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BENEDICTA

O APOSTOLADO EM SEU LAR

VOLUME 02 • NÚMERO 11 • NOVEMBRO 2021


EDITORA DA IRMANDADE DO CARMO

Associação Civil Irmandade Nossa Senhora do Carmo


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Conselho editorial:
Bruno Vieira
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Jacqueline Domingues
Laura Coradi
Marcos Domingues

Revisão:
Camila Severino

Diagramação:
Camila Severino

Base ilustrativa da capa:


Virgin of Carmel Saving Souls in Purgatory, de Diego Quispe Tito (século XVII); Brooklyn Museum

________________________________________
FICHA CATALOGRÁFICA

Benedicta, Revista
V.2, N.11, nov. 2021. Uberlândia. 22p.
________________________________________

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução sem permissão expressa do Editor-chefe.
Todos os trabalhos com autoria discriminada são de responsabilidade dos autores, não cabendo qualquer responsabi-
lidade legal sobre seu conteúdo à Revista Benedicta.
Eventuais referências bíblicas são da Bíblia da Editora Ave Maria (2021) ou da tradução do Pe. Matos Soares (1950).
ÍNDICE

FIDES QUAERENS INTELLECTUM

A oração e o purgatório 3 Este breve texto em formato de questões tem a pretensão de buscar nas Sagradas
Escrituras e na Tradição as evidências de que a oração pelas almas padecentes é
um ato de caridade e um dever cristão.

A perspectiva de Deus 6 No mês dedicado às almas do purgatório é oportuno tratar da afirmação da vida
pela Igreja, um grito solitário diante da cultura de morte, eterna e terrena, fruto
do abandono dos valores evangélicos.

CATHOLICAE LITTERAE

O ente e a essência, 10 Ainda que não seja um texto estritamente religioso, este opúsculo metafísico de
de S. Tomás de Aquino S. Tomás de Aquino (1225-1274) ajuda a desvendar os princípios da Criação,
contribuindo para a melhor compreensão do operar de Deus.

DOMINUS VOBISCUM

Morramos com Cristo 16 Esta pequena meditação é parte de uma série de discursos proferido por S. Am-
brósio (340-397) na ocasião de morte de seu irmão, S. Sátiro (337-379). Pauta-
-se na tese teológica de que a morte de Cristo é o princípio da vida dos santos.

YSTORIA SANCTI

São Carlos Borromeu 18 S. Carlos Borromeu (1538-1584), cardeal e arcebispo de Milão, teve papel fun-
damental na retomada do Concílio de Trento e na reforma do clero e dos costumes
do povo. Foi exemplo vivo do governo espiritual da Igreja.

EUTRAPELIAM

Alfaias e vasos sagrados 21 Na continuação da série sobre os objetos litúrgicos, agora tratamos dos panos e
dos vasos sagrados.
FIDES QUAERENS INTELLECTUM

A ORAÇÃO E O PURGATÓRIO
MARCOS DOMINGUES
Weiszflog Irmãos/Weiszflog Irmãos

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POR QUE DEVEMOS REZAR PELAS ALMAS nossa vida espiritual ganharmos tal amizade de
DO PURGATÓRIO? uma santa alma que está agora junta de Deus? De
Como diz Santo Afonso de Ligório: quem reza se pequenos atos de caridade para com as almas do
salva, quem não reza se condena. O hábito da ora- purgatório pode depender a nossa própria salvação.
ção é parte inerente da vida do cristão. A oração
estimula a caridade, da qual depende todas as vir- O QUE É O PURGATÓRIO?
tudes. Por isso São Paulo diz: “Agora, pois, per- O purgatório é para onde vão as almas que mor-
manecem [como necessários para todos] estas três rem em estado de graça, ou seja, sem pecado mor-
coisas: a fé, a esperança, a caridade; porém a maior tal, porém ainda manchadas pelos pecados veniais
delas é a caridade” (I Co 13,13). Ora, não há maior ou ainda porque carregam dívidas temporais con-
ato de caridade que rezar pelas almas padecentes sequentes dos pecados. Essas dívidas temporais se
do purgatório, pois, como ensina Monsenhor de devem aos efeitos que o pecado gera no tempo.
Ségur, um faminto que pede esmola ainda pode fa- Mesmo que os pecados sejam perdoados pelo sa-
zer algo por si mesmo em busca de saciar a fome; cramento da Penitência, as desordens geradas por
as almas do purgatório, porém, não podem fazer eles persistem. Essas desordens podem ser reverti-
mais nada por elas mesmas, enquanto padecem as das já neste mundo com as boas obras, mas as que
mais duras penas que a nossa imaginação não con- permanecem após a morte serão apagadas no pur-
segue conceber. As nossas orações podem render- gatório, onde, conforme a tradição da Igreja ensina,
lhes indulgências que aliviam suas tormentas ou há o fogo purificador que as consumirá.
mesmo libertam-nas finalmente para a glória e fe- Nas Escrituras, lemos que Judas Macabeu manda
licidade eterna do Céu. recolher doze mil dracmas, remetendo-as para Je-
Por isso não há ato de caridade mais perfeito e de rusalém, a fim de que se oferecessem sacrifícios
mais urgência que rezar por essas almas que tanto pelas almas dos que haviam perecido no combate,
anseiam por nossas orações. Devemos rezar por por ser, dizia ele, um pensamento pio e salutar o de
elas, hoje mais do que nunca, porque esse costume orar pelos mortos para que se resgatem de suas fal-
tão piedoso tem desaparecido. Se não temos com- tas (cf. II Mc 12,42-46). Na parábola do credor,
paixão dessas almas, quem terá compaixão de nós? Nosso Senhor alude a uma prisão da qual o servo
Nessas horas devemos nos lembrar do ensinamento não sai até pagar toda sua dívida (cf. S. Mt 18). São
de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Na verdade vos Paulo também fala de um fogo, no dia do julga-
digo que todas as vezes que vós fizestes isto [obras mento, que porá em prova as nossas obras, e só en-
de caridade] a um destes meus irmãos mais peque- tão seremos salvos (cf. I Co 3).
ninos, a mim o fizestes” (S. Mt. 25,40). Nosso Se- O Magistério da Igreja definiu infalivelmente no
nhor diz ainda, em contrário, que todas as vezes Concílio de Trento (1546-1563) a doutrina do pur-
que negamos essas obras aos pequeninos, é a Ele gatório. Mais uma razão que nos obriga a crer na
mesmo quem as negamos. sua existência. Além disso, há os ensinamentos dos
Ademais, quando rezamos pela libertação de uma santos doutores da Igreja, como Santo Agostinho,
alma do purgatório, seja de um ente querido ou de São Boaventura e Santo Tomás de Aquino a res-
qualquer pessoa que morreu cristãmente, ganha- peito do purgatório, aos quais devemos dar nossa
mos um amigo no Céu e um grande intercessor. dócil adesão. Há ainda muitos relatos de aparições
Poderia haver algo mais benéfico e salutar para a de falecidos a pedir que se reze a missa em sufrágio
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de suas almas, para que se libertem das penas, Cordeiro é presentificado e seus frutos divinos nos
como os relatos de Santa Gertrudes, Santa Teresa, são transmitidos. Não há nada maior nesse mundo
São João Bosco, São Pio de Pietrelcina, entre tan- que a Santa Missa que Nosso Senhor nos deixou.
tos outros. A aplicação desses frutos a uma alma que padece
no purgatório é, sem dúvida, o meio mais perfeito
COMO SOFREM AS ALMAS DO PURGATÓ- e excelente para sua libertação. Foi Nosso Senhor
RIO? mesmo quem ensinou: “quem come deste pão vi-
As almas do purgatório sofrem tormentos terrí- verá eternamente”. Portanto, o Corpo de Cristo
veis, comparáveis aos do inferno, mas não sofrem oferecido em sufrágio da alma padecente fará que
a principal pena dos condenados ao inferno, que é ela viva eternamente, o que significa sua entrada
o remorso de terem perdido Deus para sempre. Por na glória eterna e a posse de Deus: “o que come a
maiores que sejam esses tormentos, as almas pa- minha carne, e bebe o meu sangue, fica em mim e
decentes não estão abandonadas ao desespero e são eu nele” (S. Jo. 6,57).
nutridas pela esperança da felicidade eterna, que as Apesar de nossas obras estarem infinitamente
fazem suportar pacientemente aqueles indizíveis aquém da Santa Missa, isso não nos desobriga a
castigos. Estão na graça e na caridade, e sua von- empenhá-las em favor das almas do purgatório.
tade se conforma perfeitamente à vontade de Nosso Pelo contrário, como já dito, é um habito muito pi-
Senhor, a quem por um momento, no juízo parti- edoso colocá-las na intenção das nossas boas ações
cular, puderam contemplar em toda sua beleza e e orações. Podemos colocar essas intenções nas
magnanimidade. Por mais desejos que tenham de nossas orações diárias, quando rezamos o santo
seu livramento, não o almejam senão conforme es- terço, quando comungamos, quando visitamos o
tejam purificadas: “bem-aventurados os puros de cemitério, ou ainda oferecendo nossos pequenos
coração, porque verão a Deus” (S. Mt. 5,8). Con- sacrifícios diários em favor delas, similarmente à
solam-se com a certeza de que já não podem mais pequena via de Santa Teresinha do Menino Jesus.
ofender a Deus e de que irão contemplá-Lo em Fazendo essas coisas, tornamo-nos verdadeiros
toda sua glória no Céu, por toda a eternidade. cristãos, praticantes da caridade em grau elevadís-
simo e perfeitos imitadores de Jesus Cristo, con-
COMO DEVEMOS REZAR PELAS ALMAS DO forme nos impeliu São Paulo (cf. Ef. 5).
PURGATÓRIO?
Por melhor que sejam nossas obras, elas têm mé-
Indicação de leitura:
rito finito e não se comparam com a obra da Re-
denção, cujos méritos conquistados por Nosso Se- S. Afonso Maria de Ligório - A oração
nhor Jesus Cristo têm valor infinito. Ora, na Santa Mons. de Ségur – O inferno
Missa estamos diante do Calvário, e o Sacrifício do

