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ANTONIO JOSÉ DE ALMEIDA

LUMEN GENTIUM
A transiç - O necessária

Coleção TEOLOGIA HOJE


• Creio em Deus Pai, A. T. Queiruga
• Reencarnação ou ressurreição: Uma decisão de fé, R. J. Blank
• E depois ... Vida ou nada?, Jean-Marie Aubert
• O que queremos dizer quando dizemos "inferno'Y, A. T. Queiruga
• A Igreja, comunidade de salvação - uma eclesiologia ecumênica, George H.
Tavard
• A herança de Jesus e o poder na Igreja - reflexão sobre o Novo Testamento, P.
Hoffmann
• O nosso Deus: um Deus ecológico - por uma compreensão Ético-Teológica da
Ecologia, Tarcísio Pedro Vieira
• Em busca de uma teologia da beleza, [ohn Navone
• Recuperar a Criação - por uma religião humanizadora, A. T. Queiruga
• Recuperar a Salvação - por uma interpretação libertadora da experiência cristã,
A. T. Queiruga
• Fim do Mundo ... Quando? - reflexões teológico-bíblicas sobre a escatologia
cristã, Frei Mauro Strabeli
• As múltiplas faces da Virgem Maria, George H. Tavard
• Introdução à Trindade para estudantes universitários, Lynne Faber Lorenzen
• Introdução à Teologia, Thomas P. Rausch (org.)
• Encarnação: questão de gênero", Benedito Ferraro ~
• Lumen gentium: a transição necessária, Antonio José de A1meida PAULUS
a Igreja é, em Cristo e por Cristo, humilde "servidora do Capítulo 4
desígnio de Deus, que a supera". 132
TRANSIÇÃO
VICTIMAE PASCHALI À VÍTIMA PASCAL
DE UMA ECLESIOLOGIA
"CRISTOMONISTA"
Victimae paschali laudes À vítima pascal louvores
immolent christiani. oferecem os cristãos. A UMA ECLESIOLOGIA
Agnus redemit oves: O Cordeiro redimiu as ovelhas: "TRINIT ÁRIA"
Christus innocens Patri o Cristo inocente com o Pai
reconciliavit peccatores. reconciliou os pecadores.
Mors et vita duello A morte e a vida
conflixere mirando: enfrentaram-se em duelo: A eclesiologia da Lumen gentium nem por isso é
dux vitae mortuus, o rei da vida morto cristomonista, crítica que os orientais costumavam fazer à
regnat vivus. agora reina vivo. eclesiologia ocidental.F' mas cristocêntrica e trinitária. Na
Dic nobis, Maria, Diga-nos, Maria, referência trinitária, está não só uma das mais importantes,
quid vidisti in via? o que viste pela via? mas a principal chave de leitura da Constituição, e de toda
Sepulchrum Christi viventis, O sepulcro do Cristo vivo, a obra eclesiológica do Concílio. Com efeito na Trindade a
et gloriam vidi resurgentis: e a glória vi do redivivo: Igrejaencontra a sua fonteIde ande vem?)', ;- sua imag~m
angelicos testes, as testemunhas angélicas, (o que a Igreja é e como se deve estruturar?) e a sua meta
sudarium et vestes. o sudário e as vestes. (para onde vai a Igreja no seu peregrinar?). 134 Portanto, "õ
Surrexit Christus, spes mea: O Cristo, minha esperança, Mistério.da Igreja só se explica à luz da Trindade ... Todos os
praecedet suos in Galilaeam. ressuscitou, para a Galiléia ensinamentos do Concílio sobre o mistério da Igreja estão
Scimus Christum ante os seus avançou. marcados com o 'selo da Trindade'. A natureza íntima da
surrexisse Sabemos que o Cristo Igreja acha no mistério trinitário as suas origens eternas, a
a mortuis vere: ressuscitou sua forma exemplar e a sua finalidade ... Todos os aspectos do
tu nobis, victor rex, da morte verdadeiramente: mistério eclesial devem ser perscrutados na irradiação desse
miserere. conosco, rei vitorioso, mistério dos mistêrios't.!"
sê bondoso, sê clemente. A Igreja, de fato, é, em primeiro lugar, colocada no ho-
rizonte do Pai: a Igreja na mente do Pai, ou, como queriam
(VIPO DE BOLOGNA, Seqüência pascal, século XI) mCL N. A. NISSIOTIS, "Pneumatologie ou "Christomonisme" dans Ia tradition
latinl~~::'in: IFpher:zerid~sTheolo~cae Lov~nienses 45 (1969), pp. 394-416.
. ? Pai,envia o ~!lh? E o Filho envia o Espírito Santo. Foi assim que Deus
veio .a nos. E e ~o sentido Inverso que nós chegamos ao Pai. O Espírito nos conduz
ao Filho. E o Filho, ao Pai" (J. A. MOHLER L'unità nel/a Chiesa op cit p 4
132G. DEJAIFVE, "L'ecclesiologia dei Vaticano 11", in: Facoltà Teologica Inter- Prefácio). " . ., . ,
regionale (ed.), Lecclesiologia dai Vaticano I ai Vaticano II, La Scuola, Milano, IlSM. M: PHILIPON, "A Santíssima Trindade e a Igreja", in: G. BARAÚNA
1973, pp. 87-98. (cd.), A Igreja do Vaticano II, op. cit., p. 361.

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alguns Santos Padres, "a Igreja antes da Igreja"; a Igreja antes do Senhor". 139Seu papel é tão importante que ele "não vem
de Cristo nas várias etapas da história; a realização histórica apenas animar uma instituição totalmente determinada nas
da Igreja nestes tempos que são os últimos e a sua destinação suas estruturas, mas é em sentido próprio co-instituinte". 140
à plena realização escatológica. Contemplada no horizonte A ação vivificante do Espírito - em consonância com [o 4,14
do Pai, a Igreja manifesta sua maior abertura e extensão, e 7,38-39, citados pela Constituição - leva o fiel a amar a
uma vez que "todos os justos, a começar por Adão, "desde o Igreja, permanecendo na sua unidade e na sua caridade. 141Em
justo Abel até o último eleito", serão congregados na Igreja seu papel unificador, o Espírito guia, unifica, instrui, dirige,
universal junto do Pai". 136 embeleza, renova.lv E, para concluir esta inserção formal
Na seqüência, a Igreja é apresentada no horizonte do do mistério da Igreja no mistério da Santa Trindade, Lumen
Filho, em sua existência intratrinitária ("foi nele que o Pai gentium cita S. Cipriano em seu comentário ao Pai-nosso:
nos escolheu e predestinou"), em sua existência histórica "Assim a Igreja toda aparece como o 'povo congregado na
("veio, portanto, o Filho enviado pelo Pai ... inaugurou na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo'.143
terra o reino dos céus ... ") e em sua existência gloriosa atua- Nesses três parágrafos, é claro, não estamos diante de
lizada sacramentalmente ("exerce-se o mistério de nossa todo o ensinamento da Lumen gentium - ou muito menos
redenção sempre que o sacrifício da cruz, pelo qual Cristo, do Concílio - sobre a Trindade, em suas múltiplas relações
nossa Páscoa, foi imolado (lCor 5,7), se celebra sobre o com a Igreja, mas tão-só de uma pequena amostra, ainda
altar ..."). O papel de Cristo é central, quer na vida intra- que num afresco grandioso. Um dos primeiros a debruçar-
trinitária (Trindade imanente), quer na sua manifestação se sobre este tema no imediato pós-Concílio nos ensina que
histórica (Trindade econômica): "Ninguém pode conhecer "jamais, sobretudo num concílio ecumênico, o magistério
o Pai senão por meio do Verbo de Deus, isto é, se o Filho da Igreja havia exposto com tal força e tal amplitude o lugar
não o revela; nem o Filho senão pela benevolência do Pai. O primordial da Trindade no mistério eclesial. Não se trata de
Filho realiza o que é do agrado do Pai. O Pai envia, o Filho uma afirmação ocasional e marginal, senão de uma declaração
é enviado e vem". 137 conciliar solene, querendo manifestar a todos as origens eter-
Por fim, a narração da presença e atuação do Espírito nas e o fundamento último do mistério da Igreja, sua natureza
- distintas, mas, ao mesmo tempo unidas à missão de Cristo profunda, sua finalidade última, a fim de apreender melhor
- são ricas de sugestões. Suas idéias principais são: a ligação
139IRENEU,Demonstratio, 41.
entre o Espírito Santo e a Igreja; a ação vivificante do Espírito; .. 14Dy.M.-J. CONGAR, Credo nello Spirito Santo, 11.Lo Spirito come vita, Que-
a ação unificante do Espírito. O papel eclesiológico desta outra nruana, Brescia, 1982, pp. 14-1S.
mão de Deus 138não pode ser menosprezado: "(Os Apóstolos) 141Cf.S. AGOSTINHO, In [oannem, 32,5-8.
.. 14~,CLLumen gent!um, 4. Recuperando a pneumatologia primitiva, Môhler
instituíram e fundaram a Igreja partilhando e distribuindo dIZIa: Começou-se muito cedo a explicar os efeitos do Espírito em nós, afirmando
aos crentes aquele mesmo Espírito que eles tinham recebido que ele se comunica substancialmente [ououoôcoç] aos crentes. Encontramo-nos
diante de um~ ~í~tica que ~e fundamenta na própria essência do catolicismo, e que
tü em estrelh~sl~a relaçao com a concepção cristã da santa ceia. Este Espírito,
Il6Lumen gentium, 2; cí, S. AGOSTINHO, Sermo 341,9, 11, in: PL 39, que pe~etra no mtimo dos crentes e a todos vivifica, com sua ação os funde numa
1499ss. uruca vida, faz deles uma sociedade espiritual e forma deles uma estreita unidade"
Il7IRENEU, Adversus haereses, IV, 6,3; cí. Mt 11,25-27; Lc 10,21-22. (J A. MOHLER, L'unità nella Chiesa, op. cit., p. 9).
1l8Ibidem, V, 28,4. 14lCf.Ibidem; S. Cipriano, De orat. Dom. 23: PL 4, 553.

