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De sacerdotes do Sacrifício a Presidentes de Assembleias

Nota do Editor: Continuamos com a Parte 4 da crítica de cinco partes de José


Antonio Ureta a Desiderio desideravi. Para as partes anteriores, veja aqui:
Parte 1; Parte 2; Parte 3. [adicionar hiperlinks]
O Papel único do Padre na Missa
Na Mediator Dei, Pio XII ensina explicitamente que “Somente aos apóstolos e
àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das
mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam
diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim
representam o povo diante de Deus”(n° 35). Mas, acrescenta, na Santa Missa
“o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso
Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a
si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a
ele, mas superior ao povo (São Roberto Belarmino, De missa II c.l.). O povo,
ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino
Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de
nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais” (n° 76).
É claro que os ritos e orações do sacrifício eucarístico “a oblação da vítima é
feita pelos sacerdotes em união com o povo” (n° 78), pois “com a água do
batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo
místico de Cristo sacerdote, e, por meio do ‘caráter’ que se imprime nas suas
almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo
condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo” (n° 79).
Mas como é a participação do povo nos atos do sacerdócio de Cristo? “Em
contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: ‘Tende em vós os
mesmos sentimentos que Jesus Cristo experimentou’(Fl 2,5.) oferecendo com
ele e por ele, santificando-se com ele” (n° 73). Mas Pio XII se crê no dever de
reiterar mais uma vez que “o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício
eucarístico não significa todavia que eles gozem de poderes sacerdotais”. Tal
insistência se justifica porque já então alguns acreditavam “o preceito dado
por Jesus aos apóstolos na última ceia – fazer o que ele havia feito – se refere
diretamente a toda a Igreja dos cristãos”, e julgavam que “o sacrifício
eucarístico é uma verdadeira e própria ‘concelebração’” (n° 75).
Contra este erro, a Mediador Dei ensinou que “a imolação incruenta por meio
da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo
está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote
enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa
dos fiéis”. Os fiéis oferecem o sacrifício pelas mãos do sacerdote “pois o
ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em
nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja,
por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima”. Porém, “não se afirma que
os membros da Igreja de maneira idêntica à do próprio sacerdote realizam o
rito litúrgico visível – o que pertence somente ao ministro de Deus para isso
designado – mas sim que une os seus votos de louvor, de impetração, de
expiação e a sua ação de graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio
sumo pontífice, a fim de que sejam apresentados a Deus Pai na própria
oblação da vítima, embora com o rito externo do sacerdote” (n° 83).
Logicamente, Pio XII conclui explicando que não se pode condenar as missas
privadas sem a participação do povo, nem a celebração simultânea de várias
missas privadas em diferentes altares, alegando erroneamente a “índole social
do sacrifício eucarístico”. Porque o santo sacrifício da missa, “tem sempre e
em qualquer lugar necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função
pública e social, enquanto o ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos,
dos quais o divino Redentor é Cabeça, e oferece a Deus pela santa Igreja
católica e pelos vivos e defuntos”. Por isso, não é “de nenhum modo
requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro” (n° 86), nem é
necessário que o povo cristão se aproxime da mesa eucarística para assegurar
a integridade do sacrifício, como afirmam capciosamente os que “fazem da
santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração” (nos 100-
102).
Os reformadores rejeitam o papel único
do sacerdote e o submergem em uma
“assembleia comemorativa”
Evidentemente aquela clara distinção hierárquica entre celebrante e fiéis –
muito clara até as reformas conciliares, pela existência da mesa de comunhão,
que separava o presbitério, reservado aos ministros do altar, da nave onde
permaneciam os fiéis – era insuportável para reformadores com espírito
igualitário. Para reduzi-la, recorreram ao estratagema de “redescobrir” a
assembleia. O já mencionado jesuíta Juan Manuel Martín-Moreno nos explica:
“A eclesiologia que partiu da divisão entre clero e leigos teve sua perfeita
visibilidade na liturgia pré-vaticana. Os coros dos cônegos localizavam-se na
parte privilegiada das catedrais, isolados dos demais por grades. O
presbitério localizava-se nas alturas, separado dos fiéis por uma grandiosa
escadaria. Desta forma, destacou-se o papel mediador do sacerdote
localizado lá em cima, a meio caminho entre o Céu e a Terra.