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A PERSPECTIVA DE DEUS
JOSÉ CARLOS ZAMBONI
Weiszflog Irmãos/Weiszflog Irmãos

O mundo de hoje está doente? É quase com in- mente os meios mais torpes de ação, como o quase
credulidade que se recebe a notícia de que em pa- imperceptível holocausto do aborto.
íses como Estados Unidos, Dinamarca, Itália, Ale- São lugares, curiosamente, em que o “mercado
manha, França, Suíça, Inglaterra, Bélgica e Islân- pet” (comércio de mascotes, sobretudo cães e ga-
dia — representantes escolhidos a dedo do que tos) gerou uma indústria muito sofisticada, com
chamaríamos de civilização ocidental —, a grande toda sorte de produtos para esses animais, e, talvez
maioria dos embriões com síndrome de Down é por isso, provocou grandes avanços na medicina
assassinada no útero materno. Não é fake news: a veterinária. Há hotéis para animais que não podem
própria Islândia, há poucos anos, orgulhava-se mi- viajar com seus donos... Há UTI para animais em
seravelmente de ter infringido o quinto manda- fase final de doenças incuráveis... O afeto por bi-
mento e praticado cem por cento de abortos em chos nunca atingiu, antes, temperaturas tão eleva-
mães com essa espécie de gestação. Um orgulho das.
eugenista, presumivelmente suscitador de uma so- Eugenismo, animalismo... Será mera coincidên-
ciedade mais bela e perfeita, que justificaria plena- cia a analogia dessas tendências com o que pensa-
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vam os nazistas ao redor de Hitler, há quase um tra como é possível superar, de forma quase im-
século? previsível, certos limites que a natureza impõe às
Contudo, ainda há pessoas no mundo que se or- pessoas — e tudo graças à sua família que, num
gulham de coisas diferentes, como criar esses des- esforço de educação precoce, não se deixou vencer
prezados bichinhos humanos com síndrome de pelo pragmatismo reinante em nossa época.
Down, por mais complicado e menos poético que Evidentemente, nem todos conseguirão tocar vi-
isso pareça. Um exemplo admirável é o caso do jo- olino ou ganhar medalhas como ele, mas nada
vem americano Emmanuel Joseph Bishop, nascido disso é necessário para, enfim, tornar merecedor do
em 1996 na cidade de Grafton, na Virgínia. Os pais dom da vida o mais humilde dos portadores desse
católicos, em vez do aborto, aceitaram obedientes mal, apesar de vários países já contarem com le-
o estranho dom de Deus e passaram a tratar o pe- gislação favorável ao aborto em caso de síndrome
queno Emmanuel como aquilo que ele realmente é: de Down. Enquanto no país de Emmanuel Joseph
um ser humano com muitos problemas físicos e Bishop a maioria dos fetos com a sua doença é as-
psíquicos, mas dotado de alma imortal. sassinada no útero materno, essa família mostrou
Começou a ser alfabetizado pela própria família que a espécie humana não está completamente ren-
já aos dois anos de idade, e não só em seu inglês dida ao mal e ainda pode conjugar o verbo amar —
nativo: já aos três anos identificava algumas pala- com o inevitável sacrifício exigido pelo amor.
vras em francês. Com seis anos já lia pequenos dis- Exemplos como este não são poucos. Na França,
cursos em encontros nacionais de uma associação na cidade de Le Blanc, região administrativa do In-
para pessoas com síndrome de Down. Aos oito dre, foi instalada uma comunidade que acolhe me-
anos já andava de bicicleta. Ganhou medalhas de ninas com síndrome de Down que queiram seguir
natação em paraolimpíadas dos EUA. a vocação religiosa. São as Pequenas Irmãs Discí-
Foi então que começou a aprender violino, que pulas do Cordeiro — ordem fundada em 1985 por
está entre as coisas que mais gosta de fazer. Dentro irmã Line —, que recebeu aprovação definitiva de
dos limites do que pode aprender alguém de sua Roma em 2011. Inspirada na “pequena via” de
condição, a partir dos catorze anos já se apresen- Santa Teresinha, segundo a qual a união com Deus
tava com seu instrumento em encontros mundiais pode se dar a partir das coisas mais insignificantes
de síndrome de Down (fosse integrando uma or- do dia a dia, a regra de vida do instituto adapta-se,
questra sinfônica ou em recitais com violinistas evidentemente, às condições de saúde das jovens,
profissionais). Obviamente, Emmanuel não é um com estruturas apropriadas aos cuidados que me-
Yehudi Menuhin ou um Isaac Stern, mas é encan- recem.
tador ver aquele rapaz de olhos achinesados, quase A comunidade das Pequenas Irmãs Discípulas do
engolidos pelas pálpebras, ajeitando entre o ombro Cordeiro se beneficia da proximidade geográfica
e o queixo o violino (instrumento nada fácil de to- (menos de dez minutos) e da direção espiritual da
car), retesando o arco, ferindo as cordas. Abadia de Nossa Senhora de Fontgombault, ligada
Espiritualmente, aos nove anos já era coroinha em à congregação de Solesmes, cujos monges — em
sua paróquia católica, onde aprendeu a puxar o torno de setenta — praticam atividades artesanais
Terço e a comandar outras orações comunitárias e agrícolas, celebram Missas no rito antigo e pro-
(até em latim os pais ensinaram Emmanuel a re- curam reviver a regra de São Bento numa França
zar). O caso desse jovem católico americano mos- desoladoramente anticristã.
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A história desse mosteiro é um resumo do que foi engolindo todos os comprimidos de barbitúricos
o cristianismo no último milênio, e de sua luta por que tinha à mão. Encontrado inconsciente pelos