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o sentido de sua missao divina' ele sua ação sobrenatural no Os três são uma coisa só!
mundo". 144
"Diz o Senhor: 'Eu e o Pai somos um'; e, ainda, está escrito
Com esta opcraçuo, na linha aberta por Mohler,145 no do Pai, do Filho e do Espírito Santo: 'E os três são um,.149 E
século X I . retomada por Gréa [1828-1917],146 Guerry, alguém crê que esta unidade, que deriva da divina potência, e
Broutin!" e outros no século XX, e, de certa maneira, pela é consolidada pelos sacramentos celestes, possa ser rompida
eclc .iol ia do Corpo Místico, o Vaticano 11 reencontrou a na Igreja pela separação de vontades contrastantes? Quem não
mantém essa unidade, não mantém a lei de Deus, não mantém
in spiraçao trinitária do Novo Testamento, do cristianismo a fé do Pai e do Filho, não mantém a vida e a salvação" (S.
primitivo e dos Santos Padres: os Capadócios, Santo Atanásio, CIPRIANO, De Catholieae Eeclesiae unitate, 6).
São Cirilo de Alexandria, Santo Ambrósio, Santo Agostinho.
Sem sombra de dúvida, esta é "a contribuição mais importante
e definitiva, que fixa as verdadeiras perspectivas do mistério Creio no Espírito Santo, na santa Igreja
eclesial, em ligação orgânica com o mistério fundamental do para a ressurreição da came'í''
cristianismo" . 148 "O mistério é já expresso no primeiro, no mais elementar e
popular dos nossos símbolos de fé: Credo... sanetam Eecle-
144M.M. PHILIPON, A Santíssima Trindade e a Igreja, op. cit., p. 362. O autor
siam eatholieam. Ocupa aí um lugar bem determinado, que
analisa ainda as relações Trindade - figuras bíblicas, Trindade - povo de Deus, Trin- não é absolutamente casual e que é instrutivo analisar ... A sua
dade - hierarquia, Trindade -laicato, Trindade - santidade, Trindade - escatologia, estrutura é ternária porque é essencialmente um 'símbolo da
Trindade - Maria etc. (CL Ibidem, pp. 361-383]. Trindade' (Firmiliano de Cesaréia, em: Cipriano, Epist. 75,
I 45"Começo do Espírito Santo. Poderá parecer estranho que não comece, ao
11) ... Depois da menção do Pai criador e do Filho redentor,
invés, de Cristo, centro de toda a nossa fé: neste caso, teria recordado como ele,
Filho de Deus, mandado pelo Pai como nosso Salvador e Mestre, nos prometeu o vem a do Espírito santificador. Logo em seguida, é introduzida
Espírito Santo, e manteve a promessa. Preferi evitar partir daquilo qu~ - pod~-se a Igreja: a mencionam todas as antigas fórmulas e sempre mais
facilmente supor - todos conhecem, e entrar logo nos argumentos mais estreita- ou menos no mesmo lugar, sempre associada ao Espírito. Ela
mente ligados ao assunto. O Pai manda o Filho e este manda o E~pírit~ Santo; figura hoje no símbolo como a primeira obra deste Espírito,
por tal caminho Deus veio até nós. Nós chegamos .a ele pelo c~mmho mv~rso: . colocada antes da comunhão dos santos, da remissão dos
o Espírito Santo nos conduz ao Filho, e este, ao PaI. P?rtanto, e .cl~ro: a mmh~
intenção foi começar por aquilo que para o nosso caminho ao cnstlantsm~ esta pecados, da ressurreição da carne e da vida eterna ... Como
no início em ordem de tempo" (J. A. MOHLER, L'unità nella Chiesa, op. cit., p. proclamamos a nossa fé na criação do céu e da terra, por obra
4). Comenta o editor italiano: "Discutiu-se por muito tempo seA Unidade tenha de Deus Pai onipotente, na encarnação, morte, ressurreição
surgido em oposição a tendências excessivas que punham a essênc!a da Igreja e ascensão de Jesus Cristo, nosso Senhor, assim, do mesmo
na autoridade (particularmente contra um famoso livro de De Maistre). HOJe
geralmente se admite que não foi assim: os motivos polêmicos são totalmente modo, professamos agora que a Igreja é formada pelo Espírito
insignificantes, enquanto é ardentíssimo o entusiasmo. Trata-se, port.anto, d; um~
"profissão de fé", não de uma polêmica" (G. CORTI, )ohann Adam Mohler~Lumta
nella Chiesa, op. cit., p. 3). Na edição crítica alemã, discu.te-s~ est? questao entre 149'femosaqui um testemunho do comma joanino, isto é, uma inserção que se
as páginas [13]- [17] da introdução (J. A. MOH~ER, tn« Einheit m der Kirche encontra em muitos códices do Novo Testamento, mas não nos manuscritos mais
oder das Prinzip des Katholizismus Dargestellt 1m Geiste der Kirchenvãter der antigos. Nos códices que hoje a crítica considera, neste particular, corrompidos,
drei ersten Jahrhunderte - Herausgegeben, eingeleitet und kommentiert von ). em )0 3,7-8, lê-se: "Pois são três os que testemunham no céu: o Pai, o Verbo e o
R. Geiselmann,). Hegner, Kôln - Olten, 1956). Espírito Santo: e estes são uma coisa só. Três ainda são os que testemunham na
146A.GRÉA, De /'Église et de sa divine constitution, 1885. [Castermann, terra: o Espírito, a água e o sangue, e os três estão na unidade" [em itálico, o texto
Tournai, 1965]. do comma joanino]. Cipriano já o conheceu assim, interpolado.
147P.BROUTIN, Mysterium Ecclesiae, A L'Orante, Paris, 1947 [1945]. 150CLP. NAUTIN, Je crois à l'Esprit Saint dans Ia sainte Église pour Ia résur-
148M.M. PHILIPON, A Santíssima Trindade e a Igreja, op. cit., p. 363. rection de Ia chair. Étude sur /'histoire et Ia théologie du symbole, Cerf, Paris, 1947.

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Santo, que a Igreja é a sua 'obra própria' (S: Alberto Magno, Capítulo 5
De sacrificio missae, 1.lI, capo 9, a.9), o Instrumento com
o qual nos santifica. Afirmamos que é nela:..pela fé que nos TRANSIÇÃO
comunica que nós participamos da comunhao ?OS santos, da DE UMA IGREJA AUTOFINALIZADA
remissão dos pecados, da ressurreição para ~ vida eterna ... E
enfim cremos que esta Igreja existe não por SI ~esma, mas por A UMA IGREJA REINOCÊNTRICA
Deus" (H. DE LUBAC, Meditazione sulla Chiesa, [aca Book,
Milano, 1979, p. 15).

o Reino constitui o centro da pregação e da missão de


Jesus (cf. Mc 1,14-15; Mt 4,23 par.; Lc 8,1);151 conseqüente-
mente, constitui o centro, o objeto e o objetivo da missão da
Igreja (cf. Mt 10,7). Se hoje podemos dizer tremenda verdade
com clareza e firmeza, é porque fomos ajudados também pelo
Vaticano 11,ainda que a tratativa explícita da relação Igreja
- Reino na Constituição (LG 5) seja breve, tardia e um tanto
apressada. 152
Depois de séculos de mais ou menos generalizada iden-
tificação entre Igreja e Reino de Deus, 153 os teólogos despen-
deram, no século XX, boas energias discutindo sobre a iden-
tidade ou a diferença entre Igreja e Reino, posicionando-se

151CLR. FABRIS, Jesus de Nazaré. História e interpretação, São Paulo, Loyola,


1988, pp. I04ss.
152Éno textus emendatus que encontra lugar o novo número dedicado ao Reino
de Deus, da lavra do exegeta B. Rigaux (cf. A. ACERBI, Due ecc/esiologie, op. cit.,
p. 332ss.).
I53CL K. ADAM, A essência do catolicismo, op. cit. (seis vezes só nos dois
primeiros capítulos); R. M. SCHULTES, De Ecc/esia catholica. Praelectiones
apologeticae, Lethielleux, Paris, 19312, pp. 38-42; H. DIECKMANN, De Ecc/esia.
Tractatus historico-dogmaticus, Herder, Freiburg im Br., 1925, pp. 77-102; J. DE
GUIBERT, De Christi Ecclesia, Roma, 1928, pp. 41-49; T. ZAPELENA, De Ecc/esia
Christi. Pars apologetica, PUG, Roma, 19556, pp. 41 e 136-138; CH. JOURNET,
L'Église du Verbe Incarné, lI, Paris, 195 I, p. 997, nota 1. Aliás, Zapelena é incisivo:
"Integra ecc/esiologia posset exhiberi et ordinari sequenti quadrilatero: regnum Dei
= ecc/esia Christi = ecc/esia romana catholica = corpus Christi mysticum in terris"
(De Ecc/esia Christi, op. cit., p. 41)!