“Mas a Lumen Gentium parte da consideração do Povo de Deus antes de
passar a falar dos diferentes ministérios da Igreja. A eclesiologia de
comunhão [19] que o Vaticano II abraçou se refletirá na grande importância
que a assembleia adquire na liturgia. Esta é talvez uma das características
mais emblemáticas da reforma litúrgica.
“O papel mediador entre Deus e os homens não é mais desempenhado pelo
presbítero, mas pela assembleia, na qual o presbítero exerce sua função. Não
contrapomos o presbítero à assembleia. Da mesma forma que não
contrapomos a cabeça ao corpo. A cabeça também faz parte do corpo. Não
existe corpo sem cabeça. Não há assembleia sem ministérios.
“Mas tampouco há ministérios sem assembleia. A origem última do
ministério não é a assembleia, mas Cristo; porém, como diz Borobio, “o
ministério não se origina à parte ou fora da comunidade”. O ministro não
recebe seu mandato diretamente de Cristo, como os apóstolos ou Paulo [20].
(…)
“A assembleia é a tradução de QHL, que em grego é traduzido como ekklesia
ou synagoge. Essas palavras designam a convocação, o ato de reunir e a
comunidade reunida. Qahal é a assembleia geral do povo. Em sua evolução
semântica designou o chamado, a imposição, a reunião, a comunidade
reunida, a Igreja. Ecclesía não é apenas Igreja, mas Igreja convocada e
reunida em um lugar específico e em um momento preciso para celebrar os
mistérios do culto. (…)
“É essa Igreja ou assembleia, que inclui o bispo, sacerdotes e diáconos, que
participa direta e formalmente do sacerdócio de Cristo. A assembleia reunida
é o reflexo e a expressão da Igreja. Nela a Igreja se encarna e se torna
visível; nela e por meio dela se projeta no mundo, especialmente na Igreja
local que celebra presidida pelo Bispo. Com isso, o Concílio não quer excluir
que haja outras manifestações da Igreja. A liturgia é a expressão mais visível
da Igreja, mas não a única. A Igreja também se manifesta na ação caritativa
dos cristãos e de muitas outras maneiras.
“O fundamento desta participação está, como já dissemos, no sacerdócio
comum dos fiéis. Na Eucaristia o povo oferece os presentes junto com o
presidente. Na SC [Sacrosanctum Concilium] 48 se diz que os fiéis ‘aprendam
a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não
só pelas mãos dele, a hóstia imaculada’. Nesse ponto a SC vai além da
Mediador Dei, que usou a expressão quodammodo, ‘de certa forma’. Esta
expressão foi suprimida pelo Concílio.
“Daí surge a consciência de que as ações litúrgicas não são privadas, mas
têm caráter comunitário (SC 26). É preciso devolver ao corpo da Igreja o que
sempre foi seu patrimônio; a assembleia deve recuperar o protagonismo que
havia perdido devido ao clericalismo abusivo. (…)
“Esta insistência no caráter comunitário da celebração é o que motiva a
recuperação da concelebração, que contribuiu para desprivatizar a Missa e
destacar a unidade do sacerdócio e do sacrifício eucarístico (SC 57). Nesta
perspectiva, torna-se hoje incompreensível que na liturgia pré-vaticana
pudessem ser celebradas diferentes liturgias simultâneas no mesmo templo, e
que alguns fiéis assistissem a uma e outros a outra.
