio: uma ·de ordem interna,
~ofrea de muitos modos e com por parte de seus súditos, outra
facilidade. Fá-lo desprezível_ o ser de ordem externa, por parte dos
considerado volúvel, leviano, efe- poderosos de fora. Defender-se-á
minado, pusilânime, irresoluto. E destes com boas armas e com
essas são coisas que devem ser bons aliados; e se tiver armas
evitadas pelo príncipe como o · terá sempre bons amigos. As coi-
84 MAQUIAVEL

sas mternas, por sua vez, estarão não pode estar só, nem pode ter
sempre estabilizadas se estabili- como companheiros senão aque-
zadas estiverem as de fora, salv,o les que estiverem desgostosos 1 E
se aquelas já não estiverem per- logo que revelas as tuas intençpes
turbadas por uma conspiração. a um descontente, dar-lhe-ás mo-
Mesmo quando as de fora se ag~­ tivo de contentamento, pois ele
tassem, se o príncipe tivesse pode esperar qualquer vantagem
agido e vivido como escrevi, e de traição do segredo, e de forma
não desalentasse, resistiria sem-_ que, vendo deste lado só ganhos
pre a qualquer ataque, como nar- certos, e, de ou~r, só vendo .dúvi-
rei acima, relativamente ao es- das .e muitos perigos, somente um
partano N ábis. A respeito dos amigo, como raros, ou um inimi-
súditos, porém, quando as ques- go implacável do príncipe se
tões externas estão em calma conservará fiel à ·conspiração.
deve sempre recear que conspi- Em suma, direi que, por parte do
rem secretamente, perigo de que cónspirador, não há senão medo,
o príncipe se afasta se não se tor- inveja e a suspeita da punição,
nou odiado ou desprezado, e se que o atormenta; por parte do
tiver feito com que o povo esteja príncipe existe a majestade do
satisfeito com ele: e isso é neces- pr:incipado, as leis, a defesa dos
sário conseguir pelas formas a amigos e do Estado, que o res-
que acima se fez.longa referência. guardam: tanto que, acrescen-
Ora, um dos remédios mais efica- tando a tudo. isso a estima popu-
zes que um príncipe possui con- lar, ~ impossível . que exista
tra as conspirações é não se tor- alguém tão 'temerário que se aba-
nar odiado pela população, pois lance a conspirar. Ordinaria-.
quem conspira julga sempre que mente, o que um conspirador re-
vai satisfaz~r os desejos do povo ceia antes de levar a efeito o mal
com a morte dó príncipe; se jul- deverá recear também depois,
gar, porém, que com isso ofende- tendo o povo por inimigo, depois
rá o povo, não ierá coragem de do fato consumado, e não poderá
tomar tal partido, porque as difi- por isso esperar qualquer refúgio.
culdades com que os conspira- Poderia eu citar numerosos
dores teriam que lutar seriam exemplos desta matéria: limitar-
infinitas. Vê-se, pelá experiência, me-ei, porém, a um só, que nos
que muitas têm sido as conspira- foi legado pela recordação de
ções, mas que poucas delas tive- nossos pais. Tendo sido assassí-
ram êxito, pois quem conspira nado pelos C anneschi o senhor
O PRÍNCIPE 85

de Bolonha, Messer Aníbal Ben- nos bem organizados e governa-


tivoglio, avô · do . atual Messer dos, deve-se enumerar o de Fran-
Aníbal, não ficando da família ça. Encontram-se nele numerosas
senão Messer Giovanni, _criança boas instituições, das quais de:...
de colo, õ povo, logo depois do pendem a liberdade e a segurança
homicídio, sublevou-se é matou do rei. A primeira delas é o Par-
todos os Canneschi. Isso foi devi- lamento e a autoridade que pos-
·do à benevolência popular com a sui, pois o homem que organizou
qual a casa dos Bentivoglio con-· aquele reino; conhecendo, de um
tava naquelà época, benquerença lado, a ambição .e a insolência
essa tão grande que, não tenda. dos poderosos, e julgando neces-
restado em Bolonha um só mem- sário pôr-lhes um freio à boca
bro daquela família, que pudesse, . par~ corrigi-los, e, de outro,
morto Aníbal, governar o Esta- conhecendo o ódio do povo con-
do, e havendo indício de que tra os grandes, motivado pelo
havia em Florença um jovem medo, e querendo protegê-los,
pertencente àquela família, e tido, não permitiu que essa. tarefa
até então, como filho de um fer- ficasse a cargo do · rei, para
reiro, os bolonheses ali foram desculpá-lo da acusaçao dos
procurá-lo e lhe entregaram o grandes quando favorecesse o
governo da cidade, que foi gover- povo, e do povo quando favore-
nada por ele até que Messer Gio- cesse os poderosos. Por isso
vanni alcançasse idade suficiente constituiu um terceiro juízo que
para remar. fosse aquele que, ·sem responsabi-
Concluo, portanto, afirmando ljdade do rei, deprimisse os gran-
que a um príncipe pouco devem des e favorecesse · os menores.
importar as conspirações se é Essa organização não podia ser
amado pelo povo, mas quando melhor nem mais prudente, nem·
este é seu inimigo e o odeia, deve se pode negar que seja a melhor
temer tudo e a todos. Os Estados causa de segurança do rei e do
bem organizados e os príncipes reino. Pode-se daí tirar notável
prudentes preocuparam-se sem- instituição; os príncipes devem
pre em não reduz.ir' os grandes ao encarregar a outrem da imposi-
desespero e satisfazer e contentar ção de penas; os atos de· graça,
o povo, porque essa é uma das pelo contrário, só a eles mesmos,
questões mais importantes que em pessoa, devem estar afetos.
um príncipe deve ter em mente. Concluo novamente que ~m prín..:.
Em nossos tempos,. ~ntre es reí- cipe deve estimar os grandes,
86 MAQUIAVEL

mas nao se tomar odiado pelo dade era tão grande que se tor-
povo. nou a causa da ruína de muitos, ·
Poderia parecer a muitos, con- pois é difícil satisfazer a1 um
1
siderando-se a vida e morte de tempo aos soldados e ao povo,
certos imperadores romanos, que pois que este, amante da paz,
constituíssem exemplos contrá- amava, conseqüentemente, os
rios a esta minha opinião, sendo príncipes modestos, e os soldados
que alguns deles, apesar de terem estimavam o príncipe que pos-
vivido sempre exemplarmente e suísse ânimo guerreiro e que
demonstrado possuir grandes vir- fosse insolente, cruel e rapace.
tudes, perderam o poder, ou Queriam que ele usasse dessas
foram mortos pelos seus,. que qualidades contra o povo para
contra ele conspi~arm. Dese- pod.er ganhar soldo dobrado e
jando responder a eÊitas objeções, dar largas à sua rapacidade e
narrarei as causas da sua ruína, crueldade. Isso fez com que os
que são diferentes das que ·aduzi, imperadores que, por natureza ou
procurando tomar particular- por habilidade, não tinham repu-
mente em consideração aquelas tação suficiente para refrear os
que parecem notáveis a quem lê soldados nem o povo sempre se
as ações daqueles tempos. Bas- arruinassem. E a maior parte
ta-'-me citar todos os imper_adores deles, especialmente os novos que
que se sucederam no governo, conquistavam o principado, ao
desde o filósofo Marco Aurélio conhecerem a dificuldade desses
até Maximino, os quais foram dois elementos, procuravam sa-
Marco, s.eu filho Cômodo, Perti- tisfazer aos soldados, não dando
nax, Juliano, Severo, o filho deste · importância às ofensas ao povo;
.- Antonino, Caracala, Macrino, era necessário tomar esse parti-
. Heliogábalo, Alexandre e Maxi- do, pois, não. sendo possível aos
mmo. . Deve-se primeiramente príncipes deixar de ser odiados
atentar em que, enquanto nos ou- por alguém, deviam eles esfor-
tros principados é necessário çar-se antes de mais nada por
lutar apenas contra a ambição não ser odiados pela maioria. E
dos grandes e a insolência qo quando não o podem conseguir,
povo, os imperadores romanos ti- devem procurar, com muita habi-
nham pela frente uma terceira lidade, fugir ao ódio das -maiorias
dificuldade, que era a.. de ter que mais poderosas. Por isso; os
suportar a crueldade e a rapaci- imperadores que, por serem
dade dos soldados. Esta dificul- novos, precisavam de favores
O PRÍNCIPE 87

extraordinários, aderiram aos adquire quer pelas boas, quer


soldados antes de aderir ao povo, pelas más ações. Por isso, um
o que se lhes tornàva útil ou não, ·príncipe, querendo manter o Es-
conforme esse príncipe soubesse tado como -disse mais acima, é
manter à reputação entre eles. freqüentemente obrigado a não
Por estas causas referidas é que ser bom, porque quando aquela
Marco, Pertinax e Alexandre, ho- maioria, povo, soldados ou· gran-
mens de v.ida modesta, amantes des que sejam, de que tu julgas
da justiça, inimigos da crueldade, ter necessidade para te manteres
humanos e benignos, todos, com no poder, é corrompida, convém·
exceção de Marco, tiveram tris_te que sigas o seu pendor para satis-
fim. Só este viveu e morreu fazê,...la, e, nesse caso, as boas
honradíssimo porque chegou ao ações são prejudiciais. Mas fale-
poder jure hereditario 2 4 e não lhe mos de Alexandre, que foi tão
era necessário fazer reconhecer o bondoso que entre os louvores
seu poder, nem pelo povo, nem que se lhe atribuem está o de não
pelos soldados. Ademais, sendo ter, durante os catorze anos que
portador de muitas virtudes, que manteve o império, mandado ,
o tornavam venerando, enquanto executar quem quer que fosse
viveu, sempre manteve a ambos, sem prévio julgamento. Apesar
povo e exército, em ordem, nos disso, sendo considerado efemi-
seus justos termos, e nunca foi nado e homem que se deixava
odiado nem desprezado. Perti- · dominar pela mãe e tendo por
nax, porém, foi feito imperador isso caído no desprezo, o exército
contra a vontade dos· soldados, conspirou e ele foi assassinado.
os quais, tendo sido habituados a Falando, agora, de outro lado,
viver licenciosamente sob o do- das qualidaaes de Cômodo, Seve-
mínio de Cômodo, não puderam ro, Antonino, Caracala e Maxi-
suportar a vida honesta que Per- minó, vereis que foram extrema-
tinax tencionava impor-lhes. Por mente cruéis e rapaces. Para
isso, tendo ele despertado ódio, e satisfazer os soldados, não deixa-
tendo-se ao ódio juntado o des- ram de cometer nenhuma daque-
prezo, pelo fato de ser velho, Per- las injúrias que se pudessem
tinax arruinou-se logo nos princí- cometer contra o povo, e todos,
pios de sua administração. E é de excetuando-se Severo, tiveram
notar-se aqui que o ódio se triste fim. É que Severo foi tão
valoroso que, mantendo a amiza-
2 4 Por direito hereditário. de dos soldados, embora opri-
88 MAQUIAVEL

mindo o povo, pôde sempre rei- nou-o seu colega. Albino julgou
nar com felicidade, porque que tais coisas fossem verdade,
aquelas suas virtudes o tomavam mas Severo, depois de ter vencido
tão admirável no conceito dos e morto Pescênio Negro e pacifi-
soldados e do povo, que este fica- cado o Oriente, voltou a Roma e
va, de certa forma, atônito, e se queixou no Senado de que
aqueles, reverentes e satisfeitos. Albino, esqµecido dos benefícios
Conhecendo Severo a ignávia do dele recebidos, tentara matá-lo
Imperador Juliano, persuadiu o traiçoeiramente e, por isso, era
exército, do· qual era capitão na obrigado a ir punir a ingratidão.
Ilíria, de que era oportuno ir a n·epois, foi ao seu encontro, nas
Roma, para vingar a morte. de Gálias, e lhe tirou o governo e a
Pertinax, assassinado pelos pre- vida. Quem examinar cuidadosa-
torianos, e, sob esse pretexto, sem mente as ações deste homem aca-
aparentar que aspirava ao poder, bará por julgá-lo um ferocíssimo
conduziu O' seu exército contra leão e uma astutíssima raposa e
Ronia, e chegou à Itália antes verá que foi temido e reveren-
mesmo da noticia da sua partida. ciado por todos e não odiado
Chegado a Roma, foi ele, pela pelo exército, e não se admirará
pressão do medo,. eleito impera- se ·ele - homem novo - pôde
dor pelo Senado, e assassinado manter tão grande poder; é que a
Juliano. Depois disso, restavam sua· alta reputação o defendeu
ainda duas dificuldades a Severo sempre daquele ódio que o povo
para se assenhorear de todo o lhe poderia ter votado, em virtu-
Estado: uma, na Ásia, onde Pes- de das suas rapinagens. E Anto-
cênio Negro, chefe dos exércitos nino, seu filho, foi também
·asiáticos, se proclamara impera- homem que tinha excelente pro-
. dor; e outra RO Ocidente, onde:. ceder, que o tomava maravilhoso
Albino também queria súbir ao· no conceito do povo e benquisto
império. E como julgasse peri- · pelos soldados, porque era mili-
goso declarar-se inimigo dos tar, suportava otimamente qual-
dois, deliberou atacar Pescênio quer fadiga e desprezava os man-
Negro e enganar Albino. A este jares delicados e quaisguer
escreveu que, tendo sido eleito outros elementos de conforto:
imperador pelo Senado, queria isso era o suficiente para fazer
. dividir com ele aqtfela honra; ·.com que se tornasse estimado por
mandou-lhe o título de· César e, todos os exércitos. Não obstante,
por deliberação do Senado; tor- sua ferocidade e crueldade foram
O PRÍNCIPE 89

tão grandes e inauditas, que man- como era de índole cruel e bes-
dou matar grande número de tial, para poder usar da sua rapa-
particulares e assim sacrificou cidade contra o povo, pôs-se a
grande parte do povo de Roma e favorecer os soldados e os tornou
todo o de Alexandria, de tal licenciosos; por outra parte, não
modo que se tornou muitíssimo se preocupando com ·a dignidade,
odiado por todos e começou a ser descendo freqüentemente às are-
temido também por aquel.es que nas para combater com os gla-
com ele privaram e, afinal, foi diadores e fazendo outras coisas
assassinado por um centurião, vís, pouco dignas da majestade.
em meio de seu exército. É de imperial, tornou-se desprezível
notar-se neste ponto que tais no conceito dos soldados. Ten-
assassínios, deliberados por ho- do-se tornado, dessa forma, odia-
mens obstinados, são impossíveis· do por uns e desprezado por
de evitar pelos príncipes, pois que outros, conspirou-se contra ele e
todo aquele que não temer a foi assassinado. Resta-nos narrar
morte poderá executá-los. Não as qualidades de Maximino. Este
deve, porém, o príncipe temori- foi homem extraordinariamente
. zar-se, porque são muito raros. belicoso, e, estando os exércitos
Deve apenas guardar-se de não enfastiados com a passividade de
injuriar gravemente alguma das Alexandre, de que falei acima,
pessoas de que se serve e que ele morto este, elegeram-no pará o
tem junto a si, a serviço ·do seu governo. Maximino, porém, não
principado, como fez· Antonino. reinou por muito tempo, porque
Havia este assassinado indigna- duas coisas o tornaram odiado e
mente um irmão daquele centu- desprezado:. primeiro, ser de
rião, e ainda ameaçava este todo baixa extração, pois já fora pas-
dia; mas, apesar disso, conser- tor na Trácia (fato que era conhe-
vou-o na.sua guarda, o que vinha cido por todos e o rebaixava
a· ser coisa. temerária e capaz de muito no conceito de toda a
aruiná~lo, como aconteceu. gente); segundo, tendo, quando
Passemos agora a Cômodo, a da sua elevaç'ão ao império, adia-
quem teria sido fácil manter o do a sua ida a Roma para entrar
poder, por tê-lo alcançado jure na posse da dignidade imperial,
hereditário, sendo filho de dera de si fama de ser muito
Marco, e lhe bastava apenas se- cruel, pois, por intermédio dos
guir as pegadas do pai para con- seus prefeitos, em Roma e em
tentar o exército e o povo. Mas, toda a parte, perpetrara numero-
90 MAQTTIAVBL

sas perversidades. Assim, movi- tisfazer mais aos soldados do que


do todo o mundo pelo desprezo ao povo, agora é mais necessário
de sua baixa ascendência e cheio a todos os príncipes - exceto ao
de ódio pelo temor da sua feroci- grão-turco e ao sultão do Egito
dade, surgiram as conspirações. - satisfazer mais ao povo do
Revoltou-se primeiramente a que ao exército, porque este é
África; depois, o Senado e todo o menos poderoso do que ·aquele.
povo romano, e, mais tarde, toda Excetuo o grão-turco pelo fato de
a Itália esteve contra ele. Juntou- conservar este em torno de si
se a esse movimento o seu pró- doze mil infantes e quinze mil
prio exército, o qual estava em soldados de cavalaria, sendo que
campanha, sitiando Aquiléia, e, disso dependem a segurança e o
tendo encontrado dificuldade poder do seu reino. É necessário,
para isso, enraivecido pela cruel- portanto, que, em lugar de qual-
dade do príncipe, suprimiu-o, quer outra consideração para
pois o viu cercado de inimigos e com outrem, aquele seja amigo
já não o temia. dos exércitos. A mesma coisa su-
Não quero falar de Hel_iogá- cede ao reino do sultão do Egito;
balo, nem de Macrino, nem de
estando tudo nas mãos dos solda-
Juliano, os quais, por terem sido
dos, convém também a ele man-
inteiramente menosprezados, ex-
tê-los como seus amigos, sem se
tinguiram-se logo; não quero
preocupar com o povo.
falar destes, dizia, e sim passar à
conclusão deste assunto. Assim, E deve-se notar que este reina-
digo que os príncipes dos nossos do do sultão é diferente de todos
tempos no seu governo não têm os outros principados porque ·é
esta dificuldade de dar satisfa- semelhante ao papado, o qual
ções exorbitantes aos soldados, não se pode classificar nem como'
pois, não obstante se deva ter principado hereditário, nem
para com aqueles certa conside- como principado novo, posto que
ração, rapidamente resolve-se a não são os filhos do príncipe an-
situação, por não ter nenhum tigo que se tornam herdeiros e
desses príncipes um exército que ficam senhores, mas sim aqueles
se tenha desenvolvido com os que são elevados a esse posto por
governos e adminstr~çõe das aqueles que têm autoridade. E,
províncias, como era nos exérci- como isso seja uma antiga insti-
tos do Império-: Romano. E, se tuição, não se pode chamar de
naquela época era necessário sa- principado novo; e também ,POr-
1
O PRÍNCIPE 91

que naqueles não existem as difi- novos, foi inútil e danoso querer
culdades existentes nestes, pois, imitar Marco, que no principado
embora o príncipe seja novo, a estava jure hereditario. Igual-
organização do Estado é velha. E
1
mente, por que a Caracala, Cô-
os governantes são obrigados a modo e Maximino foi pernicioso
recebê-lo como se fossem senho- imitar a Severo, por não terem
res hereditários. possuído tanta virtude que bas-
Voltemos, porém, ao nosso tasse para que pudessem seguir-
assunto. Direi que quem conside- lhe o caminho. Um príncipe
rar o que acima referi verá como novo, num principado novo, não
o ódio ou o desprezo foram cau- pode, portanto, imitar as ações
sas da ruína dos imperadores de Marco, nem da mesma forma,
mencionados e conhecerá tam- é necessário imitar as de Severo.
bém os motivos por que, parte Deve, sim, aproveitar de Severo
daqueles procedendo de uma as qualidades que forem necessá-
forma, e outros, de maneira con- rias para fundar o seu Estado, e,
trária, alguns deles terminaram de Marco, aproveitar as que
bem e outros tiveram triste fim; e sejam glQriosas e convenham
também por que a Pertinax e Ale- para manter um Estado que já es-
xandre, por serem príncipes tej a estabelecido e firme.
CAPÍTULO XX

Se as,fortalezas e muitas outras coisas que dia a dia


são feitas pelo príncipe são úteis ou não

Alguns príncipes, para manter ficarão tuas e se tornarão fiéis


seguramente o Estado, desarma- aqueles que te eram suspeitos, .
ram os seus súditos, outros divi- mantêm-se fiéis aqueles que já Ó
diram as cidades conquistadas eram, e de súditos se trans-
conservando facções para com- formam em teus auxiliares. E
bater-se mutuamente, outros ali- como rtão se pode armar a todos
mentaram inimizades contra si os súditos, uma vez que benefi-
mesmos, outros dedicaram-se à cies àqueles a quem armas, podes
conquista do apoio daqueles que ·agir mais seguramente com rela-
lhes eram suspeitos no início· de ção aos outros. A diferença de
seu governo, alguns outros edifi- tratamento para com aqueles
caram fortalezas, outros, ainda; obriga-os para contigo, e os ou-
~s arruinaram. E, se bem que tros desculpar-te-ão julgando ne-
todas estas coisas não se possam . cessário que maior recompensa
julgar em definitivo se não se tenham os que estão expostos a
examinarem as particularidades maiores perigos e estão mais liga-
dos Estados onde se tivesse que dos a ti por efeito mesmo dessas
tomar qualquer destas delibera- obrigações.
ções, falarei contudo de um Desarmando-os, principias por
ponto de vista· geral, compatível ofendê-los, mostrando que duvi-
com a própria matéria. das deles, seja porque és covarde,
Nunca um príncipe novo de- seja porque não confias .neles.
sarmou os seus súditos, antes, Qualquer destas opiniões criará
sempre que os encontrou desar- ódio contra ti. E como não podes
mados, armou-os. Essas armas ficar desarmado, convém que te
94 MAQUIAVEL

voltes para a milícia mercenária, sem qualquer bem; antes, pelo


cujas qualidades acima referi. . contrário, aconteee que, quando
·Mesmo que fosse boa, não pode o inimigo se avizinha, as cidades
ter tanta força suficiente para te divididas perdem-se logo, porque
defender dos inimigos poderosos, a parte mais fraca aderirá às for-
e dos súditos suspeitos. Como ças externas e a outra não se
disse, um novo príncipe, num poderá manter. Os venezianos,
principado novo, sempre organi- obedecendo, como creio, v às ra-
zou a força armada. Destes zões mencionadas, costumavam
exemplos a história está cheia. fomentar as facções guelfas e
Mas quando um príncipe con- gibelinas nas cidades que esta-
quista um novo Estado que seja vam sob o seu domínio. E, se
anexado aos domínios, então é bem que não os deixassem chegar
necessário desarmar aquele Esta- até à luta, alimentavam essas
do, exceto aqueles que tenham discordâncias, para que, ocupa-
colaborado contigo para que o dos os cidadãos naquelas suas
conquistasses, e mesmo a estes é diferenças, não se unissem contra
necessário, com o tempo, tornar eles. Isso, como se viu, não lhes
apáticos e amolecidos, de modo deu bons resultados, porque,
. que todas as armas desse Estado · tendo os venezianos sido desba-
estejam com teus próprios solda- ratados em Vailá, algumas da-
dos, que viviam junto de ti no Es- quelas cidades tomaram ânimo e
tado. antigo. lhes arrebataram todos os territó-
Os nossos antepassados e rios. Tal política revela, portanto,
aqueles que eram tidos como pru- fraqueza do príncipe, porque
dentes, costumavam dizer que num principado poderoso jamais
Pistóia tinha de ser mantida pela se permitirão semelhantes .divi-
divisão dos partidos, e Pisa pelas sões; elas são proveitosas apenas
fortalezas, e assim agiam de nos tempos de paz, podendo-se
maneira diversa nas cidades con- mediante esse sistema governar
quistadas para poder conservá- os súditos mais facilmente. Em
las mais facilmente. Essa era a vindo a guerra, porém, percebe-se
política mais sábia provavel- a sua falácia. Os príncipes se tor-
mente, naqueles tempos em que a nam grandes, sem dúvida, quan-
Itália estava de certo modo equi- do superam as dificuldades e a
librada, mas não creio que possa oposição que se lhes movem.
servir hoje como preceito; não Assim, a fortuna, máxime quan-
acredito que as divisões trouxes- do quer engrandecer a um novo
O PRÍNCIPE 95

príncipe, o qual tem mais necessi- çam a necessidade de anular,


dade de conquistar reputação do pelas ações, aquela péssima opi-.
que um hereditário, suscita-lhe nião que tinha o príncipe a seu
inimigos que o guerreiam a fim respeito. Assim, a este aprovei-
de que tenha ele a oportunidade tam ~ais os serviços dos antigos
de vencê-los e subir mais, valen- adversáio~ do que os daqueles
do-se daquela escada que os pró- que, por ter demasiada seguran-
prios inimigos lhe estendem. ça, negligenciam os interesses do
Muitos julgam, por isso, que um príncipe.
príncipe sábio, quando tiver oca~ Agor~, como a matéria mesma
sião, deve fomentar com astúcia o proporciona, não quero deixar
certas inimizades contra ele de lembrar aos príncipes que te-
mesmo, a fim de que pela vitória nham tomado recentemente a
sobre os inimigos mais se possa direção de uin Estado, mediante
engrandecer. Os príncipes, e prin- o favor da população, que consi-
cipalmente os recentes, têm en- derem bem que razão os terá le-
contrado mais fé e maiores utili- vado a favorecê-los: e se ela não
dades nos homens que no início for afeição natural para com eles,
do seu governo lhes eram suspei- e sim o descontentamento cóm o
tos, do que naqueles que, naquela antigo governo, ao príncipe só
ocasião, lhes haviam inspirado muito dificilmente será possível
confiança. Pandolfo Petrucci, se- conservar a amizade daqueles,
nhor de Siena, dirigia o Estado pois será impossível satisfazê-los.
mais com o auxílio daqueles de E considerando bem, com os
quem suspeitara do que daqueles exemplos que há das coisas anti- .
em que tivera confiança. Mas de gas e modernas, relativamente à
tal matéria não é possível estab-~ razão deste fato, ver-se-á que ao
lecer regras ·gerais, pois variam príncipe é muito mais fácil con-
muito as circunstâncias de cada quistar a amizade daqueles ho-
caso. Direi apenas que os ho- mens que estavam contentes com
mens que foram hostis à funda- o regime antigo, sendo, portanto,
ção de um novo governo, para seus inimigos, do que a daqueles
manter-se, carecem eles mesmos que, por descontentes, fizeram-se
de apoio, e o príncipe sempre seus amigos e aliados, ajudando-
poderá conquistá-los com grande º na conquista do Estado.
facilidade. Eles, por sua vez, são Tem sido hábito dos príncipes,
forçados a servi-lo com tanto para poder manter mais segura-
maior lealdade quanto reconhe- mente o seu Estado, edificar for-
96 MAQUIAVEL

talezas que sejam o bridão e o que outra coisa naquele Estado.


freio dos que tivessem a intenção Mas ainda a melhor fortaleza que
de atacá-lo, e possuir um refúgio possa existir é o não ser odiado
seguro no caso de sofrer um ata- pelo povo, pois que, se tiveres
que inesperado. Louvo este modo fortificações e fores odiado por
de agir, porque é usado desde os ele, elas não poderão salvar-te,
tempos remotos; apesar disso, pois não faltam nunca aos povos
Messer Niccolo Vitelli, em nos- rebelados príncipes estrangeiros
sos tempos, viu-se na contin- que desejem ajudá-los. Em nos-
gência de destruir duas fortalezas sos tempos, observa-se que as
na Cidade do Castelo para poder fortalezas não deram proveito a
manter aquele Estado. Guida nenhum príncipe, a não ser à
Ubaldo, duque de Urbino, recon- . Condessa de Forll, quando mor-
quistando o seu domínio, de onde reu o Conde Girolamo 2 5 , seu
fora expulso por César Bórgia, esposo, porque graças às fortale-
destruiu, desde os alicerces, todas zas é que pôde escapar à fúria
as fortificações daquela provín- popular e esperar socorros de
cia, e julgou que sem elas seria Milão, conserva.n.do assim o seu
mais difícil perder o Estado no- Estado. E a época era tal que os
v aménte. Os Bentivoglio, regres- de fora não podiam socorrer o
. sanda a Bolonha, tiveram o povo. S~m embargo, também à
mesmo procedimento. As fortale- Condessa de ForH as fortalezas
zas, portanto, são úteis ou não pouco adiantaram, quando César
segundo as circunstâncias, e se Bórgia lhe assaltou o Estado e o
fazem bem, por um lado, arruí- povo', inimigo daquela, formou
nam-te por outro. Pode-se expli- ao lado do conquistador. Portan-
car este fato da seguinte maneira: to, quer nessa ocasião, quer
o .príncipe que tiver mais medo antes, teria sido mais seguro para
do seu povo do que dos estran- ela não ser odiada pelo povo do
geiros deve construir fortifica- que possuir fortalezas. Conside-
ções, mas aquele que tiver mais rando-se, pois, todas estas coisas,
temor dos estranhos do que do louvarei os que construírem for-
povo não deve preocupar-se com talezas e também os que não as
isso. O castelo de Milão,· edifi- construírem, e· lamentarei aqueles
cado por Francesco Sforza, foi e
será maior motivo de perturba- 2 5 Ver no índice dos nomes citados o nome
ções para a casa dos Sforza do Senhora de Forli
O PRÍNCIPE 97

que, fiando-se em tais meios de o fato de serem odiados pelo


defesa, não se preocuparem com povo.
CAPÍTULO XXI

O que a um príncipe convém realizar


para ser estimado

Nada faz estimar tanto um não se apercebiam. Com dinheiro


príncipe como os gran'des em- da Igreja e do povo, pôde manter
preendimentos e o .dar de si raros exércitos e, por uma longa guer-
exemplos. Temos, nos nossos ra, assentar as bases do seu pró-
tempos, Fernando de Aragão, prio renome como militar. Além
atualmente rei de· Espanha. A ··disso, para poder lançar-se· em
este príncipe pode-se chamar maiores empresas, servindo-se
quase que de novo, porque de um sempre da religião, dedicou-se a
rei fraco se tomou, pela fama .e uma piedosa crueldade expul-
pela glória, o primeiro rei cristão; sando e livrando seu reino dos
e se considerardes as suas ações, marranos, exemplo extremo de
vereis que são todas altíssimas, piedade. Sob essa mesma capa de
havendo algumas extraordi- religião, assaltou a África; levou
nárias. No começo de seu reina- a efeito a expedição da Itália;
do, assaltou Granada, e esse mais tarde, assaltou a França, e
empreendimento constituiu a assim sempre fez e urdiu grandes
base de seu Estado. Primeiro, coisas, que mantiveram sempre
agiu despreocupadamente e com em suspenso e cheios de admira-
a certeza de que não seria impe- ção os ânimos de seus súditos,
dido: os barões de Castela, com a empolgados pela espera do suces-
atenção presa na guerrà referl.da, so final desses feitos. E nasceram
não cogitavam de fazer inova- estas suas ações de tal modo que,
ções. Fernando conquistava, entre uma e outra, nunca deu
então, naquele meio, reputação e tempo aos homens de poder agir
autoridade sobre eles, que disso co~tra ele. É ainda muito conve-
100 MAQUIAVEL

niente a .um príncipe dar raros aceitará porque não quíseste, de


exemplos quanto ao seu governo armas na mao, correr a mesma
(semelhante àqueles que se nar- sorte. Foi Antíoco para a Grécia
ram de Messer Bernaoo de a chamado dos etólios para ex-
Milão); quando alguém tenha pulsar· os romanos. Antíoco en-
realizado qualquer coisa de ex- viou embaixadores aos aqueus,
traordinário, de bem ou de mal que eram aliados dos romanos,
na vida civil, para premiá-lo ou para concitá-los a se manterem
puni-lo o príncipe deve agir de neutros; por outro lado, os roma-
modo tal que dê margem a largos nos tratavam de persuadi-los
cómentários. E, sobretudo, deve para que tomassem armas contra
um príncipe trabalhar no sentido aquele. Esta matéria veio a discu-
de, em cada ação, conquistar tir-se no concílio dos aqueus,
fama de grande homem. É ainda onde o delegado de Antíoco tra-
estimado um príncipe quando tava de fazer com que se manti-
sabe ser verdadeiro amigo e ver- vessem neutros, ao que o dele-
dadeiro inimigo, isto é, quando, gado dos romanos respondeu:
sem qualquer preocupação, age Quod autem isti dicunt non inter-
abertamente em favor de alguém ponendi vos bello, nihil magis
contra um terceiro. Esse partido alienum rebus vestris est; sine
será sempre mais útil do que o gratia, sine dignitate, praemium
conservar-se neutro, porque se victoris eritis 2 6 ". E acontecerá
dois poderosos vizinhos teus se sempre que aquele que não é teu
puserem a brigar, ou são de qua- amigo pedir-te-á que sejas neutro
lidade que, vencendo um deles, e aquele que é teu amigo pedirá
tenhas que temer o vencedor, ou que tomes de armas abertamente.
não. Em qualquer caso ser-te-á E os príncipes irresolutos, para se
sempre mais útil descobrir-te e afastarem destes perigos, seguem,
fazer guerra de fato, porque no as mais das vezes, aquela linha
· primeiro caso, se não te descobri- neutra, e quase sempre são mal
res, serás sempre presa de quem sucedidos. Mas quando corajosa-
vencer, com grande prazer da- mente tomas partido franco por
quele que foi vencido, e não tens uin dos contendores, se aquele
razão nem coisa alguma em tua com quem te ligaste vencer,
defesa, nem quem te acolha.
Quem vence não quer amigos 2 6 ~'Quanto à opinião de. que não deveis inter-
suspeitos e que não ajudem nas vir na guerra, nada é mais nocivo aos vossos
pró~ios interesses, pois sem compensação e
adversidades; quem perde não te ingloriamente. sere.is presa do vencedor."
O PRÍNCIPE 101

ainda que seja poderoso e que fi- de Milão, e podiam deixar de efe-
ques à sua mercê, terá ele obriga- tuar tal união; e desse fato resul-
ções para contigo e é compelido tou a ruína deles. Mas quando
a.ter amizade por ti; e os homens não se pode deixar de fazer alian-
não são nunca tão maus que ça, como aconteceu com os flo-
queiram oprimir a quem devem rentinos quando o papa e a Espa-
ser gratos. Ademais, as vitórias nha foram assaltar a Lombardia
não são nunca tão completas que pelas armas; então o príncipe
o vencedor não tenha que levar deve aderir, pelas razões acima.
em conta outras considerações, Não pense nunca nenhum gover-
principalmente de justiça. no poder tomar decisões absolu-
Mas, se aquele a quem ajudas tamente certas; pense antes em
perder, ser ás socorrido por. ele. ter que tomá-las sempre incertas,
quando puder, e, nesse caso, fica- pois isto está na ordem das coi-
rás ligado a uma fortuna que sas, que nunca deixa, quando se
pode ressurgir. No segundo caso, procura evitar algum inconve-
quando os combatentes são tais niente, de incorrer em outro. A
que não tenhas de te arrecear da prudência está justamente em
vitória de qualquer, a tua aliança saber conhecer a natureza dos
com um deles é tanto ·mais pru- inconvenientes e adotar o menos
dente quanto assim provocarás a prejudicial como sendo bom.
mina de um com o auxílio de
Deve ainda um príncipe mos-
quem o deveria salvar, se fosse
trar-se amante . das virtudes e
sábio, e vencendo tu, o teu aliado
honrar os que se revelam grandes
ficará à tua discrição e é impos-
numa arte qualquer. Além disso,
sível que não vença com a tua
deve animar os seus cidadãos a
ajuda.
exercer livremente as suas ativi-
Note-se agora que um príncipe
deve ter o cuidado de não fazer· dades, no comércio, na agricul-
tura e em qualquer outro terreno,
aliança com um que seja mais
poderoso, senão quando a neces- de modo que o agricultor não
sidade o compelir, como se expôs ·deixe de enriquecer as suas pro-
acima, pois que, vencendo, ficará priedades pelo temor de que lhe
prisioneiro do aliado; e os prínci- sejam arrebatadas e o comer-
pes devem evitar o mais que pos- ciante não deixe de desenvolver o
sam a situação de estar à mercê seu negócio por medo de impos-
de outrem. Os venezianos alia- tos. Pelo contrário, deve instituir
ram-se à França contra o duque prêmios para os que quiserem
102 MAQUIAVEL.