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alguns - sem questionar os fundamentos de sua posição - pela guarda, porém, desde já, estreitas relações com o Reino. Com
homogênea identidade, outros pela total d~f~rença.154 . efeito, na qualidade de comunhão espiritual constituída por
A tendência predominante entre os catohcos antes da cn- Deus "nestes tempos que são os últimos", carrega consigo
se modernista (fins do século XIX - inícios do século XX) 155 alguns bens escatológicos (o dom do Espírito e o julgamento
156
era identificar pura e simplesmente Igreja e reino de Deus. do mundo), ainda que não se tenha manifestado inteiramente
Em reação à separação total entre as duas grandezas, operada a experiência de tal dom e de tal juízo, o que se dará na plena
por liberais e modernistas, os católicos começaram tan:bém manifestação de Cristo (parusia final). 158
a distingui-Ias, mas, nestes primeiros tempos, a afirmaçao da A mesma mudança se deu na compreensão da relação
diferença era muito tímida: esta seria mais de modo que de da Igreja com o "mundo", até então ausente na reflexão
essência.P" teológica. A teologia ocupava-se da relação Igreja - Estado,
Não demorou, porém, para que alguns estudiosos, so- mas não da relação Igreja - mundo. O "mundo" entrou para
bretudo exegetas, mas também teólogos sistemáticos, come- a teologia em estreita relação com o caráter escatológico da
çassem a distinguir abertamente entre as duas, quanto à s~a Igreja. 159Na verdade, a recuperação do caráter escatológico
própria natureza. Afirmavam com todas as letr~s: a Igreja da Igreja representava também uma reação ao caráter celeste
não é o Reino, que estará presente só na comunhao final; ela (para cujos assertores a posse do Espírito Santo pela Igreja
eliminava qualquer tensão entre a situação terrestre e a situa-
1540Esquema Kleutgen do Vaticano I afirmava que a Igreja é "o.rei~o verdadei-
ção celeste e final) 160e imóvel da Igreja (para a tendência
ro, divino, imutável e sempiterno": "quibus omnibus perpensis dublta!1 no.n potest, juridicista, a Igreja é um "regnum immobile", completo, cuja
quin Ecc/esia verum sit Iesu Christi regnum in terris" (Schema co.nstltutlO~/S fI ~e
Ecc/esia Christi, in: Caput IX, G. ALBERIGO - F. MAGISTRETII, ConstltutlOOlS
santidade "essencial" deve ser exaltada).
Dogmaticae Lumen gentium Syno.p'sis histo.r!ca, op. cit., p. 353). D~stacaram-s~ Com isso, preparava-se uma posição mais respeitosa dos
na afirmação da distinção entre Remo e Igreja, entre outros, os segumte~ nom~s. dado bíblicos e da complexa realidade tanto do Reino quan-
R. SCHNACKE BURG, Die Kirche im Neuen Testament, Herder, .Fre1burg l.m
Br., 1961; Idem, Gottes Herrschaft und Reich. Eine biblisch-theo.lo.grsche Stud~e, to da Igreja.'?' É o que faz Lumen gentium, quando afirma
Herder, Freiburg im Br., 1959; J. SCHMIDT, L'Bvangelo secondo Marco, Morcellia- que.a Igreja - cujo início está ligado à pregação do Reino de
na, Brescia, 1961, pp. 48-56 [exegetas]; A. STOLTZ, De E~c/esla cnn«. He~de~,
Freiburg im Br., 1939, pp. 3-9; M. SCHMAUS, Dommatica Cattolica, Marietti, Deus pelo Senhor Jesus (cf. Me 1,15; Mt 4,17) - é na terra
Torino, 1963, IV/2, p. 109; IIl/I, pp. 588-595; Y. M.-J. CONGAR,/alo.ns pour "o germe e o início" deste Reino. Ela é formada por aqueles
une théologie du laicat, op. cit., Paris. Sintomático, neste sentido, para conh~cer
a mentalidade comum, é o que os catecismos "pergunte e respondere~os" ensma- que, ouvindo com fé a palavra do Senhor e pertencendo ao
vam às crianças: "Quem fundou a Igreja?" "Jesus Cristo fundou a Igreja". E ~omo
explicação se lê (tendo como referênc~a Jo 18~36): "Cristo chama.a sua Igreja de
seu Reino" (cí. Katholischer Kathechlsmus fur das Erzbistum Kôln, Dusseldorf. I58Cf.R. SCHNACKENBURG, La Chiesa nel NUo.VOTestamento, op. cit.; Gottes
1940 [1925], p. 24). _. Herrschaft und Reich. Eine biblisch-theologische Studie, op. cit.; J. SCHMIDT,
155Éconhecida, por exemplo, a expressao de A. LOlSy,~ue, colo.cando e,? ,?PO- L'Evangelo secondo Marco, op. cit., pp. 48-56; A. STOLTZ, De Ecc/esia Christi
sição total os dois termos, afirmava: "Jesus anunciou o Remo, e veio a Igreja (A. op. cit., p. 15; M. SCHMAUS, Dogmatica cattolica, IV/2, p. 109; 1II11, op. cit.:
LOISY, L'Évangile et l'Église, Paris, 1902 [19033], p. 153). . pp. 588-595; Y. M.-J. CONGAR, Per una teologia del laicato, Morcelliana, Brescia,
156CLJ. B. FRANZELlN, Theses de Ecc/esia, pp. 77-90; L. BILLOT, De Ecclesia pp.83-14.
Christi, op. cit., pp. 72-106. .' .' 159CLJ. COMBLlN, Hacia una teologia de Ia acción, Herder, Barcelona,
151CLM. SCHULTES, De Ecc/esia catholtca praelectiones apo.lo.getlcae, ParIS, 1964.
Lethielleux, 38ss, especialmente41-42; H. DIECKMANN, De ChflStl Ecc/e~ra, Roma, I60Comopensava A. VONIER, Lo Spirito e Ia sposa, Firenze, 1945.
PUG, 1928, pp. 41-49; T. ZAPELENA, De Ecc/esia Christi, pars apotogeuca, pp. 41 161S.WIEDENHOFER, La Chiesa. Lineamenti [ondamentali di ecclesiologia,
e 136-138; C. JOURNET, L'Église du Verbe Incarné, lI, p. 997, n. I. San Paolo, Cinisello Balsamo (MIl. 1994, pp. 67-74.