“Portanto, hoje não podemos mais falar de uma assembleia que assiste à
Missa, mas de uma assembleia que celebra a Missa. O bispo ou sacerdote que
preside a celebração não pode mais ser chamado de ‘celebrante’, porque
todos são celebrantes, mas sim de ‘presidente’. Isso, que já foi sugerido na
SC26, é expressamente declarado no I[nstitutio] G[eneralis] M[issale]
R[omanum] 1 e 7. Fica desterrada para sempre a expressão popular ‘ouvir
Missa’. (…)
“Esta eclesiologia de comunhão acaba influenciando até os menores detalhes
da reforma litúrgica. Influencia muito a arquitetura das igrejas pós-
conciliares, onde o presbitério só é elevado acima da assembleia o mínimo
para que suas ações possam ser vistas por todos. As grades, as mesas de
comunhão foram eliminadas. O centro da Igreja é o altar e não o sacrário,
que agora foi transferido para uma capela lateral. O traçado da nave não é
mais retilíneo, como um bonde, mas semicircular, para que os fiéis se vejam
melhor e se sintam mais parte um do outro. Os altares laterais encostados às
naves foram removidos. O coro localizado na parte de trás da igreja
desapareceu. O ministério do canto não pode situar-se fora da assembleia,
mas como parte dela” [21].

O sacerdote reduzido a “presidente da


assembleia” e os leigos elevados a
concelebrantes
Que o celebrante seja toda a assembleia e que o ministro do altar seja reduzido
à condição de presidente da assembleia é o que Desiderio desideravi enfatiza,
não negando, mas omitindo completamente que só ele realiza in persona
Christi a imolação incruenta do sacrifício eucarístico.
A palavra sacerdote – que define precisamente aquele que realiza e oferece o
sacrifício – aparece apenas três vezes nas versões italiana (original) e
espanhola da exortação [22], duas das quais apenas para se referir a um clérigo
ordenado. Mas a expressão “presbítero” – que em sua origem grega e latina
significa apenas “o mais velho”, o “decano” – é usada 12 vezes em italiano e
15 vezes em espanhol. Enquanto “presidência” e o verbo presidir (ou suas
conjugações) aparecem 14 vezes, a expressão “celebrante” aparece apenas
uma vez e insinua que se aplica a toda a assembleia: “Recordemos sempre que
é a Igreja, o Corpo de Cristo, que é o sujeito celebrante e não apenas o
sacerdote” (n° 36). E depois o afirma explicitamente: “O sacerdote também é
formado por ele presidir à assembléia celebrante” (n° 56).
O documento reconhece que o ofício dos padres “não é principalmente um
dever que lhe é atribuído pela comunidade, mas sim uma consequência do
derramamento do Espírito Santo recebido na ordenação que o capacita para
tal tarefa”. Mas, ao definir sua tarefa, não diz ser aquela sacerdotal de
sacrificar sacramentalmente a Vítima, mas a de presidir as assembleias: “O
sacerdote vive sua participação característica na celebração em virtude do
dom recebido no sacramento da Ordem, e isso se expressa precisamente na
presidência” (n° 56).
No parágrafo seguinte proporciona uma interpretação exclusivamente
anabática e descendente de sua missão mediadora, omitindo que o sacerdote
oferece o sacrifício a Deus em nome de toda a Igreja:
“Para que este serviço seja bem feito — aliás, com arte! — é de fundamental
importância que o sacerdote tenha a consciência viva de ser, pela
misericórdia de Deus, uma presença particular do Senhor ressuscitado. O
ministro ordenado é ele próprio um dos tipos de presença do Senhor que
torna a assembleia cristã única, diferente de qualquer outra assembleia. (cf.
Sacrosanctum Concilium, n. 7) Este fato confere peso “sacramental” (em
sentido amplo) a todos os gestos e palavras de quem preside. A assembléia
tem o direito de poder sentir naqueles gestos e palavras o desejo que o Senhor
tem, hoje como na Última Ceia, de comer a Páscoa conosco” (n° 57).