realizar tais coisas e para todos ou corporações ·de ofício, deve


os que, por qualquer maneira, ocupar-se muito destas, indo ao
pensarem em ampliar a sua cida- seu encontro algumas vezes; dar
de ou o seu Estado. Além disso, provas de afabilidade e munifi-
deve, nas épocas propícias do cência, mantendo sempre inte-
ano, proporcionar ao povo festas gral, contudo, a majestade da sua
e espetáculos. E como todas as dignidade, a qual não deve faltar
cidades estão divididas em artes em nada.
CAPÍTULO XXII

Dos ministros dos príncipes

Não é de pequena importância sas por si mesma, outra que sabe


para um príncipe a escolha dos discernir o que os outros enten-
seus ministros, os quais são bons dem, e, finalmente, uma que não
ou não segundo a prudência entende nem por si nem sabe
daquele. E a primeira conjetura ajuizar do trabalho dos outros (a
que se faz, a respeito das qualida- primeira é excelente, a segunda
des de inteligência de um prínci- muito boa e a terceira inútil) - ,
pe, repousa na observação dos estavam todos de acordo, neces-
homens que ele tem ao seu redor. sariamente, que,. se Pandolfo não
Quando estes são competentes e estava no primeiro caso, estava
fiéis, pode-se reputá-lo sábio, pelo menos no segundo. Uma vez
porque soube reconhecer as qua- que se tem capacidade para co-
lidades daqueles e mantê-los fiéis. nhecer o bem e o mal que outrem
Mas quando não são assim, po- diga ou pratique, ainda que não
de-se ajuizar sempre mal do tenha iniciativa própria, reconhe-
senhor~ porque o primeiro erro cem-se as boas e más qualidades
que cometeu está nessa escolha. do ministro, exaltando as primei-
Não houve ninguém que, conhe- ras e corrigindo as segundas. O
cendo a Messer Antônio da Ve- ministro, assim, não pode ter
nafro como ministro de Pandolfo esperança de enganar o príncipe
Petrucci, senhor de Siena, não e se conserva bom.
julgasse a este um homem de Mas~ para que um príncipe
muito valor pelo fato de ter esco- possa conhecer bem o ministro,
lhido Ven afro par a seu ministro. há este modo que não falha
E como há três espécies de cabe- nunca: quando vires que o minis-
ças - uma, que entende as coi- tro pensa mais em si próprio do
104 MAQUIAVEL

que em ti, e que em todas as suas fazendC?-o rico, obrigando-o para


ações procura tirar proveito pes- consigo, fazendo-o participar de
soal, podes ter a certeza de que honrarias e cargos, de modo que
ele não é bom, e nunca poderás as muitas honrarias não lhe
fiar-te nele; e aquele que tem em façam desejar outras, as muitas
mãos os negócios de Estado não riquezas não lhe façam desejar
deve pensar nunca em si próprio, maiores, e os muitos cargos não
mas sempre no príncipe, e nunca lhe façam temer mutações. Quan-
·lembrar-lhe coisas que estejam do, pois, os ministros, e os prínci-
fora da esfera do Estado. pes com relação a estes, são
Por. outra parte, o príncipe, assim, podem confiar uns nos
para assegurar-se do ministro, outros; de outra forma, o fim será
deve pensar nele, honrando-o, sempre mau para uns e outros.
CAPÍTULO XXII!

De como se devem evitar os aduladores

Não quero deixar de tratar de respeito, porém, apenas das coi-


um capítulo importante sobre um sas que ele lhes perguntar. Deve
erro do qual os príncipes só com consultá-los a respeito de tudo e
dificuldade se defendem, se não. ouvir-lhes a opinião e deliberar
são muito prudentes ou não depois como bem entender e com
fazem boa escolha. Refiro-me conselhos daqueles, conduzir-se
aos aduladores de que as cortes de tal modo que eles percebam
estão cheias; porque os ·homens que com quanto mais liberdade
se comprazem tanto nas coisas falarem, mais facilmente as suas
próprias e de tal modo se· enga- opiniões serão seguidas. Proce-
nam nestas, que é com dificul- dendo doutro modo, o príncipe
dade que se defendem dessa ou é precipitado pelos aduladores
peste; querendo-se evitá-la, há o ou varia muitas vezes de parecer;
perigo de se ser desconsiderado, daí se origina a falta de confian-
pois não há outro modo de guar- ça. Quero, a este propósito, adu-
dar-se da adulação, senão fazer zir um exemplo moderno: o
com que os homens entendam Bispo Lucas, homem de Maximi-
não fazer-te ofensa por dizer a liano, o atual imperador, falando
verdade;> mas, quando todos de Sua Majestade, disse que este
podem dízer~t a verdade, faltar- não se aconselhava com pessoa
te-ão ao respeito. Um príncipe alguma, ·mas também nunca se
prudente deve, portanto, condu- fiava unicamente no seu próprio
zir-:se de uma terceira maneira, juízo; isso se explica pelo fato de
escolhendo no seu Estado ho- ele não seguir nunca o conselho
.mens sábios, e só a estes deve dar acima, pois o imperador, sendo
o direito de falar-lhe a vúdade a homem discreto, não comunica
106 MAQUIAVEL

os seus desígnios a ninguém e a reza, mas aos bons conselhos dos


ninguém pede parecer. Mas, na que lhes estão ao redor. É; um
ocasião de pôr em prática as suas erro manifesto, porque é regra
decisões, os desígnios começam a geral, que não falha nunca: um
ser conhecidos e manifestos, e, príncipe que não seja prudente
pois, a ser contraditos pelos que por si mesmo não pode ser bem
lhe estão em tomo, e compreen- aconselhado, se por acaso não
de-se então facilmente que o acatar o juízo de um só, muito
imperador se afasta do que tenha sábio, que entenda de tudo. Este
resolvido. Daí resulta que as coi- caso podia acontecer, mas dura-
sas que faz num dia destrói no ria pouco; porque aquele que
outro, e que não se saiba nunca o governasse de fato em breve
que ele quer, e ninguém pode pre- tempo lhe tomaria o Estado. Mas
ver as suas deliberações. aconselhando-se com mais de
Um príncipe deve, portanto, um, um príncipe que não seja
aconselhar-se sempre, mas quan- sábio não terá nunca unidade de
do ele entender e não quando os conselhos e nem saberá por si
outros quiserem; antes, deve tirar mesmo harmonizá-los. Cada um
a vontade a todos de aconselhar dos · conselheiros pensará como
alguma coisa sem que ele solicite. quiser e ele não saberá corrigi-los
Todavia, deve perguntar muito e nem ajuizar a respeito. E não
ouvir pacientemente a verdade pode ser de outra maneira, pois
acerca das coisas perguntadas. os homens sair-te-ão sempre
Até, achando que ·alguém, por maus, se por necessidade não se
qualquer temor, não lhe diga a fizerem bons. O que se conclui
verdade, não deve o príncipe dei- daí é que os bons conselhos, de
xar de mostrar o seu desprazer. onde quer que provenham, nas-
Muitos entendem que os prínci- cem da prudência do· príncipe e
pes que granjearam fama de pru- não a prudência do príncip.e dos
dentes devem-no não à sua natu- bons conselhos.


CAPÍTULO XXIV

Por que os príncipes de Itália


perderam seus Estados

Se forem observadas prudente- exemplos, assim como um antigo


mente as coisas referidas, o prín- príncipe terá a dupla vergonha,
cipe novo parecerá de ascen- por ter, nascendo príncipe, perdi-
dência antiga e se tornará assim do o Estado pela sua pouca
mais seguro e firme no Estado, prudência.
do que se ele de fato aí estivesse E, se se considerarem aqueles
há muito tempo. Um príncipe senhores que, em nossos tempos,
recente é muito mais vigiado em na Itália, perderam seus Estados,
suas ações do que um hereditá- como o rei de Nápoles, duque de
rio, e quando essas ações revelam Milão e outros, encontrar-se-á
vi~tude, atraem muito mais aos
neles, primeiro, um defeito
homens e os obrigam muito mais
comum. quanto às armas, pelas
do que a antiguidade do sangue.
razões já mencionadas; depois se
É que os homens são muito mais
sujeitos às coisas presentes do verá que alguns deles ou foram
que às passadas e, quando encon- hostilizados pelo povo ou, no
tram o bem naquelas, alegram-se caso contrário, não souberam
e nada mais procuram, antes, neutralizar os grandes, porque
tomarão a defesa do príncipe· se sem estes defeitos não se perdem
este não falhar nas outras coisas Estados tão fortes que possam
às suas promessas. E ele dessa pôr um exército em campo.
forma terá a dupla glória de ter Filipe da Macedônia, não o
fundado um principado novo e de pai de Alexandre, mas o que foi
o ter ornado e fortalecido com vencido por Tito Quinto, não
boas leis, boas armas e bons tinha domínios muito extenso$,
108 MAQUIAVEL

em comparaçao à grandeza dos quando vieram tempos adversos,


romanos e da Grécia, que o pensaram em fugir e não em 1

assaltaram: apesar disso, por ser defender-se e esperaram que as


um bom militar e homem que populações fatigadas da inso-
sabia não se tornar malquisto do lência dos vencedores os chamas-
povo e assegurar-se dos podero- sem novamente. Esse recurso é
sos, fez a guerra muitos anos bom, mas quando os outros fa-
contra aqueles, e se, afinal, per- lham; é bem mau, porém, deixar
deu algumas cidades, ficou-lhe os outros remédios em troca
contudo o reino. desse.
Assim, esses nossos príncipes Não desejarias cair só por cre-
que posswram, por muitos anos, res que encontrarias quem te
seus principados, ·para depois ·levantasse.· Isso ou não acontece,
perdê-los, não acusem a. sorte, ou; se acontecer, não te dará
mas sim a sua própria ignávia: segurança, porque é fraco meio
porque não tendo nunca nas boas de defesa o que· não depende de
épocas pensado em que os tem- ti. E somente são bons, certos e
pos poderiam mudar (e é comum duradouros os meios de defesa
nos homens não se preocupar, na que dependem de ti mesmo e do
bonança, com as tempestades), teu valor.
CAPÍTULO xxv
De quanto pode a fortuna nas coisas humanas
e de que modo se deve resistir-lhe

Não me é desconhecido que encolerizam, alagam as planícies,


muitos têm tido e têm a opinião destroem as árvores, os edifícios,
de que as coisas do mundo são arrastam montes de terra de um
governadas pela fortuna e por lugar para outro: tudo foge dian-
Deus, de sorte que a prudência · te dele, tudo cede ao seu ímpeto,
dos homens não pode corrigi-las, sem poder obstar-lhe e, se bem
e mesmo não lhes traz remédio que as coisas se passem assim,
algum. Por isso, poder-se-ia jul- não é menos verdade que os
gar que não deve alguém incomo- homens, quando volta a calma,
dar-se muito com elas, mas dei- podem fazer reparos e barragens,
xar-se governar pela sorte. Esta de modo que, em outra cheia,
opinião é grandemente aceita nos aqueles rios correrão por um
nossos tempos pela grande varia- canal e o seu ímpeto não será tão
ção das coisas, o que se vê todo livre nem tão danoso. Do mesmo
dia, for.a de toda conjetura huma- modo acontece com a fortuna; o
na. Às vezes, pensando nisso, me seu poder é manifesto onde não
tenho inclinado a aceitá-la. Não existe resistência organizada, di-
obstante, e porque o nosso livre rigindo ela a sua violência só
arbítrio não desapareça, penso para onde não se fizeram diques
poder ser verdade que a fortuna e reparos para contê-la.
seja árbitra de metade de nossas E, se considerardes a Itália,
· ações, mas que, ainda assim, ela que é a sede e a origem destas
nos deixe governar quase a outra revoluçõe_s, vereis que é ela como
metade. Comparo-a a um desses uma região sem diques e sem
rios impetuosos que, quando se nenhuma barreira; e que, se fos-
1

110 MAQUIAVEL

se convenientemente protegida outro não, e do mesmo modo,


como a Alemanha, a Espanha e a dois igualmente felizes, com dois
França, ou as cheias não causa- modos diversos de agir, são um
riam as variações que há, ou circunspecto e outro. impetuoso,
mesmo não se teriam verificado. o que resulta apenas da natureza
E com isso creio ter dito bastante particular da época, e com a qual
acerca dos obstáculos que se se conforma ou não o seu proce-
podem opor à sorte, em geral. dimento. Assim, como disse, dois
Mas, restringindo-me aos agindo diferentemente alcançam
casos particulares, digo que se vê o mesmo efeito, e dois agindo
hoje o sucesso de um príncipe e igualmente, um vai direto ao fim
amanhã a sua ruína, sem ter ha- e o outro não. Disso dependem
vido mudança na sua natureza, também as diferenças da prospe-
nem em algumas das suas quali- ridade, pois se um se conduz com
dades. Creio que a razão disso, cautela e paciência e os tempos e
conforme o que se disse anterior- as coisas lhe são favoráveis, o
mente, é que, quando um príncipe seu governo prospera e disso lhe
se apóia totalmente na fortuna, advém felicidade. Mas se os tem-
arruína-se segundo as variações pos e as coisas mudam, ele se
daquela. Também julgo feliz arruína, porque não alterou o
aquele que combina o seu modo modo de proceder. Não se encon-
de proceder com as particulari- tra homem tão prudente que
dades dos tempos, e infeliz o que saiba acomodar-se a isso, quer
faz discordar dos tempos a sua por não se poder desviar daquilo
maneira de proceder. Em relação a que a natureza o impele, quer
· aos caminhos que os levam à porque, tendo alguém prosperado
finalidade que procuram, isto é, num caminho, não póde resig-
glória e riquezas, costumam os nar-se a abandoná-lo. Ora, o
homens proceder de modos diver- homem circunspecto, quando
sos: um com circunspecção, chega a ocasião de ser impetuo-
nutro com impetuosidade, um so, não o sabe ser, e por isso se
pela violência, outro pela astúcia, arruína, porque, se mudasse de
um com paciência, outro com a natureza, conforme o tempo :e as
qualidade contr.ária, e cad~ um coisas, não mudaria de sorte. O
por estes diversos modos pode Papa Júlio II procedeu em tcj>das
alcançar aqueles objetivos. Vê-se as coisas impetuosamente, e en-
1

que, de dois indivíduos cautelo- controu tanto o tempo com0 as


sos, um chega ao seu desígnio e coisas conformes àquele .·. seu
1
O PRÍNCIPE 111

modo de proceder, de forma que porque o r.ei de França teria ·


sempre alcançou êxito. Conside- arranjado mil desculpas, e os ou-
. rai a primeira expedição que rea- tros lhe teriam infundido mil
lizou em Bolonha quando ainda rec.eios. Não quero falar das ou-
vivia Messer Giovanni Herttivo- tras suas ações, todas iguais e
glio. Os venezianos estavam con- todas felizes. A brevidade do seu
tra o papa; o rei de Espanha, reinado não lhe fez experimentar
também. Enquanto ainda discu- reveses; se chegasse o tempo de
tia com a França a respeito da proceder com circunspecção,
expedição, começou a executá-la, ter-se-ia verificado a sua ruína,
pessoalmente, com violência e pois que ele nunca se desviaria
impetuosidade. do rumo para o qual o impelia
Essa atitude fez com que se sua. natureza. Concluo, portanto,
mantivessem inativos a Espanha por dizer que, modificando-se a
e os venezianos: estes, por medo, sorte, e mantendo os homens,
e aquela pelo desejo de recuperar
obstinadamente, o seu modo de
todo o reino de Nápoles. De
agir, são felizes enquanto esse
outro lado, fez-se seguir pelo rei
moqo de agir e as particulari-
de França, porque, tendo visto
dades dos tempos concordarem.
que ele começara a mover-se e
Não concordando, são infelizes.
desejando conservar a sua amiza-
Estou convencido de que é me-
de para humilhar os venezianos,
lhor ser impetuoso do que cir-
julgou não poder negar-lhe a sua
cunspecto, porque a sorte é mu-
gente sem com isso cometer uma
injúria manifesta. Júlio· realizou, lher e, para dominá-la, é preciso
portanto, com sua atitude impe- bater-lhe e contrariá-la. E é geral-
tuosa o que nenhum outro pontí- mente reconhecido que ela se
fice, com to~a a humana prudên- deixa dominar _mais por estes do
cia, poderia realizar, pois se, para que por aqueles que procedem
partir de Ron:ia, esperasse ter friamente. A sorte, como mulher,
todos os planos assentados e é sempre amiga dos jovens, por-
tudo organizado, como qualquer que são menos circunspectos,
outro pontífice teria feito, jamais mais ferozes e com maior audá-
teria conseguido o que conseguiu, cia a dominam.
CAPITULO XXVI

Exortação ao príncipe para livrar


a Itália das mãos dos bárbaros

Consideradas, pois, todas as nhecer o valor de um príncipe ita-


coisas acima referidas, e pen- lianO, seria necessário que a Itá-
sando comigo mesmo se, na Itá- lia chegasse ao ponto em que se
rlia, os tempos presentes poderiam encontra agora. Que estivesse
prometer honras a um príncipe mais escravizada do que os he-
novo e se havia matéria que breus, mais oprimida do que os
desse, a um que fosse prudente e persas, mais desunida que os
valoroso, oportunidade de intro- atenienses, sem chefe, sem
duzir uma nova ordem que lhe ordem, batida, espoliada, lacera-
trouxesse fama e prosperidade da, invadida, e que houvesse,
para o povo, pareceu-me que há enfim, suportado toda sorte de
tantas coisas favoráveis a um calamidades.· E, se bem que te-
príncipe novo que não sei de nham surgido, até aqui, certas
época mais propícia para a reaíi- providências por parte de al-
zação daqueles propósitos. E guém, que se teria podido julgar
como disse ter sido necessário, fossem inspiradas por Deus, para
para que se conhecesse a virtude a redenção do país, viu-se depois
de Moisés, que o povo de Israel como," no mais alto curso de suas
estivesse escravizado no Egito; ações, ~oi abandonado pela fortu-
para que se conhecesse à gran- na 2 7 • Assim, tendo ficado como
deza de alma de Ciro, que os per- sem vida, espera a Itália aquele
sas estivessem oprimidos pelos que lhe possa curar as feridas e
medas; e para se conhecer · o ponha fim ao saque da Lombar-
valor de Teseu, que os atenienses dia, aos tr~buos do reino de N á-
estivessem dispersos - assim,
presentemente, querendo-se co- 2 7 Provavelmente, alusão a César Bórgia.
114 MAQUIAVEL

poles e da Toscana, e que cure as nota, não pode existir grande difi-
suas chagas já há muito tempo culda_de para quem se dispuser a
apodrecidas. Vê-se que ela roga a agir como aqueles a que propus
Deus envie alguém que a redima como exemplo. Além disso,
dessas crueldades e insolências vêem-se aqui extraordinárias
dos estrangeiros. Vê-se, ainda, ações de Deus, como ainda não
que se acha pronta e disposta a se teve exemplo: o mar se abriu,
seguir uma bandeira,· uma vez uma nuvem revelou o caminho,
que haja quem a levante. E não da pedra brotou água, aqui cho-
se vê, atualmente, em quem ela veu ·o maná; tudo concorreu para
possa esperar mais do que na a vossa grandeza. O que resta a
vossa ilustre casa, a qual, com a fazer é tarefa que a vós compete.
fortuna e valor, favorecida por Deus não quer fazer tudo, para
Deus e pela Igreja - a cuja fren- rião nos tolher o livre ·arbítrio e
te está agora - , poderá consti- parte da glória que nos cabe. E
tuir-se cabeça desta redenção. não é motivo para maravilhar-se
Isso ·não será muito difícil se vos se algum dos já mencionados ita-
voltardes ao exame das ações e lümos não pôde fazer aquilo que
vida daqueles de quem acima se se pode esperar da vossa ilustre
fez menção. E se bem que aqueles casa e se, em tantas revoluções
homens tenham sido raros e da Itália, em tantos trabalhos de
marvilhos~ foram, todavia, guerra, parecer sempre que a vir-
homens, e as ocasiões que tive- tude militar se tenha extinguido
ram - todos eles -·- foram no país. A razão disso está em
menos favoráveis do que a pre- que -as antigas instituições políti-
sente: porque os seus empreendi- cas não eram boas e não houve
mentos não foram mais úteis· do ninguém que tivesse sabido ar-
que estes nem mais fáceis, nem ranjar outras; e nunca coisa
Deus foi mais amigo deles do que nenhuma deu· tanta honra a um
vosso. É muito justa esta minha governante novo como as novas
asserção: ''Justum enim est bel- leis e regulamentos que el~bo­
lum quibus necessarium, et pia rasse. Quando estes são bem fun-
arma ubi nulla nisi armis spes dados e encerram grandeza,
est 2 8 ". Aqui tudo está disposto fazem com que ele seja reveren.:.
favoravelmente; e onde isto se ciado e admirado: e na Itália não
faltam motivos para a realização
2 8 "Justa, na verdade, é a guerra, quando

necessária, e piedosas as armas quando só nas


desse trabalho.
armas reside a esperança." Aqui existe bastante valor no
O PRÍNCIPE 115

povo, embora faltem chefes. Ob- dos estrangeiros com a própria


servai, nos duelos e nos torneios, bravura italiana. E apesar de
quanto os italianos são superio- serem consideradas formidáveis
res em força, destreza e inteli- as infantarias suíças e espanho-
gência. Mas tratando-se de exér- las, ambas têm defeitos, de modo
citos, essas qualidades não que uma terceira potência que se
chegam a revelar-se. E tudo pro- criasse poderia não somente
vém da fraqueza dos chefes, pois opor-se mas ter confiança na
aqueles que sabem não são obe- vitória. Os espanhóis não podem
decidos, e todos pensam saber fazer frente à cavalaria e os suí-
muito, não tendo aparecido até ços dever ão ter medo das forças
agora nenhum cujo valor ou for- de infantaria quando as encon-
tuna seja de tanto realce que trarem tão obstinadas, tão fortes
obrigue os outros· a abrir-lhe. quanto eles nos combates. Já se
caminho. É por isso que em tanto viu e há de se v~r ainda que os
tempo, em tantas guerras que se espanhóis não podem fazer face a
fizeram nestes últimos vinte anos, uma cavalaria francesa e os suí-.
todo exército exclusivamente ita- ços ser derrotados pela infantaria
liano sempre se saiu mal. É o qu~ espanhola. E se bem que deste úl-
atestam Taro, depois Alexandria, ·timo caso não se tenha tido
Cápua, Gênova, Vailá, Bolonha, exemplo direto, teve-se uma
Mestre. amostra na jornada de Ravena,
Querendo, pois, a vossa ilustre quando a infantaria espanhola
casa seguir o exemplo daqueles enfrentou a alemã, que usa a
grandes homens e redimir suas mesma tática da suíça: os espa-
províncias, é necessário, antes de nhóis, valendo-se da sua agilida-
mais nada, como verdadeira base de, e com o auxílio dos seus escu-
de qualquer empreendimento, detes, haviam-se posto debaixo
prover-se de tropas próprias, por- das lanças dos alemães e estavam
que não existem outras mais fiéis certos.de vencê-los, sem que estes
nem melhores. E embora cada pudessem ter salvação. E se não
soldado possa ser bom, todos fosse o auxílio da cavalaria,
juntos tomar-se-ão melhores todos eles teriam sido chacina-
ainda, quando se virem coman- dos, ·efetivamente. Pode-se, por-
dados pelo seu príncipe e por ele tanto, conhecendo os defeitos
honrados e bem tratados. É ne- destas duas espécies de infanta-
cessário, pois, preparar essas ria, organizar uma terceira que
armas, para se poder defender resista à cavalaria e não tema a
116 MAQUIAVEL

sua igual. E disso resultará a for- capaz de lhe negar o seu favor?
mação de uma geração· de guer- Já está fedendo, para todos, este
reiros e a mudança de métodos. E domínio de bárbaros. Tome, pois,
são essas coisas que, reorgani- a vossa ilustre casa esta tarefa
zadas, dão reputação e grandeza com aquele ânimo e com aquela
a um prí~cie novo. fé com que se esposam as boas
Não se deve, portanto, deixar causas, a fim de que, sob o seu
passar· esta ocasião a fim de fazer .brasão, esta pátria seja eno bre-
com que a Itália, depois de tanto cida, e sob os seus auspícios se
tempo, encontre um redentor. verifique aquele dito de Petrarca:
Não tenho palavras para expri-
mir o amor e entusiasmo com
VirtU contra afuro're
que seria ·ele recebido em todas
Prenderà /'arme; e fia il com-
as províncias que sofreram ata-
[batter corto;
ques e invasões estrangeiras, nem
Ché l 'antico valore
com que sede de vingança, com
que fé obstinada, com que pieda-
Nelli italici cor non ancore
[morto 2 9 •
de, com que lágrimas. Que portas
se lhe fechariam? Que povos lhe
29 "A virtude tomará armas contra o furor e
negariam obediência? Que inveja será breve o combate, pois o antigo valor
se lhe oporia? Qual italiano seria ainda não está morto nos corações italianos."
ÁPENDICE

Carta ~e Maquiavel a Francesco Vettori

Magnifico oratori Florentino Francesco Vettori


apud Summum Pontiflcem et benefactori suO.
Romae 30 •

Magnífico embaixador. Tardas visto. Tive pela última vossa de


jamais foram as graças divinas. 23 do mês passado, pelo que fico
Digo isto porque me parecia não contentíssimo por ver quão orde-
ter perdido, mas enfraquecido a nada e sossegadamente desempe-
vossa graça, tendo estado vós nhais este oficio público e ani-
tanto tempo sem escrever-me, e mo-vos a continuardes assim,
eu estava em dúvida de onde porque quem deixa seus cômodos
pudesse vir a razão. E a todas as pelos dos outros perde os seus, e
que me vinham à mente dava eu daqueles não recebe satisfação. E
pouca importância, salvo àquela como a fortuna ordena todas as
por que duvidava não houvésseis coisas, é preciso deixá-la fazer,
deixado de escrever-me, porque deixar-se ficar e não lhe opor
vos houvesse sido escrito que eu embaraço, e esperar o tempo em
não fosse bom conservador de que ela consinta aos homens
vossas cartas; e eu sabia que, fazer qualquer coisa, e então vos
Filippo e Pagolo exclusive, ou- ficará be:r:n trabalhar mais, desve-
tros por mim não as haviam lar-se mais pelas coisas, e a mim
partir da cidade e dizer eis-me
aqui. Não posso, portanto, dese-
3 0 Ao magnífico orador e pa.-ticular benfeitor

Florentino Francisco Vettori, Embaixador:


jando render-vos iguais graças,
junto ao Sumo Pontífice. Roma. (N. do E.) dizer-vos nesta carta outra coisa
118 MAQUIAVEL

que não seja a minha: vida, e se liras, que dizia tinha a haver de
julgardes que deva trocá-la pela mim faz quatro anos, que me ga-
vossa, ficarei contente em mudá-. nhou no jogo de cricca em casa
la. de Antônio Guicciardini. Come-
Permaneço na vila, e como cei a fazer o diabo, querendo acu-
seguiram aqueles meus últimos sar de ladrão o carroceiro, que ali
casos, não estive, para ajuntá-los fora mandado por ele, tandem
todos, mais .de vinte dias em Flo- Giovanni Machiavelli entrou no
rença. Tenho, até agora, apa- meio, e nos pôs de acordo. Bat-
nhado tordas a mão; levantava- tista Guicciardini, Filippo Gino-
me antes do dia, trabalhava a rio, Tommaso del Bene e certos
paina, afastava-me com um feixe outros cidadãos, quando aquela
de gaiolas sobre mim, que pare- ventania soprava, cada um me
cia o Geta quando ele voltava do encomendou uma medida. Pro-
porto com os livros de Anfitrião; meti a todos e mandei uma a
apanhava pelo menos dois, no Tommaso, a qual voltou a Flo-
máximo seis tordas. E assim esti- rença pela metade, porque para
ve todo o mês de setembro; de- medir havia ele, a mulher, a cria-
pois este entretenimento, ainda da, os filhos, que parecia o Gab-
que desprezível e estranho, fal- bura quando na quinta-feira com
tou, com desgosto meu, e dir-' seus rapazes bate num boi. De
vos-ei qual seja minha vida. Le- maneira que, visto em quem esta-
vanto-me de manhã com o sol e va o lucro, disse aos outros que
vou para um bosque meu onde não tenho mais madeira; e todos
mando fazer lenha,. e ali fico duas disso fizeram questão impor-
horas a inspecionar as obras da tante, e especialmente Battista,
véspera, e a passar o tempo com que enumera esta entre as outras
os lenhadores, que têm sempre desgraças de Prato.
aborrecimento à mão ou entre si Saindo do bosque vou à fonte,
ou com os vizinhos. E a respeito e daqui à caçada; tenho um livro
deste bosque eu vos teria a dizer comigo, ou Dante ou Petrarca,
mil belas coisas que me acontece- ôu um destes póetas menores,
ram, com Frosino da Panzano e como Tibulo, Ovídio e semelhan-
com outros que queriam destas tes: leio aquelas suas amorosas
madeiras. E especialmente Frosi- paixões e aqueles seus amorres,
no, que mandou buscar certas lembro-me dos meus, compréif:O-
quantidades sem dizer-me nada, e me neste pensamento. Vou depois
ao pagamento queria reter dez à hospedaria, à beira da estrada,
O PRÍNCIPE 119

falo aos que passam, pergunto apropriado e para o qual nasci.


pelas novas das suas terras, ouço Não me envergonho de falar com
uma porção de coisas, e noto os eles, e lhes pergunto da razão das
vários gostos e diversas fantasias suas ações, e eles humanamente
dos homens. Chega enquanto me respondem; e não sinto du-
isso a hora de jantar e, com a rante quatro horas aborrecimento
minha gente, como o que esta algum, esqueço todos os desgos-
minha- pobre- vila e fraco patri- tos, não temo a pobreza, não me
mônio comportam. Terminada a perturba a morte: transfundo-me
refeição, volto à hospedaria onde neles por completo. E, como
está o estalajadeiro e, ordinaria- disse D ante, não pode ·a ciência
mente, encontro-me com um daquele que não guardou o que
açougueiro, um moleiro, dois for- ouviu - noto aquilo de que pela
neiros. Com estes eu me entrete- sua conversação fiz cabedal e
nho o dia todo jogando cricca, compus um opúsculo, De princi-
tric-tac, e depois daí nascem mil patibus, onde me aprofundo
contendas e infinitas insolências quanto posso nas cogitações
e injúrias e o mais dás vezes se deste tema, debatendo o que é
disputa um quatir.ino e somos principado, de que espécies são,
ouvidos, não raro, a gritar, de como. eles se conquistam, como
San Casciano. Assim mergu- eles se mantêm, por que eles se
lhado nesta piolheira, estou com perdem;. e se vos agradou alguma
a cabeça mofada, desafogo a vez alguma fantasia minha, esta
malignidade do meu destino, e·
não vos deveria desagradar; e um
até me contentaria em que me
príncipe, e máxime um príncipe
encontrásseis nesta estrada, para
novo, deveria recebê-lo com pra-
ver se ele se envergonha.
zer; portanto eu o dedico à
Chegando a noite, de volta a
magnificência de Juliano. Filippo
casa, entro no meu escritório: e
C asavecchia o viu; poder-vos-á
na porta dispo as minhas roupas
cotidianas, sujas de barro ·e de pôr a par em parte e da coisa em
lama, e visto as roupas de corte si, e dos argumentos que tive que
ou de cerimônia, e, vestido decen- suprimir, se bem que afuda eu o
temente, penetro na antiga convi- aumente e corrija.
vência dos grandes homens do Vós desejaríeis, magnífico em-
passa.do; por eles acolhido com baixador, que eu deixasse esta
bondade, nutro-me daquele ali- vida e fosse gozar convosco a
mento que é o único que me é vossa. Eu o farei de qualquer
120 MAQUIAVEL

manei,ra, mas o que me tenta o desse me satisfaria a necessi-


agora são meus negócios certos dade que me prende, porque eu
que dentro de seis semanas terei me estou consumindo e não
concluído. O que me deixa em posso ficar assim por mais tempo
dúvida é que estão aí aqueles sem me tomar desprezível por
Soderini, aos quais seria forçado, pobreza. Ainda desejaria. muito
indo aí, a visitá-los e a falar-lhes. que estes senhores Médicis come-
Duvidaria que ao meu regresso çassem a lembrar-se de mim se
eu não me pudesse apear em tivessem que começar a fazer-me
casa, e descavalgasse no Bargel- voltear uma pedra; porque, se de-
lo, porque embora este Estado pois não ganhasse o seu favor, eu
tenha fortíssimas bases e grande mesmo me lamentaria, pois que
segurança, tamen ele é novo, e quando lido o livro, ver-se-ia que
por isto duvidoso, nem aí faltam quinze anos que estive em estudo
sabichões que, para aparecer, da arte do Estado, não os dormi,
como Pagolo Bertini, prejudica- nem brinquei; e deveria a cada
riam a outros e me deixariam as um ser caro servir-se daquele que
preocupações. Rogo-vos que às custas de outros fosse cheio de
tranqüilizeis este meu temor, e experiência. E da minha fé não se
depois irei no tempo mencionado deveria duvidar, porque tenho
a visitar-vos de qualquer modo. sempre observado a fé, não vou
Falei com Filippo sobre este agora rompê-la; e quem foi fiel e
meu opúsculo, se seria conve- bom quarenta e três anos, que eu
niente dá-lo a público ou não; tenho, não deve poder mudar sua
caso conviesse, se seria bom que natureza; e d~ minha fé e bonda-
eu o levasse ou que vô-lo man- de é testemunho a minha pobre-
dasse. Se o não desse fazia-me za.
duvidar de que, não só Juliano Desejaria, portanto, que ainda
não o lesse, mas também de que me escrevêsseis aquilo que sobre
este Ardinghelli se fizesse as hon:- esta matéria vos pareça, e a vós
r as deste meu último trabalho. Se me recomendo. Sisfelix.