sobreviver aos inimigos. Começou a ser constru- bombeiros, foi por eles reanimado e, contra a pró-
ído, em estilo românico, no início no século XII. pria vontade, sobreviveu à tragédia que tinha aca-
Os protestantes no século XVI e a Revolução bado de encenar.
Francesa no final do século XVIII tentaram des- Isso, em síntese, foi o que aconteceu antes de
truí-lo. De lá para cá, foi depósito de pedras, des- 1993. Entre 1993 e 2019, o “quíntuplo assassino”
tilaria de bebida, fábrica de botões, hospital de (assim o tem chamado a imprensa francesa) esteve
campanha e, finalmente, em 1948, voltou a ser o recluso numa prisão, da qual saiu condicional-
que era: trincheira católica no século que assistiria mente, com uma pulseira eletrônica de vigilância,
à maior deserção da fé jamais vista na história da direto para a Abadia de Fontgombault, onde com
França. algumas restrições passaria os dois anos seguintes.
O povoado de Fontgombault, tranquilamente si- É lá que se encontra neste momento: no ora et la-
tuado no vale do rio Creuse, não tem mais de tre- bora dos monges beneditinos, compartilhando com
zentos moradores e nada produz que mereça sair eles o silêncio milenar do velho mosteiro, depois
no noticiário nacional. No entanto, a abadia esteve da já distante conversão ocorrida logo no início do
nas páginas dos jornais franceses, em 2019, por cumprimento da pena.
outro acolhimento bem mais polêmico: passou a Indagado sobre a razão e os riscos de tão inusitada
abrigar entre suas vetustas e silenciosas paredes o acolhida, aceitando colocar-se sob os holofotes da
preso em liberdade condicional Jean-Claude Ro- imprensa e os tantos incômodos que isso acarretou
mand, um dos criminosos que mais escândalo pro- para sua vida de oração e silêncio, o abade do mos-
vocou no país, na última década do século XX. teiro só teve uma palavra: “Evangelho”. São Bento
Romand, casado e com dois filhos, foi um homem pedia a seus monges que honrassem todos os ho-
que mentiu obsessivamente por quase vinte anos. mens. Abrir as portas do claustro ao senhor Ro-
Fez-se passar por médico (não tinha ido além do mand significava prepará-lo para o momento mais
segundo ano de medicina) e pesquisador da Orga- importante de sua vida: o encontro com Deus, seu
nização Mundial da Saúde. Suas fontes de renda juiz supremo.
eram a venda de medicamentos falsos contra o Após a justiça humana, era chegada a vez da ação
câncer, de altos preços, e o dinheiro que arranjava misericordiosa de Deus na vida daquele homem.
com os mais próximos, entre eles a amante, sob o De fato, alguém como Jean-Claude Romand, que
pretexto de investir na Suíça. se aproxima dos setenta anos, e fez o que fez, e
Quando as pessoas foram descobrindo quem ele passou pelo que passou, não tem mesmo outra al-
verdadeiramente era (com as cobranças dos em- ternativa, na vida, que procurar a santidade. “Vinde
préstimos se amiudando e sua família prestes a a mim os mais pequenos”, dizia Jesus. Ninguém é
descobrir toda a verdade), assassinou no dia 9 de menor que Jean-Claude Romand neste mundo.
janeiro de 1993 aqueles a quem dizia mais amar — Quem o receberia em casa? Quem lhe daria em-
aqueles que, seguramente, mais o amavam no prego? Quem teria coragem de ser seu amigo, além
mundo: mãe, pai, esposa e dois filhos pequenos. daqueles três ou quatro visitadores católicos que,
No dia seguinte, aquele homem de trinta e nove durante vinte e seis anos, acompanharam semana a
anos incendiaria a própria casa e tentaria suicídio, semana a sua presumível conversão? Ninguém se
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atreve a perdoar esse homem que assassinou os misericórdia divina foi a atitude de acolhida dos
seus mais próximos, nem mesmo a mídia e os in- beneditinos de Fongombault, que em meio aos ris-
telectuais progressistas, que também tudo fazem, cos e mistérios da alma humana abriram as portas
hoje em dia, para destruir a família. de sua antiga casa ao mais desprezado de todos os
Só a Igreja é capaz de tudo perdoar (“tudo, tudo, marginais da França, provando que mosteiros não
sempre, sempre”, como escreveu Alessandro Man- são apenas fábricas de queijos e vinhos, canto gre-
zoni em seu romance Os noivos). Expressão dessa goriano e solidão contemplativa.
Weiszflog Irmãos/Weiszflog Irmãos

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CATHOLICAE LITTERAE Para efetuar essa tarefa, S. Tomás se propõe elu-
cidar três questões que permanecem ignoradas so-
bre o ente e a essência: 1) o que significa o nome
de ente e de essência; 2) o modo como ente e es-
sência se encontram em diversos; 3) o modo como
ente e essência estão para as intenções lógicas, isto
é, o gênero, a espécie e a diferença específica.
A ordem tomada por S. Tomás para tratar disso
deve começar pela significação de ente, que é a
mais fácil, para em seguida chegar à significação
de essência.
Aristóteles, na Metafísica, afirmara que o ente por
si é dito de dois modos: primeiro, por aquele que o
divide em dez gêneros; segundo, por aquele que
significa a verdade das proposições. Uma diferença
entre eles é que o primeiro modo só concebe o ente
como aquilo que põe algo na coisa, de modo que
uma privação não é considerada ente; ao passo que

O ENTE E o segundo modo apresenta o ente como aquilo so-


bre o qual é formada uma proposição afirmativa ou

A ESSÊNCIA, negativa (privatio et negatio), mas nada pondo na


coisa.

