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Obscurecimento da centralidade da

Paixão redentora
Nota do editor: Continuamos com a segunda parte da crítica de José A. Ureta
a Desiderio desideravi, iniciada com a publicação de ontem. [acrescentar o
hyperlink]

O mistério pascal como centro da


celebração
Na encíclica Mediator Dei, Pio XII sublinha a centralidade da Paixão na vida
de Nosso Senhor Jesus Cristo e na nossa redenção (doravante, todos os
destaques em negrito são nossos):
“A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos
de sua vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem
Mãe de Deus, que nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os
aflitos, que sofre, que morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que,
reinando na glória do céu, nos envia o Espírito Paráclito e vive sempre na
sua Igreja: ‘Jesus Cristo ontem e hoje: ele por todos os séculos’ (Hb 13,8) E,
além disso, não no-lo apresenta somente como um exemplo a imitar mas
ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como mediador da nossa
salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que somos
membros, vivendo da sua própria vida.
“E assim como as suas acerbas dores constituem o mistério principal de que
provém a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica, colocar
isto na sua máxima luz, porque é como o centro do culto divino, por ser o
sacrifício eucarístico a sua cotidiana representação e renovação, e estarem
todos os sacramentos unidos com estreitíssimo vínculo à cruz” (n°s 148-149).
Pio XII se refere anteriormente aos fins do sacrifício eucarístico (adoração,
ação de graças, propiciação e impetração). Ao descrever o terceiro fim, o Papa
Pacelli destaca mais uma vez o papel da Paixão e Morte do divino Redentor,
resumindo em poucas linhas a doutrina de Santo Anselmo sobre a expiação
vicária de Jesus Cristo na cruz: “O terceiro fim é a expiação e a propiciação.
Certamente ninguém, fora Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação
adequada pelas culpas do gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz,
‘propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda
pelos de todo o mundo’ (1 Jo 2, 2)” (n° 66).
E reitera esse ensinamento tradicional ao descrever o fruto do sacrifício
divino, citando Santo Agostinho: “Os infinitos e imensos méritos desse
sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à universalidade dos
homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é
Deus Homem; porque a sua imolação como a sua obediência à vontade do
Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como Cabeça do gênero humano,
que ele quis morrer. ‘Considera como foi tratado o nosso resgate: Cristo
pende do madeiro; vê a que preço comprou; ...derramou o seu sangue,
comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o
sangue do unigênito Filho de Deus... Quem compra é Cristo, o preço é o
sangue, a aquisição é todo o mundo’ (S. Agostinho, Enarr. in Ps,147, n.16)”
(n° 69).
Reinterpretando a Redenção por meio
da Ressurreição
Essa insistência na centralidade do sacrifício da cruz para a redenção do
gênero humano foi uma resposta às elucubrações dos teólogos mais radicais
do movimento litúrgico que, já naquela época, o colocaram nas sombras,
enfatizando o triunfo e a Ressurreição de Cristo e seu presente estado glorioso.
O jesuíta Juan Manuel Martín-Moreno nos servirá novamente como guia para
esclarecer a mudança de ênfase introduzida pelos inovadores:
“A teologia ocidental está em vias de libertar-se desse modelo anselmiano de
redenção, que afetou tão negativamente a liturgia. Na realidade,
verdadeiramente, a salvação foi uma iniciativa do Pai que já nos amou
quando ainda éramos pecadores (Rm 5,10). Foi iniciativa do Pai enviar-nos o
seu Filho Salvador, como cabeça de uma nova Humanidade. Jesus não
morreu porque Ele mesmo buscou a morte, nem porque o Pai a exigiu dele. O
Pai não O enviou para morrer, mas para viver. A ação do Pai não consiste
em matar seu Filho, mas em ressuscitá-lo, aceitando sua oferta amorosa. (…)
“A forma cruel como Jesus sofreu sua morte não é consequência de um
destino inelutável fixado por Deus Pai, mas sim da crueldade de homens que
não podiam tolerar a presença dos justos em seu meio.
“Quando dizemos que Jesus morreu ‘por nossos pecados’, queremos dizer
que Ele morreu porque a humanidade pecadora não pôde deixar de matá-lo.
Ele morreu porque nós éramos pecadores. Se tivéssemos sido justos, nunca o
teríamos matado e Jesus não teria sofrido essa morte. Não é o Pai que quer a
morte de Jesus na cruz, mas a humanidade pecadora.
“Jesus morre porque foi fiel à linha de conduta que Lhe foi traçada,
mostrando-nos o verdadeiro rosto do Pai. Nesse sentido podemos dizer que
Ele morreu para o cumprimento da vontade de Deus. (…)
“Porque morreu no cumprimento da sua missão e assumiu a nossa natureza
humana até às últimas consequências, tendo uma morte semelhante à nossa; é
por isso que a humanidade de Jesus foi ressuscitada pelo Pai. Com isso,
abriu-se também para todos nós a porta da ressurreição e da vida eterna (…)
A nossa salvação é o efeito da sua encarnação, da sua vida, da sua morte, da
sua ressurreição e do dom do seu Espírito” [9].
Não poderia ser mais claro: a porta da ressurreição e da vida eterna nos foi
aberta, não tanto pelo sangue derramado na cruz, mas porque a humanidade de
Jesus foi ressuscitada pelo Pai. Esta mudança de paradigma, descrita
pedagogicamente pelo Pe. Martín-Moreno, deixou de ser mera especulação
dos teólogos e começou a passar para as cátedras eclesiásticas já no período de
elaboração do esquema prévio da Constituição sobre a liturgia, antes mesmo
do início da primeira sessão conciliar. O título original do capítulo sobre a
Eucaristia, aprovado em 10 de agosto de 1961, era De sacro sancto Missae
sacrificio; mas na sessão de 15 de novembro do mesmo ano se tornou De
sacro sancto Eucharistiae místerio [10].