Die 10Decembris1513.

NICOLAU MAQUIAVEL em Florença.


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DO MODO DE TRATAR
OS POVOS DO VALE DO CHIANA
REBELADOS

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Nota do Tradutor

Maquiavel, na sua qualidade de Secretário dos Dez,fora mandado,


em agosto de 1502, a Arezzo, logo depois da rebelião de que trata o
escrito Del Modo di Trattare, etc., afim de informar-se pessoalmente
da situação e de prover à partida das tropas francesas com o auxz1io
das quais pudera Florença vencer os rebeldes. É nesse breve escrito,
o qual Maquiavel supõe ser um discurso dirigido aos supremos
magistrados da república, que o· secretário florentino tenta, pela pri-
meira vez, "erguer-se da prática da burocracia cotidiana às culminân-
cias da ciência". (P. Villari, Niccolà Machiavelli e suoi tem pi, Milão,
4.ª ed., !,pág. 346)
LÚCIO Fúrio Camilo, depois tomando-nos cruéis para com
de ter vencido os povos do Lácio, eles, ou perdoando-lhes livre-
os quais mais de uma vez se ha- mente. Deus vos fez todo-pode-·
viam rebelado contra os roma- rosos para poder deliberar se se
nos, regressando a Roma apre- deve manter o Lácio ou não, ou
sentou no Senado um projeto poder perpetuamente dele vos
sobre o que se deveria fazer das assegurardes. Pensai, pois, se
terras e cidades dos latinos. As quereis acerbamente corrigir
palavras que ele empregou e a aqueles que vos foram dados; ou
sentença que o Senado deu é esta, se quereis de todo arruinar o
quase ad verbum 1 , como a apre- Lácio e fazer um deserto daquela
senta Lívio: "Padres conscritos, região, de onde mais de uma vez
aquilo que no Lácio se deveria tendes tirado exércitos auxiliares
fazer com a guerra e com as nos vossos perigo·s; ou se quereis
armas, tudo por bondade dos com o exemplo dos vossos maio-
deuses e pelo valor dos nossos res aumentar a república romana,
soldados, teve o seu fim. Morre- fazendo vir habitar em Roma
ram em Peda e Astura os exérci- aqueles que havíeis vencido. E
tos inimigos; todas as terras e assim se vos apresenta oportuni-
cidades dos latinos, e Antium, ci- dade de aumentar gloriosamente
dade dos volscos, tom~.das pela a cidade: mas eu só vos devo
força ou por meio de pactos, dizer isto: que aquele império ~
guardam-se para vós. Resta-nos firmíssimo, que tem súditos fiéis
agora consultar (porque rebelan- e afeiçoados ao seu príncipe. Mas.
do-se eles freqüentemente nos aquilo que se deve deliberar deve
põem em perigo) como devemos ser deliberado logo, tendo vós
segurar-nos para o futuro: ou tantos povos suspensos entre a
esperança e o medo, os quais é
Quase literalmente. (N. do E.) preciso tirar desta ambigüidade,
130 MAQUIAVEL

e preocupá-los com penas ou Pode-se por esta deliberáção


com prêmio. A minha tarefa foi considerar ·como os romanos no
agir de modo que isso esteja em julgamento destas suas cidades
vosso arbítrio: o que está feito. rebeladas pensaram que fosse
Em vós está agora o deliberar o preciso ou ganhar a sua con-
que venha a ser cômodo e útil à _fiança pelos benefícios ou tratá-
república". Os príncipes do Sena- los de modo a que jamais pudes-
do louvaram o relatório do côn- sem duvidar; e por isto julgaram
sul; mas havendo causa diversa danoso qualquer outro caminho
nas cidades e terras rebeladas, que se tomasse. E voltando àque-
disseram: que não se podia acon- le julgamento, usaram eles ·dum e
selhar em geral, mas sim em par- doutro termo; beneficiando aque-
ticular a respeito de cada uma. E les de quem se podia esperar que
tendo sido pelo cônsul proposta a fosse possível reconciliar; e aque-
causa de cadà uma das cidades, loutros de quem nada se podia
foi deliberado pelos senadores esperar, tratando de maneira que
que os lanúvios fossem cidadãos nunca, em tempo algum, pudes-
romanos e devolvidas a eles as sem incomodar. E quanto a esta
coisas sagradas que lhes haviam última, os romanos tinham dois
sido tomadas na guerra. Torna- processos: um era o de arrasar as
ram, da mesma forma, cidadãos cidades e mandar os seus habi-
romanos os aricinos, nomentanos tantes residir em Roma; o outro,
e pedanos; aos tusculanos foram ou afastar os cidadãos antigos e
conservados os seus privilégios e mandar novos habitantes; ou,
a culpa de sua rebelião recaiu em deixando os antigos, colocar tan-
poucos_ dos mais suspeitos. Mas tos novos, que aqueles nunca
os veliternos foram cruelmente pudessem maquinar nem delibe-
castigados, por serem antigos rar qualquer coisa contra o Sena-
cidadãos romanos e se haverem do. Estes dois modos de garan-
rebelado muitas vezes; assim foi tir-se usaram-nos ainda neste
destruída a cidade e mandou-se a julgamento, destruindo Velitrae e
todos os seus cidadãos que fos- mandando novos habitantes a
sem habitar em Roma. Em An- Antium. Ouvi dizer que a história
tium, para assegurar-se dela, é a mestra das nossas ações e má-
mandaram habitantes novos a ximas dos príncipes: e o mundo
seu propósito; tiraram-lhes todos foi sempre, de certo modo, habi-
os navios e proibiram-nos de tado por homens que têm ·tido
construir outros. sempre as mesmas paixoes; e

1
ESCRITOS POLÍTICOS 131

sempre existiu quem serve e as lições, tenham elas sido adula-


quem manda, e quem serve de má das e vos tenhais preocupado em
vontade e quem serve de bom reavê-las pelos benefícios; porque
grado, e quem se rebela e se acho semelhança no caso daque-
rende. las cidades com os dos lanúvios,
Se alguém não acreditar nisso, arícios, nomentanos, tusculanos e
que se mire em Arezzo, o ano pedanos, os quais por parte dos
passado, e em todas as cidades romanos mereciam tal julga-
do vale do Chiana, que fazem mento. Mas eu não aprovo que os
coisa muito semelhante à que foi aretinos, semelhantes aos veliter-
praticada pelos povos latinos. Ali nos e anzianos, não tenham sido
se vê a rebelião e depois a rendi- tratados como eles. E se a sen-
ção, como aqui; ainda que no tença dos romanos merece ser
modo de rebelar-se e no de ren- elogiada, tanto mais a vossa deve
der-se haja muitas diferenças: ser condenada. Antigamente, os
contudo são semelhantes a rebe- romanos julgarám que os povos
lião e a rendição. Portanto, se é rebelados se devem ou beneficiar
verdade que a história ficaria a ou extinguir e que qualquer outro
mestra das nossas ações, não é meio seja perigosíssimo. A mim
mal para quem devia punir e jul- não parece que vós aos aretinos
gar as cidades do vale do Chiana tenhais feito qualquer dessas coi-
tomar exemplo e imitar aqueles sas. Porque não constitui benefí-
que foram donos do mundo; má- cio nenhum o fazê-los vir a Flo-
xime num caso em que eles vos rença, depois de lhes haver
ensinam justamente como vos de- tomado as honras, vender as suas
veis conduzir para governar: por- propriedades, falar mal deles pu-
que como eles fizeram julga- blicamente, ter mantido sob guar-
mento diferente, por ser diferente da as suas casas. Não se chama
o pecado daqueles povos,· assim garantir-se contra. eles deixar de
devíeis fazer vós, encontrando pé os muros da cidade, deixar
também nos vossos rebelados que ali fiquem os_ cinco ~exto da
diferença de pecados. E se dissés- antiga população; não lhes dar
seis: "nós o fizemos", não nega- companhia de habitantes que os
ria no que se tivesse feito em possam subjugar, e não os gover-
parte, mas que se faltou no mais nar de modo que, nos impedi-
e no melhor. Eu julgo bem julga- mentos e guerras que vos tiverem
do que em Cortona, C astiglione, de ser movidas, não tenhais que
Borgo, Foiano se hajam seguido contar com maior despesa em
.132 MAQUIAVEL

Arezzo, que ao encontro de qual- deixar para trás. E deixando de


J

quer inimigo que vos assaltar. A discorrer sobre áqueles temores


experiência -se viu em 1498, que podeis ter dos príncipes 'ul-
quando Arezzo ainda não se tramontanos, conversemos sobre
havia rebelado nem vos havíeis o medo que nos está mais próxi-
tornado tão cruéis com relação mo.
àquela cidade: nem mesmo vindo Quem observou o duque vê
as forças dos venezianos em Bib- que ele, para manter os Estados
biena, vós teríeis a empenhar e:r;n que tem, nunca pensou fazer base
Arezzo, para tê-la quieta, as tro- sobre amizades italianas, tendo
pas do duque de Milão e a com- sempre estimado pouco os ·vene-
panhia do Conde Rinuccio. zianos, e a vós menos: o que,
Disso, se vós não houvésseis quando seja verdade, convém que
duvidado, vos podíeis servir em ele pense em tomar-se tão grande
Casentino contra os inimigos; e E'stado na Itália, que o torne se-
não seria necessário tirar Paolo guro por si mesrrio, e que faça
Vitelli de Pisa para mandá-lo a desejável por um outro potentado
c asentino: o que, forçando-vos a a sua amizade. E quando este
desconfiar dos aretinos, vos fez
seja o seu ânimo e que ele aspire
levar muito mais perigo e muito
ao império da Toscana, como
maior despesa do que a que
mais próprio e apto para se fazer
teríeis feito se eles vos tivessem
permanecido fiéis. Assim, de um reino com os outros Estados
acordo com aquilo que se viu que tem (e de que ele tem este
então, aquilo que se viu depois, e projeto, julga-se de necessidade,
o termo em que vós os trazeis, seja pelas coisas mencionadas,
disso se pode fazer seguramente seja pela sua ambição, e também
este juízo, que, se fôsseis assalta- por terdes ficado indecisos quan-
dos (do que Deus guarde), ou to ao acordo e não ter ele nunca
Arezzo se rebelaria, ou vos apre- desejado concluir alguma coisa
sentaria tal impedimento para convosco), resta agora ver se o
guardá-la, que a tomaria despesa tempo lhe é oportuno para reali-
insuportável para a cidade. zar estes seus desígnios.
Se vós pudésseis, no presente, E lembra-me ter ouvido dizer
ser atacados ou não, e se há ao Cardeal Soderini que, entre os
quem tenha intenções sobre· outros louvores que se podiam
Arezzo ou não, tendo eu a res- dar de grande homem ao papa e
peito ouvido falar, não o quero ao duque, estâva este: que ;são
ESCRITOS POLÍTICOS 133

conhecec:lores da ocasião, e que a Mas, considerando que o duque


sabem usar muito bem; opinião não pode esperar que as coisas se
esta que está provada pela expe- decidam, por lhe restar pouco
riência das coisas conduzidas por tempo com relação à brevidade
eles oportl:lnamente. E se quisés- da vida do pontífice, é necessário
semos discutir se agora é tempo que ele use a primeira ocasião
oportuno e seguro para que ele que se lhe oferece e que entregue
vos ataque, eu diria que não. da sua causa boa parte à sorte.
DA "LECACAO
AO DUQUE VALENTIN0
11
Nota do Tradutor

Maquiavel, que conhecera, poucos meses antes, ao Duque Valenti-


no, quando acompanhou Francesco Soderini, na sua legação a Urbi-
no,foi de novo encarregado pelos "Dez" de entender-se com o duque.
Com efeito, Valentino, logo depois da Dieta de La Magione, manifes-
tara ao governo de Florença o desejo ·de manter boas relações com os
florentinos. Longamente discutida, foi dada afinal a Maquiavel a
commissione respectiva no dia 5 de outubro de 1502. As instruções
que levava davam-lhe também O en'cargo de agradecer ao duque o ter
restituído os tecidos confiscados aos mercadores florentinos nos seus
Estados, e o de pedir-lhe salvo-conduto para aqueles no seu tráfego
para o Oriente.
A legação ao duqlf,e, a qual durou até o dia 21 de janeiro de 1503,
é de suma importância, pois assinala não somente a fase culminante
do poderio de César Bórgia e das suas trágicas maquinações, mas
também o amadurecimento do gênio de Maquiavel, como escritor
político. A carta traduzida é a primeira das dezoito que relatam ao
governo florentino o desenvolvimento da legação. O desígnio de
Valentino era afastar Florença dos conjurados de La M agione e, caso
possível, atraí-la para um acordo. Quanto às instruções que tinha
Maquiavel, podem ser resumidas· nesta passagem da Commissione:
"E no que se refere a isso (as garantias de que Florença negará
apoio aos conjurados) podes alargar-te quanto te parecer a propósiiv;
mas se Sua Excelência procurar saber mais de ti, cingr~te-ás a infar-
mar-nos e esperar a resposta".
MAGNIFICI et excelsi Domi- Igreja, e ilustrei amplamente com
ni, Do mini mei singularissimi 2 • todas as palavras que me .ocorre-
Logo à minha partida daí não me ram as razões que obrigam
sentia muito bem mon.tado, e V.Sas, a conservai a amizade
como me parecesse que a minha destes últimos e a evitar a dos
com1ssao requeresse rapidez, adversários deles. Atestei-lhe que
mudei de cavalo na Scarperia e, em qualquer situação V.Sas. res-
trocando de montaria, viajei sem peitariam todas as ações de Sua
interrupção, de sorte que cheguei Excelência, as quais fossem com-
aqui hoje às dezoito horas mais patíveis com a amizade do rei de
ou menos. Tendo deixado atrás França e com a antiga devoção à
cavalos e criados, apresentei-me Igreja, e a afeição que mostraram
logo que me apeei a Sua Excelên- à Sua Senhoria, tratando como
cia, a qual me acolheu cordial- amigos todos os amigos e aliados
mente, e apresentando-lhe eu as de França.
cartas credenciais, expus-lhe as Sua Excelência, quanto ao, ne-
razões da minha missão e agra- gócio da restituição, nada res-
deci-lhe a restituição dos tecidos. pondeu; mas referindo-se a ou-
Depois vim a falar-lhe da cisão tras particularidades, agradeceu
dos Orsini, da dieta deles e dos a V.Sas. aqueles oferecimentos e
seus aderentes, e de como V.Sas. gratas demonstrações. Disse de-
estavam sendo destramente re- pois ter sempre desejado a amiza-
qüestados e sobre qual lhes seja o de de V.Sas., não a tendo conse-
ânimo a respeito da amizade que guido mais por malignidade de
têm pelo rei de França e da devo- outros do que por sua própria
çao que conservam para com a culpa; e ainda que queria contar-
me particularmente aquilo que
2 . Magníficos e excelentíssimos Senhores, Se-
nunca dissera a alguém a respeito
nhores meus prezadíssimos. (N. do E.) da sua vinda a Florença com o
140 MAQUIAVEL

seu exército. E disse como, de- Depois, feita a composição com


pois de conquistada Faenza e V.Sas., pareceu-lhes, aos Orsini e
tentada a campanha de Bolonha, Vitelli, que ele tivesse obtido tudo
os Orsini e os Vitelli o instiga- o que desejava e que a expedição
vam, querendo persuadi-lo de que tivesse resultado em seu exclu-
ele devia voltar a Roma por Flo- sivo benefício, e em seu dano
rença, o que foi recusado por ele, deles, e aplicaram-se a prejudicar
pois o papa lhe tinha ordenado aquela combinação por todas as
coisa diferente. Chorando, Vitel- desonestidades e danos para que
lozzo lançara-se-lhe aos pés, su- V .Sas. o suspeitassem e fosse per-
plicando que seguisse aquele ca- turbado o acordo. O que não lhe
minho e prometendo-lhe não fora dado reparar, pois não podia
fazer ao país nem às cidades vio- ele estar em todo lugar e também
lência alguma. Nem assim con- por não lhe· terem ainda V.Sas.
descendia ele, mas insistiram concedido o empréstimo, como
tanto nisso, que afinal Sua Exce- tinha sido combinado ou antes
lência prometeu assim fazer, sob indicado. Ficaram assim as coi-
a condição, porém, de não ser ·sas até junho passado, quando
feita violência ao país e de não se hpuve a rebelião de Arezzo, da
procurar favorecer aos Médicis. qual ele afirma, como já disse ao
Mas querendo tirar proveito da Bispo de Volterra, não ter sabido
sua vinda a Florença, pensou coisa alguma antes. Mas que a
fazer amizade com V.Sas., e tinhá considerado até um bem
valer-se da ocasião, o que se porque lhe parecera ocasiao
prova pelo fato de, em qualquer azada a que se manifestassem os
negociação, ter falado pouco ou ·sentimentos de V;Sas. a respeito
nada, a respeito dos Médicis, dele. Nem então se fez alguma
como sabem aliás os comissários coisa, ou pela má sorte comum,
que trataram com ele, e o de ou por não ter a vossa cidade a
nunca ter consentido que Piero disposição de tratar e concluir
viesse ao seu campo. E disse aquilo que teria sido a salvação
mais que muitas vezes, quando de cada um, o que disse não lhe
estavam em C ampi, os Orsini e haver dado grande aborreci-
os Vitelli lhe pediram licença mento. E disposto a beneficiar-
para apresentar-lhe projetos de vos, tendo em vista a boa vonta-
fácil execução, ao que ele nunca de do rei, escreveu a Vitellozzo e
quis aceder, e antes fez-lhes ver mandou-lhe portadores para que
mil vezes que os combateria. se retirasse de Arezzo. Não con-
ESCRITOS POLÍTICOS 141

tente com isso, foi a Città di Cas- que para fazê-lo esfriar nos seus
tello com a sua tropa .. E poderia planos seriam necessárias outras
ter tomado àquele a cidade, pois águas que não os Orsini. Nem lhe
os principais homens da terra ti- importava que o perturbassem no
nham vindo oferecer-se-lhe, de ducado de Urbino, porque não
onde disse que se originou a pri- esquecera o meio de readquiri-lo,
meira ira e descontentamento · quando o perdesse; a isso ajun-
seu. tando que era tempo agora de, se
Disse também não saber a ori- V.Sas. quisessem ser seus ami-
gem da ·indignação dos Orsini gos, fazerem-se-lhe obrigados,
contra nosso senhor 3 na corte do pois ele bem podia, sem preocu-
rei de França. Depois de haver par-se com os Orsini, ligar-se por
visto que Sua Majestade o tinha amizade com V.Sas., o que não
tratado com maior consideração pudera fazer antes. Mas se V.Sas.
do que ao Cardeal Orsini, e isso adiassem isso e ele neste ínterim
ao mesmo tempo que corriam se tivesse reconciliado com os
certos rumores de que o rei inten- Orsini, os quais o procuram
tava tirar-lhe o poder, eles. ti- ainda, repetir-se-ia a si.tuação,
nham partido e tinham marcado pois estes só poderiam ser satis-
encontro nessa dieta de falidos. E feitos com a reposição dos Médi-
se bem que tivesse havido mais cis, isto é, V.Sas. encontrar-se-
de uma embaixada de parte do iam na mesma dificuldade e
Senhor Giulio Orsini, o qual lhe temor; daí pensar ele que V.Sas.
assegurava não lhe fazer oposi- devem sem tardança declarar-se
ção alguma, etc., e se bem que seus amigos ou deles, porque
não fosse razoável que eles des- adiando-se a decisão pode acon-
cobrissem, quando lhes tirou o tecer que se faça acordo com
seu dinheiro, o próprio jogo, logo dano de V.Sas. ou seguir-se a
que tivessem de fazê-lo, reputa- vitória de uma das partes, a qual
va-os mais loucos do que poderia se lhes tornaria inimiga ou deso-
esperar, pois é certo que não ti- brigada para com V.Sas. E quan-
nham escolhido bem a oportuni- do tenham de tomar partido, o
dade para ofendê-lo, estando na que julga ele coisa que tem d~
Itália o rei de F_rança, e vivendo a acontecer, não vê· como V.Sas.
santidade de nosso senhor, duas possam tomar outro que não
coisas que o animavam tanto, aquele onde estão a majestade do
rei e asantidade de nosso senhor,
3 O papa. (N. do T.) ajuntando ainda que lhe será
'.
142 MAQUIAVEL

muito grato que, se Vitellozzo ou oportuno perguntar-lhe qual era


os outros se dirigirem a um dos a situação. Ao ·que Sua Exce-
, seus Estados dele, façam V.Sas. lência me respondeu: "A minha
demonstração de suas milícias clemência e pouca estimação dos
nas bandas do Borgo ou nas fron- fatos prejudicaram-me. Tomei,
teiras para que assim se lhe dê como sabes, em três dias aquele
prestígio. ducado, e não arranquei um fio
Pus-me a escutar atentamente de cabelo a ninguém, salvo a
de Sua. Excelência as referidas Messer Dolce e outros dois, que
coisas, as quais mencionei, não tinham ofendido a santidade de
só no seu sentido mas também nosso senhor; an~es, o que é
nas mesmas palavras que escrevi melhor, tinha combinado certas
difusamente para que S.Sas. pos- coisas com vári.os funcionários
sam melhor ajuizar de tudo. Não daquele Estado, com um encarre-
escrevo o que respondi, pois não
gado de construir um muro que
é necessário fazê-lo: esforcei-me
mandei fazer na Fortaleza de São
por não sair dos limites da minha
Leão, e há dois dias este tramou
missão, e quanto ao negócio
com alguns camponeses do lugar,
daquela demonstração não res-
pondi coisa alguma. Apenas dis- sob pretexto de puxar.para o alto
se-lhe que escreveria a V.Sas. a uma trave, certa maquinação, de
respeito das suas boas intenções modo que, forçada a cidadela, se
dele e que estas . lhes seriam rendeu. Todos a proclamam sua:
singularmente gratas. E se bem os venezianos, os Vitelli, os Orsi-
que Sua Excelência, como vêem, ni, mas por enquanto ninguém se
mostrasse desejar que se faça descobriu. Embora tenha eu por
depressa o acordo entre V.Sas. e perdido aquele ducado, porque se
ele, não obstante ter eu procu- trata de um Estado débil e mal
rado fazê-lo falar para tirar do ordenado e por estarem os seus
que dizia ele alguma particulari- homens descontentes e fatigados
dade, andou sempre ao largo e pelo serviço ·da milícia que lhes
nem pude saber senão o que impus, espero porém a tudo pro-
acima escrevi. Tendo eu ouvido à e
ver' escreverás aos teus s~nho­
minha chegada que houvera algu- res que pensem muito be:q.1 no
ma coisa no ducado de Urbino e que vão fazer e decidam dtjpres-
tendo Sua Excelência dito que sa, porque se volta de Venha o
não lhe importava a alteração duque de Urbino, não seri'i. em
1

naquele ducado, pareceu-me proveito deles nem no nos;so, o

--------------- - - - - - - - - - - - - - - - ' - - - - - - . . . . . . L _ - - - - -_ _
ESCRITOS POLÍTICOS 143

que faz prestarmos maior fé um este senhor, os seus alojamentos


no outro". e muitos outros pormenores
Isto é, com efeito, o que por daqui, todavia, tendo eu chegado
enquanto posso escrever a V.Sas. hoje, não posso saber a verdade,
e conquanto devesse eu escreve- e por isso me reservo para uma
ver-lhes sobre as tropas que tem outra vez e recomendo a V.Sas.

Die 7 Octobris 1502.

Servitor

NrcoLAUS MACHIAVELLUS Imolac.

Escrevo-lhes ainda esta manhã contrei-me, ainda a coisa de duas


porque o mensageiro até agora milhas daqui, com Messer Agapi-
não encontrou cavalo para .a via- to, com sete ou oito cavalos, do
gem, e resta-me escrever que qual fui reconhecido, dizendo-lhe
ontem, na conversa que tivemos, eu para onde ia e quem me man-
Sua Excelência me disse que, na dava. Acolheu-me muito bem e,
véspera, Pandolfo Petrucci lhe
fazendo um pouco de caminho,
tinha mandado alguém disfar-
voltou. Esta manhã, soube que o
çado para assegurá-lo de que não
daria apoio. a quem contrariasse dito Messer Agapito tinha sido
Sua Excelência, e disso lhe falou mandado daqui a V.Sas. pelo
muito longamente. duque, e que voltava do caminho
Ontem, quando chegava. en- com a minha chegada.

Iterum valete.

Die 8 Octobris 1502.