DE Do ente, portanto, só deriva o nome de essência


ao ser dito do primeiro modo, e não do segundo.
S. TOMÁS DE Como, no primeiro modo, ele é dividido por dez
gêneros, resulta que a essência deve significar algo
AQUINO de comum (substância) que pertença a todas as na-
turezas, fazendo que os diversos entes possam ser
colocados em diversos gêneros e espécies. Uma
MARCELO ROSA VIEIRA vez colocado, o ente é significado por uma defini-
ção, recebendo assim o nome de quididade (aquilo
que algo era ser), mas também forma ou natureza.
O interesse de S. Tomás de Aquino (1225-1274) A partir da definição, que indica isto pelo que algo
neste opúsculo é explicitar o estatuto originário e tem o ser algo (essência), o ente torna-se então in-
originante do ente e da essência, na medida em que teligível.
são aquilo que primeiro o intelecto concebe, en- Para S. Tomás, o nome de “natureza” parece con-
quanto conceito; e sublinhar, além disso, o fato de ter o significado de essência da coisa, mas com re-
que o ente e a essência só são acessíveis sob a con- lação à sua operação própria. O nome de “quidi-
dição de serem concebidos pelo intelecto humano, dade” recai sobre aquilo que é significado pela de-
através da sua potência ativa de conhecimento. finição. “Essência”, por seu turno, é dita aquilo no
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qual e pelo qual o ente tem o ser. A essência que é absolutamente. Portanto, fica manifesto que a es-
dita haver nas substâncias se diz de maneira abso- sência do homem e a essência de Sócrates não di-
luta, e a que é dita haver nos acidentes se diz de ferem senão quando são conformes ao assinalado e
maneira posterior e dependente. ao não assinalado. O mesmo acontece com a es-
As substâncias se dividem em simples e compos- sência do gênero e a essência da espécie, embora
tas, sendo as primeiras “causa” das segundas. A sob outro modo de designação. Quer dizer: o indi-
essência simples possui um modo mais nobre e víduo é designado a respeito da espécie por meio
verdadeiro. Mas S. Tomás decide começar tratando da matéria assinalada, ao passo que a espécie é de-
das substâncias compostas, já que o conhecimento signada a respeito do gênero e por meio da dife-
humano sempre parte do composto, apreendido rença constitutiva, extraída da forma da coisa.
pelos sentidos, para elevar-se ao simples. Essa, Cabe sublinhar que tudo que reside na espécie
pois, é a ordem natural seguida pelo intelecto hu- está também no gênero, embora no gênero esteja
mano no processo de cognição. de modo não determinado. O animal, por exemplo,
O que de início se nota nas substâncias compostas não é ainda não determinado como pertencente à
é que elas apresentam forma e matéria. A matéria, espécie humana etc. O animal é predicado do ho-
tomada isoladamente, não constitui a essência da mem como um todo, e da espécie como parte inte-
coisa, nem a forma, tomada sozinha, pode ser de- gral. Diz, com efeito, o parágrafo vinte e três (23)
nominada essência. Isso porque a definição de tais que o gênero significa indeterminadamente o todo
substâncias contém tanto a forma quanto a matéria, que está na espécie, pois ele não significa apenas a
diferenciando-as dos entes matemáticos. A maté- matéria. Porém, o gênero determina o que é mate-
ria não é posta na definição como se fosse um rial na coisa sem determiná-lo a partir da forma,
acréscimo, estando de fora da essência. Para que a embora o gênero não seja a matéria, uma vez que
coisa seja conhecida — a essência é o que torna se trata de uma certa denominação que significa. A
algo inteligível — sua definição deve comportar a diferença, por sua vez, é a denominação feita do
relação entre matéria e forma. A essência pertence ponto de vista da forma. O gênero assim não se
ao composto, o que concorda com a posição de predica da diferença: nem todo animal é homem.
Boécio e de Avicena. Mas isso deve ser dito já com A definição ou espécie, por seu turno, contempla
a ressalva de que só a forma é causa do ser, a ma- tanto o gênero quanto a diferença, na medida em
téria é apenas princípio de individuação. que o nome do gênero designa a matéria determi-
Em tempo, pelo fato de a essência abranger tam- nada, e a diferença designa a forma determinada.
bém a matéria, não se segue que a essência seja S. Tomás diz que gênero, espécie e diferença es-
particular, e não universal. Se isso fosse admitido, tão proporcionalmente em relação a matéria (gê-
os universais não teriam definição, o que é ab- nero), forma (espécie) e composto (diferença),
surdo. Convém dizer, portanto, que a matéria só é apesar de não haver identidade entre eles. Dessa
princípio de individuação na medida em que é to- maneira, o gênero é tomado da matéria que signi-
mada como matéria assinalada, ou seja, aquela que fica o todo, enquanto que a diferença é tomada da
pode ser considerada sob determinadas dimensões. forma que significa o todo. A intelecção voltada
A matéria que é posta na definição é a matéria para o animal exprime a natureza material, mas
tomada de maneira absoluta, não a que contém esta sem determinar a forma especial. A intelecção vol-
carne e este osso, mas carne e osso considerados tada para a diferença consiste em tal determinação.
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A definição não é o gênero ou a diferença, porque versal. E precisa escrever também contra os platô-
do fato de o gênero significar toda a essência não nicos, que sustentam que a essência é uma coisa
se segue que ele seja a essência única que deve ser que só existe fora dos singulares.
atribuída a diversas espécies, já que sua unidade Para isso, ele salienta haver dois modos de con-
advém de sua indeterminação. E é preciso que a sideração referentes à natureza ou essência. A con-
essência inclua a determinação. O gênero é deno- sideração absoluta, que é a noção própria, e de
minado uno por comportar uma comunidade de onde resulta que nada de acidental pode ser atribu-
formas. Assim que é removida essa indetermina- ído a ela, por exemplo: não entra na definição de
ção, surge a diversidade de espécies. homem, enquanto homem, o branco, o preto etc.
A natureza da espécie, por sua vez, é indetermi- Essa essência só é una na medida em que é inteli-
nada em relação ao indivíduo, assim como a natu- gida em Sócrates, e é plural na medida em que pode
reza do gênero em relação à espécie. Como se diz plurificar-se em vários. O outro modo de conside-
que o gênero, ao predicar-se da espécie, inclui in- ração é o que está de acordo com o ser que tem
determinadamente o todo que está determinada- nisto ou naquilo (individual). Assim, o que há de
mente na espécie, o mesmo vale para a espécie que, mais verdadeiro para se dizer é que o homem ob-