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pequeno rebanho de Cristo (cf. Lc 12,32), acolheram o pró- ainda não concluiu sua peregrinação histórica. 165 Em outras
prio Reino de Deus.162 Jesus deu início à Igrej~ "justam~nte palavras: "a volta à Bíblia leva a superar toda identificação
fazendo uma coisa diferente de fundar a Igreja, quer dizer, entre Igreja e Reino de Deus (seja sonhada, seja tentada). É o
falando do Reino de Deus. Além disso, ele deu início à Igreja que faz o n." 5: o Reino de Deus se dá realmente só em Cristo
anunciando aquilo que há muito tempo tinha sido prometido. (palavras, obras e pessoa [o texto conciliar diz 'presença'[): a
A Igreja é, portanto, conectada à história ,de Israel: quem uer :t Igreja, na medida em que permanece ligada a Cristo e o vive
nutrindo-se dele, instaura o seu Reino no mundo, no sentido
falar da sua origem tem de olhar para alem de Jesus, e nao se
restringir apenas a ele" .163 A partir daí, é possível reler. até que constitui o seu germe e início (não a realidade perfeita,
a afirmação polêmica de Loisy e dizer que Jesus anunciou, tão-só início e promessa); sobretudo, porém, ela tem o ônus
sim o Reino de Deus, não a Igreja; que a Igreja é diferente, e a missão de anunciá-lorv"
sim: do Reino; que a Igreja, porém, nasce e vive do. v!~or
e da interpelação do Reino, como seu sinal, germ:, InICIO. Reino de Deus: metáfora da esperança
O Concílio chega mesmo a dizer - numa expressao talvez
arriscada - que a Igreja "é o reino de Cristo já presente em "O discurso sobre o Reino não pode em nenhum caso redu-
zir-se a um evento único e determinado uma vez por todas.
mistério.I'" Antes de tudo, é necessário observar que, do ponto de vista
Este tipo de relação não coloca a Igreja numa posição de lingüístico, a expressão 'Reino de Deus' é uma metáfora,
"domínio", mas de serviço; numa posição de "posse", mas de proveniente da experiência política dos povos submetidos ao
busca; numa posição de "sossego", mas de ten,sã? Na verd~- domínio dos reis. E uma metáfora que percorre toda a Bíblia...
de, a falta ou a negligência da tensão escatologlca na Igreja Ela surge espontaneamente do terreno do sofrimento do povo
(a perda da consciência de que o Reino "já" es~~ pres.ente, submetido ao domínio de reis iníquos; veja-se o discurso com
que Samuel procurou dissuadir o povo da intenção de dar-se
mas "ainda não" plenamente) leva a ver como ja realizada um rei. O profeta lhe havia preanunciado sem meios-termos a
a consumação escatológica da Igreja na Igreja terrestre, que dura experiência da violência, da injustiça e da exploração que
teria sofrido submetendo-se ao poder de um homem. Justamen-
te do interior desta experiência, tão impiedosamente descrita,
162CLLumen gentium, 5. até com antecipação, brota a esperança de que um dia será
163H.ZIRKER, Ecc/esiologia, op. cit., p. 48. . Deus e Deus somente a reinar sobre a humanidade ... Afirmar,
I64Lumen gentium, 3. Aliás, Paulo VI, no dia 27 de abril de 1966, falando
portanto, que um dia virá o Reino de Deus, isto é, que Deus
sobre a Igreja-mistério, a certa altura diz: "E bastará elencar ~st~s nomes [figuras e
símbolos _ N. do A.] para entender como a realidade da Igreja e vasta e comple~a. estabelecerá o seu poder sobre o mundo, significa anunciar
Ela é chamada: o Israel de Deus, o Reino dos céus, a Cidade de I?eus, a Jerusalem justiça, liberdade, paz, bem-estar, vida sem fim... A metáfora
celeste, a Esposa de Cristo, a Mãe dos fiéis, o Campo de Deus, a Vinha do S~n.hor,o do Reino tem um poder de ruptura e de mobilização: ela põe
Redil de Cristo, a Casa de Deus, o Povo de Deus e, final~ent~, o Co~o mistico de o ser humano numa tensão nova e positiva diante da história
. t "(PAULO VI Alocuções sobre a Igreja. Traduçao e mtroduçao de Gladys
Cns o..., - h t e do seu futuro desfecho, pois quer dizer que o mundo não
Henriques de Lima, Vozes, Petrópolis, 1967, p. 63). Nao te~ o"no ~om~n o.co~-
dições de comprovar se o Papa realmente disse "o redi! de Cristo (nao te:la,?lto o
rebanho de Cristo"?); acredito que o Papa tenha tambe~ usado ~ expressao ~0'1?0
místico de Cristo", abandonada pelo Vaticano 11(que dIZapenas corp? de Cristo ); 165Cf.E. SCHILLEBEECKX, L'Église de [ésus-Christ et /'homme d'aujourd'hui
lamento também que o Papa tenha colocado entre os apelativos da Igreja a e~pressao selon Vatican li, op. cit., pp. 116-117.
"Reino dos céus", posição igualmente superada ~el~ exegese, I?el~teologia e pelo 166L.SARTORJ, La Lumen gentium. Traccia di studio, Edizioni Messaggero di
ensinamento conciliar. Um papa também tem o direito de cochilar. Padova,Padova, 1994,p. 40.

71
70
está nas mãos dos maus, que a aventura humana não tem um Capítulo 6
destino obscuro, mas que Deus tem em suas mãos o destino
do mundo e o conduz a um final feliz... Se o rei que está por TRANSIÇÃO
vir para exercitar o seu poder sobre o mundo é Deus, os que
o esperam são para a humanidade portadores de uma grande
DE UMA IGREJA SOCIETAS
esperança ... A Igreja é no mundo testemunha de Deus e de A UMA IGREJA MYITHPION
seu domínio sobre o universo. Ela é portadora, portanto, de
uma visão positiva das coisas, apesar dos grandes males que
afligem a vida humana, e de uma perspectiva aberta para um
êxito positivo da história" (S. DIANICH - S. NOCETI, Trattato
sulla Chiesa, Queriniana, Brcscia, 2002, pp. 91-93).

A eclesiologia cristomonista e, por isso, encamacionista,


visibilista, institucional- própria do segundo milênio cristão
- privilegiou a categoria de "societas" (sociedade) para dizer
a realidade Igreja. 167
O conceito de societas foi, por séculos, a porta de en-
trada da eclesiologia: "de societate ecclesiastica reduplica tive
in quantum societas est, praesens currit tractatus''P" Billot
concebia o corpo da Igreja conceitualmente separado de sua
alma de graça. Esse corpo existe como tal independente da

1670S primeiros tratados "separados" de eclesiologia nascem - no contexto


da luta entre poder papal e poder régio ou imperial - sob o signo da visibilidade
e dó poder, com tendência hierocrática e papalista: Egidio Romano [1243-1316].
De ecclesiastica sive summi pontificis potestate, 1280; De ecclesiastica potestate,
130 I?; Giacomo Capocci da Viterbo [1255-130711308], De regimine christiano,
1301-1302; Henrique de Cremona, De potestate papa e; João de Paris, De potestate
regia et papali, 1302; Agostinho Trionfo, Summa de potestate ecclesiastica, 1320
ca.; Dante, De potestate Summi Pontificis; Santo Tomás (com o complemento de
Ptolomeu de Lucca), De Regimine Principum ou De regno, talvez 1267 etc. Observe-
se que do século XIII ao século XIX praticamente "todas as tratações sobre a Igreja
são de índole apologética (se bem que a pesquisa histórica esteja descobrindo sempre
novos documentos de atenção também ao aspecto mistérico da Igreja); particular-
mente, devem defender a autoridade, o papado, e discutir o problema das relações
entre papa e concílio, entre poder eclesiástico e poder civil. E isto demonstra como
a eclesiologia se liga quase diretamente mais com o direito do que com a teologia,
com os decretistas medievais do que com 05 sumistas medievais" (L. SARTORI,
Chiesa, in: G. BARBAGLIO - S. DIANICH (ed.), Nuovo Dizionario di Teologia,
Edizioni Paoline, Alba, 1977, p. 123).
168L.BILLOT, Tractatus de Ecclesia Christi sive continua tio Theologiae de Verbo
Incarnato, t. I, PUG, Roma, 1927, p. 278.