Dei ao portador dois ducados para que esteja aqui amanhã, dia 9,
antes do amanhecer. Peço-lhes que reembolsem a Ser Agostino
Vespucci.
DESCRI CÃO
DO MODO DE QUE SE SERVIU
O DUQUE VALENTINO
PARA MATAR
VITELLOZZO VITELLI
OLIVEROTTO DA FERMO
E O DUQUE DE CRAVINA ORSINI
Nota do Tradutor

Esta Descrizione foi composta por Maquiavel como uma espécie


de resumo do que vira na sua legação à Romanha. Não para dar um
exato testemunho histórico, diz P. Villari, mas parafazer ressaltar "a
maravilhosa prudência e arte do duque", o que explica a diversidade
·do tom e mesmo da informação de como Valentino preparou o "bel-
lissimo inganno" - expressão de ingênua admiração usada por um
biógrafo de César Bórgia no século XVI-. da versão por assim dizer
oficial dos acontecimentos, dada pelo próprio Maquiavel nas suas
cartas aos "Dez". Foi "sob a influência de Valentino que, na sua
mente (de MaqufaveV, surgiu primeiro e começou aformular-se assaz
claramente o pensamento, o qual devia depois ocupar toda a sua
vida, de uma ciência do Estado, separada, independentemente de todo
conceito moral" (P. Villari, op. cit., pág. 388). Assim, o Valentino· da
Descrizione é o precursor do Príncipe, forma teórica à qual chegou
Maquiavel mas que já se acha implícita na idealização do perfil do
duque.
HAVIA regressado da Lombar- mandado por Pandolfo Petrucci,
dia o Duque Valentino, aonde chefe de Siena: ali se travaram
fora desculpar-se para com o Rei debates sobre a grandeza do
Luís de França de muitas calú- duque e de seus propósitos e
nias que lhe haviam feito os como era necessário frear-lhe o
florentinos devido à rebelião de apetite; ao contrário, corria-se o
Arezzo e das outras cidades do perigo da ruína comum. E delibe-
vale do Chiana; e foi a Ímola, raram não abandonar os Bentivo-
onde intentava com a sua gente gli e procurar o apoio dos floren-
atacar Giovanni Bentivogli, tira- tinos; e a um lugar e outro
.no d~ Bolonha, porque o duque mandaram seus homens, prome-
queri.a reduzir esta cidade ao seu tendo a um ajuda, ao outro con-
domínio e torná-la capital de seu citando a unir-se a eles contra o
ducado da Romanha. O que, inimigo comum.
conhecido dos Vitelli e dos Orsi- Desta reunião se soube logo
ni e seus sequazes, lhes pareceu em toda a Itália; e os povos que
fazer o duque muito poderoso, e sob o domínio do duque não esta-
que se devia temer .que, ocupada vam satisfeitos, entre os quais os
Bolonha, não procurasse ele eli- urbineses, tiveram esperança de
miná-los para ficar o único bem poder renovar as coisas. Daí nas-
armado na Itália. E a este res- ceu que, estando assim suspensos
peito reuniram-se em conselho os ânimos, certos chefes de Urbi-
em La Magione, no Perugino, ao no. decidiram que se ocupasse o
qual estiveram presentes o car- Forte de São Leão, o qual estava
deal, P agolo e o Duque de Gravi- com o duque, e disso tiveram eles
na Orsini, Vitellozzo Vitelli, Oli- oportunidade. O castelão fortifi-
verotto da Fermo, Giampagolo cava-se e, fazendo para ali trans-
Baglioni, tirano de Perúgia, e portar madeira, fizeram os con-
Messer Antônio da Venafro, jurados com que. as traves,
150 MAQUIAVEL

apoiando-se na fortaleza, estives- qualquer precaução sua, tendo-


sem sobre a ponte, a fim de que, se-lhe tomàdo inimigos seus pró-
impedida esta, n_ão pudesse ser prios soldados, encontrava-se de-
levantada pelos que estavam den- sarmado e com a guerra
tro; e assim saltaram na ponte e, iminente. Mas · reanimando-se
em seguida, na fortaleza. Por com as ofertas dos florentinos,
causa da conquista da fortaleza, deliberou contemporizar reali-
logo que foi ·conhecida, rebelou- zando acordos, pois tinha pouca
se todo aquele Estado e tornou a gente, e também preparando au-
chamar o duque antigo; tinha-se xílios. Preparou-os de duas ma-
esperança, não tanto pela ocupa- neiras: mandando pedir tropa ao
ção da fortaleza como pela reu- rei de França; e estabelecendo
nião de La Magione, em conse- soldo para alguns homens de
qüência da qual pensavam ser armas e outros que, de qualquer
' ajudados. Conhecida a rebelião maneira, militassem· ã cavalo, e a
de Urbino, julgaram o-s conjura- todos dava dinheiro. Não obstan-
dos que não se devi'} perder tal te, os' inimigos avançaram, mar-
ocasião, e, reunindo:>sua gente, chando em direção a Fossom-
marcharam para tom'1! .alguma brone, onde se haviam fortificado
cidade daquele Estado que hou- ~lemntos do duque cujas fileiras
vesse ficado em poder do duque;· foram rompidas pelos Vitelli e
e novamente mandaram a Flo- Orsini. Isto fez com que o duque
rença solicitar daquela república procurasse remediar a situação
que os ·auxiliasse a apagar esse com acordos. E sendo grande
incêndio comum, mostrando o simulador, não deixou de, por
perigo vencido e fazendo ver que todas as ·maneiras, fazer com que
não se deveria aguardar outra acreditassem que desejava que
ocasião .. Mas os florentinos, pelo fosse deles o que haviam con-
ódio que votavam aos Vitelli e quistado pelas armas; que lhe
aos Orsini, por diversas razões, bastava ter o título de príncipe,
não só não aderiram a eles mas mas que desejava que o princj-
mandaram Nicolau Maquiavel, pado fosse deles - e tanto os
seu secretário, para oferecer ao persuadiu que mandaram ao
duque conselho e auxílio contra ~uqe o Senhor Pagolo para tra-
estes novos inimigos; o duque es- tar do acordo e sustaram. a guer-
tava tomado de medo em Ímola, ra. Mas o duque não interrompeu
porque, repentinamente e fora de as suas próprias providências e
ESCRITOS POLÍTICOS 151

por todos os meios aumentava o fortalezas que não julgava pudes-


número de cavalos e soldados; e se defender fossem ocupadas pelo
para que tais providências não inimigo e por meio delas pudesse
fossem notadas mandava separa-· manter freados seus inimigos.
damente suas tropas para todos Mas, tendo feito esta conven-
os lugares da Romanha. Haviam, ção, e tendo-se dispersado a sua
entretanto, chegado quinhentas gente por toda a Romanha, o
lanças francesas, e embora se Duque Valentino, com· os ho-
encontrasse já tão forte de modo mens de armas franceses, em fins
a poder, com guerra aberta, vin- de novembro partiu de Ímola e
gar-se de seus inimigos, julgou foi a Cesena; aí esteve muitos
que seria mais seguro e mais útil dias em conversações com os
enganá-los e não firmar, por isso, enviados de Vitelli e dos Orsini,
as cláusulas do acordo. E tanto que se encontravam com suas
trabalhou pela coisa que assinou tropas no ducado de Urbino,
com eles um tratado de paz onde sobre a nova empresa que se
se confirmavam as normas referi- deveria levar avante. E não con-
das. Deu-lhes quatro mil ducados cluindo coisa alguma, Oliverotto
de presente, prometeu não ofen- da Fermo foi mandado a ofere-
der aos Bep.tivogli e fez amizade cer-lhe que, se desejasse realizar
com Giovanni; e, mais, que não o empreendimento de Toscana,
os pudesse constranger a ir pes- ali estavam para ajudá-lo e que,
soalmente à sua presença a não se não quisesse, iriam à tomaçla
ser que assim o quisessem. Por de Sinigaglia. Ao qu~ respondeu
outro lado, eles prometeram res- o duque que à Toscana não que-
tituir-lhe o ducado de Urbino e ria fazer guerra por serem os
todas as outras coisas por eles florentinos seus amigos, mas que
ocupadas, e servi-lo em todas as estaria satisfeito se fossem a Sini-
suas expedições, nem sem seu -gaglia. · Em conseqüência, não
consentimento mover guerra ou muito depois, veio notícia de
auxiliar a alguém. Feito este como a cidade se lhes havia ren-
acordo, Guid'Ubaldo, duque de dido; mas que a fortaleza não
Urbino, de novo se retirou para havia querido render-se porque o
Veneza, tendo feito, antes, des- castelão queria entregá-la ao
truir todas as fortalezas daquele duque e não a outrem; e por isso o
Estado; porque, confiando nos concitavam a apresentar-se. Ao
povos, não queria que aquelas duque pareceu que a ocasião era
152 . MAQUIAVEL

boa, pois, sendo chamado por lhe fossem ao encontro, fazer


eles, não poderiam. ter a descon- com que entre cada dc;üs deles se
fiança que teriam se ·ele tivesse interpusesse um daqueles (desig-
ido por si mesmo. E para mais nando o homem certo aos ho-
garantir-se licenciou toda a tropa mens certos), e que ós entreti-
francesa, que voltou à Lombar- vessem até Sinigaglia; que não os
dia, exceto cem lanças do Senhor deixassem partir enquanto não
de Cindales, seu cunhado;· e par- houvessem chegado ao aloja-
tindo em meados de dezembro de mento do duque, e presos. Orde-
Cesena, foi a Fano, onde com nou, em seguida, que todos os
toda a astúcia e sagacidade de seus homens, infantes e cavalei-
que era capaz persuadiu os Vitel- ros, que eram mais que dois mil
li e os Orsini que o esperassem cavalos e dez mil infantes, esti-
em Sinigaglia; fez-lhes ver como vessem às primeiras horas da
aqueles selvagens não fariam manhã no Metauro (rio distante
acordo com eles, nem fiel nem de Fano (cinco milhas), onde
permanente, e que ele próprio era deveriam esperá-lo. Encontran-
homem que queria poder valer-se do-se, pois, no fim de dezembro
das armas e do conselho dos ami- no Metauro com aquela gente,
gos. E embora Vitellozzo es~i­ fez caminhar para a frente cerca
vesse muito renitente e a morte de duzentos cavalos: depois
do irmão lhe houvesse ensinado moveu a infantaria; depois desta
que não se deve ofender um prín- a sua pessoa com o resto dos ho-
cipe e depois fiar-se nele, persua- mens de armas.
dido por Paolo Orsino, subju- Fano e Sinigaglia são duas
gado por meio de favores e de cidades da Marca, situadas na
promessas, corrompido pelo margem do mar Adriático, dis-
duque, consentiu em esperá-lo. tantes uma da outra quinze mi-
Assim, o duque, na véspera (que lhas: de. modo que quem vai para
foi o dia trinta de dezembro de Sinigaglia tem à mão direita os
1502~ quando devia partir de montes; as raízes destes por
Fano), comunicou sua intenção a vezes se limitam com o mar, pois
oito dos seus mais fiéis, entre os deles à água é pequení.ssimo o
quais Dom Michele e Monsenhor espaço; e onde mais se alargam,
d'Euna, que depois foi cardeal; e ·não se alcança a distância de
lhes deu a incumbência de, logo duas milhas. A cidade de Siniga-
que Vitellozzo, Paolo Orsino, O· glia da raiz dos montes afasta-se
Duque de Gravina e Oliverotto pouco mais que um tiro de arco e
ESCRITOS POLÍTICOS 153

do mar está distante menos de voltaram os cavaleiros as garu-


uma milha. Junto a esta corre um pas das suas montadas parte para
pequeno rio que lhe banha a o rio ~ parte para o campo; e dei-
parte dos muros que está na dire- xaram caminho de permeio, por
ção de Fano, olhando a estrada. onde as tropas de infantaria pas-
Portanto, quem chega próximo savam, as quais, sem se deter,
de Sinigaglia vem, durante bom entravam na cidade. Vitellozzo,
.espaço de caminho, ao longo dos Pagolo. e o Duque de Gravina,
montes; e alcançando" o rio que montados em mulas, foram ao
passa ao longo de Sinigaglia vol- encontro do duque, acompa-
ta-se à mão direita ao longo da nhados de poucos cavaleiros: e
margem daquele; tanto que, an- Vitellozzo, desarmado, com uma
dando o espaço de uma arcada, capa forrada de verde, todo afli-
chega a uma ponte que passa to, como se soubesse de sua pró-
aquele rio e está quase defronte à xima morte, dava de si, conhe-
porta que entra em Sinigaglia, cida a coragem do homem e sua
não por linha retá, mas transver- fortuna passada, alguma admira-
salmente. Diante da porta há uni ção. E se diz que, quando ele se
burgo de casas com uma praça separou da sua gente para ir a
que a margem do ~io borda por Sinigaglia ao encontro do duque,
um dos lados. ele o fez como se fosse a sua últi-
Tendo, portanto, os Vitelli e os ma partida; aos membros da sua
Orsini dado ordem de esperar o casa recqmendou-a e a sua gló-
duque e pessoalmente honrá-lo, ria; e advertiu os sobrinhos que
para dar lugar à tropa deste ha- não da fortuna de suas· casas mas
viam retirado a sua para certos da virtude de seus pais se lem-
acampamentos distantes seis mi- brassem.
lhas de Sinigaglia; e só haviam Chegados enfim os três diante
dejxado em Sinigaglia Oliverotto. do duque e saudando-o civil-
com o seu bando, que era de mil mente, foram por ele recebidos de
infantes e cento e cinqüenta cava- bom grado; e logo por aqueles a
los, os quais estavam alojados no quem fora cometida a tarefa de
burgo a que acima se fez referên- observá-los foram cercados. Mas
cia. Dispostas. assim as coisas, o vendo o duque que faltava Olive-
Duque Valentino dirigiu-se para rotto, o qual havia ficado com os
Sinigaglia, e quando chegou à seus homens em Sinigaglia ou
ponte, com os primeiros cavalos, atendia diante da praça do seu
nao a transpôs; mas, detendo-se, alojamento sobre o rio a mantê-
154 MAQUIAVEL

los em ordem e exercitá-los na- do contentes com o saque das


quilo, fez um sinal com os olhos forças de Oliverotto, começaram
a Dom Michele, ao qual fora. a saquear Sinigaglia; e se ,não
confiada a parte referente a Oli- fosse ter o duque, com a morte de
verotto, que agisse de maneira a muitos, refreado a insolência
que este não se livrasse. Então, deles, tê-la-iam saqueado toda.
Dom Michele, no seu cavalo, Mas chegando a noite e cessados
adiantou-se: e chegando junto a os tumuitos, ao duque pareceu
Oliverotto disse-lhe de como não bem mandar matar Vitellozzo e
era oportuno ter a sua gente reu- Oliverotto; e conduzindo-9s jun-
nida fora do aiojamento porque tamente a um lugar, mandou
este seria tomado pelo duque; e estrangulá-los. Tem-se que não
assim concitou-o a alojá-las e a foram usadas por nenhum deles
que fosse com ele ao encontro do palavras dignas de sua vida pas-
duque. E tendo Oliverotto segui- sada: porque Vitellozzo rogou
do tal ordem, veio o duque, que, que por ele se suplicasse ao papa,
vendo-o, o chamou: a isso, Olive- que lhe desse dos seus pecados
rotto, tendo feito reverência, jun- indulgência. plena; Oliverotto,
tou-se aos outros. E entrados em toda a culpa das injúrias feitas ao
Sinigaglía, e apeados todos no duque, chorando, atirava-a a Vi-
aloja1!1ento do duque, e entrando t~loz; Pagolo e o duque de
com ele numa sàla secreta, pelo Gravina Orsini foram conser-
duque foram feitos prisioneiros. vados vivos, até que o duque
Este logo montou · a cavalo e soube que em Roma o· papa
mandou que fossem saqueadas as havia prendido o Cardeal Orsini,
tropas de Oliverotto e dos Orsini. o arcebispo de Florença e Messer
Assim foi com as de Oliverotto, Iacopo da Santa Croce. Depois
por estarem próximas: as dos Or- desta nova, aos dias dezoito de
sini e Vitelli, estando mais distan- janeiro,· em Castel della Pieve,
tes e tendo pressentido a ruína de foram ainda aqueles estrangu-
seus senhores, tiveram tempo de lados da mesma maneira.
reunir-se; e lembrando-se da vir- Termina aqui a descrição do
tude e da disciplina das casas dos modo de que se serviu o Duque
Orsini e dos Vitelli, as quais Valentino para matar Vitellozzo,
eram' estreitamente aliadas con- Oliverotto da Fermo, Pagolo Or-
tra os inimigos, se salvaram. Mas sino e o Duque de Gravina Orsi-
os soldados do duque, não estan- ni, em Sinigaglia.
DISCURSO SOBRE AS COISAS
DA ALEMANHA
. E SOBRE O IMPERADOR
Nota do Tradutor

Francesco Vettori, embai--cador florentino junto à cor(e de M aximi-


liano, escrevia ao seu governo em fins do ano de 1507 que era neces-
sário pagar os cinqiienta mil ducados que o imperador pedira, pois do
contrário se podia contar com a inimizade dele. Discutiu-se muito em
Florença o valor que podiam ter a amizade do imperador e a. do rei
de França, as quais eram incompatíveis. Em dezembro de 1507, par-
tia para a Alemanha Maquiavel, que levava novas instruções: ofere-
cer a Maximiliano trinta mil ducados e, somente em extrema necessi-
dade, dar-lhe os cinqiienta mil pedidos. }Jas, em todo caso, só se
começaria afazer o pagarriento quando houvesse a certeza de que ele
viria à Itália.
Voltando a Florença, e~crvu Maquiavel, a 17 de junho de 1508,
o Rapporto di Cose della Magna, onde faz um.fiel retrato de Maximi-
liano e uma descrição geral do país. Os Ritratti delle Cose
dell' Alemagna são -de data posterior (1512), e ficou interrompida a
sua composição. Seria uma versão !iferariamente mais apurada do
Rapporto e aumentada com observações inéditas. O Discorso sopra
le Cose di Alemagna e sopra l'Imperatore é de 1509, sendo também
quase um resumo do Rapporto.
:f?oR HAVER escrito quando quando lhes manda f ~ê-lo. É
aqui cheguei, ano passado, sobre reservadíssimo. Está sempre em
o imperador e a Alemanha, não contínuas agitações de alma e de
sei que dizer mais. Direi somente corpo; mas freqüentemente des-
de novo da natureza do impera- faz de noite o que conclui pela
dor; como é homem pródigo do manhã. fato toma dificeis as
seu, sobre todos os outros que em legações junto a ele; porque a
nossos tempos ou antes existi- parte mais importante que tenha
ram: o que faz com que sempre alguém que seja enviado dum
tenha necs~da, nem soma al-
príncipe ou república é inter-
guma exista que lhe baste, em
pretar bem as coisas futuras,
qualquer grau que a fortuna se
assim os tratados como os fatos:
encontre. É vário, porque hoje
quer uma coisa e amanhã não: porque quem deles conjetura sa-

..
quer as coisas que não pode ter e
daquelas que pode ter se afasta, e
biamente e os faz compreender
bem ao seu superior é razão para
por isso toma seínpre o partido que este possa adiantar-se sempre
inverso. É, por outro lado, e assegurar-se a seu devido
homem belicosíssimo; comanda e tempo. Isso, quando bem feito,
conduz bem um exército, com honra a quem está fora e benefi-
justiça e com ordem. Pode supor- cia quem está em casa: e o con-
tar qualquer fadiga, mais que ne- trário acontece quando é mal
nhum outro homem trabalhador; feito. E para vir a descrevê-las
animoso nos perigos: de tal modo particularmente, vós estareis em
que, como capitão, não é inferior lugares onde se manejar ão duas
a nenhum outro. É humano quan- coisas: guerra e tratados. A que-
do dá audiência, mas a quer dar à rer desempenhar bem vosso ofi-
sua vontade; nem quer ser corte- cio, vós deveis dizer que opinião
jado pelos embaixadores, senão se tenha de uma e de outra coisa.
160 MAQUIAVEL

A guerra deve-se medir com a parte entre o imperador e vós.


tropa, com o dinheiro, com o Pelos vossos próprios acordos
governo e com a fortuna; e quem deveria ser-vos fácil fazer a sua
tem mais das mencionadas coisas interpretação, e ver qual é o
deve-se crer que vencerá. E coosi- intento do imperador para con-
derado por isso quem possa ven- vosco, o que deseje, para onde es-
cer, é necessário que se entenda tej a voltado o seu ânimo e o que
aqui, a fim de que vós e a cidade seja necessário fazer para fazê-lo
possais melhor deliberar. Os tra- recuar· ou ir por diante; e encan-
tados são concluídos de várias trado isso, ver se está mais a pro-
-maneiras: isto é, parte entre os pósito temporizar que con.cluir.
venezianos e o imperador, parte Isso estará em vós deliberá-lo,
entre o imperador e a França, com relação a quanto se estende-
párte entre o imperador e o papa, rá a vossa comissão. ·

.,
.RELATÓRIO SOBRE
AS COISAS DA ALEJ\~NH
FEITO.A
17 DE°JUNHO DE 1508
O IMPERADOR reuniu, em rara que queria reunir os prínci-
junho passado, em Constança,. a pes e que tinha ido à Suábia para
Dieta, composta por todos os ameaçar os suíços se estes não
príncipes da Alemanha, a fim de rompesserµ com a França: o que
que lhe fossem garantidos meios fez com que o Rei Luís, logo de-
de invadir a Itália e coroar-se pois da conquista de Gênova,
imperador. O que fez por sua regressasse a Lião de modo que,
vontade própria e, ainda, por ter parecendo ao imperador que lhes
sido solicitado pelo enviado do tirara a guerra de cima, acredi-
pontífice, que lhe prometia gran.:. tava que em tudo o devessem
de ajuda por parte deste. Pediu o apoiar; e se comprouve em dizer
imperador à Dieta, para tal em- mais de uma vez 'que in Italia non
presa, três mil cavalos e dezesseis habebat amicos propter Vene-
mil infantes; e prometeu juntar tos 4 • As outras razões ainda por
nesse total, por si mesmo, até que pediu tão pouca gente foram
trinta mil pessoas. A razão de ter que o império lhas prometesse e
ele pedido tão pouca gente para cumprisse; ou que condescen-
tão grande empresa foi: a pri- desse de mais bom grado em pô-
meira porque ele julgou que bas- las todas sob sua obediência e
tassem, persuadindo-se de que se não procurasse dar-lhe capitães
poderia valer dos venezianos e de nomeados pelo império e que fos-
outros da Itália, como adiante se sem seus iguais. Porque não fal-
dirá; nem julgou nunca que os . tou quem na Dieta relembrasse
venezianos lhe faltassem, tendo- (entre os quais estava o arcebispo
os servido pouco antes, quando de Mogúncia) que conviria fazer
temiam a França, depois da to- grande a expedição, provendo
mada de Gênova, porque havia, a
pedido deles, mandado cerca de 4
Por causa dos venezianos não tinha amigos
dois mil homens a Trento. Decla- na Itália. (N. do E.)
164 MAQUIAVEL

pelo menos a quarenta mil ho: do-lhe não poder mover-se nem
mens e lhes dar em nome do deixando ainda de esperar condu-
império quatro capitães, etc. ·O zi-las a termo, enviou as forças,
que encolerizou o imperador, que parte para Trento, parte para ou-
disse: Ego possum ferre labores, tros lugares; e não deixava as
valo etiam honores 5 : tanto que suas pretensões; de modo que ele
pediu os referidos dezenove mil se encontrou em janeiro é consu-
homens e mais, que lhe dessem mida a metade do tempo previsto
cento e vinte mil florins .para su- pelo império, sem ter feito coisa
prir à necessidade do acampa- alguma. Vendo-se chegado a este
mento e para pagar soldo a cinco extremo, fez ultimatum de po-
mil suíços por seis meses, como tentia 6 para ter os venezianos;
melhor lhe parecia. Propôs o . aos quais mandou Pra Bianco,
imperador que as tropas estives- mandou o Padre Luca, mandou o
sem reunidas no dia de São Galo; déspota da Morea e os seus arau-
parecendo-lhe tempo mais que tos várias vezes. E eles, quanto
· suficiente para tê-las prontas e mais eram solicitados, tanto mais
cômodo ao modo pelo qual elas o percebiam .fraco e mais lhes
faziam a guerra. E e~ seguida fugia a vontade. Nem aí perce-
declarou que dentro do tempo biam alguma qaquelas coisas
referido teria realizado três coi- pelas quais as alianças de Esta-
sas: uma, o ter-se ganho o apoio dos se fazem; que são, ou para
dos venezianos, dos quais não ser defendido, ou por medo de ser
desconfiou até a última hora, não ofendido, ou por lucro: mas viam
obstante haver sido depois expul- ·que. entravam para uma aliança
so o enviado deles, como se sabe; onde a despesa e perigo era deles
a outra, ter firmes os suíços; a e o lucro de outros. Portanto, o
terceira, ter tirado do pontífice e imperador, sem ter outro partido
de outros da Itália boa quanti- a tomar, sem perder mais tempo,
daqe de dinheiro. -deliberou atacá-los, acreditando,
Foi, portanto, combinando talvez, fazê-los recuar, e talvez
estas coisas: chegou o dia de São lhe tenha sido dada a intenção
Galo; as tropas começaram a disso pelos seus enviados: ou,
reunir-se e ele, das três, não havia pelo menos, com a desculpa de
realizado nenhuma. E parecen- tal ataque, fazer com que o imp~-
rio afirmasse e acrescesse as suas
5 Eu posso enfrentar as dificuldades, quero

também as honras. (N. do E.) 11 Ultirnatum de autoridade. (N. do E.)


ESCRITOS POLÍTICOS 165

tropas de reforço, percebendo cimento das disposições do impé-


que as primeiras não haviam bas-. rio. Os infantes foram mortos em
tado. E çomo sabia que, antes de Codaura e ele mandou o Duque
ter recebido maiores -reforços, de Brunswick, do qual nunca se
não podia estar fazendo a guerra, soube coisa alguma. Reuniu a
para não deixar o país à discri- Dieta na Suábia 7 no terceiro
ção, reuni:u, antes do assalto, no domingo da Quaresma; e porque
dia 8 de janeiro, em Buggiano, _ tudo lhe parecia ir mal, dirigiu-se
lugar que fica a um dia de Tren- a Gueldre. e mandou o Padre
to, a Dieta do condado do Tirol. Luca aos venezianos para tentar
É este condado toda a parte que a trégua, que se concluiu no dia 6
era de seu tio, e lhe rende mais de do presente mês de junho, per-
trezentos mil florins, sem imposi- <lendo ele o que possuía no Friul,
ção de nenhum tributo 9 dá mais tendo quase perdido Trento, a
de dezesseis mil homens de guer- quàl foi defendida pelo condado
ra e os seus habitantes são muito do Tirol; porque pelo imperador
ricos. Esteve essa dieta em ativi- e pelas forças imperiais pouco
dade dezenove dias; e afinal con- faltou para que se perdesse, pois
cluiu por dar mil infantes para todos partiam nos maiores peri-
sua vinda à Itália, e, não chegan- g·os da guerra, quando se esgo-
do, até cinco mil em três meses; e tava o prazo de seus seis meses.
finalmente dez mil para a defesa Sei que os homens, que ouvi-
do país, sendo necessário. E de- ram e viram estas coisas, confun-
pois de tal conclusão, foi para dem-se e divergem em muitas
l'rento; e no dia 6 de fevereiro partes; nem sabem por que não
realizou aqueles dois a.taques se viram estas dezenove mil pes-..
contra Rovereào. e. Vicenza? com soas que o império prometeu,
cerca de cinco mil homens ao nem por que a Alemanha não se
todo. Depois partiu logo; e com tenha ressentido da perda de sua
cerca de mil e quinhentos infan- honra, nem por que razão o
tes e camponeses entrou no vale imperador se tenha enganado
de Codaura em direção do Trivi- tanto: e assim cada qual tem opi-
giano: apoderou-se de· um vale e nião diferente sobre aquilo que se
de diversas fortalezas; e vendo déva temer ou esperar para o
que ·os venezianos não se me- futuro, e para onde as coisas se
xiam, deixou avisadas aquelas podem orientar. Eu, tendo estado
tropas de que deviam entrar em
ação e voltou para tomar conhe- 7 Em Ulm. (N. do T.)
166 MAQUIAVEL

no local, e tendo ouvido falar despender, ele não gasta um


muitas vezes a muitos, nem tendo soldo; porque não tem gente de
tido outra tarefa que não esta, armas, não paga guarnições de
referirei todas as coisas que guar- fortalezas nem oficiais de terra:
dei; as quais, se não distinta- porque os gentis-homens do país
mente, todas .juntas, misturadas, estão armados às próprias
·responderão aos quesitos acima: cu,stas; as fortalezas compete
nem as apresento como verda- guardá-las ao país; e as cidades
deiras e ponderáveis, mas come tem os seus burgomestres, que se
coisas ouvidas; parecendo-me mteressam por elas.
que o oficio de um servidor seja Poderia, portanto, se fosse um
colocar diante do seu senhor tudo rei de Espanha, em pouco tempo
quanto ele apura, para que, da- criar tão grande base por si
quilo que seja bom, ele possa mesmo, que lhe sairia bem qual-
. .
fazer cabedal. quer coisa: porque, com um capi-
Cada um daqueles a quem eu tal de oitocentos ou novecentos
ouvi falar está de acordo em que mil. florins, o império não seria
se o imperador tivesse uma das tão desprezível; e o país por
duas coisas, sem dúvida lhe teria pouco que fizesse não deixaria de
saído bem qualquer desígnio na resultar em grande aumento: e
Itália, sabendo-se como ela está tendo a possibilidade de fazer
condicionada: as quais são, ou guerra de súbito, por ter gente ar-
que mudasse de natureza, ou que mada em toda parte, poderia,
a Alemanha o ajudasse deveras. encontrando-se provido de di-
E começando-se pela primeira, nheiro, mover campanha sem
dizem que, considerados os seus detença e encontrar, em matéria
fundamentos, se ele deles se. sou- de armas, quem quer que fosse,
besse valer não seria inferior a desprevenido. Acrescente-se a
nenhum outro potentado cristão. isto a reputação que advém do
Dizem que os seus Estados lhe fato de ter ele, por sobrinhos, o
dão de renda seiscentos mil flo- rei de Castela, o duque de Borgo-
rins sem requerer qualquer tribu- nha e o conde de Flandres; a
to e cem mil florins lhe vale o ofí- aliança que tem com a Ingla-
cio imperial. Esta renda é toda terra: estas coisas lhe seriam de
sua, e não a tem por necessidade grande utilidade quando fossem
obrigada a nenhuma despesa. bem empregadas, de modo que
Porque em três coisas onde os sem dúvida todos os projetos na
outros príncipes são obrigados a Itália· lhe resultariam bem. Mas

1
ESCRITOS POLÍTICOS 167

mesmo com todas as arrecada- mais a dar-lho a segunda. E


ções mencionadas, ele nunca tem quando eles não tivessem tido ou-
dinheirQ algum; e, o ·que é pior, tras ações contra o príncipe, este
não vê aonde o dinheiro vai. lhes teria pedido dinheiro em
Quanto ao manejar as outras · empréstimo; e se não lhe fosse
coisas, o Padre Luca, que é um emprestada a soma pedida até
dos principais homens de que ele então, ter-se-iam eles tirado fora.
se utiliza, disse-me estas pala- Eu vos quero dar disto uma verís-
vras: o imperador não pede con- sima demonstração. Quando
selho a ninguém e é aconselhado Messer Pagolo, a 29 -de março,
por todos; quer fazer tudo por si fez aquela pergunta, eu, despa-
e nada faz' a seu modo; porque, chado que foi Francisco por ele,
não obstante não descobrir ele fui visitá-lo com o capítulo feito
nunca os seus segredos esponta- relativamente à vossa petição; e
neamente, como o assunto os quando ele chegou àquela parte
descobre, o imperador volve as que diz non possit Imperator pe-
costas aos que lhe estão ao derre- tere aliam summam pecuniarum,
dor e se afasta daquela sua pri- etc., queria que antes de petere se
meira ordem. E são estas duas pusesse iure 8 : e perguntando-lhe
coisas: a liberalidade e a facili- eu por quê, respondeu que queria
dade, que o fazem louvado de que o imperador vos pudesse
muitos que o arruínam. Nem a solicitar dinheiro em emprés-
sua vinda à Itália é por outra timo; então lhe respondi de ma-
razão tão espantosa quanto· por neira que ele se contentou. E
esta: porque com a vitória as notai isto: que das suas fre-
necessidades lhe cresciam, não qüentes desordens nascem as
lhe convindo hav~r firmado pé suas freqüentes necessidades, e
assim depressa; e não mudando das freqüentes suas necessidades
de maneiras, se as frondes das ár- os freqüentes pedidos, e destes as
vores da Itália se lhe tivessem freqüentes Dietas; e do seu pouco
transformado em ducados, não critério as fracas resoluções e
lhe bastariam. Não hÍl coisa que, fraquíssimas execuções.
com dinheiro na mão, não se Mas se tivesse vindo à Itália,
tivesse então obtido: e contudo vós o não teríeis podido satisfa-
muitos julgavam prudentes aos
que custavam mais a dar-lhe s ... parte que diz: "O imperador não pode
exigir outra soma de dinheiro, etc., queria que
dinheiro a primeira vez, porque antes de exigir se pusesse por direito. (N. do
estes não teriam de custar ainda E.)
168 MAQUI~VEL

zer nas reuniões da Dieta como produz; e gozam sua vida rústica
faz a Alemanha. E tanto mais o e livre e não querem ir à gueqa se
prejudica esta ·sua liberalidade, não são bem pagos, e isto tam-
quanto para fazer a guerra lhe é bém não lhes bastaria se as
necessário mais dinheiro· que a comunidades assim não lhes de-
qualquer outro príncipe: porque terminassem: e assim ao impera-
os seus povos, por serem livres ·e dor seria necessário muito mais
ricos, não são instados nem pela dinheiro do que ao rei de Espa-
necessidade nem atraídos· por nha ou a outros que tenham orde-
qualquer afeição, mas o servem n·ado o seu povo de modo dife-
pela determinação da sua comu- rente.
nidade e pelo seu preço; de A sua fácil e boa natureza faz
maneira que, se ao fim de trinta com que cada um que ele tem ao
dias o dinheiro não aparece, logo seu redor o engane: e declarou-
partem e não os podem reter me um dos seus que cada homem
rogos ou esperança ou ameaça, e cada fato o pode enganar uma
faltando-lhes o ·dinheiro. E se vez quando ele o percebeu: mas
digo que os povos da Alemanha são tantos os homens, tantos os
são ricos é que assim é a verdade; fatos, que lhe pode suceder ser
e o que os faz ricos, em grande enganado todos os dias, .mesmo
parte, é o viver como pobres; que ele sempre se apercebesse do
porque não edificam, não vestem engano. Possui infinitas virtudes;
e não têm mantimentos em casa, e se combinasse as duas partes
e lhes basta ter pão e carne em mencionadas, seria um homem
abundância e uma estufa para . perfeitíssimo: porque êle é per-
fugir do frfo. Quem não tem ou- feito capitão; mantém o país com
tras coisas, passa sem elas e não grande justiça; acessível às au-
as procura. Gastam consigo dois diências e benéfico, e muitas ou-
florins em dez anos, e cada qual tras qualidades de ótimo prínci-
vive segundo a sua vontade a esta pe: con.cluindo que se temperasse
proporção, e ninguém se importa aquelas duas podem todos perce-
com aquilo que lhe falta e sim ber que todas as coisas lhe da-
com aquilo que tem de necessá- riam bom resultado.
rio; e as suas necessidades são D;i potência da Alemanha n.in-
muito menores do que as nossas: guém pode duvidar; porque tem
e deste costume resulta que não ela· abundância de homens, i de
sai dinheiro de seu país e eles riquezas e de armas. E quantb à
estão contentes com o ·que lá se riqueza, não }_lá comunidade que
ESCRITOS POLÍTICOS 169