ao predicar-se do indivíduo, significa indistinta- tém o ser no singular, mas não na medida em que
mente o todo que está essencialmente no indivíduo. é homem, ao passo que a natureza do homem,
Na medida em que exclui ou que prescinde da ma- quando considerada absolutamente, abstrai de
téria assinalada, a espécie significa o indivíduo qualquer ser, de modo que se predica de todos os
pelo nome de humanidade. indivíduos, sem que haja exclusão de nenhum.
Embora a quididade não seja o composto do qual Para o Aquinate, não se deve sustentar que uni-
é quididade, ela é composta, assim como humani- dade e comunidade pertencem à noção do univer-
dade é composta, apesar de não ser o homem, e sim sal, considerado absolutamente, porque, se assim
recebida na matéria designada que a individua. fosse, em qualquer um dos indivíduos, ao ser inte-
A designação da espécie, com relação ao gênero, ligido, encontrar-se-ia a comunidade, o que é ab-
dá-se a partir da forma. A designação do indiví- surdo. A noção de universal, por outro lado, é algo
duo, em relação à espécie, dá-se a partir da maté- que compete a muitos, por isso, ela não pode advir
ria. Tendo isso em vista, pode-se dizer que o nome à natureza humana conforme o ser que há nos in-
que significa aquilo de onde se toma a natureza do divíduos. Resta, então, que ela só advém de acordo
gênero, sendo excluída a forma, significa a parte com o ser que há no intelecto, porque este, ao in-
material do todo. Por outro lado, o nome que sig- teligi-la, abstrai da matéria que individua, tendo
nifica aquilo de onde se toma a natureza da espécie, uma noção uniforme dos indivíduos conforme sua
sendo excluída a matéria designada, significa a semelhança. Nessa altura, S. Tomás cita o Comen-
parte formal do todo. Assim, a humanidade é a tador, que diz que “o intelecto é que produz o uni-
forma do todo (a essência), abrangendo a forma e versal nas coisas”, na medida em que as compara
a matéria, mas com exclusão da matéria designada. segundo uma semelhança comum a todas. A noção
S. Tomás precisa escrever contra a tese que diz de universal é uma “certa espécie inteligida parti-
que a noção de gênero, espécie e diferença, na me- cular”.
dida em que se predica do singular assinalado, não O frade dominicano nega que a universalidade da
pode, de modo algum, pertencer à noção de uni- forma inteligida implique na unidade do intelecto
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de todos os homens, porque aquela universalidade da própria forma corporal, o que é absurdo, haja
é referente à semelhança entre coisas. Uma estátua vista que a forma corporal é inteligível em ato, uma
representando um homem, por exemplo, é singular, vez abstraída da matéria.
na medida em que está na matéria, mas comporta a Outro aspecto a considerar nas substâncias sepa-
noção de comunidade, na medida em que repre- radas é aquele relativo às causas. Ora, pode acon-
senta vários. A noção de espécie não convém a Só- tecer de a causa possuir ser sem que o seu efeito o
crates de acordo com sua consideração absoluta, tenha, mas o inverso não é possível, isto é, não há
mas é dos acidentes que acompanham a natureza efeito sem causa. A relação entre matéria e forma
humana em conformidade com o ser que há no in- é de tal ordem que a forma confere o ser à matéria,
telecto. Predica-se de Sócrates, com efeito, o que mas a recíproca não é válida, ou seja, não é possí-
quer que cabe ao homem enquanto homem. vel haver matéria sem alguma forma; entretanto,
É o intelecto mesmo que leva a cabo a ação de deve ser destacado que não é impossível haver al-
predicar, ao compor e ao dividir, encontrando, guma forma sem matéria.
como fundamento da própria coisa, a unidade da- Se algumas formas só se encontram na matéria,
queles dos quais um é dito do outro. Fica manifesto isso se deve ao fato de que elas estão mais distan-
assim que a noção de espécie pertence aos aciden- ciadas do primeiro princípio, que é puro ato. Elas
tes que acompanham a natureza ou essência em adquirem assim mais potência, quanto mais distan-
conformidade com o ser que tem no intelecto (quer ciadas estão desse princípio. Disso resulta que as
dizer, no conceito). Tal noção não é: 1) nem da- formas que se acham próximas do primeiro princí-
quilo que lhe cabe de acordo com sua consideração pio, que é Deus, são formas que têm subsistência
absoluta (o universal); 2) nem dos acidentes que própria, sem nenhuma inclusão de matéria. Elas
acompanham a própria coisa (quer dizer, o ser que são chamadas por S. Tomás de inteligências. Para
há fora da alma). ele, é preciso então que as essências ou quididades
No capítulo IV, S. Tomás propõe conferir o modo que pertencem a elas não sejam nada mais do que
como há essências nas substâncias separadas. A a própria forma.
substância composta é irredutível seja à forma, seja Assim, enquanto que a essência da substância
à matéria, tomadas separadamente. Isso implica composta inclui a forma e a matéria, a essência da
que a matéria prima nunca pode ser tomada em se- substância simples é somente a forma. Dessa dis-
parado sem uma forma que a determine. A forma, tinção entre elas, decorrem mais duas diferenças:
porém, admite ser tomada em estado puro, sepa- 1) Primeira diferença: refere-se ao fato de que a
rada da matéria. As substâncias separadas são: a essência da substância composta é significada do
alma, as inteligências, a causa primeira. Essas três ponto de vista do todo, ou do ponto de vista da
são destituídas de toda matéria. Por isso mesmo, parte, devido à designação dada pela matéria. E,
elas são inteligíveis em ato, na medida em que há assim, a essência da coisa composta não pode ser
nelas total imunidade em relação a qualquer estado predicada, não importa de que maneira, da própria
material, assim como de suas condições. coisa composta, ou seja, não se diz do homem que
Não é possível dizer, porém, que é apenas a ma- ele é sua quididade. O contrário deve ser dito da
téria corporal que impede a inteligibilidade, porque coisa simples, cuja essência coincide com sua pró-
isso é o mesmo que admitir que a matéria, na me- pria forma, segue-se assim que ela só pode ser sig-
dida em que é corporal, impede a inteligibilidade nificada como um todo, tendo em vista que nada
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existe aí além da forma, ao modo de um recipiente ambos, potência e ato, encontram-se nelas, exceto
que contém a forma. A quididade do simples, desse forma e matéria. A quididade da inteligência e a
modo, não é outra coisa senão o próprio simples. própria inteligência coincidem, mas, conforme foi
2) Segunda diferença: referente ao fato de que as visto, ela recebe seu ser de Deus, que é puro ser.