72 73
graça e das virtudes que se encontr~m em ~eu.smembros: "s?~ da Igreja.!" O Concílio, na verdade, tinha de distanciar-se
cialis membro rum colligatio sub hierarchia instructa duplici seja do "reducionismo secular", que vê a Igreja como uma
potes tate, tum iurisdictionis seu imperii, tum or~inis ~eu dis- presença entre as tantas presenças da história, limitando-se
pensationis sacramentorum".169 O carde~l ~o.pos~Vatlcano I, a considerar sua eficácia histórica, seja do "reducionismo
Billot com sua visão extremadamente societàrta, nao faz outra espiritualista", que de tal modo exalta a dimensão invisível
coisa senão desenvolver com maior fineza especulativa o que já da Igreja que acaba por sacrificar sua concretude histórica.
ensinara o cardeal do pós-Tridentino, o influente São Roberto Para o Concílio, a Igreja é /-tVarrlpwv (mistério). Em que
Bellarmino (1542-1621): "a Igreja é o agrupamento das pessoas sentido? Não no sentido de desconhecido ou incognoscível,
(coetus hominum) reunidas pela profissão da verdadeira fé, mas no sentido bíblico-paulino, presente também nos Pa-
pela comunhão nos mesmos sacrament~s,.e so~ ~ ~ovemo ?OS dres pré-nicenos, do desígnio divino de salvação que vai se
legítimos pastores e principalmente do uruco vigano de Cnsto realizando e revelando na história humana. A idéia já tinha
sobre a terra, o romano pontífice ... Para que alguém possa ser uma sua incipiente tradição antes do Vaticano 11:"A Igreja é
declarado membro desta verdadeira Igreja, de que falam as
Escrituras, nós não pensamos que lhe seja exigida nenhuma quibusdam membris da Igreja; depois da revisão pela Comissão Central, afirma-se
virtude interior. Basta a profissão exterior da fé e da comu- que os carismas são distribuídos in variis officiis et ministeriis e correspondem à
"índole social e à missão divina da Igreja", articulando mais estreitamente as estru-
nhão nos sacramentos, coisas que os próprios sentidos podem turas institucionais da Igreja e sua animação pneumática (cf. Acta synodalia, n. 6,
constatar ... A Igreja é, de fato, um agrupamento de pessoas ~ão p. 15, 11.35-40 e 1-4a).
1~3.Aindana ~a~epr~paratória do~ tr.a~alhos conciliares, diversos participantes
visível e palpável como o agrupamento do povo romano, o remo ou cnttcavam a VIsa?um lateralmente jurídica do Esquema preparatório ou sugeriam
da França, ou a república de Veneza". 170 A incidência desta de- u~~ nova p:rspe~hva, _ou a~bas as coisas. Na Comissão Central, alguns não só
c~l.hcavama identificação umvoca entre a Igreja católica e o Corpo místico, como A.
finição foi tão grande. que, quatro sécu~os de?ois, Pi? ~ aind~ a Liênart (cLActa praep., op. cit., pp. 997-998), P. E. Léger (pp. 1002-1003), B. Yago
repetia quoad essentzam no seu Catecismo: A Igreja e ~ SOCIe- (p. 1022) e Th. CO?r~y (p. 1035):- o que não foi aceito pela Comissão teológica (cf.
dade dos verdadeiros cristãos, isto é, dos que foram batizados, F. GEREM IA, I pnmi due capitoli della "Lumen gentium ". Genesi ed elaborazione
deI testo conciliare, Edizioni "Marianum", Roma, 1971, p. 29) - mas sugeriam um
crêem e professam a doutrina de Cristo, participam dos seus a~argame~to,do .discurso,. pedindo que o capítulo primeiro abraçasse todos os está-
. id "171
sacramentos e obedecem aos Pastores por e Ie constituí os . dlOs.da ex~stencla da Igreja. Chegou-se mesmo a pedir que a consideração da Igreja
parttsse nao do aspecto pelo qual ela é uma "sociedade", mas daquele pelo qual ela é
Se bem a Encíclica Mystici corporis, de Pio XII, tenha uma "comun?ão" de graça em Cristo. Nesta linha pronunciaram-se P.E. Léger (Acta
praep., op. cit., pp. 1002-1003), F. Kõnig (pp. 1004-1006), J. Dõpfner (pp. 1007-
iniciado a correção dessa concepção, reintroduzindo o aspecto 1008), A. Bea (pp. 1012-1013), D. Hurley (pp. 1018-1020). O pedido foi recusado
pela COI~issão teológica, afirmando que o próprio da Igreja não é constituído pela
de graça e de carismas na própria realidade d~ ~o~o s~ci~l.d~
~o~~nhao de ~aça, mas a união de graça c~m.Crist.o "!n organismo heterogeneo
Igreja, 172 foi o Vaticano II que superou esta visao socíetana jundl.co sociali (cL~. GEREMIA, I due prtmt capitoli della "Lumen gentium ",
op. crt., p. 29). Ou seja, a concepção era ainda aquela da Mystici corporis, que, a
seu modo, era un; e~clarec.imento de Billot, "pois reintroduzia o aspecto de graça
e cansmas na propna reahdade do corpo social. Mas o fazia satisfazendo a uma
169Ibidem,p. 277. .' . solicitaç?o.do Pe. Przywara: não definir a Igreja em termos de corpo místico, mas o
170R.BELLARMINO, De controversiis Christianae fidel adversus nostn tempons
haereticos, t. lI: Prima Controversia generalis, liber III: De Ecclesia militante, Caput co~o !Dlsttco em te~os. de I~ej~, is.toé, de sociedade ..." (E. PRZYWARA, Corpus
Christi mysttcum. Eine Bilanz, m Zeitsch. f. Aszese u. Mystik", 15 (1940), 197-215)
lI: De definitione Ecclesiae, Ingolstadt, 160.1, ,Pp. 137-138.
I7IPIO X Catechismo della Dottrina cnstiana, VI, 105. (Y. M.-J. CONGAR, Le Concile de Vatican lI, op. cit., p. 10). No artigo acima citado,
mCL Y. M.-I. CONGAR, Le Concile de Vatican lI, op. c.it., 10. yal: lem?rar Przywara taxa a literatura teológica alemã anterior à Mystici corporis (29.6.1943)
que o texto proposto pela Comissão teológica dizia que os cansmas sao difundidos de antiintelectualista, antijurídica, mística, orgânica, biológica, feminil etc.

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74
primariamente uma realidade invisível. Com isso não se nega sial supera-se o visibilismo da Contra-Reforma e, ao mesmo
absolutamente a visibilidade da Igreja, antes ela é mesmo tempo, recupera-se a dimensão histórica da Igreja 'entre os
exigida em virtude do conceito de mistério, que significa uma tempos', ou seja, colocada entre a sua origem nas missões
comunicação da salvação envolta em formas visíveis". 174 divinas e a sua plena realização na glória de Deus tudo em
Com o termo "mistério", os Padres conciliares preten- todos. O Concílio da Igreja restitui assim à eclesiologia cató-
diam designar a Igreja como "uma realidade divina transcen- lica ao mesmo tempo o frescor e a profundidade da relação
dente e salvífica, que se revela e se manifesta de um modo com a Trindade, e a consciência de um ser 'na história que
visível",175 definição inspirada no documento Haec sacra não é um simples ser da história". 179
Synodus, de ordinário conhecido como "projeto alemão". 176
Nesta perspectiva, a Igreja se apresenta como o lugar do en-
Sem a graça do Espírito,
contro da iniciativa divina e da acolhida humana, "a presença
não podem ser membros do corpo de Cristo't"
da Trindade no tempo e do tempo na Trindade, irredutível
a uma compreensão meramente humana, todavia Igreja de "Dizer que a Igreja é uma instituição ou uma sociedade que
homens e mulheres que vivem plenamente na história". 177 tem por finalidade a preservação e a difusão da fé cristã, é
Supera-se assim o institucionalismol78 e o juridismo da uma definição certamente unilateral. A Igreja é criada por
esta fé: é o efeito do amor que vive nos crentes, por obra do
eclesiologia contra-reformista exatamente pela recuperação Espírito Santo ... Se disséssemos que a Igreja é só aquele tipo
da profundidade trinitária da realidade eclesial, sem perder de instituição, seria como dizer que Cristo somente ordenou
de vista sua visibilidade e sua incidência histórica e social. A aos fiéis de unirem-se em grupo, sem suscitar neles aquela ne-
Igreja como I-tvO't1'jpwv ou o "mistério da Igreja" - que, aliás, cessidade interior de unidade que os entrelaça e os liga uns aos
é o título do capítulo I da Lumen gentium - não tem nada de outros. Seria como dizer que a Igreja precede os fiéis, os quais
somente nela se tornam tais; que ela é até mesmo algo diverso
espiritualizante, evasivo ou a-histórico: "no 'mistério' ecle- deles, e, em última análise, algo estranho a eles. O princípio
divino comunicado aos fiéis é uno em si, e gera a unidade da
114Por exemplo, A. STOLTZ, De Ecclesia Christi, Herder, Freiburg im Br.,
. fé naqueles nos quais se encontra; ao mesmo tempo - é claro
1939, p. 15. - ele exclui o amor egocêntrico, atrai e funde aqueles nos quais
175Actasynodalia 111I, p. 170. está presente, estreitando-os numa grande unidade social: isto
176"Vox'mysterium' non simpliciter indicat aliquid incognoscibiie aut abstru- é, forma a Igreja una, cujo vínculo é justamente o amor: só
sum, sed, uti hodie iam apud plurimos agnoscitur, designat realitatem divinam o amor, de fato, atrai, une, estrutura. No momento em que o
transcendentem et salvijicam, quae aliquo modo visibili revelatur et manifesta-
tur" (Relationes Commissionis doctrinalis ad textum constitutionis dogmaticae
De Ecclesiae, julho de 1964, "De titulis et introdutione", in: G. ALBERIGO - F. em que o elemento institucional recebe tratamento preferencial. Do ponto de vista
MAGISTRETTI, Constitutionis Dogmaticae Lumen gentium Synopsis historica, do autor, o institucionalismo é uma deformação da verdadeira natureza da Igreja
op. cit., p. 436; Cf. "Adurnbratio schematis constitutionis dogmaticae De Ecclesia - deformação essa que afetou desastrosamente a Igreja em certos períodos da sua
a quibusdam Patribus et Peritis linguae Germanicae proposita", in: Ibidem, Caput história e permanece em todas as épocas como real perigo para a Igreja institucional.
I, 8 c, p. 383. Entre seus redatores estão Rahner, Schmaus, Ratzinger, Schnacken- Um cristão de fé pode se opor energicamente ao institucionalismo sem deixar de
burg, Semmelroth, Grillmeier, Hirschmann, Wulf (Cf. U. BETTI, "La dottrina ser muito envolvido com a Igreja como instituição" (A. DULLES, A Igreja e seus
dell'episcopato dei Concílio Vaticano 11".11capitolo 111della costituzione dommatica modelos. Apreciação crítica da Igreja sob todos os seus aspectos, Edições Paulinas,
Lumen gentium, Pontificio Ateneo Antoniano, Roma, 1984, p. 70, n. 67). São Paulo, 1978, p. 34).
177B.FORTE, La Chiesa icona della Trinità. Breve ecclesiologia, op. cit., p. 15. 179B. Forte, La chiesa icona della trinitá, op. cit., p. 16.
178"0 institucionalismo, tal como aqui o defino, não é o mesmo que a aceitação 180"Sidesit eis gratia spiritus, nec membro corporis Christi esse possunt" (ORÍ-
do elemento institucional da Igreja ... Entendemos por institucionalismo um sistema GENES, Ep. Ad Rom., I. IX, par. 3, in: PG 14, 1215 B).