não tenha dinheiro economizado; dizem que a causa da desunião


e todos dizem que Estrasburgo está no fato de existirem muitos
sozinha tem vários milhões de temperamentos contrários naque-
florins em prata: e isto lhe vem la província, o que produz desu-
de não terem despesa que os faça nião geral, dizendo que os suíços
gastar mais dinheiro do que a que estão em inimizade com Çt Ale-
fazem para se fornecer de muni- manha, as comunidades com os
ções; nas quais, t~ndo despen- príncipes e os príncipes com o
dido certa soma de uma vez, des.:. imperador. E parece talvez coisa
pendem pouco em mantê-las. E estranha dizer que os suíços e as
nisso são bem ordenados .porque comunidades sejam 1mm1gos,
têm sempre em público o que atendendo ambos ao mesmo de-
fazem para se fornecer de muni- sígnio de salvar a liberdade e
ções; na~ quais, tendo despen- guardar-se dos príncipes: mas
dido certa soma de uma vez, des- esta sua desunião existe porque
pendem pouco em mantê-las. E os suíços não somente são inimi"'"
nisso são bem ordenados porque gos dos príncipes como das co-
têm sempre em público o que munidades, mas também são ini-
comer, beber, queimar durante migos dos gentis-homens; porque
um ano; e da mesma maneira, o no seu país não existe nem de
que por um ano trabalhar nas uma nem de outra espécie, e
suas iridústrias, para poder, em gozam de uma verdadeira liber-
caso de necessidade, dar de dade sem distinção nenhuma nos
comer à plebe, e àqueles que homens, salvo aqueles que exer-
vivem dos braços, por um ano cem a magistratura. Este exem-
inteiro, sem perda. Em soldados plo dos suíços faz medo aos
não gastam porque têm os seus gentis-homens que . permane-
homens armados e exercitados. ceram nas comunidades; e toda a
Em salários e em outras coisas, sua indústria está em mantê-los
gastam pouco: de tal forma que desunidos, e pouco amigos deles.
cada comunidade se encontra São ainda inimigos dos suíços
rica. Resta agora que as cidades todos aqueles homens das comu-
se unam aos príncipes para favo- nidades que· atendem aos miste-
recer os empreendimentos do im- res da guerra, movidos por uma
per.ador ou que, por si mesmas, inveja natural, parecendo-lhes ser
sem os príncipes, o desejem levar menos estimados nas armas que
adiante, pois que bastariam a aqueles; de modo que não se
.isso. E aqueles que falam disso pode reunir num campo pequeno
170 MAQUIAVEL

um grande número desses, que ajudado; e aqueles que não


não briguem entre si. ousam mover-lhe a guerra ousam
, Quanto à inimizade dos prínci- retirar-lhe os auxílios; e quem
pes com as comunidades e com não ousa negar-lhos ousa, prome-
os suíços, não é preciso falar tidos que os tem, não observar a
mais, sendo coisa conhecida; e promessa; e quem ainda não
assim também que existe entre o ousa isso ousa diferir-lhos, de
imperador e os ditos príncipes. E modo que não ·cheguem em
deveis compreender que, tendo o tempo útil. E todas estas coisas o
imperador seu ódio principal ofendem e o perturbam. Sabe-se
contra os príncipes e não poden- disto por ter-lhe a Dieta prometi-
do por si mesmo rebaixá-los, do, como se disse acima, deze-
valeu-se dos favores das comuni- nove mil homens, e por não se
dades e por esta mesma razão, de terem visto nunca tantos que che-
um tempo a esta parte, entreteve gassem a cinco mil. Pode-se con-
os suíços, com os quais lhe pare- siderar que se origine tal fato das
cia ultimamente ter chegado a razões mencionadas, ou de ter ele
um certo grau de confiança. tomado dinheiro em vez de gente,
Tanto que, consideradas, em e talvez por ter tomado cinco por
geral todas estas divisões, e jun- dez. E para chegar a outra afir-
tando-se depois as que existem mação relativamente à potência
entre um príncipe e outro, e uma da Alemanha e da sua união,
comunidade e outra, tornam difí- digo que este poder está mais nas
cil a união, de que o imperador comunidades que nos príncipes.
teria necessidade. E aquilo que Porque os príncipes são de duas
fazia com que todos confiassem, naturezas: ou temporais ou espi-
que tomava gloriosas as ações do rituais. Os temporais estão como
imperador e plausíveis as suas que reduzidos a uma grande debi-
empresas, é que não se via prín- lidade; parte por eles mes.mos,
cipe na Alemanha que pudesse sendo cada principado dividido
opor-se aos seus desígnios, como · em diversos príncipes pela divi-
antigamente houve: 9__...qúe era e é são igual da herança que eles
a verdade. Mas aquilo em que os observam, parte por havê-los re-
outros se enganavam é que não baixado o imperador com o favor
somente o imperador pode ser re- das comunas, como se disse, de
tido se se lhe mover guerra e tal maneira, que são amigos inú-
tumulto na Alemanha, mas ele teis e inimigos pouco -temíveis.
pode ser ainda retido se não for Existem ainda, como foi dito, os
ESCRITOS POLÍTICOS 171

príncipes eclesiásticos: os quais, do os· de uma comunidade vi-


se as divisões hereditárias não os nham os da outra se retiravam.
aniquilaram, os reduziu a ambi- Assim, o imperador, desesperado
ção das suas comunidades, com daquela empresa, fez acordo com
o favor do imperador; de tal os suíços e lhes' deixou Basiléia.
maneira que os arcebispos eleito- Ora, se nos seus próprios interes-
res e outros semelhantes nada ses as comunas têm usado destes
podem nas grandes comunidades termos, pensai no que fariam
próprias: do que advém que nem quando se tratasse de empresas
eles nem as suas terras,. sendo de outrem. Donde todas estas
divididas juntamente, podem fa- coisas reunidas fazem com que
vorecer empresas do imperador
esta potência se tome pequena e
quando bem o desejassem.
poucG útil ao imperador. E por-
Mas - venhamos às comuni-
que os venezianos, no comércio
dades francas e imperiais, que que mantêm com os mercadores
são o nervo daquela província;
das comunas da Alemanha, com-
onde há dinheiro e ordem. Estas
preenderam isso melhor do que
têm muitas razões de não se mos-
quaisquer outros da Itália, me-
trar solícitas em prover o impera-
lhor se opuseram; porque se eles
dor de dinheiro, pois lhe é inten-
ção principal manter a própria houvessem temido esta potência
liberdade e não conquistar mais não se lhe teriam oposto, e
império; e aquilo que não dese- mesmo se, quando se lhe tives-
jam para si não cuidam para que· sem oposto, tivessem julgado
outrem o tenha. Além disso, por possível que aquelas comunas se
serem tantas, e cada qual gover- pudessem unir, nunca a teriam
. .-
nar-se por .s1, as suas prov1soes, feido; mas porque lhes parecia
quando o desejam fazer, são tar- · conhecer esta impossibilidade,
das e não possuem a utilidade for.am fortes como se viu. Não
que seria de desejar. Por exem- obstante, quase todos os italianos
plo, há isto: os suíços, nove anos que estão.na corte ·do imperador
faz agora, assaltaram o Estado (dos quais ouvi dizer as mencio-
de Maximiliano e a Suábia. Con- nadas coisas) permanecem agar-
veio o rei com estas comunidades rados a esta esperança, a saber,
em reprimi-los; e eles se obriga.:. de que a Alemanha se empenhe
ram a manter em campo catorze em unir-se agora e b imperador
mil homens~ mas destes nunca se atirar-se-lhe ao ventre, e manter
viu nem a metade; porque quan- agora aquela ordem de capitães e
'
172 MAQUIAVEL

das gentes de que se falou no ano as cidades da Itália e eles não: e


passado na Dieta de Constança; onde a recompensa deva ser desi-
e que o imperador agora cederá gual, os homens poµco se .esfor-
por necessidade, e eles o farão de çam, e. de má vontade. Assim,
bom grado, para r~ave a honra permanece esta opinião indecisa,
do império; e a trégua não os sem poder resolver-se sobre o que
incomodará, pois será feita pelo há de acontecer.
imperador e não por eles. Ao que E isto é o que eu entendo da
responde alguém não dar muita . Alemanha. Com relação às ou-
fé a que isto esteja para aconte- · tras coisas, do que poderia haver
cer; porque se vê todos os dias de paz e de guerra entre os prínci-
que as coisas que numa cidade pes, ouvi dizer muitas coisas;
pertencem a muitos são descura- que, por serem fundadas todas
das: tanto mais deve acontecer em conjeturas (do que se tem
numa província. Além disso, as aqui mais verdadeira notícia e
comunidades sabem que a con- melhor juízo), deixá-las-ei de
quista da Itália seria para os parte. Valete 9 •
príncipes e não para eles; poden-
do estes vir a gozar pessoalmente s Saudações. (N. do E.)
.._. ._-.y.>
..,·.

•.

DO "RESUMO
DAS COISAS DA ALEMANH!X'

,, Ni
As TROPAS alemãs são muito tam, quando se agitam os cava-
bem montadas, mas são pesadas, los.
e outrossim são muito bem arma- As tropas de infantaria são óti-
das na parte que usam armar. mas, e compostas de homens de
Mas deve-se notar que num pré- bela estatura; ao contrário dos
lio de armas contra italianos ou suíços, que são pequenos, e não
franceses nada valeriam; não são limpos nem belos: mas não
pela qualidade dos homens, mas se armam, ou poucos, com mais
porque não usam nos cavalos do que a lança ou adaga, para ser
armadura de nenhuma espécie, e mais ágeis, prestas e leves. E cos-
as selas pequenas, fracas e sem tumam dizer que fazem assim
estribos, de maneira que qualquer por não ter outro inimigo que
pequeno choque os atira por não a artilharia, da qual uma
terra. Eis outra coisa que os
armadura, couraça, cota de
torna mais débeis: do busto para
malha não os defenderia. Outras
baixo, isto é, coxas e pernas, não
armas não temem, pois afirmam
se resguardam em nada; de modo
possuir tal ordem, que não é pos-
que, não podendo agüentar a pri-
sível entrar entre eles, nem apro-
meira investida, e nisso consiste a
ximar-se-lhes quando a lança é
importância das tropas e do feito
de armas, não podem mais com- longa. São ótimos homens nas
bater com arma curta; porque batalhas campais, mas para o
podem ser atingidos, assim como assalto a fortalezas não valem, e
os seus cavalos, nos lugares des- pouco para defendê-las; e em
guarnecidos, e está nas possibili- geral, onde não podem manter a
dades de qualquer peão com ordem da sua milícia, não valem.
lança arrancá-los dos cavalos ou Disto se teve a experiência depois
destripá-los; e além disso, pelo que tiveram que se avir com os
seu próprio peso, mal se agüen- italianos; e máxime onde tiveram
176 MAQUIAVEL

que conquistar cidadelas, como a infantaria francesa e a gascã; e


aconteceu em Pádua e outros se os alemães com a sua presteza
lugares, no que provaram mal; e, não os socorressem, ali ter~am
ao ~ontrái, onde se encon- todas sido mortas e tomadas. E
traram em campo, fizeram boa assim se viu'- que, ultimamente,
figura~ De modo que, se na jo.ma- quando o Rei Católico declarou
da de Ravena, entre os franceses guerra à França ria Guiena, as
e os espanhóis, aquefos não tives- tropas espanholas temiam mais
sem contado com os iansquene- um grupo de alemães que o rei
tes, teriam perdido a batalha; tinha, de dez mil, do que a todo o
porque enquanto uma parte da resto da infantaria, e evitavam as
tropa se empenhava com a outra, ocasiões de encontrar-se com
os espanhóis haviam já rompido eles.
. ;_

·1~
DA NATUREZA
DOS FRANCESES

tt
Nota do Tradutor·
M aqüiavel tem evidente antipatia pela França e pelos franceses e a
manifesta nos Ritratti delle Cose di Francia, escrito que data da sua
última legação à França, em 151 O, e principalmente no Della Natura
dei Francesi, pequeno escrito composto de breves conceitos sobre a
psicologia do povo francês. -
Júlio II, fazendo a paz com Veneza e recuperando a Romanha,
rompia com a França e lançava as bases da Lega Santa. Florença
via-se em situação embaraçosa. Luís XII exigia da repúblicafonnais
promessas de auxilio na guerra que fazia a Veneza. O papa, por outro
lado, reqú'estava o apoio de Florença à liga antifrancesa. O interesse
da república era, assim, contemporizar, deixando de ajudar efetiva-
mente a qualquer dos campos adversos.
Nos primeiros dias de julho partia Maquiavel para a França muni-
do da commissione dos "Dez" e instruções reservadas do Gonfalo-
neiro. Apesar das dificuldades da situação, conseguiu ele justificar
perante o rei a política de Florença, tolhida entre a necessidade de
cumprir as suas obrigações para com a França e o tenwr de chocar-
se contra a Igreja.
Durante esta terceira legação à França pôde Maquiavel estudar o
caráter da organização política e econômica do reino, conw já o fize-
ra para a Alemanha. Os Ritratti tiveram sucessivas redações, a últi-
ma das quais é de 1510 ou 1511, e onde, apesar da desordem, da
segunda parte e de algumas inexatidões, revela Maquiavel a niesnia
acurada observação das linhas essenciais e caracte1isticas dos
Estados.
ESTIMAM tanto a utilidade e o Pretendendo um beneficio,
dano presentes, que lhes fica pensam antes na utilidade que
pouca lembrança das injúrias e dele podem tirar, do que no servi-
beneficios passados e pouco cui- ço que poderão prestar.
dado do bem ou do mal do Os primeiros acordos com eles
futuro. são sempre os melhores. ·
São antes retrógrados que pru- Quando não te podem fazer
dentes. Não se importam muito bem, to prometem; quando
do que se escreva ou se diga podem fazer, fazem-no com difi-
deles.· São mais cúpidos de di- culdade ou nunca.
nheiro do que de sangue. São · São humílimos na má sorte; na
liberais somente em ouvir. boa, insolentes.
A um senhor ou gentil-homem Tecem bem as suas intrigas
que desobedeça ao rei numa urdidas com a foça~ Quem vence
está, por isso mesmo e quase
coisa que pertença a um terceiro
sempre, com o rei; quem perde,
não resta remédio que não o de
raríssimas vezes: e por isso; quem
lhe obedecer de qualquer manei- tem que realizar uma empresa
ra, quando ainda está em tempo; deve logo . considerar se ela lhe
e quando não, ficar quatro meses sairá bem ou não. É' este capítulo
sem aparecer na corte. E isto vos · conhecido dé Valentino, pois o
arrebatou Pisa duas vezes: uma fez vir a Florença com o exércit~.
quando Entraigues tinha a cida- Estimam em muitas coisas sua
dela; a outra quando o campo honra grosseiramente e de manei-
francês nos veio. · ra desconforme à dos senhores
Quem quer levar um negócio a italianos: e por isso bem pouco se
bom termo na corte precisa de importam de haver mandado a
muito dinheii-o, grande diligência Siena a pedir Montepukiano e
e boa fortuna. · não ser obedecidos.
182 MAQUIAVEL

São incortstantes e levianos. Dos italianos, não tem bom


Têm fé no vencedor. São inimi- tempo na corte senao
-
quem 1pao
-

gos do falar romano e da sua tem mais o que perder e navega


fama. por perdido.
RELA CÃO
SOBRE A FRANCA
A COROA e os reis ·de França_ gar a qualquer empreendimento
são hoje mais ricos e mais pode- contra os . reis: como acontecia
rosos do que nunca, pelas razões com um duque de Guiena e de
abaixo mencionadas; e antes: Bourbon: os quais são hoje todos
A coroa, sendo . transmitida muito obsequiosos. Veio a . ser
por sucessão de sangue, tomou- assim o mais forte.
se rica; porque às vezes, o rei não Eis uma outra razão: que a
tendo filhos, nem quem o suce- qualquer outro príncipe vizinho
desse na própria herança, os seus bastava se>mente a vontade de
haveres e os Estados ficaram atacar o reino de França, e isto
para a coroa. E tendo acontecido porque sempre havia um duque
isto a muitos reis, a coroa veio a da Bretanha, ou um duque de
ser muito enriquecida pelos mui- Guiena, de Borgonha, ou de
tos Estados que lhe couberam; Flandres, que lhe servia de ajuda,
como aconteceu com o ducado cedia-lhe o passo e o fazia de
de Anjou, e no presente, como amigo, . como acontecia quando
acontecerá ao atual rei, que, por os ingleses estavam em guerra
não ter filhos varões, deixará com a França, que sempre por
para a coroa o ducado de Or- intermédio de um duque de Bre-
leans e o Estado de Milão: de ' tanha davam que fazer ao rei; e,
modo que hoje todas as boas ter- da mesma maneira um duque de
ras de França são da coroa e não Borgonha por meio de. um duque
dos seus barões particularmente. de Bourbon. Agora sendo a Bre-
Uma outra razão existe, pode- tanha, a Guiena, o Bourbonês e a
rosíssima, da força daquele rei: é maior parfo da Borgonha súditos
que no p~sado a França não es- obsequiosíssimos da França, não
tava unida devido aos poderosos · só faltam a tais príncipes estes
barões, que tudo ousavam e lhes meios de poder invadir o reinado
bastava a vontade para se entre- de França, mas os têm hoje por
186 MAQUIAVEL

inimigos; também o rei, por pos-'- A última razão que existe é


suir estes Estados, é mais pode- esta: que os Estados dos barões
roso e o inimigo mais fraco. de França não se dividem entre
Eis ainda uma outra razão: os herdeiros, como se faz na Ale-
que hoje os mais ricos e os mais manha e em outras partes da Itá-
poderosos barões de França são lia; antes cabem sempre aos
de sangue real e da linha heredi- primogênitos e eles são os verda-
tária, de modo que, faltando deiros herdeiros: e os outros
algum dos superiores e ascen- irmãos ficam em paz; e ajudados
dentes seus, a coroa lhe pode ser pelo primogênito e irmão deles,
outorgada. E por isso cada qual dão-se todos às armas, e se empe-
se mantém unido à coroa, espe- nbam na tarefa de chegar ao
rando que ou ele mesmo ou um ponto e em condições de poder
de seus filhos possam chegar comprar para si um Estado, e
àquele grau. E o rebelar-se ou com essa esperança vivem. Disto
tornar-se inimigo poderia ser advém que os homens de armas
mais prejudicial do que benéfico: franceses são hoje os melhores
como esteve para acontecer a que existem, pois que são todos
este rei, quando foi preso na jor- nobres e filhos de senhores e
nada de Bretanha, aonde fora em estão em condições de chegar a
favor daquele duque e contra os tal grau.
franceses 1 0 ; e se discutiu se, As tropas de infantaria que se
morto que foi o Rei Carlos, por formam na França não podem
aquela falta e defecção ele deves- ser boas porque faz muito témpo
se ter perdido o direito de suce- que não têm guerra, e por isso
der. E se não fosse ser ele homem não têm experiência alguma. E
de dinheiro pelas economias que além disso os seus homens estão
fizera, e pôde gastar, e depois pelas cidades, todos de condição
aquele que podia ser rei, afastado popular e trabalhadores; e estão
ele próprio, era menino, isto é, o de tal maneira submetidos aos
Senhor de Angoulême; este rei, nobres e tornam-se tão abatidos
pelas razões expostas, e por me- na ação, que chegam a ser des-
recer também algum favor, foi prezíveis. Assim se vê que o rei
feito rei. nas guerras não se serve deles,
porque provam mal, havendo
1 0 Luís XII tinha tomado armas contra a entretanto os gascões, dos quais
regência de Ana, duquesa de Bourbon, na o rei se serve, pois são um pouco
minoridade de Carlos VITI, dos quais era
cunhado. (N. do T.) melhores que os outros; e isto
ESCRITOS POLÍTICOS 187

advém do fato de serem vizinhos coisas de modo que é fácil,


das fronteiras de Espanha,. de encontrando-os em desordem, su-
modo que têm um pouco do cará- perá-los. Disto se teve a expe-
ter espanhol. Mas deram, pelo riência no reino de Nápoles tan-
que se viu há muitos anos a esta tas vezes, e ultimamente no
parte, mais provas de serem Garigliano; onde eram superiores
ladrões do que de homens valen- ao dobro dos espanhóis; e se jul-
tes. Entretanto, no defender e gava que os devessem a cada
assaltar fortalezas provam muito momento aniquilar. Contudo,
bem; mas em campanha dão mau porque começava o inverno e as
resultado: assim vêm a ser o con- chuvas eram fortes, começaram
trário dos alemães e dos suíços, os franceses a retirar-se um a um
os quais no campo não têm igual, para as cidades circunvizinhas,
mas para defender e ofender for- para viver com mais conforto; e
talezas nada valem. E por isso o assim o campo ficou desfalcado e
rei de França se serve sempre dos
com pouca ordem, de maneira
suíços ou dos lansquenetes 1 1
que os espanhóis foram vitorio-
porque os seus homens de armas,
sos, contra todas as razões. Teria
onde se tenha inimigo, não se
acontecido o mesmo ·aos venezia-
fiam dos gascões. E se a infanta-
nos; não teriam perdido a j<;>ma-
ria fosse da qualidade que são os
da de V ailà, se tivessem ido
homens de armas franceses, não
seguindo os franceses pelo menos
há dúvida que lhes bastaria o
dez d'ias: mas o furor de B arto-
ânimo para defender-se de todos
lommeo d' Alviano encontrou um
os príncipes.
furor maior. O mesmo aconteceu
Os franceses são por sua natu-
em Ravena aos espanhóis, que
reza mais valentes que fortes ou
não se aproximavam dos france-
destros; e no primeiro ímpeto, se
ses e os desorganizavam, consi-
se lhes puder resistir à sua feroci- derando a indisciplina e a falta de
dade, tornam-se tão humildes e
víveres, que lhos impediam os
perdem de tal maneira o ânimo
venezianos através de Ferrara, e
que se tornam iguais a fracas
os de Bolonha teriam sido impe-
mulheres. E também não supor-
didos pelos espanhóis; mas por-
tam aborrecimentos e incômo- que tiveram pouco conselho uns,
dos; e com o tempo descuram as · e os outros menos juízo, o exér-
cito francês foi vencedor; embora
, , Lansquenetes = tropa de infantcrria merce- a sua vitória fosse sangrenta. E se
nária composta de soldados alemães armados
de lança. (N. do T J o conflito foi grande, maior teria
188 . MAQUIAVEL

sido se a força principal de um eles próprios gado suficiente para


campo e de outro tivesse sido ·da consumir, assim como criações
mesma categoria, tanto um como de aves, lagos, lugares cheios de
outro. Mas o exército francês era caça de toda a espécie; e assim
forte na gente de armas, o espa- em geral cada um deles nas cida-
nhol na infantaria; e por isso não des, de modo que todo o dinheiro
houve grande carnificina. E con- se concentra na mão dos senho-
tudo, quem quiser superar os res; por isso lioje sua riqueza é
franceses deve guardar-se do seu grande: e assim, quando os do
primeiro ímpeto; que, com o ir povo têm um florim, parece-lhes
entretendo-os, pelas razões acima que são ricos.
mencionadas, os vencerá. E por Os prelados de França tiram
isso César disse que os franceses dois quintos das rendas daquele
são no princípio mais do que ho- reino, porque existem muitos bis-
mens e, no fim, menos do que pados que têm o temporal . e.. o='
·mulheres. espiritual: e além disso, tendo
A França, pela sua grandeza e bastante para a sua subsistência,
pela comodidade de grandes rios, todas as prestações e dinheiros
é fértil e opulenta; donde os reba- que lhes vão· às mãos não lhe;s
nhos e os trabalhos manuais saem mais, segundo a natureza
valerem pouco ou nada, pela avara dos prelados e religiosos; e
falta de dinheiro que têm as aquilo que vai aos capítulos e
populaçõe·s, as quais apenas colégios das igrejas é gasto em
podem reunir o suficiente para pratas, jóias, riquezas para orna-
pagar ao seu senhor os impostos, mento das igrejas. Assim, o que
ainda que sejam baixíssimos. Isto possuem as igrejas e o que têm os
acontece porque não têm onde prelados em particular, entre· di-
vender os seus rebanhos deles; nheiro e prataria, vale tesouros
porque todo homem colhe para infinitos.
vender: de maneira que, se em No consultar e governar as
uma cidade houvesse alguém que coisas da coroa e Estado de
quisesse vender uma medida de França, os prelados sempre inter-
grão, não encontraria. compra- vêm em maior parte; e os outros
dor, porque todos têm grão que senhores não se importam porque
vende. E os gentis-homens, do sabem que eles próprios é que
dinheiro que recebem dos súdi- têm de executar as medidas pro-
tos, fora o que gastam em vestir- postas pelo governo. E assim,
se, não gastam nada: porque têm cada qual se contenta, um com o
· ESCRITOS POLÍTICOS 189

ordenar, outro com o executar: outros: do que,juntamente com o


embora intervenham ainda ve- seu e o dos outros, é, depois, pró-
lhos e já experimentados homens . diga. E assim o francês roubaria
de guerra, para que, quando se alguém e, no mesmo instante, iria
deve tratar de coisas semelhan- gozar a coisa roubada com aque-
tes, possam orientar os prelados, le de quem a roubou. Natureza
que não têm prática disso. contrária à espanhola, que, da-
Qs beneficias de França, em quilo que te rouba; nunca mais
12

virtude ·da pragmática obtida coisa alguma verás.


pelos pontífices há muito tempo, Teme muito a França aos
são conferidos pelos seus colé- ingleses, pelas grandes incursões
gios: de maneira que os cônegos, e danos que outrora fizeram ao
quando o seu arcebispo ou bispo reino: de maneira que, entre o
morre, reunidos todos, conferem povo, o nome de "inglês" é temí-
o beneficio a quem deles lhes vel, pois não distingue ele que a
parecer que mereça. Dessa ma- França está hoje bem ordenada,
neira, freqüentemente têm algu- ao contrário do que era naqueles
ma dissensão, pois há sempre tempos, porque está armada, ex-
quem se favoreça com o dinheiro periente e unida, e tem em seu
e alguém com a virtude e boas poder aqueles Estados nos quais
obras. A mesma coisa fazem os . os ingleses se fundavam, como
monges ao eleger os abades. Os acontecia com o ducado de Bre-
outros pequenos benefícios são tanha e o de Borgonha, e, por
conferidos. pelos bispos aos quais çmtro lado, os ingleses não são
estão submetidos. E se por acaso disciplinados; porque há tanto
o rei quisesse contrariar tal prag- tempo que não entram em guerra
mática,· elegendo um bispo a seu que, dos homens que vivem hoje,
modo, seria necessário que usas..'. não há um que tenha jamais visto
se de força, porque negariam in~mgo pela frente; e além disso
posse a este; e mesmo que sejam lhes falta quem os sustente no
a isso obrigados, costumam, continente, salvo o arquiduque 1 3 •
morto que seja o rei, desapossar Temeriam muito dos espa-
o prelado para dar o beneficio a nhóis, pela sua sagacidade e vigi-
outro, eleito por eles. lância. Mas se por acaso o seu rei
A natureza dos franceses é
ambiciosa do que pe~tnc aos , 3 Alusão ao Arquiduque Carlos d'Áustria,
que foi depois Carlos V, o qual então era sobe-
rano dos Países Baixos sob a·· regência de
12 Os cargos episcopais. (N. do T.) Maximiliano, seu avô. (N. do T.)
190 MAQUIAVEL

quiser atacar a França, o fará que tem este povo também ditas
com grande desvantagem: porque mercadorias e até as fabricam
do seu Estado, de onde partiria mais que eles. Assim, sempre que
até às bocas dos Pireneus, que deixassem de comerciar com· os .
penetram .no reinado de França, é franceses, não teriam eles onde
tão longo o caminho e :tão estéril vender as mercadorias; e assim
que toda a vez que os franceses não somente sofreriam a· falta de
visassem aquelas saídas dirigidas mantimentos como também de
a Perpignan, como as que se diri- mercado para o que produzissem.
gem à Guiena, o exército espa- O que faz com que os flamengos
nhol poderia ser desorganizado, nunca, senão forçados, terão
sen~ -pela falta de socorro, ao guerra com os franceses.
menos no que diz respeito aos ví- Teme muito a França dos suí-
veres, tendo que caminhar por ços pela sua vizinhança e pelos
tão longa estrada; porque as ter- repentinos ataques que lhe
ras que se deixam para trás são · podem fazer; ao que não é possí-
como que inabitadas, devido à vel, pela sua presteza, prover a
sua esterilidade: e as que são tempo. E fazem, antes, mais
habitadas têm apenas o suficiente depredações e correri.as que outra
para a vida dos habitantes. E por coisa: porque, não tendo nem
isso os franceses da vertente dos artilharia nem cavalos e estando
Pireneus temem pouco os espa- as cidades francesas que lhes são
nhóis. vizinhas bem defendidas, não
Dos flamengos os franceses conseguem grandes progressos.
não temem; e isto pOFque os fla- Além disso a n~tureza dos suíços
mengos não produzem, devido à é mais apta à guerra de campo do
fria natureza do país, nem com que ao expugnar e defend"er forti-
que viver; e principalmente trigo ficações: e de má vontade os
e vinho, que é necessário impor- franceses naqueles confins com-
tar da Borgonha e da Picardia e batem os s_uíços; porque não têm
de outros Estados de França. infantaria boa que lhes faç·à fren-
Além disso, os povos de Flandres te, e os homens de armas sem
vivem de trabalhos manuais que infantaria de nada valem. E
vendem nos _mercados de França, ainda o terreno é. aí tão aciden-
isto é, de Lião e de Paris; porque tado que as lanças e cavaleiros
do lado do mar, não há onde mal se movimentam: e os suíços
comerciar, e para o lado da Ale- só de má vontade deixam as suas
manha, acontece o mesmo, por-· fronteiras dirigindo-se à planície,
ESCRITOS POLÍTICOS 191

deixando para trás, como se ordem, e vem a saber-se por


disse, cidades muito povoadas e todos; e em todas estas provín-
bem fortificadas, o que os faz cias o reino de França, ordinaria-
duvidar de poderem eles voltar mente, tem guarnições de homens
aos seus lugares se descessem à de armas para jogar seguro .
. planície, e de que não lhes faltas- Gasta pouco para guardar as
sem os víveres. terras, porque os súditos lhe são
Da parte que fica em direção à obsequiosíssimos e de fortalezas
Itália não temem, devido aos não usa para fazer guardar o
montes Apeninos, e para as gran- reino .. E nos confins, onde have-
des cidades que têm nas raí~es ria alguma necessidade de gastar
daqueles; cada vez que algu~m estando aí as guarnições de ho-
quisesse atacar o Estado de Fran- mens de armas, está livre dessa
ça, teria que avançar em país tão despesa: porque um ataque em
estéril que seria necessário, ou grande escala t€in-se tempo de
que assediasse pela fome ou que ·prevê-lo, pois de requer tempo
deixasse para trás fortalezas (o
par~. poder ser feito e organizado.
que seria loucura), ou que se dis-
São os povos de França humil-
pusesse a expugná-las. Dessa ffih.-
des e obedientíssimos, e têm em
neirá, do lado . da Itáliâ não
grande veneração o seu rei.
temem pelas razões menciona-
Vivem com pouquíssima despesa,
das, e por. não haver na Itália
príncipe em condições de atacá- pela abundância dos rebanhos: e.
los, e por não estar a Itália unida, também cada qual tem qualquer
como acontecia no tempo dos coisa de estável para si mesmo.
romanos. Vestem grosseiramente e de
Do lado do Meio-Dia, nao panos de pouco dispêndio; e não
teme absolutamente o reinado de usam seda de nenhuma qualida-
França, por ter aí os marinhei- de, nem eles nem as ~uas mulhe-
ros: e naqueles portos há conti- res, porque seriam notados pelos
nuamente navios· em número bas- gentis-homens.
tante, do rei e .de outros Os bispados do reino de Fran-
reinícplas, para poder defender a ça, segundo o moderno recensea-
, região de um inopinado assalto. mento, são em número de cento e
· Porque a um premeditad9 tem-se quarenta e seis computados os
tempo de reparar, pois é neces- arcebispados, em número de de-
sário tempo a quem o _ quiser zoito.
fazer, para prepará-lo e pô-lo em As paróquias, um milhão e
192 MAQUIAVEL.,

setecentas 1 4 , computadas sete- proventos, sejam de gabela como


centas e quarenta abadias. Os de talha e empréstimos.
priorados não interessam. As terras súditas da coroa não
A receita ordinária e extraordi- têm entre elas outra ordem que a
nária da coroa não o, pude saber; que lhes dá o rei de fazer dinhei-
porque interroguei a muitos e ro, ou pagar impostos ut supra.
todos me. disseram ser tão grande A autoridade dos barões sobre
quanto o rei o deseje. Tamen 1 5 os súditos é nula. O seu imposto
alguém diz uma parte da receita é sobre o pão, vinho, carne, como
ordinária, isto é, o que se diz ser se disse; tanto por fogo anual-
o dinheiro do rei, e é produto da mente, mas não passa de seis ou
gabela, como sejam os impostos oito soldos por fogo, de três em
do pão, vinho, carne e similares, três meses. Talhas ou emprés-
tem ele um milhão e setecentos timos não podem eles impor sem
escudos; e ·a receita extraordi- o consentimento do rei; e isto
nária tira-a ele como talha quan- raramente se consente.
to desejar; e estas rendas se A coroa não tira deles outra
pagam altas ou baixas, como utilidade que a entrada do sal;
bem parecer ao rei. Mas não bas- nem nunca os faz pagar talha
tando, lançam-se empréstimos e senão em alguma. grandíssima
raramente se devolvem, e são necessidade.
pedidos por cartas régias, desta
A ordem do rei nas despesas
maneira:
extraordinárias, tanto nas guer-
ras como em outras coisas, é que
"O rei nosso senhor ordena aos tesoureiros que pa-
recomenda-se a vós; e guem os soldados; e eles pela
como há falta de di- mão dos contrar 1 6 que os regis-
nhe~o, vos roga lhe em- tram. Os pens~oita e gentis-ho-
presteis a soma que mens vão aos generais e fazem
contém a carta". com que se lhes dê o desencargo;
isto é, a apólice do seu paga-
E est.a se paga em mãos do mento de mês em mês; os gentis-
recebedor do lugar; em cada ci- homens e pensionistas de três em
dade há um, que recebe todos os três meses; e vão ao recebedor da
1 4 Esta cifra é evidentemente errônea: mas se 1 6
Talvez contraroli, isto é, controllori
encontra em todas as edições e manuscrito.s. controladorés, do francês controleur. Outras
(N. do T.) edições trazem "por mão daqueles, etc." (''per
1 5 Entretanto. (N. do E.) mono di coloro').