As individualidades fundidas na
coletividade
Esta imersão quase total do ministro ordenado na “assembleia” verifica-se, por
outro lado, no fato de ela ser mencionada 18 vezes, destacando a sua função
celebrativa e o seu caráter coletivo, o que muitas vezes dificulta para cada fiel
render a Deus um culto verdadeiramente interior, oferecendo-se a Ele
pessoalmente em íntima união com Cristo-vítima. “Penso em todos os gestos e
palavras que pertencem à assembléia: reunir-se, andar cuidadoso em
procissão, estar sentado, de pé, ajoelhar-se, cantar, ficar em silêncio,
aclamações, olhar, ouvir. Há muitas maneiras pelas quais a assembléia, como
um corpo, (Ne 8:1) participa da celebração. Todos juntos fazendo o mesmo
gesto, todos falando juntos em uma só voz — isso transmite a cada indivíduo
a energia de toda a assembléia. É uma uniformidade que não apenas não
amortece, mas, ao contrário, educa os crentes individuais para descobrir a
singularidade autêntica de suas personalidades não em atitudes individualistas,
mas na consciência de ser um só corpo.” (n° 51).
Quão mais judiciosa foi a seguinte recomendação de Pio XII!:
“A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e
dissemelhantes que nem todos podem igualmente impressionar-se e serem
guiados pelas orações, pelos cantos ou pelas ações sagradas feitas em
comum. Além disso, as necessidades e as disposições das almas não são
iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em cada um. Quem, pois,
poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos cristãos não podem
participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios?
Certamente que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil:
por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo
exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma difiram dos
sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza” (n° 133).
Caberia perguntar se boa parte da deserção da missa dominical que se seguiu à
reforma litúrgica não vem do descontentamento de muitos fiéis diante do
caráter “assembleísta” e coletivista com que o novo rito foi celebrado na maior
parte das paróquias, não deixando espaço para a piedade individual. E,
sobretudo, dever-se-ia perguntar se a queda vertiginosa das admissões aos
seminários não se deve ao fato de que alguns daqueles que sentem o chamado
de sua vocação não respondem positivamente porque a imagem de um
ministro ordenado apenas “presidente da assembleia” não corresponde à
imagem tradicional do sacerdócio, onde o sacrifício pessoal da própria vida
encontra o seu modelo e consumação na realidade sacrifical da Santa Missa.
NOTAS:
[19] Permitam-nos um pequeno desvio, para destacar a imprecisão do conceito
de “eclesiologia de comunhão”, que se encontra em todos os lábios após o
Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, numa tentativa frustrada de
resolver o conflito entre o conceito tradicional da Igreja, sociedade perfeita e
hierárquica, e aquele da Igreja-Povo-de-Deus, igualitária, das comunidades de
base. O Pe. Juan Manuel Martín-Moreno talvez tenha razão em incluir o
conceito de “eclesiologia de comunhão” em sua visão de como deve ser uma
assembleia litúrgica…
[20] É óbvio que os atuais ministros do altar não receberam seu mandato
diretamente de Cristo, mas do bispo que os ordenou. Porém, a opinião
segundo a qual essa transmissão se faz por intermédio da comunidade foi
condenada pelo Papa Pio VI na Bula Auctorem fidei: “A proposição que
estabelece que o poder foi dado por Deus à Igreja para ser comunicado aos
pastores que são seus ministros, para a salvação das almas; entendida no
sentido de que a comunidade dos fiéis transmite aos pastores o poder do
ministério e do regime eclesiástico, é herética” (Denz./Hün. 2602).
[21] Op. cit., p. 60-62.
[22] Isso não acontece na versão em português, porque a palavra “presbítero”
nunca se tornou comum entre os católicos de língua portugeusa para se referir
aos padres. Ela é usada apenas como adjetivo, em expressões como
“ministério presbiteral”, “conselho presbiteral”, etc. Por isso, a versão
portuguesa usa “sacerdote” lá onde o original italiano e a tradução ao espanhol
empregam “presbítero”.
Para partes anteriores, consulte: Parte 1; Parte 2; Parte 3. [adicionar
hiperlinks]
Original: https://onepeterfive.com/priests-sacrifice-presidents-assemblies/

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