76 77
Espírito divino colocou no homem o amor, a Igreja começou Capítulo 7
a existir" O. A. MOHLER, Uunità nella Chiesa. II principio
dei cattolicesimo nello spirito dei padri della Chiesa dei primi TRANSIÇÃO
tre seco li, Città Nuova, Roma, 1969, pp. 213-215).
DE UMA IGREJA SOCIETAS INAEQUALIS
A UMA IGREJA "POVO DE DEUS"

A Igreja era vista também como uma societas inaequalis,


hierarchica (sociedade desigual). Nesta concepção, a Igreja
está centralizada no papa e na Cúria; os bispos comportam-se
mais como vigários do papa do que como pastores próprios
e autônomos das Igrejas locais; os leigos e leigas são mais
objetos passivos da iniciativa concentrada no vértice do que
sujeitos ativos da dinâmica eclesial. Segundo o reacionário
Gregório XVI, "ninguém pode ignorar que a Igreja é uma
sociedade desigual na qual Deus destinou alguns para co-
mandar, outros para obedecer; estes são os leigos, aqueles, os
clérigos" .181 O Capítulo X do esquema Suprem i Pastoris, de
Cl. Schrader, distribuído no Vaticano I, dizia: "Mas a Igreja de
Cristo não é uma sociedade de membros iguais, como se todos
os fiéis que dela fazem parte tivessem os mesmos direitos,
mas é uma sociedade desigual (hierárquica), e isto não só no
sentido de que, entre os fiéis, alguns são clérigos, e outros,
leigos, mas sobretudo porque há na Igreja um poder divina-
mente instituído que uns receberam para santificar, ensinar

IBICf. A. GRILLMEIER, Theologie und Philosophie, 45 (1970), Herder,


Freiburg, p. 344, n. 55. Este papa (1831·1846) duas vezes empregou tropas da
Áustria contra levantes nos Estados Pontifícios, lutou contra a unidade da Itália,
opôs-se à liberdade de consciência, à liberdade de imprensa, à separação entre Igreja
e Estado, à construção de estradas-de-ferro nos Estados Pontifícios (atual centro e
centro-norte da Itália), à colocação de postes de iluminação pública etc. (cf. R. P.MC-
BRIEN, Os papas. Os pontífices de São Pedro a João Paulo Il, op. cit., pp. 343-345).

78 79
e governar, e outro não o têm".182 O controverso S. Pio X sociedade organizada, constituindo-se pelo exercício dos po-
- dando prosseguimento a semelhantes pronunciamentos de deres de que eram investidos o papa, os bispos, os sacerdotes.
Pio IX183e Leão XIII184- é enfático: "A Escritura ensina, e A eclesiologia consistia quase exclusivamente num tratado de
a doutrina transmitida pelos Padres confirma que a Igreja é direito público" .188A hierarquia, a bem da verdade, estava
o corpo místico de Cristo, administrado pela autoridade dos como que concentrada e hipostasiada no Pontífice Romano,
pastores e doutores, isto é, uma sociedade de homens na qual numa verdadeira monarquia espiritual: "A Igreja aparecia
alguns presidem os demais com plena e perfeita potestade de como uma espécie de dedução ou expansão de sua cabeça
governar, ensinar e julgar. Esta sociedade é, portanto, por sua romana",189 num regime que, pensava-se, por instituição
força e natureza, desigual... e estas ordens são de tal modo divina, deve ser dito de plena e perfeita monarquia. 190
entre si distintas que só na hierarquia residem o direito e a Aqui, o Vaticano 11 vai deixar uma de suas marcas regis-
autoridade de mover e de dirigir os sócios ao fim proposto à tradas. A noção de povo de Deus vai ocupar o lugar que, na
sociedade, e que a função da multidão, porém, é a de deixar- eclesiologia anterior, era indevidamente ocupado pela noção
se governar e seguir obedientemente a condução dos que a de "sociedade desigual" ... e vai muito além. Esta reviravolta
dirigem". 185Um eco dessa concepção encontrava-se ainda no será feita em dois movimentos: o primeiro será a criação,
esquema "De Ecclesia" da Comissão teológica preparatória graças à insistência de vários Padres (mais de 300), consubs-
do Vaticano 11: "A Igreja, pelo próprio fato de ser um corpo, é tanciada no "esquema Philips" e acolhida pela Comissão de
perceptível aos olhos ... Ela é a formação de muitos membros coordenação,'?' de um capítulo próprio sobre o povo de Deus,
de modo algum iguais, uma vez que uns estão submetidos aos que será desmembrado do anterior capítulo "de populo Dei
outros, e que clérigos e leigos constituem nela diversos esta- et speciatim de laicis";\92 o segundo será o deslocamento do
dos, em relação a todos os quais o Cristo Cabeça sobreleva-se novo capítulo para imediatamente depois do primeiro, de
quanto à posição, perfeição e virtude'l.l'" Não à toa dizia a modo que hierarquia e laicato sejam tratados depois do que é
respeito Mõhler com fina ironia que "Deus criou a hierarquia comum a todo o povo de Deus. O fato será saudado como uma
e, assim, proveu mais do que o suficiente às necessidades da "revolução copernicana" por suas conseqüências no conjunto
Igreja até o fim do mundo't.l'" "Hierarcologia" era o nome da Constituição e para o futuro da eclesiologia.""
que Congar dava a esta visão institucional, jurídica, clerical,
verticalista da Igreja: "A Igreja era apresentada como uma I88Cr.Y. M.-J. CONGAR, Le Concile de Vatican lI, op. cit., p. 15.
189lbidem.
190L.BILLOT, Tractatus de Ecclesia Christi, op. cit., p. 535 [535-563].
182MANSI51, 543 [539-636]. 191(I) De Ecclesiae mysterio; (2) De populo Dei in genere; (3) De constitutione
183CLPIO IX, Carta "Exortae in ista", aos bispos do Brasil, 29 de abril de 1876, hierarchica Ecclesiae; (4) De laicis in specie: (5) De vocatione ad sanctitatem in Ec-
in: Acta Pii IX, t. VII, pp. 213-214. clesia, in: F. GEREMIA,I primi due capitoli della "Lumen gentium", op. cit., p. 62ss.
184CLLEÃO XIII, Carta ao Cardeal Guilbert, 17 de junho de 1885; Carta ao 192K.Wojtyla argumentava em favor desta mudança, dizendo que ao povo
Arcebispo de Tours, 17 de dezembro de 1888. pertencem todos, e a constituição hierárquica supõe a constituição do povo; ela
185PIOX, Encíclica Vehementer Nos, de 11 de fevereiro de 1906, em: AAS 39 aparecerá melhor como instrumento para o bem comum, e a divisão da Igreja em
(1906), pp. 8-9. estados ficará iluminada melhor, quando se falar primeiro do povo (cí, A. ACERBI,
I86VaticanolI, Schemata Constitutionum et Decretorum de quibus disceptabitur Due ecclesiologie, op. cit., p. 301, n. 153).
in Concilii sessionibus, Series Secunda, "De Ecclesia et de Beata Maria Virgine", 193cr. c. MOELLER, "Storia della struttura e delle idee della Lumen gentium ",
Typis Polyglotis Vaticanis, 1962, n° 5. in: J. M. MILLER (ed.), La teologia dopo il Vaticano lI, Morcelliana, Brescia, 1967,
187J.A. MOHLER, in: Theologischer Quartalschrift, 1823, p. 497. p.159.