essências que pertencem às coisas compostas são Uma vez que advém às inteligências uma mistura
multiplicadas, na medida em que são recebidas na de potência, resulta que elas existem em multidão.
matéria assinalada, de acordo com a divisão desta Algumas acham-se menos afastadas de Deus, por
última. Assim, acontece com alguns indivíduos se- isso são superiores, contendo menos potência e
rem idênticos em espécie e diversos em número. mais ato. O último lugar na hierarquia das subs-
Com a essência da substância simples, não acon- tâncias intelectuais é ocupado pela alma humana, a
tece tal multiplicação, na medida em que ela não é qual tem mais potência e está tão próxima das coi-
recebida na matéria. sas materiais que a matéria é levada a participar do
Ressalva-se que as substâncias simples são di- seu ser. Assim, da junção entre alma e corpo resulta
versas em espécie, embora não o sejam em indiví- um ser composto. Mas isso não implica, de modo
duos. Isso porque não advém a elas uma simplici- algum, que sua alma seja dependente do corpo.
dade completa, elas não são ato puro, uma vez que Pelo que foi exposto, fica então claro que há três
contêm certa mistura de potência. Portanto, no caso modos pelos quais há essência nas substâncias:
das substâncias simples, pode ser dito também que 1) Deus, cujos ser e essência são um só, isto é,
o ser não coincide com a essência, isto é, o ser é sua essência não é algo diferente do seu próprio
diferente em relação à essência ou quididade. ser. Deus é apenas ser, embora não lhe faltem todas
Mas deve haver alguma coisa — escreve S. To- as perfeições e excelências. Perfeições e excelên-
más — cuja quididade seja seu próprio ser. Uma cias as quais Nele são simples e unas, e diversas
coisa, portanto, que seja única e primeira, que não nas demais coisas. Deus, por conseguinte, não está
pode, em hipótese alguma, ser plurificada pela adi- num gênero, uma vez que tudo o que está em algum
ção de alguma diferença, na medida em que ela é gênero possui sua quididade à parte de seu ser.
ato puro, sem nenhuma potência. Em todas as coi- 2) As substâncias criadas intelectuais, cujo ser é
sas que existem, um é o ser e outra é sua quididade, outro em relação à essência, embora elas sejam
exceto nesse ser primeiro que é apenas ser, que não sem matéria. Isso equivale a dizer que o ser que as
recebe nenhuma diferença. inteligências possuem não é absoluto, na medida
Todo ser, pois, que tem sua natureza outra que em que é recebido, por isso, condicionado ao ato
não o seu ser, recebe o seu ser a partir de outro. puro de Deus, que concede o ser a elas. Por outro
Todo outro, por sua vez, reduz-se a alguma coisa lado, pode-se dizer que a essência delas é absoluta,
que é por si, uma causa primeira, porque não pode pois não é recebida em nenhuma matéria. S. Tomás
haver uma progressão ao infinito. Para S. Tomás, a salienta que a infinitude das inteligências é inferior,
causa primeira é Deus. Esta causa é apenas ser, e, na medida em que recebem seu ser de algo supe-
a partir dela, todas as demais coisas recebem seu rior, mas sua finitude é superior, na medida em que
ser, estando em potência em relação a esse receber. elas não são limitadas por nenhuma matéria que as
As inteligências, com efeito, estão em potência a receba. Elas não existem, portanto, em multidão de
respeito do ser que recebem de Deus. Elas rece- indivíduos, exceto a alma humana, devido ao corpo
bem-no, porém, sob o modo de ato. Daí que que lhe está unido.
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Não é obrigatório, porém, que a individuação de- forma e da matéria segue-se como resultado o ser
penda do corpo, só ocasionalmente. Ou seja, do substancial, do acidente e do sujeito segue-se
fato de que a alma possui um ser absoluto, a partir como resultado o ser acidental, quando o acidente
do qual foi adquirido para si o ser individuado, se- advém ao indivíduo. Semelhantemente, nem a
gue-se que esse ser permanece sempre individu- forma nem a matéria têm essência completa, já que
ado, por ter sido feito forma deste corpo. Isso está na definição da forma deve ser incluído aquilo de
de acordo com Avicena, quando diz que individu- que ela é forma, sendo que sua definição só se efe-
ação e multiplicação dependem do corpo, mas só tua pela adição de algo que está fora do seu gênero,
em relação ao princípio, não em relação ao fim. e o mesmo ocorre, em sua definição, com a forma
Ademais, encontram-se nas inteligências gênero, acidental.
espécie e diferença, quer dizer, elas são classificá- Contudo abundam as diferenças entre elas. Por
veis no predicamento, posto que a quididade delas exemplo, a forma não tem uma noção completa de
não é o mesmo que o ser. Mas gênero e diferença essência, mas participa de uma essência completa,
são assumidos para elas de modo diferente em re- ao passo que o acidente advém a um ente completo
lação às substâncias compostas, na medida em que em si, que o precede. O acidente não é causa da-
são substâncias simples, logo, ser-lhes-á a dife- quilo a que advém, ele só causa um certo ser se-
rença assumida não como parte da quididade, mas cundário, do qual a substância, não obstante, é ab-
de toda a quididade. As inteligências diferem entre solutamente independente para ser inteligida. Da
si no grau de perfeição que possuem, de acordo conjunção entre sujeito e acidente não resulta uma
com o afastamento da potencialidade e a corres- certa essência. O acidente só é um ser e só tem es-
pondente aproximação do ato puro. sência sob um certo aspecto.
3) A essência nas substâncias compostas de ma- A substância — diz por fim S. Tomás — é o pri-
téria e forma. Nelas, o ser é recebido e é finito, por meiro no gênero do ente, tendo essência o mais
terem-no a partir de outro. Além disso, a natureza verdadeiramente e ao máximo. Por isso, ela é a
ou quididade das mesmas é recebida na matéria as- causa dos acidentes. Estes, por sua vez, podem ser
sinalada, tornando-as finitas e multiplicadas em acidentes da matéria ou podem sê-lo da forma,
indivíduos numa espécie, devido à divisão causada como por exemplo o fato de a alma ser capaz de
pela matéria assinalada. inteligir. O sentir é um acidente da alma, mas tem
No último capítulo, S. Tomás reserva o texto para comunicação com a matéria.
tratar do modo como há essência nos acidentes. Os
acidentes têm uma definição incompleta, na me-
dida em que que só podem ser definidos sob a con-
Edição resenhada:
dição de que o sujeito seja posto na sua definição.
Isso porque eles não têm seu ser separado da subs- AQUINO, S. Tomás. O ente e a essência. Rio de Janeiro:
tância. Do mesmo modo como da composição da Presença, 1981. 180p.
Filippino Lippi/Domínio Público