Como esse ponto de vista entrou na


constituição conciliar sobre a Liturgia
No início dos debates sobre o esquema anteriormente referido – o único que,
pelo seu caráter inovador voluntariamente moderado [11], não foi totalmente
rejeitado, mas apenas emendado – Dom Henri Jenny, então Bispo Auxiliar de
Cambrai e membro da comissão preparatória comissão sobre a liturgia (e mais
tarde membro do Concilium que elaborou a nova missa), observou que faltava
no esquema o essencial: uma doutrina sobre o mistério da liturgia. Constituiu-
se então uma subcomissão que redigiu o primeiro capítulo da Sacrosantum
Concilium [12], cujo conteúdo se tornou o núcleo doutrinal não só daquela
constituição conciliar, mas também da reforma litúrgica de Paulo VI e de todo
o magistério pós-conciliar sobre a liturgia .
Aquele primeiro capítulo da Sacrosantum Concilium dilui a centralidade da
morte de cruz em todo o “mistério pascal”: “Esta obra da redenção dos
homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes
obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente
pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos
mortos e gloriosa Ascensão, em que ‘morrendo destruiu a nossa morte e
ressurgindo restaurou a nossa vida’ (Missal Romano, Prefácio pascal). Foi
do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de
toda a Igreja” (n° 5).
Não há dúvida de que a expressão paschale sacramentum (isto é, “mistério
pascal”) é frequente nos textos dos Padres da Igreja e nas orações do missal
tradicional. Mas em todos eles a expressão foi entendida no marco da
concepção tradicional da Redenção como um resgate operado principalmente
pelo Sangue derramado na Paixão e Morte do Salvador (ver, por exemplo, a
oração da Sexta-feira Santa: “Lembrai-Vos das vossas misericórdias, Senhor;
santificai e protegei sempre os vossos servos, para os quais Jesus Cristo vosso
Filho instituiu no seu Sangue o mistério pascal” – per suum cruorem,
instituit paschale mysterium). Enquanto em seu significado moderno o
mistério pascal passou a ser entendido principalmente como a plena revelação
do amor do Pai, que se expressa sobretudo na Ressurreição de Jesus: “Quando
se passa da redenção ao mistério pascal, a ênfase muda completamente.
Quem fala de redenção pensa primeiro na Paixão e depois na ressurreição
como complemento. Quem fala da Páscoa pensa primeiro em Cristo
ressuscitado” [13], escreveu o dominicano Aimon-Marie Roguet em um
artigo que marcou época, publicado pela revista Maison-Dieu, bastião
parisiense do movimento litúrgico.
O Papa Francisco minimiza a morte
redentora de Cristo
É precisamente esta acentuação unilateral a favor da Páscoa em detrimento da
Paixão – contrária ao equilíbrio tradicional – que transparece por todos os
poros da Desiderio desideravi. O documento não usa uma só vez as palavras
“Redenção”, “Redentor”, “resgatar”, que evocam a libertação do pecado
através do pagamento de uma dívida. Usa sempre “salvação”, que não tem