80 81
Congar observa que o Concílio, depois de ter apresen- descrever os vários graus de comunhão: a) fiéis católicos; b)
tado as origens divinas da Igreja nas missões do Filho e do cristãos não católicos; c) não-cristãos. Aborda, enfim, o cará-
Espírito, mostra três coisas: primeiro, "que esta Igreja se ter missionário da Igreja, na espera do seu termo escatológico
constitui na história humana; (segundo), que ela, dentro da (cf. nn. 9_17).195
humanidade, se estende a diversas categorias de pessoas que Não podendo estender-nos sobre tanta riqueza, ape-
estão em atitude diversa umas das outras diante da plenitude lamos, por sua importância hermenêutica, à Relação Ge-
de vida presente em Cristo e de que a Igreja por Ele fundada é ral com a qual Garrone, à época Arcebispo de Toulouse,
o sacramento; enfim, se quis mostrar o que é comum a todos apresentou o capítulo II da Lumen gentium à assembléia
os membros do povo de Deus, antes de qualquer distinção conciliar. Segundo Garrone, a exposição sobre o povo de
de função e de estado particular, considerando-o no plano da Deus - que aqui é entendido como o "totum complexum
dignidade da existência cristã".'?" omnium ... qui ad Ecclesiam pertinent", anterior a qualquer
Concretamente, o capítulo aborda os seguintes temas: distinção de carismas, funções, ministérios - diz respeito ao
a) a descrição dos elementos que fundam a dignidade do mesmo mistério da Igreja, 196 mas presta-se a ressaltar melhor
povo de Deus no Antigo Testamento e no Novo Testamento: determinados aspectos: a) a Igreja "in sua totalitate" ("em
os valores da eleição, da Aliança, da missão, colocando em sua totalidade"), para que daí fique mais claro seja a função
evidência, na continuidade histórica, a novidade de Cristo; ministerial dos pastores (que devem proporcionar aos fiéis
b) a dignidade sacerdotal, inerente ao povo de Deus, como os meios de salvação), seja a vocação e missão dos fiéis (que
participação no único sacerdócio de Cristo sacramentalmen- devem colaborar com os pastores na ulterior difusão e santi-
te celebrado; c) a dignidade profética do mesmo povo pela ficação de toda a Igreja); b) a Igreja "inter tempora" ("entre
unção do Espírito, que tem lugar na Cabeça e nos membros os tempos"), da ascensão do Senhor à sua parusia, enquanto
e se manifesta por meio do sensus fidei e dos carismas; d) caminha rumo ao fim bem-aventurado; c) a unidade da Igreja
a unidade deste povo, do qual todos os homens e mulheres "in sua catholica varietate" (em sua "católica variedade"),
são chamados a fazer parte, e sua universalidade, que não se entre os clérigos, religiosos e leigos, que tendem ao mesmo
confunde com uniformidade. Deriva daí justamente a unidade fim; entre a Igreja universal e as Igrejas particulares com suas
da Igreja "na variedade católica": a) entre clérigos, religiosos legítimas diferenças; entre as tradições orientais e ocidentais
e leigos, tendendo todos a um só fim; b) entre Igreja universal da Igreja una; entre as várias culturas e particularidades
e Igrejas particulares com suas legítimas diferenças; c) entre dos povos; d) a perspectiva mais adequada para tratar dos
as tradições ocidentais e orientais da mesma Igreja; d) entre
as várias culturas e as peculiaridades dos povos, que a Igreja 195Cf.C. SCANZILLO, La Chiesa sacramento di comunione. Commento teolo-
una reconhece e defende. K'cOalia Lumen gentium, Edizioni Dehoniane, Napoli, 1987, pp. 82-83.
,96Garrone insiste não só que "populus Dei" não se refere apenas aos leigos e
Além disso, o Concílio, alargando a questão de membris leigas (U 'populus Deis' hoc non intelligitur de grege fidelium, prout ab Hierarchia
Ecclesiae, assume o esquema dos "círculos concêntricos" para contradistinguitur, sed de toto complexu omnium, sive Pastorum sive fidelium, qui
/lei Ecclesiam pertinent" ), mas sobretudo na íntima relação entre "povo de Deus"
t' "mistério" ("expositio 'de Populo Dei' revera ad ipsum mysterium Ecclesiae, in

194Y. M.-J. CONGAR, "La Chiesa come popolodi Dio", in: Concilium 1 (1965), lI' consideratum, respicit"). (G. ALBERIGO - F. MAGISTRETII, Constitutionis
dogmaticae Lumen gentium Synopsis historica, op. cit., p. 441).
pp.19-43.

82 83
católicos, cristãos não católicos, a humanidade em geral e, explícita ou implicitamente está construído sobre o tema do
particularmente, o tema das "missões".'?' povo de Deus. Os evangelhos mostram Jesus no meio do povo
O número 32 da Lumen gentium - uma de suas pérolas de Deus, agindo entre o povo, novo Israel que começa com os
discípulos. Os outros livros do Novo Testamento elaboram a
mais preciosas - abre a tratativa da dignidade e da missão
teologia do novo povo de Deus. A teologia de são Paulo tomou
dos leigos e leigas, recolhendo, com excepcional felicidade, o o conceito de povo de Deus c9mo o seu conceito básico (cf.
espírito e o sentido da eclesiologia conciliar do Povo de Deus, L. Cerfaux, La théologie de l'Eglise suivant saint Paul Cerf
que se abre para a pluralidade e tudo recolhe na unidade. O Paris, 1965). Mas os outros livros bíblicos também seguem
número se conclui com a conhecida citação de Santo Agosti- esse c~~inho: 'Fez de nós um reino, sacerdotes para Deus,
nho: "Para vós sou bispo, convosco sou cristão ... ".198 seu PaI (Ap 1,6). 'Eles serão o seu povo e ele será o Deus
que está ~om eles' (Ap 21,3). 'Vós, porém, sois a raça eleita,
A proposta de Suenens, bem se vê, revelou-se determi- a comunidade sacerdotal do rei, a nação santa, o povo que
nante e prenhe de conseqüências: "Não se tratava apenas, com Deus conquistou para si, para que proclameis os altos feitos
efeito, de expor o que é comum a todos os membros da Igreja daquele que das trevas vos chamou para sua luz maravilhosa;
no nível da dignidade da existência cristã anteriormente a toda vós que outrora não éreis seu povo, mas agora sois o povo de
Deus' (lPd 2,9-10)" O. COMBLIN, O povo de Deus Paulus
distinção de ofício ou de estado de vida, o que é bom método; São Paulo, 2002, p. 29). ' ,
tratava-se de dar prioridade e primazia ao que decorre do ser
cristão, com suas responsabilidades de louvor, de serviço e de
testemunho, em confronto com o que é organização, ainda
que de origem apostólica e divina". 199

o Povo de Deus no Vaticano II


"Ao propor de novo o conceito de povo de Deus no centro da
eclesiologia, o Vaticano 11é fiel a uma das suas orientações
básicas, que era o retomo à Bíblia. Tomando o tema do povo
de Deus como eixo, a doutrina conciliar está em continuidade
evidente com a Bíblia. Não se trata de volta ao Antigo Testa-
mento, como dizem alguns autores. O Novo Testamento inteiro

197Cf.Relationes Commissionis doctrinalis ad textum constitutionis dogmaticae


de Ecclesia, Caput 11. Relatio generalis, in: G. ALBERIGO - F. MAGISTRETTI.
Constitutionis dogmaticae Lumen gentium Synopsis historica, op. cit., pp. 440-441.
Os membros da 11 Subcomissão foram Garrone, Dearden e Griffiths; a Relatio foi
preparada pelos peritos Congar, Sauras, Witte, Kerrigan, Naud e Reuter, sendo que
os três primeiros a redigiram.
19s"Ubime terret quod vobis sumo ibi me consolatur quod vobiscum sumo Vobis
enim sum episcopus, vobiscum sum christianus. /llud est nomen officii, hoc gratiae;
illud periculi est, hoc salutis" (Sermo 340. I: PL 38. 1483).
199y.M.-). CONGAR. Le Concile de Vatican Il, op. cit., p. 110.

84 85
Capítulo 8

TRANSIÇÃO
DE UMA IGREJA SOCIETAS PERFECTA
A UMA IGREJA SACRAMENTUM VNITATIS

A expressão societas perfecta possui uma longa história:


remonta à Política de Aristóteles, e Santo Tomás a aplica
à civitas, mas não à Igreja.F?" Implícita nas afirmações de
Gregório VII, é discretamente aplicada à Igreja por Bellar-
mino.i?' Reaparecerá, no século XVIII, diante das teorias
de direito público que atribuíam à administração civil toda
a organização externa da Igreja.202 Bispos franceses usavam
tal conceito para criticar a Constitution du Clergé Français
de 1790.203 Papas (desde Gregório XVI) e juristas romanos
(Tarquini, Cavagnis, Zigliara) desenvolverão e apelarão a este
conceito na luta contra as pretensões estatistas de limitar a
liberdade de ação da Igreja: a Igreja é uma sociedade original,
autônoma, e tem em si mesma, por direito divino, todos os
poderes necessários à obtenção de seu fim sobrenatural.P"

2°OARISTÓTELES, Política I1I/9.I.Cf. S. Th. Ia lia< q. 9 a.3; q. 90 a.3 ad 3.


201 "Respublica ecclesiastica debet esse perfecta et sibi sufficiens in ordinem ad
suum finem" (Controversiae J. De Summo Pontifice, op. cit., lib. V C. 7).
202Cf. S. FOGLIANO, "11compito apologetico dei Jus Publicum Ecclesiasticum",
in: Salesianum 5 (1945), pp. 45-80; Idem, La tesi fondamentale dello Jus Publicum
Ecclesiasticum, in: Ibidem, 6 (1946), pp. 67-135.
203Cf. C. CONSTANTIN, verbete "Constitution civile du Clergé", in: A. VACANT
- E. MANGENOT (ed.), Dictionnaire de Théologie Catholique, t. 11,Paris, Letouzey
& Ané, 1909ss., col. 1562.
204Cf. PIO IX, Alocuções consistoriais Singulari quadam, de 9 de dezembro de
1865; Multis gravibusque, de 17 de dezembro de 1860; Maxima quidem laetitia, de 9
de junho de 1862; Syllabus, proposição 19 (cf. DS 2919); Encíclica Vix dum a Nobis,
de7 de março de 1874; LEÃO XIII, Diuturnum illud, de 29 de junho de 1881; Jmmor-