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MORRAMOS COM CRISTO


SANTO AMBRÓSIO
Weiszflog Irmãos /Weiszflog Irmãos

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Percebemos que a morte é lucro, e a vida, castigo. que o Filho de Deus não rejeitou, e da qual não
Por isso Paulo diz: Para mim, viver é Cristo, e fugiu. Na verdade, a morte não era da natureza,
morrer é lucro (Fl 1,21). Como unir-se a Cristo, mas converteu-se em natureza. No princípio, Deus
espírito da vida, senão pela morte do corpo? Mor- não fez a morte, mas deu-a como remédio. Pela
ramos então com Ele, para com Ele vivermos. prevaricação, condenada ao trabalho de cada dia e
Morramos diariamente no desejo e em ato, para ao gemido intolerável, a vida dos homens começou
que, por esta segregação, nossa alma aprenda a se a ser miserável. Era preciso dar fim aos males, para
subtrair das concupiscências corporais. Que ela, que a morte restituísse o que a vida perdera. Pois a
como se já estivesse nas alturas, onde não a alcan- imortalidade seria mais penosa que benéfica, se
çam os desejos terrenos, aceite a imagem da morte não fosse promovida pela graça. Por isso, tem o
para não incorrer no castigo da morte. Pois a lei da espírito de afastar-se logo da vida tortuosa e das
carne luta contra a lei do espírito e apoia-se na lei nódoas do corpo terreno, e lançar-se para a celeste
do erro. Mas qual o remédio? Quem me libertará assembleia, embora pertença só aos santos lá che-
deste corpo de morte? (Rm 7,24) A graça de Deus, gar, e cantar a Deus o louvor, descrito no livro pro-
por Jesus Cristo, nosso Senhor (cf. Rm 7,25s). Te- fético, que os citaristas cantam: Grandes e maravi-
mos o médico, usemos o remédio. Nosso remédio lhosas tuas obras, Senhor Deus onipotente; justos e
é a graça de Cristo, e corpo de morte é o nosso verdadeiros teus caminhos, ó Rei das nações!
corpo. Portanto afastemo-nos do corpo e não se Quem não temeria e não glorificaria teu nome?
afaste de nós o Cristo! Embora ainda no corpo, não Porque só tu és santo; todos os povos irão e se
lhe obedeçamos; não abandonemos as leis naturais, prostrarão diante de ti (Ap 15,3-4). Contemplar
mas prefiramos os dons da graça. E que mais? Pela também, ó Jesus, tuas núpcias, nas quais a esposa,
morte de um só, o mundo foi remido. Cristo, se ao canto jubiloso de todos, é conduzida da terra ao
quisesse, poderia não ter morrido. Não julgou, po- céu — a ti virá toda carne (Sl 64,3) — já não mais
rém, dever fugir da morte como coisa inútil nem manchada pelo mundo, mas unida ao espírito. Era
que nos salvaria melhor, evitando a morte. Com isto que o santo Davi desejava, acima de tudo, con-
efeito, sua morte é a vida de todos. Somos marca- templar e admirar, quando dizia: Uma só coisa pedi
dos com sua morte, ao orar anunciamos sua morte, ao Senhor, a ela busco: habitar na casa do Senhor
ao oferecer o sacrifício pregamos sua morte. Sua todos os dias de minha vida e ver as delícias do
morte é vitória, é sacramento, é a solenidade anual Senhor (Sl 26,4).
do mundo.
Não diremos ainda mais sobre a sua morte, se
Fonte:
provarmos pelo exemplo divino que dela resultou
a imortalidade, e que a morte se redimiu a si SANTO AMBRÓSIO. Segunda leitura. Em: Livro sobre a
mesma? Não se deve lastimar a morte, que é causa morte de seu irmão Sátiro. (Lib. 2,40.41.46.47.132.133:
da salvação do povo. Não se deve fugir da morte, CSEL 73,270-274.323-324) [s.l.][s.a.].
e Memóriade
G. Visini/Oratório Ambrósio
doS.Santuário

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mentação
YSTORIA SANCTI
SÃO CARLOS
BORROMEU

Em certo processo de canonização, narra-se que,


algumas horas antes de amanhecer o dia dois de
outubro de 1538, a obscuridade da noite foi inter-
rompida perto de Arona, na Itália, por intensíssima
luz que iluminou o lago, as moradias e as torres do
castelo. Acorreram todos ao ar livre para observar
o esplendor tão misterioso, assaz vivo e branco se-
melhante ao fogo, demasiado prolongado para
confundir-se com relâmpago, e muito claro e lu-
zente para ser fosforescente. A luz era um raio bri-
lhantíssimo, da largura de um metro e muito longo,
que atravessou o castelo de oriente a ocidente, da
Torre menor à do Falcão, situada sobre o “quarto
dos três lagos”. Poucas horas depois desse “signum
gratiae” vinha ao mundo São Carlos Borromeu.
Nascido de ilustre família, sobrinho do papa Pio
IV (1559-1565), ainda diácono foi elevado, em
1560, ao cardinalato, e desde então empregou toda
a função dignitária para melhor servir a Igreja.
Graças ao dom diplomático, foi o grande respon-
sável pela retomada e conclusão do Concílio de
Trento nos diversos estados papais confiados à sua
administração, tendo acompanhado de perto a
constituição dos regulamentos conciliares, sobre-
tudo a partir da Seção XVII. Devido à sua conduta
de visível santidade, contribuiu para apaziguar as
heresias, reformar os costumes do clero e do povo,
reanimar o fervor nos claustros e manter a cristan-
dade no insólito ambiente da peste.
Após a morte de seu irmão, rejeitou o direito à
Roberto de Mattei/Roberto de Mattei Site

sucessão real em Arona e recebeu a ordenação sa-


cerdotal em 1562. Logo foi sagrado bispo e nome-
ado arcebispo de Milão. Na época, a diocese