essa conotação, e a associa preferencialmente à Páscoa, citada nada menos que
29 vezes ao longo do texto, enquanto a Ressurreição é mencionada 14 vezes e
a morte do Senhor apenas 6 vezes.
A própria definição que ele oferece da liturgia sofre dessa parcialidade. Para
Francisco, é “o sacerdócio de Cristo, revelado a nós e dado no seu mistério
pascal, tornado presente e ativo por meio de sinais dirigidos aos sentidos
(água, óleo, pão, vinho, gestos, palavras), para que o Espírito, mergulhando-
nos no mistério pascal, transforme todas as dimensões da nossa vida,
conformando-nos cada vez mais a Cristo” (n° 21). E falando do respeito
devido às rubricas, diz que é preciso não roubar à assembleia o que lhe
corresponde, “ou seja, o mistério pascal celebrado de acordo com o ritual
que a Igreja estabelece” (n° 23), o que deve causar assombro nos
participantes, descrito como ficar “maravilhado pelo fato de o desígnio
salvífico de Deus se ter revelado no ato pascal de Jesus (cf. Ef 1,3-14), e a
força deste ato pascal continua a chegar até nós no celebração dos
‘mistérios’, dos sacramentos.” (n° 25). Mais adiante, afirma que “a ação da
celebração é o lugar em que, por meio do memorial, o mistério pascal se
torna presente para que os batizados, por meio de sua participação, possam
experimentá-lo em sua própria vida” (n° 49).
O risco com esta mudança de ênfase é que a fé dos fiéis (ou mais bem o pouco
que ainda resta dela) pode ser deformada em duas dimensões. Por um lado,
podem ser levados a pensar que a obra da salvação deve ser atribuída mais ao
Pai e ao Espírito Santo do que a Jesus, o Verbo Encarnado, filho de Maria, que
derramou seu sangue por nossos pecados. Por outro lado, poderiam ser
levados a pensar que Jesus Cristo não é exatamente o Redentor, mas o “lugar”
em que Deus nos salva, pois é na Páscoa de Cristo que o amor do Pai nos é
revelado. Também a piedade dos fiéis pode levar a desvalorizar todas as
devoções tradicionais que os encorajam a expiar seus pecados e os da
humanidade, induzindo-os a julgar-se salvos apenas pela fé no desígnio
salvífico de Deus, sem completar na sua carne “o que falta aos sofrimentos de
Cristo” (Col 1, 24); ou, pior ainda, acreditar em uma salvação universal por
causa da aliança indefectível de Deus com a raça humana.
NOTAS:
[9] Notas de Liturgia, p. 43-44,
https://www.academia.edu/34752512/Apuntes_de_Liturgia.doc
[10] https://www.cairn.info/revue-recherches-de-science-religieuse-2013-1-
page-13.htm
[11] https://www.crisismagazine.com/2021/sacrosanctum-concilium-the-
ultimate-trojan-horse
[12]
http://www.fraternites-jerusalem.ca/wordpress_sdssm/wp-content/uploads/
2013/04/Présentation-Sacrosanctum-Concilium.pdf
[13] https://www.la-croix.com/Culture/revue-Maison-Dieu-liturgie-coeur-
2020-11-29-1201127197
Para ler a parte 1, clique aqui. Continuará amanhã.
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Publicação original: https://onepeterfive.com/removing-centrality-


redemptive-passion/

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