1
ESCRITOS POLÍTICOS 193

província onde habitam e sao porque as graças se fazem por


logo pagos. cartas reais, lacradas com o
Os gentis-homens do rei são grande selo real: mas ele tem o
duzentos: o seu soldo é de vinte grande selo. Seu salário é de dez
escudos por mês, pagos ut supra: mil francos ao ano, e onze mil
e cada cem têm um chefe, que fran~os para "ter mesa". Por ter
costumava ser Ravel de Vidames. mesa entende-se dar de comer e
Não há. número fixo para os
de cear àqueles tantos homens _do
pensionistas; e são poucos ou Conselho que seguem o grao-
muitos, como agrada· ao rei, e
ch.anceler; isto é, advogados e ou-
alimenta-os a esperança de alcan- tros gentis-homens que o acom-
çar maior posto: e por isso àí não panham, quando eles. o desejem,
há ordem.
O oficio dos generais d.e Fran- do que se usa muito. .
A pensão que o rei de França
ça é tomar tanto por fogo e tanto
dava ao rei de Inglaterra era de
.por talha, com o assentimento do
cinqüenta mil francos por ano; e
rei; e ordenar que as despesas,
era como recompensa de certas
tanto as ordinárias como extraor-
despesas feitas pelo pai do atual
dinárias, sejam pagas no tempo
rei de Inglaterra no ducado de
certo; isto é, os desencargos ut
Bretanha: a qual terminou e não
dictum est supra 1 7 •
Os tesoureiros ficam com o se paga mais. _
. Presentemente na França nao
dinheiro, e pagam segundo a
existe mais do que um senescal.-
ordem e desencargos dos gene-
mor, mas quando há mais de um
rais. . ,
O oficio do grão-chanceler .e (não digo grandes, que não existe
merum imperium; e pode fazer mais que um), seu oficio se exer-
graça e condemnare suo libito, ce sobre os homens de armas
etiam in capitalibus, sine con- ordinários e extraordjnários; os
sensu regis 1 8 • Pode repor os liti- quais, por dignidade de seu ofi-
gantes contumazes. em bons ter- cio, são obrigados a obedecer-
mos. Pode conferir os benefícios lhe. . , .
Os governadores da provmcia
cum consensu regis tantum 1 9 :
são tantos quantos o rei queira, e
1 1 Como ficou dito aci!?:a {N. do E.) ·
pagos como ao rei melhor pare-
1ã O oficio do grão-chanceler é de legitima ça-;- e são feitos annuatim et a
autoridade; e pode fazer graça e conde~. a
seu alvitre, mesmo à pena capital, sem o prev10
vita, ut regibus placet 2 0 : e os ou-
consentimento do·rei. (N. do E.)
1 s Somente com o consentimento do rei. (N. 2 o Anualmente ou vitalícios, segundo bene-
do E.) plácito real. (N. do E.)
194 MAQUIAVEL

tros governadores, e ·ainda os Bourges e Poitiers: e depois,


lugar-tenentes das cidades peque- Tours e Angers, mas de pouco
. nas são todos colocados pelo rei. valem .
· E deveis saber que todos os ofí- As guarmçoes permanecem
cios do reino são ou doados ou onde o rei quiser, e são tantas
vendidos pelo rei, e não por qu~tas bem lhe parecer, tanto
outrem. com· relação à artilharia como
O modo de reunir os Estados aos soldados. Entretanto, todas
gerais é, cada ano, em agosto, em elas têm algumas peças de arti-
outubro, ou janeiro, como o rei lharia, municiadas; e de há dois
deseja: e se ordenam a despesa e anos a esta parte construíram-se
a receita ordinárias daquele ano muitas em muitos lugares do -
pelas mãos dos generais; e então reino, a expensas das cidades, e
distribui-se a entrada conforme a isso se conseguiu com o aumen-
saída; e se elevam ou diminuem tar a renda de um dinheiro por
as pensões e pensionistas, como o animal ou por medida. De ordi-
rei ordena. nário, quando o reino não teme
Da quantia que se distribui nada de ninguém, as .gu.arnições
pelos gentis-homens e pensio- são quatro; isto é, na Guiena,
nistas não há número fixo; mas Picardia, na Borgonha e na Pro-
nada se aprova pela Câmara de vença: e depois se vão mudando
Contas, e lhes basta a autoridade e alargando mais num lugar do
do rei. que noutro, segundo as suspeitas
A função da Câmara de Con- que se tenham.
tas é rever as contas de todos Esforcei-me por saber quanto
aqueles que administram dinhei- está estipulado para o rei, po~
ros da coroa; como sejam gene- ano, para as despesas de sua casa
rais, tesoureiros, recebedores. e para ele pessoalmente; e sei que
A Universidade de Paris é o dinheiro é tanto quanto o rei
paga pelas entradas das funda- desejar.
ções dos colégios, mas magra- Os archeiros são quatrocentos,
mente. designados para a guarda do rei;
Os Parlamentos são cmco: entre estes há cem escoceses; e
Paris, Rouen~ Toulouse, Bordéus recebem por ano trezentos fran-
·e Delfmato, e de nenhum se cos por homem e um saio, pois
apela. usam a libré do rei. Os do Corpo
Os principais centros de estu- do Rei, que sempre estão ao seu
dos são quatro: Paris, Orleans, lado, são vinte e quatro, com
ESCRITOS POLÍTICOS 195

quatrocentos francos para cada O alcaide-mor é o funcionário


um por ano. O seu comandante é que acompanha sempre a pessoa
o Senhor D' Aubigny, e o capitão, do rei; e sua função é de mero
Gabriel. império; e em todos os lugares
A guarda dos homens a pé é aonde vai a corte seu lugar é o
constituída de alemães; dos quais primeiro, e podem os da. cidade
cem são pagos a doze francos por mesma onde se encontra ele so-
mês, e era costume ter até trezen- frer sua ação como do próprio
tos com pensão de dez francos; lugar-tenente. Aqueles que por
demais, a todos, duas vesti- causa de crime caem sob sua
mentas por ano para cada um; mão não podem apelar para os
isto é, uma para o verão e uma Parlamentos. O seu salário é
para o inverno, isto é, túnica, geralmente de seis mil francos.
meias e libré; e os do Corpo ti- Têm dois juízes no cível, pagos
nham túnicas de seda: isto no pelo rei a seiscentos francos ao
tempo.do Rei Carlos. ano por homem: assim um lu-
Foreiros são os que estão gar-tenente no criminal, que tem
designados para alojar a corte; e trinta archeiros pagos como se
são triilta e dois e têm trezentos disse acima. E dispõe tanto no
francos e um saio por ano cada cível como no criminal; e uma só
libré. Os seus menescais são qua- vez que o autor se defronte com o
tro e recebem seiscentos francos réu em sua presença é suficiente
cada um; e para os alojar obser- para expedir a causa.
vam esta ordem: dividem-se em Mestres da casa do rei há ·oito,
quatro, e um quarto, com um mas não há ordem firme sobre
menescal ou seu lugar-tenente, se seu salário; porque há quem rece-
ele . não estiver na corte, fica no ba mil. francos, quem mais e
lugar para onde a corte parte, quem menos, como o rei queira.
para que seja feito o que é neces- E depois do grão-mestre que
sário pelos chefes dos alojamen- sucedeu ao Senhor de Chaumont,
tos; um vai com a pessoa do rei; está o Senhor de La Palice, cujo
e· um quarto onde, no día, deve pai teve já o mesmo ofício; rece-
chegar o rei; e o outro quarto vai be onze mil francos e não tem
onde o rei deve ir no dia seguinte. outra autoridade que a de estar
E observam uma ordem admirá- acima dos outros mestres da
vel; de modo que, ao chegar, casa.
cada qual tem seu lugar, até as O almirante de França está no
meretrizes. governo de todas as armadas do
196 MAQUIAVEL

mar e tem a seu cuidado todas subordinados: e tem que tomar


elas e todos os portos do _reino. conta dos cavalos do rei, montá-
Pode tomar navios e agir Gomo lo e apeá-lo do cavalo, guardar
lhe parece quantq aos navios da os apetrechos do rei, e levar-lhe a
armada, .e atualmente é Prejanne espada.
e recebe dez mil francos de Os senhores do Conselho do
salário. Rei têm todos pensão de seis a
Cavaleiros da ordem não têm oito mil francos, como o rei quei-
número certo; porque são tantos ra: e são o Senhor de Paris, o Se-
quantos o rei deseje. Quando são nhor de Bouvines, o bailio de
criados, juram defender a coroa e Amiens, o Senhor de Bussy, e o
não se voltar nunca contra ela; e grão-chanceler. E, efetivamente,
não podem nunca ser destituídos Ru bertet e o Senhor de · Paris
senão na morte. A sua pensão é, governam tudo.
quando muito, de quatro mil Não se mantém presentemente
francos, e há alguns de menos; e mesa para ninguém, depois que
tal grau não se dá a qualquer um. morreu o cardeal de Rouen.
.A função dos camareiros é dis- Como já não existe o chanceler-
trair o rei, entrar nos seus apo- mor, faz suas vezes o Senhor de
sentos,. aconselhá-lo; e, de fato, Paris.
são os primeiros do reino pela O direito que pretende ter o rei
sua reputação. Têm grande pen- de França sobre o Estado de
- são: seis, oito, dez mil francos; e Milão é que seu avô teve por mu-
alguns nada, porque o rei· os no- lher uma filha do duque de
meia freqüentemente para honrar Milão, o qual morreu sem filhos
algum homem de bem, ainda que varoes.
forasteiro. Mas têm· o privilégio O Duque Giovann.i Galeazzo
no reino de não pagar gabela; e _teve duas filhas e não sei quantos
sempre na corte têm as suas filhos varões. Entre as mulheres
despesas · págas pela mesa dos hotjve uma que se chamou Ma-
camareiros, que é a primeira de- donna Valentina e foi casada
pois da do rei. com o Duque Luís de Orleans,
O ·escudeiro-mm está sempre avô deste rei 2 1 , descendente tam-
junto do rei. ·Sua função é estar bém da estirpe de Pepino. Morto
sempre governando os doze escu- o Duque Giovanni Galeazzo,
deiros do rei, como acontece com su.cedeu-lhe o Duque Filipe;, seu.
o. senescal-mor, grão-mestre, e o
camareiro-mor para com os· seus 21
Luís XII. (N. do T.)
ESCRITOS POLÍTICOS 197

filho, o qual morreu sem ter fi- que universalmente se usa para
lhos legítimos, e deixou apenas cada um; isto é; um soldo por
uma filha bastarda. Foi depois ·quarto, ao dia; onde deve haver
aquele Estado usurpado por estes cama e travesseiro, e muda cada
Sforza ilegtman~ segundo oito dias. Dois dinheiros por
se diz: porque estes dizem que homem ao dia para a roupa bran-
aquele Estado deveria ir. as mãos ca (isto é, toalhas, guardanapos),
dos sucessores e herdeiros daq\).e- vinagre, vinho de uva, e eles são
la Madonna Valentina; e desde o obrigados a mudar a dita roupa
dia em que os Orlearis se aparen- branca pelo menos duas vezes
taram com a casa milanesa, · por semana, mas, por ter abun-
acrescentaram às suas armas dos dância delas a cidade ou país,
três lírios uma serpente, e assim mudam mais ou menos, con-
ainda é. forme a pessoa pedir. Além disso
Em cada paróquia de França são obrigados a dirigir, varrer e
há um homem bem pago pela arrumar as camas. Dois dinhei-
dita paróquia, e se denomina o ros cada um, por dia, e para cada
franco archeiro; o qual é obri- cavalo na estalagem; e não são
gado a ter um bom cavalo e estar obrigados a dar coisa alguma aos
provido de armas par a todas as cavalos, a p.ão ser esvaziar a
requisições do rei ·quando o rei estrebaria da sujeira. São tantos
estiver fora do reino devido a que pagam menos, ou pela sua
guerras ou qualquer outra razão. boa natureza ou pela do patrão:
São obrigados a cavalgar para a mas geralmente esta é a taxa
província onde o reino tenha sido ordinária da corte.
assaltado ou onde· houvesse sus- Os direitos que pretendem ter
peita disso: que, segundo as paró,_ os ingleses· sobre o reinado de
quias, são um milhão e setecen- França, as- mais novas procuro e
tos. penso que são estas. Carlos VI
Os alojamentos, por obrigação deste nome, rei de França, despo-
de seu oficio, dão-no os foreiros a sou Catarina, filha legítima e
quem acompanha a corte, e co- natural de Henrique, filho legí-
mumente cada homem de bem ou timo e natural do rei de Ingla-
· destaque da terra hospeda os terra: e no contrato, sem fazer
cortesãos. E para que ninguém qualquer menção a Carlos VII,
tenha motivo para queixar-se, que foi depois rei de França,
tanto o que aloja como o que é além do dote <lado a catarina,
alojado a corte fixou uma taxa, instituiu herdeiro do reino de
198 MAQUIAVEL

França depois de sua mo.rte, isto estar contra as leis. Ao contrário


é, de Carlos VI, Henrique, seu disso os ingleses dizem que o
genro e marido de Catarina; e no referido Carlos VII nasceu ex
@aso de que o dito Henrique mor- incestuoso concubito 2 2 •
resse antes de Carlos VI, seu Os arcebispados da Inglaterra
sogro, e deixasse filhos varões são dois.
legítimos e naturais, que em tal Bispados, vinte e dois.
caso ainda os filhos de Henrique Paróquias, cinqüenta e duas
sucedessem a Carlos VI. O que. mil.
por ter sido preterido do pai,
Carlos VII, não teve efeito, por 22
Nasceu de união incestuosa. (N. do E.)
·- ,,.. . •.

,: • ...:.'-: -:

DISCURSO AO
MAGISTRADO DOS DEZ SOBRE
AS COISAS DE PISA

! .. . .. · .-
'·•· ·· t#'frt IV·iã.cf· '&;, · ... -v ,,_ - ·e ·â ~- · z- .1 . . ? •·
Nota do Tradutor

Em 1499, a Maquiavel fora confiada a sua primeira legação (em


Forlz~ a Catarina Sforza). Durante a sua ausência, a guerra de Flo-
rença contra Pisa se tinha exacerbado e a situação era delicada para
o exército flor.entino. O ,Discor.so Fatto al Magistrato dei Dieci sopra
le Cose di Pisafoi composto provavelmente por esse tempo. É assim,
talvez, o primeiro escrito de Maquiavel, que, embora examinando a
questão versada do ponto de vista técnico-militar, tem caráter bem
evidente de composição histórico,...política.
QuE SEJA necessário reaver fracos, súditos não aceitos por
Pisa se se quiser manter a paz, Milão, separados dos genoveses,
porque ninguém disso duvida, mal vistos pelo pontífice, e pelos
- .
naq me parece que seJa preciso
. saneses, pouco estimados, man-
demonstrar cbm outras razões' têm-se pertinazes, confiando na
que aquelas que por vós mesmos vã esperança de outros e na debi-
conheceis. Examinarei somente lidade e desunião vossa, nem
os meios que conduzam ou que nunca quiseram aceitar (tamanha·
possam conduzir a esse resulta- é a sua perfidia) qualquer penhor
do: e estes me parecem ou a força vosso e embaixada. Portanto,
ou o amor; isto é, ou recuperá-la estando eles em tamanha calami-
por assédio ou que ela vos venha dade no presente e não lhes ~­
às mãos voluntariamente. E por- esmorecendo o ânimo, não se
que este seria o mais seguro e, pode nem se deve de qualquer
conseqüentemente, mais desejá- maneira acreditar que por sua
vel caminho, examinaremos se é própria vontade venham sob
possível ou não, e trataremos vosso jugo. Sobre que pudesse·
desse ponto. Quando Pisa, sem ser-vos concedida a cidade . por
empreendimento armado, nos quem a possuísse, devemos con-
deva ir às mãos, convém que por siderar que aquele que a pos-
si mesmos voltem aos vossos bra- suísse ou entrou chamado por
ços; ou que outrem que dela seja eles ou pela força. Se tivesse
senhor dela vos façá presente. entrado pela força, nenhuma
Como mal se pode crer gue eles razão viria justificar que a conce-
mesmos estejam para voltar para. desse: porque quem pode entrar ·
o vosso ·patrocínio, isso vo-lo pela força poderá também guar-
demonstram os tempos presentes, dá-la para si e preservá-la; por-
em que, destituídos de qualquer que Pisa não é cidade que dei-
força, tendo ficado sós e muito xasse de boa vontade a alguém
'
204 MAQUIAVEL

assenhorear-se dela. Se tivesse sobre o Amo, mediante a qual


entrado por amor e chamado vossa gente pudesse estar, a um
pelos pisões, baseando-me. no determinado aviso, na foz do rio
recente exemplo dos venezianos, Morto ou Serchio, enfim, onde
não me parece se deva crer que fosse necessário; tendo alguma
alguém desejasse destruir a sua cavalaria e infantaria em Libra-
confiança e, a pretexto de querer fatta ou em C ascina. Mas porque
defendê-los, os traísse e vo-los se duvidá da vontade dos luquen-
desse prisioneiros. Mas mesmo ses e porque se deve também
que tal possuidor quisesse que ela duvidar de que, quando estes esti-
voltasse para o vosso nome, vessem de acordo, não lhes fosse
abandoná-la-ia e vo-la deixaria. possível manter fechada a sua ci-
como· presa, como fizeram os dade por ser ela que se deve man-
venezianos: de modo que, por ter a distância e por não terem os
estas razões, não se vê nenhum seus súditos uma · obediência
caminho pelo qual Pisa, sem se total; pensa-se que, quer~do as-
usar da força, possa ser recupe- sediar Pisa, não se deve confiar
rada. inteiramente que esta parte seja
Sendo, portanto, necessária a guardada pelos. luquenses, mas
força, parece-me que· convém que é necessário aos florentinos
considerar se se deve dela usar refletir; e é por isso que não é
nestes tempos ou não. Para ulti- sufic1ente organizar um único
mar o empreendimento de Pisa é acampamento em San Piero in
preciso conquistá-la ou por assé- Grado; mas que se deve pensar
dio e fome, ou por expugnação, em realizar ou ·um outro ou dois
levando a artilharia aos seus outros, como melhor se julgue ou
muros. E tratando-se da primeira como melhor se possa. Contudo,
parte do assédio, deve-se conside- dizem que a mais certa e firme
rar se os luquenses estão a ponto maneira seria fazer três acampa-
de desejar ou .de poder considerar m~ntos; um em San Piero in
que de sua cidade não saiam Grado, o outro em Sant'Iacopo,
1

mantimentos para Pisa; e quando o outro na Beccheria ou antes


desejassem ou pudessem, todos em ... 2 3 • E considerando os
_________ s_~ l_~mbra que bastaria somente couraceiros e cavalaria ligeir_a --· _____
1

20~ MAQUIAVEL

res supramenciortados, em basta, porque crêem que eles te-


Sant'Iacopo um, o outro ... 2 4 nham víveres até a próxima co-
ou ainda ... E aqui haveria des- lheita, pelas notícias havidas dos
rl? nm mr\rln n11
ESCRITOS POLÍTICOS 205

les cem homens da càvalaria tanta despesa e qmsesseis fazer


ligeira e oitocentos infantes: e justamente dois acampamentos, é
estes acampamentos, estando muito necessar10 manter um
neste triângulo, manteriam Pisa deles em San Piero in Grado, ou
assediada, embora contra a. von- mesmo não se construindo o
tade dos luquenses; estariam se- forte, ou construindo-o, até que
guros, fortificando-se com fossos, ele" fosse construído. O outro
como saberiam fazer; e deixa- acampamento dizem que se dese-
riam perplexos os_ pisões de tal jaria mantê-lo em Poggiolo, na
maneira que se pode crer que se ponte Cappellese; e porque ele
entregassem logo. E como em deveria ~uard Caso li e os mon-
San Piero in Grado o ar é mau, tes, duvida alguém que desse
onde, se por acaso se devesse campo Casoli pudesse ser bem
manter um acampamento, a guardada: e quanto aos montes
tropa adoeceria; e porque parece- seria necessário manter na Verni-
ria talvez muito pesado mat).e~ ca duzentos infantes, ou manter
os mencionados três acampa- em Val di Calei quatrocentos; e
mentos, poder-se-ia manter o re- construir um forte entre Lucinari
ferido acampamento de San e Amo, com càpacidade para
Piero in Grado, enquanto naque- cem homens em guarda, e manter
le lugar se construísse um grande pelo menos cinqüenta cavaleiros
bastião com capacidade para tre- em Cascina. E este seria outro
zentos ou quatrocentos homens modo de assediar Pisa; mas não
em guarda, o que se poderia fazer tão potente quanto um dos dois
num mês; e, construído o bastião, primeiros - o dos três acampa-
levantar o aéampamento e deixar mentos ou do bastião com dois
o bastião e a guarda e ficar com acampamentos. É verdade que
aqueles dóis acampamentos; e enquanto se constrói o bastião
assim não se viria a ter a despesa poder-se-iam manter três acam-
de três acampamentos senão por pamentos; e, construído o bas-
um mês. Um destes dois modos tião, reduzi-los a dois: ou ainda,
referidos, ou de três acampa- enquanto se constrói o bastião,
mentos ou do bastião com dois manter dois acampamentos,
acampamentos, é o mais apro- acrescidas aquelas outras coisas
vado por estes senhores condt~ anteriormente mencionadas; e,
tieri, e o que consideram mais construído o bastião, deixar aí a
útil e mais apto para deixar Pisa guarda e reduzir-se com os dois
à fome. Mas se não desejásseis acampamentos aos postos e luga-
206 MAQUIAVEL

res supramenciortados, em basta, porque crêem que eles te-


Sant'Iacopo um, o outro ... ;i 4 nham víveres até a próxima co-
ou ainda ... E aqui haveria des- lheita, pelas notícias havidas dos
pesa maior, de um modo ou que vêm de Pisa, e pelos sinais
outro, qucµlto se gasta num mês vê-se que lá o pão se vende e,
com mil infantes mais. Veio-lhes pelo obstinado ânimo deles e
à consideração outra coisa: se se estando para sofrer muito, não se
deve fazer este bastião em San vê que sofram há já tempo aquilo
Piero in Grado ou não. Alguém que seu ânimo obstinado os pode
fez. esta distinção e disse: se os induzir a sofrer: e por isso pen-
florentinos estão com o ânimo de sam que vós sereis obrigados a
forçar Pisa, não podendo fazê-la tentar a força. Pensam bem que
render-se pela fome, julgo supér- será impossível que vos resistam,
fluo construir Ô bastião; porque tendo vós estes modos de mantê-
depois de um mês que o bastião los presos possivelmente uns qua-
esteja construído, será chegado o renta ou cinqüenta dias: e neste
tempo de dirigir-se aos !Duros da · meio temp<?" tirar de lá quantos
cidade, isto é, pelos princípios .de homens de guerra vos seja possí-
maio; e assim a despesa com o vel; e não somente tirar de lá
bastião vem a ser inútil: se não quem queira sair, mas também
têm o ânimo de tentar a força, premiar a quem não desejaria
mas de se manter no assédio, . sair para que saia depois; passa-
do. esse tempo, reunir então rapi-
todos julgam que se deva cons-
damente quantos infantes seja
truir o bastião. Alguns dizem
possível; organizar duas baterias,
também que se os florentinos
e quanto mais seja neessário para
desejam tentar a força, devem
aproximar-se dos muros; dar li-
constrúir o bastião, porque pode- cença livre para que saia quem o
ria não lhes ser possível a con- deseje, mulheres, crianças, rapa-
quista; e, não conseguindo, eles zes, velhos, todos, porque ~ods
estarão com o bastião cons- servem para defendê-la. E assim_,
truído, de modo que po.ssam encontrando-se os pisões sem
manter-se nn assédio. Exami- defensores, batidos por ddis lados,
nou-se ainda se é possível crer em três ou quatro assaltos, seria
l
que o assédio seja suficiente sem impossível que resistissem, sehão
a força; e são de parecer que não por milagre; segundo o qud os
mais entendidos nesta matérja
2 4
Lacuna no manuscrito. (N. do T.) disseram.
DISCURSO SOBRE
A MANEIRA DE PROVER-SE
· DE DINHEIRO
-··- - - - - - ·-
Nota do Tradutor

Por volta de 15~3, o governo florentino achou-se em péssima situa-


ção financeira e era urgente aliciar novas tropas, porquanto os Bór-
gia, de um lado, e os pisões, do outro, ameaçavam a segurança da
república. O novo gonfaloneiro (Soderini) expôs perante o Conselho
Maior a situação e os perigos iminentes. É provável que o escrito de
Maquiavel, Discorso sul~Pr.ovicne del Danaio, composto nessa
ocasião, o tenha sido a mandado de Soderini, e seja o mesmo de que
há notícia que fez o gonfaloneiro.
(Palavras que se devem dizer sobre a provisão do
dinheiro, fazendo-se primeiro um pouco de proêmio e
de escusa.)

TODAS as cidades que. por elas existem, conservá-las; e se


algum tempo foram governadas não existem, consegui-las. E, na
por príncipe absoluto, pelos aris- verdade, há dois meses que tive
tocratas ou pelo povo, como se esper·anças de que podíeis vós
governa esta, têm tido por defesa conseguir este fim; mas vi, de-
as forças combinadas com a pois, tanta dureza de vossa parte
prudência; porque e~ta não é que fiquei de todo consternado. E
suficiente; e aquelas ou não vendo que podeis ouvir e ver mas
levam a bom termo as coisas, ou, não ouvis nem vedes aquilo de
quando as levam, não as man- que se admiram os vossos inimi-
têm. São, pois, estas duas coisas gos, e só disso; persuado-me que
o nervo de todas as senhorias que Deus não vos castigou ainda a
existiram e que existirão sempre seu modo e que vos reserva para
no mundo: e quem observou as maior flagelo. A razão pela qual
mutações dos reinos, as ruínas há dois meses eu estava confiante
das províncias e das cidades não . era o exemplo que vós tivestes
as viu causadas por outra coisa pelo perigo que correstes, há pou-
senão pela falta das armas ou -do cos meses, e as decisões que de-
dinheiro. Dado que vós conce- pois disso tínheis tomado: porque
dais que isto possa ser verdade, vi como, perdida Arezzo e outras
como é, segue-se, necessaria- cidades e depois recuperadas,
mente, que deveis querer, na assumistes o governo; e supus
vussa cidade, uma e outra destas . que estivésseis convencidos de
duas coisas; e procurar bem, se que, pelo fato de não ter havido
212 MAQUIAVEL

lá força nem prudência, as tínheis les de quem não seja possível


retomado; e julguei que, como defender-se. E nem há exemplo
vós tínheis dado lugar à prudên- de senhoria ou república pru-
cia por virtude disso, devêsseis dente que quisesse manter o seu
ainda dar lugar à força. Supuse- Estado à discrição de outros ou
ram isto mesmo os nossos excel- que, se fosse este o ~aso, lhe pare-
sos ··senhores: e assim também. cesse estar em situação segura.
·todos aqueles cidadãos que tan- Não nos enganemos: examine-
tas vezes se cansaram inutilmente mos detidamente a nossa situa- .
para vos apresentar uma provi- ção e a encaremos seriamente.
dência. Nem quero discutir se Se vós vos achais desarmados,
isto que aconte.ce atualmente é vereis desconfiados os vossos sú-
bom ou não; porque acredito em ditos; e disso há poucos meses
quem se achou para organizá-lo tivestes a experiência. E é natural
e, depois, quem se achou para que seja assim; porque os ho-
aprová-lo. Desejaria bem que mens não podem e nem devem
~inda fôsseis da mesma opinião e ser fiéis servidores do· senhor por
não acredi!ásseis em quem vos- quem não possam ser nem defen-
diz o que é necessário; e repito- didos nem castigados. Como vós
vos que sem força as cidades não pudestes ou podeis dominar, tal-
se mantêm, mas vêm a seu fim; e vez, Pistóia, Romanha, Barda:
o fim é a desolação ou a servi- províncias que se tomaram ni-
dão. Estivestes este ano perto nhos e covis de toda qualidade de
duma e doutra; e para aí voltareis . latrocínios. Como vós pudestes
se não mudardes de pensamento, defendê-las sabem-no bem as re-
eu vo-lo afianço; não digais de- giões que foram assaltadas: não
pois: "não rµe avisaram", e se existindo agora mais ordem do
vós respondeis: "para que quere- que existia antigamente, deveis
mos forças? Estamos sob a pro- saber que não mudaram nem de
. teção do rei; os inimigos desapa- opinião nem de ânimo: e não po-
receram; Valentino nao tem deis chamá-los vossos súditos, e
motivos para provocar-nos", res- sim daqueles que os assaltaram
ponderei que tal opinião não primeiro.
poderia ser mais temerária: por- Saí, agora, de casa e con~ide­
que toda cidade, todo Estado rai o que vos está em derref.lor;
deve reputar inimigos todos ·encontrar-vos-eis no ·meio, de
aqueles que pensam poder ocu- duas ou três cidades que desejam
par o seu próprio Estado e aque- mais a vossa morte do que a sua
ESCRITOS POLÍTICOS 213

própria vida. Ide mais para dian- eles vô-la façam. Passemos ao
te; saí da Tosc~a e considerai papa e ao seu duque. Esta ·parte
toda a Itália: v~-laeis passar da não tem necessidade de comentá-
dominação do rei para a dos rio. Todos· sabem quais sejam a
venezianos, a do papa e a de natureza e o apetite destes; e os
Valentino. Começai a considerar· seus processos e que confiança se
o rei. Aqui é preciso dizer a ver- pode ter neles e deles receber.
dade e eu vo-la direi. Para este Direi somente isto: que não se
não existe outro empecilho senão concluiu com eles ain~ acordo
vós, na Itália. E aqui não há algum; e direi mais adiante o que
remédio, porque todas as forças, não ficou para nós. Mas supo-
todas as providências não vos nhamos que concluíssemos um
salvariam: ou ele terá outros acordo amanhã. Disse-vos que
empecilhos, como bem se vê que aqueles senhores são amigos vos-
há, e neste caso há remédio, ou sos, que não vos podem ofender,
não, segundo a vossa vontade ou e novamente vos digo: porque
não. E o remédio é fazer com que entre os cidadãos, as leis, os con-
exista tal relação das forças, que, tratos, os pactos obrigam à fé; e
em qualquer deliberação sua, entre os senhores, as armas. E se
tenha ele de contar convosco ·vós disserdes: "recorreremos ao
como com os outros da Itália; e, rei", parece-me que vos disse
por estardes vós desarmados, não também isso: que todavia o rei
dar ânirrio a algum poderoso de não está em condições de defen-
pedir-vos ao rei como presa; e der-vos, porque os tempos não
nem dar ocasião ao re~ de que - os mesmos. e nem sempre se
sao
este vos deixe entre os perdidos, pode evitar a ação armada de
mas comportar-se de rnodo que outrem; e contudo é conveniente
ele tenha de estimar-vos e nem ter a espada ao alcance da mão e
outrem julgue fácil subjugar-vos. cingi-la quando o inimigo está
Considerai, agora, os venezianos. distante; que, d~ outro modo, já
Aqui não é necessário esforçar-se não chega em tempo e nem
muito para entender: todos encontra reméd~o. E deve-se re-
sabem a sua ambição; e· que cordar neste ponto o que aconte-
d~vem receber de vós cento· e ceu quando Constantinopla foi
oitenta mil ducados e que eles só tomada pelos turcos. O impera-
esperam oportunidade; e que é dor previu a sua ruína; ·chamou·
melhor gastá-los fazendo-lhes a os seus súditos; não podendo.
guerra do que dar-lhos para que prover à defesa com as rendas
214 MAQUIAVEL

ordinárias, expôs-lhes os perigos, que chorou sobre a incredulidade


mostrou-lhes os remédios e estes e obstinação vossa e vos obrigou
não lhe deram importância. Veio a ter compaixão de ·vós mesmos.
o cerco. Aqueles cidadãos que Não chegastes a tempo, pois ten-
não quiseram ouvir os apelos de do-o vencido seis meses antes,
seu senhor, quando ouviram soar ter-se-iam colhido frutos, e ven-
a artilharia nas suas muralhas e cendo-o seis dias antes pouco
avançar o exército inimigo, cor- pudestes tirar da vitória para
reram chorando ao imperador vossa própria salvação; porque a
com sacos cheios de dinheiro; 4 de maio ouvistes que o exército
este os expulsou dizendo: "podeis inimigo chegara a Firenzuola;
morrer com o vosso dinheiro, houve grand~ confusão na cida-
porque não quisestes yiver sem de: começastes a ver as conse-
ele". qüências da vossa obstinação;
Mas não é n6,o.e·ssário ir à Gré- vistes arder as vossas casas,
cia para ter exemplos, tendo-os saquear tudo, matar os vossos sú-
em Florença; Em setembro de ditos, fazê-los prisioneiros, violar
1500, Valentino partiu de Roma as vossas mulheres, estragar as
com seus. exércitos e nem se sabia vossas propriedades, sem que
se ele devia passar pela Toscana pudésseis remediar de algum
ou pela Romanha, cujas cidades modo, e àqueles que, havia seis
ficariam à sua mercê porque esta-
meses, não tinham querido con-
vam desguarnecidas, e· todos ro-
correr para o pagamento de vinte
gavam a Deus para que lhes
ducados, lhes foram cobrados
desse tempo. Mas Valentino vol-
duzentos e pagaram os vinte de
tou na altura de Pesaro, e como
assim o perigo se afastara, entra- qualquer maneira. E· quando de-
ram a ter uma confiança temerá- víeis acusar a vossa increduli-
ria, de modo que não se pôde dade e obstinação, acusáveis a
nunca tomar mais· nenhuma pro- malícia dos cidadãos e a ambição
vidência. Não faltou quem avi- dos aristocratas; como aqueles
sasse, recordasse e previsse todos que, errando sempre, pretendem
os perigos que depois vieram: nos punca haver errado; e qu;ando
quais vós, obstinados, não acre- vêem o sol não acreditam nµnca
ditastes até que chegaram, em 26 mais que haja chuva: como ~con­
de abril do ano de 15_01; sofrestes tece agora; e não p~nsai qu'.e em
a perda de Faenza e vistes as lá- oito dias Valentino pode estar
grimas do vosso gonfaloneiro, com o seu exército sobre vósJ e os