87
Nesse contexto de lutas, a expressão societas perfecta assumi- dico com os Estados, numa luta entre os poderes religioso
rá também conotações morais e ideológicas, veiculando uma e civil, mas na dignidade do ser humano e na liberdade de
imagem de Igreja sem erros nem pecados, de qualquer forma, consciência e crença, que ela compartilha com todos os seres
não necessitada de conversão e reforrna.ê'" Também durante humanos e todos os grupos religiosos (cf. DH 2). O Concílio
a restauração católica do século XIX e até o pleno desenvol- sabe que a Igreja é diferente do mundo e tem uma missão
vimento da Ação Católica, "sociedade perfeita" significava singular no mundo, que a vida cristã tem suas exigências
uma auto-suficiência - para não dizer arrogância - da Igreja, próprias e irrenunciáveis, mas formula um programa de uma
como vida conjunta dos católicos e como mundo cultural (o Igreja no mundo atual, que não é mais o da Cristandade.õ"
célebre "mundo católico", que, na verdade, era uma espécie começa com uma mensagem ao mundo (20 de outubro de
de reduplicação "batizada" do mundo civil definitivamente 1962) e termina por uma constituição pastoral sobre a Igreja
perdido nas garras do laicismo). 206 no mundo de hoje (7 de dezembro de 1965), seguida de sete
Apesar de ela ter-se insinuado nos debates.ê'" o Concí- mensagens a diversas categorias dentro da humanidade (8
lio não utilizou a categoria "sociedade perfeita". Assumiu, de dezembro de 1965).
porém, seu significado positivo. Discretamente, afirma que Quanto a Paulo VI, além de voltar às páginas de Ec-
a Igreja tem em si e por si o que é necessário para realizar clesiam suam (ES), é oportuno conhecer sua trajetória, sua
sua missão (cf. LG 27; CO 8 e 16) e reivindica a libertas mentalidade, seu espírito: distinção do mundo não significa
Ecclesiae, ainda mais agora que esta se distanciou do regime separação do mundo (ES 52ss).209 Para ele, "não se salva o
de Cristandade e do regime de união entre Igreja e Estado mundo de fora; é preciso, como o Verbo de Deus que se fez
(cf. DH 13; GS 42, 5). A Igreja, porém, não funda mais a homem, assimilar, numa certa medida, as formas de vida da-
sua liberdade em algum direito divino ou num acordo jurí- queles aos quais se pretende levar a mensagem do Cristo; sem
reivindicar privilégios que distanciam, sem manter a barreira
tale Dei de 1 de novembro de 1885 (OS 3167); Libertas praestantissimum, de 20 de
0
de uma linguagem incompreensível, é preciso compartilhar
junho de 1894; PIO X, Compendio della dottrina cristiana per Ia provincia di Roma,
1905, parte I, c. X, par. 1, p. 119; BENTO XV, Constituição Providentissi"!a .Mater os usos comuns, desde que sejam humanos e honestos, espe-
Ecclesia, promulgando o Código de Direito Canônico de 1917; PIO XI, Enciclica 01- cialmente os dos mais pequenos ... É preciso fazer-se irmãos
vini illius magistri, de 31 de dezembro de 1929, in: AAS, 22 (1930), p. 53; OS 3687.
205Societas perfecta "nunca significou que a Igreja seria sem defeito, mas, antes
dos homens ..." (ES, 90).210Referindo-se ao Concílio, o ainda
do Vaticano 11 e de Paulo VI, nunca se tinha dito, num nível oficial e de modo ardeal de Milão dizia: "No Concílio a Igreja procura-se a si
tão público, que a Igreja está em perpétua necessidade de reforma. Está dito,
agora, e encaminhado (cf. LG 6 e 8; UR 4 e 6; Eccles!am sua~). Isto su~unh.a
uma melhor consciência da distância que separa a Igreja do Remo, e da histori- 208Cf. Y. DE MONTCHEUIL,A Igreja e o mundo actual, Livraria Morais Editora,
cidade desta Igreja" (Y. M-). CONGAR, Le Concile de Vatican ll, op. cit., p. 19). 1960 [Paris, 1945]; E. MOUNIER, Feu Ia chrétienté, Seuil, Paris, 1950.
206"AIgreja tinha constituído como que uma reprodução católica das estrut.uras 209CLPresbyterorum ordinis, 3.
e quadros de toda a vida: escolas, universidades, hospitais, sociedades esportivas, 210Logoapós a supressão dos padres-operários, Montini escrevia, na Carta-Pre-
cinemas, sindicatos católicos, jornais, uma literatura católica. Isto num clima obsi- lúcio de um livro de Veuillot, futuro Arcebispo de Paris, sobre o ministério: "Cabe
dional de defesa contra uma verdadeira conspiraçâo e, portanto, de fechamento a 110 padre deslocar-se, não ao povo. É inútil que o padre toque o seu sino; ninguém
tudo o que vinha de fora ..." (Ibidern, p. 20). . . _ . o escuta. É preciso que ele escute as sirenes que vêm das fábricas, estes templos da
207Ainda que para relativizá-Ia diante do primado absoluto da constituiçao m- tccnica onde vive e palpita o mundo moderno. Toca a ele fazer-se de novo missio-
terior, trinitária, da Igreja, temos o tocante pronunciamento do primaz da Polônia, nário, se quer que o cristianismo continue e se torne novamente um fermento vivo
S. Wyszynski, que menciona várias vezes a expressão "sociedade perfeita" (cí. M. da civilização" (Mgr. P. VEUILLOT, Notre sacerdoce. Documents pontificaux de
M. PHILIPON, A Santíssima Trindade e a Igreja, op. cit., p. 381). Pie X à nos jours, Tome I, Editions Fleurus, Paris, p. IX).

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mesma; ela tenta com uma grande confiança e com um grande pria mensagem graças ao outro (cf. ES, UR). Numa leitura
esforço definir-se melhor, compreender o que ela mesma é. teológica de seu próprio passado, afirma-o também Gaudium
Após vinte séculos de história, a Igreja parece submersa pela et spes: "a Igreja, por sua vez, não ignora quanto recebeu da
civilização profana, como que ausente do mundo atual. Ela história e da evolução do gênero humano ... Ela aprendeu,
sente então a necessidade de se recolher, de se purificar, de desde os começos da sua história, a formular a mensagem de
se refazer, para poder retomar com mais energia seu próprio Cristo por meio dos conceitos e línguas dos diversos povos, e
caminho ... Ao mesmo tempo em que procura assim se quali- procurou ilustrá-Ia com o saber filosófico... a Igreja reconhece
ficar e se definir, a Igreja procura o mundo, tenta entrar em que muito aproveitou e pode aproveitar da própria oposição
contato com esta sociedade ... E como realizar este contato? daqueles que a hostilizam e perseguem" (GS 44; cf. 26 e 34).
Ela trava o diálogo com o mundo, lendo as necessidades da A Igreja, autocompreendendo-se como sacramentum saIu tis,
sociedade onde opera, observando as carências, as neces- não se dissolve na história, mas tem uma responsabilidade
sidades, as aspirações, os sofrimentos, as esperanças que histórica, que não lhe é acidental, mas essencial, pois fontal-
estão no coração do homem". 211A Igreja, na verdade, não mente referida às divinas missões do Filho e do Espírito em
pode compreender a si mesma, nem ser ela mesma, senão em nosso mundo, em nossa carne, em nossa história: uma Igreja
diálogo com o mundo, não um mundo qualquer ou abstrato, no itinerário dos homens!
mas o mundo concreto que os seres humanos tecem aqui e
agora com o coração e com as mãos. Do seu ventre nascemos,
Uma Igreja que vive toda inteira para os seres humanos, com seu leite somos nutridos,
entre os seres humanos, pelos seres humanos, não menos que por seu Espírito somos animados'":
para Cristo, por Cristo, em Cristo.ê'? é uma Igreja sacramento
de salvação, "sacramento, isto é, sinal e instrumento, da união "Assim também a Igreja, envolvida pela luz do Senhor, espa-
lha por todo o mundo os seus raios, mas única é a luz que se
íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano",
propaga por toda parte, sem que a unidade do seu corpo seja
como diz o prólogo da Lumen gentium, e o repetem, com pe- comprometida; ela estende exuberante os seus ramos por toda
quenas variações, outras passagens do Vaticano Il.213Trata-se a face da terra, e faz escorrer bem longe os seus rios ricos de
de uma noção dinâmica, que carrega em si uma destinação água: mas único é o ponto de partida, a fonte é única, única
para além da Igreja, isto é, em favor dos seres humanos. A a mãe rica de muitos filhos: dela somos paridos, do seu leite
somos nutridos, do seu espírito recebemos a vida" (S. CIPRIA-
missão aqui é entendida como um "ser com", como "diálo-
0, De Catholicae Ecclesiae unitate, 5).
go" (cf. AG 11; NA 2). Por sua própria natureza, o diálogo
comporta um dar e um receber, um aprofundamento da pró-

2IIG.B. MONTINI, Discorsi ai Clero 1957-1963, Milano, 1963, pp. 78-80.


212PAULO VI. Discorso in apertura ai secondo periodo dei Concilio, EV,
142*55.
21~Cf. Lumen gentium, 1; 9; 48; Sacrosanctum Conci/ium, 5; Ad gentes, 1;
Gaudium et spes, 42 e 45; cf. y. M.-J. CONGAR, Un popolo messianico. La Chiesa,
sacramento di salvezza. La salvezza e liberazione, Queriniana, Brescia, 1976. 214CIPRIANO, De Catholicae Ecclesiae unitate, 5.

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