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milanesa contava com mais de três mil sacerdotes, No dia seguinte, S. Carlos administrou-lhe a co-
duzentos conventos e mais de setecentas paróquias; munhão e ordenou orações para que se restabele-
extensão que S. Carlos percorreu no mínimo três cesse. O duque viveu persuadido de que, depois de
vezes durante seu episcopado. Seu exemplo e em- Deus, devia a cura aos méritos do santo. Quando,
penho no cumprimento dos decretos do santo con- afinal, veio a falecer, deixou ordenado que lhe
cílio, e das consequentes reforma do clero e pro- acendesse uma lâmpada de prata no túmulo, em si-
mulgação da Missa por S. Pio V, renderam-lhe, nal de agradecimento por aquele benefício.
por um lado, atentados contra sua vida, e por outro, Narra-se ainda que S. Carlos Borromeu desejava
honrosos monumentos espalhados por todo o do- viver com mais austeridade que um trapista. Cedo
mínio diocesano. na vida, propôs a si mesmo uma lei: jejuar todos os
A incansável atuação do santo foi ainda maior em dias, passar a pão e água, excetuando, os domingos
1576, quando Milão foi atingida pela peste. e dias de festas, nos quais comia um pouco deste
Quando a notícia se espalhou, um príncipe, que ou daquele legume, ou fruta. Fazia uso contínuo do
passava pela cidade, retirou-se imediatamente, se- cilício, dormia muito pouco, passando em orações
guido pelas autoridades locais, de modo que fica- as vigílias das grandes festas. Ia S. Carlos, de
ram apenas o povo, sobretudo os pobres, e um pe- quando em quando, fazer retiros na Ordem dos Ca-
queno número de magistrados e bons padres e re- maldulenses e noutros lugares solitários. Apreci-
ligiosos. Na ocasião, S. Carlos regressava de uma ava, especialmente, fazê-lo em Monte-Varalli, na
província vizinha, e foi recebido pelo povo milanês diocese de Novara, nas fronteiras da Suíça. Ali, os
com grande gritaria e consternação. Secundado pe- mistérios da paixão eram representados nas dife-
los padres e religiosos que permaneceram na ci- rentes capelas. E quem quer que rogasse a S. Car-
dade, S. Carlos proveu as necessidades corporais e los lhe traçasse as regras a seguir, para progredir
espirituais do povo durante toda a peste, vendendo na virtude, dava-lhe o santo, invariavelmente, esta
os próprios bens e a mobília da diocese e visitando resposta: Aquele que deseja progredir no serviço
e administrando os sacramentos aos leprosos. Para de Deus deve começar cada dia da vida com um
alimentá-los ou vesti-los, vendeu até a própria novo ardor, ater-se na presença de Deus o mais
cama, resignando-se a dormir sobre tábuas. E je- possível e tudo fazer para que as ações que praticar
juando e orando pela saúde de todos, procurou sejam para a glória do Senhor.
afastar a ira de Deus. Em 1584, reuniu-se com seu confessor para pre-
Além do governo geral da província e da diocese, parar-se para a morte, que, dizia, estava próxima.
S. Carlos ocupava-se ainda com a direção particu- Passou, então, a redobrar as austeridades. No úl-
lar das almas. Gostava imensamente de assistir aos timo retiro, parecia mais embevecido em Deus do
moribundos. Em 1583, ao ter conhecimento de que que nunca, livre de todas as coisas terrenas. A
o duque de Saboia adoeceu em Vercelli, e os mé- abundância de lágrimas, tanto chorava, obrigava-o
dicos estavam desesperançados, para lá partiu, a interromper, constantemente, a celebração da
chegando ainda com tempo para o encontrar vivo. santa missa. Passava a maior parte do tempo na ca-
O duque, ao pressentir o santo arcebispo no quarto, pela, chamada a Súplica do Jardim, e naquela Do
exclamou: Sepulcro. Dir-se-ia um morto, tão engolfado que
— Estou curado! vivia no Salvador, para reconhecer a si mesmo.

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O emblema de S. Carlos foi a palavra humilitas,
que constava em parte de seu escudo. Foi nomeado
Protetor do Reino de Portugal, da Baixa Alemanha
e dos cantões católicos da Suíça. Sob sua proteção
foram colocadas as ordens de São Francisco, dos
Carmelitas, dos Humiliati, dos Cônegos Regulares
da Santa Cruz de Coimbra, dos Cavaleiros de Je-
rusalém (ou Malta) e da Santa Cruz de Cristo em
Portugal. Na iconografia, S. Carlos geralmente é
representado em suas vestes de cardeal, descalço,
carregando a cruz como arcebispo; uma corda em
volta do pescoço, uma mão erguida em bênção,
lembrando assim de seu trabalho durante a peste.
Sua festa é celebrada em 4 de novembro.
Jose Salome Pina/Fine Art America

Fontes:

PADRE ROHRBACHER. Vida dos Santos. Vol. 19. São


Paulo: Editoras das Américas, 1959. p. 174-187.
BIANCOTTI, Ângelo. San Carlo Borromeo. Petrópolis:
Editora Vozes, 1965.
KEOGH, William. St. Charles Borromeo. Em: The Catholic
Encyclopedia. Vol. 3. New York: Robert Appleton Com-
pany, 1908. p. 619-625.

Em 24 de outubro, terça-feira, foi tomado por


grande febre, e no dia 29, tendo terminado o retiro,
partiu para Arona. A febre aumentava e fazia-se
contínua. No dia dos Mortos, foi levado para Milão
em liteira. A doença que o acometera foi julgada
gravíssima. Havia momentos de melhora, mas
breve o recrudescimento da febre anunciava sinto-
mas tão incômodos que os médicos perderam toda
Britânico

a esperança. S. Carlos, que não interrompera os


exercícios de devoção, recebeu o julgamento dos
desconhecida/Museu

médicos com serenidade sobrenatural, uma tran-


quilidade difícil de se acreditar, e pediu os sacra-
America

mentos da Igreja, os quais recebeu com o maior


AutoriaArt

fervor e unção. No princípio da noite de 4 de no-


Battista Crespi/Fine

vembro, morreu, pronunciando estas palavras:


— Ecce venio. (Eis que venho.)
Commons

20
Giovanni
kimedia
EUTRAPELIAM

ALFAIAS E VASOS SAGRADOS


Autoria desconhecida/Domínio Público

As alfaias são pequenos panos de linho e objetos encapados com te-


cido usados junto de alguns vasos sagrados:
• Corporal (corporal): pano quadrado branco sobre o qual se colo-
cam os vasos com as sagradas espécies. A dobradura em três partes
simboliza a Santíssima Trindade;
• Pala (pall): objeto rígido encapado com tecido que serve para co-
brir o cálice. Segue a cor do tempo litúrgico;
• Sanguíneo (purificator): pano retangular branco que se encontra
junto ao cálice. É usado para evitar que alguma partícula se perca
e para limpar e secar os vasos sagrados;
• Manustérgio (finger towel/ablution towel): toalha branca usada
junto do lavabo após o sacerdote lavar as mãos, durante o Ofertório
e as Abluções;
• Véu do cálice (chalice veil): pano que cobre o cálice. Sua cor varia
conforme o tempo litúrgico;
• Bolsa do corporal (burse): Bolsa formada por duas partes rígidas
encapadas e unidas por tecido. Usada para portar o corporal e co-
locada sobre o véu do cálice. Sua cor varia com a do tempo.

Os vasos possuem tamanhos e finalidades diversas; podem ficar sobre o altar, sobre a credência, na sacristia ou em
outro lugar do templo; a depender da orientação litúrgica. São eles:
• Caldeira (holy water container): vaso que guarda a água benta. É utilizado junto com o hissopo (sprinkler),
espécie de vara para aspergir o povo ou algum objeto.
• Cálice (chalice): vaso que guarda o Sangue de Cristo.
• Cibório (ciborium): vaso que guarda o Corpo de Cristo, velado por véu branco quando já consagradas as partí-
culas.
• Galhetas (cruets): vasos que portam água e vinho, misturados no cálice durante o Ofertório.
• Lavabo (lavabo dish): conjunto de bacia e jarro com que o sacerdote lava as mãos ao fim do Ofertório.
• Naveta (boat): vaso que guarda o incenso a ser colocado no turíbulo.
• Ostensório (monstrance): objeto usado para exposição solene do Santíssimo Sacramento. Em seu centro está a
luneta, pequeno objeto em formato de meia lua que sustenta a hóstia.
• Patena (paten): prato circular raso que acompanha o cálice, usado para portar a hóstia grande (altar bread). Há
também a patena da comunhão, usada sob o queixo do comungante para evitar que se perca alguma partícula.
• Turíbulo (censer): vaso incensório.

Citam-se ainda o conopeu, véu que cobre a porta do sacrário; e os castiçais, dentre eles a palmatória, que acom-
panha o bispo durante a Missa pontifical e é também usada para indicar o início do Cânon nas demais missas.

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