1
1
ESCRITOS POLÍTICOS 215

venezianos, em dois dias. Não perd~st, o qual chor~eis ainda,


considerais que o rei esteja muito e sem proveito, se não mudais de
ocupado com os suíços na Lom- opinião. Porque eu vos digo: a
bardia e que não terminou ainda fortuna não muda de sentença
a sua guerra nem com a Alema- onde não se muda de ordem; e
nha nem com a Espanha, e que nem os céus querem ou podem
foi derrotado no reino. Não vedes sustentar uma coisa que queira
a vossa atual própria fraqueza de qualquer modo arruinar-se. O
nem a variação da fortuna. Os que eu não posso crer que seja o
outros costumam tornar-se pru- caso, vendo-vos florentinos livres
dentes pelos perigos que os vizi- e estar nas vossas mãos a vossa
nhos sofrem; vós não vos tornais própria liberdade. A esta eu creio
prudentes nem pelos vossos; não que tendes aquele respeito que
confiais em vós mesmos; não sa- tem sempre quem nasceu livre e
beis o tempo que perdeis e que deseja viver livre.
- --
BREVE DESCRICAO
DO GOVERNO DA CIDADE
DE LUCA
.·...
Nota do Tradutor

Depois de terem os M edici reconquistado o poder em Florença,


Maquiavel conhece o ostracismo, o exz?io, escreve O Príncipe e pro-
cura ganhar as boas graças dos novos governantes. Mas só em 1520
obteve ele nova com.missione, e ainda em um negócio sem importân-
cia. Alguns ni'ercadores flàrentinos tinham em Luca créditos 9ue
somavam mil e seiscentos florins e os quais, não pagos, deram origem
a questões judiciais e depois a negociações entre os dois governos.
Maquiavel, enviado a Luc a, conseguiu encontrar uma fórmula de
acordo. Enquanto desenvolvia a sua missão, ele, como de costume,
observava a forma de governo dos luquenses. Destas observações,
ficou um escrito esboçado apenas, mas cheio de finas e oportunas
considerações, o Sommario delle Cose della Cittá di Lucca.
A CIDADE de Luca está divi- sima; sobre os cidadãos é nula;
dida em três partes, das quais mas somente dentro da cidade ela
uma é denominada San Martino, cmi'voca os Conselhos, neles pro-
a outra San Paolino e a.terceira põe as coisas sobre as quais se
San Salvadore. A primeira e deve deliberar, escreve aos em-
suprema magistratura da cidade baixadores e recebe cartas; reúne
ê exercida por nove cidadãos elei- as práticas, que eles chamam
tos, três em cada uma das partes colóquios, dos seus mais sábios
mencionadas; os quais, junta- cidadãos (o que prepara a delibe-
mente com um outro que é chefe, ração que se deva adotar nos
a.o qual denominam gonfaloneiro Conselhos); fisq.liza · as coisas,
de justiça, compõem· o que_ se relembra-as; e, efetivamente, é
chama a Senhoria, ou melhor, como um primeiro motor de
querendo-se chamá-los por um todas as ações. que se promovem
antigo nome, se denominam Ari- no governo da cidade. Funciona
ciães. Têm junto a este um conse- esta Senhoria dois meses, e quem
lho de trinta e seis cidadãos, o dela participa não pode, durante
qual é assim nomeado pelo pró- dois anos, ser reeleito. O Conse-
prio número: têm, amda, um con- lho dos trinta e seis e a Senhoria
seJho de setenta e dois cidadãos, distribuem todas as honras e uti-
que tem o nome de Conselho lidades do Estaqo; e como que-
Geral. Em tomo destas três insti- rem ..que sempre se encontrem
tuições gira toda a atividade do trinta é seis cidadãos em exercí-
seu Estado, acrescidas as cir- cio, afora a Senhoria, cada se-
cunstânsias· que no prossegui- nhor em toda reunião do Conse-
mento deste sumário serão men- lho pode chamar dois suplentes,
_cionadas. os quais exercem o ofício ·com a
A autoridade da Senhoria mesma autoridade que os trinta e
sobre o seu condado é amplís- seis.
222 ~AQUIVEL

O modo de distribuir é este. inscrito para um dos senhores; se


Eles sorteiam cada dois anos não há, fica entre os que perde-
todos o~ senhores e gonfaloneiros ram. Feito isto, o m.ais antigo dos

que nos dois anos prox1mos senhores vai e ·nomeia outro em
/

devem entrar em exercício. E segredo, ao frade. Depois cada


para fazer isto, reunidos que este- qual vai entregar-lhe o voto. E
jam os senhores com o Conselho cada qual, por sua vez, nomeia
dos trinta e seis num salão, p~a um, e as m.ais das vezes consti-
isso preparado, colocam em tuem eles mesmos a Senhoria em
outro salão próximo àquele os três turnos de Conselho. E para
secretários das votações, com um que vençam é necessário que haja
frade, e um outro frade fica à cento e ·oito senhores vencidos, e
porta que está entre as duas doze gonfaloneiros; assim sendo,
salas. A ordem é que cada qual designam entre eles por escru-
que assuma -nomeie outro à sua tínio os funcionários encarre-
escolha. Comexa, então, o gonfa- gados do sorte.io, os quais di~­
loneiro por se levantar, e segreda põem sobre a data deste; e assipi.,
ao ouvido do frade que está à os nomes sorteados cada dois
porta de entrada dos secretários meses se publicam.
o nome daquele em quem vota e Na distribuição dos outros ser-
em quem ele deseja que os outros viços obram de maneira diferen-
votem. Depois, dirige-se aos se- te. Fazem o escrutínio deles uma
cretários, e coloca na urna o seu vez por ano, de maneira que,
voto. Regressando o gonfaloneiro para o serviço que funciona seis
ao seu lugar, dirige-se-lhe um dos meses, fazem, em cada escrutí-
senhores mais antigos.; depois, os nio, dois oficiais. Mantêm, para a
outros, cada qual por sua vez. eleição, esta ordem: mandam pri-
Depois dos senhores, vai todo o meiro uma comunicação de que,
Conselho, e cada qual, quando devendo-se proceder à escolha
chega ao frade, pergunta quem dos oficiais do ano futuro, quem
foi nomeado e a quem ele deve quiser postos que providencie
entregar o partido; e não antes, para sua inscrição. Quem desejar
de modo que para deliberar não é o cargo vai inscrever-se com o
necessário mais tempo, senão o chanceler e este coloca todas as
--que se emprega para ir do frade inscrições dos nomes tjuma
aos secretários. Depois que cada bolsa. Depois, reunido que e!stej a
qual votou, esvazia-se a urna, e o Conselho para distribuir os ser-
se há três quartos a favor ele é viços, o chanceler vai tiraµdo os
ESCRITOS POLÍTICOS 223

nomes da bolsa, um de cada vez. escolhido avalia suas próprias


Se o inscrito está presente, diz:· forças e segundo estas escolhe o
"Quero ser votado para tal servi- oficio. E se escolhe mal, sofre o
ço"; e assim continua a eleição. dano, e perde por aquele ano a
Se vence por três quartos, tal ofi- faculdade de ir à eleição; se
cio está provido e é posto de vence, é seu o oficio; nem querem
lado; e para esse serviço não se que vá a concurso um outro, para
procede mais à eleição; se não dá-lo a quem merece mais, por-
consegue os três quartos, a inscri- que lhes pareceria injúria que
ção é rasgada e não pode mais outro lhe pudesse tirar o que lhe
entrar·em competição. Tira-se da fora dado. De qual seja a melhor
bolsa outra inscrição e assim por destas maneiras, ou a luquense
diante, até que sejam providos ou a vossa, ou · a dos venezianos,
todos os serviços do ano futuro; deixarei a outrem o juízo.
sendo, como disse, dois para O Conselho Geral, como disse,
cada um dos serviços que duram são setenta e dois cidadãos, os
seis meses. É de notar-se, portan- quais se reúnem com a Senhoria;
to, a diferença destes modos com e mais, cada um dos senhores
relação ao dos florentinos e os pode nomear três cidadãos, os
outros; porque no escrutínio da quais, reunidos a eles, têm a
Senhoria, quem escrutina vai ao mesma autoridade. Este conselho
encontro da uma; e em outros permanece por um ano; o dos
lugares a unia é que vai ao trinta e seis, seis meses: e têm
encontro dos escrutinados. Na somente a proibição de não
escolha dos serviços em outros poderem ser eleitos de novo os que
lugares, propõe-se que serviço se pertenceram ao anterior. O Con-
vai escolher e depois se trata do selho dos trinta e seis se renova
sorteio dos homens que concor- ·por si mesmo; o Geral é refor-
rem; e querem que muitos con- mado _pela Senhoria e por doze
corram, e ·ainda que muitos dis- cidadãos eleitos pelos trinta e
putem e o serviço seja dado a seis. Este Conselho Geral é o
quem_ tem mais mereéimento. príncipe da cidade, porque faz e
Mas os luquenses fazem o con- desfaz leis; faz tréguas, amiza-
trário: primeiro se procede ao des; exila e mata cidadãos; afi-
sorteio do homem e depois decla- nal, não há apelo possível nem
ram a que oficio ele . deve ir; e nada que o freie, uma vez que a
querem que tal declaração fique a coisa .tenha sido resolvida pelos
critério do escolhido, e quem é três quartos dele. Têm, além das
i
224 MAQUIAVEL j

ordens mencionadas, três secretá- observaram as boas repúblicas.


_rios,. os quais exercem as funções Os cônsules romanos, o dog~ ea
seis meses. o ofício destes é o Senhoria de Veneza não tinham e
que· chamamos espiões, ou, com não têm autoridade nenhuma
nome mais honesto, guardas do sobre os seus cidadãos, porque
Estado. Estes podem, sem qual- este. é reputado o primeiro sinal
quer consulta, deportar um for as- de uma república, e tão evidente
teiro ou matá-lo: vigiam as coi- é, que se se · 1he ajun~r autori-
sas da cidade; examinam coisas dade, é preciso convir que em
que ofendam o Estado e que brevíssimo tempo smj am rhaus
1

digam respeito aos cidadãos e as0


efeitos. Fica bem mal ao gov;erno
referem ao gonfaloneiro, à Se- de uma república a ausência de
nhoria, aos "colóquios", para majestade, como . acontece em
que sejam examinadas e corrigi- Luca, porque durando ele só dois
das. Têm, além disso, mais três meses e se_ndo lo~g o im~ed­
·cidadãos que exercem as funções mento de reeleição, necessaria--
seis meses e que chanrnm condot- mente aí têm assento homens1 mal
. . • - , 1

tieri: têm autoridade de contratar reputados: cuja ordem nao e poa;


infantes e outros soldados. Têm porque aquela majestade e 'pru-
uma autoridade (podestà) foras- dência que não está na coisa pú-
teira, que tem. autoridade nas coi- blica procura-se nos particulares.
sas civis e militares sobre os Daí advém a necessidade que eles
cidadãos e sobre quem quer que têm de fazer os colóquios com o
seja. Têm, ainda, magistratura parecer d<?s cidadãos .que não
sobre os comerciantes, sobre as estão nem entre os magistrados
artes, sobre as vias e edificios pú- nem nos conselhos: do que: nas
blicos, como têm todas as outras repúblicas bem ·cOn:stituídas não
cidades: com as quais viveram se usa. E se se considerar: quem·
até agora e entre tantos podero- participava da Senhoria em Ve-
sos inimigos se mantiveram. neza ou· quem podia ser cônsul
Nem se pode com efeito senão em Roma, ver-se-á que os chefes
geralmente louv~-s. Mas quero destes Estados, se não tinham
que consideremos o que neste autorid~e, tinham majestade:
governo há de bom ou de mau. porque se é bom que lhes fal~se
O .fl.ão ter a Senhoria autori- uma, também seria mau quei não
dade sobre os cidadãos está tivessem outra. A maneira como
muito bem feito, porque assim o distribuem os luquenses a Senho-
ESCRITOS POLÍTICOS 225

ria e os serviços é boa, civil e os senhores têm de nomearem


bem considerada. É verdade que cada Conselho dois ou três para
se desvia da constituição das cada um assossega numerosos
repúblicas passadas; porque na- amigos: porque muitos que não
quelas a maioria distribuía os ofí- esperam vencer as eleições pen-
cios, o meio-termo aconselhava, sam ter amizade com um que os
a minoria executava: e em Roma possa fazer convocar. Assim,
o povo elegia, o Senado aconse- pouco lhes importa que distribua
lhava, os cônsules e. os outros o do grupo dos trinta e seis ou ·o
magistrados menores executa- dos ·setenta e dois. Mantêm,
vam. Em Veneza o Conselho dis- ainda, no reunir estes C-onselhos,
tribui, os Pregai aconselham, a uma outra ordem, que serve para
Senhoria executa. Em Luca estão satisfazer o povo e ·abreviar os
confundidas estas ordens: porque trabalhos: que se quando eles se
o número menor distribui; o reúnem em Conselho e tenha ter-
menor e o maior, parte aconselha minado o prazo dentro do qual
e parte executa; e embora na os conselheiros devem apresen-
república de Luca não resulte tar-se e faltar algum, a Senhoria
mal,_ não deve imitar esta ordem pode mandar aos seus homens
de coisas quem organi~ uma que conduzam os primeiros cida-
república. A razão por que não dãos que encontrem que tenham
resulta mal é porque as honras e sido do núme~o dos inscritos
as utilidades naquela cidade são para preencher a vaga dos falto-
procuradas com pouca ambição; sos. É ainda bem estatuído que o
porque de um lado são_ fracas; Conselho Geral tenha autoridade
por outro, quem desejaria procu.:. sobre os cidadãos, porque isso
rá-las é rico e estima mais os seus vale por um grande freio para
trabalhos que aquelas; e por isso castigar os que desejassem tor-
se vem a cuidar menos de quem nar-se muito grandes. Mas já não
os administre. Ain~a há que con- é bom que não exista uma magis-
siderar o pequeno. número de tratura de poucos cidadãos, qua-
cidadãos privados e o fato de não tro ou seis, por· exemplo, que
s~rem os Conselhos vitalícios, possa castigar: porque qualquer
mas somente durarem seis meses, uma destas providências que falte
o que faz com que todos queiram· numa república causa desordem.
e esperem deles participar. A maioria serve para castigar os
Além disso, a autoridade que grandes e as ambições dos ricos;
226 MAQUIAVEL

a .minoria serve para amedrontar em que a lei foi feita em diante,


os ... 2 5 e para frear a insolência tantos exilados voltam quantos
dos jovens. Porque todos os dias saem. Mas esta lei não basta,
ne·sta cidade acontecem coisas porque os jovens que são nobres,
que a maioria não pode corrigir: ricos e de alto . parentesco, por
de onde advém que os jovens ga- causa do caráter estrito da vota-
nham audácia, a juventude se ção, não a temem: e vê-se que
corrompe e, corrompid?-, pode nestes tempos houve uma família
tornar-se instrumento da ambi- - os Poggio - da qual surge
ção. Luca, portanto, falha destes toda a sorte de . exemplos não
elementos que freassem a juven- bons numa república boa e para
tud~, viu crescer esta insolência e o que, até agora, não encon-
causar maus efeitos na cidade; traram remédio.
daí, para freá-la, fez uma lei, há Parecerá talvez a alguém que
muitos anos, que se chama lei exista desordem, que todos os
dos díscolos, que quer dizer dos partidos dos luquenses se devam
insolentes e malcriados, e pela vencer pelos três quartos. A isto
qual se proveu que no Conselho se responde que desordenando-se
Geral, duas vezes cada ano, em as coisas nas repúblicas sempre
setembro e março, todos os que do sim ao não, é muito mais peri-
aí estão reunidos dispõem sobre goso naquele voto o sim do que o
o que lhes parece deva ser exila- não; e mais se tem que advertir
do. Lêem-se depois as listas, e àqueles que querem que se faça
aquele que é mencionado dez alguma coisa do que àqueles que
vezes e mais, o seu nome é sub- não o querem; e por isso julga-se
metido ao ·voto e se a inclusão menos mau que alguns possam
vence pelos três quartos ele é contentar-se facilmente de que
mandado fora do país por três não se faça um bem, do que eles
anos. Esta lei foi muito bem possam facilmente fazer um mal.
considerada e fez grande bem Contudo, se esta dificuldade está ·
àquela república: porque por um resolvida, não existe bem geraJ 1

lado ela é grande freio para os porque são muitas as coisa~ que
homens; por outro, não pode for- seria bom facilitar. E castigar os
mar multidão de exilados; por-- cidadãos é uma, porque se a ,sua
que, desde os primeiros três anos pena se devesse declarar pelos
dois terços, parentes e amizades
2 s Lacuna do manuserito. Talvez "aos infe- poderiam com ·maior dificuldade
riores" ou coisa semelhante. (N. do T.) impedi-los.
ESCRITOS POLÍTICOS 227.

Isto é, efetivamente, quanto se Luca e o que nele existe de bom e


pode dizer do governo dentro de de mau.
ÍNDICE
DOS NOMES CITADOS
Agapito (Messer) de Gherardi - Um cardeal, vice-chanceler da Igreja. A 25
dos secretários de César Bórgia. de julho de 1492, morria o Papa Ino-
cêncio VIII. Reunido o conclave a 6 de
Agátocles (317-289 a.C.) - Príncipe agosto, a eleição do novo papa assu-
de Siracusa. Venceu os cartagineses na miu as proporções de um jogo de
África. ·bolsa, tal era o negócio que se fazia
com os votos dos cardeais. Os ban-
Alberico da Barbiano, Conde de Cunio queiros de Roma forneciam o dinheiro
- Foi o primeiro condottiere de tro- para a luta entre os três candidatos
pas mercenárias, a Companhia de São mais prováveis: Giuliano della Rovere,
Jorge, que combateu a favor do Papa apoiado .pela França, Ascânio Sforza,
Urbano VI. Morreu em 1409. irmão de Ludovico, o Mouro, e Rodri-
go Bórgia, que, afinal, pela compra dos
Albinus, Decius Claudius - Coman- votos de Ascânio, ganhou a partida.
dante das legiões nas Gálias, derrotado Rodrigo Bórgia, riquíssimo, comprara,
por Septímio Severo, proclamado im- à exceção de cinco, todos os votos do
perador pelas legiões do Danúbio. conclave. Ao Papa Inocêncio sucedeu
com ~ nome de Alexandre VI, o pontí-
Alexandre, o Grande (356-323 a.C.) fice que passou à história pela fama
- Rei da Macedônia, estendeu pela dos seus crimes.
Ásia o seu império. É assim que P asquale Villari retrata
Alexandre VI: " ... e se bem que não
Alexandre Severo - Imperador roma- conseguisse sempre dominar as suas
no, último da dinastia dos Africanos, paixões, deixando muito facilmente
morto pela soldadesca, numa subleva- ver-se o seu pensamento, sabia ser, no
1

ção no Reno. entanto, ao mesmo tempo, simulador e


dissimulador impenetrável. . Não era
Alexandre VI (Papa) - Rodrigo Bór- homem de muita energia e nem de
gia, nascido a 1. 0 de janeiro de 1431 propósitos firmes: tergiversava por
em Xativa, perto de Valência (Espa- natureza e por sistema". "A firmeza e
nha), era sobrinho do Papa Calisto III a energia que lhe faltavam no caráter
e estudou leis em Bolonha. O tio de eram, porém, supridas pela constância
Rodrigo o fez sucessivamente bispo e das más paixões que o cegavam."
232 ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

"Ambiciosíssimo de dinheiro;procura- ça com Filipe da Macedônia. Conquis-


va-o por todos os meios e o gastava tou Éfeso (197 a.é.) e, transpondo· o
largamente. A paixão pelas mulheres o · Helspont~ ocupou Sestas e · Lismá-
dominava sobre tudo; amava louca- quia, na Trácia, entrando assim em
mente os filhos e queria fazê-los conflito com Roma. Aníbal, refugiado
poderosíssimos.'' (Niccolà Machiavelli na corte selêucida, instigava a forma-
e Suai Tempi, I, cap. VI.) ção de uma vasta coligação mediter-
Alexandre VI morreu a 18 de agosto rânea anti-romana (Síria, Çartago, ·
de 1503. No dia seguinte, o seu corpo Macedônia e os insurretos de Espa-
foi expostq, conforme o costume, em nha). Antíoco foi completamente bati-
São Pedro. "Foi o mais feio, mons- do em Magnésia (189) pelos exércitos
truoso e horrendo cadáver jamais romanos.
visto", diz o embaixador de Veneza,
Antônio Giustiniano; "não tinha Antium (Anzio) - Porto ao pé do
forma nem figura humana." Conserva- cabo do mesmo nome, no Lácio.
ram-no coberto e no mesmo dia o
sepultaram quase clandestinamente, de Aqueus - A Liga Aquéia, a qual, fun-
temor da cólera do povo. dada em 281 a.C., .estendeu a sua
influêµcia por quase .toda a Grécia,
Amboise (d'), Georges (1510) - Car- tendo por fito combater as tiranias lo-
deal de Rouen, conselheiro político de cais e resistir à. hegemonia da Macedô-
Luís XII, que o fez governador da nia.
Lombardia. O cardeal impôs a Milão
um tributo de guerra de trezentos mil Aquiles - Herói da mitologia_ grega.
ducados, sob pretexto de que "era me- Filho de Peleu e Tétis, participou da
lho'r tributar que saquear". guerra de Tróia.

Amílcar Barca - Chefe do exército Arcebispo de Florença (Antônio di


cartaginês na Sicília. Santa Croce) - Partidário dos Orsini.
Assassinado pelos Bórgia.
Angouiême (Senhor de) - O condado
de Angoulême era um apanágio dos Arezzo - Cidade da Toscana, no vale
Valais. Francisco I, de quem se trata do Chiana.
aqui, teve esse título antes de subir ao
trono de França. Aricianos - De Aricia, cidade do
Lácio, imediata a Roma, na Via
Aníbal -·- General cartaginês, filho de Appia.
Amílcar Barca. Comandou os exérci-
tos de Cartago contra Roma. Astura.- Cidade ao s'ul de Roma, na·
foz do Astura.
Antíoco III, da Síria - Da dinastia
dos Selêucidas, este príncipe· projetou Baglioni, Giovan Paolo - Senhqr de
restaurar o poderio· dos seus antepassa- Perúgia, tomou parte na conspir!ação
dos. Concluiu, em 202 a.C., uma alian- de La Maggione contra César Bórgia,
ÍNDICE DOS NOMES CITADOS 233

que o expulsou (6 de janeiro de 1503). César Bórgia (1502) na conquista da


Romanha.
Bentivoglio - Nome da casa dos
senhores de Bolonha. Em 1445, Batista Camilo, M. - Furius Çamillus, gene-
Canneschi, da família Canneschi, po- ral romano. Di.tador: em 395 a.C.,
derosa rival, assassinou Annibale Ben- ap.oderou-se de Veios, assediada havia
tiyogl~ e proclamou-se partidário do dez anos, e fez guerra contra os falis-
duque de Milão, com o apoio de quem cos. Submetidos estes, voltou a Roma,
desejava galgar o poder. Giovanni e, tendo sido acusado de desvio de
Bentivoglio foi expulso de Bolni~ parte das riquezas conquistadas, exi-
pelo Papa Júlio II, em 1506, mas seu lou-se voluntariamente. Nomeado dita-
filho, o segundo Annibale Bentivoglio, dor segunda vez quando os gauleses
. voltou e governou de 1511 a 1512. conquistaram Roma (389), libertou a
Itália, tendo reconstruído a cidade,
Bibbiena - Cn:lade da Toscana, a cin- razão por que foi cognominado segun-
qüenta e sete quilômetros de Florença, do fundador de Roma. Foi ainda dita-
ao pé do Amo. dor duas vezes: a primeira, bateu os
volscos, os hémicos, os toscanos e os
Bispo Lucas Rainãldi - Embaixador latinos; a s~gunda, exterminou os gau-
do Imperador Maximiliano. leses, que tinham voltado a invadir a
Itália. Morreu em 365 a.C.
Borgo - Cidade do Lácio, a vinte e
quatro quilômetros de Roma. Canneschi - Família bolonhesa, rival
dos Bentivoglio.
Bracceschi - Os partidários de Brac-
eio, rivais dos "Sforzeschi". Caracala; Antoninus (211-217 d.C.) -
Imperador romano, filho de Septímio
Braceio di Montone, Andrea · Severo.
(1368-1424) Condottiere. (Ver
Joana de Nápoles.) Carlos VI - Rei de França. No seu
reinado, os irigleses apoderaram-se da
Briçonnet (Guillaume, Cardeal) - Mi- Normandia pela vitória de Azincourt
nistro de Carlos VIII, . arcebispo de St. (1415).
Malo, criado cardeal por imposição da
França a Alexandre Vr, foi depois Carlos VII (1422-1461) - Rei de
arcebispo de Reims. Excomungado por França. Pôs term1b à GueP-:ca dos Cem
Júlio II, de quem divergira. Morreu em Anos, libertando a FranÇa da Ingla-
1533.· terra. Organizou o primeiro núcleo do
exército nacioÍlal franc~s.!
Buggiano - Hoje Bolzano, cidade do
•Tirol italiano. Carlos VIII - Rei de França. Invadiu
·a Itália em 1494, sem encontrar resis-
Camerino (Senhor de) - Giulio Cesa- tência. Nos primeiros dias de março,
.re de V ar ano, feito prisioneiro por fez o rei entrada solene em Lião para
234 ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

assumir o comando dos exércitos, cuja; nesas, comandadas por Francesco


vanguarda era comandada por Sforza, foram desbaratadas por Car-
D'Aubigny. Apenas começado o assé- magnoJ a em Maclódio (1427). Os
dio de. Sarzana, Piero de Mediei ren- · venezianos, suspeitando de Carmag-
deu-se incondicionalmente. Florença nola, tiraram-lhe o comando e o
·rebelou-se e Piero fugiu para Veneza. ·executaram.
A 17 de novembro os franceses entra-
ram na cidade, donde saíram a 28, de- Castiglione - Cidade toscana a quin-
ze quilômetros ao sul de Arezzo.
pois de receber uin tributo em dinheiro.
Em Roma, sob a pressão dos...exércitos
César Bórgia (1378-1507) - Filho de
franceses, o Papa Alexandre nomeou
Alexandre VI.. Foi criado cardeal de
cardeal o bispo de St.-Malo, e concor-
Valência (Espanha) em 1493. Tendo
dou em que os franceses avançassem abandonado a carreira eclesiástica, foi
para Nápoles. Aí, Afonso de Aragão feito, pelo rei de França, duque de
renuncia ao trono e foge para a Sicília. Valentinois (donde lhe veio o nome
Os franceses entr~m na cidade em 22 que o povo lhe dava, de "Duque Valen-
de fevereiro de i495. Os venezianos tino"), quando foi à França levar a
tomar~ ~µtão a iniciativa de expulsar . bula de anulação do casamento de
os franceses da Itália. A Liga de Vene- LüíS XII e o chapéu cardinalício para
za (Veneza, Milão, Espanha, o impera- Georges d' Amboise, arcebispo de
dor da Alemanha e o papa), formada Rouen (setembro de 1498). Logo de-
contra ele, forçou.-o, depois da batalha pois da entrada dos franceses erp
indecisa de· Fornovo, ou Taro (6 de Milão (outubro de 1499), César·Bórgia
julho de 1495), a voltar à França. Em tomou Ímola e Forrl, domínios de
1496, pela intervenção de Fernando, Caterina Riario Sforza; em 1500,
apoderou-se de Rimini (Pandolfo Ma-
rei de Espanha, os franceses deixaram
latesta) e Pesara, governada por Gio-
definitivamente o território de Nápoles. vanni Sforza; em 1501, Faenza (As-
Carlos VIII personifica o início da torre Manfredi) e Piombino caem sob·
política fra11cesa de conquista. Até · o seu poder; em 1502, prbino (Guido-
Luís XI a política de França se reduzia baldo da Montefeltro), Camerino (Giu-
à luta contra vassalos poderosos e pela lio Cesare da V ar.ano) e Sinigaglia
unidade nacional. A conquista da Itá- (Francesco Maria deila Rovere)._ A
lia representava para os franceses a esse tempo,· assumiu os títulos de
hegemonia.no Medjterrâneo. duque da Romanha, de Valença e
.d'Urbino, Príncipe de Andria, senhor
Carmagnola (Conde de), Francesco de Piómbino,. gonfaloneirn e ·capitão-
Bussone (1390-1432) - Combateu general da Igreja. A qu.eda de Urbino
por Filippo Maria Visconti, duque -de ameaçava Florença, que apelou para o
Milão, passando depois, em 1425, ao auxílio dos franceses. Valentino desis-
serviço de Veneza; e chegou a coman- tiu, assim, da conquista de Florença.
dar os exércitos de Florença e Veneza, Depois reconciliou-se com Luís XII, e
aliadas. contra Milão. As forças mila- empreendia a conquista de Bolonha
ÍNDICE DOS NOMES CITADOS 235

quando diversos capitães seus, nJ 1


de capitão de bando cuja força proce-
maior parte pequenos tiranos da Itália dia principalmente do papa e da Fran-
central, atemorizados pelos seus pro~ ça. Soubera criar um Estado do nada,
gressos, tramaram uma· conspiração! inspirando terror a todos, enfim, ao
dirigida pelos Orsini. Os conjurads~ próprio papa. Rodeado de grande nú-
reunidos em La Magione, combinai mero de inimigos poderosos e arma-
ram uma liga contra Valentino, che~ dos, livrou-se deles com grande audá-
gando as suas tropas a tomar o Fort~ cia e arte· infernal." (P. Villari, op. eit.,
de São Leão de Urbino, e chamaram; I, cap. V.)
; 1
em seu socorro a republica de Flol
rença (1502). As tropas de Valentind
Chaumont (Senhor de) - Charles
foram derrotadas pelos Orsini em.
d' Amboise, irmão do Cardeal
Fossombrone. Aquele pediu, então. d
d'Amboise, ministro de Luís XII.
auxílio dos frances~ enquanto Flo~
rença recusava auxiliar os conspira~
dores, chegando-se assim a um com~ Chiana - Vale da Itália que, na anti-
promisso de paz, firmado entre d ga fronteira da Toscana com o Estado
duque e Paolo Orsüü. Valentino, papal, divide as suas águas entre o
pouco depois, vingou-se cruelmente Amo e o Tibre.
1
destes. Morto Alexandre VI (agosto:
1503), Valentino deixa Roma par~ Ciro (599 a.C.) - Fundador da
negociar o apoio dos franceses. Sua! monarquia persa.
situação era má: os Orsini, os Colon....:
na, Gonsalvo, o comandante das for-:
ças espanholas no sul, tinham feito Cipião (Publius Comelius Scipio) -
aliança contra ele. Rebentaram rebe; General romano, vencedor de Aníbal,
liões em todas as cidades que conquis~ já tinha destruído o domínio cartaginês
tara. Voltando a Roma sem ter o btidd na Espanha, quando, reforçado por
o auxílio de Luís XII, Valentino viu-sd, Massinissa, príncipe berbere _aliado de
obrigado, por causa da hostilidade do~ Roma, desembarcou com quarenta mil
Orsini, a. refugiar-se no Castelo d~ homens na África. Pela vitória de
Santo Ângelo. Também Júlio II, eleito Zama ou Narragara (202 a.C.), os
papa com o apoio de Valentino, pôs-se romanos aniquilaram definitivamente
em campo contra este, ·que estava o impé~o cartaginês.
· virtualmente prisioneiro do papa. Em
agosto de 1504, foi embarcado para ~
1

Colleoni da Bergamo, Bartolomeo


Espanha, mas, em 1506, tendo escap~
(1400-14 7 5) - Célebre condottiere,
do, refugiou-se na França. Combate~
chefe dos exércitos de Veneza. Derro-
ao lado do seu cunhado, o rei d~
tado por Francesco Sforz"a, em Cara-
Navarra, contra Castela, tendo sido.
vaggia, em 1448.
morto, numa escaramuça, em 12 de
março de 1507. !
"Valentino não era grande político Colonna - Família romana rival dos
nem grande capitão, mas uma espécie Orsini ..
236 ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

Colonna (Giovanni, Cardeal) - Inimi- (l482-1484); 2) Afonso I d'Este


go do Papa Clemente VII, assaltou e (150S-1534), que foi desapossado de
.saqueou Rorria (1526). quase todos os seus domínios pelo
Papa Júlio II (durante a guerra movida
Commodus Aurelius (180-~92 · a.C.) por este contra a França: 1510-1511).
- Imperador romano, filho de Marco A casa de Ferrara era talvez a mais an-
Aurélio, a quem sucedeu. Foi assassi- tiga- casa reinante na Itália.
nado.
Dido - Rainha de Cartago.
Cortona - Cidade toscana. Antes de
ser sujeita a Roma, era uma das princi- Elna (Cardeal d') - Francesco Loris, ·
pais da confederaçã9 etrusca. bispo de Elna.

D' Alviano de Todi (Bártolommeo) - . Epaminondas - General tebano, fau-


Casado com uma· Orsini. Prisioneiro tor máximo da hegemonia de Tebas
do Papa Alexandre VI, tendo conse- sobre a Grécia. Morreu na Batalha de
guido fugir (1497), preparou a resis- Mantinéia (362 A.C.), onde os seus
tência e venceu as fo_rças pontificais, exércitos tiveram a vitória, contudo.
ficando de novo os Orsini senhores da
Campanha. Grande condottiere na Itá- Etólios - Constituída em 314 a.C., a
lia central, foi batido pelos florentinos Liga Etólia compreendia, além deste
(1505). Esteve depois a soldo dos vene- povo, grande parte dos povos da Gré-
zianos contra Maximiliano (1508) e cia central, da Acarnânia à Tessália
contra os franceses, que o fizeram meridional, chegando a granjear ade-
prisioneiro em Vailà. A ser\riço destes, sões no Peloponeso e nas cidades
ganhou para Francisco I (1515) a ultramarinas. Pai-a intervir na Grécia,
Batalha de Marignano. Roma explorou as rivalidades locais
dos povos helênicos e, assim, formou ·
Dario I (521-486 a.C.) - Rei da Pér- uma aliança com os etólios e esparta-
sia. Submeteu a Trácia e a Macedônia. nos, para aniquilar o poderio da Mace-
dônia, de quem era aliada a Liga
Dario III (337-330 a.C.) - J?errotado Aquéia. A Liga Etólia foi dissolvida
por Alexandre. em 189 a.e.

D' Aubigny - Escocês comandante da Fabius Maximus - Ditador romano


vanguarda das tropas francesas que no tempo da Segunda Guerra Púnica.
invadiram. a Itália sob Luís XII. Passou à história com o cognome de
Cunctator, pela sua tática contempori-
Davi· - Rei de Israel. zadora para com os exércitos de. Aní-
bal, que saquearam durante quase um
D'Este - Nome de família dos duques ano a península Itálica, sem que os
de Ferrara. romanos lhes fizessem frente.
1) Erco le. I d'Este (14 71-15 05), que
foi derrotado pelos venezianos Faenza (Senhor de) - Astorre Man-
ÍNDICE DOS NOMES CITADOS 237

fredi, filho de Galeotto Manfredi, as- Filipe V, da Macedônia (221-179 a.C.)


sassinado com~ conivência da mulher, - Aliado de Aníbal contra os roma.:.
da casa dos Bentivoglio, de Bolonha, nos, derrotado pelo Cônsul Flaminius
que esperavam dominar Faenza. Pela na Batalha d_e. Cinocéfalo (179 a.C.).
intervenção de Florença foi assegurado
o governo a Astorre, menino ainda. Filopêmenes (182 a.C.) - Chefe do
partido nacional grego, que resistiu
Fano - Cidade papal, a onze quilô- durante toda a sua vida· ao regime de
metros de Pesaro. protetorado romano sobre a Grécia.

Fernando, o Católico - . Rei de Espa- Fotfi (Senhora de) - Caterina Sforza,


nha (1469-1516). Com o casam.ento de neta de Francesco Sforza, filha legí-
Fernando de Aragão e Isabel de Caste- tima de Galeazzo Mario Sforza, ca-
la começa um novo período da história sou-se com o Senhor de Forli, Giro-
da Espanha. Com a conquista de Gra- lamo Riario, sobrinho do Papa Xisto
nada aos mouros, e da Navarra, IV. Em 1488, Girolamo foi vítima de
completou-se a unidade nacional, e uma conspiração. Caterina, usando do
expandiu-se a força da Espanha como estratagema de prometer aos conspira-
potência européia. Fernando interveio dores que iria induzir as tropas do
na Itália para fazer valer os seus direi- Castelo de Forli a render-se, c'onseguiu
tos sobre o reino de Nápoles. Luís XII, juntar-se a elas. e aí resistiu até chega-
de França, firmou, em 1500, com o rei rem reforços mandados por seu tio,
católico, um tratado secreto pelo qual Ludovico, o Mouro, duque de Milão.
foi convencionada entre os dois a con- Em 1499, a população revoltou-se con-
quista do reino de Nápoles, governada, tra Caterina, que resistiu no castelo,
então, por Frederico de Aragão. A par- até janeiro de 1500, quando César
tilha prevista no tratado consignava a Bórgia atacou Forli.
parte norte do reino a Luís, e a parte Francesco Bella Casa - Embaixador
sul a Fernando .. Os franceses, sob o florentino em França, por ocasião de
comando de D' Aubigny, marcharam preparar-se a invasão da Itália.
em 1501 sobre a Itália; os aliados rom-
peram o pacto, e os franceses foram Friul - Ducado que os lombardos
derrotados pelos espanhóis, na Batalha cederam a Veneza, e foi depois em
de Cerignola (1503). Derrotados, pela parte conquistado pelos austríaco's.
segunda vez, no Garigliano, os france- !
:
ses desistiram da conquista, e o Trata- Garigliano -- Rio da. Itália que desem-
. do de Blois sancionou a posse do reino boca a catorze quilômetros de Gaeta e
de Nápoles pela coroa da Espanha à margem do qual os franceses foram
(1504). derrotados pelos espanhóis 0.503).

Filipe - Rei da Macedônia, pai de Gracos - Tiberius Sempr9ri.ius Grac-


Alexandre, o Grande. Pela vitória de chus e seu irmão Caius, tribunos roma-
Queronéia, tornou-se árbitro de toda a nos, chefes da plebe, mortos, respecti-
Grécia. vamente, em 1-33 e 121 a.C ..
238 ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

Gueldre - Cidade da Prússia renana mulher desavieram-se, e enfim Joana


e antiga capital do ducado de Gueldre. reinou sozinha, tendo tomado, a soldo
Já não se inclui mesmo na atual pro- o condottiere Múzio Attendolo Sforza
víncia de Gueldre, a qual pertence à da Gotgnola ..Em 1420, Joana adotou
Holanda. O ducado foi vendido em como filho Afonso de Aragão, pois
14 71 pelo Conde de Egmont a Carlos, Múzio tel).tara usurpar-lhe o trqno. A
o Temerário, duque de Borgonha, rainha tomou a seu serviço Braceio di ·
sogro de Maximiliano l. Montone. Mas Afonso rompeu com a
rainha, e· Braceio o seguiu. Esta apela
Guida Ubaldo ou Guidobaldo da Mon- mais uma vez a Sforza, que expulsa
tefeltro, duque de Urbino - Foi expul- Afonso de Nápoles.
so por Valentino em julho de 1502,
mas conseguiu voltar, com o apoio dos Julianus, Marcus Ovidius (193 d.C.).
Ursini e dos Vitelli. Tendo entrado na - Imperador romano.
conspiração de La Magione contra
Valentino, escapou à vingança deste Júlio II, Papa (Giuliano della Rovere)
fugindo para Veneza. Depois do declí- - Cardeal de S. Pietro ad vincula,
nio dos Bórgia, voltou para o seu duca- eleito papa, em 1503, depois do efê-
do, morrendo em 1508. mero reinado de Pio III, sucessor de
Alexandre VI, com o apoio de César
Hawkwood (Sir John) - Cavaleiro Bórgia, de quem tinha sido adversário.
inglês que se tornou condottiere na Itá- Nascido em Savana, de órigem humil-
lia. Em 1363, pertenceu à Companhia de, tinha sessenta anos, quando foi le-
Branca, na luta de Pisa contra Floren- vado ao papado. Riquíssimo, por ter
ça, permanecendo fiel àqu~la ql,lando a passado por muitos bispados, era
Companhia passou ao serviço çlos homem sem muitos escrúpulos. Tinha
florentinos. Depois, em 1390, comba- a obsessão da potência e grandeza da
teu por Florença contra Mílão~ tendo Igreja. De c~ráte impetuoso e violen-
sido obrigado a bater em retirada dian- to, contrário ao dos Bórgia, adversário
te das forças de Giovan Galeazzo Vis- implacável destes, não hesitou, porém,
conti, duque de· Milão. Morreu em Flo- em combinar com Valentino a própria
rença~ em 1394. eleição, prometendo deixar-lhe o go-
verno da J3.._omanha. Júlio II, para alar-
Heliogábalo - Imperador romano, gar o poderio da Igreja, empreendeu a
sobrinho e sucessor de Caracala. guerra contra Veneza, organizando,
em dezembro de 1508, a Liga de Cam-
Hierão - (306-214 a.C.) - Tirano de brai, com Maximiliano, imperador da
Siracusa. Alemanha, os reis de França, Espanha
e Inglaterra, os duques de Sabóia e
Joana II, de Nápoles - Sucedeu ao Ferrara, e o marquês de Mântua. Na
seu irmão Ladislau, morto em 1414. batalha de Vailà (Agnadello), a 19 de
Casou-se com Jaime de Bourbon, sob maio do ano seguinte, os venezianos
a condição de contentar-se ele com o foram completamente derrotados pelos
título de príncipe de Taranto. Marido e franceses, tendo estes ocupado ~rande
1
ÍNDICE DOS NOMES CITADOS 239
1
parte da Lombardia, e as tropas impe-! La Palice (Senhor de), Jacques de Cha-
riais avançado sobre Verona, Vicenza' bannes - Marechal de França que se-
e Pádua. O papa apoderou-se da guiu Carlos VIII na Conquista de Ná-
Romanha e das margens do Adriático. poles e depois participou das
Com a retirada de Luís XII da Liga, expedições de Luís fCII e de Francisco
Veneza recobrou Pádua e Vicenza. O I contra a Itália. Morreu em combate
papa, fazendo-se amigo de Veneza, na derrota de Pávia (1525).
dirigiu-se, em 1510, contra o duque dei
!
Ferrara, mas este, com o auxílio dos• Leão X, Papa (Cardeal Giovanni de
franceses, derrotou as tropas papais Mediei) (1475-1521) - Voltando os
perto de Ímola, e entrou em Bolonha. Mediei a Florenç·a, o primeiro cuidado
Júlio II, para anular· a influência da. do cardeal foi reformar o governo, no
França na península, organizou de- sentido de voltar o estado de coisas
pois, com a Espanha, Veneza e Ingla- existente sob Lorenzo, o Magnífico,
terra, a Santa Liga. Abriu-se nova isto é, sob a aparência das velhas insti-
campanha, em 1512, sendo os france- tuições republicanas, o governo era
ses vitoriosos em Ravena, sob o co- controlado pelos Mediei, que se intitu-
mando de Gaston de F oix. Não o bs- lavam · patronos da república. Um
tante, por pressão da infantaria suíça, contemporâneo diz: "Reduziu-se a ci-
os franceses foram obrigados a reti- dade a não fazer senão a vontade do
rar-se de Milão e abandonar, pouco Cardeal de Mediei". À morte de Júlio
depois, o território italiano, definitiva- II, formou-se no conclave um partido
mente vencidos que foram, em Novara. dos cardeais novos para elevar o Car-
O papa voltou-se contra Veneza e, deal de Mediei ao papado. Adversário
aliado à Espanha e a Milão, derrotou dos franceses, favorito do papa defun-
os exércitos venezianos, na batalha de to, liberal até a prodigalidade, letrado e
Vicenza. Sobre as ações de Júlio II, de feitio diplomático, era um candi-
lembre-se a passagem de P. Villari (op. dato já de antemão vencedor. Foi elei-
cit., I, cap. XV), que as resume assim: to a 1. 0 de março de 1513 com o nome
"Não libertara (o papa) a Itália dos de Leão X.
estrangeíros. Ao contrário, por obra
sua estava ela ocupada, p!sada por ale-
mães, espanhóis e suíços; mas tinha Liverotto da Ferroo (Oliverotto Effre-
expulso os franceses, frustrado o Con- ducci da ·Fermo) - Um dos que, sob a
ciliábulo (de Pisa), reunido o concílio direção dos Orsini, conspiraram con-
lateranense, estendido e reforçado o tra César Bórgia. Forçado pelas cir-
domínio temporal da Igreja, ·a cujas cunstâncias a entrar em entendimentos
armas dera reputação, feito de Roma o com os conspiradores, Valentino não
centro principal de negócios da Itália e se vingou· imediatamente, mas, pouco
do mundo. A esse ponto, caía doente e depois, Oliverotto foi estrangulado em
morria a 20 de fevereiro de · 1513. Sinigaglia (31 de dezembro de 1502).
'Digno de grande glória', disse Guie- 1

ciardini, 'se ao invés de ser papa, tives- ~ Lívio (Titus Livius) - Historiador ro-
se sido príncipe secular." _ mano nascido em Pádua em 59 a.C.
240 ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

Da sua monumental História Romana ses, no mesmo ano, o "Mouro" foi cap-
restam alguns livros completos e frag- turado e enviado para a França, onde
mentos. Amigo de Augusto, que lhe morreu, dez anos depois. Luís XII
confioµ a educação de' Cláudio. impôs a. Milão e às outras cidades
pesádos tributos de guerra, e prometeu
Luís XI Rei de França a ·Florença auxílios para a conquista
( l 4_61-148 3). Inic~dor da unidade na- de Pisa, que resistiu ao ataque. O rei
cional francesa.· rompeu com os florentinos, pois desva-
neceram-se as." Sl,las esperanças de fazer
Luís XII - Rei de França. À morte de com que a república pagasse uma
Carlos . VIII (1498) extinguira-se b parte das despesas do exército francês.
ramo primogênito dos Valais. Suce- Com os venezianos rompeu depois,
deu-lhe no trono o Duque de Orleans entrando na Liga de Cambrai, organi-
com o nome de Luís XII. A casa de ' zada contra Veneza. Júlio II levantou-
Orleans, pelas suas· ligações com os "se contra o ·predomínio da França na
Visconti, tinha pretensões ao ducado Itália, depois de ter seguido no começo
de Milão, e isso foi pretexto para que do seu papado a política dos Bórgia,
Luís XII continuasse a política de Car- simpática aos fránceses. Luís XII tenta·
los VIII, de conquista da Itália. Subin- reunir .um concílio (Conciliábulo de
do ao trono, Luís repudiou a irmã de Pisa) que lhe dê licença de fazer guerra
Carlos VIII para casar com a rainha ao papa. (Ver os nomes Alexandre VI,
~iúva Ana de Bretanha. A ·anulação do · César Bórgia e Júlio II.) Ao fim do seu
casamento com aquela foi conseguida reinado, porém, chegou-se ao papa,
de Alexande VI, Bórgia, em troca do renunciando ao Conciliábulo de Pisa e
apoio da França à conquista da Roma- submetendo a Igreja galicana ao concí-
nha pelo papa, que fez ainda cardeal lio laterânense. Aliás, já Leão X suce-
ao arcebispo de Rouen, conselheiro do dera a Júlio II. Luís XII morreu, em
rei ..Luís XII aliou-se, em 1499, a Ve- 1515, aos· 53 anos, pouco depois .de
neza para a conquista do ducado de . ter-se casado com Maria de Inglaterra,
Milão, que deveria ser repartido entre jovem de dezesseis anos.
ambos. A França mandou contra Lu-
dovico, o Mouro (Sforza), que gover- Macrinus (217-218 d.C.) - Imperador
nava Milão, um grande exército, sob o romano.
comando de Gian Giacomo Trivulzio,
mila.Ílês, com que se apoderou de . Marcus Aurelius (161-180 cLC.)
Milão., enquanto os venezianos ocupa- Imperador romano.
vam o resto dos domínios do ducado.
Ludovico refugiou-se na Alemanha, Marranos - Os mouros e judeus, que
. donde voltou à frente de um e.xército passavam ao cristianismo para evitar a
de suíços e alemães, reentrando em perséguição, eram assim chamados na
Milão em 1500, com o apoio da popu- Espanha..
lação descontente com o governo· de
Tri\rulzio. Mas, traído pefos suíços; na ·Maximiliano I - Imperador da _Áus-
batalha de Novara, contra os france- tria (1493-1519). Filho de Fr~deico
ÍNDICE DÓS NOMES CITADOS 241

III. Rival das casas reina~.ts da Espa- trabalho de ir a Roma pedir ao Senado
nha. Genro de Carlos, o Temerário, a sua cqnfirmação. Toda a Itália ade-·
disputou à coroa de França a sucessão riu à insurreição começada na África.
deste ao ducado de Borgonha. É do seu Embora assassinado .Maximino pelos
reinado que data a ascendência da seus próprios soldados, não pôde ser
casa de Habsburgo na Europa. A Ale- assegurada a vitória eia unidade do
manha era então "não tanto um impé- império.
rio como um agregado de pequenos
Estados governad~ por soberanos que
não viviam em paz, uns com os outros, Mediei - Família que dominou em
nem se aliavam contra os inimigos Florença desde o último quartel do sé-
comuns, e eram presidi.dos nominal- culo XIV. Viveram contempora-
mente por um imperador, o qual tinha neamente com Maquiavel e são referi-
diminuta autoridade legal e nem podia dos no · Príncipe os três filhos de
exercer de fato a pouca que tinha" Lorenzo, o Magnífiço, dos quais dizia
(Bryce, The Holy Roman Empire, New o pai que o primeiro (Piero) era louco,
York, 1886). Era Maximiliano o mais o segundo (Giovanni) esperto e o ter-
poderoso príncipe que se assentou no ceiro (Giuliano) bom.
trono germânico desde Frederico II.
Arquiduque da Áustria, conde do Mediei, Piero de·- Sucedeu ao "1'1ag-
Tirol, duque da Estíria e da Caríntia, nífico" no governo de Florença (1492).
senhor feudal da Suábia, da Suíça e da Tirano odioso, cuja conduta covarde
. Alsácia, era poderoso por isso e não por ocasião da invasão dos franceses
por ser titular do Sacro Império Roma- lhe valeu o desprezo unânime dos
no-Germânico, estranho sistema de florentinos. Morreu afogado na passa-
doutrinas, parte religiosas, parte políti- gem do Garigliano (1503).
cas, o qual se tomara obsoleto. Quan-
do Maximiliano se preparava para ir a Mediei, Giovanni de - Ver Leão X,
Roma coroar-se, esperando assim res- Papa.
e
taurar a autoridade dignidade impe-
Mediei, Giuliano de - Depois da elei-
riais, os franceses (Carlos VIII) invadi-
ram a Itália, pondo em xeque os ção de Leão X, Giuliano foi feito capi-
tão e gonfaloneiro da Igreja, sendo
projetos de Maximiliano. A 27 de abríl
de 1507, o imperador convocou em re~bido em Roma com grandes festas.
Constança a Dieta dos Príncipes . e.Tornou-.se pelo seu casamento Duque
fez-lhes sentir a necessidade d~ travar- de Nemours e aliou-se,. desde então, ao
se uma luta decisiva pela posse da governo de Florença. "Dado aos pra-
Itália. ·zeres, além da medida, e por isso fisi-
camente enfraque'cido', era de índole
MaX:iminus, Julius Verus (225-228 fantástica, ·que lhe fazia perder tempo
d.C.) - Imperador romano. À morte na investigação do futuro; não lhe fal-
de Alexandre Severo, inaugura-se a · tavam, porém, vagas e, às vezes, gran-
anarquia militar, personificada pelo des ambições, e hem impulsos genero-
trácio Maximino, que nem se deu ao sos" (P. Villari, op. cit., cap. XVI).
242 ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

Recusou o ducado de Urbino, ofere- Nomentanos - De Nomentum, cida-


cido pelo itmão papa. Terminado o de da Itália, sobre o Allia.
Príncipe, Maquiavel pensou em dedi-
cá-lo a Giuliano, mas ·hesitou em fazê-
Orsini, Niccolà, Conde de ·Pitigliano
lo, ~té que sobreveio a morte deste
(1442-1510) - Comandante das for-
(1516), e endereçou então aLorenzo a
ças de Veneza, derrotado ·na batalha de
carta escrita a Giuliano. V ailá (Agnadello ) ..
Mediei, Lorenzo de (1492-1519)
Filho de Pi~ro e sobrinho dos prece- Orsini - Nome de uma dçi.s duas mais
dentes. Sucessor do Duque de Urbino, poderosas famílias de Roma. As lutas
desapossado por Leão X, que conse- dos Orsini com os Colonna foram uti-
guiu depois o casamento de Lorenzo lizadas pelos Bórgia em proveito do · ·
com Madalena de Latour d' Auvergne, seu próprio poderio. Os Orsini quise-
da casa real de França (1518). A via- ram fazer frente aos planos de domina-
gem nupcial · de Lorenzo revestiu-se ção de César Bórgia, e foram os princi-
dum fausto que recordava a viagem de pais instigadores da conspiração de La
César Bórgia à França. Dócil instru- Magione. Faziam parte da liga contra
mento do papa, que pensava instituir Valentino o Cardeal Orsini, o Duque
um Estado para Lorenzo, formado de de Gravína, Paolo e Frangiotto, todos
Módema e Parma. O breve governo de membros da família'. O cardeal, prisio-
Lorenzo em Florença encheu de espe- neiro no Castelo de Santo Ângelo, foi
ranças a cid_ade, mas, doente e cansa- envenenado a mando do papa; Valen-
do, foi para Roma, onde morreu, pou- tino atraiu os outros a Sinigaglia, onde
cos dias depois do nascimento de uma os mandou estrangular.
filha, a qual foi depois rainha de Fran-
ça (Catarina de Mediei).
Pesaro (Senhor de) - Giovanni di
Metaurp - Rio da Úmbria, lança-se Costanzo Sforza, primeiro marido de
no Adriático em Fano. Lucrécia Bórgia.

Michele (Dom) da Coreglia


Pescennius Niger - Proclamado im-
Homem de confiança de César Bórgia.
perador pelas legiões romanas, em
A seu mando, matou o Duque de Bis-
Antioquia, foi derrotado em Nicéia por
ceglia, seu cunhado, e o Duque de
Gandia., seu irmão, e assaltou os apo- Septímio Severo e executado (195
d.C.).
sentos de Alexandre VI, agonizante,
para saqueá-los. Depois da queda dos
Bórgia, foi para Florença, onde chegou Petrucci, Pandolfo - Senhor de Siena,
a comandar a milícia. Assassinado em depois de ter mandado assassinar o
1508. sogro Niccolô Borghese. Em 1503, en-
trou em luta com Valentino, sendo por
Nábis (205-192 a.C.) - Tirano de este expulso de Siena, mas reposto
Esparta. logo depois com 6 apoio de Luís XII.
ÍNDÍGE DOS NOMES CITADOS 243

Piombino (Senhor de) - Jacópo degli Saneses - De Sannio, antiga Sam-


Appiani, que fugiu à apfoxiriiâção das nium, região da Itália central.
forças de Valentino, as quais ocupa-
ram a cidade (1501). Santa Croce (Iacopo di) - Pro tono-·
tário e partidário dos Orsini, preso
Pirro (277 a.C.) ~Rei cià Epito. Con- com o Cardeal Orsini. Assassinado
quistou a Sicílià p'oí póuco teritpo. pelos Bórgia.

Quíron - Segurlcfo a mitologiâ grega, Savonarola, Fra Girolamo - Nascido


centauro preceptor de Hércülés e de em Ferrara em 1452, chamado a Flo-
Aquiles. rença em 1480, por Lorenzo de Medi-
.ci. Ao tempo da expulsão destes, orga-
Ramiro de Orco -·-· Mordomo de nizou a nova república florentina sobre
César Bórgia, foi pof este último feitó bases democráticas. Em 1498, o parti-
governador da Romàiiha (1501), junta=- do dos Mediei (os "Palleschi") dirigiu
mente com Giovanni dilvieri; o ataque contra o palácio do "Capi-
tano del Popolo", Obizzo degli Alido-
Riario da Savana, CardeâÍ Rafaeiio -·- si. Abandonado pelo povo, foi preso e
Conspirou contra . Leao X, que o executado.
degradou e privóli dos hâvetes.
Serchio - Rio da Itália que deságua
Rimini (Senhor de) - Sigismurido iio Mediterrâneo a doze quilômetros de
Pandolfo MàÍatesta, cdndoltiêfe famo- Pisa.
so pela sua crueldade. Cómbateü 0
Papa Pio II. S.- Pietto ad Vincula - Igreja em
Roma, d.â .qual Giuliano della Rovere
Roberto de San Severino - C apltâd {o futútó Júlio II) tomou o nome para
das tropas de Veneza contra Ferrara, e à seu títtilô de cardeal.
das forças do papa contra Nápoles.

Rohan - Antiga e ilustre casa cuja Septiniltis Severos (193-211 d.C.). De-
nobreza remontava aos primeiros se- posto ó Ímperador Pertinax, pela guar-
nhores da Bretanha. Os Rohan foram a da pretoriana, as legiões impuseram os
princípio viscondes, condes e, depois, 1
seus candidatos ao império: o exército
no século XVII, tomaram _o título de! do Reno aclamou Claudius Albinus, o
duques. do Dânúbio, Septimius Severus, e o do
Or!eiité, Pescennius Niger. Septimius
R9veredo - Cidade do Tirol, sobre o Severus chegou a Roma em primeiro
Adige, a vinte qujlômetros de Trento. lugar, dissolveu a guarda pretoriana e
depo_is dirigiu-se para o Oriente, sitiou
Rubertet (Senhor de) - À morte do Bizâncio e, tendo tomado Antioquia,
Cardeal d' Amboise, substituiu-o no derrotou completamente a Pescennius
favor de Luís XII, de quem se tomou Niger. Voltando depois aà Ocidente,
primeiro ministro. desbaratou o exército de Albinus,
244 ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

numa grande batalha, perto de Lião, pontificado, vendeu os votos de que·


restabelecendo assim a unidade do dispunha aos Bórgia. Destronado o
império·. Fundou a última dinastia ro- irmão pelos franceses, o Cardeal Ascâ-
mana - a dos imperadores africanos. nio foge de Milão, mas, preso logo
depois, é mandado para a França. Vol-
tou a Roma depois da morte de Ale-
Sforza, Francesco - Filho do grande
xandre VI.
condottiere Muzio Attendolo Sforza
da Cotignola, a quem sucedeu na che-
fia dos "Sforzeschi", facção militar Soderini (Francesco, Cardeal)
oposta à dos "Bracceschi". Casado Bispo de Volterra, enviado com Ma-
com Bianca Maria, filha de Filipa quiavel a César Bórgia em Urbino
M·aria Visconti, duque de Milão, gran- (1502). Adversário de Leão X, aspirou
jeou grande influência no ducado. À ao papado na sucessão deste.
morte de Filipa, formaram-se três par-
tidos ein Milão: os adeptos do rei de Suábia - Região da Alemanha antiga,
Nápoles (Afonso); os de Francesco dominada pela casa dos Hohenstaufen,
Sforza; e os partidários da constituição e depois pelos Habsburgo, estendia-se
de uma cidade livre em Milão. Estes da Turíngia à Suíça, da Florestêl; Negra
venceram a princípio, mas, depois da à Baviera. ·
revolta de Pavia e Parma, os milaneses
confiaram a Francesco Sforza a defesa Teseu - Herói da mitologia grega a
· do Estado contra os venezianos, que já quem os atenienses atribuíram a funda-
se tinham apoderado de Lodi e Piacen- ção do seu Estado.
za. Sforza derrotou os venezianos na
batalha de Caravaggio (1448), ligan- Trivigiano (Trevigno) - Cidade da
do-se, porém. logo após, aos vencidos, Ilíria a oitenta e cinco quilômetros ao
contra Milão, onde entrou, como sul de Trieste.
duque, .em 1450.
Tusculanos - De Tusclm~ cidade
Sforza, Ludovico - Assassinado o do Lácio.
duque de Milão, Galeazzo Maria Sfor-
za (14 7 6), o irmão Ludovico, Duque Vailà (Batalha de ) - No dia 19 de
de Bari, usurpou o ducado ao sobrinho maio de 1509, os venezianos foram
Giovan Galeazzo, menino de oito desbaratados em Vailà (atual Agnadel-
anos, de quem se fez tutor. O lo) pelos franceses, que ~cuparm
"Mouro", como passou. à história, grande parte da Lombardia.
ficou senhor de fato de Milão, mas
foi-lhe sempre negado geralmente o Valentino (Duque) - Ver César Bór-
direito à investidura ducal. (Ver o gia.
nome Luís XII.)
Veliternos - de Velitrae, cidade dos
Sforza, Ascânio ( Cru:deal) - Irmão de volscos no Lácio, modernamente Vel-
Ludovico, o Mouro, candidato ao letri.
ÍNDICE DOS NOMES CITADOS 245

Venafro, Antonio Giordano · da bateu por Florença contra Pisa. Sus-


(1459-1530) - Famoso jurista e pro- peito de traição, foi executado em
fessor na Universidade de Siena. Con- 1499.
selheiro de Pandolfo Petrucci...
Vitelli, Niccolo - Expulso. em 14 7 4
Vicenza - Cidade da Lombardia
da Città di Castello pelo Papa Xisto
sobre o Bacchiglione, a setenta quilô-
IV; voltou a dominar aí em 1482.
metros de Veneza.

Vidame (Vice dominus) - Oficial


encarregado de promover judicial ou Vitelli, Vitellozzo - Irmão de Paolo,
militarmente. a defesa de uma igreja, e senhor da Città di Castello, serviu sob
administrar a justiçà civil em nome César Bórgia. Foi um dos conjurados
dos bispos. de La Magione, contra aquele. Es-
trangulado em Sinigaglia.
Visconti, Bemabo - Um dos três can-
didatos do Arcebispo Giovanni Vis- Xenofonte - Autor da Ciropédia ("A
conti que partilharam a sucessão do tio Educação de Ciro").
no governo de Milão (1534). É lendá-
ria a figura de Bernaoo pela sua cruel- Xisto IV, Papa (Fraricesco della Rove-
dade. Foi envenenado em 1585 pelo re 1414-1484) - Apoiou o ataque de
sobrinho Giovanni Galeazzo, que ob- Veneza a Ferrara. Depois dos êxitos
teve do Imperador Venceslau o título militares daquela, o papa voltou-se
de duque· de Milão. ; contra Veneza, fundando a Liga San-
tíssima, com Nápoles, Florença e
Vitelli, Paolo - Condottiere que com- Milão.
- .Este livro integra a coleção
OS PENSADORES -HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO MUNDO OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
Abril SA. Cultural e Industrial, caixa postal 2372, São Paulo

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